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ANGÚSTIA E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO Admardo B. Gomes Júnior 1 CEFET-MG [email protected] GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO RESUMO Partimos de um caso clínico de uma trabalhadora de um centro de chamadas telefônicas, que apresenta sintomas com o trabalho, para demonstrar como a angústia apresentada é, em última instância, o fracasso do desejo pelo trabalho. Uma resposta à inconsistência/inexistência de um suposto saber atribuído ao ofício e ao trabalhador. A suposição de saber no outro, que ordena as ficções simbólicas pela via do reconhecimento, parecem ruir frente à inconsistência do Outro do trabalho. O que vemos aparecer é uma resposta num nível de causalidade material direta que conduz o indivíduo à uma “cultura da queixa” sob a lógica do ressentimento. O desafio do percurso que aqui nos propomos percorrer é o de empreender nossas análises sob o caso clínico no fio da navalha entre a constatação da realidade social e o gozo de uma posição subjetiva, preservando a atividade do sujeito sob a forma de sua responsabilização subjetiva e material. Palavras chave: Angústia; precarização; trabalho; psicanálise. INTRODUÇÃO Neste artigo, ao nos perguntarmos sobre o contexto social das manifestações contemporâneas das mais variadas formas de transtornos de ansiedade em sua relação com o trabalho (Síndrome do Pânico, Fobia Específica, Fobia Social, Estresse Pós-Traumático, Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Distúrbio de Ansiedade Generalizada) optamos por tomar, com a psicanálise, o afeto de base que sempre se encontra nestes e outros transtornos: a angústia. 1 Pós-doutorado em Política, Trabalho e Formação Humana - Fae/UFMG. Doutor em Filosofia pela Aix- Marseille Université e em Educação pela FaE/UFMG. Professor do programa de pós-graduação em administração do CEFET-MG.

ANGÚSTIA E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO · sujeito que porta certas palavras do campo do Outro e que se assentam dando lugar ao desejo. Pois como nos afirma Doguet-Dziomba (2012),

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ANGÚSTIA E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

Admardo B. Gomes Júnior1

CEFET-MG

[email protected]

GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO

RESUMO

Partimos de um caso clínico de uma trabalhadora de um centro de chamadas telefônicas, que

apresenta sintomas com o trabalho, para demonstrar como a angústia apresentada é, em última

instância, o fracasso do desejo pelo trabalho. Uma resposta à inconsistência/inexistência de

um suposto saber atribuído ao ofício e ao trabalhador. A suposição de saber no outro, que

ordena as ficções simbólicas pela via do reconhecimento, parecem ruir frente à inconsistência

do Outro do trabalho. O que vemos aparecer é uma resposta num nível de causalidade

material direta que conduz o indivíduo à uma “cultura da queixa” sob a lógica do

ressentimento. O desafio do percurso que aqui nos propomos percorrer é o de empreender

nossas análises sob o caso clínico no fio da navalha entre a constatação da realidade social e o

gozo de uma posição subjetiva, preservando a atividade do sujeito sob a forma de sua

responsabilização subjetiva e material.

Palavras chave: Angústia; precarização; trabalho; psicanálise.

INTRODUÇÃO

Neste artigo, ao nos perguntarmos sobre o contexto social das manifestações

contemporâneas das mais variadas formas de transtornos de ansiedade em sua relação com o

trabalho (Síndrome do Pânico, Fobia Específica, Fobia Social, Estresse Pós-Traumático,

Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Distúrbio de Ansiedade Generalizada) optamos por

tomar, com a psicanálise, o afeto de base que sempre se encontra nestes e outros transtornos: a

angústia.

1 Pós-doutorado em Política, Trabalho e Formação Humana - Fae/UFMG. Doutor em Filosofia pela Aix-

Marseille Université e em Educação pela FaE/UFMG. Professor do programa de pós-graduação em

administração do CEFET-MG.

Na tradição do texto de Freud de 1926 “Inibição, sintoma e angústia”, compreendemos

que ela é um sinal com o qual o eu (moi) se adverte do perigo que vem do isso (ça). É a

incompatibilidade da satisfação pulsional com a ameaça de castração que produz a angústia.

Já Lacan, em seu seminário proferido entre 1962 e 1963, intitulado “A angústia”, em sua

empreitada de mapear o solo da angústia, entre outras nuances estabelece relações entre as

estruturas da angústia e da fantasia em sua relação com o desejo do Outro. Para Lacan a

angústia nos é apresentada como signo do desejo, isso que não se engana, ponto de deiscência

entre o desejo e o gozo na relação imaginária com o desejo do Outro. Daí a proximidade de

sua estrutura com a fantasia. A angústia revestida da fantasia encena suas relações com o

desejo do “Outro”. E o que é este grande Outro? A resposta conduz-nos ao campo da ordem

simbólica.

Para a psicanálise o Outro não existe. Não existe uma ordem simbólica universal que

nos sirva de referência. O que temos é o inconsciente, com sua estrutura de linguagem, e a lei

que conta é a do desejo. Mas isso só complicam os fatos, pois não deixamos de criar com a

linguagem ficções que encenem “tal ordem”, que nos ajudem a orientarmo-nos. No mundo da

tradição, a família, a natureza e religião serviram de referência e ainda serve para alguns,

mesmo que hoje de forma um tanto precária, pois na modernidade estas referências perderam

parte de sua consistência. Hoje, reconhecemos novos vetores como o consumismo, o

hedonismo, o individualismo, orientando (ou desorientando / desbussolando) as escolhas dos

sujeitos.

Nesta perspectiva, é preciso então nos colocarmos a questão: qual é afinal a ordem

simbólica que marca o Grande Outro no campo do trabalho? Como esta marca tem se

manifestado na fantasia daqueles que relatam suas ansiedades a um psicanalista? Que relações

podemos estabelecer entre os sintomas atuais e o mundo contemporâneo do trabalho?

1. O CASO DE APARECIDA: UMA FANTASIA ORIGINAL2

Aparecida procura o departamento de saúde de seu sindicato com queixa de

irritabilidade, insônia e sensação de trabalhar durante o sono. Não consegue sair sozinha, tem

ficado perdida e confundindo-se ao falar, alterando o que queria dizer inicialmente. Faz

tratamento psiquiátrico e usa antidepressivos. Trabalhava há um ano e 8 meses como

2 O caso apresentado a seguir foi atendido pelo pesquisador no departamento de saúde do Sinttel-MG. Omitimos

a data, o nome da empresa em questão e alteramos o nome da paciente para preservar-lhes o anonimato.

teleatendente de um grande centro de chamadas, tendo trabalhado cinco anos, anteriormente,

como telefonista, escolhas profissionais marcadas pelo uso da voz. Com apenas três meses de

trabalho na última empresa, apresentou uma disfonia funcional.

Queixa-se de muita cobrança de metas no trabalho e da sensação constante de “voltar

pra trás”. Diz: “antes era telefonista, fui treinada para ser gentil e atender bem ao cliente; hoje,

como teleatendente, fico correndo atrás do TMA (tempo médio de atendimento), numa meta

que chega a 272 ligações em seis horas”. Relata que sempre se cobrou bater as metas e estar

entre os primeiros lugares, o que não conseguia nunca.

Uma semana antes de procurar atendimento, ao regressar de suas férias, foi

surpreendida com sua demissão. Na fala de sua supervisora, não estava mais dando lucro para

a empresa. É essa fala que Aparecida diz não conseguir retirar da cabeça, “por ter ficado

marcado demais”. Sobre a supervisora, diz: “ela me voltou para trás, eu chorava de vergonha,

era como estar na quarta série e te voltarem para trás [...] Ela disse que eu estava dando

prejuízo, eu me senti uma inútil”. O sentimento é reforçado pela reação familiar: “até a minha

irmã falou para a minha mãe que eu não sabia fazer o serviço e, por isso, fui mandada

embora”. Aparecida afirma: “Eu valorizei demais e fui desvalorizada”.

Apresenta-se muito colada às queixas sobre o trabalho, e aspectos de sua história de

vida só aparecem após uma intervenção: quando repete que “voltou para trás” e que quer

provar para si mesma que é capaz, ressalto que ela sempre traz muito sofrimento quanto a esse

“voltar para trás” – a que isso remeteria? Ela responde: “voltar para a mãe, para o que perdi”.

Aparecida é a filha caçula de uma família de seis filhos. Viveu muito ligada aos pais

até os trinta anos de idade. Solteira, tem dois filhos, um de quatorze anos e outro de onze.

Mora com o companheiro, pai do segundo filho, que é aposentado e tem uma banca de

revistas. Vivem na casa que é dele e que ela não sente como sua. Não há mais relações

sexuais entre o casal. Recentemente, ele tem cobrado dela uma contribuição financeira, o que

a faz sentir como uma despesa. Sobre o companheiro, diz: “o que passa em mim falta nele, eu

tenho que amar o amor meu e o do pai”, dizendo que é só ela quem dá carinho e dedicação

aos filhos e que, nisso, ele não contribui em nada. Não há conversa, como não havia na casa

dos pais: vive de novo com o companheiro o que viveu com o pai – ambos, inclusive,

chamam-se José.

Quis ser freira, mas foi desaconselhada pela madre superiora, pois era muito ligada aos

pais e não suportaria a clausura. Deseja então ser mãe e professora. Como mãe, mostra-se de

tal forma colada aos filhos que, sobre o caçula, chega a afirmar: “ele é eu”. Um filho caçula

como ela, de quem foi a voz até aos quatro anos de idade, quando ele começa a falar.

Aparecida sempre conviveu com pessoas mais velhas – seu companheiro também é

bem mais velho que ela. A saída da casa dos pais só se dá quando engravida de um homem

mais velho e casado, com quem os pais não admitiam que ela se relacionasse. Diz amar ainda

essa pessoa, que nunca assumiu a relação. Ao saber da gravidez, a mãe lhe disse: “ou você ou

eu dentro de casa”. Diz que o que a mãe fez foi estragar sua vida. Durante algumas sessões,

fala de seu lugar de dependente, frágil, que só tem seu amor para dar, “isso que ninguém

quer”. Relaciona esse aspecto ao trabalho: lá, o que ela tinha para dar era um bom

atendimento ao cliente, e isso não teve valor.

Em meu sexto e último contato com Aparecida, ela afirma não ter mais dinheiro para o

deslocamento até o sindicato e que não voltaria aos atendimentos. Mostra-me, bastante

envergonhada e chorando, uma foto sua fantasiada de “Supermulher Tele-x”, com crachás e

contas3 espalhadas pelo corpo, com a qual recebeu o prêmio da empresa de “fantasia original”.

Sobre a foto, diz: “olha o que eu fiz”.

Durante essa última sessão, demonstrava um misto de vergonha e pesar, o que permite

inferir que, naquele momento, ela pôde vislumbrar algo da fantasia que sustenta seu modo de

gozo, o preço da “conta a pagar” por permanecer como dependente, frágil e amorosa nos

lugares onde repete uma série de demissões: a casa dos pais ao engravidar, o pai do primeiro

filho que não a assume, o pai do caçula que parece também não a admitir como mulher. A

cena do trabalho, da demissão sem meias palavras “por não dar lucro”, atualiza a dimensão

traumática.

2. A FUNÇÃO DA SUPOSIÇÃO DE SABER NO TRABALHO

Uma leitura do Outro do trabalho, ou seja, como ordem simbólica nos ajuda a

compreender os impasses hoje de nossa singularidade. Uma das possibilidades de lermos os

traços daquilo que dá singularidade a nós, seres humanos, é entendermos a forma com a qual

opera a homologia entre o valor do trabalho e a identificação fundamental de cada sujeito.

Afirmar que o valor do trabalho e da identidade sejam homólogos é destacar que, do ponto de

vista psíquico, o valor simbólico atribuído a um ofício tem a mesma estrutura e origem de

3 Aparecida trabalhava no setor de cobrança de pagamentos atrasados, e as contas que ela pendura pelo corpo

para compor sua fantasia são contas telefônicas.

nossas construções identitárias. Não se trata porém de uma analogia, eles não tem

necessariamente a mesma função, mas necessariamente a mesma estrutura e origem. Mas,

qual?

O trabalho, assim como a identidade, marcam nossas relações com o ideal, ou seja,

com as ideias que construímos sobre nós mesmos e que nomeamos “eu”. A psicanálise nos

ensina a diferenciar dois tipos destas ideias e construções: o ideal do eu, e o eu ideal.

Para a psicanálise, o que conta é a singularidade de cada um. Esta é uma

especificidade que não permite incluí-la no conjunto das ciências, ponto que a distingue, por

exemplo, da psicologia. Porém, o próprio fato de pretender falar daquilo de singular que há

em cada um coloca problemas, pois o uso da linguagem e a pressuposição de que haja

entendimento, compartilhamento de sentido, aponta para algo comum e não singular. A

questão da identificação em psicanálise é tomada exatamente nessa contradição, ser singular

mas não sem o outro. Ou seja, o que há de mais genuíno no sujeito dividido pela linguagem é

uma falta, falta de sentido, falta de significação, algo que só se acessa pelas margens, pelo

modo singular de gozo, pelo uso que cada um faz de si com o que ele recolhe no campo do

Outro.

Com a psicanálise nos referimos ao sujeito como sujeito do inconsciente, ou seja, um

sujeito que porta certas palavras do campo do Outro e que se assentam dando lugar ao desejo.

Pois como nos afirma Doguet-Dziomba (2012), o desejo não prescinde dos processos de

identificação enquanto orientadores dos nossos modos de gozo. A identificação, para a

psicanálise, é uma operação na qual o sujeito encontra seu complemento simbólico, servindo-

se dos significante do campo do Outro. Ela é uma resposta à precariedade constitutiva do

sujeito, à sua falta-a-ser, conjugando tanto a complementaridade significante quanto a

materialidade corporal do gozo. Os destinos da identificação podem apontar para uma

orientação de realização futura, funcionando como um valor, um ideal que mantém o desejo

(ideal do eu); ou impor um valor inflexível e feroz, expondo o sujeito à precariedade e aos

abalos que o fazem sofrer e comprometem a fruição do desejo em sua vida (eu ideal).

Processos identificatórios orientados pelo “ideal do eu” ou pelo “eu ideal” indicam também

dois destinos diferentes para os modos de gozo do sujeito.

Parece-nos indiscutível o valor que o trabalho (stricto senso) ocupa na identificação.

Nosso nome próprio e a atividade que nos ocupa no cotidiano (nosso trabalho) estão sempre

em primeiro plano quando nos fazemos identificar. A identificação pelo trabalho, contudo,

não nos diz dos melhores ou piores destinos que ela pode encontrar no sujeito. A

singularidade da forma com a qual opera a homologia do valor do trabalho e da identificação

fundamental de cada ser que fala não pode ser apagada em nome de uma identificação

standard ao trabalho como algo positivo, a priori. É preciso que reconheçamos a

singularidade do valor do “saber” atrelado ao “fazer” em jogo na relação de cada sujeito com

seu ofício. O valor do saber-fazer atribuído a um trabalho impacta a economia do desejo e do

gozo daquele que o realiza.

O saber-fazer próprio a um ofício, se sustentado como ideal, deve permite ao sujeito

uma forma de portar seu modo de gozo e de incluí-lo na dimensão coletiva que o trabalho

comporta. Além disso, deve servir como suporte imaginário, nutrindo o narcisismo mais

legítimo e singular, naquilo que permite uma identificação genuína pelo saber-fazer com o

sintoma, o que amarra as dimensões real, simbólico e imaginário (GOMES JÚNIOR, 2013).

Uma satisfação narcísica que enlaça o coletivo no que permite aos sujeitos, nos ambientes de

trabalho, a promoção de uma reciprocidade dos interesses que mantêm o laço social também

sob a mediação produtiva do ponto de vista subjetivo.

Assim, trabalho e identidade terão a mesma função apenas quando o desejo mais

genuíno do sujeito puder encontrar expressão no seu saber-fazer. Ou seja, o trabalho como

expressão de um saber-fazer com o desejo. Como nos apresenta Leguil (2012), o saber que

aloca a relação entre o eu ideal e o ideal do eu é um saber suposto. Gozar de um saber nos dá

a autoridade e a possibilidade de sermos reconhecido pelo outro, nos satisfaz narcisicamente,

garantindo a reciprocidade dos interesses no laço social onde se ganha a vida. Esta relação

entre o eu ideal e o ideal do eu é uma mediação subjetiva essencial em cada um de nós, e que

nos permite lidar com um saber que vale o reconhecimento do outro, porque nos é suposto.

No trabalho, o desejo é de adquirir um saber suposto responder à promessa de poder,

de potência efetiva, logo, de gozo. É um desejo autêntico, posto que jamais acabado, pois há

sempre algo a saber. Nesse saber suposto, um mais-de-saber corresponde a um mais-de-gozar

como causa do desejo que dá o sentido ao trabalho. Mais precisamente, o mais-de-gozar

como causa do mais-de-saber sustenta o desejo, organizando a relação com o saber sob o

modo de uma suposição. Um saber é suposto ao trabalhador que o sustenta pelo

reconhecimento do outro.

3. A ANGÚSTIA E O CERNE DA PRECARIZAÇÃO SUBJETIVA DO TRABALHO

CONTEMPORÂNEO

No mundo do trabalho contemporâneo, assistimos à propagação de um ideal

organizacional cientificista que induz à crença de que o saber-fazer do trabalhador não apenas

pode, mas deve ser apreendido (e, com isso, reduzido) como somatório de competências

(comportamentais) identificáveis, quantificáveis, mensuráveis e replicáveis. Uma vez

supostamente instrumentalizado o saber-fazer, ele passa a orientar os processos de avaliação e

gestão da força de trabalho. Sob esse ideal, o valor do reconhecimento só recai sobre aquilo a

que as malhas da ambição instrumentalista da “psicologia” reduziram o homem

(CANGUILHEM, 1972). O ideal de avaliação instrumentalizado pela psicologia não apenas

desconsidera a função psíquica do reconhecimento do saber-fazer do trabalhador, como acaba

por se tornar um obstáculo a ele.

Como nos demonstra Dejours (2003), a avaliação tem se tornado a base dos novos

métodos de gestão, gerenciamento e organização do trabalho, e grande parte do sofrimento e

da doença no mundo do trabalho está associada a estas novas formas de avaliação individuais

atreladas às metas de produtividade. Segundo o autor, vivemos em uma época onde se

pretende que tudo possa ser avaliável. Imaginariamente o que escapa à avaliação é posto sob

suspeita de conluio com a fraqueza ou com a ignorância. Fonte de dificuldades que aumentam

a carga de trabalho, a avaliação das performances acaba tendo efeitos perversos sobre os

trabalhadores, disseminando sentimentos de injustiça e de conduta desleal entre colegas.

Grande parte do sofrimento e da patologia mental no mundo do trabalho, que está associada

às formas de avaliação, decorre da desvalorização do trabalhador que contamina o coletivo

dos trabalhadores criando um ambiente deletério. Isso na medida em que não permiti aos

trabalhadores se localizarem de forma colaborativa tendo consequências na qualidade do laço

social entre eles.

O que o taylorismo e toda a administração científica do trabalho quiseram separar –

saber e fazer, pensamento e operação –, parecendo tê-los cindido de forma irreparável,

provocou, para além da produção e do consumo de massa, uma série de manifestações de mal-

estar de trabalhadores. Um mal-estar que pode ser lido a partir da destituição de um saber-

fazer e que afeta o valor do trabalho e as possibilidades de identificação do sujeito. Parece-nos

que uma especificidade da localização da angústia no mal-estar contemporâneo, no que

concerne ao trabalho, surge na identificação fundamental do sujeito frente a uma crise do

valor do trabalho como tal. O valor do trabalho humano não é nunca disjunto do saber-fazer

que a realização do trabalho comporta. No entanto, o que as atuais formas de gestão do

trabalho têm propagado é a destituição, senão a destruição do saber industrioso que há em

cada ofício.

A leitura que Leguil (2012) faz do que está em jogo no sofrimento no trabalho indica

que esse saber suposto está sendo invadido e atacado pelas tecnocracias. O que é visado aí é

transformar, ao longo do tempo, o “saber exposto” pelo trabalhador em um “saber imposto”

aos trabalhadores, por meio de condutas e protocolos a serem seguidos, submetendo-os ao

controle dos instrumentos de avaliação. Um “saber imposto”, portanto, estabelece-se sob as

ruínas da autoridade de um “saber suposto”. O que há de insuportável nos desajustes entre o

que é prescrito fazer e o que cada um pode inventar para se reapropriar do cumprimento do

que é demandado é a imposição de um saber. Seguindo o jogo de palavras sobre o saber

“suposto” que é “exposto” e transformado em “imposto”, o autor acrescenta que ele acaba por

se tornar “oposto” ao próprio sujeito e ao trabalho. Explicaremos.

Primeiramente, é importante destacar que Leguil (2012, p. 123, tradução nossa)

reconhece que “o sofrimento no trabalho é o signo de uma tragédia social [...], uma figura do

desamparo contemporâneo”4, cujas causas não ficam restritas às situações profissionais, mas

que estão no centro do que Lacan chamou de ordem simbólica, como um dos signos de

perturbação da mesma. Na leitura que Leguil (2012) faz de alguns casos clínicos, ele constata

que o “sofrimento no trabalho” é tomado como “un ravage”, verdadeiro estrago, dano, retorno

no real de uma dor que decorre da exclusão simbólica de uma função subjetiva, mas que, ao

mesmo tempo, é tomado pelo psicanalista como reivindicação do sujeito, insurreição do ser

que havia sido proscrito.

Leguil (2012) chama a atenção para como a formação e a experiência profissional

representa a garantia de uma possibilidade de governo do trabalho pelo saber. É ela que atrela

o poder ao domínio do saber, enlaçando saber e gozo. Um laço que aponta para o lugar

concedido ao poder na economia libidinal.

Uma das causas do “sofrimento no trabalho”, identificadas por Leguil (2012), é que o

laço entre o saber e gozo é comprometido frente aos imperativos de competitividade e aos

riscos que a concorrência desmedida impõe. Há uma perda de gozo operada no sujeito em sua

relação com os saberes, que, a reboque, conduz a uma crescente opacidade em relação ao seu

desejo. Vê-se que o trabalho não está apenas ligado ao gozo da potência de um saber, mas

também às possibilidades de expressão do desejo que aponta para a verdade subjetiva de cada

um em sua relação com o trabalho.

4 “la souffrance au travail est le signe d’une tragédie sociale”, “une figure de la détresse contemporaine”

A precariedade subjetiva do trabalho contemporâneo pode ser lida na imposição de

saber no trabalho que abala sua função simbólica ao destituir a suposição de saber no

trabalhador. O Outro do trabalho passa a se mostrar nas suas rígidas regras prescritivas, sob o

ideal de controle não apenas do corpo do trabalhador e seus gestos, mas sobretudo sua

subjetividade. Tal controle conduz o trabalhador à uma adesão sem crítica, sem mediação,

empobrecida em sua dimensão simbólica (já que o trabalho não se presta a servir de um ideal

de eu) e inflada em sua dimensão imaginária (já que o trabalho passa a impor um eu ideal).

4. DE VOLTA AO CASO APARECIDA

Nosso intuito aqui não é expor a realidade material do contexto do trabalho de

teleatendimento que Aparecida realiza5. Uma análise clínica desta realidade a partir da

Ergologia e da Psicanálise (GOMES JÚNIOR, 2013) explicita a contradição entre o desejo de

realizar bem os atendimentos telefônicos e a impossibilidade de fazê-lo pela rigidez das regras

do trabalho. Os sintomas que Aparecida desenvolve com o trabalho, demonstra-nos assim

como a angústia apresenta-se, em última instância, no fracasso do desejo pelo trabalho. A

realidade material do trabalho de Aparecida demonstra-nos que a hierarquia, a organização do

trabalho e mesmo o coletivo de trabalhadores não supõem um saber em Aparecida e nem

mesmo em seu ofício. Esta realidade com a qual ela se depara não sustenta os mecanismos de

reconhecimento necessários à sua capacidade de manter o desejo pelo trabalho.

Do ponto de vista clínico o que interessa à um psicanalista é o sujeito e suas invenções

frente a realidade material. Isso não retira o peso das determinações de tal realidade sobre a

angústia que se produz com o trabalho, mas também não reduz a angústia do sujeito a ser um

simples efeito de tais determinações. Os sintomas e a angústia de Aparecida podem ser lidos

como uma resposta à inconsistência/inexistência de atribuição um suposto saber sobre seu

trabalho. A suposição de saber em Aparecida e seu ofício, que ordenaria suas ficções

simbólicas pela via do reconhecimento, parece ruir frente à inconsistência desta ordenação

simbólica que se esperaria do Outro do trabalho. O que aparece é uma resposta num nível de

causalidade material direta que conduz Aparecida a queixar-se de forma ressentida.

O desafio de um percurso que se quer clínico e que traga contribuições para

intervenções, tanto junto ao sujeito quanto no contexto de trabalho, deve estar atento em se

posicionar no fio da navalha entre a constatação da realidade social e o gozo de uma posição

5 Para tal veja: GOMES JÚNIOR e CARVALHO (2010).

subjetiva, preservando a atividade do sujeito sob a forma de sua responsabilização subjetiva e

material.

No caso de Aparecida, assim como em tantos outros, o adoecimento que conota uma

impotência e expressaria uma impossibilidade em lidar com os imperativos de produtividade

em meio laboral, acaba, por outro lado, a se apresentar como uma saída, uma criação frente ao

obstáculo que o trabalho representa, rompendo com os interesses da produção e com o próprio

laço com o trabalho.

Uma leitura empreendida com a psicanálise permite-nos sair da perspectiva que reduz

o sintoma a um disfuncionamento provocado pelo meio de trabalho. Importa-nos o

funcionamento do sintoma como algo que porta um sentido. Os sintomas de disfônica,

desorientação espacial e da linguagem apresentados por Aparecida, nos dizem o que ela

conseguiu produzir com o que encontra no meio de trabalho. Eles são sua saída, sua invenção

possível e a condução clínica deve implicar o sujeito nelas.

No caso de Aparecida, até onde conseguimos caminhar, o que aparece como

insuportável no trabalho é a repetição do encontro com algo que já estava presente em sua

vida: fazer-se demitir pelo Outro (pelo inconsciente como discurso do Outro).

Como vimos com Freud (1930/1976), a renúncia à satisfação pulsional (e aqui

podemos reconhecer as construções humanas no campo do amor e do trabalho) pode

apresentar tanto uma face pacificante para o sujeito, no que possibilita o estabelecimento de

laços simbólicos que unem desejo e lei e permite operar um ideal do eu, quanto uma face que

guarda suas relações com a pulsão de morte, com a ação do superego, de um eu ideal que,

usando das interdições da cultura, impõe uma forma de gozo deletéria. Saber fazer com essa

renúncia pulsional, ou seja, com a castração, é o que está em jogo na construção de laços

simbólicos entre lei e desejo.

A lógica do trabalho da telefonista permitia que Aparecida exercer o “atender bem”

sendo amorosa com o outro. No teleatendimento, e ainda mais em um setor de cobrança, outro

cálculo é exigido, pois atender bem não parece ser mais o principal objetivo da empresa, e sim

a efetivação da cobrança em um tempo cada vez mais reduzido. Ser amorosa, ali, não dá

lucro. É por essa via que podemos compreender o encontro de algo do trabalho com o modo

de Aparecida gozar com seu sintoma em sua face mais mortífera, que, até onde conseguimos

nos aproximar, parece exprimir-se nesse “fazer-se demitir”. Assim como em suas relações

amorosas, o cálculo que ela não pôde fazer é aquele que exigiria dar um outro destino a este

modo de gozo. A direção da cura, apenas esboçada devido ao limitado número de encontros

com Aparecida, passaria por um saber fazer nos campos do amor e do trabalho, saídas

sublimatórias do mal-estar, saídas que pudessem enlaçar desejo e lei, possibilitando um

posicionamento produtivo frente ao obstáculo intransponível da castração. Vê-se aqui que a

relação de causalidade entre o trabalho e seus sintomas passa por não a reduzir à pura

determinação simbólica do trabalho. O desejo, por exemplo, de atender bem e ser amorosa

com o cliente não é insatisfeito unicamente pelo contexto do trabalho. Ele é um desejo de

insatisfação, ou seja, o próprio lugar em que Aparecida se coloca frente ao Outro.

No último encontro com Aparecida, quando ela mostrou a foto onde indicava,

envergonhada, que percebia sua parte nisso tudo, pareceu-nos que a originalidade narcísica de

sua fantasia de “Supermulher TeleX” pôde, então, cair, e algo da castração pôde ser

anunciado. A fantasia, enquanto disfarce (déguisement), encobria e desvelava sua fantasia

(fantasme), que sempre encobre e desvela o desejo. Os sintomas de Aparecida, isso do qual

ela se queixa, surgem exatamente quando um ponto da fantasia deixa transparecer a castração,

para de novo encobri-la, paralisando-a, como na foto. Lembremos que Aparecida não se

desloca mais sozinha, o que exige que seu companheiro a acompanhe aos atendimentos. E,

que é pelo fato de não ter mais recursos (dinheiro) para o deslocamento que ela interrompe os

encontros. Qualquer movimento novo não aconteceria sem um deslocamento que exigiria

atravessar o fantasma. Não é permanecendo na paralisia do disfarce que a originalidade do

desejo poderá advir.

A angústia frente a precarização do trabalho tem produzido adoecimentos que podem

ser escutados como uma forma do corpo falar. O psicanalista escuta-o para:

- Primeiro, possibilitar ao sujeito a apreensão de um ponto de verdade na repetição de seu

modo de gozo (seu sintoma), que possibilite um saber fazer com este mais-de-gozo atrelado

ao Outro que com muita frequência incluem as atividades laborais.

- Segundo, (e este é um novo desafio com a psicanálise) destacar as possibilidades e

invenções que possam tanto ampliar as margens de emprego desse saber fazer em situações

laborais específicas, quanto produzir um retorno sobre os patrimônios de saberes sobre o

trabalho na contemporaneidade. Ambas implicando na ampliação da suposição de um saber

fazer do sujeito no campo do Outro do trabalho. Essas são possibilidades de leitura que

podem apresentar resultados diferentes sem serem excludentes, ou seja, tratar não só os

sujeitos, mas também o trabalho.

CONCLUSÃO

Para finalizar, esperamos ter apontado, e exemplificado com o caso clínico, como

nossas identificações, sempre imaginárias, se enlaçam com a dimensão simbólica que sustenta

um valor no trabalho dando um contorno possível ao indizível do real e do gozo em cada um

de nós. Além disso propusemos ler no mal-estar gerado pelas gestões empreendidas sobre o

saber dos trabalhadores um deslocamento do lugar da suposição de saber que exposto, passa a

ser imposto e finalmente oposto ao trabalhador. A contribuição da psicanálise aplicada à

leitura da atualidade de nossa civilização do trabalho é marcar que há que se recuperar uma

suposição de um saber do trabalhador. Ou seja, é a dimensão do prestígio da experiência que

precisamos recuperar como “[...] a suposição de um saber sobre o real da verdade que

buscamos (LEGUIL, 2012, p. 126, tradução nossa)6”.

A instrumentalização tecnocrática do "saber" no mundo do trabalho desnuda a

inconsistência da referência do Grande Outro neste campo. Os rumos desta reflexão podem

conduzir-nos à investigação de como uma postura cínica frente ao saber pode chega mesmo a

destruir, por sua vez, toda e qualquer dimensão de coletividade no trabalho, restando aos

coletivos o lugar do ressentimento (vide os grupos de ajuda mútua, grupos de atingidos,

sindicatos assistencialistas, etc.)

REFERENCIAS

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