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Andréia Holanda Bispo de Castro Francisco Sebastião da Silva Juliana Meireles Bezerra Macedo Marcio Barcelos Costa Nilton Lourenço Alves Alunos do Terceirão COC Palmas Francisco Perna Filho Bianca Canêdo Cácia Maya Mara Amaral LITERATURA PARA UFT2010 Autores Co-autor Colaboradores ANÁLISE DAS 4 OBRAS INDICADAS COM EXERCÍCIOS RESOLVIDOS

An+ílise Obras UFT

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  • Andria Holanda Bispo de CastroFrancisco Sebastio da SilvaJuliana Meireles Bezerra MacedoMarcio Barcelos CostaNilton Loureno AlvesAlunos do Terceiro COC Palmas

    Francisco Perna Filho

    Bianca CandoCcia MayaMara Amaral

    Literatura para

    uft 2010Autores

    Co-autor

    Colaboradores

    anLise das 4 o

    bras indicadas

    com exerccio

    s resoLvidos

  • G635f Gonalves, Margarida Lemos Facetas da vida crist / Margarida Lemos Gonalves. Palmas: Proviso, 2007. 176p. : il.

    1. Literatura brasileira Crnicas. 2. Crnicas brasileiras. I. Ttulo.

    CDD B869.3

    Capa / Projeto Grfico / Diagramao

    Marcelo da SilvaRuanna CarvalhoDavi Brito

    Reviso

    Bianca Cando

    Impresso e acabamento

    Proviso Grfica e Editora Ltda

    Direitos reservados proibida a reproduo total ou parcial da obra, de qualquer forma ou qualquer meio, sem a autorizao prvia e por escrito do autor. A violao dos Direitos Autorais apa-rentes (Lei n 9610/98) crime estabeleci-do pelo artigo 184 do Cdigo Penal.

    Proviso Grfica e Editora Ltda. 104 Sul, Conjunto 3, Lote 2 - Palmas - Tocantins

    Cep 77020-030 - (63) 3212-9500 - www.provisao.net

    Bibliotecria Rozangela Martins da Silva CRB2/1019

  • DEDICATRIA

    Buscar um caminho, um caminhar, um semear e um colher...A cada um dos nossos alunos, razo primeira de nosso trabalho.

  • PREFCIO

    Todo conhecimento comea com um sonho. Mas sonhar coisa que no se ensina. Brota das profundezas da terra. das pulses, dos desejos, das faltas e ausncias que cada ser humano levado a ter vontade de buscar e, para tanto, pensar. Poderamos afirmar que a protena mnima de qualquer educao composta por trs elementos: o pensar, o perceber e o comunicar-se. (Cludio Saltini)

    A complexidade do funcionamento de uma escola no pode superar a dimenso coletiva do trabalho educativo como forma de participar da construo do homem. Homem que promove transformaes e intervm com autonomia, conscincia crtica e responsabilidade na comunidade e em si mesmo.

    Aos tradicionais contedos da literatura brasileira e regional agrega-se o conceito de leitura, e sua interpretao, como alimento intelectual capaz de promover o respeito s diferenas.

    Aliada a esses componentes e a sua experincia profissional a equipe de Lngua Portuguesa do Colgio COC- Palmas ousou sonhar. Sonhar com a construo de um livro que colaborasse no s no processo de formao e preparao do vestibulando frente ao vestibular da Universidade Federal do Tocantins, mas como uma construo acadmica desafiadora para educandos e educadores, na leitura das entrelinhas que toda obra literria permite.

    Nosso trabalho pretende ser, antes de tudo, uma forma de trocar experincias. Importa mais indicar um tipo de relao com os livros, de valoriz-los, para que se tornem objeto de apreo.

    Esperamos ter conseguido!Prof Bianca CandoDiretora COC Palmas

  • APRESENTAO

    Garantir que os estudantes se tornem usurios hbeis do sistema de representao escrita, pois saber ler e escrever condio indispensvel ao exerccio pleno da cidada-nia, no o bastante. Junto com o ensinar a ler para aprender preciso tambm ensinar a ler por ler, vnculo com a literatura e a capacidade de dialogar com os textos lidos por satisfao pessoal e por saber que isso nos aproxima de outras pessoas, outras ideias, outros tempos.

    Este Livro de Anlises foi produzido com base nessas ideias e busca consolidar uma relao positiva com a literatura e seu ensino portanto, as obras indicadas pela Universidade Federal do Tocantins devem ser lidas, na ntegra, antecedendo ao estudo deste livro.

    Os captulos referentes s escolas literrias representadas pelos livros aqui analisados trazem as principais caractersticas do gnero do referido movimento artstico e seus aspectos estruturais.

    Cada texto de anlise se compe por uma estratgia de trabalho organizada de for-ma a abordar dados do autor, suas obras, o contexto histrico-cultural no(s) qual(is) produziu seus escritos, seu estilo individual e a anlise estrutural e de representao literria da obra.

    Os exerccios propostos, para as obras clssicas, apresentam atividades extradas de vrias Universidades com o acrscimo das elaboradas por professores e alunos do Ter-ceiro COC-Palmas. Quanto s do livro O Quati e Outros Contos, so todas inditas, elaboradas pelo grupo acima descrito, visto ser a primeira indicao da obra para um vestibular.

    Esta obra consolida nossos ideais e projetos no momento em que a entregamos sociedade e comunidade estudantil do Tocantins.

    Boa leitura!Prof Bianca CandoDiretora COC Palmas

  • SumrioPREFCIO ........................................................................................................ 5APRESENTAO ............................................................................................. 7Captulo 1 ........................................................................................................ 11A ERA ROMNTICA ...................................................................................... 13

    Aspectos Estruturais no Romantismo ............................................................................13Classicismo ...................................................................................................................14Romantismo .................................................................................................................14Quadro do Romantismo brasileiro ................................................................................151 - Poesia ......................................................................................................................152 - Prosa .......................................................................................................................15Contexto sociocultural do Brasil ...................................................................................15

    Captulo 2 ........................................................................................................ 17O GUARANI.................................................................................................... 19

    1- Biografia ...................................................................................................................192- Contexto Histrico-Cultural ....................................................................................193- Estilo Individual .......................................................................................................224- Obras .......................................................................................................................225-Anlise Estrutural ......................................................................................................236-Anlise da Obra .........................................................................................................277-Referncias Bibliogrficas...........................................................................................28

    Captulo 3 ........................................................................................................ 29A ERA MODERNA ......................................................................................... 31

    Contexto sociocultural ..................................................................................................31Correntes ou grupos .....................................................................................................36Caractersticas e representantes .....................................................................................36Fases do Modernismo Brasileiro ....................................................................................37

    Captulo 4 ........................................................................................................ 41PRIMEIRAS ESTRIAS ................................................................................. 43

    1 - Biografia ..................................................................................................................432 - Contexto Histrico-Cultural ...................................................................................463 - Estilo Individual ......................................................................................................474 - Obras ......................................................................................................................475 - Anlise Estrutural ....................................................................................................476 - Anlise da Obra ......................................................................................................507 -Referncias Bibliogrficas..........................................................................................83

  • Captulo 5 ........................................................................................................ 85CANTARES ..................................................................................................... 87

    1 - Biografia ..................................................................................................................872 - Contexto Histrico-Cultural ...................................................................................883 - Estilo Individual ......................................................................................................894 - Obras ......................................................................................................................905 - Anlise Estrutural ....................................................................................................916 - Anlise da Obra ......................................................................................................927 - Referncias Bibliogrficas.......................................................................................107

    Captulo 6 ...................................................................................................... 109O QUATI E OUTROS CONTOS .................................................................. 111

    1 - Biografia ................................................................................................................1112 - Contexto Histrico-Cultural .................................................................................1123 - Estilo Individual ....................................................................................................1134 - Obras ...................................................................................................................1145 - Anlise Estrutural .................................................................................................1146 - Anlise da Obra .....................................................................................................1177 - Referncias Bibliogrficas.......................................................................................119

    CONSIDERAES FINAIS ......................................................................... 121ALUNOS DO TERCEIRO .......................................................................... 122ExERCCIOS ............................................................................................... 123

    Gabarito .....................................................................................................................149

  • Captulo 1A Era Romntica

  • A ERA ROMNTICA

    O Romantismo foi um movimento artstico que surgiu na 2 metade do sculo XVIII e durou at a 1 do sculo XIX, iniciado na Alemanha e Inglaterra, rompeu com os modelos Greco-latinos ainda vivos no Barroco e no Arcadismo. Defendia a liberda-de de expresso, a liberdade de poltica e a feio nacionalista da obra de arte.

    Comeou na Europa e se estendeu por outros pases. Surge entre grandes aconte-cimentos:

    Crise poltica europeia - envolveu a monarquia (aristocracia) e a democracia (burguesia) implicou mudanas poltico-sociais, nas quais os artistas buscavam criar um novo mundo revolucionrio.Revoluo Francesa (1789) - nessa fase os artistas romnticos esto no auge, consideram-se heris de um novo tempo. Refletem uma nova maneira de conce-ber a vida e o mundo.Revoluo Industrial (1850) - compreende o perodo histrico em que as trans-formaes econmicas, polticas e sociais sofreram radicais mudanas, graas ao progresso tcnico que envolveu o desenvolvimento do modo de produo capi-talista.

    ASPECTOS ESTRUTURAIS NO ROMANTISMO

    Classes sociais bem definidas;As vises da existncia diferenciam-se;Intensifica o sentimento nacionalista;Aperfeioamento da imprensa; a expresso dos sentimentos dos descontentes.

    No Classicismo o homem descoberto e valorizado em relao a Deus, enquanto que no Romantismo o eu individual elevado acima da espcie. O eu misterioso e incompreendido que habita em cada homem ascende ao plano da literatura com o he-ri romntico, ora exaltado, dinmico, ora melanclico, deprimido e desesperanado, face s foras contrrias que a vida desencadeia contra ele.

    a)b)c)d)e)

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    QUADRO COMPARATIVO ENTRE O CLASSICISMO E O ROMANTISMO

    CLASSICISMO ROMANTISMO

    Modelo clssico No h modelos

    Geral, universal Particular, individual

    Impessoal, objetivo Pessoal, subjetivo

    Antiguidade clssica Idade mdia

    Paganismo Cristianismo

    Apelo inteligncia Apelo imaginao

    Razo Sensibilidade

    Erudio Folclore

    Elitizao Motivos populares

    Disciplina Libertao

    Imagem racional do amor e da mulherImagem sentimental e subjetiva do amor e da mulher

    Formas poticas fixas Versificao livre

    PRINCIPAIS CARACTERSTICAS

    Nacionalismo/Passado Histrico: Identidade nacional (Paisagem/natureza/he-ri/folclore/lendas).Sonho ideal romntico: (fraternidade/igualdade/liberdade).Desiluso: o romntico algum que ama, mas que se desiludiu, fracassou, no cr na felicidade como realizao terrena. O amor nico.Pessimismo: angstia existencial, desconforto do homem consigo e com o mun-do.Fuga espacial: tentativa de realizao num mundo mtico, recriado, harmnico = sonhosEgocentrismo: eu superior a tudo, seu sofrimento o maior de todos, provo-cando dor, tdio, angstia e desejo de morte.Culto natureza: ela se apresenta como exuberante, perfeita, inigualvel. Nesse contexto aparece a figura do ndio como um heri medieval.

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    C o l g i o C o C - p a l m a s

    QUADRO DO ROMANTISMO BRASILEIRO

    1 - Poesia

    a) 1 gerao nacionalista ou lusfoba (averso ao estrangeiro)b) 2 gerao mal do sculo ou ultra-romnticac) 3 gerao condoreira

    2 - PROSA

    a) Romance indianistab) Romance urbanoc) Romance regionalista/rurald) Romance histricoe) Teatro romntico Martins Pena

    CONTExTO SOCIOCULTURAL DO BRASIL

    a) Euforia nacionalista movimentos pela Independncia do Brasilb) So Paulo incio da cultura cafeeirac) Cresce o mercado editorial surgimento das tipografiasd) Desenvolvimento da imprensa peridica criao dos folhetinse) Construo dos museus, bibliotecas e arquivosf ) Independncia do Brasil 1822g) Campanha para a criao do Teatro Nacional

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  • Captulo 2O Guarani

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    O GUARANIJos de Alencar

    Professor: Francisco Sebastio da Silva

    1- BIOGRAFIA

    Jos Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, no Cear, e morreu no Rio de Janeiro. Viveu desde cedo no sul do pas, formando-se em Direito em So Paulo, em 1850. Fez carreira poltica, chegando a Ministro da Justia em 1868. Foi contempo-rneo de Machado de Assis, que se tornou seu admirador. o patrono da Cadeira nmero 23, da Academia Brasileira de Letras, por escolha de Machado de Assis.Desde 1856, o autor comea a exercitar a prosa de fico, publicando, em forma de folhe-tim, no Dirio do Rio de Janeiro, a novela Cinco Minutos. Dois anos depois, publica O Guarani, romance de flego, onde retrata o contato entre ndios e colonizadores. Alencar parte, ento, para a feitura de um verdadeiro painel do Brasil, atravs de seus romances. Como tinha uma concepo nova de literatura e de linguagem literria, foi criticado por tentar mudar as normas tradicionais da lngua.

    Atacado e vilipendiado na vida literria e na poltica, s no lar, bem constitudo, encontrava tranquilidade e compreenso. Torna-se amargo e se sente velho aos qua-renta anos e adota o pseudnimo de Snio. Aos quarenta e oito anos, acometido por uma tuberculose morre no dia 12 de dezembro de 1871. A histria registra que morreu abraado esposa, dona Georgina Cockrane. Seus romances comearam a ter mais repercusso entre a crtica e o pblico, tornando-se Jos de Alencar, ainda hoje, um dos escritores mais populares do Brasil.

    2- CONTExTO HISTRICO-CULTURAL

    Indianismo ou Nacionalismo uma construo potica que surgiu na primeira gerao da poesia romntica no Brasil, nos anos de 1836-1881.

    O Brasil dessa obra o imperial (entre a Regncia e o Segundo Reinado 1831 - 1841 e 1840 - 1889) perodo marcado pelo controle poltico das elites (aristocracia rural) representadas pelos Partidos: Liberal e Conservador. A nvel econmico o Brasil est vivendo a gradativa ascenso do caf como principal produto de exportao. Por-tanto, o Brasil no alterou sua ordem socioeconmica desde a independncia.

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    A sociedade, nessa poca, era escravocrata, semi-analfabeta, desvalorizava o ndio e explorava a natureza. Nessa primeira parte da fase do Romantismo h uma centrali-zao da figura do ndio e da natureza nos romances. O Romance Indianista reflete o nacionalismo e a exaltao da natureza ptria. Jos de Alencar ao escrever o romance em 1857 revela uma crtica emocional que apresenta o retorno ao ndio, ao bandei-rante e a fuga para a solido das florestas e dos pampas. O ndio individualizado na figura de Peri representa no s a pureza e a selvageria de um nativo, mas tambm o bom selvagem que se desdobra em heri civilizado com um modo de agir com carac-tersticas europeias.

    A idealizao do heri perfeito uma temtica do Romantismo que objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade e, por isso, lana-se evaso. O Guarani aparece como o romance que ir focalizar o heri idealizado por Alencar, que coloca o seu personagem como smbolo das qualidades nobres de sua gente.

    Alm da exaltao da figura do ndio, h uma preocupao no romance em revelar fatos histricos, como a briga entre as principais tribos rivais do sudeste brasileiro nos sculos XVI XVII e a relao colonizador e colonizados nos primrdios da vida co-lonial no Brasil como se pode conferir no referencial abaixo:

    Ele mantinha, com todos os capites de descoberta daqueles tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas exploraes e correrias pelo interior; eram homens ousados e destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astcia e agilidade do ndio de quem haviam aprendido; eram uma espcie de guerreiros, soldados e selvagens ao mesmo tempo. (CAPTULO I)

    Em alguns trechos do romance, percebe-se a preocupao em relatar fatos da hist-ria brasileira, ambientando os personagens nesse clima de conflito e romantismo.

    2.1-A CONSTRUO DA MATRIZ INDGENA

    A esttica da matriz indgena aparece nos sculos XVI e XVII acompanhando a ideologia de cada movimento literrio. Esse fenmeno no surgiu e desapareceu com o Romantismo, o nativo brasileiro est presente em toda a histria da nossa literatura. O ndio em seu estado natural cultivado pelos franceses - desta forma que os romn-ticos brasileiros vem o nativo. Como lembra Afonso Arinos em O ndio brasileiro e a Revoluo Francesa: O Brasil no fugia ao seu destino de nao colonial e de mercado de consumo. As matrias-primas com que se fabricavam as doutrinas futuras daqui saam para a Europa e de l regressavam transformadas, para o nosso gasto, sob forma de artigos importados.

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    C o l g i o C o C - p a l m a s

    na Literatura brasileira no perodo do Romantismo, que o ndio atinge sua cono-tao ideolgica maior. Passa a ser o smbolo nacional, o heri da ptria. Embora Jos de Alencar tenha idealizado Peri na tentativa de valorizar e exaltar a figura do ndio, ele peca quando de uma forma oculta, desvaloriza a cultura, os credos e os aspectos fisionmicos indgenas. Peri precisou abandonar a sua cultura e tradio para se tornar um heri idealizado, dentro dos moldes europeus, como afirma o trecho a seguir:

    Atravessou o espao que o separava de sua filha, e tomando a mo de Peri, disse-lhe com uma voz profunda e solene:

    - Se tu fosses cristo, Peri!...O ndio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras.- Por qu?... Perguntou ele.- Por qu?... Disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristo, eu te confiaria

    a salvao de minha Ceclia; estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, minha irm.

    O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus lbios, trmulos mal podiam articular o turbilho de palavras que vinham do ntimo da alma.

    - Peri quer ser cristo! Disse ele. (CAPTULO X)

    Tal ideologia potica representa um genocdio, pois o que se observa que, embora na construo potica exista toda uma exaltao figura do ndio, nota-se que por trs disso, o ndio dilacerado pelo contato com a sociedade dominante e pela sangrenta integrao com esse meio, que lhe fora a renegar sua cultura. Peri abandona sua cul-tura, suas crenas, costumes e famlia para se dedicar de uma forma servil a amar Ceci. Havia dois dias que no via sua senhora. Ento o primeiro pensamento foi ver Ceclia, ou, ao menos, a sua sombra. (CAPTULO VI)

    O ndio idealizado como cavaleiro medieval e como o bom selvagem pelo roman-cista, uma realidade subjetiva, pois na verdade, o ndio est margem da sociedade, no apresenta os aspectos do heri branco, por esta razo, passa a ser idealizado. Jos de Alencar usa do verossmil para conduzir o leitor a ler um texto fictcio e acreditar na existncia possvel do fato. Em seu romance, Alencar na verdade no est valorizando a figura do ndio, mas sim o estereotipando, criando uma matriz compacta, cuja com-posio um admirvel selvagem virtuoso, sem mcula.

    O personagem criado diferente da realidade do ndio naquela poca, pois o mes-mo, em tal momento, estava sendo escravizado, catequizado e domesticado pelos homens brancos do perodo colonial. Com certeza o sentimento que existia no corao dos indgenas naquele momento, era de tristeza e obstinao pela situao que estavam sendo obrigados a viver.

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    A figura do ndio retorna mais tarde no Modernismo, s que visto de outro ngulo. O Modernismo satiriza, ironiza o ndio e o nacionalismo romntico, como criaes exageradas, utpicas e irreais dos autores daquela poca.

    3- ESTILO INDIVIDUAL

    Optou, ele prprio,pela fico, por ser um gnero moderno e livre.Seu estilo pode ser caracterizado pelo sabor potico e as suas descries das paisagens na natureza apre-sentam um colorido especial, marcado pelo subjetivismo dos romnticos.

    Sua obra da mais alta significao nas letras brasileiras, no s pela seriedade, cin-cia e conscincia tcnica e artesanal com que a escreveu, mas tambm pelas sugestes e solues que ofereceu, facilitando a tarefa da nacionalizao da literatura no Brasil e da consolidao do romance brasileiro, do qual foi o verdadeiro criador. Sendo a primeira figura das nossas letras, foi chamado o patriarca da literatura brasileira. Sua imensa obra causa admirao no s pela qualidade, como pelo volume, se considerarmos o pouco tempo que pode dedicar-lhe.

    Movido por suas emoes e reflexes, encara a natureza humana em sua complexi-dade. Reagiu contra a tirania da gramtica e combateu o estilo nobre e pomposo, que considerava incomparvel com o natural e o real e defendeu o uso de uma linguagem libertada, simples, sem nfase, coloquial, mais rica.

    Nas vrias modalidades de sua fico, era sobretudo um escritor romntico. Em sua obra, podem ser encontradas as principais caractersticas da prosa romntica: o amor como redeno( o amor encarado como a nica maneira de a personagem se purificar e redimir); a idealizao do heri( o heri romntico, legtimo representante do bem, dotado exclusivamente de qualidades como coragem, honra, inteligncia, poder de seduo, tornando-se assim o smbolo do heri nacional, expresso de conscincia e de valores coletivos); a idealizao da mulher( as heronas romnticas so representadas por moas frgeis cuja principal ocupao sonhar com seu prncipe encantado, e mesmo as antagonistas, apesar de vocacionadas para o mal, so tambm capazes de se redimir.

    4- OBRAS

    4.1-ROMANCES URBANOS:

    Cinco Minutos (1857); A Viuvinha (1860); Lucola (1862); Diva (1864); A Pata da Gazela (1870); Sonhos dOuro (1872); Senhora (1875); Encarnao (1893,pstu-

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    C o l g i o C o C - p a l m a s

    mo).

    4.2-ROMANCES HISTRICOS E/OU INDIANISTAS:

    O Guarani (l857); Iracema (1865); As Minas de Prata (primeira parte 1862); As Minas de Prata (obra completa 1864-65); Alfarrbios (1873); A Guerra dos Masca-tes (1873-74); Ubirajara (1874).

    4.3-ROMANCES REGIONALISTAS:

    O Gacho(1870); O Tronco do Ip (1871); Til (1872); O Sertanejo (1875).

    5-ANLISE ESTRUTURAL

    5.1-LINGUAGEM

    Alencar parecia se simpatizar com vocbulos caractersticos da Idade Mdia, no difcil encontrar, na sua obra O Guarani, expresses como: suserano, vassalo, fidalgo, cavaleiros, e outras que caracterizam a sua originalidade, marcando um tratamento diferenciado na descrio dos detalhes na natureza. Em sua linguagem, h o predomnio de termos que exaltam o nacionalismo, a f nos valores eternos, um intenso sentimento de ternura humana numa viso potica da vida; uma imaginao sempre rica e de criaes estticas. Tudo isso expresso numa linguagem simples que de uma forma alegrica molda a narrativa para um texto potico e nacionalista.

    5.2-FOCO NARRATIVO

    NARRATIVA: Entende-se por narrativa literria todo discurso que nos apresenta uma histria imaginria como se fosse real, constituda por uma pluralidade de personagens, cujos episdios de vida se entrelaam num tempo e num espao de-terminado. A narrativa no se restringe apenas ao romance, ao conto e novela, mas abrange o poema pico, alegrico e outras formas menores de literatura.NARRADOR: Na arte da narrativa, o narrador nunca o autor, mas um papel por este inventado: um personagem de fico em que o autor se transforma. O narrador um ser ficcional autnomo independente do ser real do autor que o criou. As ideias, os sentimentos, a cosmoviso do narrador de um texto literrio no coincidem necessariamente com o ponto de vista do autor. Este pode ocul-tar sua axiologia, isto , seus valores, atrs do narrador ou de outra personagem, como tambm pode no compartilhar as opinies de nenhuma personagem. No mundo da existncia fsica, o emissor o autor que destina sua obra (mensagem)

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    a um leitor virtual (receptor). No texto artstico, o emissor uma personagem (o narrador) que comunica a outra personagem (receptor) fatos, ideias e sentimen-tos (mensagem).

    de fundamental importncia a percepo de quando uma personagem est atu-ando como ser que participa dos fatos ou quando est exercendo apenas a funo de narrador dos acontecimentos.

    No romance O Guarani encontra-se a presena do narrador onisciente seletivo, essa focalizao d-se quando o narrador, mesmo sendo ele o sujeito do discurso, apre-senta o ponto de vista de uma ou de vrias personagens. A diferena estilstica entre a oniscincia neutra ou intervencionista da oniscincia seletiva est na forma do discurso indireto: nesse caso, utilizado o chamado discurso indireto livre, pelo qual o narrador interpreta com palavras suas as ideias e os sentimentos das personagens. Leia o trecho a seguir:

    Ceclia podia ser ofendida pelo tronco que a correnteza carregava pela fruta que caa; podia assustar-se com o contato do limo julgando ser uma cobra; e Peri no perdoaria a si mesmo a mais leve mgoa que a moa sofresse por falta de cuidado seu.

    Enfim ele estendia ao redor dela uma vigilncia to constante e infatigvel, uma proteo to inteligente e delicada, que a moa podia descansar, certa de que, se sofresse alguma coisa, seria porque todo o poder do homem fora impotente para evitar. (CAPTULO X)

    5.3-GNERO TExTUAL

    Quanto ao seu contedo, estrutura e a maneira como manifesta a arte nas palavras, o texto classifica-se em trs gneros literrios:

    LRICO: Poesia breve estruturada em pequenas unidades (estrofes) e cantada ao som de instrumentos. O eu do prprio poeta em autocontemplao centra-se no mundo interior, apresentando forte carga subjetiva. Na Lrica, o texto se apre-senta na primeira pessoa do singular do tempo presente.DRAMTICO: Retrata os conflitos das relaes humanas, o ridculo ou a me-diocridade do mundo real. Representao satrica das misrias humanas no plano da vida prtica.PICO: Narrativa com fundo histrico. So os feitos hericos e os grandes ideais de um povo. caracterizado pela objetividade, pois o narrador mantm distan-ciamento em relao aos acontecimentos. O foco narrativo est na terceira pessoa do pretrito.

    Como uma variante do gnero pico, temos o gnero narrativo que so os roman-

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    ces, as novelas e os contos. O Guarani enquadra-se no gnero narrativo por apresentar um romance sentimental com uma preocupao em relatar fatos histricos. Marcada por um sentimentalismo exagerado, a obra de Alencar revela o esquema bsico que define o romance romntico, uma adeso a mais intransigente defesa da pureza virtu-osa da pessoa amada e do prazer em morrer para satisfazer os desejos de quem se ama. Observe os trechos a seguir:

    _ Isto no razo continuou ela -; porventura um animal feroz a mesma coisa que um pssaro, e apanha-se como uma flor?

    - Tudo o mesmo, desde que te cause prazer, senhora.- Mas ento exclamou a menina com um assomo de impacincia -, se eu te pedisse

    aquela nuvem?...E apontou para os brancos vapores que passavam ainda envolvidos nas sombras plidas

    da noite.- Peri ia buscar.- A nuvem? perguntou a moa admirada.- Sim, a nuvem.Ceclia pensou que o ndio tinha perdido a cabea; ele continuou:- Somente como a nuvem no da terra e o homem no pode toc-la, Peri morria e ia

    pedir ao Senhor do cu a nuvem para dar a Ceci.O rosto de Peri irradiava com o sentimento de um gozo imenso, de uma felicidade

    infinita; meteu as pistolas na cinta de penas e ergueu a cabea orgulhoso, como um rei que acabasse de receber a uno de Deus.

    Para ele essa menina, esse anjo louro, de olhos azuis, representava a divindade na terra; admir-la, faz-la sorrir, v-la feliz, era o seu culto; culto santo e respeitoso em que o seu corao vertia os tesouros de sentimentos e poesia que transbordavam dessa natureza virgem. (CAPITULO X)

    5.4- TEMAS

    Conquista do serto;Confronto de raas e culturas;Imposio da cultura branca;Imposio do cristianismo;Assimilao do selvagem idealizado;Idealizao da natureza.

    5.5-ESPAO

    Geralmente ocorrem dificuldades na hora de se fazer uma anlise literria em saber diferenciar espao de ambiente. Porm, muito simples fazer essa identificao:

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    ESPAO: Est relacionado ao mundo fsico e geogrfico; concreto. Ex.: obje-tos, os elementos da natureza, as edificaes (casas, ruas, carros, etc.)AMBIENTE: onde se projetam os conflitos; abstrato. Est relacionado s condies socioeconmicas; morais; religiosas e psicolgicas dos personagens.

    O espao em que se passa a narrativa de O Guarani descrito logo no incio da histria (primeiro captulo), h todo um relato detalhado da casa onde morava a fam-lia de D. Antnio Mariz, a qual era comparada a um castelo medieval, caracterizando assim, um ambiente de feudalismo, pois D. Antnio era um grande proprietrio de terras e tinha a seu servio homens que trabalhavam em suas terras. Jos de Alencar descreveu muito bem os aspectos da natureza e a sua relao com o homem. Nessa re-lao, observa-se que o autor reverencia o sentimento nacionalista. As cenas do enredo ocorrem na Serra dos rgos, na cidade do Rio de Janeiro, nos Rio Paquequer e Rio Paraba.

    5.6- TEMPO

    O tempo cronolgico e situado no perodo colonial 1604.

    5.7- PERSONAGENS

    5.7.1-Os heris clssicos considerados vencedores e equilibrados, so eles:

    Peri: chefe da tribo Goitac simbolizava o ideal do homem europeu. Suas carac-tersticas fsicas eram: alto, cor de cobre, feies ovuladas e traos finos (protago-nista principal da histria)Ceci: filha de D. Antnio, tinha dezoito anos, beleza angelical e alegrava a todos com o seu sorriso e gnio travesso e a sua mimosa faceirice. No h mudanas significativas em seu comportamento, ela permanece com suas caractersticas at o fim da histria. D. Antnio de Mariz: fidalgo da nobreza em Portugal, personagem realmente histrico. Homem de valor e experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os ndios, prestou grandes servios nas descobertas e exploraes do interior de Minas e Esprito Santo.D. lvaro: capataz fiel de D. Antnio.

    5.7.2-Os viles anti-heris, aqueles que so contrrios aos pontos positivos do heri clssico.

    Loredano: traidor que tenta destruir D. Antnio e raptar Ceci.

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    C o l g i o C o C - p a l m a s

    Aventureiros sediciosos e os Aimors tribo inimiga.

    5.7.3 Personagens Secundrias :

    D. Lauriana: mulher de D. Antnio.Diogo: filho de D. Antnio.Isabel: criada e irm bastarda de Ceci.

    6-ANLISE DA OBRA

    No se pode deixar de comentar, ao analisar O Guarani - um verdadeiro clssico do Romantismo Histrico Indianista de Jos de Alencar - , a preocupao sobrema-neira que o autor teve em equiparar Peri cultura europeia, realando ou inventando aspecto do seu comportamento que pudessem faz-lo ombrear no cavalheirismo, na generosidade e na poesia. No h dvida que, deformado pela imaginao, ele se pres-tava a receber as caractersticas que a ele conferiu o Romantismo.

    Jos de Alencar idealizou Peri com todos os direitos e liberdade que tem como poeta. O autor criou o personagem dentro dos valores clssicos de um heri vencedor e equilibrado. Embora Peri tenha tido um final no to promissor, cumpre sua misso de heri, mrtir e smbolo nacionalista.

    O romance retrata um enredo cheio de nacionalismo; f nos valores eternos; in-tenso sentimento de ternura humana; uma viso potica da vida e um senso artstico da paisagem.

    Peri, mesmo sendo um ser livre, da natureza, acabou escravizado no de forma bru-tal pelos colonizadores, mas sim, pelo sentimento de amor e dedicao sobre-humana por Ceci, a quem o ndio confunde com Nossa Senhora. O romance de Ceci e Peri nasce de uma impossibilidade, embora o poeta tenha criado Peri como um selvagem poetizado, despido da crosta grosseira do verdadeiro ndio, o seu romance com Ceci no seria possvel segundo o comentrio crtico de Graa (1998, p. 38)

    [...] belas intenes e preconceitos se mesclam no autor... Ao mesmo tempo, o romancista, por ter conscincia tambm do processo histrico, sabia que a cultura brasileira no podia ser autctone. Necessariamente deveria nascer da mescla racial. Fundar tal mito era como j dissemos seu mais alto escopo.

    Esse mito, at ento, no havia sido revelado de uma forma direta, logo suas possi-bilidades de fico literria estavam restritas.

    A famlia de D. Antnio v em Peri a sua lealdade e dedicao por Ceclia, que aca-ba se envolvendo em atos de bravura para tentar salvar e proteger a vida de sua amada.

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    D. Antnio, um homem que possua todas as caractersticas de um fiel vassalo, soube cumprir seu juramento de fidelidade e prestao de servios militares ao seu suserano pelo lote doado pelo rei de Portugal, o mesmo exige de Peri que ele se torne cristo para que possa ter total condio de ser um verdadeiro guardio da vida de sua filha.

    O sacrifcio do ndio consistiu um ato de profundo desespero, ele no conseguia aceitar a ideia de v-la morta, por esta razo aceita se tornar cristo, renunciando assim a sua cultura.

    H toda uma mescla de elementos histricos e romnticos na obra de Jos de Alen-car que ao mesmo tempo retrata o avano das tropas na conquista de novos territrios, onde a religio catlica, dominao provinda de Portugal, tinha uma forte influncia religiosa, impediu muitas vezes, os ndios de serem escravizados, descrevendo tambm, as guerras entre tribos rivais que eram movidas pelo sentimento de vingana e no de conquista de terras, tudo isso, se confunde num clima de amor, dedicao e adora-o.

    Sentimentos diferenciados surgem no desenvolver da histria, Ceci, a principal figura de atrao desse sentimento, desperta em lvaro amor, em Loredano desejo e em Peri adorao. Jos de Alencar conseguiu, numa linguagem peculiar da poca, direcionar a sua obra para possveis leituras que podem ser feitas sobre o tema amor, principal caracterstica do Romantismo.

    7-REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ALENCAR, Jos. O Guarani. 3 ed. So Paulo: Martin Claret Ltda, 2009.BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. 3 ed. So Paulo: Cul-trix, 1995.BRASIL, Assis. Dicionrio Prtico de Literatura Brasileira. Registro dos princi-pais escritores brasileiros com nfase aos escritores das ltimas geraes. Rio de Janeiro: Ouro, 1979.COELHO, Nelly Novaes. Literatura & Linguagem. 3 ed. So Paulo: Quron Limitada, 1980.DONOFRIO, Salvarote. Teoria do Texto 1. Prolegmenos e teoria da narrativa. So Paulo: tica, 1995.GRAA, Antnio Paulo. Uma Potica do Genocdio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.NICOLA, Jos de. Literatura Brasileira. Das origens aos nossos dias. 15 ed. So Paulo: Scipione, 2000.

  • Captulo 3A Era Moderna

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    A ERA MODERNA

    CONTExTO SOCIOCULTURAL

    O termo Modernismo engloba diferentes correntes estticas surgidas entre 1905 e 1930, todas elas marcadas sob o impacto de novas tecnologias e de profundas con-vulses sociais e polticas, o ser humano inicia o sculo num clima de inquietao e questionamento. Do ponto de vista esttico, a revoluo modernista joga por terra o conceito de arte como imitao do mundo objetivo ou subjetivo. Do ponto de vista filosfico, abala-se a confiana na razo, na cincia e no progresso material.

    A eletricidade, o automvel, a fotografia, o cinema, o aperfeioamento das tcnicas de reproduo de livros, revistas e jornais comeam a modificar a vida do homem urbano e transformar-lhe a percepo. Todas essas invenes deslumbram-se, e, ao mesmo tempo, inquietam. As tcnicas artsticas sofrem transformaes em decorrn-cia da emergncia de novas linguagens. J no primordial que a pintura reproduza o mundo, para criar no espectador a impresso de realidade, pois a fotografia pode faz-lo facilmente. A possibilidade de locomoo em veculos como trens, bondes, automveis e de recepo de informaes por meio de imagens visuais que se sucedem modifica as formas de percepo e controle do tempo e do espao. Logo a sintaxe do cinema influenciaria o discurso literrio. Com a possibilidade de reproduo de jornais e livros por meio de processos fotoqumicos, crescem as tiragens, barateia-se a distri-buio, o que determina a ampliao do pblico leitor e aumenta a possibilidade de profissionalizao do escritor.

    CORRENTES DE PENSAMENTO

    Diversas correntes de pensamento, originrias de diferentes campos de conheci-mento participam da mudana de mundo.

    Freud (1856-1939), com sua teoria do inconsciente, coloca em xeque a possibilidade de controle racional do sujeito sobre si mesmo e o mundo. As novas dimenses da subje-tividade reveladas pela Psicanlise repercutem nos processos de criao literria. A escrita automtica, baseada no processo de associao livre de ideias e a valorizao do mundo ilgico dos sonhos so alguns dos traos incorporados a literatura modernista.

    Bergson (1859-1941), com a Filosofia da Intuio, ope-se mentalidade meca-

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    nicista e positivista do sculo XIX, mostrando que s a intuio permite a percepo interiorizada do todo e a compreenso da vida.

    Sartre (1905-1980), filsofo e ficcionista comprometido com as questes sociais de seu tempo, afirma que o homem se torna humano pela convivncia. A percepo de que o ser humano constri sua prpria humanidade por meio de escolhas, levanta questes ticas e existenciais.

    Engels e Marx propem uma nova leitura da histria, afirmando que no so as ideias que a movem, mas as condies de produo, a infra-estrutura econmica e a ao concreta dos seres humanos no tempo. A diviso da sociedade em classes ques-tionada, dando origem s lutas de classe e a revoluo comunista (Rssia, 1917).

    No campo da fsica, a teoria da relatividade de Einstein (1879-1955) provoca mo-dificaes radicais nos conceitos de tempo, espao, matria e energia. Com o acesso ao mundo atmico e subatmico, os cientistas entram em contato com uma nova realidade, que no pode ser descrita a partir de leis mecnicas.

    OS MOVIMENTOS DE VANGUARDA

    Entre 1905 e 1930, eclodem na Europa diferentes movimentos estticos, muitos deles efmeros, mas todos importantes para formar a base do que chamamos generi-camente Modernismo.

    No quadro a seguir, apresentamos as caractersticas bsicas desses movimentos.

    VANGUARDAS EUROPEIAS

    ExPRESSIONISMOAlemanha 1905

    Abandono do conceito clssico de beleza: distoro da realidade em nome da expresso direta e veemente da subjetividade.Apreenso da conscincia em operao: interesse pelo primitivo, pelos mitos e sonhos.Inquietao metafsica e social, preocupao com o sofri-mento humano.Arte comprometida e engajada: denncia das injustias e dos horrores da guerra.

    FUTURISMOItlia, Marinette1909

    Culto da vida moderna, da velocidade, da agressividade.Desprezo pelo passado, pelo lirismo intimista.Exaltao do perigo, da guerra, adeso ideologia fascista.Destruio da sintaxe tradicional: imaginao sem fios, palavras em liberdade, comunicao sinttica.

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    C o l g i o C o C - p a l m a s

    CUBISMOFrana, Apollinaire1913

    Representao do essencial: reproduo dos objetos em suas linhas geomtricas bsicas.Prtica do realismo intelectual: o artista representa no s o que v, mas tambm o que sabe que existe; os objetos so desmontados para serem remontados pelo espectador.Multiplicao de planos e focos narrativos, ilogismo, humor, instantanesmo e simultaneidade temporal e espacial.Subverso da lgica aparente, linguagem predominante-mente nominal e catica.

    DADASMOSua, Tzara1916

    Desconfiana em relao a todos os sistemas.Agressividade, pessimismo irnico, ceticismo, anarquia, irreverncia.Expresso do nojo do homem diante da guerra.Antiarte e antiliteratura.

    SURREALISMOFrana, Breton1924

    Arte da expresso do inconsciente: magia, ocultismo, experincias com o sonho e com o sono hipntico; escri-ta automtica, sem censura.Anticonvencionalismo, humor negro.Adeso ao marxismo: reivindicao de um papel huma-nizador e libertador para a arte.

    ANTECEDENTES DO MODERNISMO BRASILEIRO

    Em fins do sculo XIX e nos primeiros anos do sculo XX, a literatura brasilei-ra passa por um perodo de transio, em que confluem elementos do Realismo, do Naturalismo, do Parnasianismo e do Impressionismo. Escritores como Coelho Neto, Afrnio Peixoto, Adelino de Magalhes e mesmo Machado de Assis da ltima fase no escapam ao sincretismo da poca; de um lado, mostram-se marcados pelo positivismo e pelo determinismo; de outro, manifestam tendncias intimistas e esteticistas.

    Simultaneamente, vo se manifestando novas tendncias que antecipam alguns dos programas posteriormente defendidos pelos modernistas de 22. Denomina-se pr-mo-dernista tudo aquilo que, nas primeiras dcadas do sculo, revela um novo enfoque da realidade brasileira ou a problematiza. Nesse sentido, pode-se considerar pr-moderna a prosa regionalista de Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Simes Lopes Neto e Mon-teiro Lobato.

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    Afonso Arinos, apesar dos compromissos com o descritivismo realista e com o preciosismo parnasiano, soube comunicar, com exatido, o sentimento de vida carac-terstico dos tropeiros e capatazes do serto mineiro. No paulista Valdomiro Silveira, predomina o gosto pelas peculiaridades da fala regional. Na obra de Simes Lopes Neto, manifesta-se, com extrema poesia e verdade regional, a realidade social e o fol-clore gacho. Todos esses escritores, embora tenham resvalado, em alguns momentos, para o preciosismo ou para o pitoresco, mostraram uma preocupao com a cultura e com a linguagem regional, o que os tornam precursores do Modernismo de 22.

    Considerando-se o Modernismo, no apenas em sua face anrquica e surrealista, mas tambm como ruptura, com a estagnao social e poltica e como critica ao Brasil arcaico e acadmico, podem-se classificar como Pr-Modernos: Euclides da Cunha, Lima Barreto e Graa Aranha. A paixo pelo real, o esprito cientfico e a extrema sen-sibilidade fazem Euclides da Cunha revelar, em Os Sertes, uma face trgica do Brasil, at ento ignorada. Percebe-se que o autor evolui na sua viso da realidade brasileira: de jovem republicano ansioso por ver destrudo o foco monarquista de Canudos, Eu-clides passou a maduro denunciante da misria e da loucura, que o governo punia em vez de curar.

    Lima Barreto destaca-se pelo esprito crtico e aguada conscincia social. Cronista da vida suburbana e criador de tipos caricaturais, como a personagem Policarpo Qua-resma, Lima Barreto traz um amplo painel da sociedade brasileira do incio do sculo, denunciando-lhe emotiva e polemicamente as mazelas. Tambm no estilo, o autor an-tecipa os modernistas ao optar por uma linguagem simples, diferente do estilo oficial, que era preciosista, retrico e apegado as normas gramaticais.

    Graa Aranha destaca-se mais como incentivador das inovaes que como roman-cista. Aproxima-se dos modernistas por sua proposta de valorizao do mgico e de incorporao livre e consciente do primitivo, que ele via como qualidades definidoras do esprito brasileiro. Intelectual de prestgio na poca, coube-lhe importante papel na realizao da Semana de Arte Moderna.

    Dentre todos os pr-modernos, merece destaque especial Monteiro Lobato. Intelec-tual participante e consciente da realidade brasileira, Lobato foi um esprito moderno na medida em que soube apontar criticamente as mazelas fsicas, sociais e ideolgicas do Brasil da 1 Repblica. Esprito progressista e dotado de amor verdade cientfica, Monteiro Lobato foi um destruidor de tabus. Entretanto, o carter racionalista, mo-ralista e doutrinador tornou-o incapaz de compreender o irracionalismo e a anarquia das tendncias literrias modernistas. Foi ele o autor de violento artigo crtico pintora

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    Anita Malfatti, publicado em 1917 no jornal O Estado de So Paulo, e intitulado Parania ou Mistificao? De volta da Europa, a artista organiza uma exposio de seus trabalhos, que fugiam totalmente aos concertos tradicionais de imitao, equilbrio e harmonia. Faltou ao genial criador do Jeca Tatu e maior escritor da literatura brasileira infanto-juvenil flexibilidade para prever e aceitar a direo em que evoluiria a arte moderna. Para ele, a nova arte caricaturava a natureza, destrua a percepo normal e subvertia princpios lgicos intocveis.

    A SEMANA DE ARTE MODERNA E OS GRUPOS MODERNISTAS

    Nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, realiza-se, no Teatro Municipal de So Paulo, a Semana de Arte Moderna, que constou de trs recitais em que houve confe-rncias doutrinrias, declamaes de poemas e leitura de trechos em prosa, apresen-tao de msica e coreografia, exposio de pintura e escultura. Apoiados por Graa Aranha, os novos artistas, de olho na Europa, mas com os ps no Brasil, pretendiam mostrar ao pblico as novas ideias e formas de expresso artstica.

    Coube ao centro-sul do pas a arrancada em direo modernidade. Era nessa regio, especialmente em So Paulo, que se concentrava, na poca, no s a nobreza fundiria, mas tambm as outras camadas da sociedade brasileira que comeavam a ganhar prestgio e representatividade poltica: a burguesia industrial, os profissionais liberais e militares. Apesar de So Paulo, em 1922, ser uma cidade j cosmopolita, em processo crescente de urbanizao e com muitos imigrantes europeus, a Semana foi um acontecimento que chocou o pblico. As pessoas estavam acostumadas ao sen-timentalismo romntico, elegncia parnasiana e at ao hermetismo misterioso do Simbolismo. No poderiam claro absorver e aceitar facilmente a irreverncia e a irracionalidade dos novos artistas.

    Os intelectuais e artistas envolvidos na realizao da Semana de Arte Moderna ti-nham em comum o desejo de romper com a tradio acadmica conservadora, de valo-rizar o nacional e de atualizar as artes brasileiras por meio do direito a pesquisa esttica. Passado o momento em que todos se uniram para enfrentar esses desafios, comeam a aparecer as diferenas ideolgicas tanto em relao interpretao do que seria o na-cionalismo quanto em relao ao projeto de renovao do modo de dizer literrio.

    A Semana de Arte Moderna representou, ao mesmo tempo, um ponto de che-gada e um ponto de partida. Por um lado, o evento deu forma e representatividade a uma srie de tendncias renovadoras que vinham tomando corpo desde o inicio do sculo; por outro, representou a busca de caminhos renovadores para a arte e a

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    cultura brasileiras.Considerando o quadro geral do perodo que se estende de 1922 a 1930, podemos

    identificar alguns grupos e tendncias marcantes, surgidos aps a ruptura modernista. Veja, no quadro-resumo, as concepes e caractersticas desses grupos e tendncias.

    CORRENTES OU GRUPOS

    CARACTERSTICAS E REPRESENTANTES

    DINAMISTARio de Janeiro

    Preocupao com o progresso material, com a tcnica do mundo moderno, com o movimento e a velocidade.Graa Aranha, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Renato de Almeida, Villa-Lobos, Agripino Grieco.Livro-sntese das teorias: Velocidade, de Renato de Almeida.

    PRIMITIVISTASo PauloMovimento Pau-Brasile Movimento Antropofagia

    Preocupao com motivos primitivos nacionais: valo-rizao de estados brutos da alma coletiva, vistos como fatos culturais.Simplificao e depurao formais para captar a origina-lidade subjacente aos fatos culturais.Anarquismo e viso critica do Brasil.Oswald de Andrade, Raul Bopp, Antonio de Alcntara Machado.Sntese das teorias: Manifesto Pau-Brasil e Manifesto Antropfago, publicado no primeiro nmero da Revista de Antropofagia.

    NACIONALISMO UFANISTASo PauloMovimento Verde- Amarelo ou Movimento Anta

    Preocupao com a nacionalizao da literatura por meio da explorao de motivos brasileiros, folclricos, indgenas, nativos, americanos.Viso idealizada de uma raa brasileira surgida da sntese de todas as raas formadoras da nacionalidade e destina-da a realizar a concrdia universal.Feio poltica de direita e viso idealizada do Brasil.Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Cndido Mota Filho, Plnio Salgado.Sntese das teorias: Nehengagu Verde Amarelo (Manifes-to do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta); Martim Cerer, de Cassiano Ricardo.

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    ESPIRITUALISMORio de Janeiro

    Rejeio ao primitivismo e ao esprito anarquista.Manuteno da herana espiritualista e universalista do Simbolismo.Desejo de tornar a poesia brasileira uma realidade viva no mundo.Tasso da Silveira, Augusto Frederico Schimidt e, mais tarde, Ceclia Meireles e Murilo Mendes.Sntese das teorias: Manifesto-poema assinado por Tasso de Silveira e publicado no primeiro nmero da revista Festa.

    DESVAIRISMODescentralizada

    Substituio da ordem intelectual pela ordem subcons-ciente baseada na associao de imagens, nas palavras em liberdade, na elipse e na sntese.Afirmao de que o princpio da criao no apenas a comoo lrica, mas a crtica e o trabalho com a palavra.Mrio de Andrade.Sntese das teorias: Prefcio Interessantssimo, de Mrio de Andrade, do livro de poemas Paulicia Des-vairada.

    FASES DO MODERNISMO BRASILEIRO

    A crtica, em geral, distingue quatro momentos na evoluo do Modernismo bra-sileiro:

    PRIMEIRA FASE: DE 1922 A 1930

    Esprito polmico e destruidor: anarquia, irracionalismo, elaborao de manifes-tos; mais destruio que construo.Influncia das correntes de vanguarda europeia e, ao mesmo tempo, nacionalis-mo e anti-europeismo.Busca de inspirao no primitivismo e nas razes nacionais: Brasil pr-cabralino, cultura provinciana com suas tradies coloniais, marcha para o oeste, folclore.Afirmao da liberdade de pesquisa esttica, do esprito de renovao constante, criao da "lngua nacional".Permanece, em algumas correntes e autores, o respeito pela herana simbolista e a tentativa de conciliao entre passado, presente e futuro.

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    SEGUNDA FASE: DE 1930 A 1945

    Abandono do radicalismo da primeira fase.Amadurecimento da produo potica, que abandona o tom predominantemen-te humorstico e irreverente da fase anterior, individualiza-se e se desprende de grupos e tendncias.Valorizao do lirismo subjetivo, presena de preocupaes universais.Evoluo da prosa em duas direes: o regionalismo neo-naturalista de cunho social e a de cunho introspectivo.Sedimentao de conquistas da fase anterior: valorizao do cotidiano, reapro-veitamento da cultura, explorao do folclore.

    TERCEIRA FASE: DE 1945 A 1970

    Explorao das potencialidades da linguagem, aguda conscincia esttica.Busca da essncia do potico, despojamento da linguagem.Preocupao com a forma e com o fazer literrio.Desenvolvimento da abordagem interior na fico de cunho psicolgico.Manifestao de preocupaes metafsicas e universalizantes na prosa de fico regionalista e social.Crescente conscincia do carter metalingustico e intertextual do fazer literrio, o que conduz a novas experimentaes e pesquisas formais na poesia:

    Concretismo: concepo da poesia como objeto-de-linguagem, desconstru-o da palavra, questionamento do conceito de verso, valorizao do espao em branco, prtica da colagem, aplicao do conceito de taxa de informao a mensagem literria; valorizao do conceito de obra aberta.

    Poesia prxis ou participante: preocupao com as tenses e desequilbrios sociais, tentativa de integrao da obra no contexto vivo, valorizao da pala-vra como matria-prima transformvel, concepo do poema como informa-o semntica e esttica.

    Tropicalismo: crtica aos mitos nacionalistas e populistas, influncia sobre toda a produo cultural brasileira, explorao da tcnica do corte cinemato-grfico, denncia da falta de identidade no plano individual e coletivo, crtica ao intelectualismo e as utopias revolucionrias.

    Poesia marginal: o termo marginal relaciona-se ao meio de impresso e vei-

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    culao da poesia, que se coloca fora do circuito da indstria cultural, ques-tionamento irreverente da ordem estabelecida; explorao do dinamismo, do instantanesmo, da sntese; valorizao do espao em branco, da dimenso visual e sonora do poema.

    QUARTA FASE: PS-MODERNISMO

    Segundo muitos crticos, ter-se-ia se iniciado uma nova etapa na concepo e produo literria a partir da dcada de 60 ou 70, portanto, logo aps o surgi-mento do Concretismo. Essa nova etapa refletiria o aprofundamento e a diver-sificao das experimentaes formais e traduziria a tenso entre globalizao e fragmentao, trao caracterstico do mundo contemporneo.

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  • Captulo 4Primeiras Estrias

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    PRIMEIRAS ESTRIASJoo Guimares Rosa

    Professoras: Andria Holanda Bispo de Castro e Juliana Meireles Bezerra Macedo

    Quando escrevo, repito o que j vivi antes. E para estas duas vidas, um lxico s no suficiente.

    Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio So Francisco. Gostaria de ser

    um crocodilo porque amo os grandes rios, pois so profundos como a alma de um homem.

    Na superfcie so muito vivazes e claros, mas nas profundezas so tranquilos e escuros

    como o sofrimento dos homens.

    1 - BIOGRAFIA

    UM CHAMADO JOO Poema de Carlos Drummond de Andrade

    Joo era fabulista fabuloso fbula?

    Serto mstico disparando no exlio da linguagem comum?

    Projetava na gravatinha a quinta face das coisas inenarrvel narrada?

    Um estranho chamado Joo para disfarar, para farar

    o que no ousamos compreender?

    Tinha pastos, buritis plantados no apartamento?

    no peito?

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    Vegetal ele era ou passarinho sob a robusta ossatura com pinta

    de boi risonho?

    Era um teatro e todos os artistas no mesmo papel,

    ciranda multvoca?

    Joo era tudo? tudo escondido, florindo

    como flor flor, mesmo no semeada? Mapa com acidentes

    deslizando para fora, falando? Guardava rios no bolso

    cada qual em sua cor de gua sem misturar, sem conflitar?

    E de cada gota redigia nome, curva, fim,

    e no destinado geral seu fado era saber

    para contar sem desnudar o que no deve ser desnudado

    e por isso se veste de vus novos? Mgico sem apetrechos,

    civilmente mgico, apelador de precpites prodgios acudindo

    a chamado geral? Embaixador do reino

    que h por trs dos reinos, dos poderes, das

    supostas frmulas de abracadabra, ssamo?

    Reino cercado no de muros, chaves, cdigos,

    mas o reino-reino? Por que Joo sorria

    se lhe perguntavam que mistrio esse?

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    C o l g i o C o C - p a l m a s

    E propondo desenhos figurava menos a resposta que

    outra questo ao perguntante? Tinha parte com... (sei l

    o nome) ou ele mesmo era a parte de gente

    servindo de ponte entre o sub e o sobre que se arcabuzeiam

    de antes do princpio, que se entrelaam

    para melhor guerra, para maior festa?

    Ficamos sem saber o que era Joo e se Joo existiu

    de se pegar.

    Joo Guimares Rosa, mais conhecido como Guimares Rosa (Cordisburgo, 27 de junho de 1908 Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1967) foi um dos mais im-portantes escritores brasileiros de todos os tempos. Foi tambm mdico e diplomata.

    Os contos e romances escritos por Joo Guimares Rosa ambientam-se quase todos no serto brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovaes de linguagem, sendo marcada pela influncia de falares populares e regionais. Tudo isso, somado a sua erudio, permitiu a criao de inmeros vocbulos a partir de arcasmos e palavras populares, invenes e intervenes semnticas e sintticas.

    Autodidata, comeou ainda criana a estudar diversos idiomas, iniciando pelo fran-cs quando ainda no tinha 7 anos, como se pode verificar neste trecho de entrevista

    concedido a uma prima, anos mais tarde:

    Eu falo: portugus, alemo, francs, ingls, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holands, latim e grego (mas com o dicionrio agarrado); entendo alguns dialetos alemes; estudei a gramtica: do hngaro, do rabe, do snscrito, do lituano, do polons, do tupi, do hebraico, do japons, do checo, do finlands, do dinamarqus; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o esprito e o mecanismo de outras lnguas ajuda muito compreenso mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porm, estudando-se por divertimento, gosto e distrao.

    Em 1925, matriculou-se na ento Faculdade de Medicina da Universidade de

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    Minas Gerais, com apenas 16 anos.Em 27 de junho de 1930, casou-se com Lgia Cabral Penna, de apenas 16 anos,

    com quem teve duas filhas: Vilma e Agnes. Ainda nesse ano se formou e passou a ter contato com os elementos do serto que serviram de referncia e inspirao a sua obra.

    2 - CONTExTO HISTRICO-CULTURAL

    A produo cultural brasileira, a partir dos anos 50, procurou ajustar-se s novas formas de linguagem e aos novos padres ticos refletindo as tendncias que marcaram a cultura do ps 2. Guerra.

    Buscava de forma crtica entender os problemas sociais e polticos. Este perodo foi marcado pelo processo de desenvolvimento urbano e industrial que delineou novas ca-ractersticas do pas. O consumo tornou realidade, os sonhos, inspirados no Americam Way of Life. O Brasil saa da era do rdio para uma sala de TV.

    Na msica novos gneros musicais: rock and roll e no Brasil a Bossa Nova (fuso do samba tradicional com o cool jazz) mais importante expresso musical do Brasil contemporneo.

    No teatro destacam-se o Teatro de Arena, Grupo Oficina, Teatro Tablado.Os centros urbanos modificaram e as mulheres engajaram no mercado de trabalho.

    Novos smbolos de liberdade surgem para os jovens e conforto da famlia, como o carro.

    O mundo ampliou e comeou o delinear de uma sociedade cheia de desafios, pos-sibilidades, paranias e esperanas.

    O Brasil da Era JK o contexto poltico e econmico da obra de Guimares Rosa.Durante a campanha presidncia, Juscelino usou um discurso de desenvolvimen-

    to baseado no lema: 50 anos em 5. Para atingi-lo, estabeleceu o Plano de Metas dire-cionado para setores como: energia, transporte, indstria de base e para implantar essas diretrizes assumiu parceria com o capital estrangeiro que gerou um amplo e profundo surto de internacionalizao da economia brasileira. O apoio financeiro estrangeiro para tais empreendimentos atraiu um grande nmero de empresas internacionais o que possibilitou a estas um controle de importantes ramos industriais.

    A fim de promover a ocupao e o desenvolvimento da regio central do pas, cons-truiu-se uma nova Capital Federal - Braslia.

    Para combater a indstria da seca no nordeste criou-se a SUDENE. Este rgo atuou na rea do chamado Polgono das Secas, composto por Maranho, Piau, Ce-

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    ar, Rio Grande no Norte, Paraba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e parte do territrio de Minas Gerais.

    Alm dos objetivos diretamente relacionados com o desenvolvimento do nordeste, a SUDENE tambm teve como inteno o esvasiamento das Ligas Camponesas, um movimento no-governamental que tinha como objetivo a luta pela reforma agrria.

    O custo pago para gerar um acelerado crescimento do pas redundou em elevados ndices de inflao e aumento da dvida externa.

    3 - ESTILO INDIVIDUAL

    Realismo mgico, regionalismo, liberdades e invenes lingusticas e neologismos so algumas das caractersticas fundamentais da literatura de Guimares Rosa, mas no as suficientes para explicar seu sucesso. Guimares Rosa prova o quo importante ter a linguagem a servio da temtica, e vice-versa, uma potencializando a outra. Nesse sentido, o escritor mineiro inaugura uma metamorfose no regionalismo brasileiro que o traria de novo ao centro da fico brasileira.

    4 - OBRAS

    Magma (1936), poemas; Sagarana (1946), contos e novelas regionalistas; Com o vaqueiro Mariano (1947); Corpo de Baile (1956), novelas, publicado em trs partes: Manuelzo e Miguilim, No Urubuquaqu, no Pinhm e Noites do serto; Grande Ser-to: Veredas (1956), romance; Primeiras Estrias (1962), contos; Campo Geral (1964); Tutamia: Terceiras estrias (1967), contos; Estas estrias (1969), contos; Ave, pala-vra (1970) diversos - Obra pstuma.

    5 - ANLISE ESTRUTURAL

    Primeiras Estrias publicada em 1962, seis anos depois do romance Grande Ser-to: veredas.

    O livro faz parte do terceiro tempo do Modernismo brasileiro e foi publicado em 1962. As 21 estrias, portanto, so narrativas preocupadas em tematizar, simbolica-mente, os segredos da existncia humana.

    Trata-se do primeiro conjunto de histrias compactas a seguir a linha do conto tra-dicional, da o Primeiras do ttulo. O escritor acrescenta, logo aps, o termo estria, tomando-o emprestado do ingls, em oposio ao termo Histria, designando algo mais prximo da inveno, fico. Na obra h a inteno de apresentar fbulas para as crianas do futuro.

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    primeira vista, a leitura de Primeiras Estrias pode, falsamente, parecer difcil e a linguagem soar erudita e ininteligvel, mas essa uma avaliao precipitada. Na verdade, o autor busca recuperar, na escrita, a fala das personagens do serto mineiro; a poesia presente nas imagens, sons e estruturas de uma linguagem que est margem da norma estabelecida pelos padres urbanos.

    Quanto ao emprego dos tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estrias, o relato se faz atravs de uma mistura do pretrito perfeito com o pretrito imperfeito do indicativo.

    A obra aborda as diferentes faces do gnero: a psicolgica, a fantstica, a auto-biogrfica, a anedtica, a satrica, vazadas em diferentes tons: o cmico, o trgico, o pattico, o lrico, o sarcstico, o erudito, o popular.

    As personagens embora variem muito quanto faixa etria e experincia de vida, se ligam por um aspecto comum: suas reaes psicossociais extrapolam o limite da normalidade. So crianas e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus serta-nejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estrias apresentam personagens com este trao.

    A relao com a morte e com o desejo de imortalidade est presente em toda a obra de Guimares Rosa, mas talvez com mais intensidade em Primeiras Estrias.

    A alma, sendo imortal, teria vivido em contato com o mundo Ideal, o plano da Perfeio. Ao encarnar, a alma guardaria lembranas difusas, inconscientes, desse mun-do bom, belo e verdadeiro, para o qual deseja profundamente retornar. Algumas ex-perincias no plano terreno teriam o poder de despertar na alma o gosto da perfeio, possibilitando uma redescoberta de uma alegria at ento adormecida.

    5.1 - LINGUAGEM

    A linguagem marcada por forte originalidade. Alia a informalidade da linguagem coloquial complexidade da linguagem potica. O tom variado: ora srio [lrico ou dramtico], ora cmico. Guimares abusa dos regionalismos e neologismos, caracterstica marcante do escritor, o que requer do aluno uma leitura mais cuidadosa e at um trabalho de pesquisa para que haja realmente compreenso dos contos.

    5.2 - FOCO NARRATIVO

    Esto na terceira pessoa os seguintes contos: I As margens da alegria, II Fa-migerado, III Sorco, sua me, sua filha; IV A menina de l; V Os irmos

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    Dagob; X Sequncia; XIV Um moo muito branco; XIX Substncia e XXI Os Cimos.

    Esto em primeira pessoa: VI A terceira margem do rio; VII Pirlimpsiqui-ce; VIII Nenhum, nenhuma; IX Fatalidade; XI O espelho; XII Nada e a nossa condio; XIII O cavalo que bebia cerveja; XV Luas-de-mel; XVI Partida do audaz navegante; XVII A benfazeja; XVIII Darandina e XX Taranto, meu patro. Dessas onze estrias, apenas duas apresentam o narrador como protagonista: O espelho e Pirlimpsiquice; nas outras, o relato feito por um espectador privilegiado, que presencia a ao e registra suas impresses a respeito do que assiste. O narrador pode ser tambm uma personagem secundria da estria, com laos de parentesco ou de amizade com o protagonista.

    5.3 - GNERO TExTUAL

    O prprio autor cunhou o gnero estria como conto breve.

    5.4 - TEMAS

    As estrias podem ser classificadas em cinco categorias, a saber:Loucura

    Sorco, sua me e sua filha; Nada e a nossa condio; O cavalo que bebia cerveja; A benfazeja; Darandina; Taranto, meu patro;

    InfnciaAs margens da alegria; A menina de l; Pirlimpsiquice; Partida do audaz na-vegante; Os Cimos;

    ViolnciaFamigerado; Os irmos Dagob;

    Fatalidade/MisticismoA terceira margem do rio; Nenhum, nenhuma; O espelho; Um moo muito branco;

    AmorSequncia; Luas-de-mel; Substncia.

    5.5 - ESPAO

    A maioria das estrias se passa em ambiente rural no especificado, em stios e fa-zendas; algumas tm como cenrio pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Os ambientes so apresentados com poucos mas preciosos toques: moldura de altos morros, vastos

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    horizontes, grandes rios, pastos extensos, escassas lavouras. Duas histrias, no entanto, O espelho e Darandina, transcorrem em cidades pressupostas at como grandes centros urbanos, pelo fato de mencionarem a existncia de secretarias de governo, hospcio, corpo de bombeiros, jornalistas, parques de diverses, reparties pblicas e outros servios tipicamente urbanos.

    5.6 - TEMPO

    O tempo em Primeiras Estrias no est em primeiro plano e a maioria dos contos se mostram com manchas de recordaes ou tempo psicolgico.

    5.7 - PERSONAGENS

    Embora variem muito quanto faixa etria e experincia de vida, as personagens se ligam por um aspecto comum: suas reaes psicossociais extrapolam o limite da normalidade. So crianas e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus serta-nejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estrias apresentam personagens com este trao.

    5.8 - TEMPOS VERBAIS

    Na maior parte das estrias, o relato se faz atravs de uma mistura do pretrito perfeito com o pretrito imperfeito do indicativo.

    6 - ANLISE DA OBRA

    1. AS MARGENS DA ALEGRIA

    O conto narrado em terceira pessoa, e considerado, com o ltimo, Os Cimos, a moldura do livro, j que apresenta as mesmas personagens no mesmo ambiente.

    A principal personagem o Menino e, assim como ele, as outras personagens so apenas identificadas pelo grau de parentesco.

    O conto em tom lrico reflexivo, a primeira viagem de um menino, a descoberta do mundo: a crueldade representada pela morte do peru e a beleza e a alegria repre-sentadas pelo vagalume.

    O autor se identifica profundamente com o protagonista, como se ele espelhasse sua prpria trajetria, sua infncia, como se assim universalizasse, de certa forma, essa travessia. Ou seja, ele tenta perceber o que h de comum na infncia de cada menino, nessas delicadas passagens, em seus estados de alma, nos dolorosos conflitos, nas fas-cinantes descobertas.

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    O Menino, protagonista, na sua lenta descoberta do mundo, transforma tudo o que lhe passa diante dos olhos em experincia de dor e alegria, vida e morte. Essa aprendizagem se d a partir da relao direta com a natureza em toda a sua dinmica, para a qual o Menino volta um olhar sem reservas, cheio de admirao. Aqui a infncia aparece como o lugar do crescimento, da descoberta, da aprendizagem. O Menino tem como primeira fonte de conhecimento o olhar: espiar, avistar, ver e vis-lumbrar, verbos que percorrem toda a narrativa. , portanto, atravs do olhar atento e encantado que ele conhece e reconhece todas as coisas que encontra. Ele agora vivia; (diz o narrador) sua alegria despedindo todos os raios. E continua: ele queria poder ver ainda mais vvido as novas tantas coisas o que para os seus olhos se pronunciava.

    O processo de crescimento apresentado no momento em que o narrador substitui um menino por O Menino.

    O clmax de tanta felicidade vai se dar quando o Menino encontra um peru ma-jestoso. Mas dura pouco tempo, pois, depois de um passeio, o garoto fica sabendo que a ave havia sido morta para o aniversrio do Tio. Sua tristeza aumentada quando depois presencia a derrubada de uma rvore. o contato com as imperfeies da vida: a morte e, consequentemente, a passagem do tempo. Cai do Paraso.

    Tem um momento ilusrio quando pensa ter visto de novo o to amado peru. Na realidade, era outro, menor, menos pomposo. H quem enxergue aqui o platonismo, na medida em que esse segundo pssaro seria sombra do primeiro, perfeito, j que pertencente ao mundo das ideias.

    O segundo bicho, que bica a cabea decepada da antiga ave, proporcionar ao Menino mais experincias difceis ligadas ao campo da inveja e da malignidade. o instante em que comea a escurecer, tanto denotativamente (fim do dia, chegada da noite), quanto conotativamente (contato com o lado escuro da existncia).

    A angstia aliviada quando surge, em meio escurido da floresta sua frente, um vaga-lume. Sua luz em meio ao breu simboliza a esperana que se deve ter aps a queda do Paraso, aps o mergulho nas imperfeies da condio humana. Por isso alguns associam esse brilho aos ideais religiosos, como o prprio Esprito Santo, a nos trazer de volta a felicidade do princpio de tudo.

    Percebe-se que a estria apresenta quatro momentos especficos: o da viagem, quando o Menino vive uma experincia area, paradisaca, e outros trs acontecimen-tos terrestres. Um deles a apario do peru no quintal da casa onde estava. O peru completo, torneado, redondoso, o peru para sempre, o peru transbordando de calor, poder e flor representa o auge da vitalidade do Menino. No entanto, a terrvel

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    sensao da efemeridade experimentada no outro momento quando o protagonista, ao voltar do passeio, vido de v-lo, depara-se apenas com umas penas, restos, no cho. O brusco desaparecimento do peru representa o movimento oposto aos dois anteriores. Neste momento, o Menino vivencia a experincia da morte: O Menino recebia em si um miligrama de morte.

    O primeiro aprendizado do Menino , sem dvida, o da alegria.O olhar atravessado do Menino tambm sabe prolongar o que consegue ver, o que

    deve ficar de afetos para a sua alma. Por isso, ele sabia, em algum canto do seu ser, que se tivesse olhado mais, e se demorado nesse olhar, ele manteria na memria a primeira experincia, a da alegria. Na iminncia da perda, por que ele no se demorou mais no olhar? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru aque-le. O peru seu desaparecer no espao.

    2. FAMIGERADO

    Narrado em primeira pessoa, o conto Famigerado constitui-se num episdio cmico.

    Nesse conto, podemos opor o poder da fora, Damsio, ao poder da instruo, do conhecimento mdico. Caso o mdico tivesse revelado o sentido dicionarizado do termo famigerado, estaria, por certo, infligindo uma sentena de morte ao moo.

    Em Famigerado, Guimares Rosa tematiza a importncia da linguagem. Seu conhecimento ou no determina as posies sociais.Um mdico do interior [narrador da histria] recebe a visita de quatro cavaleiros

    rudes do serto. Seu lder, Damsio, conhecido assassino da regio, quer que o doutor, pessoa letrada do lugar, o esclarea a respeito do significado da palavra famigerado, pois ouviu esta palavra de um moo do governo.

    A pergunta feita por Damsio, da seguinte maneira:-Vosmec agora me faa a boa obra de querer me ensinar o que mesmo que :

    famisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... famlias-gerado? O mdico, ineficientemente (ou por insegurana), informa que o termo significa

    inxio, douto. A verdade no fica clara. Damsio pede para que seja usada fala de pobre, de em dia de semana. Um pedido humilde. O narrador, pois, j detm poder da situao. Expe-lhe toda a verdade. Informa que no nome de ofensa. Ele explica ento que famigerado quer dizer clebre, notrio, notvel.

    O assassino, depois de tranquilizado com a resposta do mdico, agradece e vai embora. Antes, porm, considera que: No h como as grandezas machas de uma

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    pessoa instruda.O interessante notar que h uma constante preocupao em descobrir o que exis-

    te por trs das palavras. Damsio quer ter posse desse conhecimento, pois suas aes dependem disso. O narrador quer saber por que essa curiosidade, com medo de que tenham feito intriga contra ele.

    Uma leitura desatenta indicaria que o narrador censurou a verdade. De fato, fa-migerado quer dizer famoso, importante, que merece respeito. Mas boa parte das pessoas usa esse termo com o sentido de maldito, desgraado. H uma forte possibi-lidade de que essa tinha sido a inteno do moo do governo. E a fala final do narra-dor deixou nas entrelinhas, como uma parbola, uma estria, este ltimo significado. Quando Damsio lhe pede para confirmar se no se constituiu ofensa, o interlocutor diz: Olhe: eu, como o sr. me v, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado bem famigerado, o mais que pudesse!... Mesmo proprie-trio, estabelecido, culto, formado, naquela hora em que se sentia encurralado pelo medo de perder a vida, o que mais queria era ser to desgraado, to maldito quanto Damsio.

    Mas o bandido no estava preparado para essa verdade. Estava diante dele, mas no a enxergou. Estava ainda mergulhado nas trevas. No pode perceber o brilho do vaga-lume. por isso que sai desmanchando-se de felicidade e alvio.

    3. SORCO, SUA ME, SUA FILHA

    Conto narrado em terceira pessoa, mas com a participao ambgua do narrador como personagem. Isto se d pelo fato do narrador ser um observador dos fatos, mas tambm fazer parte do povo: A gente se esfriou (...) A gente estava levando agora o Sorco (...) Ou seja, a gente, no conto, pode ser a gente, o povo da estao, como tambm o marcador oral a gente enquanto ns.

    Com temtica triste, trabalha com o sentido circular de passar a angstia do per-sonagem Sorco com sua solido e desespero ao ter que deixar ir para longe as nicas pessoas que tem no mundo, ficando mais solitrio ainda. Tudo gira em torno da sepa-rao, da perda, da ausncia e da distncia.

    A grande temtica do conto a solidariedade. H a compaixo do povo para com Sorco e sua dor. O povo se solidariza com Sorco. A irracionalidade entoada na canti-ga da me e da filha loucas realiza o elo de ligao entre as dores de todos os homens. uma cantiga compreendida s por aqueles que possuem sentimento, a razo de ser do humano. Esta cantiga metaforiza a unio entre os homens por meio da solidariedade.

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    possvel imaginar o sofrimento de Sorco, o vazio dolorido sentido e a profunda solido na alma. A solido s no absoluta, porque existe a solidariedade do povo acalentando seu corao.

    Pode-se observar tambm as sugestes sonoras oferecidas pelo nome do persona-gem: Sorco - s louco; Sorco - socorro, como compreenso do forte sentido do con-texto do texto. Por outro lado, interessante perceber a gradao do ttulo, sugerindo a unio da famlia como vages que se engatam no trem da existncia e se desengatam no destino. Cada vago carrega sua prpria solido e dor, mas forma o trem da solido e da dor coletivas, na metfora de uma cantiga.

    Sorco comparado a J, personagem da Bblia, por causa de seu sofrimento. Passado e futuro, ele, no meio. Ele, a terceira margem. A eternidade. E as propores gigantescas dele lembram as personagens grotescas que so castigadas, eliminadas em outros contos. O padecimento a que foi submetido ao cuidar das duas, no entanto, redimiu-o.

    O conto inicia com a descrio de um vago diferente, gradeado, que seria levado pelo trem do serto. A populao sabia que ele levaria duas mulheres, para longe, para sempre: a me e a filha de Sorco. A me de Sorco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele s tinha aquela. Sorco era vivo.

    Me e filha eram loucas. Sorco tentou ficar com as duas ao seu lado, mas no foi possvel. Tomou a deciso mais difcil de sua existncia: intern-las. O governo man-daria o trem para lev-las para Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares so mais longe. Sorco deveria encaminh-las estao, pois o trem do serto passava s 12h45m.

    Ele vestia a sua melhor roupa para a despedida, que a populao acompanhava com pesar Todos diziam a ele seus respeitos, de d. Diziam palavras que tentavam consol-lo e ele muito humilde respondia: - Deus vos pague essa despesa... todos compreendiam a atitude de Sorco, pois no havia outro jeito. Porm, todos pensavam que a partida delas seria bom para ele, visto no haver cura para a doena e tambm pelo fato de elas terem piorado nos ltimos 2 anos, a ponto de Sorco pedir ajuda mdica para elas.

    Em frente ao trem, a filha de Sorco comea a cantar uma cantiga que ningum entende. A me de Sorco comea a cantar tambm a cantiga entoada pela moa, an-tes de serem alojadas dentro do trem. Principia o embarque das duas. E o canto ecoa longe. Sorco no espera o trem desaparecer de vez, nem olha, fica de chapu na mo calado. De repente, todos gostavam demais de Sorco.

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    O trem partiu e Sorco no esperou tudo se sumir. Nem olhou. S ficou de cha-pu na mo, mais de barba quadrada, surdo o que nele mais espantava. Todos os presentes ficaram condodos com o sofrimento do homem. Entretanto, Sorco pra e num rompido ele comeou a cantar. Alteado, forte, mas sozinho para si e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava con-tinuando. E eis que todos, de uma vez, de d de Sorco, principiaram tambm a acompanhar aquele canto sem razo. E com vozes to altas! (...) A gente estava levando agora o Sorco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia at aonde que ia aquela cantiga.. Nesse momento, o autor deixa para o leitor a imaginao quanto despedida: foi uma perda enorme para Sorco, um alvio ou ele tambm estaria ficando louco...?

    4. A MENINA DE L

    A menina de l narrado em terceira pessoa. Em um momento do texto, o nar-rador tambm passa a ser personagem Conversvamos, agora, em outros, funciona como um narrador-testemunha dos fatos, ora mais prximo, ora distanciado. Sabe de todos os acontecimentos por presenci-los e por ouvir falar deles porm, no diz a revelao que Nhinhinha fez para Tiantnia, quando apareceu o arco-ris. Isso s acontecer depois da morte da menina.

    Semanticamente possvel perceber que a menina no pertence ao c (terra), mas sim ao l (cu), pela presena de palavras ligadas ao universo do mundo do l: lua, es-trelinhas, cu, alturas, aves, mortos, saudade, milagre, a me no tirava o tero da mo, e a menina mora no Temor-de-Deus e principalmente a palavra arco-ris, dentre ou-tras. Arco-ris a palavra-chave, pois remete ao imaginrio coletivo de fazer um pedido ao arco-ris quando este aparece no cu. Pela metonmia caixo colorido, Nhinhinha pede a morte e metaforicamente, o que ela deseja, acontece. H, nesse momento, o clmax do conto, pois o confronto entre os dois mundos: o c (mundo terreno), de Tiantnia, em que a morte vista como ruim, repreendendo a menina versus o l, que para Nhinhinha a alegria , a libertao de um mundo que no o seu, esperando cumprir o seu destino e realizar o seu desejo de ser a menina de l. Desta forma, fecha-se o crculo do universo premonitrio traado pelo conto, calcado no destino fatdico de uma menina que no pertence ao mundo de c, entretanto possui a magia de um outro mundo encantado: o mundo da criao artstica.

    uma menina com seus nem quatro anos, franzina, filha de um pai sitiante e de uma mulher que no tirava o tero das mos para nada, mesmo quando dava bronca

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    nos empregados.. Vivia em Temor-de-Deus, por trs da Serra do Mim. Seu nome era Maria, ou apenas Nhinhinha.

    Era muito quieta, ficava sempre sentada em um canto (e ningum entendia muito bem o que ela dizia).

    Nhinhinha (seu nome, o sufixo diminutivo triplicado, refora sua fragilidade), lou-ca (provavelmente tem hidrocefalia), sensitiva, dotada de contatos msticos, poderes paranormais: seus desejos, por mais estranhos que fossem sempre se realizavam.

    A menina, criadora de histrias absurdas e por se calar subitamente, comea a falar mais, e coisas estranhas comeam a acontecer. Um dia, em meio seca, ela diz que gostaria de ver um sapo em sua casa momentos depois um sapo entra pulando pela porta; outro dia ela comenta que gostaria de comer pamonhinha de goiaba nem meia hora depois chega uma senhora trazendo o doce. Quando sua me fica doente, pedem que a faa melhorar, mas a menina simplesmente diz que no pode. No en-tanto, abraa-a e, coincidncia ou no, a cura chega. Outro momento que reala esse poder quando, a pedido do pai, ela faz chover.

    Esses aspectos msticos acabam transformando a garotinha em mais uma milagrei-ra, como tantas crianas que povoam o imaginrio popular.

    5. OS IRMOS DAGOB

    Conto narrado em terceira pessoa ou algum do arraial, presente no velrio e no enterro, que registra suas impresses sobre os irmos Dagob e possveis acontecimen-tos futuros.

    No h marcao de tempo e espao (velrio e o enterro) e traz a violncia como tema.

    Seus personagens so: Damastor (morto), Derval (caula), Dismundo, Dorico e Liojorge.

    Em sua linguagem o autor usa aliteraes (repetio da letra D nos nomes dos irmos Dagob); frases incompletas: Aquilo era quando as onas. e aglutinao de palavras: perguntidade.

    Este conto confirma a ideia popular de que Deus escreve certo por linhas tortas. Damastor Dagob, bandido extremamente feroz, foi surpreendentemente assassinado por um sujeito aparentemente fraco, Liojorge, pressionado por legtima defesa. em meio ao velrio que o narrador se coloca, para captar mais vivamente a reao das pessoas presentes, todos com inmeras conjecturas sobre como ser a vingana dos irmos Dagob.

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    O mais surpreendente que chega o recado de Liojorge, querendo deixar claro que havia matado com respeito e que queria estar na presena dos irmos, para mostrar sua boa vontade. Se isso j deixou todos sobressaltados, muito mais quando se fica sabendo que o bom moo queria ajudar a carregar o caixo de Damastor. Parecia que o medo havia feito do rapaz um maluco.

    Surpreendentemente os irmos Dagob concordam, mas impem uma condio: s depois do caixo ser fechado. Os presentes imaginam algum plano malvolo e trai-oeiro dos bandidos. No entanto, a narrativa apresenta uma sequncia de frustraes. Liojorge chega e no assassinado. Conduz o caixo. No caminho, tropea e quase derruba o fretro. Para os espectadores um prenncio de desgraa. E comentam que os irmos Dagob esto na realidade realizando o pior dos planos: usar o homem como carregador e no cemitrio dar cabo dele.

    No entanto, este outro conto a lidar com anticlmax. Enterrado Damastor, seus irmos agradecem a ateno dos acompanhantes, mostram compreenso em relao a Liojorge e reconhecem que o falecido, em vida, era mesmo muito ruim. Comunicam que esto de mudana para a cidade, o que indica evoluo.

    O conto uma aluso irnica: Viviam em estreita desunio... a imaginao popular versus o real. Todos acreditam nisso. Vitria da justia: matara em legtima de-fesa. Damastor que era mau e perverso. Merecia morrer. Damastor, o grande pior. Alegria dos trs irmos remanescentes, enfim livres do grande pior.

    6. A TERCEIRA MARGEM DO RIO

    Este conto narrado em primeira pessoa e o mais famoso e o mais aberto do autor. Existe no conto uma intertextualidade bblica com No.

    Neste conto o tempo cronolgico de um longo perodo, toda a vida do narrador. Mas a intensidade com que as impresses e o amadurecimento do narrador so traba-lhados do enfoque ao tempo psicolgico.

    O espao delimitado pela presena concreta do rio, caracterizando a paisagem ru-ral de sempre. Desse espao, emanam magia e transcendentalismo aos olhos do leitor, no ir e vir do rio e da vida.

    Os personagens so: filho (narrador-personagem), pai virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos plos, com aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peas de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia, me, irm, irmo, tio (irmo da me), mestre, Padre, dois soldados e jornalistas.

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    Esses personagens, sem nomes, acabam se caracterizando como tipos sociais, por suas funes na histria. A observao desse aspecto j mostra, no pai, a tendncia ao isolamento. Sempre fora a me a responsvel pelo comando prtico da famlia. O pai, sempre quieto. O filho e narrador no foi aceito na infncia para companheiro do pai no seu desafio. Na maturidade, quando tem a oportunidade, acha no estar preparado para ir rumo ao desconhecido, ao inominvel.

    A oralidade reproduzida na fala do narrador: Do que eu mesmo me alembro, ele no figurava mais estrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. S quieto. Nossa me era quem ralhava no dirio com a gente.

    As frases, curtas e coordenadas, independentes, garantem um ritmo lento e pau-sado leitura: Ele me escutou. Ficou em p. Manejou remo ngua, proava para c concordando.

    A sintaxe recriada de maneira inusitada, provocando estranhezas durante a leitu-ra: no fez a alguma recomendao, nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejo, de lguas, que h, por entre juncos e mato, e s ele conhecesse, a palmos, a escurido, daquele.

    A repetio tambm um recurso expressivo comum ao autor, como no caso: e o rio-rio-rio, o rio sempre fazendo perptuo.

    Neologismos tambm esto presentes (diluso, talvez variante de dilut