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1 ANO IV—#42 Vitória/ES Julho de 2018

ANO IV #42 Vitória/ES Julho de 2018 · exigem devoção e perdão, humildade e abnegação. Outro exemplo é a pobreza: sem perceber a miséria moral que é a de- sigualdade

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ANO IV—#42 Vitória/ES Julho de 2018

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Editor

Raphael Faé Baptista

Editoração:

Felipe Sellin

Colaboram nessa Edição:

Felipe Sellin

Franklin Félix

Raphael Faé Baptista

Suellen Cruz

Interaja conosco, sua opinião

é muito importante para nós:

[email protected]

Edição n° 42—Junho de 2018

6.620 seguidores na página

2.282 pessoas alcançadas

60 curtidas em publicação

32 compartilhamentos

Editorial Envolvidos com a realização do I Fó-

rum Social Espírita, em Vitória/ES, no

dia 04 de agosto de 2018, com a temáti-

ca “Espiritismo e Transformações Soci-

ais”, lançamos a edição de Julho com

um pouco de atraso (programação abai-

xo).

Nem por isso deixamos de expor ao

público as reflexões mais avançadas

sobre espiritismo e sociedade, sempre

buscando respostas cada vez mais apro-

priadas para uma sociedade regenera-

da, justa e fraterna, e uma humanidade

mais íntegra e capaz de realizar os seus

poderes com plenitude.

Nas últimas edições, preferimos publi-

car um jornal mais enxuto, com uma

quantidade menor de textos, para que

as matérias pudessem ser melhor apre-

ciadas. E, no contrafluxo de nosso tem-

po em que só as novidades passageiras

interessam, também estamos republi-

cando textos, de nossos colaboradores

ou não, que são veiculados por outros

canais. Afinal, costumam ser reflexões

excelentes, que merecem visibilidade e

novas leituras e releituras.

Desse modo, reproduzimos o texto pri-

moroso de Franklin Félix, colaborador

da Carta Capital, sobre o tema “Fora da

justiça social não há salvação”. Ocupan-

do um espaço importante na mídia,

Franklin consegue levar ao grande pú-

blico importantes referências espíritas

sobre o mundo e a sociedade.

Em seguida, Suellen Cruz buscando

debater intolerância nos levou a refletir

sobre a necessidade da voz dos oprimi-

dos e da resistência.

Nosso Editor, Raphael Faé aborda so-

bre a relação entre espiritismo e socie-

dade, já vislumbrando a sua participa-

ção no I Fórum Social Espírita, que

ocorrerá em Vitória. E mais uma vez,

reflete sobre a violência na sociedade

brasileira com o assassinato de um in-

dígena que buscava prestar solidarieda-

de e uma pessoa vitima de homofobia.

Tenham uma excelente leitura!

Os editores

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SOCIEDADE

Envolvidos na organização do I Fórum

Social Espírita, em Vitória/ES, eu e Felipe

Sellin materializamos um desejo presente

desde que lançamos o Jornal Crítica Espí-

rita: abrir espaços para discutir espiritis-

mo e sociedade a partir de reflexões e

discussões dialéticas e críticas sobre os

caminhos, propostas e alternativas que o

espiritismo pode dar às complexas e mul-

tifacetadas sociedades do século XXI.

Ao abrir esses espaços, é necessário estar-

mos atentos aos perigos inerentes às leitu-

ras filosóficas do social. Se essa leitura –

qualquer que seja – não for capaz de per-

ceber e compreender as misérias e as ma-

zelas escondidas ou escancaradas nas

relações sociais, políticas e econômicas,

ou de perceber as incongruências que

compõem os nossos horizontes morais,

então essa leitura, muito provavelmente,

terá a tendência de se tornar em justifica-

tiva daquilo que há de pior e degradante.

Por isso, é tão comum que as análises

espíritas sobre os fatos sociais, quando

existem, sejam não somente superficiais,

mas avalizadoras do mal e da perversidão.

Achando que basta colocar as lentes do

espiritismo para compreender o mundo,

acabam não vendo as suas contradições,

ou não percebendo essas contradições

enquanto tais. Com isso, naturalizam os

processos de violência e as relações de

opressão e dominação como situações que

devemos “aprender a lidar”, em lugar de

aprender a superar.

Podemos citar, por exemplo, os casos de

desrespeito aos direitos da mulher. Inca-

pazes de perceber as desigualdades na

distribuição dos papéis sociais de homens

e mulheres, o problema deixa de ser essa

distribuição desigual para se focar na mu-

lher, a qual é duplamente punida: além de

suportar um peso social maior, ainda lhe

exigem devoção e perdão, humildade e

abnegação. Outro exemplo é a pobreza:

sem perceber a miséria moral que é a de-

sigualdade social por si só, encontram a

justificativa da pobreza nas vidas passa-

SOBRE ESPIRITISMO E SOCIEDADE

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das…

Com isso, precisamos compreender que,

ao lado das lentes do espiritismo, é neces-

sário também colocar as lentes da crítica,

que nos permite colocar em evidência as

misérias humanas e sociais que caracteri-

zam a nossa sociedade e o nosso tempo. E

quanto mais radical for essa crítica, ou

quanto mais arguto for o pensamento

crítico, a resposta da superação será cada

vez mas pertinente, necessária e verdadei-

ra.

Logo, toda leitura que queira dar respos-

tas avançadas e adequadas sobre a condi-

ção humana e social, deve, necessaria-

mente, proceder à crítica mais contunden-

te, profunda e grave dos modos de socia-

bilidade que o capitalismo impõe e dos

horizontes morais e ideológicos que os

integram.

Essas críticas nos levam vários caminhos

e possuem vários aspectos. Quero reter

dois deles: a) o moral, não só como obri-

gação, como “o que devo fazer”, mas tam-

bém sobre “o que devo amar”, dos mode-

los de elevação e plenitude e os modelos

de aviltamento que somos chamados a

aderir ou a evitar, e; b) o político, não

apenas no âmbito institucional e legal,

mas, mais amplamente, dos modos em

que nos organizamos e convivemos.

O espiritismo, em seu viés moral, ao recu-

perar a moral de Jesus, possui o problema

recorrente de fazer uma leitura muito

parcial e pequena. Esse Jesus, normal-

mente, é reapropriado só no domínio do

religioso e reconfigurado a partir do indi-

vidualismo liberal e da competição capita-

lista, e não como uma proposta revolucio-

nária de sociedade. E, no viés político, o

grande projeto do espiritismo é a regene-

ração, de contribuir na mudança da socie-

dade planetária de provas e expiações

para regeneração, e não na manutenção

das instituições que caracterizam um pla-

neta atrasado, também com base em Je-

sus, na implantação de uma nova ordem

política onde os fortes ajudam os fracos,

todos compartilham os bens da vida, nin-

guém se faz senhor de ninguém, o maior é

o que mais serve, etc.

Logo, ao nos colocarmos nessa aventura

de reler o espiritismo a partir do século

XXI, fica cada vez mais evidente que pre-

cisamos pensar e parir uma nova civiliza-

ção, que consiga reposicionar as bases nas

quais nos autocompreendemos num pata-

mar mais elevado, o que exige consciência

e postura crítica e criativa do que somos e

do que podemos ser.

Raphael Faé é editor do Jornal Crítica

Espírita.

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A proposta feita era que eu fizesse um

texto. Algo que pudesse ser publicado e

que, se possível, falasse sobre a intolerân-

cia, racismo e machismo. Sem saber como

iniciar, mergulho em textos e vídeos da-

quelas, que anterior a mim, travam a luta

por uma sociedade livre. Me deparo, desta

forma, com o último pronunciamento de

Marielle Franco na tribuna dos vereado-

res no Rj no dia 08 de março de 2018.

[...] Em tempos de justificativa

falsas sobre a crise e a precariza-

ção, a dificuldade da vida das mu-

lheres são apresentadas, e dificul-

dades reais.. Onde estão as vagas

das creches que foram prometidas

pelo prefeito Marcelo Crivela? Co-

mo ficam as crianças, nestes tem-

pos de intervenção?

... outro dia um vereador me ques-

tionava da onde eu tirava os dados

apresentados em relação a violên-

cia contra as mulheres. [...] As mu-

lheres quando saem as ruas na

manifestação, fazem porque entre

83 países, o Brasil é o sétimo mais

violento. Dados da OMS. Esse qua-

dro segue piorando, aumentando

6,5 no ultimo ano. Por dia, são 12

mulheres assassinadas no Brasil. O

ultimo dado que temos do Estado

do RJ, figuram 13 estupros por dia.

"VIVA ULSTRA!" (alguém grita da platéia

na tribuna)

Marielle silencia por alguns instantes,

encara firmemente a tribuna de onde saiu

o protesto e prossegue:

[...] Eu peço que a presidência da

casa, em caso de alguém vir atra-

palhar a minha fala, assim proceda

como a gente faz quando a tribuna

interrompe qualquer vereador.

Não serei interrompida. Não aturo

interrupções dos vereadores dessa

casa e não aturarei de um cidadão

que vem aqui e não sabe ouvir, a

posição de uma mulher eleita! [...]

O meu mandato é construído 80%

por mulheres. Por que a gente en-

tende que o lema: uma sobe e puxa

a outra, precisa ser efetivado. Uma

autora que eu gosto muito, Chima-

manda, diz que é imprescindível

que as mulheres que estão nos

espaços de poder tragam, deem o

pé, abracem, acolham e construam

com outras mulheres.

E depois de um discurso de mais de 10

minutos embasado em números e dados

que retratam a complexa situação da mu-

lher brasileira, Marielle finaliza seu dis-

curso citando Audre Lorde. “Eu não sou

livre, enquanto outra mulher for prisio-

neira.”

Eu não conhecia Marielle pessoalmente.

Conheci ela na mesma época em que fazí-

amos, aqui no estado do Espírito Santo, a

campanha pela eleição da Camila Vala-

dão. Foi nessa mesma época que eu tam-

bém conheci a Taliria, vereadora eleita em

Niterói; a Áurea, eleita em Belo Horizon-

te.

Todas negras. Potentes. Altamente quali-

ficadas.

Pessoalmente, eu não conhecia a Marielle.

Mas no dia 14 de março de 2018, eu não

consegui dormir. Muita gente não conse-

guiu.

Eu não sou livre, enquanto outra mulher for prisioneira.”

INTOLERÂNCIA

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A morte da Marielle foi muito representa-

tiva. A execução de Marielle foi muito

dolorida. Mesmo que muitos de nós não a

conhecêssemos, esse assassinato foi senti-

do como se uma irmã, uma prima ou uma

cunhada tivesse sido atingida por aqueles

tiros.

Jovem, negra, lésbica, socióloga, defenso-

ra dos direitos humanos, socialista, mãe e

uma das vereadoras mais votadas do RJ.

Que se levantou contra tanta coisa, contra

a intervenção, contra o genocídio. Que se

levantou lá. Onde poucas de nós conse-

guem chegar.

Atualmente, de cada 100 pessoas assassi-

nadas no Brasil, 71 são negras. 64% dos

presos são negros. A população negra

morre estatisticamente mais todos os

dias. Morre de bala, morre de fome, mor-

re na fila do SUS.

A morte de Marielle não é só de Mariele.

E ainda que tenhamos a consciência que

Marielle permanece viva na erraticidade,

agora, eu to falando de morte, de morte

do corpo físico.

De um pulmão perfurado por uma bala ou

de um crânio fraturado por um cacetete.

Eu to falando de 9 tiros no meio da noite

e quatro deles na cabeça. Eu to falando de

morte institucional. Eu to falando da ne-

gação do racismo dentro das universida-

des. Eu to falando pela opção de se colo-

car ao lado de gente que diz que não seria

atendido por um médico negro. De encar-

ceramento de quase 30 anos só por portar

pinho sol. Eu to falando de uma mulher

ser arrastada por cerca de 200 metros

com o seu corpo sendo segurado pela rou-

pa no porta malas de um camburão. Eu to

falando de adoecimento mental. Da into-

lerância dentro das salas de aula ou dos

grupos de pesquisa com as mulheres

mães, que na maioria das vezes são ne-

gras. Eu to falando de 5 jovens desarma-

dos, documentados, comemorando o pri-

meiro salário dentro de um carro parado

e levando mais de 100 tiros pela polícia.

Eu to falando da negação da importância

do corpo negro pra construção dessa soci-

edade. Eu to falando da invisibilidade dos

388 anos de escravidão nesse país. Eu to

falando de dezenas e dezenas que são

assassinados e não tem suas mortes divul-

gadas. Eu to falando de Damião e Ruan,

eu to falando de Amarildo. De Rafael Bra-

ga. Eu to falando daqueles que morrem

como se fossem bandidos, suspeitos de

portar uma arma quando na verdade car-

regavam o celular.

Eu digo que a gente precisa falar honesta-

mente sobre outra sociedade e para fazer-

mos um debate honesto sobre outra socie-

dade é olhar inclusive pros nossos privilé-

gios. É preciso pensar que somente nos-

sos anseios por “mais amor, por favor”

não tem bastado.

Porque o primeiro desafio pra quem é

preto, nessa sociedade, é sobreviver.

São mais de 4 meses sem saber quem

mandou matar Marielle. Mas a morte de

Marielle não é só de Marielle. E por não

ser só Marielle, é que vamos continuar

falando. Que vamos continuar lutando

por uma sociedade livre, onde verdadeira-

mente nos identifiquemos como irmãos.

Para finalizar, eu recito um trecho de uma

musica de Mc Carol:

"Nem sempre eu sou tão forte, mas vou tá

lá, gritando contra a morte. Gritando con-

tra o poder burguês machista branco.

Presente hoje e sempre, Marielle Franco."

Suellen Cruz é mestranda em políticas

sociais.

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Fora da justiça social não há salvação Allan Kardec, educador visionário e dono de uma visão progressista de justiça social, certamente atualizaria seu lema

Uma das principais características do

espiritismo, além da sua comunicabilida-

de com o mundo espiritual, da crença na

pluralidade das existências e da universa-

lidade dos ensinos dos espíritos, é o lema

“fora da caridade não há salvação”.

Este é o título do capítulo XV de

O Evangelho Segundo o Espiritismo. Por

ser uma doutrina cristã, com bases filosó-

ficas e científicas, vê no altruísmo e na

reforma íntima uma maneira de ascensão

espiritual.

A doutrina espírita, popularmente conhe-

cida por espiritismo, kardecismo ou espi-

ritismo kardecista, foi “codificada” – to-

mando corpo de doutrina – pelo pedago-

go francês Hippolyte Léon Denizard Riva-

il, sob o pseudônimo Allan Kardec.

Ela nasce na França do século XIX, genui-

namente ecumênica, visto que admitia

muçulmanos, judeus, católicos, protes-

tantes e ateus em seus cultos. Chegou ao

Brasil por volta de 1860, com os primei-

ros exemplares de “O Livro dos Espíritos”.

Teve, por meio da atuação de Bezerra de

Menezes e Chico Xavier, a oportunidade

de se popularizar pelo País.

Hoje o Brasil é quem mais reúne espíritas

em todo o mundo e, segundo o censo de

2010 do IBGE, são cerca de quatro mi-

lhões de adeptos. Ainda segundo o IBGE,

o espiritismo é uma das religiões que mais

cresce, sendo considerada uma doutrina

branca, escolarizada, cisgênera e heteros-

sexual.

Muito em virtude das características aci-

ma referidas, o movimento espírita brasi-

leiro tem protagonizado um dos maiores

retrocessos de sua história, aliando-se

com o que há de mais conservador, dog-

mático, retrógrado, intolerante e, infeliz-

mente, seguindo um caminho oposto

àquele de quando do seu desembarque.

Allan Kardec, discípulo de Pestalozzi e um

educador visionário, tinha um olhar pro-

gressista da justiça social. Defendia uma

educação gratuita de qualidade e a luta

pela emancipação das mulheres. Altruís-

ta, dotado de poderoso senso crítico e

espírito investigativo, estava sintonizado

com os debates filosóficos de seu tempo.

Poderíamos afirmar ousadamente que, se

Kardec vivesse nos dias de hoje, em vez de

“fora da caridade não há salvação”, teria

cunhado a expressão “fora da justiça soci-

al não há salvação”, muito mais ampla,

mais dialógica e mais próxima da noção

cristã de equidade.

Em tempos nebulosos como o atual, é

necessário defendermos o óbvio, dispu-

tando narrativas e retomando os passos

do mestre. Desta forma, nós, os espiritas

progressistas (há quem defenda que são

termos redundantes) temos a importante,

didática e amorosa tarefa de vencermos o

aspecto conservador que tem crescido no

Brasil e dentro das comunidades de fé –

ou puxado por elas.

O conservadorismo, ao ser guiado por

sensos de certo e errado tidos como abso-

lutos, é antagônico ao espiritismo. Nele,

não há espaço para o relativismo moral:

para o conservador, o fim jamais justifica

os meios.

Entre as principais características do pen-

samento conservador estão a atitude ne-

gativa em relação à mudança social, uma

visão desesperançada e pessimista da

natureza humana e a fé na correção moral

e política de atitudes e crenças.

Assim, é estranho constatar que boa parte

JUSTIÇA SOCIAL

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dos brasileiros defenda uma espiritualida-

de autêntica e, ao mesmo tempo, contente

-se em admirar ideologias que só servem

para atender a interesses materiais de

uma minoria, conservar a exclusão e con-

denar aqueles diferentes dos padrões ti-

dos como “corretos”.

Nossa luta por um movimento espírita

progressista afirma um profundo respeito

e um necessário compromisso em contri-

buir para se assegurar a dignidade de

todos, repudiando qualquer tipo de pre-

conceito e discriminação, dentro ou fora

das casas espíritas, que se utilizam de

argumentos pseudoespirituais (e pseudo-

científicos também) para oprimir, violen-

tar, excluir e estigmatizar.

O espiritismo pode ter um papel funda-

mental na superação das intolerâncias,

cumprindo sua missão de agente transfor-

mador, encampando discursos de acolhi-

mento e amor, respeitando a diversidade,

respeitando as orientações sexuais e iden-

tidade de gênero, combatendo o racismo,

o machismo e apoiando a luta de classes.

Agindo assim, estabeleceremos uma soci-

edade mais justa e mais diversa, uma casa

comum onde todos possam viver bem e

tenham acesso aos seus direitos, livres de

preconceitos e discriminações.

Kardec afirma na questão 803 do Livro do

Espíritos: “Todos os seres humanos são

iguais perante Deus? E a resposta é Sim,

todos tendem para o mesmo fim e Deus

fez as suas leis para todos/as. Dizeis fre-

quentemente: ‘O Sol brilha para todos/

as’, e com isso dizeis uma verdade maior e

mais geral do que pensais”.

Franklin Félix é um dos idealizadores

do Movimento de Espíritas pelos Direitos

Humanos. Escreve às segunda para a

Carta Capital. O texto foi originalmente

publicado em sua coluna e gentilmente

cedido pelo autor.

9

Na noite do dia 25.12.2016, o senhor Luiz

Carlos Ruas, 54, conhecido como “Índio”

e que trabalhava há 20 anos como vende-

dor na estação Pedro II, em São Paulo, foi

brutalmente assassinado nesse local por

dois homens que perseguiam um homos-

sexual e um travesti. Ao intervir na situa-

ção para protegê-los, Índio foi covarde-

mente espancado até à morte pela dupla.

Poderia ser só mais um homicídio a ser

contabilizado na Pátria da Violência. Mas

dessa vez não. Num país e num mundo

tão carentes de boas referências, Índio

nos deixou um exemplo de coragem em

tempos de covardia. Aliás, no vídeo que

registrou o seu espancamento, percebe-se

várias pessoas assistindo à cena e nenhu-

ma intervindo, ninguém ajudando. Ao

contrário, todas se afastam. 2000 anos

depois, a coragem de Jesus para intervir

em favor da mulher adúltera que seria

apedrejada continua significativa para

nós.

Segundo informações preliminares, um

dos autores do crime exibia, em seu perfil

nas redes sociais, uma foto com a camisa

de Jesus e outra foto com duas mãos uni-

das perfazendo a palavra Fé.

Isso era para ser uma estrondosa ironia.

Mas não é. Ao longo de milênios, Jesus

tem sido utilizado para justificar a violên-

cia e a morte, a opressão e a dominação, a

perseguição e o massacre. Isso continua a

todo o vapor, e os discursos e as práticas

de ódio e intolerância de setores políticos

e religiosos no Brasil têm feito o seu tra-

balho. Basta meia dúzia jogar as palavras-

chave para que uma multidão vá ao seu

encontro, mostrando que essa adesão

possui raízes profundas naquilo que efeti-

vamente somos.

E triste é ver que pessoas se usam do espi-

ritismo para fazer o mesmo: para separar

as pessoas, para diminuir a dignidade do

homossexual, para demonizar o travesti,

para culpar o pobre pela sua pobreza,

para espalhar o ódio e a cisão, a persegui-

ção e o açoite.

A questão é que Índio fez sua parte. Se-

gundo afirmam, era uma pessoa tranqui-

la, não se envolvia em confusão, trabalha-

va das 6 às 23 e vivia para o trabalho e a

família. Podia se achar quite para com

Deus, mas, mesmo assim, esteve do lado

de quem estava sendo pisoteado e humi-

lhado por uma sociedade estruturalmente

farisaica, violenta, desigual e injusta. Os

covardes também fizeram a sua parte, e

por isso o mataram ou foram cúmplices

de sua morte.

Mas quem encontrou um sentido para o

“Bem aventurados os que têm sede de

justiça” foi o Índio. Sua existência valeu à

pena num mundo onde ou se é quente ou

frio, nunca morno.

Parabéns, Índio. Certamente, você está

em paz e deve estar orgulhoso de si mes-

mo...

Para nós, para aqueles que querem o me-

lhor, você fica de exemplo e seu nome

será lembrado.

OBS: seria sensacional se os espíritas da

região descobrissem onde mora a família

do Índio e prestar auxílio moral, espiritu-

al, afetivo e financeiro. O que acham?

Raphael Faé é editor do Jornal Crítica

Espírita.

EMPATIA

Pátria da Violência