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1 Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v.9, n.1, p.55-75, Jun. 2019 | ISSN 2178-5368 semeiosis SEMIÓTICA E TRANSDISCIPLINARIDADE EM REVISTA TRANSDISCIPLINARY JOURNAL OF SEMIOTICS resumo O presente artigo analisa oito cartazes produzidos a partir de 1975, quando se intensificam as mobilizações sociais no Brasil para a Anistia dos presos polí- ticos, dentro do escopo do design e da comunicação. Com o intuito de apro- fundar as análises, será apresentada uma contextualização do tema e alguns de seus desdobramentos políticos, de forma a contribuir com as interpretações das linguagens utilizadas, sejam elas textuais ou imagéticas. Além das cores, tipografia, ilustrações e fotos, serão referenciadas as apropriações de conteúdos e estilos de outros campos da produção de imagens. Ressalta-se a amplitude da mobilização, que foi constituída por diferentes movimentos sociais, sejam eles ligados a artistas e intelectuais, sindicalistas e movimentos femininos. Os resultados visuais dessa produção de cartazes acompanham essa diversidade, apontando a complexidade de interesses políticos e abordagens comunicacio- nais na constituição do movimento pela Anistia. PALAVRAS-CHAVE: Cartaz. Design. Anistia. abstract The present paper analyses eight posters produced from 1975 during the intensification of social mobilization in Brazil for the Amnesty for political prisoners, from the scope of the study of design and communication. With the aim of deepening the analysis, some contextualization of the theme and their political results will be presented, with the purpose of an interpretation of the textual and visual languages used in the posters. Along with the colors, typography, illustration and pictures, will be placed with reference to the appropriation of contents and styles from other fields of production of images. The wide range of the mobilization, constituted by many different social movements, linked to artists and intellectuals, syndicalist and women's movements stands out. The visual results of these posters follow this diversity, pointing out the complexity of the political interests and communicational approaches in the constitution of the movement for the Amnesty. KEYWORDS: Poster. Design. Amnesty. Anistia em imagens: Cartazes dos movimentos pela anistia no Brasil Kando Fukushima | [email protected] Marilda Lopes Pinheiro Queluz | [email protected] Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v.9, n.1, p.55-75, Jun. 2019 | ISSN 2178-5368

Anistia em imagens: Cartazes dos movimentos pela anistia ... · que endossa a proibição da tortura sob qualquer circunstância, tema ainda pertinente na contemporaneidade, seja

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Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v.9, n.1, p.55-75, Jun. 2019 | ISSN 2178-5368

semeiosisSEMIÓTICA E TRANSDISCIPLINARIDADE EM REVISTA

TRANSDISCIPLINARY JOURNAL OF SEMIOTICS

resumoO presente artigo analisa oito cartazes produzidos a partir de 1975, quando se intensificam as mobilizações sociais no Brasil para a Anistia dos presos polí-ticos, dentro do escopo do design e da comunicação. Com o intuito de apro-fundar as análises, será apresentada uma contextualização do tema e alguns de seus desdobramentos políticos, de forma a contribuir com as interpretações das linguagens utilizadas, sejam elas textuais ou imagéticas. Além das cores, tipografia, ilustrações e fotos, serão referenciadas as apropriações de conteúdos e estilos de outros campos da produção de imagens. Ressalta-se a amplitude da mobilização, que foi constituída por diferentes movimentos sociais, sejam eles ligados a artistas e intelectuais, sindicalistas e movimentos femininos. Os resultados visuais dessa produção de cartazes acompanham essa diversidade, apontando a complexidade de interesses políticos e abordagens comunicacio-nais na constituição do movimento pela Anistia.

PALAVRAS-CHAVE: Cartaz. Design. Anistia.abstract

The present paper analyses eight posters produced from 1975 during the intensification of social mobilization in Brazil for the Amnesty for political prisoners, from the scope of the study of design and communication. With the aim of deepening the analysis, some contextualization of the theme and their political results will be presented, with the purpose of an interpretation of the textual and visual languages used in the posters. Along with the colors, typography, illustration and pictures, will be placed with reference to the appropriation of contents and styles from other fields of production of images. The wide range of the mobilization, constituted by many different social movements, linked to artists and intellectuals, syndicalist and women's movements stands out. The visual results of these posters follow this diversity, pointing out the complexity of the political interests and communicational approaches in the constitution of the movement for the Amnesty.

KEYWORDS: Poster. Design. Amnesty.

Anistia em imagens: Cartazes dos movimentos pela anistia no Brasil

Kando Fukushima | [email protected] Lopes Pinheiro Queluz | [email protected]

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IntroduçãoEste artigo tem como objetivo discutir e apresentar alguns cartazes que

foram produzidos durante os anos 1970, particularmente aqueles cujo tema estava ligado aos movimentos pela Anistia dos presos políticos no Brasil.

Uma das interpretações recorrentes sobre o assunto argumenta que esses tiveram como principal desdobramento no campo legislativo a Lei de Anistia de 28 de agosto de 1979 (Lei 6.683/79). Ressalta-se, no entanto, que essa lei, precedida pela revogação do AI-5 (13 de outubro de 1978) e da revogação parcial do decreto de banimento dos exilados (29 de dezembro de 1978), possui uma série de controvérsias que serão brevemente apresentadas no decorrer do texto, assim como a noção de política pelo viés de Hannah Arendt (1998, 2012). O intuito dessa aproximação teórica é de aprofundar a reflexão sobre o design desses cartazes, a trama de significações envolvidas em sua produção, enriquecendo a análise da linguagem gráfica utilizada.

Os exemplos selecionados estão ligados a um movimento amplo de discussões a respeito da ditadura militar, da repressão, dos discursos políticos hegemônicos da época e da participação da sociedade civil nesse contexto. Os cartazes são assim compreendidos como parte da História da resistência ao autoritarismo institucionalizado do Estado.

Quando se trata da relação entre a produção de artefatos gráficos e movimentos contestatórios, o cartaz é citado de forma recorrente e com bastante destaque na historiografia do design gráfico (HOLLIS, 2001; MEGGS, 2009; McQUINSTON, 1993, 2004, 2015; WEILL, 2010), embora seja possível identificar a importância de outros suportes como os panfletos e jornais, pinturas nas paredes e mais recentemente o uso intenso da internet, sobretudo das redes sociais digitais.

Downing (2004) utiliza o conceito de "mídias radicais" para um campo de ação da comunicação definidas como aquelas que expressam uma visão alternativa às políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas. Em exemplos em que a produção é de pequena escala, aos quais podemos incluir alguns dos cartazes desse texto, o autor aponta em suas considerações a possibilidade deles atingirem um significativo impacto social, mesmo que seus desdobramentos não sejam sempre dimensionáveis.

Sobre esse tipo de produção Susan Sontag (2010) afirma:

Enquanto a presença de pôsteres usados como publicidade comercial geralmente indica o nível em que uma sociedade se define como estável e em busca de um status quo econômico e político, a presença de pôsteres políticos geralmente indica que a sociedade se considera em estado de

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emergência (SONTAG, 2010: 217).

Com forte influência da Declaração Universal de 1948 (Comissão Nacional da Verdade, 2014; PIOVESAN, 2010), e de outros acordos sobre os Direitos Humanos, que defendem a universalidade e indivisibilidade desses direitos, o debate sobre a Anistia também é uma discussão correlata àquela que endossa a proibição da tortura sob qualquer circunstância, tema ainda pertinente na contemporaneidade, seja pela negação dos fatos ocorridos, seja pela persistência da prática.

Diante do contexto brasileiro da época, fica claro que a luta pela Anistia, dentre outras mobilizações sociais que conquistavam avanços políticos contra o regime ditatorial, evidenciava mais uma contradição entre o discurso hegemônico oficial e as responsabilidades de um futuro Estado de Direito.

Os cartazes analisados neste texto foram selecionados através de reproduções de obras do acervo do Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – CEDEM/UNESP, publicadas na Revista Anistia Política e Justiça de Transição (Ministério da Justiça, 2012) e no livro Os cartazes desta história, organizado por Vladimir Sacchetta (2012), que reúne cartazes de diversas coleções. Os exemplos apresentados ilustram uma parcela da diversidade de ações políticas que, enfatizando a luta pela Anistia, visava a conquista ampla da Democracia no Brasil.

Breve comentário sobre a Lei de Anistia no BrasilApesar de não ser o principal tema do presente texto, é importante

comentar brevemente alguns aspectos controversos da Lei da Anistia.

A Lei de Anistia no Brasil abrange os crimes políticos praticados entre 1961 e 1979. Embora muitos entendam que a tortura não possa ser considerada crime político, passível de anistia e prescrição (PIOVESAN, 2010: 100), persiste uma interpretação em que os crimes cometidos pelo Estado seriam também anistiados de forma “ampla e irrestrita”. Além disso, qualquer tentativa de “autoanistia” proposta em períodos de transição democrática são, na prática, insustentáveis sob o ponto de vista do Direito Internacional. Os que argumentam a favor da lei, defendem sua legitimidade, uma vez que a Lei de Anistia foi recebida pela Constituição de 1988. Podemos encontrar um resumo crítico desta perspectiva em Zaverucha (2010: 41):

Embora muitos temas da Constituição tenham recebido um tratamento progressista, este não foi o caso das relações civil-militares. A Constituição manteve muitas prerrogativas militares não democráticas existentes na Constituição autoritária passada e chegou a adicionar novas

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prerrogativas. No Brasil de 1988, os políticos optaram por não questionar devidamente o legado autoritário do regime militar.

Uma revisão na Lei de Anistia foi solicitada pelo Conselho Federal da OAB (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental /ADPF no153) em 2008, que visava anular o perdão aos torturadores, mas foi julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010.

Mais recentemente, em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), também discutiu uma nova análise da Lei, diante da prerrogativa de fazer recomendações que evitem a repetição dos crimes investigados. Reforçando os argumentos anteriores, cita-se do Relatório final da CNV (2014, volume I: 341):

A proibição da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes é reconhecida como absoluta, e não pode ser invocada nenhuma circunstância especial para justificar seu descumprimento, como situações de guerra, Estado de sítio, emergência pública ou outros tipos de ameaça a segurança do Estado. (...) A proibição da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes é considerada uma norma imperativa do Direito Internacional (ou norma de jus cogens). Isso significa que, diante da gravidade de tais condutas, mesmo os Estados que não estejam vinculados aos tratados sobre a matéria devem respeitar essa proibição.

Para analisarmos o caso particular brasileiro e sua relação com o Direito Internacional, podemos citar a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica) e a formalização da impossibilidade sob o ponto de vista jurídico internacional de dar anistia aos crimes de tortura. Essa convenção estabeleceu, posteriormente, para o cumprimento de suas diretrizes, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Diante da ratificação do Governo Brasileiro em 25 de setembro de 1992 dessa convenção, o Estado brasileiro tem o dever de investigar, processar, punir e reparar as práticas de tortura, pois tratam-se nessa perspectiva de crimes contra a humanidade.

O não cumprimento pleno desses deveres causa uma "fenda" ou "fratura" entre memória e História nas palavras de Brepohl (2012), que contamina o presente. Coloca apenas no campo da memória, frágil e fadada ao esquecimento, a separação entre a vítima e o criminoso. Citando Janaína Teles, a autora nos alerta que "podem ser encontrados dois sentidos para o termo anistia: anamnesis, que significa trazer à lembrança e amnêstia, que significa esquecimento" (BREPOHL, 2012: 142).

Os que são contrários à revisão da Lei envolvem, dentre outros, os que defendem a anistia de “mão dupla”. Argumentam que a redação atual é

1 As declarações do Ministro foram publicadas em notícia do sítio eletrônico do próprio STF, a respeito do julgamento do pedido da OAB de revisão da Lei de Anistia mencionado anteriormente (ADPF no153). Ressalta-se que a votação foi de 7 a 2 contra o pedido de revisão. As ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, e os ministros Eros Grau, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso votaram contra a revisão. Apenas Ricardo Lewandowski e Ayres Britto defenderam a revisão.Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.

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decorrência de movimentos sociais legítimos e é indissociável do processo de transição política da época. Como exemplo desse tipo de entendimento conservador, podemos citar o ministro do STF, Cezar Peluso1, para quem os crimes conexos mencionados no artigo 1º (parágrafo 1º)2 , se estenderiam a qualquer tipo de crime.

Mesmo considerando a redação atual, pode-se argumentar que a interpretação recorrente, que perdoa os torturadores diante das circunstâncias, é questionável. Conforme Piovesan (2010: 99-100):

(...) há que afastar a insustentável interpretação de que, em nome da conciliação nacional, seria uma lei de "duas mãos", a beneficiar torturadores e vítimas. Esse entendimento advém da equivocada leitura da expressão "crimes conexos" constante da lei. Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas que se encadeiam em suas causas. Não se pode falar em conexidade entre fatos praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou a estas, e não àqueles; perdoou as vítimas, e não os que delinquem em nome do Estado.

Diante desse contexto, pode-se dizer que a ação política, interpretada apenas pela noção do Direito, possui restrições na prática cotidiana. Uma perspectiva crítica relacionada a esta é apresentada por Hannah Arendt (2012) em outros contextos (ex: relação entre África e Europa no século XIX). A autora faz uma reflexão sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem, questionando uma noção de “Direito Universal”, “natural e inalienável”, distante da pluralidade das relações sociais (DUARTE, 2010; GRECO, 2003) e que precederia o “direito do cidadão”. O princípio dos Direitos do Homem, era limitado dentre outros motivos por duas questões fundamentais: a ausência de uma autoridade que estabelecesse sua defesa e garantia de tais direitos e a abstração da ideia de um “Homem” único, universal.

Por esse viés, na defesa de interesses legítimos, exige-se o exercício da política, deve-se agir (ação política) contra a violência, garantir o “direito a ter direitos” sendo essa a condição para a cidadania. Esse cidadão não é um “ser humano abstrato” (ARENDT, 2012: 396), mas interage numa complexa trama social, inserido numa comunidade política específica. “A política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas” (ARENDT, 1998: 21). Sua negação é percebida mais claramente quando afastados de qualquer noção de pertencimento, situação em que perde sua dignidade.

A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz. Algo mais fundamental do que a liberdade e a justiça, que são os direitos do cidadão, está em jogo quando deixa de ser natural que um homem pertença à comunidade em que nasceu, e

2 Lei 6.683/79. Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm> Acesso em: 08 de agosto de 2015.

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm> Acesso em: 08 de agosto de 2015.

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quando o não pertencer a ela não é um ato da sua livre escolha, ou quando está numa situação em que, a não ser que cometa um crime, receberá um tratamento independente do que ele faça ou deixe de fazer. Esse extremo, e nada mais, é a situação dos que são privados dos seus direitos humanos. São privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem. (ARENDT, 2012: 403)

No contexto dos governos autoritários, as mobilizações políticas são cerceadas, e a prática da subordinação do legislativo e do judiciário durante todo o período não seria facilmente superada pelos acordos estabelecidos no período de transição, como se verificou no caso da Lei da Anistia.

Cartazes do movimento pela Anistia no BrasilCom os cartazes do movimento pela Anistia apresentados a seguir,

pretende-se evidenciar e discutir algumas das linguagens gráficas utilizadas pelos movimentos sociais envolvidos na resistência como crítica ao governo autoritário brasileiro da época. Dentre os exemplos, a escolha se pautou pela relação desses cartazes com movimentos sociais diversos que tratassem a questão da Anistia de forma explícita, além de representarem a utilização de uma diversidade de abordagens visuais para um mesmo tema.

A ONU declarou, em 1975, o "Ano Internacional da Mulher" e, no Brasil, foi criado o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), cujo nome da advogada Therezinha Godoy Zerbini se destaca, sendo ela mesma uma vítima da repressão política. O MFPA é considerado o primeiro movimento legalmente constituído de oposição ao regime militar (DEL PORTO, 2009).

Os cartazes produzidos neste contexto, comumente faziam referência ao movimento de 1945 que teve importante participação feminina na luta pela Anistia durante o Estado Novo. Assim, estes cartazes se prestavam a destacar a recorrência histórica, a memória das lutas sociais e o papel feminino nesses embates políticos.

A figura 1a mostra um desses cartazes, com a palavra "Anistia" se sobressaindo no topo e na base lemos 1945/1975 em destaque. Uma tipografia sem serifas3 é utilizada nessa parte, sempre em caixa alta, com bastante peso e ligeiramente condensada.

As barras da letra "A" se destacam na composição da palavra "ANISTIA", pelo contraste de espessura, sendo muito mais finas, assim como o vazio entre as letras "S" e "T", provável resultado das restrições dos ajustes de kerning, que embora fossem recorrentes, eram mais limitadas nos impressos dos anos 70 do século XX do que nos dias atuais. Os anos 1945/1975, colocados um sobre o outro, compartilham o número 5, explorando sintaticamente, a recorrência do

3 Ainda que não exista um consenso sobre as categorizações da tipografia (SILVA; FARIAS, 2005), uma vez que a produção dos cartazes desse artigo foi realizada em um período anterior à prática generalizada da editoração eletrônica e seus desdobramentos na tipografia, utilizaremos a classificação tipográfica baseada na Vox-ATypI como apresentada por Niemeyer (2006:50), particularmente em suas grandes classes: romanos, sem serifa (lineares), incisos, manuais, manuscritos, góticos (fractur/blackletter) e não latinos (orientais). As subclasses serão citadas pontualmente.

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5, e semanticamente funciona como um elo entre as duas datas, celebrando graficamente esse período de luta e a trajetória da reinvindicação pela Anistia.

Em sua base, o texto "movimento feminino pela anistia" está escrito em uma única linha, toda em caixa baixa, com um peso médio (ou regular), reforçando o contraste com a palavra "ANISTIA" no topo. Destaca-se que o uso de uma tipografia sem serifa neogrotesca como auxiliar para textos complementares, será recorrente em todos os cartazes desse artigo.

A marca do MFPA, uma pomba desenhada, signo icônico facilmente reconhecível apesar da estilização, cuja conotação nesse cartaz é claramente a ideia de "paz", como significação dessa pauta. Entende-se significação como processo descrito por Pignatari (1995: 91), ou seja, a denotação mais a conotação, considerando-se o repertório e o contexto. O conjunto formado pela sigla, incorporada ao desenho, ocupa a maior parte da composição, no centro da página. A inclinação da ave reforça a diagonal ascendente, como se estivesse decolando, com a cabeça apontada para o canto superior direito. Sua sombra projetada, ao invés de ocultar algo, desvenda uma rica textura de diversos tipos de folhas (figura 1b). Este recurso visual amplia a sensação de movimento e cria o efeito de sentido de tempos sobrepostos, de passagem dos anos, mas reiterando a ideia de resistência. O cartaz é impresso utilizando uma única cor. Nesta versão do cartaz, foi utilizada a cor "rosa" (provavelmente a tinta magenta), que sintetiza sua associação com a ideia de "feminino".

Figura 1a: Cartaz do Movimento Feminino pela Anistia, 1975.Figura 1b: Detalhe da sombra projetada.Fonte: Ministério da Justiça (2012: 239).

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Na Figura 2a o conceito da sombra é novamente utilizado, entretanto, dessa vez, de forma bem-humorada. O cartaz "Saia da sombra diga conosco: Liberdade", também de 1975, faz referência ao anúncio de Lugolina. O remédio do Dr. Eduardo França, em forma de loção, era recomendado na época para as mais variadas doenças e foi popular no Brasil, tendo sido comercializado desde o final do século XIX. Dentre seus "reclames" impressos mais famosos, uma série delas utilizava a imagem de rostos de quatro mulheres anunciando cada uma delas as sílabas do nome do remédio com os dizeres no topo "Diga Conosco", ou 'Diga Comnosco' na publicidade original (figura 2b). A referência torna-se cômica, não só pela ideia que associa a liberdade a um remédio, mas, também, quando constatamos que o medicamento era originalmente voltado para as mais diversas mazelas, até mesmo para a prevenção da sífilis, ou um "preservativo das doenças secretas".

No cartaz, a referência ao movimento político do Estado Novo aparece na base da composição e é textual. Podemos ler: "memória à mulher brasileira na vitoriosa luta pela anistia geral - 1945". A transição dos rostos do fundo vermelho-alaranjado4 para o fundo branco e a abertura gradativa dos lábios constroem visualmente a sonoridade, culminando no grito de liberdade que estava preso nas gargantas das mulheres e de todo o país. A escolha da cor intensa parece evidenciar a potência coletiva, uma vez que cria unidade entre os vários rostos desenhados e os signos verbais com o nome do movimento e a informação sobre a história de luta das brasileiras.

Figura 2a: Cartaz "Saia da sombra diga conosco", 1975. Figura 2b: Anúncio de Lugolina, [191-] Fonte: Ministério da Justiça (2012: 227) Fonte: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (2008: 46)

4 As referências às cores são aproximadas por conta da degradação da cor da tinta e da qualidade das reproduções consultadas, sendo que este cartaz, por exemplo, foi produzido há mais de 40 anos.

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Embora na base do cartaz, abaixo dos dizeres "LIBERDADE", utilizem a tipografia de forma bastante convencional, apenas com um deslocamento para a esquerda na composição geral, as letras que acompanham a ilustração propriamente podem ser consideradas bastante expressivas. Suas formas remetem a uma tipografia sem serifa, desenhada à mão, com uma série de indícios desse processo, como as letras repetidas que sempre são diferentes (ex: letra "A") ou os espaçamentos e alinhamentos irregulares.

O uso da imagem aqui complementa, em um nível bastante sofisticado, o texto verbal (SANTAELLA; NÖTH, 1998 : 54), uma tradução intersemiótica que extrapola a denotação mais evidente de mulheres em uníssono fazendo uma renvidicação, com outros repertórios, da publicidade, e contextos diversos, sendo a imagem/signo o próprio contexto da imagem. Sontag (2010: 214) discute a "citação" como elemento constante na criação e estética de cartazes. Pignatari (1995:119), reflete sobre essa questão em outro contexto:

O significado de um signo é um outro signo. Podemos acrescentar: dentro do mesmo código e/ou extra-código, num processo necessário de intersemiotização. O significado de uma arquitetura é outra arquitetura, o significado de uma igreja é outra igreja – até a primeira, quando, conforme Hegel, um deus a habitou.

Parafraseando o autor, podemos dizer que o significado de um cartaz é outro cartaz.

Referências a personagens populares, muitas vezes já associados com a crítica ao governo, também eram encontrados em cartazes do movimento pela anistia. Graúna, Zeferino e Bode Orelana, personagens de Henfil5 (1944-1988) recorrentes no jornal "O Pasquim", são utilizados no cartaz da figura 3. Esse tipo de estratégia de uso de imagens facilita a interpretação dos signos, novamente evidenciando a intersemiose como aspecto fundamental para a análise de cartazes.

A sempre faminta Graúna, com seu corpo sintético, praticamente um ponto de exclamação em diagonal, tem o olhar raivoso. Zeferino segura o balde de tinta que o letrado Bode Orelana acabou de usar para escrever em caixa alta: ANISTIA! Ambos encaram o leitor do cartaz, indignados, com os braços na cintura. Os gestos, os olhares e a expressão corporal dos personagens parecem reforçar essa expectativa de uma atitude, de uma resposta nossa.

5 Henrique de Souza Filho, conhecido como Henfil, foi um cartunista e jornalista mineiro de Ribeirão das Neves, foi atuante em movimentos sociais e políticos no Brasil, principalmente durante a ditadura militar. É irmão do sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho (1935-1997). Além dos personagens mencionados, foi também criador dos frades (Fradim) Cumprido e Baixim e Ubaldo, o paranóico. Escreveu alguns livros como o "Diário de um cucaracha" (1976) e "Henfil na China" (1980).

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Além do uso do ponto de exclamação, o próprio resultado plástico da palavra "anistia" já conota urgência. As letras foram desenhadas com pinceladas grossas e dialogam com os grafites e pichações feitos às pressas, que ocupam os muros das cidades com protestos e palavras de ordem. Os pingos escorrendo da tinta ainda fresca possibilitam pensar na atualidade do significado, tratando o termo como algo sempre presente, essencial a qualquer época. O ponto de exclamação transforma a palavra em um imperativo, uma ordem a todos os leitores. O signo linguístico não é separado da linguagem plástica do desenho, mas se complementam.

Esse cartaz foi utilizado como publicidade da peça "Revista do Henfil", que adaptava seus personagens para o teatro. Escrita por Henfil e Oswaldo Mendes, a peça foi produzida por Ruth Escobar que, dentre suas ações na militância política, cedeu o espaço de seu teatro para a reuniões do Comitê da Anistia Internacional e para o I Congresso Nacional pela Anistia.

Além da caligrafia que é utilizada nas palavras "anistia" e "revista do Henfil", o resto do texto é composto com uma tipografia sem serifa, e apresenta o local da apresentação e a data.

Figura 3: Cartaz da peça "Revista do Henfil", 1978.Fonte: Ministério da Justiça (2012: 251).

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Embora as críticas dos personagens estivessem relacionados ao tema, o modo como o material gráfico foi elaborado transformou definitivamente o cartaz da peça de teatro em parte da campanha pela Anistia.

A figura 4 é do Comitê Nacional Preparatório para o “XI Festival mundial da juventude e dos estudantes pela solidariedade anti-imperialista, a paz e a amizade”, evento realizado em Cuba, em 1978.

Os dizeres “Brasil, Anistia, Liberdade, Democracia” estão em destaque na parte superior do cartaz, em caixa alta, e tudo foi impresso nas cores verde e amarelo. Se, por um lado, essas cores poderiam nos remeter ao discurso visual ufanista oficial, é também uma paleta que associa o movimento de resistência com os símbolos nacionais. As palavras estão escritas em caixa alta, sendo que "BRASIL", está com o tamanho da fonte tipográfica ligeiramente maior que as outras.

Logo abaixo, uma sequência de três fotos, como quadros isolados de um filme, ou uma história em quadrinhos, mostra, primeiramente, um jovem segurando a bandeira do Brasil, diante do avanço da polícia militar, numa evidente ilustração da ideia de resistência.

No segundo quadro, o mesmo manifestante encontra-se cercado de policiais que marcham em sua direção. Novamente, assim como no uso das cores, verificamos uma contradição no nível semântico. O rapaz segura o símbolo máximo de uma ideia tradicional de país e está diante de forças policiais que, em nome da ideia de um interesse nacional, está prestes a reprimir a manifestação.

Finalmente, o último quadro mostra o que parece ser o resultado de uma investida violenta dos policiais, pois vemos o rastro de fumaça de uma bomba em direção a um grupo de manifestantes. As três imagens estabelecem contrapontos às palavras anistia, liberdade, democracia, evidenciando as contradições entre os discursos patrióticos e as estratégias de repressão. A disposição das palavras, uma embaixo da outra, cria uma relação com as fotografias e sugerem o desejo de transformar essa narrativa sequenciada. A maneira como a informação sobre o evento aparece na lateral, acompanhando as cenas no sentido oposto, evoca a presença dos movimentos de resistência ao longo dos anos, tentando inverter/reescrever a história.

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O uso de uma narrativa, construída no exemplo com as três imagens, amplificam a dramaticidade da mensagem em cartazes (LUPTON, 2015:160), ao criar tensão e expectativa, sintetizando um evento, mas com começo, meio e fim. Poderíamos dizer que as fotografias são, afirmações da existência do objeto, no sentido de uma análise peirceana (SANTAELLA; NÖTH, 1998 : 148-150), pela sua relação física com a manifestação registrada especificamente, mas também a generalização das várias formas de manifestações políticas de resistência.

A diversidade de demandas sociais era ampla e envolvia, além das questões mais evidentes, como o retorno dos exilados, outras pautas específicas dos trabalhadores.

Outro objetivo dos “Movimentos de Anistia” era interpelar a sociedade sobre o significado e a importância da luta pela anistia, o que não se baseava apenas no fato de esta ter um significado “humanitário e justo”; a anistia também possibilitaria a reintegração das lideranças, dos ativistas comprometidos com as lutas pelos “direitos humanos” e pelo fim da ditadura, pelos direitos trabalhistas e por melhores condições de vida

Figura 4: Cartaz do XI Festival mundial da juventude e dos estudantes pela solidariedade anti-imperialista, a paz e a amizade, 1978.Fonte: Ministério da Justiça (2012: 233).

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da população. Esse foi um caminho buscado para estabelecer, mais uma vez, vínculo com os movimentos operários (DEL PORTO, 2009: 57).

O cartaz da figura 5, embora tenha sido produzido pelo Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Paulo, reforça a ideia "movimento popular amplo", e acrescenta de forma mais explícita uma das pautas que estavam diretamente relacionadas ao movimento pela Anistia: a revogação da Lei de Segurança Nacional.

No topo do cartaz, em letras grandes, repetindo a diagramação onde a palavra Anistia é maior do que o resto, aparece o mote defendido pelos diversos movimentos: Anistia ampla, geral e irrestrita.

A composição de sete fotos coloca no centro uma grande imagem de uma ação grevista, totalmente preenchida por uma multidão de manifestantes com os braços erguidos, retratados de cima para baixo (plongée). Com uma diagramação inclinada, no canto esquerdo, lemos "pela unidade sindical", acentuando a dinâmica da imagem.

Figura 5: Cartaz do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Paulo, s/d. Fonte: Sacchetta (2012, p.88).

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Esta imagem é destacada pelo seu tamanho, mas, também, por ser tematicamente a mais importante. Nela, não aparecem agentes da repressão. Ao redor dela, fotos menores de diversos momentos de repressão evocam uma narrativa visual, onde é possível observar que apesar da fragmentação e do isolamento, as mobilizações persistiram e mantiveram a resistência coletivamente. As fotos possuem, como no exemplo anterior, uma dimensão indicial, dos eventos específicos, e simbólica, como conjunto de manifestações e ideia de luta. No entanto, por representar diversas mobilizações, e não uma sequência de imagens de um mesmo evento, conota de forma mais evidente a noção de amplitude, diversidade e constância.

No dia 14 de fevereiro de 1978 foi fundado Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), no Rio de Janeiro. Como um grupo de convergência de diversos setores da sociedade, entre eles artistas, advogados, estudantes e membros da Igreja Católica. O CBA se tornaria a principal entidade dessa causa, por conta de sua amplitude nacional, com comitês locais espalhados pelo Brasil e pela sua representatividade diversificada. Os congressos organizados pela entidade foram importantes momentos de articulação entre os setores que combatiam a repressão e buscavam o processo de democratização.

O cartaz "Anistia para todos" (figura 6) do Comitê Londrinense pela Anistia e Direitos Humanos, Seção do CBA, usa uma foto em alto contraste de uma cela de prisão. Sobre a palavra Anistia, vemos uma pomba voando, com a mesma conotação do primeiro cartaz apresentado, ou seja, reiterando o simbolismo de paz. Aqui, ela está na mesma coluna da foto menor na base do cartaz, que mostra as mãos agarradas às grades, ressaltando a contradição do que era experimentado na realidade do país. O efeito do preto e branco acentua a expressividade da peça gráfica e a gravidade do tema. Diferentemente dos outros cartazes apresentados, esse exemplo possui um segundo nível de leitura, mais focado em informações textuais, onde dois pequenos parágrafos6 descrevem a situação dos exilados, citam dados, explicam os fatores específicos da luta armada7. Esse texto está diagramado em duas colunas na base do cartaz. No espaço de uma terceira coluna, uma imagem destaca as mãos segurando as grades de uma prisão.

6 Na base do cartaz podemos ler: Há crianças brasileiras, lá fora, que falam Português com sotaque alemão, francês, mexicano. É o Português que aprenderam com seus pais exilados. Vamos trazer essas crianças para casa. Vamos conquistar Anistia para todos: os nossos 10 mil exilados, os 5 mil cassados, aposentados, reformados ou demitidos compulsoriamente. Os estudantes impedidos de estudar pelo decreto 477. As dezenas de brasileiros desaparecidos. e principalmente os 138 banidos e 200 presos políticos. Há brasileiros presos ou banidos por terem lutado armados contra um Estado de Exceção. Há 10 anos, quando eles optaram pela política armada, o Congresso estava fechado, os sindicatos sob intervenção, as escolas ocupadas pela polícia. Portanto nós não podemos julgá-los, não devemos e não queremos. Queremos Anistia para todos. Quem não aceita democracia relativa, não pode aceitar anistia pela metade. Apóie e divulgue a campanha pela Anistia Ampla e Irrestrita.7 Mesmo fugindo do escopo do texto, sobre a especificidade da

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resistência armada, suas diferenças com a violência de Estado e o conceito de Estado ilegal, recomenda-se a leitura de Safatle (2010).

A palavra "ANISTIA", aparece novamente em destaque, com letras em caixa alta e com o tamanho do corpo da letra bem maior que o resto do texto. "PARA TODOS" é colocado centralizado, logo abaixo. A pomba desenhada voa e aparece em um plano acima das palavras, que, na relação com as imagens, conota, também, nesse contexto, a ideia de liberdade.

A imagem principal, no centro do cartaz, mostra um prisioneiro olhando em direção da câmera, que se encontra na altura do olhar dele. A ausência de cores e o uso do alto contraste torna o resultado visual dessa fotografia próximo de um grafismo abstrato, com a grade da prisão fragmentando a imagem, ou, no contexto do cartaz, a própria ideia de indivíduo encarcerado, em oposição ao pombo desenhado logo acima.

Além dos movimentos nacionais pela Anistia dos presos políticos, organizações internacionais pelo Direitos Humanos, assim como de outras iniciativas de crítica ampla ao modelo de governo brasileiro da época, produziram cartazes com essa temática ao redor do mundo. A presença de exilados brasileiros em diversos países contribuíram para a organização de eventos que discutiam o tema, assim como demonstrava uma das facetas das disputas pela hegemonia política na região da América Latina.

Figura 6: Cartaz do Comitê Londrinense pela Anistia e Direitos Humanos, Seção do CBA, s/d. Fonte: Ministério da Justiça (2012: 255).

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Em cartazes utilizados em países como a Dinamarca (figura 7), de 1977, a referência ao Brasil é feita de forma elaborada, ao utilizar como ilustração um desenho que remete à linguagem gráfica das xilogravuras adotadas na literatura de cordel nordestina. Xilogravuras desse tipo tinham bastante prestígio internacional, sendo que a venda dessas gravuras de origem popular para o mercado externo chegou a ajudar no financiamento da resistência à ditadura no Brasil (SACCHETA, 2012: 48).

O texto na parte superior novamente reforça um conjunto de conceitos: pela anistia ampla, contra a ditadura e contra o imperialismo ", e a palavra Brasilien aparece em destaque na base. A tipografia mistura a fonte sem serifas, utilizada nesse exemplo como auxiliar, com uma outra romana mecanizada (slab serif ou egípcia) para os textos em destaque.

Na imagem principal, com desenhos estilizados, um cabo do exército decepa uma pessoa amarrada, sendo que a cabeça deste se junta a outras também recém cortadas. Um detalhe torna este executor fardado, representante do Estado, mais ambíguo em suas ações, pois carrega em uma das mãos um maço de dinheiro. O ato brutal é presenciado por um casal aparentemente assustado, que se abraçam no canto esquerdo. Um “coronel”, não em seu sentido hierárquico militar, no centro da composição observa a execução. Ele é representado vestido com um paletó

Figura 7: Cartaz dinamarquês de campanha pela anistia no Brasil, 1977.Fonte: Sacchetta (2012: 64).

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e gravata, chapéu e botas com esporas, acompanhado de outro soldado armado, indicando as relações entre o poder público e os interesses privados.

Em contraste com a associação mais direta aos temas visuais nacionais, o cartaz alemão de 1978 (figura 8), destaca a duração de 14 anos da ditadura no Brasil e pede a anistia geral. Esse exemplo é visualmente mais próximo de cartazes tradicionais onde a simplificação da mensagem e desenhos sintéticos são o destaque da composição.

A tipografia foge da escolha dos outros cartazes apresentados, tanto pelo uso de uma da classe romana (serifada) como na escolha da redação do texto em caixa alta e baixa. Assim como no cartaz dinamarquês, uma fonte secundária sem serifa é utilizada, no texto do interior do desenho. As letras na parte superior reforçam a ideia de ritmo, com pequenos deslocamentos nas linhas de texto, como num “tic-tac” de um relógio de corda.

Uma ampulheta esquematizada utiliza sangue no lugar da areia, ressaltando o caráter brutal do regime. A cor vermelha é utilizada exclusivamente na representação do sangue. De maneira bem esquemática, a linguagem gráfica destaca a ideia de passagem do tempo associada à violência.

Figura 8: Cartaz alemão de campanha pela anistia no Brasil, 1978.Fonte: Sacchetta (2012: 25).

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ConsideraçõesEntende-se que, embora seja apenas uma pequena fração do que constituiu

a luta pela Anistia à época, os cartazes são, também, parte das táticas utilizadas para a busca do exercício da liberdade, constituída essencialmente na esfera pública, política, pelo discurso e pela ação. Observa-se que o design desses cartazes comumente se apropria de imagens e conceitos que circulam na mídia tradicional e estabelecem ligações com outras fontes do repertório iconográfico social.

Pelo amplo envolvimento de diversos movimentos sociais, cujas pautas não eram necessariamente as mesmas, ainda que unidas por uma reinvindicação em comum, foi possível verificar abordagens visuais diversas, com ênfases em aspectos específicos, como quando comparamos um cartaz produzido pelo Movimento Feminino pela Anistia no Brasil e outro do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Paulo, ou ainda com um cartaz de denúncia à violência no Brasil produzido na Alemanha.

Ressalta-se que restringir o debate sobre a Anistia a partir do ponto de vista do Direito limita sua percepção sob seu aspecto político, nos termos de Hannah Arendt. Segundo Duarte (2010: 03):

Para Arendt, a ação política genuína sempre traz o novo e, dada sua imprevisibilidade, ela transcende e desafia os limites do ordenamento legal pré-estabelecido, transformando-o necessariamente. Em outros termos: a política, quando exercitada pelos atos e palavras livres dos cidadãos, sempre vem a exceder o direito, e seria vão tentar cercear de uma vez por todas tal produtividade política pelo recurso ao direito.

Nesse sentido, entende-se a mobilização pela Anistia como processo político, constante e inacabado, cujo objetivo não pode ser alcançado sem se reconhecer as diferenças de interesses e seus conflitos. Esse movimento, cuja pertinência da reflexão a respeito é notadamente atual, busca o consenso ainda que necessariamente transitório, e é alcançado através da ação e do debate (DUARTE, 2010).

Ainda sob esta perspectiva, segundo Fabíola Brigante Del Porto (2009):

Ao mesmo tempo em que os diferentes atores se encontravam na cena pública e construíam suas identidades a partir de uma imagem “contra o Estado”, suas questões e demandas específicas se desenvolveriam e se expressariam na luta pela anistia, conforme essa se afirmava como “resgate de direitos” e agregava aquelas lutas específicas e vice-versa. Dentro dessa perspectiva, então, é possível dizer que a própria interpretação, pelos movimentos, de que a anistia havia sido conquistada demonstrava um novo entendimento e elaboração dos direitos e também a consciência da legitimidade de suas lutas e a “aspiração de um poder civil e cidadão” (DEL PORTO, 2009: 54).

A análise dos cartazes apresentados pontuam esse processo num momento

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crítico da História brasileira e servem como reflexão sobre a comunicação, a linguagem e o design. São evidências materiais da constituição dos movimentos de resistência contra a opressão. Espera-se que discutir essas peças gráficas seja um exercício mais próximo do significado de anamnesis (trazer à lembrança, reminiscência) evocado pela palavra Anistia.

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autores

Kando Fukushima | [email protected] Doutorando do Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade da

Universidade Tecnológica Federal do Paraná

Marilda Lopes Pinheiro Queluz | [email protected] Professora do Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade da

Universidade Tecnológica Federal do ParanáSEMEIOSIS 2019. ALGUNS DIREITOS RESERVADOS. MAIS INFORMAÇÕES EM SEMEIOSIS.COM.BR

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