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I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO – NUPPE Instituto de Arte / Universidade Federal de Uberlândia – IARTE/UFU MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 10 a 13 de setembro de 2012, Uberlândia – MG – Brasil INQUIETAÇÕES PICTORIAL E OBJETUAL: ROMARIAS E PEREGRINAÇÕES DE UM PROCESSO DE CRIAÇÃO Aninha Duarte – Ana Helena da Silva Delfino Duarte 1 Resumo: presente apresentação traz ao lume alguns momentos de meu trabalho em Arte, mostrando o(s) andar(es) de meu processo criativo, permeado por diversos deslocamentos e diálogos multidisciplinares com áreas do conhecimento além das Artes Visuais. Abordaremos as motivações, as apropriações de imagens, as materialidades e as histórias individuais e coletivas que fomentam a iconografia e os sentidos poéticos do trabalho. Nesse percurso sensível, enfatizo os conflitos, o previsível e o imprevisível, o conhecido, o estranho, os enfrentamentos, as "paúras", o bem-estar e o mal-estar, os desertos e os oásis desse contínuo e instigante processo de criação, elidindo-se com minha própria existência. Palavras - chave : processo, criação, signo Abstract: Pictorial concerns and “objectual” concer: pilgrimages of a creation process. This presentation brings to light some moments of my work in Art, showing my creative process way, permeated by various movements and dialogues with multidisciplinary knowledge areas beyond the visual arts. We will discuss the motivations, appropriating images, materiality and the stories that foster individual and collective iconography and the meaning of the poetic work. Along the sensitive itinerary, emphasize the conflicts, the predictable and the unpredictable, the familiar, the strange, the confrontations, the "paúras," (fears) the well-being and ill-being, deserts and oases of this ongoing and exciting process of creating, jointhing it with my own existence Keywords: process, create, sign 1 Aninha Duarte - Artista Plástica, Professora da Universidade Federal de Uberlândia - UFU/MG/ Brasil. Doutora em História Social PUC/SP – Com estágio na Universidade de Évora (UE) / Portugal, Mestre em História e Especialista em Ensino de Arte (UFU).Graduada em Direito (UNIUBE), Graduada em Artes Plásticas (UFMG). Pesquisadora dos núcleos de pesquisa NUPPE (UFU) NUPEA (UFU), GREC (UFBA), NEHSC (PUC/SP) – (NEHSC – Uberlândia). [email protected] .

Aninha Duarte – Ana Helena da Silva Delfino Duarte1nuppe.art.br/simposio2012/anais/PDF/AninhaDuarte.pdf · quadrados monumentais do re-encontro do passado com o presente. Ecléa

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I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO – NUPPE Instituto de Arte / Universidade Federal de Uberlândia – IARTE/UFU

MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 10 a 13 de setembro de 2012, Uberlândia – MG – Brasil

INQUIETAÇÕES PICTORIAL E OBJETUAL: ROMARIAS E PEREGRINAÇÕES DE UM PROCESSO DE CRIAÇÃO

Aninha Duarte – Ana Helena da Silva Delfino Duarte1

Resumo: presente apresentação traz ao lume alguns momentos de meu trabalho

em Arte, mostrando o(s) andar(es) de meu processo criativo, permeado por diversos

deslocamentos e diálogos multidisciplinares com áreas do conhecimento além das Artes

Visuais. Abordaremos as motivações, as apropriações de imagens, as materialidades

e as histórias individuais e coletivas que fomentam a iconografia e os sentidos

poéticos do trabalho. Nesse percurso sensível, enfatizo os conflitos, o previsível e o

imprevisível, o conhecido, o estranho, os enfrentamentos, as "paúras", o bem-estar e o

mal-estar, os desertos e os oásis desse contínuo e instigante processo de criação,

elidindo-se com minha própria existência.

Palavras - chave : processo, criação, signo

Abstract: Pictorial concerns and “objectual” concer: pilgrimages of a creation

process.

This presentation brings to light some moments of my work in Art, showing my creative

process way, permeated by various movements and dialogues with multidisciplinary

knowledge areas beyond the visual arts. We will discuss the motivations, appropriating

images, materiality and the stories that foster individual and collective iconography and

the meaning of the poetic work. Along the sensitive itinerary, emphasize the conflicts,

the predictable and the unpredictable, the familiar, the strange, the confrontations, the

"paúras," (fears) the well-being and ill-being, deserts and oases of this ongoing and

exciting process of creating, jointhing it with my own existence

Keywords: process, create, sign 1 Aninha Duarte - Artista Plástica, Professora da Universidade Federal de Uberlândia - UFU/MG/ Brasil. Doutora em História Social PUC/SP – Com estágio na Universidade de Évora (UE) / Portugal, Mestre em História e Especialista em Ensino de Arte (UFU).Graduada em Direito (UNIUBE), Graduada em Artes Plásticas (UFMG). Pesquisadora dos núcleos de pesquisa NUPPE (UFU) NUPEA (UFU), GREC (UFBA), NEHSC (PUC/SP) – (NEHSC – Uberlândia). [email protected] .

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Sumariamente “Criação

A natureza deu ao artista a capacidade de exprimir seus impulsos mais secretos, desconhecidos até por ele próprio, por meio do trabalho que cria; e estas obras impressionam enormemente outras pessoas estranhas ao artista e que desconhecem, elas também, a origem da emoção que sentem”. (FREUD, “Uma lembrança de Infância de Leonardo da Vinci” 1910, p. 64)

Pretendo nesse texto compartilhar alguns momentos de meu processo de criação

em Arte, externando parte de diálogos traçados com os estudos desenvolvidos

principalmente na linguagem da Pintura e do Objeto. Pode ser observado que o meu

processo de criação encontra-se sublinhado por dois momentos os quais chamo-os de

Primeira Aproximação e Segunda Aproximação. Esses dois momentos marcam e

sistematizam de forma significativa reflexões específicas que geraram desdobramentos

no pensar e no fazer de minha pesquisa em Artes Visuais.

Antes de falarmos sobre essas duas aproximações apresentaremos algumas

informações relevantes sobre as motivações e o encontro com a temática investigada na

pesquisa.

PESQUISAS DESENVOLVIDAS: a importância de palmear um mesmo tema

Importante rememorar as motivações que arrolam essa pesquisa. Iluminamos

alguns pontos que julgamos serem os norteadores do trabalho que tem como fulcro

estudos sobre signos religiosos. A escolha por estudar alguns símbolos da iconografia

religiosa católica teve seu início durante a minha graduação, ganhando uma certa

consistência inicialmente através da bolsa PAD (Programa de Aprimoramento

Discente), oferecida para alunos de graduação da Escola de Belas Artes da UFMG, onde

realizei a pesquisa intitulada “Signos e Símbolos”. Posteriormente, em 1998 concluí o

curso de especialização em Ensino de Arte (DEART/UFU) tendo realizado a

monografia com o título “Cruzes e Poiesis: o símbolo da cruz como poética visual”. Em

2003 conclui Mestrado em História (INHIS/UFU), na linha de pesquisa “História

Cultural”, com dissertação intitulada: “Ex-votos e Poiesis: um olhar estético sobre a

religiosidade popular em Minas Gerais”. Por último, em 2012 conclui o curso de

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doutorado na PUC/SP com a tese intitulada “Ex-votos e Poiesis: representações

simbólicas na fé e na arte”. Nesta pesquisa, fiz estágio na Universidade de Évora.

Foi a partir do despertar para essas reflexões, que possuem um elo norteador

entre elas - guiados, sobretudo por símbolos que são exteriorizados pelo imaginário

religioso popular - que foram encontradas as certezas e incertezas para discutir o fazer

teórico e plástico de minhas investigações nos campos das Artes Visuais e na História

da Cultura.

MOTIVAÇÕES: o encontro com o tema - a importância da memória

“Eu preciso de minhas memórias. Elas são meus documentos. Eu as vigio”.

(Louise Bourgeois)

Importante mencionar que a apreciação pelos signos religiosos veio de

minha memória da infância, vivida na cidade de são Francisco de Sales-MG e

posteriormente na cidade de Campina Verde-MG / Brasil.

O primeiro contato que tive com a arte foram de imagens sacras que compõem

os interiores das igrejas, as esculturas de santos e os quadros que representavam os

passos da paixão de Cristo. Outras imagens que também ficaram na memória foram as

extraídas das decorações e alegorias das chamadas “festas de igrejas”. São elas: as

flores feitas de papel crepom coloridos que ornavam os andores de Maria, mastros e

fitas feitos em homenagem aos santos juninos, as performáticas procissões com

crianças vestidas de anjos, os majestosos tapetes feitos com materiais alternativos para

as procissões de corpus christi, os santinhos impressos, as folhinhas com motivos

religiosos, as medalhinhas com imagens de santos, Marias e senhores, as imagens dos

presépios natalinos além de vários outros signos que compõem geralmente esse

universo religioso.

Foram nessas exposições de fé que eu vi as primeiras expressões artísticas.

Devo confessar que essas imagens me impressionavam imensamente. Só bem mais

tarde fui descobrir que muitas dessas imagens, especificamente no caso das “folhinhas”

e “santinhos impressos” eram reproduções de obras de arte de alguns artistas do

Renascimento.

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Ao recordar essas imagens que ajudaram a formar o grande acervo de minha

memória, foi impossível não lembrar essa passagem do o livro “Infância”, de Graciliano

Ramos, quando o autor conta-nos:

“A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas - e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou”.2

Quando somos crianças parece que temos um olhar desprovido de tantas

explicações. Existe uma mágica, uma cena de encantamento em cada encontro com as

formas que nos fisgam o olhar. Na fase adulta essas imagens voltam com uma clareza

incerta, acrescentadas de diversos sentidos, causando também um grande esforço para

lembra-las na sua totalidade. O retorno a essas memórias, o redimensionamento

dessas pequenas passagens do cotidiano, que no decorrer dos anos ganham status de

quadrados monumentais do re-encontro do passado com o presente.

Ecléa Bosi, em seu livro “O Tempo Vivido da Memória”, lembra-nos: “Não esqueçamos que a memória parte do presente, de um presente ávido pelo passado”3.

Ambicionada em guardar esse passado, tenho me debruçado sobre ele a fim de

reconstituí-lo, já que esses anos distantemente idos, foram os geradores de pulsões que

continuam ecoando até o presente.

Não pretendo aqui fazer um dossiê sobre as minhas memórias de infância.

Pretende-se sim rememorar alguns painéis dessas memórias, para revelar a importância

dos hábitos, costumes e tradições dessas pequenas cidades no pontal do Triangulo

Mineiro, que influenciaram diretamente a escolha de meu objeto de pesquisa e de toda

minha formação acadêmica e artística.

Percebi que os signos que realmente seqüestravam meu olhar estavam voltados

para os resíduos dessas citadas memórias. Foram as pulsões principalmente desses 2 http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2862,3.shl 3 BOSI, Ecléa. O Tempo Vivido da Memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial. 2003. p. 20.

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signos visuais e alguns sonoros (sons de batidas de sinos, orações de ladainhas e

cantorias petitórias) contidos nesses citados eventos que levaram-me a pesquisar sobre

alguns símbolos da religiosidade católica popular. Ao utilizar os filtros da memória, os

principiais resíduos apontaram para essas citadas “imagens mentais”.

O (re)visitar dessas memórias se deu na direção do pensamento de Alessandro

Portelli que vê “a memória como algo fragmentário”. Quando diz: “Uma das imagens

simbólicas que tenho em mente é o quilt (uma colcha de retalhos) feita de pedaços,

como o sentido de um trabalho de bricolagem (...)”4.

Do ajuntar e costurar os retalhos dessas memórias é que os pedaços foram sendo

justapostos em busca de unidade. A unidade, no caso de uma narração feita por meio da

imagem plástica, obviamente é bastante diferente da unidade buscada por Portelli.

Enquanto na arte existe uma arquitetura misturada de realidade e invenção, no texto

escrito, quando tem função de registrar história, o que se pretende é a unidade mais

próxima do fato real. Nessa pesquisa transito entre os dois pólos: o real e o imaginário.

Da experiência de recordar os costumes e hábitos dessas pequenas cidades

citadas, tornaram-se claras as afirmativas de Portelli:

“Contar uma história é tomar as armas contra a ameaça do tempo, resistir ao tempo ou controlar o tempo. O contar uma estória preserva o narrador do esquecimento; a estória constrói a identidade do narrador e o legado que ela ou ele deixa para o futuro” 5.

Muitas são as formas de se construir a identidade do sujeito. Muitas são também

as formas de se dizer sobre as ramificações e sentidos de uma memória que não quer ser

esquecida. Veem-se os estudos sobre memória na literatura da História, condensada de

várias formas nas Artes. Milton Nascimento canta: “Descobri que minha arma é o que a

memória Guarda”6, Fellini, no filme Amarcord (Eu me recordo) mescla realidade e

sonhos de sua possível biografia. Em forma de poesia, cita-se “Confesso que Vivi” de

Pablo Neruda, contando a vida de maneira tão poética.

“Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez tenha vivido a vida dos outros. Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre – como nos arvoredos de outono e como no tempo das vinhas – as folhas amarelas

4 PORTELLI, Alessandro. História & Perspectivas, Uberlândia, (25 e 26): 27-54, jul/dez. 2011/jan/jun.2002. p. 45. 5 PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida; funções do tempo na História Oral. In Muitas histórias outras Histórias. São Paulo: Olho D’água, 2004. 6 Frase da canção intitulada “Conversando no Bar” composição de Milton Nascimento e Fernando Brant, compositores Brasileiros.

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que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta”7 (Pablo Neruda).

Nas Artes Visuais inúmeros são os artistas que falam sobre memórias A

memória é uma biografia do vivido. São âncoras de identidade.

Sendo artista plástica, me valho dessas memórias para criar meus trabalhos onde

integro o desejo de não esquecer, com os embates de elaborar e materializar essas

focadas e desfocadas memórias em forma de arte. Essa é a maneira que encontro de

driblar o tempo, até quando for possível. Talvez seja um jeito de se “vingar” do

esquecimento.

DOS PROCESSOS: as aproximações

“Todos os procedimentos são sagrados quando interiormente necessários”

(Wassily Kandinsky – Do Espiritual da Arte)

Vale-se aqui dos estudos da crítica genética, que se baseia na gênese, nos meandros

da criação da obra, apoiando-se no processo criativo para melhor dialogar com o

resultado do trabalho quando considerado finalizado.

Cecília Salles, pesquisadora sobre processo de criação esclarece que a crítica

genética dedica-se a uma melhor compreensão do processo criativo artístico. Trata-se de

uma investigação que estuda a obra de arte a partir de sua construção. Sua grande

questão é entender como a obra é criada8.

São apresentadas na sequência algumas fases de meu Processo de Criação.

7 Poema retirado do seu livro “Confesso que Vivi” disponível em: <http://belladaguer.wordpress.com/tag/sebos/> Acesso em: 10 jul. 2011. 8 SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. p. 12.

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PRIMEIRA APROXIMAÇÃO - preliminarmente só

A primeira aproximação é um momento silencioso de avaliação para localizar o

objeto de estudo, a forma de externá-lo, a escolha dos meios, enfim, uma avaliação do

pensar e do fazer. Essa fase do Processo Criativo chamei-a de “preliminarmente só”,

datada de 1991 a 2001. Nesse período a pesquisa foi construída por meio de aquarelas,

pinturas, objetos e instalações. Para a execução dos trabalhos, utilizei-me de pequenos

estudos, esboços, roteiros, croquis feitos com lápis, caneta, tintas, anotações em

pequenos bloquinhos, formando uma espécie de “diário”, todos feitos na solidão do

ateliê. (Fig, 01)

Cada imagem mentalizada ia sendo lentamente construída com ajuda de lápis

e/ou tinta sobre papel. Para dar apoio à simbologia, das imagens sempre junto do

material contei com dicionários de símbolos para clarificar os sentidos das formas e das

cores em conformidade com cada composição planejada.

O planejamento da composição exige um tempo mental, um diálogo silencioso e

intimista de horas de questionamentos em torno da idéia principal. Todo o apoio teórico

e poético da composição é planejado item por item, dos elementos materiais aos

imateriais que irão dar vida ao trabalho.

O pensamento e o corpo ficam imersos no ato de criar. Esse é um momento de

estabilidade e turbulência, de coragens e paúras diversas. É um estado venerável em

busca de firmamentos. A experiência poética em conjunto com a teórica vai

“amanhecendo” devagar. Não é possível ver ou pré-ver o momento exato do clarear.

Figura 01 .Aninha Duarte em seu ateliê

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Quando esse clarear ocorreram, as respostas são em parte aquietadas. Tem-se então o

início da construção material do trabalho.

Importante mencionar que mesmo guiada por estudos feitos em croquis, durante

a execução do trabalho ocorrem muitos acasos, muitos são aceitos e logo tornaram-se, a

partir de uma reelaboração, um caso pensado (distancio-me o máximo possível de

trabalhar com o acaso. Somente quando serve de “insight” para se buscar novas idéias

ou caminhos é que são “apropriados”.

Abaixo apresentaremos alguns de meus diálogos com a Pintura e também com o

Objeto

Pintura: um terreno lodoso

Partindo de um prisma que o pensar pode se dar por meio de formas distintas,

creio ter pensamento pictórico. Preciso me valer da pintura para pensar qualquer outra

forma de expressão. Essa é uma condição necessária e norteadora para eu começar as

criações, sejam elas bidimensionais ou tridimensionais. A pintura é a grande fiadora de

minhas reflexões artísticas. Nela reside a base orgânica de meus trabalhos.

Penso ser importante ter com essa forma de expressão um estreito vínculo. Digo

também que é um vínculo um tanto paradoxal, por que é uma afinidade cheia de

dúvidas, recuos, de perdas e ganhos, firmados num campo de contínuas descobertas.

Pode-se dizer trabalhar com a pintura é percorrer por um terreno lodoso. Pinto

com camadas e camadas de tintas e/ou materiais pictóricos diversos, sobrepondo cores

de modo que todas elas, de alguma forma, possam ser vistas na imagem resultante umas

em maior ou menor quantidade que as outras. A cada estágio tem-se uma imagem. São

muitas pinturas escondidas num mesmo suporte. Na insistência da sobreposição, busco

e escolho a imagem final. O grande diapasão é quando há equilíbrio entre as tensões do

pintar com a idéia da composição inicial, de modo que uma não sufoque ou enclausure a

outra.

Importante mencionar que existe um esforço de se ter o controle pleno sobre o

trabalho, apesar de nem sempre isso ser possível na totalidade. Muitos dados novos

surgem no percurso do fazer. No caso da pintura fico em conformidade com o

pensamento pintor Sérgio Fingermann quando afirma:

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“Tentei compreender tudo aquilo que fazia e ao mesmo tempo pensava que isso não era preciso As vezes a dúvida é necessária , outras vazes a afirmação mais importante. Na pintura não se tem a garantia de Trabalhar entendendo todo processo. Ela exige uma entrega a desorientação. É difícil se perder , por que todo o nosso movimento, o nosso esforço, se faz na direção da construção. Na pintura a gente lida com ordens de incompreensão, o que exige do pintor uma atenção, uma espécie de desconfiança destas percepções, para que essas compreensões não se transformem em agudas incompreensões ( c. (conforme Clarice Lispector) A pintura exige, ás vezes, descaminhos daqueles que a fazem. Às vezes se exige que se perceba diferentemente do se vê. Nessa trajetória , as vezes, surgem algumas descobertas”9.

O risco freqüente e a falta de garantia tornam-se um constante defrontar com o

trabalho para além daquilo que inicialmente era aguardado. No ato do fazer ocorrem

muitas revelações que podem provocar mudanças no croqui inicial. Esse é um momento

de dúvidas e escolhas, que coloca o projeto inicial em xeque. Porém, escolho o caminho

que mais privilegia a composição, a pintura e o tema. É um momento de afinamento,

síntese para otimizar a pintura.

O espaço pictórico incita muitas indagações que só podem ser respondidas

durante o ato de pintar. As respostas são obtidas, na maioria das vezes, ali no

desempenho instrumental ou cognitivo e algumas das vezes, até mesmo no intuitivo. È

um processo de constantes descobertas. Descobertas essas que trazem soluções para o

trabalho em questão e apontam desdobramentos para novas criações. São instantes

intensos de reformulações.

Necessário expor que o croqui inicial em meu trabalho ocorre normalmente de

duas maneiras. Conforme o contexto faço em pequenos formatos estudos variados com

tinta, como se fosse o trabalho definitivo. Geralmente chamo essas simulações de

micro-pinturas ou ensaios-de-pintura. Contudo, é muito importante o momento em que

essas simulações pictóricas são deslocadas para os macro-suportes para ocuparem o

papel de pintura-obra. Obviamente que o espaço ampliado trará novas questões ao

trabalho: é uma nova configuração do espaço.

Em outros momentos faço uma série de pequenos croquis, escrevo sobre eles os

nomes das cores a serem usadas na composição e crio uma imagem mental do trabalho.

A esses chamo-os de micro-esquemas. Para iniciar necessito sempre desses bosquejos,

9 FINGERMANN, Sérgio. Fragmentos de um dia intenso. catalogo de exposição. Museu de Arte moderna do Rio de Janeiro. 1992. p. 18.

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nunca indo para o suporte direto sem ter um pequeno dossiê do trabalho a ser

desenvolvido. (Fig, 02, 03, 04, 05, 06)

Figura 06- Montagem final – trabalho intitulado “atributos”. Pintura sobre a parede da galeria e plotagem fotográfica (composição do lado direito). 3m x 310 cm Composição do (lado esquerdo ) pintura sobre lona. ( 3m x 290cm) Pigmento/Vinil Oficina Cultural de Uberlândia – 2007 Fonte: Acervo da artista

O que justamente nos atrai no estudo

do imaginário é a ambivalência, a

mélange entre o subjetivo e objetivo,

esse quiasma entre força do ser e a

espiritualidade da idéia. É próprio do

imaginário passar do simbólico ao

físico e ser as duas coisa ao mesmo

tempo, processo esse que, indo da

sensação à idéia, é a força de sua

sedução.

( PASAVENTO, Sandra Jatahy )

Figura 04 - Montagem – 01

Figura 05 - Montagem – 02

Figura, 03. croqui (02) estudo feito sobre papel color plus

Figura, 02. croqui (01) estudo das medidas e proporções

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Sempre digo que a pintura é lodosa, movediça. ela “desbanca”, na maioria das

vezes, os o croquis iniciais. É um perder e encontrar contínuos. Mesmo assim preciso

deles, funcionam como uma espécie de bússolas, mapas para a pintura. A partir dos

croquis iniciais a composição vai criando sintonias com o espaço pictórico.

O espaço, a matéria, as formas, as cores, tudo na pintura é polissêmico. Essa

multiplicidade de sentidos ao mesmo tempo que é um facilitador, pode trazer também

diversa dúvidas e incompreensões. Digo isso referentemente ao campo de gerar o

trabalho e tecer interlocuções com todos os elementos compositivos que orquestraram

a imagem, dando a eles um diálogo coeso.

Reafirmo que a pintura é uma linguagem muito difícil. Difícil no ato de pintar.

A pintura exige um tempo de maturação, um diálogo íntimo entre pintor e a pintura.

Uma “verdadeira pintura” não admite maquiagens, arremedos, meras combinações de

cores e formas. A pintura é confessa. A maturidade do pintor é confessada na imagem.

Nesse viés exponho meu pensamento sobre a pintura:

O que me seduz em trabalhar a pintura é o embate de pintar, de permanecer “por dentro” da pintura (como cair na areia movediça e ser absorvida por ela). Não me imagino trabalhando a pintura com meras combinações de cores e formas ou efeitismos fáceis. A busca do processo pictórico, as massas, os empastes, as sobreposições e o mistério da multivalência de cores exigem realmente um tempo de “maturação”. Apesar de desenvolver outras linguagens, como a do desenho, da gravura, dos objetos, a pintura continua sendo o baluarte da minha pesquisa. Por meio dela integralizo a minha produção artística e vislumbro a possibilidade de trabalhar outras linguagens10. Enfim, Meu pensamento é pictórico.

OBJETOS: as resignificações

Geralmente trabalho com objetos que já foram construídos anteriormente de

forma industrial ou artesanal. Aproprio-me dos objetos que possuem diálogos

simbólicos com minha pesquisa.. A partir dessas apropriações vou fazendo algumas

interferências, pequenas assemblagens, sem camuflar ou destruir sua função, seu

10 DUARTE, Ana Helena da Silva Delfino Duarte. Caderno de Arte. Nº especial, dez.1998. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, Centro de Ciências Humanas e Artes, Departamento de Artes Plásticas, p. 224.

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precedente. Me interessa deixar seus vestígios e a ação do tempo (quando houver).

Dessa maneira crio, em alguns casos, um objeto novo, partindo de outros já existentes.

A minha forma de trabalhar o objeto segue na mesma direção da pintura. Faço

um levantamento minucioso do objeto a ser usado, penso sua cor, a forma que foi

produzido, crio croquis inserindo os objetos, vejo os seus significados em dicionários de

símbolos e outras bibliografias e recorto o que é necessário ao trabalho. (fig, 07, 08,

09,10,11,12)

Figura 7. Estudo 1

Figura 8. Estudo 2

Figura 09 . Estudo 2

Fig. 12 - Detalhe

Fig. 11 - Detalhe

Figura 10.Vista parcial do trabalho “ Sete Dores” - A composição consta de seis corações feitos em: cerâmica, parafina, acrílico e fibra de vidro branca. No centro da composição tem uma caixa com plotagem fotográfica com a imagem de Maria . Na parte superior e inferior da composição estão sete “nichos’ que habitam, objetos tais como: espinhos, cruz de ferro, tecidos, anjos feitos de louça. Fonte: Acervo da arista

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Vejo inicialmente os objetos muito próximos da linha de pensamento. do historiador da

Arte Frederico Morais, que afirma que existe o objeto categoria artística e os demais

objetos que compõem o nosso cotidiano. Morais diz:

“Nada existe mais banal que o objeto. Ele está em todos os lugares, assume variadas feições e cumpre diversas funções, do inútil ao sensível. Etimologicamente, objeto (do latim objectum) significa lançar contra, é coisa inexistente, fora de nós, com caráter material. Significa, portanto, resistência ao sujeito. Entretanto, como ensina Henri Lefrevre, a característica principal do objeto é a sua relatividade. Objeto, em si, não é nada. Ele não é bom nem ruim. É o sujeito que faz do objeto signo ou símbolo”.11

O homem e as sociedades, conforme suas necessidades, vão criando para os

objetos categorias de significados. Nesse sentido, eles podem ser: objetos domésticos,

barrocos, folclóricos, exóticos, religiosos, masculinos, femininos, dentre outros. Podem

ainda, com intenção menos funcional, serem motivos de lembranças, saudades,

subterfúgios.

Os objetos guardam uma série de significações que aludem a modelos e

estilos. Através de suas cores, materiais, designes, podem também remeter-nos à idéia

de tempo. Sobre essa relação com o tempo, Baudrillard nos esclarece que “não se trata,

é claro, de tempo real, são os signos ou indícios culturais do tempo”.12 Dentro desse

tempo circular, pode-se observar as sincronias e diacronias dos objetos.

Os objetos encontram-se situados dentro de várias possibilidades taxonômicas

e questões que os envolvem, tais como: objetos únicos, seriados, funcionais, não-

funcionais, privados, coletivos, artesanais, industriais, de publicidade, de consumo,

dentre outros

O que me chamada muitíssimo a atenção sobre o objeto são os múltiplos

sentidos que ele pode assumir dependendo do espaço em que for inserido e a função

que lhe é dada em conformidade com o perfil do sujeito apropriador

11 FREDERICO, Morais. Farnese de Andrade. Galeria, Revista de Arte. São Paulo. v. 7. n. 29. 1992. p. 54 Ver Também: CLARK, Lygia. “Objetos Relacionais” e “Objetos Sensoriais”. Através desses objetos Lygia torna óbvia, então, a noção de um relacionamento participatório e multissensorial, assim como dispositivo para interconexão entre espaço interno e externo, corpo e cosmo. WANDERLEY, Lula. O Dragão Pousou no Espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico de Lygia Clark. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 10. TUCKER, William. A linguagem da Escultura. São Paulo: Cosac & Naif, 1999. p. 107-127. 12 BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1967. p. 82.

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A ressonância das reflexões duchampianas é que nos levou a ver a inter-relação

entre objeto, espaço, sujeito e apropriador. Assim, é o contexto em que eles estão

inseridos que lhes dá atribuições. No caso de Duchamp, é muito importante mencionar

que pouco importava qual fosse o objeto a ser usado. O artista dizia que não criava uma

relação de gosto no juízo dessa escolha, era feita aleatoriamente, ao contrario do objeto

“objeto trouvé”.15 Por exemplo: onde o artista escolhe, persegue, procura o objeto

especifico para a elaboração do trabalho, não pode ser qualquer um.

Em meus trabalhos dialogo um pouco mais com o objeto trouvé, porque

utilizo-ME de objetos específicos. Geralmente me aproprio dos objetos que são

considerados signos da religiosidade católica popular, principalmente aqueles que

trazem conversas possíveis com reflexões sobre vida e morte.

Isto posto, acreditamos que os objetos já não possuem moradias fixas. A cada

lugar e maneira em que são representados, apresentados, presentificados, imaginados,

ganham diferentes significados, conforme a proposta e atitude do sujeito. As atribuições

de valores simbólicos dos objetos se relacionam com o contexto em que eles estão

inseridos, fora ou dentro do espaço estritamente orientado pelo senso comum ou

convencionalidades.

Nesse contexto de análise, podemos concluir que estamos frente à dialetização do

objeto. Se qualquer objeto – “meras coisas” pode vir a ser arte, isso permite-nos então

pensar que estamos rodeados de obras de arte. Depende da atitude e do imaginário do

sujeito ao fazer sua apropriação/desapropriação e da caução dada ao espaço que irá

habitá-lo.

Em meus trabalhos com os objetos fico sempre a pensar sobre a sua condição de

“nada”, “ meras coisas” e a sua identidade, função e sentidos atribuídos conforme a

necessidade imaginativa humana.

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SEGUNDA APROXIMAÇÃO: do individual ao coletivo

Essa fase marca os trabalhos datados de 2001 em diante. O processo de criação

solicita a saída do espaço interno do ateliê para o espaço externo, pedindo a participação

de “vários sujeitos” para a construção da pesquisa teórica e plástica . (Fig, 13,14,15).

Esse período corresponde ao meu ingresso no Mestrado em História. O ingresso

nessa Pós-graduação deu-me uma grande movimentação nas composições dos trabalhos

plásticos. As citadas memórias de infância se clarificam à medida que as literaturas vão

sendo apontadas durante o curso. Dentre elas cito de grande importância o livro “Casa

Grande e Senzala”, “A Vida no Brasil; ou, diário de uma visita à terra do cacaueiro e

das palmeiras” e o “Diabo na terra de Santa cruz”. Até então entendia meu trabalho

como lírica recordação de infância, uma saudade que não deseja ser apagada.

Após o contato com essas citadas literaturas e também com outras, ampliei a

percepção sobre o sentido social, histórico, antropológico, impresso na malha desses

trabalhos. Percebi que esse recordar não é só mais um ato automático pessoal, ele estava

e está ancorado numa rede de sociabilidades que fala dos signos culturais coletivos, não

só das duas cidades citadas anteriormente, mas de várias outras no interior do Brasil.

O processo de pesquisa para a construção dos textos de mestrado e doutorado

uniu-se fortemente ao processo de criação artística. Os estudos em croquis, esboços da

primeira fase (primeira aproximação) são acrescidos de fotografias, filmagens,

entrevistas de romeiros e depoimentos de ofertantes de ex-votos trabalhados na segunda

fase. O material coletado para a dissertação e também para a tese torna-se o fomentador

das criações das imagens. Os trabalhos vão sendo criados baseados na escuta de

depoimentos de romeiros, das visualidades e histórias encontradas nas salas de

Fig, 14. Via Dutra Região de Taubaté/SP. Romaria em homenagem a N. S. Aparecida - 2010

Fig, 13. Romaria em homenagem a N.S. Abadia. Localização; entre as cidades de Uberlândia e Romaria/MG. 2002

Fig, 15. Entre Goiânia e Trindade-GO. Romaria em homenagem ao Divino Espírito Santo. 2010

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promessas somadas aos signos das memórias de infância. Ocorre nesse momento um

encontro de todas as pesquisas feitas até então.

Dentre os signos pesquisados, dois mantiveram-se perenes em meus trabalhos.

Foram os símbolos de cruzes (em vários formatos) e imagens advindas dos imaginário

ex-votivo. Para a dissertação de mestrado e para a tese de doutorado escolhi pesquisar

as diversas formas de representações ex-votivas (pinturas, esculturas, fotografias e

objetos). Notei que a riqueza desse universo criado por meio da “arte dos milagres”

poderia trazer um grande contributo ao meu trabalho em pintura e também com os

objetos. O convívio direto com as pinturas e os objetos votivos forneceram ao meu

trabalho uma série de visualidades e materialidades que geralmente foram sendo

incorporadas em minha pesquisa teórica e plástica. (figura, 16, 17, 18, 19,20,21,22)

Exemplificações – conferir imagens abaixo:

Figura 16 – Aninha Duarte. Pintora sobre suporte rígido. 160 cm x120 cm . pigmento/vinil , gesso, parafina. Alusão as tábuas votivas

Figura 18 Aninha Duarte. 01 imagem da série “Dádivas” pintura sobre o corpo/ plotagem fotográfica. 80 cm x 120cm (Faz referências aos pés de romeiros além de outras alusões do imaginário religioso católico)

Figura 19 . Pé de romeiro machucado nos sacrifícios de uma romaria .

Figura 17. Ex-voto pintado – séc. XVII. Ermida de N.S. Carmo/ Azaruja /Portugal.

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Montagem Final

Figura 20 . Aninha Duarte 01 imagem da série “Dádivas” pintura sobre o corpo/ plotagem fotográfica. 8 0 cm x 120 cm. (Referência construtiva da composição - Teto da sala de promessa de N.S. do Bonfim / BA.e as milhares de mãos / ex-votos feitos em parafina e ou madeira., dependuradas nas salas de promessas dos santuários / centros de peregrinações nacional e internacional )

Figura 21 . Teto da sala de promessa de N. S. do Bonfim / BA.

Aninha Duarte – Figura. 22 - Série “dádivas” – Pintura sobre o corpo, reprodução fotográfica . 150 cm x 100 cm , 2012

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Necessário se faz abrir um pequeno espaço para se discorrer sobre os ex-votos:

Sumariamente, é importante salientar que “ex-voto” em latim significa

“consoante a uma promessa” ou “extraído de uma promessa”. Devoto é aquele que faz

um pedido de ajuda aos santos, às Marias e aos Senhores para obter curas difíceis e até

impossíveis, contra diversos tipos de aflições. Caso ele seja contemplado com a graça

ou “milagre”, o “intercessor” receberá um objeto em satisfação da súplica atendida.

Dessa maneira, o agraciado oferece ao seu intercessor o ex-voto, que é representado por

meio de objetos, pinturas, desenhos, esculturas e fotografias. (Fig, 23)

Esses objetos são, em sua maioria, partes do corpo humano, esculpidos em cera,

madeira ou parafina, pintados sobre madeira, tecido, papel; fachos de cabelos trançados;

aparelhos ortopédicos; volantes de automóveis; réplicas de santuários, existindo ainda

outros que chamam mais atenção, como vestidos de noiva, cruzes de vários formatos,

bicicletas, caixões funerários, além de outros de naturezas diversas.

Esses objetos heterogêneos são guardados nas Salas de Promessas (também

conhecidas como Salas de Milagres ou Salas de Ex-votos). Nelas ficam reunidos um

grande número de ex-votos, dispostos de forma ordenada, a partir de certa lógica de

semelhança, formando verdadeiras composições plásticas ao obedecerem a um ritmo

lógico sob a ótica de quem os organizou (essa organização depende de cada sala, de

cada centro de peregrinação). Eles podem ser encontrados também nos “cruzeiros de

Figura 23. Sala de Promessa de N. S. Aparecida/ SP – Brasil Fonte: Acervo fotográfico Aninha Duarte 2012.

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acontecidos”, implantados na beira das estradas, dentro de cemitérios. Esses objetos são

sempre depositados em locais públicos, para se testemunhar que o voto foi pago.

Nessas pesquisas desenvolvidas sobre esse signo de fé e agradecimento tive como

intuito olhar para os ex-votos tentando captar suas diversas perspectivas, tendo como

mira o “ver por dentro e por fora” esses objetos gratulatórios. Observar o tempo, o

espaço, o contexto em que foram criados, as formas de representações, tipologias,

motivações e analisar seus aspectos históricos, antropológicos, religiosos e artísticos.

O objetivo do referido trabalho foi fazer análises formais, iconográficas e

iconológicas dos ex-votos, priorizando alguns eixos de averiguação que são ex-votos

pictóricos, ex-votos “escultóricos”, as fotografias entendidas como ex-votos, os objetos

do cotidiano – “meras coisas”13 – que são apropriados pelos promesseiros e re-

significados como objetos votivos. O fulcro da pesquisa recaiu sobre as análises das

imagens dos ex-votos e das histórias, que movem os múltiplos sentidos de se oferecer

um ex-voto.

Por meio de sua rica iconografia foi possível observar o mobiliário, a vestimenta,

alguns tipos de doenças e os “modos de vida” dos promesseiros em tempos e espaços

distintos. Importante mencionar também que essas imagens tornam-se sacralizadas em

função de estarem expostas dentro do espaço sagrado dos santuários

Os ex-votos representam, pelos símbolos e signos, uma inquietante imagética

plástica visual, propondo o desafio de ter se tecido este estudo que soma Religião e

Cultura, Arte e Estética, e seus cruzamentos poéticos no contexto da fé e para além das

representações de graças e milagres alcançados.

Juntamente com a pesquisa teórica sobre os ex-votos, trabalhei algumas

exposições em diálogos com esse tema, que já havia se manifestado em meus estudos

com objetos no ultimo ano de minha graduação. Essa pesquisa teórica e plástica marcam

de forma contundente e efetiva o meu processo de criação de arte e acelerou o ritmo

de minha experiência com o texto escrito.

Para desenvolver essas pesquisas foi preciso colocar o pé na estrada e ir para

pesquisa de fontes primarias. Até o presente momento foi possível pesquisar in loco os

seguintes centros de peregrinações que contém grandes acervos ex-votivos no Brasil:

13

Expressão utilizada por Artur Danto em seu livro “Transfiguração do Lugar Comum” para se referir aos objetos industrializados. DANTO, Arthur C. A Transfiguração do Lugar Comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac&Naify. 2006.

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Santuário de Nossa Senhora de Abadia Romaria/MG, Santuário de Bom Jesus de

Matosinhos - Componhas do Campo - MG, Igreja de Nossa Senhora do Rosário, (maior

centro de peregrinação no Triângulo Mineiro) localizada em Monjolinho/MG, Santuário

da Medalha Milagrosa em Uberaba/MG, Santuário de Nosso Senhor do Bomfim-

Salvador/BA, Santuário de Bom Jesus da Lapa/BA, Santuário do Divino Pai Eterno-

Trindade/GO. Em Portugal, os centros de peregrinações como a Ermida de Nossa

Senhora do Carmo, situada no meio rural, em Azaruja, a Ermida de Nossa Senhora da

Visitação, em Montemor-O-Novo, o Santuário de Nossa Senhora D’Aries, em Viana do

Alentejo, o Santuário Bom Jesus da Piedade, em Elvas, o Santuário de Nossa Senhora

de Fátima, o Santuário de Bom Jesus do Monte, em Braga. Na França, o Santuário de

Nossa Senhora de Lourdes e, na Espanha, o Santuário de Santiago de Compostela. A

pesquisa in loco foi o grande “laboratório”

Fecho o parágrafo enfatizando que o processo de criação nos transporta para

locais que nunca planejamos ir. A pulsão dessa necessidade é muito potente levando-

nos a aceitar os desafios e lutemos por eles. Mesmo que os caminhos sejam sinuosos,

não hesitamos em segui-los.

Considerações finais

Dentre os incontáveis signos guardados das memórias de infância, unidos às

memórias recentes, meus trabalhos plásticos discursam sobre próteses, simulacros,

representação/presentificação, presença/ausência, mimetismo, imaginário, corpo,

doença, morte, fé, promessas, milagres, dores. Enfim: sobre a vida e a morte.

Após ter me despertado para essas citadas reflexões pontuadas na primeira e

segunda aproximações, acredito ser dentro desse cipoal que caracteriza o mundo dos

símbolos, principalmente os que são exteriorizados pelo imaginário religioso popular,

que encontro certezas e incertezas para discutir meu fazer teórico e plástico. É daí que

retiro formas, cores e materiais expressivos, tais como rendas, flores, bonecas, parafina,

véus, dentes, cabelos, dentre outros. Enfim, toda a plasticidade para a materialização das

composições, independentemente da linguagem escolhida.

O artista, através de seu trabalho, materializa sua vivência em conformidade com

o tempo e o espaço. É a constante contaminação com o vivido e com o cotidiano que

caracterizam e vão formatando a identificação do artista.

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Com a intenção de dizer sobre a fragilidade da vida e o medo da morte,

materializo essas atitudes nostálgicas de nossos costumes, que alimentam o meu

imaginário e que carrega marcas de nosso país, depositário de universos “estéticos”

culturais diversos. É amalgamando esses resíduos que as obras criadas por mim vão se

recompondo e se abrindo para mais quereres.

Foi debruçando em recordações e não as deixando adormecerem minhas

memórias que elas não se tornaram sépias e sim verdejantes. Construí e construo meus

trabalhos colocando-me dentro deles, evidenciando as possibilidades de diálogos entre

arte(s) - ( a camada de “arte popular” e “arte instituída”), religiosidade e cultura

popular, tendo como fulcro o ponto de junção entre esses territórios.

Nesse inconclusivo vão em que reside a criação, são as inquietações que

movem meu incessante desassossego de pensar a Arte de forma multidimensionalizada,

habitada dentro de um tempo tripitico: passado /presente/futuro. Dessa forma não

meço qual a minha distância dos perigos que eu possa correr.

Finalizando, sempre trabalho dessa maneira. Gosto imensamente de preparar,

estudar a composição, esquadrinhar cada ação colocada na imagem. Não acredito que a

arte possa ser criada à revelia da proposição do artista, mas sim por meio de sua

presença, do corpo a corpo, do ato visceral, o estar dentro da obra. Os caminhos

certamente se encurtam rumo aos encontros da criação e da compreensibilidade de

propor e discutir a pesquisa plástica. Conseguir parcerias de buscas e encontros do

Processo Criativo com o trabalho é entender a arte como conhecimento e poesia, é

aceitar os incessantes desafios que ela impele.

Me sirvo da intensa reflexão de Frederico Morais que assim argumenta: Hoje, a fusão, tantas vezes dissonante, de grito e maneira poderá levar a uma reconsideração do caráter plural do trabalho artístico, que passa pela mente , pelo coração, pelos olhos, pela garganta, pelas mãos; e pensa e recorda e sente e observa e escuta e fala e experimenta e não recusa nenhum momento essencial do processo poético.

Encerro este texto (que considero ainda uma “minuta” sobre meu processo de criação)

afirmando:

Eu aceito os atiçamentos de meu Processo de Criação.

Não quero viver na Arte a limitação de percursos previsíveis.

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