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1 ANO VI—#56 Vitória/ES Dezembro de 2020

ANO VI #56 Vitória/ES Dezembro de 2020 · 2021. 1. 9. · passagem, o que mostra, como afirma o fenomenólogo romeno Mircea Eliade, que podemos reproduzir concepções mágicas sobre

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    ANO VI—#56 Vitória/ES Dezembro de 2020

  • 2

    Editor

    Raphael Faé Baptista

    Editoração:

    Felipe Sellin

    Colaboram nessa Edição:

    Andrei A. de Souza

    Elton Rodrigues

    Felipe Sellin

    Raphael Faé Baptista

    Interaja conosco, sua opinião

    é muito importante para nós:

    [email protected]

    Edição n° 54—Setembro de 2020

    7.332 seguidores na página

    6.711 pessoas alcançadas

    803 engajamentos

    Editorial Não adianta dizer que a contagem do tem-

    po é apenas uma convenção humana e que

    o desejado “fim de 2020” significa apenas

    que teremos, em 2021, o mesmo panorama

    de lutas e de enfrentamentos que caracte-

    rizaram este singular 2020. De fato, a pas-

    sagem de ano parece próxima das estrutu-

    ras psíquicas e afetivas dos antigos ritos de

    passagem, o que mostra, como afirma o

    fenomenólogo romeno Mircea Eliade, que

    podemos reproduzir concepções mágicas

    sobre o sagrado e o profano mesmo nos

    ambientes mais secularizados. Talvez por isso a passagem de ano repre-

    sente um momento de catarse pessoal e

    coletiva sobre o que aconteceu, e de reno-

    vação de esperanças sobre o que virá. Mas

    só isso não basta, pois, a depender de co-

    mo articulamos a nossa realidade, essa

    catarse sobre o que fomos e essa esperança

    sobre o que podemos ser podem ser enga-

    nadoras e alienantes ou verdadeiras e li-

    bertadoras. E saber o que é alienante ou

    libertador, enganoso ou verdadeiro, de-

    pende de muitas variáveis de vivências

    pessoais, familiares, sociais, culturais, his-

    tóricas, ideológicas, de classe, etc. Logo, é diante de uma realidade repleta de

    contradições e absurdamente complexa

    que entendemos a importância de desen-

    volver a postura e o pensamento críticos

    com relação a nós mesmos, à sociedade e

    ao espiritismo. Ao nosso ver, quanto mais

    apurada nossa capacidade de interpretar,

    avaliar e problematizar o mundo e suas

    questões melhor serão os modos de nos

    relacionarmos com ele. Isso nos leva a um

    constante trabalho de aperfeiçoamento

    pessoal e coletivo, que demanda humilda-

    de intelectual para aprender, de paciência

    revolucionária para esperar o tempo das

    coisas, e de um profundo sentimento de

    empatia com relação aos sofrimentos e

    sonhos de nossos semelhantes. Em 2021, os desafios para refletir e agir

    sobre o mundo são os de sempre: colapso

    ambiental, desigualdades sociais, margina-

    lização, expropriação de direitos sociais

    pela agenda ultraliberal, etc. Porém, são

    desafios cujas consequências estão cada

    vez mais se agravando e conduzindo a hu-

    manidade ao dilema tantas vezes dito e

    repetido por visionários: SOCIALISMO

    OU BARBÁRIE!!! O regime de acumulação do capital tem se

    mostrado em toda a sua brutalidade, com

    contínua exploração das classes populares,

    e o modo de produção capitalista tem reve-

    lado toda a sua capacidade destrutiva: dos

    recursos naturais, dos sentidos de humani-

    dade e dos laços sociais de solidariedade.

    Por onde vemos, só encontramos cenários

    de desolação e destruição, seja no presen-

    te, seja num futuro muito próximo. Portanto, não há meio termo. A superação

    dessa ordem de coisas passa pela redefini-

    ção dos modos pelos quais nos relaciona-

    mos e nos autocompreendemos como se-

    res humanos e sociais, pelo emprego de

    nossas energias na busca por conhecimen-

    to crítico e libertador e pelo engajamento

    nos debates e nas lutas emancipatórias de

    nosso tempo. A isso, Kardec cunhou uma

    categoria de especial importância: a Rege-

    neração, que a compreendemos como o

    projeto político-utópico do espiritismo que

    nos coloca o imperativo social e histórico

    de nos libertarmos das amarras que nos

    aprisionam aos processos violentos e

    opressores das sociabilidades de “provas e

    expiações”. Nesse sentido, saudamos a conquista das

    mulheres argentinas que conseguiram a

    legalização do aborto, após intensas mobi-

    lizações. Sem dúvidas, uma vitória contra o

    patriarcado, a mentalidade colonial e se-

    nhorial, e o reacionarismo cristão que ci-

    mentaram as bases das formações sociais

    latino-americanas do capitalismo tardio.

    Doravante, as gerações de mulheres argen-

    tinas poderão viver e sentir-se seres huma-

    nos de modo mais autônomo, pleno e ínte-

    gro, sem precisar submeter suas escolhas e

    sua identidade a grupos de poder. Portanto, nesse momento crucial não po-

    demos nos iludir com catarses alienantes e

    falsas esperanças. Na história humana,

    nenhum processo emancipatório surge de

    modo espontâneo, mas com consciência

    política, lutas sociais e senso de coletivo

    baseado numa empatia radical. Foi-se o

    tempo em que o capitalismo e seu corolá-

    rio ideológico do liberalismo se justifica-

    vam como portadores de alguma missão

    civilizatória. Hoje, precisamos encontrar

    sentidos de humanidade e de realização

    humana para além da concepção liberal-

    burguesa que nos reduz ao papel de

    “produtores-consumidores”. Somos muito

    mais que isso. O convite é que possamos contribuir nessa

    tarefa, agregando esforços, mentes e cora-

    ções para a formação política e para os

    debates críticos e emancipadores entre

    espiritismo e sociedade.

    Raphael Faé e Felipe Sellin

  • 3

    FREIRE E JESUS: E A PEDAGOGIA DO AMOR

    É na radicalidade do amor que podemos

    inscrever Paulo Freire e Jesus. Ambos,

    imbuídos em um projeto da conquista do

    ser humano pelo seu destino histórico: a

    humanização radicada no amor, como

    categoria fundante da convivência huma-

    na, da socialização e da construção da

    própria humanidade.

    Jesus afirma que seu reino não é desse

    mundo, porque se fosse seus servos não o

    deixariam ser entregues aos judeus (Jo,

    18:36). E o Reino de Jesus ainda se dis-

    tancia desse mundo, repleto de misérias,

    desigualdade, guerras, fome, corrupção,

    violência, exploração, desumanização em

    toda sua extensão e profundidade. O mes-

    tre nos determinou que a sociabilidade

    cristã é dada pelo muito se amar - meus

    discípulos seriam reconhecidos por muito

    ser amarem (Jo, 13:35), por isso, longe

    estamos desse Reino.

    A ordem injusta que impera no mundo,

    dada pelos processos de opressão e explo-

    ração de um ser pelo outro, Freire deno-

    mina de desumanização, essa desumani-

    zação é um processo histórico, construído

    pelos seres.

    Humanização e desumanização são possi-

    bilidades dos homens e mulheres como

    seres inconclusos e conscientes de sua

    inconclusão. Se ambos são possibilidades,

    somente a humanização é uma vocação

    humana. Vocação que é negada na injusti-

    ça, na exploração e na violência das opres-

    sões, mas afirmada no anseio da liberda-

    de, de justiça, de luta dos oprimidos pela

    recuperação da sua humanidade roubada.

    Humanizar é reivindicar a divindade ins-

    crita em cada ser como diz nos salmos e

    no evangelho - vós sois deuses filhos do

    Altíssimo (Sl, 82:6), fazei brilhar vossa luz

    perante o mundo (Mt, 5:16).

    Jesus nos fala que bem aventurados são

    aqueles que têm fome e sede de justiça

    porque serão saciados (Mt, 5:6). A luta

    pela construção do reino, pela reivindica-

    ção de nossa humanidade, é uma luta

    histórica. Freire assevera que a desumani-

    zação é uma distorção da história, mas

    jamais uma vocação. Se as injustiças sem-

    pre foram existentes, elas não são um

    dado natural. A luta pela desumanização é

    uma luta contra o opressor, aquele que

    explora, que violenta, e não há generosi-

    dade naquele que oprime.

    Assim, Freire se distancia de Kardec já

    que toda caridade é fruto de um falso

    amor, porque inscrita na permanência da

    ordem injusta. Para Freire, fora da luta

    pelo fim da opressão, não há bondade,

    justiça ou amor. A luta será um ato de

    amor, já que se opõe terminantemente ao

    desamor da violência das opressões. A

    sede e a fome devem ser saciados (Mt, 25:

    35-45), porque aqueles que padecem não

    podem esperar, mas a reivindicação da

    genuína fraternidade é aquela que luta

    para que não haja mais sede e não haja

    mais fome.

    A caridade mantém os oprimidos atados

    em uma posição de dependência, não bas-

    ta sermos caridosos, é necessário darmos

    o óbolo de nossas vidas (Lc, 21: 1-4). A

    solidariedade é a capacidade de alterida-

    de, de se colocar no local daquele com que

    se solidariza, de tomar suas dores, suas

    lutas, suas lágrimas, a solidariedade ver-

    dadeira é a luta com eles que sofrem, para

    que haja transformação da realidade obje-

    tiva.

    O opressor, segundo Freire, só se solidari-

  • 4

    za com os oprimidos quando seu gesto de

    “generosidade” deixa ser um gesto piegas,

    sentimental, individual, e passa a ser um

    amor àqueles que sofrem. Quando enxer-

    gamos os oprimidos não mais como abs-

    trações mas como a seres concretos, que

    sofrem, que choram, que são injustiçados,

    somente através da plenitude do ato

    amar, na sua práxis radical, que se consti-

    tui a verdadeira solidariedade; sem isto,

    não a caridade passa de uma farsa.

    Freire segue afirmando que a realidade

    não é um acaso, mas fruto da ação dos

    seres, e por isso não se transforma por

    acaso. Assim, para nós, espíritas, um

    mundo de regeneração não descerá dos

    céus, mas será uma reivindicação de ina-

    ceitação frente a todo e qualquer ato de

    exploração, de desumanização, de desa-

    mor. Dessa forma, é nossa tarefa histórica

    transformar a realidade. E só transforma-

    mos essa realidade com a consciência da

    opressão, de que existem opressores e

    oprimidos, e a esses últimos cabe lutar

    pela libertação justamente com aqueles

    que verdadeiramente se solidarizam.

    Mas, como se processa a luta? Freire afir-

    ma que é na construção do conhecimento

    crítico. É conhecendo a verdade que ela

    nos libertará (Jo, 8:32), e a verdade é a

    inserção da consciência crítica do mundo.

    Ninguém se conscientiza isoladamente, a

    consciência é uma consciência do mundo

    de injustiça que reproduz misérias, morte,

    destruição e sofrimento.

    Dessa forma, a pedagogia do oprimido é a

    pedagogia dos seres empenhados na sua

    luta pela libertação, e essa luta pela liber-

    tação da violência opressora não é uma

    luta pacífica, o ato de rebelião dos oprimi-

    dos é sempre tão violento quanto a violên-

    cia que os cria. Não houve direito con-

    quistado na histórica da humanidade que

    não foi regado com sangue, lágrimas e

    suor daqueles que se dispuseram a tentar

    mudar a realidade.

    Enquanto a violência dos opressores faz

    dos oprimidos seres humanos proibidos

    de ser, a resposta a essa violência é o an-

    seio pela busca do ato de ser, ser humano,

    todavia, os oprimidos somente se libertam

    quando consegue libertar seus opressores.

    Não basta inverter a contradição, tornar

    os oprimidos novos opressores, é preciso

    superar essa dicotomia.

    E essa dicotomia somente é superada em

    comunhão - “ninguém liberta ninguém,

    ninguém liberta sozinho, os homens se

    libertam em comunhão.” A bandeira frei-

    riana é a educação como ato de amor, da

    reflexão dos seres em relação ao mundo,

    na ação dialógica. Os oprimidos reivindi-

    cam sua humanidade, reivindicando a

    humanização dos opressores, que se desu-

    manizaram ao oprimir.

    Assim, somente no radical ato de amar

    que é possível transformar a humanidade.

    Não basta evoluirmos, sermos bons e fu-

    gir da Terra, como Kardec nos orienta (O

    Livro dos Espíritos, parte terceira, capítu-

    lo X, lei da liberdade). É necessário imer-

    girmos nessa realidade para transformá-

    la, para reivindicá-la como uma humani-

    dade fraterna e justa, para o reconheci-

    mento de um planeta onde impera a luz, a

    vida e o amor. Para a construção do Reino

    não há outro caminho, não há outra alter-

    nativa do que a luta contra os líderes, che-

    fes e donos da lei (Lc, 9:22) – os opresso-

    res. Jesus afirmou que aqueles que qui-

    sessem vir após ele que pegassem sua

    cruz, tomando as dores do mundo para si,

    e o seguissem. Porque aquele que quiser

    salvar a sua vida egoística, perderá, mas

    aquele que lutar pelos pelo amor, este

    sempre viverá.

    Laísa Emanuelle.

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    Resenha de “Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa”

    No presente texto, pretendo apresentar a

    obra “Estado e burguesia no Brasil: ori-

    gens da autocracia burguesa”, de Antô-

    nio Carlos Mazzeo, publicado pela Ed.

    Boitempo, na perspectiva de contribuir

    na formação política e na qualificação

    dos debates sobre espiritismo e socieda-

    de. Ao meu ver, essa aproximação cum-

    pre um ideal de diálogo entre as ciências

    e o espiritismo que permita reinterpreta-

    ções ricas e dialéticas e supere o horizon-

    te religioso e místico tão propagado pela

    cultura federativa, que paralisa o espiri-

    tismo no século XIX.

    Na obra em questão, o autor recupera a

    tese do intelectual brasileiro Caio Prado

    Júnior sobre a particularidade histórica

    da formação social brasileira enquanto

    integrada ao processo de acumulação

    originária do capital no século XVI e das

    transformações operadas na transição do

    feudalismo para o capitalismo na Europa.

    Na perspectiva do materialismo histórico

    e dialético, Mazzeo também retoma a

    lógica marxista de que uma determinada

    realidade social e econômica é uma parti-

    cularidade que deve ser explicada dentro

    da universalidade do modo de produção.

    Ou seja, um mesmo modo de produção

    abrange e dá sentido a uma série de for-

    mações sociais particulares e distintas.

    Segundo o autor, relembrando as lições

    de Marx e Engels, a transição do feudalis-

    mo para o capitalismo caracteriza-se pela

    dissociação entre o produtor e os meios

    de produção, em que o trabalho deixa de

    ser baseado no valor de uso para se tornar

    em valorização do capital como valor de

    troca na produção de mercadorias. Nessa

    mudança, Portugal acaba assumindo o

    caráter pioneiro na formação de uma bur-

    guesia comercial e, por isso, lança as ba-

    ses de um Estado centralizado, precursor

    do Estado moderno, e de caráter mercan-

    til como imperativos do processo de acu-

    mulação do capital por essa burguesia. Ou

    seja, as estruturas político-institucionais

    feudais portuguesas já não dão conta da

    dinâmica capitalista e são substituídas

    por novas estruturas que vão se adaptan-

    do às demandas concretas do capital por

    manufaturas e matéria-prima.

    Porém, apesar do pioneirismo, Portugal

    acaba reproduzindo os elementos de um

    feudalismo em decadência e, portanto, o

    surgimento precoce de uma burguesia

    mercantil sufocou o desenvolvimento

    industrial, sendo posteriormente supera-

    do por outros países que conseguiram

    desenvolver forças produtivas e relações

  • 6

    de produções plenamente burguesas, tan-

    to com uma burguesia industrial nacional

    e autônoma, com uma agenda própria,

    quanto um proletariado urbano e indus-

    trial.

    É nesse contexto que o sistema colonial se

    apresenta como parte de um conjunto de

    situações que a dinâmica capitalista en-

    grendra quanto ao papel que as colônias

    deveriam desempenhar na produção

    mundial (ou na divisão internacional do

    trabalho). Mazzeo, então, retoma impor-

    tantes categorias sobre o desenvolvimento

    das forças produtivas numa ótica marxis-

    ta: a via clássica e a via prussiana.

    A via clássica foi a via revolucionária,

    ocorrida na Inglaterra e na França, na

    qual a burguesia reuniu forças suficientes

    para derrubar a ordem feudal e impor

    uma ordem burguesa. Nessa transição,

    que reflete o nível de desenvolvimento do

    capitalismo, o liberalismo, como panora-

    ma político-ideológico do novo Estado

    burguês, significou tanto liberdade econô-

    mica quanto liberdade política, ao menos

    em parte, como um avanço na conquista

    de direitos e liberdades civis pela popula-

    ção (sempre contestados nas contrarrevo-

    luções burguesas, como no fenômeno do

    bonapartismo).

    A via prussiana de desenvolvimento das

    forças produtivas capitalistas, tratado por

    Vladimir Lênin, refere-se ao processo

    tardio de acumulação do capital

    (capitalismo tardio), em que surge uma

    burguesia que já não tem o poder de ins-

    taurar uma nova ordem política. Por isso,

    ela precisa conciliar o poder político com

    a nobreza e, nesse contexto, alija as mas-

    sas populares dos processos decisórios.

    Ainda assim, garante a transição para o

    capitalismo desenvolvido mesmo que de

    forma lenta, formando em seu bojo uma

    burguesia e uma classe proletária dentro

    de um sistema tipicamente capitalista e,

    em alguns casos, imperialista, como a

    Alemanha. Nessa via, o liberalismo man-

    tém o viés econômico de liberdade para

    negociar e estabelecer contratos, porém, o

    conteúdo de transformações políticas fica

    prejudicado pelo caráter conciliatório do

    poder entre burguesia e antiga nobreza.

    Nas formações sociais da “via prussiana”,

    portanto, o liberalismo assume uma for-

    ma política notadamente conservadora.

    Mas as formações sociais latino-

    americanas, apesar de próximas da “via

    prussiana”, ainda não se conformavam

    totalmente a ela. É formulado, então, o

    conceito de via “prussiana-colonial” ou

    “colonial”, que também se refere às for-

    mações sociais do capitalismo tardio (ou

    hipertardio), não revolucionário, porém,

    com o agravante de se basearem na estru-

    tura escravista de produção do modelo

    latifúndio-exportador. Esse dado revela

    não somente uma burguesia fraca, inca-

    paz de desenvolver plenamente os impe-

    rativos do capitalismo e que, por isso,

    submete-se aos interesses do capitalismo

    central. Revela também a necessidade de

    se aparelhar institucionalmente para re-

    produzir os interesses de classe dessa

    burguesia débil e dependente: privilegiar

    o capital internacional em detrimento do

    desenvolvimento nacional autônomo e

    possuir uma intensa e profunda aversão

    às classes populares. Novamente, o libera-

    lismo será uma ideologia evocada apenas

    no seu conteúdo econômico: liberdade

    para trocas mercantis. Porém, seu conteú-

  • 7

    do político será ultraconservador, auto-

    crático, cujos processos decisórios estarão

    sempre concentrados nas mãos das clas-

    ses dominantes para conformar e subme-

    ter a sociedade a uma exploração brutal e

    desumana.

    É por isso que a história política brasilei-

    ra, segundo o autor, é dominada pelo

    “bonapartismo”, ou seja, “uma forma de

    governo que surge do caráter contrarre-

    volucionário da burguesia, nas condições

    de transformações democráticas e de

    uma revolução democrática”(MAZZEO,

    p. 112). No Brasil, o bonapartismo

    “mantém a estrutura escravista de pro-

    dução, continuidade da economia coloni-

    al, caracterizando a não ruptura com o

    atraso econômico e social, assim como a

    debilidade de sua burguesia”(MAZZEO,

    p. 113). Isso vai da Independência, quan-

    do as classes dominantes queriam ape-

    nas se livrar do jugo econômico portu-

    guês, mas sem alterar a base escravista

    de produção, à Proclamação da Repúbli-

    ca, quando a república se mostrava uma

    alternativa política viável para a conti-

    nuidade do projeto de dominação, até à

    “Redemocratização”, em 1988, quando já

    não fazia sentido manter um regime de

    exceção diante da queda iminente da

    União Soviética e, então, poderíamos

    voltar a reproduzir os interesses classis-

    tas da burguesia nacional – antinaciona-

    lista e, sobretudo, anti-povo – num regi-

    me supostamente democrático.

    Assim se consolida politicamente o cará-

    ter autocrático de uma burguesia econo-

    micamente débil e subordinada aos pólos

    centrais do capitalismo, em que sociedade

    civil se restringe aos que detém o poder

    econômico e que as massas de trabalha-

    dores constituem uma constante ameaça

    aos seus interesses de classe. Numa for-

    mação social com tais elementos constitu-

    tivos, o Estado brasileiro, em suas diver-

    sas formas, surge como um instrumento

    político e armado de contrarrevolução

    permanente da burguesia, seja para ga-

    rantir o afluxo de dinheiro da massa de

    trabalhadores para o grande capital, seja

    para manter o controle social sobre os

    indesejáveis, seja para intervir pronta e

    violentamente contra qualquer vislumbre

    de insatisfação popular. Não é à toa que a

    burguesia vem se empenhando ao máxi-

    mo para fazer valer seus projetos ultrali-

    berais por meio de aparelhos ideológicos

    como RenovaBR, LIDE e outros, para

    privilegiar o capital a partir da expropria-

    ção social por meio de “reformas” legisla-

    tivas que atacam direitos trabalhistas,

    previdenciários e sociais, como a saúde e

    a educação públicas.

    A obra em comento, portanto, apesar de

    não tratar tais temas de forma original,

    tem o mérito de apresentá-los de forma

    organizada e didática. E além de abordar

    aspectos conceituais e históricos de pro-

    funda importância para compreensão de

    nossa situação atual, tem a virtude de

    retomar a tese de Caio Prado Jr. e Flores-

    tan Fernandes sobre a necessidade de

    uma revolução brasileira, de um processo

    político e social de ruptura que supere a

    via “colonial” e desenvolva as forças pro-

  • 8

    dutivas brasileiras numa perspectiva revo-

    lucionária não a partir de uma burguesia

    incapaz e subalterna, mas sob a hegemo-

    nia dos trabalhadores.

    Portanto, tais questões redefinem o deba-

    te sobre a superação do ciclo de misérias,

    dependências e desigualdades que aflige a

    sociedade brasileira há séculos, temáticas

    caras ao espiritismo e aos espíritas, nor-

    malmente afeitos aos ideais de transfor-

    mação social e de auxílio aos semelhantes.

    Porém, é necessário tanto superar a abor-

    dagem moral típica do Iluminismo do

    século XIX, do qual Kardec é tributário,

    quanto ficar atentos às conformações da

    ideologia dominante sobre a realidade, e

    se propor a uma abordagem científica,

    com método de análise dos processos

    econômicos e sociais a fim de contextuali-

    zar suas bases e contradições e, então,

    propor uma ordem aperfeiçoada com cla-

    reza e racionalidade científicas.

    Quando os espíritas se debruçam nas dis-

    cussões atuais sobre transformação social,

    normalmente orientados por uma leitura

    moral ou místico-religiosa, nós advoga-

    mos a tese da Regeneração como um pro-

    jeto político-utópico do espiritismo que

    visa romper com as estruturas sociais

    violentas e de dominação em busca de

    uma sociabilidade aperfeiçoada, transfor-

    mada, onde fraternidade, solidariedade e

    justiça sejam valores materializados no

    modo como nos organizamos política,

    econômica e socialmente. E é impossível

    pensar numa sociedade fraterna, solidária

    e justa sem considerar o modo sobre o

    qual a estrutura produtiva brasileira se

    organiza, do caráter de suas classes domi-

    nantes e de sua inserção no mercado

    mundial capitalista. Apostar as fichas de

    transformação somente em apelos e dis-

    cursos morais - tanto numa moralidade

    do século XIX, quanto num Jesus Cristo

    idealizado e apartado da história - é um

    tanto ingênuo.

    Assim, não bastam embates morais. Não

    basta dizer, por exemplo, que Jair Bolso-

    naro é fascista, racista e homofóbico. A

    questão é: a quem serve o seu fascismo, o

    seu racismo e sua homofobia? Quais for-

    ças sociais e econômicas se beneficiam

    com isso? E o mesmo se pode dizer de

    partidos de esquerda que, quando no po-

    der, fazem uma política reformista que

    não toca nas estruturas que reproduzem a

    injustiça.

    Igualmente, não basta dizer que a raiz do

    mal é o “orgulho e o egoísmo”, como se os

    nossos problemas fossem tão somente de

    cunho individual. Se essa visão podia ser

    suficiente no debate político do século

    XIX, orientado ideologicamente pelo indi-

    vidualismo do liberalismo burguês, de lá

    pra cá se tornou insuficiente. A sociedade

    não é a soma de indivíduos. Ela possui

    sua dinâmica própria, suas leis de funcio-

    namento, que o indivíduo muitas vezes

    reproduz sem nem mesmo refletir. E por

    todo século XX, mudanças concretas na

    estrutura da ordem social e econômica se

    mostraram muito mais eficientes e saluta-

    res na transformação dos indivíduos do

    que se tivessem sido orientadas na lógica

    individualista-burguesa. Logo, se a ideia

    de transformação social a partir da

    “educação moral” era sedutora aos con-

    temporâneos de Kardec, hoje ela precisa

    ser relativizada, pois, num sistema capita-

    lista e neoliberal, a própria educação é

    reapropriada para formar seres egoístas e

    competidores, que naturalizam e reprodu-

    zem a violência estrutural do capitalismo.

    Portanto, não são indivíduos orgulhosos e

    egoístas que criam um sistema de exclu-

    são. Ao contrário, é um sistema baseado

    na competição e na exploração que gera,

    fomenta e recompensa indivíduos egoístas

    e orgulhosos. Trocando em miúdos, os

    espíritas fariam mais para a sociedade se

    se preocupassem menos com “catequese

    espírita” e se ocupassem mais com mili-

    tância por uma educação pública, univer-

    sal, orientada à formação plena da pessoa

    humana, fora da lógica mercadológica e

    excludente que hoje doutrina as gerações

    de brasileiros.

    Concluindo, a obra em questão permite

    uma série de debates interessantes e opor-

    tunos, como os realizados por Eusínio

    Lavigne, espírita marxista-leninista, que

    na década de 50 do século XX já tematiza-

    va uma ética espírita diante da exploração

    das classes trabalhadoras e dos povos do

    terceiro mundo diante do imperialismo,

    do fascismo e do reacionarismo político. E

    se o objetivo do espiritismo é contribuir

    para a regeneração da sociedade planetá-

    ria - ou seja, de auxiliar na imensa e cria-

    tiva tarefa de redefinir os modos pelos

    quais nos compreendemos como seres

    humanos e sociais -, seu caminhar com as

    ciências sociais e econômicas nunca foi

    tão necessário para trabalharmos as me-

    lhores utopias e sonhos de um mundo

    onde haja lugar para todos a partir do

    conhecimento científico e dialético.

    Raphael Faé.

    Bibliografia e sugestão de leitura:

    PRADO JR., Caio, FERNANDES, Flores-

    tan. Clássicos sobre a revolução brasileira.

    Ed. Expressão Popular. Disponível para

    download gratuito no site da editora.

    PRADO JR., Caio. Formação do Brasil

    contemporâneo. Ed. Cia das Letras.

    FAORO, Raymundo. Os donos do poder:

    formação do patronato político brasileiro.

    Ed. Globo, 2001.

    CASIMIRO, Flávio H. C. A tragédia e a

    farsa: a ascensão das direitas no Brasil

    contemporâneo. Ed. Expressão Popular,

    2020. Disponível para download gratuito

    no site da editora.

    HARNECKER, Martha. Os conceitos ele-

    mentares de materialismo histórico. Glo-

    bal Editora, 1983.

    LAVIGNE, Eusínio. Os espiritualistas

    perante a paz e o marxismo. Disponível

    em

    MAZZEO, Antônio C. Estado e burguesia

    no Brasil: origens da autocracia burguesa.

    Ed. Boitempo, 2015.

    http://bvespirita.com/Os%20Espiritualistas%20Perante%20a%20Paz%20e%20o%20Marxismo%20(Eusinio%20Lavigne).pdfhttp://bvespirita.com/Os%20Espiritualistas%20Perante%20a%20Paz%20e%20o%20Marxismo%20(Eusinio%20Lavigne).pdfhttp://bvespirita.com/Os%20Espiritualistas%20Perante%20a%20Paz%20e%20o%20Marxismo%20(Eusinio%20Lavigne).pdfhttp://bvespirita.com/Os%20Espiritualistas%20Perante%20a%20Paz%20e%20o%20Marxismo%20(Eusinio%20Lavigne).pdf