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ANO VI—#56 Vitória/ES Dezembro de 2020
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Editor
Raphael Faé Baptista
Editoração:
Felipe Sellin
Colaboram nessa Edição:
Andrei A. de Souza
Elton Rodrigues
Felipe Sellin
Raphael Faé Baptista
Interaja conosco, sua opinião
é muito importante para nós:
Edição n° 54—Setembro de 2020
7.332 seguidores na página
6.711 pessoas alcançadas
803 engajamentos
Editorial Não adianta dizer que a contagem do tem-
po é apenas uma convenção humana e que
o desejado “fim de 2020” significa apenas
que teremos, em 2021, o mesmo panorama
de lutas e de enfrentamentos que caracte-
rizaram este singular 2020. De fato, a pas-
sagem de ano parece próxima das estrutu-
ras psíquicas e afetivas dos antigos ritos de
passagem, o que mostra, como afirma o
fenomenólogo romeno Mircea Eliade, que
podemos reproduzir concepções mágicas
sobre o sagrado e o profano mesmo nos
ambientes mais secularizados. Talvez por isso a passagem de ano repre-
sente um momento de catarse pessoal e
coletiva sobre o que aconteceu, e de reno-
vação de esperanças sobre o que virá. Mas
só isso não basta, pois, a depender de co-
mo articulamos a nossa realidade, essa
catarse sobre o que fomos e essa esperança
sobre o que podemos ser podem ser enga-
nadoras e alienantes ou verdadeiras e li-
bertadoras. E saber o que é alienante ou
libertador, enganoso ou verdadeiro, de-
pende de muitas variáveis de vivências
pessoais, familiares, sociais, culturais, his-
tóricas, ideológicas, de classe, etc. Logo, é diante de uma realidade repleta de
contradições e absurdamente complexa
que entendemos a importância de desen-
volver a postura e o pensamento críticos
com relação a nós mesmos, à sociedade e
ao espiritismo. Ao nosso ver, quanto mais
apurada nossa capacidade de interpretar,
avaliar e problematizar o mundo e suas
questões melhor serão os modos de nos
relacionarmos com ele. Isso nos leva a um
constante trabalho de aperfeiçoamento
pessoal e coletivo, que demanda humilda-
de intelectual para aprender, de paciência
revolucionária para esperar o tempo das
coisas, e de um profundo sentimento de
empatia com relação aos sofrimentos e
sonhos de nossos semelhantes. Em 2021, os desafios para refletir e agir
sobre o mundo são os de sempre: colapso
ambiental, desigualdades sociais, margina-
lização, expropriação de direitos sociais
pela agenda ultraliberal, etc. Porém, são
desafios cujas consequências estão cada
vez mais se agravando e conduzindo a hu-
manidade ao dilema tantas vezes dito e
repetido por visionários: SOCIALISMO
OU BARBÁRIE!!! O regime de acumulação do capital tem se
mostrado em toda a sua brutalidade, com
contínua exploração das classes populares,
e o modo de produção capitalista tem reve-
lado toda a sua capacidade destrutiva: dos
recursos naturais, dos sentidos de humani-
dade e dos laços sociais de solidariedade.
Por onde vemos, só encontramos cenários
de desolação e destruição, seja no presen-
te, seja num futuro muito próximo. Portanto, não há meio termo. A superação
dessa ordem de coisas passa pela redefini-
ção dos modos pelos quais nos relaciona-
mos e nos autocompreendemos como se-
res humanos e sociais, pelo emprego de
nossas energias na busca por conhecimen-
to crítico e libertador e pelo engajamento
nos debates e nas lutas emancipatórias de
nosso tempo. A isso, Kardec cunhou uma
categoria de especial importância: a Rege-
neração, que a compreendemos como o
projeto político-utópico do espiritismo que
nos coloca o imperativo social e histórico
de nos libertarmos das amarras que nos
aprisionam aos processos violentos e
opressores das sociabilidades de “provas e
expiações”. Nesse sentido, saudamos a conquista das
mulheres argentinas que conseguiram a
legalização do aborto, após intensas mobi-
lizações. Sem dúvidas, uma vitória contra o
patriarcado, a mentalidade colonial e se-
nhorial, e o reacionarismo cristão que ci-
mentaram as bases das formações sociais
latino-americanas do capitalismo tardio.
Doravante, as gerações de mulheres argen-
tinas poderão viver e sentir-se seres huma-
nos de modo mais autônomo, pleno e ínte-
gro, sem precisar submeter suas escolhas e
sua identidade a grupos de poder. Portanto, nesse momento crucial não po-
demos nos iludir com catarses alienantes e
falsas esperanças. Na história humana,
nenhum processo emancipatório surge de
modo espontâneo, mas com consciência
política, lutas sociais e senso de coletivo
baseado numa empatia radical. Foi-se o
tempo em que o capitalismo e seu corolá-
rio ideológico do liberalismo se justifica-
vam como portadores de alguma missão
civilizatória. Hoje, precisamos encontrar
sentidos de humanidade e de realização
humana para além da concepção liberal-
burguesa que nos reduz ao papel de
“produtores-consumidores”. Somos muito
mais que isso. O convite é que possamos contribuir nessa
tarefa, agregando esforços, mentes e cora-
ções para a formação política e para os
debates críticos e emancipadores entre
espiritismo e sociedade.
Raphael Faé e Felipe Sellin
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FREIRE E JESUS: E A PEDAGOGIA DO AMOR
É na radicalidade do amor que podemos
inscrever Paulo Freire e Jesus. Ambos,
imbuídos em um projeto da conquista do
ser humano pelo seu destino histórico: a
humanização radicada no amor, como
categoria fundante da convivência huma-
na, da socialização e da construção da
própria humanidade.
Jesus afirma que seu reino não é desse
mundo, porque se fosse seus servos não o
deixariam ser entregues aos judeus (Jo,
18:36). E o Reino de Jesus ainda se dis-
tancia desse mundo, repleto de misérias,
desigualdade, guerras, fome, corrupção,
violência, exploração, desumanização em
toda sua extensão e profundidade. O mes-
tre nos determinou que a sociabilidade
cristã é dada pelo muito se amar - meus
discípulos seriam reconhecidos por muito
ser amarem (Jo, 13:35), por isso, longe
estamos desse Reino.
A ordem injusta que impera no mundo,
dada pelos processos de opressão e explo-
ração de um ser pelo outro, Freire deno-
mina de desumanização, essa desumani-
zação é um processo histórico, construído
pelos seres.
Humanização e desumanização são possi-
bilidades dos homens e mulheres como
seres inconclusos e conscientes de sua
inconclusão. Se ambos são possibilidades,
somente a humanização é uma vocação
humana. Vocação que é negada na injusti-
ça, na exploração e na violência das opres-
sões, mas afirmada no anseio da liberda-
de, de justiça, de luta dos oprimidos pela
recuperação da sua humanidade roubada.
Humanizar é reivindicar a divindade ins-
crita em cada ser como diz nos salmos e
no evangelho - vós sois deuses filhos do
Altíssimo (Sl, 82:6), fazei brilhar vossa luz
perante o mundo (Mt, 5:16).
Jesus nos fala que bem aventurados são
aqueles que têm fome e sede de justiça
porque serão saciados (Mt, 5:6). A luta
pela construção do reino, pela reivindica-
ção de nossa humanidade, é uma luta
histórica. Freire assevera que a desumani-
zação é uma distorção da história, mas
jamais uma vocação. Se as injustiças sem-
pre foram existentes, elas não são um
dado natural. A luta pela desumanização é
uma luta contra o opressor, aquele que
explora, que violenta, e não há generosi-
dade naquele que oprime.
Assim, Freire se distancia de Kardec já
que toda caridade é fruto de um falso
amor, porque inscrita na permanência da
ordem injusta. Para Freire, fora da luta
pelo fim da opressão, não há bondade,
justiça ou amor. A luta será um ato de
amor, já que se opõe terminantemente ao
desamor da violência das opressões. A
sede e a fome devem ser saciados (Mt, 25:
35-45), porque aqueles que padecem não
podem esperar, mas a reivindicação da
genuína fraternidade é aquela que luta
para que não haja mais sede e não haja
mais fome.
A caridade mantém os oprimidos atados
em uma posição de dependência, não bas-
ta sermos caridosos, é necessário darmos
o óbolo de nossas vidas (Lc, 21: 1-4). A
solidariedade é a capacidade de alterida-
de, de se colocar no local daquele com que
se solidariza, de tomar suas dores, suas
lutas, suas lágrimas, a solidariedade ver-
dadeira é a luta com eles que sofrem, para
que haja transformação da realidade obje-
tiva.
O opressor, segundo Freire, só se solidari-
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za com os oprimidos quando seu gesto de
“generosidade” deixa ser um gesto piegas,
sentimental, individual, e passa a ser um
amor àqueles que sofrem. Quando enxer-
gamos os oprimidos não mais como abs-
trações mas como a seres concretos, que
sofrem, que choram, que são injustiçados,
somente através da plenitude do ato
amar, na sua práxis radical, que se consti-
tui a verdadeira solidariedade; sem isto,
não a caridade passa de uma farsa.
Freire segue afirmando que a realidade
não é um acaso, mas fruto da ação dos
seres, e por isso não se transforma por
acaso. Assim, para nós, espíritas, um
mundo de regeneração não descerá dos
céus, mas será uma reivindicação de ina-
ceitação frente a todo e qualquer ato de
exploração, de desumanização, de desa-
mor. Dessa forma, é nossa tarefa histórica
transformar a realidade. E só transforma-
mos essa realidade com a consciência da
opressão, de que existem opressores e
oprimidos, e a esses últimos cabe lutar
pela libertação justamente com aqueles
que verdadeiramente se solidarizam.
Mas, como se processa a luta? Freire afir-
ma que é na construção do conhecimento
crítico. É conhecendo a verdade que ela
nos libertará (Jo, 8:32), e a verdade é a
inserção da consciência crítica do mundo.
Ninguém se conscientiza isoladamente, a
consciência é uma consciência do mundo
de injustiça que reproduz misérias, morte,
destruição e sofrimento.
Dessa forma, a pedagogia do oprimido é a
pedagogia dos seres empenhados na sua
luta pela libertação, e essa luta pela liber-
tação da violência opressora não é uma
luta pacífica, o ato de rebelião dos oprimi-
dos é sempre tão violento quanto a violên-
cia que os cria. Não houve direito con-
quistado na histórica da humanidade que
não foi regado com sangue, lágrimas e
suor daqueles que se dispuseram a tentar
mudar a realidade.
Enquanto a violência dos opressores faz
dos oprimidos seres humanos proibidos
de ser, a resposta a essa violência é o an-
seio pela busca do ato de ser, ser humano,
todavia, os oprimidos somente se libertam
quando consegue libertar seus opressores.
Não basta inverter a contradição, tornar
os oprimidos novos opressores, é preciso
superar essa dicotomia.
E essa dicotomia somente é superada em
comunhão - “ninguém liberta ninguém,
ninguém liberta sozinho, os homens se
libertam em comunhão.” A bandeira frei-
riana é a educação como ato de amor, da
reflexão dos seres em relação ao mundo,
na ação dialógica. Os oprimidos reivindi-
cam sua humanidade, reivindicando a
humanização dos opressores, que se desu-
manizaram ao oprimir.
Assim, somente no radical ato de amar
que é possível transformar a humanidade.
Não basta evoluirmos, sermos bons e fu-
gir da Terra, como Kardec nos orienta (O
Livro dos Espíritos, parte terceira, capítu-
lo X, lei da liberdade). É necessário imer-
girmos nessa realidade para transformá-
la, para reivindicá-la como uma humani-
dade fraterna e justa, para o reconheci-
mento de um planeta onde impera a luz, a
vida e o amor. Para a construção do Reino
não há outro caminho, não há outra alter-
nativa do que a luta contra os líderes, che-
fes e donos da lei (Lc, 9:22) – os opresso-
res. Jesus afirmou que aqueles que qui-
sessem vir após ele que pegassem sua
cruz, tomando as dores do mundo para si,
e o seguissem. Porque aquele que quiser
salvar a sua vida egoística, perderá, mas
aquele que lutar pelos pelo amor, este
sempre viverá.
Laísa Emanuelle.
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Resenha de “Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa”
No presente texto, pretendo apresentar a
obra “Estado e burguesia no Brasil: ori-
gens da autocracia burguesa”, de Antô-
nio Carlos Mazzeo, publicado pela Ed.
Boitempo, na perspectiva de contribuir
na formação política e na qualificação
dos debates sobre espiritismo e socieda-
de. Ao meu ver, essa aproximação cum-
pre um ideal de diálogo entre as ciências
e o espiritismo que permita reinterpreta-
ções ricas e dialéticas e supere o horizon-
te religioso e místico tão propagado pela
cultura federativa, que paralisa o espiri-
tismo no século XIX.
Na obra em questão, o autor recupera a
tese do intelectual brasileiro Caio Prado
Júnior sobre a particularidade histórica
da formação social brasileira enquanto
integrada ao processo de acumulação
originária do capital no século XVI e das
transformações operadas na transição do
feudalismo para o capitalismo na Europa.
Na perspectiva do materialismo histórico
e dialético, Mazzeo também retoma a
lógica marxista de que uma determinada
realidade social e econômica é uma parti-
cularidade que deve ser explicada dentro
da universalidade do modo de produção.
Ou seja, um mesmo modo de produção
abrange e dá sentido a uma série de for-
mações sociais particulares e distintas.
Segundo o autor, relembrando as lições
de Marx e Engels, a transição do feudalis-
mo para o capitalismo caracteriza-se pela
dissociação entre o produtor e os meios
de produção, em que o trabalho deixa de
ser baseado no valor de uso para se tornar
em valorização do capital como valor de
troca na produção de mercadorias. Nessa
mudança, Portugal acaba assumindo o
caráter pioneiro na formação de uma bur-
guesia comercial e, por isso, lança as ba-
ses de um Estado centralizado, precursor
do Estado moderno, e de caráter mercan-
til como imperativos do processo de acu-
mulação do capital por essa burguesia. Ou
seja, as estruturas político-institucionais
feudais portuguesas já não dão conta da
dinâmica capitalista e são substituídas
por novas estruturas que vão se adaptan-
do às demandas concretas do capital por
manufaturas e matéria-prima.
Porém, apesar do pioneirismo, Portugal
acaba reproduzindo os elementos de um
feudalismo em decadência e, portanto, o
surgimento precoce de uma burguesia
mercantil sufocou o desenvolvimento
industrial, sendo posteriormente supera-
do por outros países que conseguiram
desenvolver forças produtivas e relações
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de produções plenamente burguesas, tan-
to com uma burguesia industrial nacional
e autônoma, com uma agenda própria,
quanto um proletariado urbano e indus-
trial.
É nesse contexto que o sistema colonial se
apresenta como parte de um conjunto de
situações que a dinâmica capitalista en-
grendra quanto ao papel que as colônias
deveriam desempenhar na produção
mundial (ou na divisão internacional do
trabalho). Mazzeo, então, retoma impor-
tantes categorias sobre o desenvolvimento
das forças produtivas numa ótica marxis-
ta: a via clássica e a via prussiana.
A via clássica foi a via revolucionária,
ocorrida na Inglaterra e na França, na
qual a burguesia reuniu forças suficientes
para derrubar a ordem feudal e impor
uma ordem burguesa. Nessa transição,
que reflete o nível de desenvolvimento do
capitalismo, o liberalismo, como panora-
ma político-ideológico do novo Estado
burguês, significou tanto liberdade econô-
mica quanto liberdade política, ao menos
em parte, como um avanço na conquista
de direitos e liberdades civis pela popula-
ção (sempre contestados nas contrarrevo-
luções burguesas, como no fenômeno do
bonapartismo).
A via prussiana de desenvolvimento das
forças produtivas capitalistas, tratado por
Vladimir Lênin, refere-se ao processo
tardio de acumulação do capital
(capitalismo tardio), em que surge uma
burguesia que já não tem o poder de ins-
taurar uma nova ordem política. Por isso,
ela precisa conciliar o poder político com
a nobreza e, nesse contexto, alija as mas-
sas populares dos processos decisórios.
Ainda assim, garante a transição para o
capitalismo desenvolvido mesmo que de
forma lenta, formando em seu bojo uma
burguesia e uma classe proletária dentro
de um sistema tipicamente capitalista e,
em alguns casos, imperialista, como a
Alemanha. Nessa via, o liberalismo man-
tém o viés econômico de liberdade para
negociar e estabelecer contratos, porém, o
conteúdo de transformações políticas fica
prejudicado pelo caráter conciliatório do
poder entre burguesia e antiga nobreza.
Nas formações sociais da “via prussiana”,
portanto, o liberalismo assume uma for-
ma política notadamente conservadora.
Mas as formações sociais latino-
americanas, apesar de próximas da “via
prussiana”, ainda não se conformavam
totalmente a ela. É formulado, então, o
conceito de via “prussiana-colonial” ou
“colonial”, que também se refere às for-
mações sociais do capitalismo tardio (ou
hipertardio), não revolucionário, porém,
com o agravante de se basearem na estru-
tura escravista de produção do modelo
latifúndio-exportador. Esse dado revela
não somente uma burguesia fraca, inca-
paz de desenvolver plenamente os impe-
rativos do capitalismo e que, por isso,
submete-se aos interesses do capitalismo
central. Revela também a necessidade de
se aparelhar institucionalmente para re-
produzir os interesses de classe dessa
burguesia débil e dependente: privilegiar
o capital internacional em detrimento do
desenvolvimento nacional autônomo e
possuir uma intensa e profunda aversão
às classes populares. Novamente, o libera-
lismo será uma ideologia evocada apenas
no seu conteúdo econômico: liberdade
para trocas mercantis. Porém, seu conteú-
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do político será ultraconservador, auto-
crático, cujos processos decisórios estarão
sempre concentrados nas mãos das clas-
ses dominantes para conformar e subme-
ter a sociedade a uma exploração brutal e
desumana.
É por isso que a história política brasilei-
ra, segundo o autor, é dominada pelo
“bonapartismo”, ou seja, “uma forma de
governo que surge do caráter contrarre-
volucionário da burguesia, nas condições
de transformações democráticas e de
uma revolução democrática”(MAZZEO,
p. 112). No Brasil, o bonapartismo
“mantém a estrutura escravista de pro-
dução, continuidade da economia coloni-
al, caracterizando a não ruptura com o
atraso econômico e social, assim como a
debilidade de sua burguesia”(MAZZEO,
p. 113). Isso vai da Independência, quan-
do as classes dominantes queriam ape-
nas se livrar do jugo econômico portu-
guês, mas sem alterar a base escravista
de produção, à Proclamação da Repúbli-
ca, quando a república se mostrava uma
alternativa política viável para a conti-
nuidade do projeto de dominação, até à
“Redemocratização”, em 1988, quando já
não fazia sentido manter um regime de
exceção diante da queda iminente da
União Soviética e, então, poderíamos
voltar a reproduzir os interesses classis-
tas da burguesia nacional – antinaciona-
lista e, sobretudo, anti-povo – num regi-
me supostamente democrático.
Assim se consolida politicamente o cará-
ter autocrático de uma burguesia econo-
micamente débil e subordinada aos pólos
centrais do capitalismo, em que sociedade
civil se restringe aos que detém o poder
econômico e que as massas de trabalha-
dores constituem uma constante ameaça
aos seus interesses de classe. Numa for-
mação social com tais elementos constitu-
tivos, o Estado brasileiro, em suas diver-
sas formas, surge como um instrumento
político e armado de contrarrevolução
permanente da burguesia, seja para ga-
rantir o afluxo de dinheiro da massa de
trabalhadores para o grande capital, seja
para manter o controle social sobre os
indesejáveis, seja para intervir pronta e
violentamente contra qualquer vislumbre
de insatisfação popular. Não é à toa que a
burguesia vem se empenhando ao máxi-
mo para fazer valer seus projetos ultrali-
berais por meio de aparelhos ideológicos
como RenovaBR, LIDE e outros, para
privilegiar o capital a partir da expropria-
ção social por meio de “reformas” legisla-
tivas que atacam direitos trabalhistas,
previdenciários e sociais, como a saúde e
a educação públicas.
A obra em comento, portanto, apesar de
não tratar tais temas de forma original,
tem o mérito de apresentá-los de forma
organizada e didática. E além de abordar
aspectos conceituais e históricos de pro-
funda importância para compreensão de
nossa situação atual, tem a virtude de
retomar a tese de Caio Prado Jr. e Flores-
tan Fernandes sobre a necessidade de
uma revolução brasileira, de um processo
político e social de ruptura que supere a
via “colonial” e desenvolva as forças pro-
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dutivas brasileiras numa perspectiva revo-
lucionária não a partir de uma burguesia
incapaz e subalterna, mas sob a hegemo-
nia dos trabalhadores.
Portanto, tais questões redefinem o deba-
te sobre a superação do ciclo de misérias,
dependências e desigualdades que aflige a
sociedade brasileira há séculos, temáticas
caras ao espiritismo e aos espíritas, nor-
malmente afeitos aos ideais de transfor-
mação social e de auxílio aos semelhantes.
Porém, é necessário tanto superar a abor-
dagem moral típica do Iluminismo do
século XIX, do qual Kardec é tributário,
quanto ficar atentos às conformações da
ideologia dominante sobre a realidade, e
se propor a uma abordagem científica,
com método de análise dos processos
econômicos e sociais a fim de contextuali-
zar suas bases e contradições e, então,
propor uma ordem aperfeiçoada com cla-
reza e racionalidade científicas.
Quando os espíritas se debruçam nas dis-
cussões atuais sobre transformação social,
normalmente orientados por uma leitura
moral ou místico-religiosa, nós advoga-
mos a tese da Regeneração como um pro-
jeto político-utópico do espiritismo que
visa romper com as estruturas sociais
violentas e de dominação em busca de
uma sociabilidade aperfeiçoada, transfor-
mada, onde fraternidade, solidariedade e
justiça sejam valores materializados no
modo como nos organizamos política,
econômica e socialmente. E é impossível
pensar numa sociedade fraterna, solidária
e justa sem considerar o modo sobre o
qual a estrutura produtiva brasileira se
organiza, do caráter de suas classes domi-
nantes e de sua inserção no mercado
mundial capitalista. Apostar as fichas de
transformação somente em apelos e dis-
cursos morais - tanto numa moralidade
do século XIX, quanto num Jesus Cristo
idealizado e apartado da história - é um
tanto ingênuo.
Assim, não bastam embates morais. Não
basta dizer, por exemplo, que Jair Bolso-
naro é fascista, racista e homofóbico. A
questão é: a quem serve o seu fascismo, o
seu racismo e sua homofobia? Quais for-
ças sociais e econômicas se beneficiam
com isso? E o mesmo se pode dizer de
partidos de esquerda que, quando no po-
der, fazem uma política reformista que
não toca nas estruturas que reproduzem a
injustiça.
Igualmente, não basta dizer que a raiz do
mal é o “orgulho e o egoísmo”, como se os
nossos problemas fossem tão somente de
cunho individual. Se essa visão podia ser
suficiente no debate político do século
XIX, orientado ideologicamente pelo indi-
vidualismo do liberalismo burguês, de lá
pra cá se tornou insuficiente. A sociedade
não é a soma de indivíduos. Ela possui
sua dinâmica própria, suas leis de funcio-
namento, que o indivíduo muitas vezes
reproduz sem nem mesmo refletir. E por
todo século XX, mudanças concretas na
estrutura da ordem social e econômica se
mostraram muito mais eficientes e saluta-
res na transformação dos indivíduos do
que se tivessem sido orientadas na lógica
individualista-burguesa. Logo, se a ideia
de transformação social a partir da
“educação moral” era sedutora aos con-
temporâneos de Kardec, hoje ela precisa
ser relativizada, pois, num sistema capita-
lista e neoliberal, a própria educação é
reapropriada para formar seres egoístas e
competidores, que naturalizam e reprodu-
zem a violência estrutural do capitalismo.
Portanto, não são indivíduos orgulhosos e
egoístas que criam um sistema de exclu-
são. Ao contrário, é um sistema baseado
na competição e na exploração que gera,
fomenta e recompensa indivíduos egoístas
e orgulhosos. Trocando em miúdos, os
espíritas fariam mais para a sociedade se
se preocupassem menos com “catequese
espírita” e se ocupassem mais com mili-
tância por uma educação pública, univer-
sal, orientada à formação plena da pessoa
humana, fora da lógica mercadológica e
excludente que hoje doutrina as gerações
de brasileiros.
Concluindo, a obra em questão permite
uma série de debates interessantes e opor-
tunos, como os realizados por Eusínio
Lavigne, espírita marxista-leninista, que
na década de 50 do século XX já tematiza-
va uma ética espírita diante da exploração
das classes trabalhadoras e dos povos do
terceiro mundo diante do imperialismo,
do fascismo e do reacionarismo político. E
se o objetivo do espiritismo é contribuir
para a regeneração da sociedade planetá-
ria - ou seja, de auxiliar na imensa e cria-
tiva tarefa de redefinir os modos pelos
quais nos compreendemos como seres
humanos e sociais -, seu caminhar com as
ciências sociais e econômicas nunca foi
tão necessário para trabalharmos as me-
lhores utopias e sonhos de um mundo
onde haja lugar para todos a partir do
conhecimento científico e dialético.
Raphael Faé.
Bibliografia e sugestão de leitura:
PRADO JR., Caio, FERNANDES, Flores-
tan. Clássicos sobre a revolução brasileira.
Ed. Expressão Popular. Disponível para
download gratuito no site da editora.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil
contemporâneo. Ed. Cia das Letras.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder:
formação do patronato político brasileiro.
Ed. Globo, 2001.
CASIMIRO, Flávio H. C. A tragédia e a
farsa: a ascensão das direitas no Brasil
contemporâneo. Ed. Expressão Popular,
2020. Disponível para download gratuito
no site da editora.
HARNECKER, Martha. Os conceitos ele-
mentares de materialismo histórico. Glo-
bal Editora, 1983.
LAVIGNE, Eusínio. Os espiritualistas
perante a paz e o marxismo. Disponível
em
MAZZEO, Antônio C. Estado e burguesia
no Brasil: origens da autocracia burguesa.
Ed. Boitempo, 2015.
http://bvespirita.com/Os%20Espiritualistas%20Perante%20a%20Paz%20e%20o%20Marxismo%20(Eusinio%20Lavigne).pdfhttp://bvespirita.com/Os%20Espiritualistas%20Perante%20a%20Paz%20e%20o%20Marxismo%20(Eusinio%20Lavigne).pdfhttp://bvespirita.com/Os%20Espiritualistas%20Perante%20a%20Paz%20e%20o%20Marxismo%20(Eusinio%20Lavigne).pdfhttp://bvespirita.com/Os%20Espiritualistas%20Perante%20a%20Paz%20e%20o%20Marxismo%20(Eusinio%20Lavigne).pdf