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ANO VII - Nº 14 - MAI|12

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ANO VII - Nº 14 - MAI|12

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RDA | Ano VII | Nº 14 | 304p | Mai 12

Revista de Direitoda ADVOCEFAssociação Nacional dos Advogados

da Caixa Econômica Federal

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Capa: Marcelo TorrecillasEditoração Eletrônica: José Roberto Vazquez ElmoRevisão: Simone Diefenbach BorgesTiragem: 2.200 exemplaresPeriodicidade: semestralImpressão: Gráfica Editora PallottiSolicita-se Permuta

Revista de Direito da ADVOCEF. Porto Alegre, ADVOCEF, v.1, n.14, 2012

SemestralISSN: 1808-5822

1. Advogado. 2. Direito. 3. Legislação. 4. Banco. I. Associação Nacional dosAdvogados da Caixa Econômica Federal. II. Título.

343.03343.8103

ADVOCEFAssociação Nacional dos Advogados da Caixa Econômica Federal

SBS, Quadra 2, Bloco Q, Lote 3, Sala 1410, Edifício João CarlosSaad, CEP 70070-120, Fones (61) 3224-3020 e [email protected]

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DIRETORIA EXECUTIVA DA ADVOCEF

PresidenteCarlos Alberto Regueira de Castro e Silva (Recife)

Vice-PresidenteÁlvaro Sérgio Weiler Júnior (Porto Alegre)

1º TesoureiroEstanislau Luciano de Oliveira (Brasília)

2º TesoureiraDaniele Cristina Alaniz Macedo (São Paulo)

1º SecretáriaLenymara Carvalho (Brasília)

2º SecretáriaLya Rachel Basseto Vieira (Campinas)

Diretor de Articulação e Relacionamento InstitucionalJúlio Vitor Greve (Brasília)

Diretor de Comunicação, Relacionamento Interno e EventosRoberto Maia (Porto Alegre)

Diretor de Honorários AdvocatíciosDione Lima da Silva (Porto Alegre)

Diretor de Negociação ColetivaMarcelo Dutra Victor (Belo Horizonte)

Diretora de PrerrogativasMaria Rosa de Carvalho Leite Neta (Fortaleza)

Diretor JurídicoPedro Jorge Santana Pereira (Recife)

Diretora SocialIsabella Gomes Machado (Brasília)

CONSELHO EXECUTIVO DA REVISTA

Altair Rodrigues de PaulaPatrícia Raquel Caíres Jost GuadanhimRoberto Maia

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Membros EfetivosAnna Claudia de Vasconcellos (Florianópolis)Davi Duarte (Porto Alegre)Fernando da Silva Abs Cruz (Porto Alegre)Henrique Chagas (Presidente Prudente)Luciano Caixeta Amâncio (Brasília)Patrícia Raquel Caíres Jost Guadanhim (Londrina)Renato Luiz Harmi Hino (Curitiba)Membros SuplentesAntônio Xavier de Moraes Primo (Recife)Elton Nobre de Oliveira (Rio de Janeiro)Justiniano Dias da Silva Júnior (Recife)

CONSELHO DELIBERATIVO

CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA

Alaim Giovani Fortes StefanelloDoutorando em Direito Econômico e Socioambiental pelaPUC/PR. Mestre em Direito Ambiental pela UEA/AM. Especialistaem Direito Civil e Processo Civil pela FADIVALE/MG. Membro daComissão de Direito Ambiental da OAB/PR.

Bruno Queiroz OliveiraMestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará.Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UniversidadeEstácio de Sá/RJ. Conselheiro Seccional da OAB/CE. Professor doCurso de Direito da Faculdade Christus e da Escola Superior doMinistério Público no Ceará.

Davi DuarteEspecialista em Direito Público pelo Centro de EstudosFortium/Faculdade Projeção/DF. Presidente da Comissão Especialdo Advogado Empregado da OAB/RS.

Iliane Rosa PagliariniMestre em Direito Processual e Cidadania pela UniversidadeParanaense - UNIPAR. Especialista em Direito Tributário pelaUniversidade da Amazônia. Membro da Comissão da AdvocaciaPública da OAB/PR.

João Pedro SilvestrinDesembargador do Trabalho no TRT da Quarta Região.Pós-graduado em Direito e Economia e da Empresa pelaFundação Getúlio Vargas e Especialista em Direito do Trabalho,Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário - UNISC.

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Membros EfetivosAdonias Melo de Cordeiro (Fortaleza)Edson Pereira da Silva (Brasília)Jayme de Azevedo Lima (Curitiba)Membros SuplentesMelissa Santos Pinheiro Vassoler Silva (Porto Velho)Sandro Endrigo de Azevedo Chiarotti (Ribeirão Preto)

CONSELHO FISCAL

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................ 9

MENSAGEM ............................................................................................ 11

PARTE 1 – ARTIGOS

Justiça e razão prática a partir de AristótelesGryecos Attom Valente Loureiro ............................................ 15

A Convenção 158 da Organização Internacional doTrabalho: por que o direito internacional pode colaborarcom o direito interno brasileiro?

Anelise Ribeiro Pletsch ............................................................ 29

A Súmula 331 do TST e a responsabilidade daAdministração Pública

Ronaldo E. Scarponi Júnior .................................................... 47

Considerações sobre o juízo de admissibilidade recursale a política de desafogamento dos tribunais superiores

Karine Volpato Galvani ........................................................... 85

Direitos patrimoniais de autor versus direitos culturaisdo cidadão: fundamentos para a proposição de umdireito autoral-constitucional

Ciro de Lopes e Barbuda ...................................................... 103

O direito à cultura como um direito fundamental docidadão brasileiro

Jairdes Carvalho Garcia ......................................................... 149

Recuperação judicial de créditos e paraísos fiscaisGilberto Moreira Costa .......................................................... 179

O Estado e sua responsabilização civilLisandra de Andrade Pereira ................................................ 193

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SUMÁRIO

8 Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

PARTE 2 – JURISPRUDÊNCIA

Superior Tribunal de JustiçaDireito Processual Civil. Recurso Especial representativode controvérsia. Cumprimento de sentença. Impugnação.Honorários advocatícios. Art. 543-C do CPC ...................... 225

Superior Tribunal de JustiçaDireito Civil e Cambiário. Recurso Especial representativode controvérsia. Art. 543-C do CPC. Duplicata recebida porendosso-mandato. Protesto. Responsabilidade doendossatário. Necessidade de culpa .................................... 243

Superior Tribunal de JustiçaDireito Civil e Cambiário. Recurso Especial representativode controvérsia. Art. 543-C do CPC. Duplicata desprovidade causa recebida por endosso translativo. Protesto.Responsabilidade do endossatário ..................................... 251

Superior Tribunal de JustiçaSFI. Inadimplemento. Consolidação do imóvel napropriedade do fiduciário. Reintegração da posse doimóvel pelo credor anteriormente ao leilão extrajudicialprevisto no art. 27 da Lei 9.514/97. Possibilidade ............. 263

Superior Tribunal de JustiçaAção de busca e apreensão. Contrato de financiamentode automóvel com garantia de alienação fiduciária.Notificação extrajudicial realizada por cartório de títulos edocumentos situado em comarca diversa da do domicíliodo devedor. Validade ............................................................ 271

Superior Tribunal de JustiçaDireito bancário e processual civil. Cédula de CréditoBancário vinculada a contrato de crédito rotativo.Exequibilidade. Lei n. 10.931/2004. Possibilidade dequestionamento acerca do preenchimento dos requisitoslegais relativos aos demonstrativos da dívida.................... 279

Tribunal Superior do TrabalhoRecurso de Revista. Ação civil pública. Correspondentesbancários. Lotéricas. Equiparação aos bancários.Responsabilidade exclusiva da CEF afastada ..................... 287

PARTE 3 – NORMAS EDITORIAIS DE PUBLICAÇÃO ........................... 299

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APRESENTAÇÃO

O conhecimento e a informação

A Associação Nacional dos Advogados da Caixa EconômicaFederal, com esta 14ª edição da Revista de Direito, oferece aos seusleitores um mosaico de vibrantes temas.

A amplitude e a diversidade de assuntos trazidos neste núme-ro revelam um viés de universalidade em favor do conhecimento eda informação.

Artigos que demonstram algumas das várias facetas das ciênci-as jurídicas e sociais desfilam pelas páginas seguintes, desvendan-do, elucidando e até mesmo polemizando conceitos e verdades.

De formação inicialmente corporativa interna, a Revista deDireito tem evoluído em direção a uma maior amplitude emesclagem, tanto de autoria quanto de embasamento teórico dosartigos publicados.

Sem prejuízo desses princípios, a presente edição acabou porse revelar coincidentemente corporativa. E a coincidência vem daintrodução de uma nova forma de análise dos trabalhos oferecidosà publicação. A partir de agora, a publicação passa a realizar odenominado sistema de análise cega (do inglês blind review system),pelo qual o Conselho Editorial aprecia e decide pelo acolhimentodos trabalhos sem conhecer a autoria e seus vínculos.

Quis o destino que, não obstante tais premissas, esta ediçãoacabasse por reunir uma plêiade de profissionais com vinculaçãoatual ou pretérita à área jurídica da Caixa. Os artigos têm porautores diversos advogados integrantes dos quadros, somados a

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ex-integrantes e também a profissionais que tiveram parte de suaformação acadêmica ou profissional bastante próxima destacorporação.

A edição é integrada, ainda, por jurisprudência atualizada eespecialmente selecionada, prestando informação qualificada aquem precisa conhecer a íntegra de alguns dos julgados mais re-presentativos dos Tribunais brasileiros.

Desejamos que o conteúdo enriqueça as mentes e seja um con-vite à participação em próximos números.

Diretoria Executiva da ADVOCEF

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MENSAGEM

A importância dos fenômenos econômicos na sociedadeglobalizada do século XXI é inegável. Por outro lado, cada vezmais, esse tema demanda investigação aprofundada acerca da fun-ção do Estado no controle das práticas econômicas como forma deimplementar suas políticas destinadas ao bem-estar da sociedade.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Esta-do brasileiro retornou aos ditames da democracia, tendo como fun-damento maior o princípio da dignidade da pessoa humana e comoprincipal objetivo a realização da justiça social. Para que a digni-dade humana fosse respeitada e a justiça social alcançada, o textoconstitucional trouxe uma série de princípios informadores das con-dutas dos governantes, que, a partir de sua promulgação, volta-ram a ser eleitos pelo povo.

Nesse sentido, avulta a função da Caixa Econômica Federalcomo banco cem por cento público e de enorme relevância para asociedade brasileira. A recente decisão adotada no sentido de bai-xar fortemente os juros das suas linhas de crédito é totalmente le-gítima - e correta, do ponto de vista econômico. As medidas paradiminuir o spread bancário brasileiro já começaram a surtir efeito eo benefício social é prioritário frente aos interesses particulares domercado financeiro e das instituições financeiras.

Assim, ao promover a maior redução de juros da sua história, aCaixa Econômica Federal mais uma vez cumpre a sua relevante mis-são de propiciar melhores condições vida ao povo brasileiro.

Bruno Queiroz OliveiraConselho Editorial da Revista de Direito

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PARTE 1

ARTIGOS

PARTE 1

ARTIGOS

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JUSTIÇA E RAZÃO PRÁTICA A PARTIR DE ARISTÓTELES

Justiça e razão práticaa partir de Aristóteles

Gryecos Attom Valente LoureiroAdvogado da CAIXA no Rio de Janeiro

Especialista em Direito EmpresarialMBA pela Fundação Getúlio Vargas/RJEspecialista em Direito Processual Civil

Pós-graduado pela Universidade de Santa Cruz do Sul

RESUMO

O presente estudo visa discutir o conceito de justiça, naperspectiva aristotélica apresentada na obra Ética a Nicômaco.Não esgota sua fonte de investigação na EN, na medida em queingressa na obra de outros filósofos que se dedicaram ao tema.Considerando que a busca pela justiça é desejo de todos os povos eo anseio por sua efetivação guarda raízes no próprio espíritohumano, a pesquisa pretende indicar a forma para alcançá-la naótica aristotélica, bem como apresentar critérios seguros paradiferenciar as práticas mais adequadas a sua efetivação. Nodecorrer do estudo, serão tratadas a relação entre o agirjustamente e a realização da justiça, a disposição do caráter humanoem alcançar esta justiça, as instâncias reflexivas e espontâneas dohumano, a influência do sentimento particular sobre o que seria ajustiça e a impossibilidade deste sentimento íntimo servir comouma regra universal. Para tanto, utiliza-se a metodologia depesquisa bibliográfica que consiste, basicamente, na leitura,fichamento e comparação das teorias dos principais autores dafilosofia que tratam desse problema. Partindo do pressuposto deque a busca da justiça, seja no âmbito filosófico, seja no âmbitojurídico, deve ser encarada como antecedente lógico para que seconsiga saciar a ânsia do espírito humano por sua efetivação,"justiça e razão prática a partir de Aristóteles" é um tema que seapresenta como de grande relevância para todo estudioso do tema.

Palavras-chave: Aristóteles. Justiça. Razão prática.

ABSTRACT

This study aims to discuss the concept of justice in thearistotelian perspective presented in Nicomachean Ethics. Does notexhaust their source investigation in NE, insofar as he researchedthe work of other philosophers who have engaged on the subject.Considering which the pursuit of justice is the desire of all peoples

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GRYECOS ATTOM VALENTE LOUREIRO ARTIGO

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and the wish for his effectivation keeps roots in the human spirit,the research is intended to indicate how to reach it in aristotelianoptics, as well as provide safe criteria to differentiate the practicesbest suited to its effectiveness. During the study, will be treated therelationship between the act justly and the realization of justice,the disposition of human character to achieve this justice,spontaneous and reflective estates of the human, the influence ofparticular feeling about what would be justice and the impossibilityof one inner feeling to serve as a universal rule. For this purpose, weuse the methodology of research in literature consisting primarilyof reading, book report and comparison of theories of the principalauthors of philosophy which dealing with this problem. Assumingthat the pursuit of justice, whether in philosophy, whether in lawstudy, should be seen as a logical precursor for to satisfy the cravingthe human spirit for its realization, "justice and practical reasonfrom Aristotle" is a theme that presents itself as highly relevant toevery student of the subject.

Keywords: Aristotle. Justice. Practical reason.

Introdução

O presente estudo deriva da nascente de conhecimento insertaem Ética a Nicômaco, obra ímpar na construção da intelectualidadeocidental e expressão da inteligência de Aristóteles. Não esgota suafonte de investigação na EN, ainda que se reconheça a magnitudedo pensamento aristotélico, não disfarçando o deliberado interesseem pesquisar em outras fontes que se dedicaram a pensar o tema.

A busca pela justiça é desejo de todos os povos e o anseiopor sua efetivação guarda raízes no próprio espírito humano. Apartir desta proposição o estudo pretende identificar a forma paraalcançá-la na ótica aristotélica, bem como apresentar critérios se-guros para diferenciar as práticas mais adequadas a sua obtenção.

Aristóteles é, inegavelmente, o filósofo da razão prática, da buscada felicidade a partir do alcance de uma excelência técnica, sendoesta compreendida como o resultado do acúmulo da experiência.

Em que pese a Ética a Nicômaco ser considerada como umtratado exauriente das regras do "como viver", nesta pesquisa se-rão também apresentadas outras proposições filosóficas acerca darelação do ser humano com a busca da justiça.

Neste caminhar intelectual, serão tratadas questões como arelação entre o agir justamente e a realização da justiça, a disposi-ção do caráter humano em alcançar esta justiça, as instâncias refle-xiva e espontânea do humano, a influência do sentimento particu-lar sobre o que seria a justiça e a impossibilidade deste sentimentoíntimo servir como uma regra universal.

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JUSTIÇA E RAZÃO PRÁTICA A PARTIR DE ARISTÓTELES

1 A nascente em Aristóteles

Inicialmente, vale tecer uma breve contextualização da éticanicomaqueia. Aristóteles apresenta sua inteligência na Ética aNicômaco em dez capítulos que poderiam ser divididos em trêspartes, estas assim consideradas como sendo a definição do bem,seu modo de aquisição e, última parte, seu modo de fruição.

O estudo tem sua coluna vertebral, portanto, nos Livros IV, V,VI e VII da EN, como representativos da segunda parte do livro.

A ênfase, por óbvio, centra-se no Livro V, na medida em quenesta oportunidade Aristóteles se dedica ao estudo da justiça, ami-úde.

A questão de fundo, vale antecipar, se relaciona com a ten-dência natural do humano para se dirigir ao fim último, ao bemsupremo, que é definida por Caeiro como a facticidade dacompletude:

Há uma completude (ÔÝëïò) para a qual desde sempretendemos. A vida humana é orientada por um sentidoque lhe dará completude. Enquanto tal, vivemos só decaminho, movidos pelo que ainda não foi de facto obti-do. Apesar de esse sentido ser uma irrealidade, nãodeixa, por isso, de ser efectivo. Orienta-nos e situa-nosao passarmos por tudo aquilo por que passamos e aofazermos tudo aquilo que fazemos. É sob a lógica datenção tendenciosa para a completude que nos aperce-bemos compreensivamente de toda a forma de desvioe fuga ou de aproximação e perseguição: da possibilida-de autêntica que nos permite realizar a nossa existên-cia (CAEIRO, 2002, p. .323).

Esta tenção tendenciosa, portanto, contribuiria, estaria pre-sente, moveria o ser humano para o alcance da absoluta justiça. Seessa justiça seria factível, se seria identificada no mundofenomenológico e, principalmente, se enquanto ideia diretriz al-cançaria uma definição única, são questões que motivam o pensarfilosófico e tangenciam o objeto do presente estudo.

Na mesma linha, este viver só de caminho se encontraria naesfera da esperança. É por conhecer o objeto querido que se trilhao caminho, ainda que não se tenha certeza do resultado que seráefetivamente alcançado.

Este movimento que compele o humano, esta tendência natu-ral, é observado por Rawls, quando afirma que

uma sociedade bem estruturada também é regulada pelaconcepção pública de justiça. Esse fato implica que seusmembros têm um desejo forte e, normalmente, efetivode agir, conforme exigem os princípios de justiça [...] a

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GRYECOS ATTOM VALENTE LOUREIRO ARTIGO

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maioria das doutrinas tradicionais afirma que, até certoponto pelo menos, a natureza humana é tal, que adquiri-mos o desejo de agir de maneira justa quando convivemoscom instituições justas e delas nos beneficiamos. Na medi-da em que tal seja verdade, a concepção de justiça estápsicologicamente adequada às inclinações humanas. Ade-mais, caso o desejo de agir justamente também regulassenosso plano racional de vida, então a ação justa faria par-te do nosso bem. Nessa eventualidade, as concepções dejustiça e de bem são compatíveis e a teoria, como um todo,será coerente (RAWLS, 1981, p. 336-337).

Denota-se que o apetite ( ) em Aristóteles, a tenção ten-denciosa de Caeiro e o desejo forte em Rawls são conceitos que secomunicam e exprimem ideias muito próximas.

Ao iniciar a abordagem acerca dos modos de fruição dos bens,Aristóteles esclarece o conceito de liberalidade (EN IV, 1119b, 21),o fixando como o meio-termo em relação à riqueza (ARISTÓTELES,2002, p. 81). Em outras palavras, fica claro que a riqueza é definidacomo um bem, como algo bom ( ) a ser perseguido pelohomem, ao passo que a virtude necessária à utilização deste bemserá a liberalidade.

Vale lembrar que o meio-termo na ótica aristotélica é o pontode equilíbrio, ou seja, aquele que é equidistante entre o excesso ea falta – “meio-termo no objeto” – e o que não é demasiado nemmuito pouco – “meio-termo em relação a nós” (EN II, 1106a, 25-35)(ARISTÓTELES, 2002, p. 81). Saber como adquirir e, principalmen-te, como distribuir a própria riqueza é a virtude específicaidentificada por Aristóteles.

E, mais adiante, fica evidente que a inteligência aristotélicaestá preordenada para entender que o ato de dar riqueza é maisvirtuoso que o de recebê-la, na medida em que seria mais próprioda virtude praticar o bem do que recebê-lo, bem como praticarações nobres mais do que abster-se da prática de ações ignóbeis(EN IV, 1120a, 10-15) (ARISTÓTELES, 2002, p. 81-82. Fica expresso,em várias passagens da ética nicomaqueia, que a virtude está noagir, no agir bem. A passividade da conduta também é louvada,mas sempre referenciada como de menor valor em comparação como ato de fazer algo.

Um pouco mais adiante, o que foi dito acima será referendadoe esta diferença entre a valoração da conduta do agente e a dopaciente ficará muito bem delineada. Neste ponto, Aristóteles esta-belecerá que as pessoas que dão serão chamadas de liberais, e, por-tanto, representariam o meio-termo da riqueza, enquanto as querecusam receber seriam louvadas não pela liberalidade, mas sim peloespírito de justiça (EN IV, 1120a, 19-25) (ARISTÓTELES, 2002, p. 82).

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JUSTIÇA E RAZÃO PRÁTICA A PARTIR DE ARISTÓTELES

É de destaque a importância da passagem para o presente es-tudo, na medida em que Aristóteles não só estabelece definitiva-mente que o agir é classificado como o ponto máximo da virtude, asua perfeição, ou seja, o meio-termo, como também fica evidenteque a abstenção, ainda que legítima, ainda que virtuosa, aindaque inspirada por um adequado critério de justiça, ainda assim seráuma conduta menor, inferior.

E a justiça, segundo Aristóteles, “é aquela disposição de cará-ter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as fazagir justamente e a desejar o que é justo (EN V, 1129a, 5-10)”(ARISTÓTELES, 2002, p. 103).

À primeira vista, a definição parece mais um jogo de palavrasentre substantivos e adjetivos, ontologicamente sinônimos, do quepropriamente um conceito exauriente. Sendo óbvio que agenialidade aristotélica não se prestaria a tal mister, faz-se necessá-rio alcançar a amplitude do pensamento grego.

Logo de início, é de se reconhecer que essa definição não con-trasta com a ideia assente de que a justiça é um conceito regulador,uma ideia diretriz que organiza o pensamento e confere lógica aoraciocínio.

Com efeito, não há nenhum absurdo em se aliar o substantivojustiça ao adjetivo justo, na medida em que ao se definir o queseria, ou quais as características do ato justo, se alcançará a defini-ção de justiça.

Não parece, contudo, que haja tal preocupação didática emAristóteles, especialmente no que tange à definição de ato justo. Oque há é a preocupação em investigar que espécie de meio-termoseria a justiça e quais os extremos que equidistanciariam do ato justo.

A Ética a Nicômaco é, inexoravelmente, um estudo da razãoprática, uma exposição do que fazer, em última análise do “comoviver”, para se alcançar a felicidade. Nesse contexto, a preocupa-ção parece ter residido na coerência da exposição do raciocíniocomo um todo, sem maior preocupação com a formulação de umtexto acadêmico. A coerência, interna e externa, da obra se verificaem sua totalidade.

Já havendo afirmado que a justiça é uma disposição de cará-ter, Aristóteles passa a apresentar as diferenças existentes entre as“ciências e faculdades” e estas “disposições”. As primeiras se relaci-onariam com objetos contrários, enquanto “uma disposição de ca-ráter, que é um de dois contrários, não pode levar também ao re-sultado contrário (EN V, 1129a, 10-15)” (ARISTÓTELES, 2002, p. 103).

A aridez da afirmação é esclarecida pelo próprio estagiritaquando diz que, “por exemplo, encontramo-nos na situação determos saúde quando não fazemos o que é contrário à saúde, e

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sim o que é saudável” e logo adiante afirma que “muitas vezes,um estado é reconhecido pelo seu contrário, e também com fre-quência os estados são reconhecidos pelos sujeitos nos quais semanifestam (EN V, 1129a, 5-20)” (ARISTÓTELES, 2002, p. 103).

Zingano esclarace o ponto, quando leciona:

as virtudes morais não são alterações entre contrários( ) mas aperfeiçoamentos ( ) de nos-sa capacidade de agir ou não agir face a diferentes situa-ções [...] nossa capacidade de agir é uma capacidade racio-nal dos contrários: o que eu posso fazer, eu posso deixar defazer [...] agora, toda virtude moral humana é, paraAristóteles, tal que, mesmo não sendo, num caso particu-lar, acompanhada de razão ou deliberação, tem de poderser acompanhada de razão (ZINGANO, 2009, p. 82-83).

A diferença residiria na ambiguidade do termo “justiça”, pois,se tal termo for, de fato, ambíguo, também o será o seu contrário,ou seja, a “injustiça”. E, em sendo ambíguos, seus conceitos se apro-ximariam, o que não permitiria dizer, portanto, que o meio-termoseria a equidistância entre eles (EN V, 1129a, 20-30) (ARISTÓTELES,2002, p. 103-104)..

Para evidenciar esta ambiguidade, o exemplo utilizado emEN é bem claro quando equipara o homem que respeita a lei como homem probo, em contraponto com o homem que desrespeitaa lei e o homem ímprobo. No primeiro caso estaríamos diante dehomens justos, enquanto no segundo caso estaríamos diante dehomens injustos (EN V, 1129a, 30) (ARISTÓTELES, 2002, p. 103-104).

Justiça, meio-termo, ação e disposição de caráter são ideias di-retrizes, portanto, e, como tal, preordenam, dando, em conjunto,coerência ao pensamento grego.

2 A relação com a lei e os indivíduos

Prosseguindo a exteriorização de seu raciocínio, a inteligênciado filósofo grego parte da premissa de que os atos prescritos pelaarte do legislador são conforme a lei e dizemos que cada um delesé justo. E, considerando que a lei poderá livremente privilegiar obem comum ou a obtenção/manutenção de vantagem daquelesque detêm o poder, serão justos tanto os atos que tendem a pro-duzir a felicidade ( ) como os que visam preservar os ele-mentos que constituem a sociedade política (EN V, 1129b, 10-20)(ARISTÓTELES, 2002, p. 104-105).

E sobre a sociedade política no pensamento grego clássico,Vaz (2004, p. 136-137) apresenta a seguinte definição:

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JUSTIÇA E RAZÃO PRÁTICA A PARTIR DE ARISTÓTELES

A sociedade política se apresenta exatamente como ointento de desvincular a necessidade natural da associ-ação e a utilidade comum dela resultante, do exercíciodo poder como força ou como violência, e assumi-las naesfera legitimadora da lei e do Direito. Esse intento viráa concretizar-se historicamente na invenção da póliscomo Estado onde o poder é deferido à lei ou à consti-tuição (politeia).

Em outra passagem, fica reafirmada esta ideia quando se dizque

a justiça existe apenas entre homens cujas relações mú-tuas são regidas pela lei, e a lei existe para os homensentre os quais pode haver injustiça, pois a justiça legal é adiscriminação entre o que é justo e injusto... a justiça e ainjustiça se relacionam com a lei e existem entre pessoasnaturalmente sujeitas à lei, as quais são pessoas que têmpartes iguais em governar e ser governadas (EN V, 1134a,30; 1134b, 10) (ARISTÓTELES, 2002, p. 104-105).

Esse é um dos pontos nos quais Aristóteles se aproxima dePlatão, especialmente quando este último passa a adequar para a“cidade” a expressão “ser senhor de si” e afirma que “dirás quecom justiça que ela [a cidade] é proclamada senhora de si, se real-mente se deve denominar sensato e senhor de si tudo aquilo cujaparte melhor governa a pior (R IV, 431a-e)” (PLATÃO, 2010, p. 125),e mais adiante conclui que o critério para auferição do meio-ter-mo1 seria a temperança (R IV, 432a-e):

De maneira que poderíamos dizer com toda a razãoque a temperança é esta concórdia, harmonia entre osnaturalmente piores e os naturalmente melhores, so-bre a questão de saber quem deve comandar, quer nacidade quer num indivíduo (PLATÃO, 2010, p. 125-126).

Nesta toada, em Aristóteles a justiça se apresenta como a maiscompleta virtude, por ser o exercício atual da virtude completa.“Ela é completa porque a pessoa que a possui pode exercer suavirtude não só em relação a si mesmo, como também em relação aopróximo, uma vez que muitos homens exercem sua virtude nos as-suntos privados (EN V, 1129b, 25-30)” (ARISTÓTELES, 2002, p. 104-105). E a virtude (areté) nessa passagem é apresentada como oponto máximo, como a perfeição que uma atividade pode atingir.

Abrindo um parêntese, que talvez tangencie o devaneio, pa-rece que o processo de formação da razão prática, assim considera-do como a soma da experiência, das escolhas do humano, no que

1 Expressão utilizada por Aristóteles.

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tange à justiça e sob a ótica da filosofia sartreana, careceria de umanecessária dicotomia entre o que o homem faz espontaneamentee o que ele faz reflexivamente. E considerando essa possível duplainstância, inafastável considerar a possibilidade de se obrar bem eobrar mal, com boa ou com má-fé. Trogo (2011, p. 55) nos apresen-ta uma precisa enunciação da hipótese:

A má-fé exsurge da modalidade de um ser que se nutredo dinamismo de duas instâncias que se interagem: o es-pontâneo e o reflexivo. Estes são os dois modos de ser dohomem e a má-fé se instala aí nesta passagem de umainstância (espontaneidade) à outra (reflexividade). O queacontece lá, na espontaneidade, não é registrado tudo cá,na reflexividade. Este real lá do espontâneo, irrecuperávelcá no reflexivo, tem dois tipos da presença: uma, atual,vibrante, flagrante, fluente, viva, e outra, passada, mumi-ficada, petrificada, enquanto arquivada na reflexão.

Assim, considerando a ideia individual, íntima, de justiça que cadaum traz dentro de sua consciência, ou mesmo a ideia geral, assim con-siderada como a soma das individualidades, seria necessário investi-gar se o processo individual de definição conceitual do que seria ajustiça seria capitaneado pela instância reflexiva ou espontânea. E, seesse processo interno variasse entre os viventes, uns espontaneamen-te e outros reflexivamente, onde encontrar o meio-termo aristotélico?A busca da resposta para esta indagação transborda completamenteo âmbito de segurança deste trabalho e, portanto, a enunciação doquestionamento fica como um parêntese inconcluso.

Fechando o parêntese, antes que a hipótese ganhe vida, nosabsorva e consuma, e buscando alcançar a genialidade aristotélica,verifica-se que em EN a justiça é matemática, aritmética. Ainda quese considere que a razão prática é o resultado da produção dohumano, não se pode perder de vista que ela será fruto da exce-lência técnica ( ), adquirida pela práxis ( ), mediante aobservação de um adequado método ( ) e preordenada paraalgo bom ( ).

Além disso, a justiça em EN poderia ser dividida em distributiva,que seria o meio-termo diante de uma igualdade de razões (EN V,1131b, 10-15); a corretiva, que seria o meio-termo entre perda eganho (EN V, 1132a, 15); e a política, subdividida em natural elegal, sendo a primeira com força em todos os lugares sem exceção,e a segunda a regra editada pelo legislador (EN V, 1134b, 15-25)(ARISTÓTELES, 2002, p. 109-117).

Digno de nota que o conceito de reciprocidade, tal como écomumente entendido, não se adequaria nem à definição de justi-ça distributiva nem à de justiça corretiva, na medida em que care-

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JUSTIÇA E RAZÃO PRÁTICA A PARTIR DE ARISTÓTELES

ceria de um adequado critério de proporcionalidade (EN V, 1132b,25 e 1136a, 1-5). Aristóteles já vislumbrava que para a efetivaçãoda justiça, nem sempre seria apenas necessário recompor uma situ-ação fática ou mesmo devolver o que fora eventualmente subtraí-do. Que fique expresso, portanto, que o filósofo já considerava anecessária observância a um critério de proporcionalidade muitoantes das teorias jurídicas, o que também evidencia a suagenialidade (ARISTÓTELES, 2002, p. 112-120).

Aristóteles passa, então, a pensar sobre a medida da participaçãoda outra parte de uma relação conflituosa quanto ao ato justo ouinjusto. A questão se esgotaria na conduta do agente, ou seja, a qua-lificação de justo ou injusto de determinado ato dependeria exclusi-vamente do interesse do autor da ação? A resposta não tarda, nosentido de se reconhecer que tanto na ação quanto na passividadeseria possível participar, acidentalmente, da justiça ou da injustiça, sen-do que a contribuição na passividade estaria relacionada à condutado homem incontinente (EN V, 1136a, 10) (ARISTÓTELES, 2002, p.121). A pessoa justa, portanto, não se identifica na passividade, massim na ação.

Partindo da admissão do concurso da parte passiva, surge apergunta se a injustiça seria de quem a praticou ou de quem vo-luntariamente a teria recebido e, abrindo ainda mais a indagação,se seria possível um homem agir injustamente em relação a si mes-mo. A resposta é imediata, no sentido de reconhecer que quemage injustamente é quem pratica o ato e, por conclusão lógica,este agente teria praticado contra si um ato injusto (EN V, 1136b,15) (ARISTÓTELES, 2002, p. 122).

Para um melhor entendimento da inteligência grega, vale re-troceder um pouco no EN, a fim de se identificar o esclarecimentode que a virtude não é só uma disposição, mas sim uma disposiçãoque torna o homem bom e o compele a desempenhar bem a suafunção (EN II, 1106a, 15-20) (ARISTÓTELES, 2002, p. 47-122). Assim,como a liberalidade é um meio-termo entre dar e obter riquezas,quem der mais do que o devido agirá injustamente (EN IV, 1120b,25-30) (ARISTÓTELES, 2002, p. 47-122).

Aprofundando o conceito de meio-termo, Aristóteles afirmaque este deve prevalecer sobre o excesso e sobre a falta e ser deter-minado pelos ditames da reta razão (EN VI, 1138b, 15-20)(ARISTÓTELES, 2002, p. 128).

Para identificar esta reta razão, é necessário investigar as dis-posições da alma, as dividindo em virtudes do caráter e do intelec-to (EN VI, 1138b, 30) (ARISTÓTELES. 2002, p. 128).

A alma é dividida em duas partes: a racional e a desprovida derazão. A racional pode ser dividida em contemplação às coisas in-

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variáveis e contemplação às coisas variáveis (EN VI, 1139a, 5)(ARISTÓTELES, 2002, p. 128).

Considerando a virtude como o funcionamento adequado dealgo, a alma teria três elementos que controlariam a ação e a ver-dade, ou seja, a sensação, a razão e o desejo (EN VI, 1139a, 15)(ARISTÓTELES, 2002, p. 129). A sensação não demanda reflexão,estando presente, inclusive, nos animais. Raciocínio e desejo de-vem ser verdadeiros e retos, respectivamente, devendo o segundobuscar o que o primeiro determina, culminando com o alcance doequilíbrio entre intelecto e caráter (EN VI, 1139a, 20-30)(ARISTÓTELES, 2002, p. 129).

Além disso, também há uma diferenciação entre os tipos devirtude e sobre esta formulação vale trazer a lume a interpretaçãode Zingano (2009, p. 80):

Do ponto de vista que contempla todos os tipos de vir-tude, a distinção será tripartite: as virtudes podem serou naturais, ou adquiridas pelo hábito ou, ainda, obti-das mediante o uso da razão. Do ponto de vista restrito,porém, a virtude é moral, há dois modos somente. Oprimeiro consiste na virtude moral adquirida pelo hábi-to; o segundo consiste na virtude moral (adquirida pelohábito) acompanhada de razão.

E nos parece ser este o tipo de virtude que tem relação com ajustiça na ética nicomaqueia, na medida em que a completude dajustiça só seria alcançada pelo concurso das virtudes morais enunci-adas por Aristóteles, que poderiam ou não ser adquiridas pelo há-bito, qualificadas pelo concurso da razão. Nessa mesma linha,Zingano (2009, p. 80-81) conclui:

as virtudes morais não são nem naturais nem contra anatureza; nós temos, isto sim, por natureza ( ) acapacidade de recebê-las, e esta capacidade é aperfei-çoada pelo hábito. Em vista desta capacidade [...]Aristóteles chamou de natural tal tipo de virtude, masnão se deve esquecer que se trata de uma virtude mo-ral natural, , obtida pelo hábito.Talvez tenha sido para evitar este mal-entendido queAristóteles tomou a precaução de, numa passagem, lem-brar que a virtude natural em questão é uma virtudeadquirida pelo hábito, .

Prosseguindo no raciocínio, teremos cinco disposições em vir-tude das quais a alma possuirá a verdade, seja afirmando, seja ne-gando: a arte, o conhecimento científico, a sabedoria prática, asabedoria filosófica e a razão intuitiva (EN VI, 1139b, 15)(ARISTÓTELES, 2002, p. 130).

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JUSTIÇA E RAZÃO PRÁTICA A PARTIR DE ARISTÓTELES

O conhecimento científico é um estado que nos torna capazesde demonstrar algo (EN VI, 1139b, 30) (ARISTÓTELES, 2002, p. 131).A arte é uma disposição relacionada com produzir, que envolve oreto raciocínio (EN VI, 1140a, 20) (ARISTÓTELES, 2002, p. 132). Asabedoria prática é a capacidade verdadeira e raciocinada de agirno que diz respeito às ações relacionadas com os bens humanos(EN VI, 1140b, 20) (ARISTÓTELES, 2002, p. 133). A sabedoria filosó-fica busca a demonstração de determinadas coisas (EN VI, 1141a)(ARISTÓTELES, 2002, p. 133), é um conhecimento científico combi-nado com a razão intuitiva daquelas coisas que são as mais eleva-das da natureza (EN VI, 1141b) (ARISTÓTELES, 2002, p. 133). A ra-zão intuitiva é a que apreende os primeiros princípios (EN VI, 1141a,5) (ARISTÓTELES, 2002, p. 134).

A conclusão, neste particular, é que a reta razão é o que estáde acordo com a sabedoria prática (EN VI, 1144b, 20) (ARISTÓTELES,2002, p. 144). O direito, por sua vez, nasce, se desenvolve e vive darazão prática, dessa operacionalidade do ser humano.

Pensando sobre a influência da razão prática sobre o direito,em contraponto ao imperativo categórico kantiano2, é possível vis-lumbrar, em princípio, uma similitude no raciocínio dos filósofos,na medida em que a razão prática é consequência do agir.Aprofundando-se um pouco mais sobre o pensador alemão, entre-tanto, e considerando a felicidade como o fim último em Aristóteles,a semelhança tende a diminuir. Kant parece reconhecer que nãoseria possível a razão prática determinar um sólido critério para asatisfação do princípio da felicidade, na medida em que a razãoprática tem por base o acúmulo da experiência, da perícia humanae, como tal, estaria sujeita à opinião de cada um. Por isso, a razãoprática poderia ser relevante até mesmo para a fixação de umaregra que pudesse ser geral, mas jamais universal:

O princípio da felicidade, embora possa fornecer máxi-mas, não pode jamais fornecer aquelas que serviriamde leis da vontade, mesmo se tomássemos como objetoa felicidade universal. Porque o conhecimento desseprincípio se funda em meros dados empíricos, e nãoobstante todo juízo acerca dele depender, em grandeparte, da opinião de cada um, o que resulta ser extre-mamente variável, pode certamente facultar regrasgerais, mas não universais, isto é, pode apresentar re-gras que, em média, são, no mais das vezes, exatas, masnão regras que sempre e necessariamente devam serválidas; portanto, não se deve assentar sobre tal princí-pio lei prática alguma (KANT, 2008, p. 40-46).

2 Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre como princípiode uma legislação universal.

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Neste excerto, fica claro que Kant também não fechou os olhospara a realidade do mundo prático, uma espécie de colcha de reta-lhos, cujos pedaços de pano que a compõem são as opiniões parti-culares sobre o que seriam regras válidas, todas ávidas a se sobre-porem umas às outras e emergirem como regras gerais.

De forma análoga, estando esta analogia circunscrita ao reco-nhecimento da miríade de classificações pessoais sobre os conceitosreguladores, in casu especialmente a justiça, a moral e o direito,observamos em Heidegger (2011, p. 110-112) uma proximidade deentendimento quando diz:

“mundanidade” é um conceito ontológico e significa aestrutura de um momento constitutivo de ser-no-mun-do. Este, nós o conhecemos como uma determinação exis-tencial da presença. Assim, a mundanidade já é em simesma um existencial. Quando investigamosontologicamente o “mundo”, não abandonamos, de for-ma nenhuma, o campo temático da analítica da presen-ça. Do ponto de vista ontológico, “mundo” não é deter-minação de um ente que a presença em sua essência nãoé [...] mundo designa, por fim, o conceito existencial-ontológico da mundanidade. A própria mundanidadepode modificar-se e transformar-se, cada vez, no conjun-to de estruturas de “mundos” particulares, embora in-clua em si o a priori da mundanidade em geral.

Nessa passagem fica claro que para Heidegger o mundo é umconjunto de individualidades e que, aqui um pouco mais enfáticoque Kant, somente em princípio pode ser considerado como geral.

Já Habermas (2010), evoluindo (ou contestando) o pensamentokantiano aqui já descrito, bem como escudado em sua filosofia dalinguagem e já preparando (intuitivamente) o terreno sobre o qualAlexy (2011) elaboraria sua teoria da argumentação jurídica, buscaa obtenção de critérios precisos para a distinção entre princípio dedemocracia e princípio moral:

parto da circunstância de que o princípio da democraciadestina-se a amarrar um procedimento de normatizaçãolegítima do direito. Ele significa, com efeito, que somen-te podem pretender validade legítima as leis jurídicascapazes de encontrar assentimento de todos os parcei-ros do direito, num processo jurídico de normatizaçãodiscursiva. O princípio da democracia explica, noutros ter-mos, o sentido performativo da prática da autodetermi-nação de membros do direito que se reconhecem mutu-amente como membros iguais e livres de uma associaçãoestabelecida livremente. Por isso, o princípio da demo-cracia não se encontra no mesmo nível que o princípiomoral (HABERMAS, 2010, p. 145).

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JUSTIÇA E RAZÃO PRÁTICA A PARTIR DE ARISTÓTELES

Sobre o aspecto negativo da moral, Aristóteles identifica trêsespécies de disposições morais que devem ser evitadas: o vício, a in-continência e a bestialidade. Os contrários serão a virtude e a conti-nência. Já à bestialidade, o mais adequado seria opor uma virtudesobre-humana (EN VII, 1145a, 15-20) (ARISTÓTELES, 2002, p. 145).

Denota-se, sem muito esforço, que Aristóteles já externava suapreocupação com as disposições morais e sua relação com a justiça.Tal preocupação se acirraria durante os séculos vindouros, especi-almente quanto a saber se a moral integra ou não o conceito dedireito.

E saber se a moral integra ou não o conceito de direito teráinfluência direta no que virá a ser definido – pela razão práticamomentânea – como justiça.

Basta um breve passar de olhos à dicotomia entre juspositivismoe jusnaturalismo para que se tenha uma noção do alcance e dasconsequências de se entender desta ou daquela maneira.

Contemporaneamente, a solução parece estar apontada paraa existência de uma teoria integrativa, como a proposta de Alexy(2011) antes referenciada, cuja investigação transborda ao objetodeste estudo.

Conclusão

Neste ponto do trabalho, parece que toda a evolução da ciên-cia humana nessa seara, seja no campo filosófico, seja no pura-mente jurídico, edifica sua intelectualidade calcada nas sólidas fun-dações estabelecidas pelos antigos filósofos gregos, especialmentepor Aristóteles e sua ética nicomaqueia.

Em que pese a existência desta raiz comum, entretanto, nãosignifica que os filósofos concordem integralmente com todas asproposições de razão prática.

No curso da pesquisa, ficou evidenciado que a influência doelemento humano na busca da justiça somente é determinante noâmbito da percepção pessoal do que seria a justiça. Jamais poderávaler como regra universal, ainda que expressão de um pensamen-to comum, geral. Em outras palavras, a ideia de justiça que cadaum nutre em seu íntimo só vale para si, ainda que seja um senti-mento aparentemente comum na comunidade na qual a pessoaestiver inserida.

Segundo Aristóteles, a justiça seria a virtude mais relevantedentre aquelas identificadas nos seres humanos e a sua obtençãodependeria, inexoravelmente, do agir. A passividade, como vista,revelaria uma disposição de caráter de menor relevância ainda querevestida de justiça.

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A busca da justiça, portanto, seja no âmbito filosófico, seja noâmbito jurídico, deve ser encarada como antecedente lógico paraque se consiga saciar a ânsia do espírito humano por sua efetivação.

Neste caminhar, será inafastável abordar a relação entre o di-reito e a moral e mesmo questionar a legitimidade para a defini-ção da justiça.

E se nos desola ainda não havermos encontrado solução defi-nitiva para a efetivação da justiça, nos confortam os ensinamentosde Aristóteles, na medida em que podemos confiar que o concursoda técnica ( ), que é o combustível da razão prática, sendoedificada dia a dia com mira na perfeição, nos conduziráinexoravelmente a algo bom ( ), sempre tendo por nor-te o bem supremo, a felicidade ( ).

Referências

ALEXY, Robert. Teoria da Argumen-tação Jurídica: a teoria do discursoracional como teoria da fundamenta-ção jurídica. Trad. Zilda HutchinsonSchild Silva. Rio de Janeiro: Forense,2011.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.Trad. Pietro Nassetti. São Paulo:Martin Claret, 2002. (Coleção A Obra-Prima de Cada Autor)

CAEIRO, Antonio de Castro. A aretécomo possibilidade extrema do hu-mano. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Direito e demo-cracia: entre facticidade e validade.Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 2010. v. I.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo.Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback.Bragança Paulista: Vozes, 2011.

KANT, Immanuel. Crítica da RazãoPrática. Trad. Rodolfo Schaefer. SãoPaulo: Martin Claret, 2008. (ColeçãoA Obra-Prima de Cada Autor)

PLATÃO. A república. Trad. Pietro Nas-setti. São Paulo: Martin Claret, 2010. (Co-leção A Obra-Prima de Cada Autor)

RAWLS, John. Uma teoria da justi-ça. Trad. Vamireh Chacon. Brasília:UNB, 1981.

TROGO, Sebastião. O impasse damá-fé na moral de J.-P. Sartre. BeloHorizonte: Ciência Jurídica, 2011.

VAZ, Henrique Claudio de Lima. Es-critos de filosofia II. Ética e cultura.São Paulo: Edições Loyola, 2004.

ZINGANO, Marco Antonio de Avila.Estudos de ética antiga. São Paulo:Paulus, 2009.

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A CONVENÇÃO 158 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

A Convenção 158 da OrganizaçãoInternacional do Trabalho: por que odireito internacional pode colaborar

com o direito interno brasileiro?

Anelise Ribeiro PletschAdvogada da CAIXA no Rio Grande do Sul

Mestre em Direito e professora de direitointernacional e direitos humanos na Universidade do

Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS

RESUMO

Embora a produção normativa da Organização Internacionaldo Trabalho exista desde sua criação, em 1919, o ordenamentojurídico nacional ainda resiste a adotar as Convenções eRecomendações do Trabalho como legítimos instrumentos deproteção ao trabalhador. Especialmente no que tange à Convenção158 da OIT, objeto de denúncia unilateral por parte do PoderExecutivo brasileiro, a questão é ainda mais delicada, tendo emvista que, após efetivamente ter sido incorporada ao ordenamentojurídico brasileiro, foi excluída da ordem jurídica interna de umaforma bastante questionada sob o ponto de vista do direitointernacional.

Palavras-chave: Convenções e Recomendações. OrganizaçãoInternacional do Trabalho. Brasil. Convenção 158.

Resúmen

Aunque la producción normativa de la OrganizaciónInternacional del Trabajo exista desde su creación, en 1919, elordenamiento jurídico brasileño todavía resiste a adoptar losConvenios y Recomendaciones del Trabajo como herramientaslegítimas de protección al trabajador. En especial a lo que se refiereel Convenio 158 de la OIT, objeto de denuncia unilateral por partedel Poder Ejecutivo brasileño, la cuestión es todavía más delicada,puesto que, después de haber sido efectivamente incorporada alordenamiento jurídico brasileño, la misma fue excluida de la ordenjurídica interna de forma bastante controvertida desde el puntode vista del derecho internacional.

Palabras-clave: Convenios y Recomendaciones. OrganizaciónInternacional del Trabajo. Brasil. Convenio 158.

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ANELISE RIBEIRO PLETSCH ARTIGO

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Introdução

Os autores costumam referir, nos estudos sobre direito interna-cional dos direitos humanos, que a criação da Organização Inter-nacional do Trabalho (OIT), ao lado do Direito Internacional Hu-manitário e da criação da Liga das Nações, contribuiu em definiti-vo para a difusão do tema no plano internacional, em uma épocaem que o modo com que os indivíduos eram tratados competiaunicamente ao domínio reservado estatal. Ainda hoje, a entidadebusca a promoção da justiça social e do reconhecimento internaci-onal dos direitos humanos e trabalhistas, formulando, para tanto,normas internacionais do trabalho.

Em que pese a intensa produção normativa da Organização eseu significado para o direito internacional, pode-se afirmar que,no Brasil, os operadores do direito ainda resistem à utilização dosreferidos instrumentos, confirmando existir um espaço pouco ex-plorado, mas extremamente fértil, para o manejo de tal arcabouçonormativo, especialmente nas demandas laborais.

Nesse contexto, insere-se também a controvérsia existente emtorno da Convenção 158 da OIT, com sua vedação à despedidaimotivada do trabalhador, porquanto, pouco menos de um anoapós ter sido validamente incorporada ao ordenamento jurídicobrasileiro, foi denunciada por ato do Poder Executivo, configuran-do, para muitos, um verdadeiro retrocesso na proteção ao direitodos trabalhadores.

Em face das repercussões internacionais e nacionais que o temasuscita, ele merece ser visitado, o que se passa a fazer no presentemomento.

1 As Convenções e Recomendações Internacionais doTrabalho em face do direito internacional

As Convenções e Recomendações do Trabalho, ou normas in-ternacionais do trabalho, são, em essência, uma tentativa bem-su-cedida da OIT de padronizar o tratamento dado pelos Estados àproteção do trabalho e do trabalhador mediante adoção de ins-trumentos jurídicos vinculantes ou de orientação no plano inter-nacional.

Materialmente, não há distinção entre elas e os demais trata-dos internacionais de proteção aos direitos humanos, já que todossão instrumentos aptos a tutelar o trabalho e o trabalhador, assimcomo temas correlatos. A diferença reside no aspecto formal, sen-do justamente essa característica que define os efeitos jurídicos decada um dos instrumentos (MAZZUOLI, 2008, p. 898).

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A CONVENÇÃO 158 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

As Convenções constituem tratados multilaterais abertos à rati-ficação dos Estados membros da Organização Internacional do Tra-balho, sendo que esse ato confere eficácia e aplicabilidade às res-pectivas ordens jurídicas internas estatais, porquanto é a forma pelaqual um Estado manifesta seu consentimento em obrigar-se pelotexto de um tratado. As Recomendações, por seu turno, não sãotratados internacionais no sentido estrito do termo e destinam-se asugerir normas que podem ser adotadas pelo legislador de cada país,através de qualquer das fontes autônomas do Direito do Trabalho.Tem-se, assim, que as Convenções, uma vez ratificadas, são de obser-vância obrigatória por parte dos Estados, ao passo que as Recomen-dações constituem, como, aliás, o próprio nome sugere, apenas umconvite ao Estado para que adote certas medidas ou princípios atra-vés de sua legislação interna (SÜSSEKIND, 2000, p. 182).

Logo, pode-se observar que a Convenção cria, de fato, umaobrigação jurídica internacional para o Estado que a aceita. Afir-ma-se que a Recomendação surge, em geral, para antecipar futu-ras Convenções, já que, no momento, estas ainda não são possíveisou oportunas (CAMPOS, 1999, p. 408). Contudo, embora a Reco-mendação seja desprovida de natureza obrigatória, ela traz aosEstados algumas condutas inafastáveis, como, por exemplo, a obri-gação de submeter seu texto, no prazo de um ano, ou mais tardar18 meses, às autoridades nacionais competentes, para o fim de ava-liar a possibilidade de adoção de eventuais medidas internas deaplicação da recomendação ou, ainda, relatar periodicamente aodiretor-geral da OIT, em datas determinadas, o estado da legisla-ção nacional sobre matéria que é objeto de recomendação (CAM-POS, 1999, p. 408).

Em face das diferenças acima relatadas, a doutrina defendeque a Convenção é considerada modo de uniformização do direi-to sociolaboral nos Estados que a ratificarem, tendo em vista que,com a ratificação, eles ficam sujeitos às disposições comuns nelaconstantes. Como antes mencionado, o mesmo não ocorre com aRecomendação, entendida apenas como instrumento de aproxi-mação das legislações dos Estados que aceitem lhe dar seguimen-to, implementando-a mais ou menos fielmente na ordem jurídicainterna (CAMPOS, 1999, p. 409).

Por outro lado, embora a Convenção da OIT seja um tratadointernacional, pode-se afirmar que ela guarda algumas particulari-dades que a distancia do processo de formação dos acordos inter-nacionais, já que obedece a um método bastante peculiar de ela-boração e adoção.

Resumidamente, é possível dizer que, de acordo com o proce-dimento de formação dos tratados internacionais previsto na Con-

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venção de Viena sobre Direito dos Tratados, um acordo internacio-nal é, inicialmente, adotado por unanimidade ou dois terços dosEstados presentes e votantes em uma Conferência Internacional.Depois, o instrumento é remetido à ordem jurídica interna de cadaEstado signatário para que este, normalmente por meio do seuPoder Legislativo, possa se pronunciar a respeito da compatibilida-de do tratado internacional com a ordem jurídica interna e do in-teresse do Estado em se comprometer pelo texto do acordo antesassinado. Havendo a aprovação interna, é possível que o Estadoretorne ao plano internacional e, por meio de seu Poder Executi-vo, comprometa-se pelo texto desse tratado através da ratificação.Assim é que apenas com a ratificação o Estado dá seu consentimen-to em obrigar-se pelo texto de um tratado. Depois desse ato, otratado estará pronto para vigorar no plano internacional e irradi-ar efeitos.

Sabe-se que, em regra, tratados são celebrados por sujeitosde direito internacional, como Estados e Organizações Internaci-onais, diretamente através de seus representantes. As normas in-ternacionais do trabalho não são adotadas pelos Estados direta-mente por meio de seus representantes, como ocorre, em regra,nos tratados, mas no âmbito da própria OIT, através da Conferên-cia Geral, órgão tripartite composto por representantes dos em-pregadores, dos empregados e, ainda, dos Estados-membros namesma proporção quantitativa e com idêntico poder decisório(CAMPOS, 1999, p. 406).

Além disso, um tratado internacional assinado pelos signatári-os é normalmente remetido às ordens jurídicas internas para análi-se do Poder Legislativo, o que permitirá, mais tarde, eventual rati-ficação do instrumento pelo Poder Executivo no plano internacio-nal. Contudo, para os tratados internacionais não há, em regra,prazo para referida submissão a seus ordenamentos jurídicos, damesma forma que não há sequer obrigatoriedade de submissão doinstrumento ou, ainda, necessidade de posterior ratificação pelosimples fato de ter ocorrido a assinatura do acordo no plano inter-nacional.

Em se tratando de uma Convenção da OIT, por força do artigo19, parágrafo 5º da Constituição da Organização, as autoridadesgovernamentais estão obrigadas a submetê-la à aprovação do ór-gão nacional competente depois que ela for adotada no planointernacional, o que deve ocorrer em um prazo de 12 a 18 meses.No caso brasileiro, considera-se que essa autoridade seja o PoderLegislativo, já que, de acordo com o artigo 49, inciso I da CF/88, aele cabe decidir definitivamente a respeito de acordos internacio-nais assinados pelo Brasil.

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A CONVENÇÃO 158 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

Outra questão interessante é que, em regra, a ratificação dotexto de um tratado não é uma obrigação estatal. A doutrina con-sidera que se trata de um ato discricionário de direito internacio-nal. Contudo, em se tratando de Convenção Internacional do Tra-balho, a "não ratificação" traz para o Estado a obrigação de rela-tar à OIT as dificuldades que determinaram o atraso ou impedirama ratificação da Convenção, bem como o estágio da legislação e aprática nacional relativamente à matéria que é objeto da Conven-ção. Embora existam vozes dissonantes na doutrina, entendendo,como Mazzuoli (2011, p. 1030), que a ratificação de uma Conven-ção da OIT é obrigatória ao Estado se obtida a aprovação da "au-toridade competente", por força do disposto no artigo 19, §5º,alínea b da Constituição da OIT, pode-se afirmar que, para os de-mais, a adoção de uma Convenção Internacional do Trabalho pelaConferência Geral não implica obrigação de resultado (traduzidana ratificação) para os Estados, mas mera obrigação de comporta-mento (CAMPOS, 1999, p. 407).

Por outro lado, havendo a ratificação, a Convenção Internaci-onal do Trabalho obriga o Estado no plano internacional e, tam-bém, permite que o instrumento seja levado às ordens internas paraeventual publicação e promulgação.

Por fim, em se tratando de normas internacionais do trabalho,resta mencionar que um Estado, apesar de ratificar uma Conven-ção, não está obrigado a se manter vinculado a ela, podendo efe-tuar a denúncia de seu texto. Para os instrumentos adotados a par-tir de 1928, que são a maioria, a denúncia pode ocorrer dentro deum intervalo (normalmente um ano), a contar de uma sucessão deexpiração de períodos (geralmente dez anos), contados a partir dadata em que a Convenção original entrou em vigor (ORGANIZA-ÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1993, p. 41).

Considerando as distinções essenciais acima relatadas, é pos-sível concluir que as Convenções Internacionais do Trabalho guar-dam maior interesse de estudo, já que, por suas características,podem influenciar a ordem jurídica interna, como se passa a ana-lisar.

2 As Convenções Internacionais do Trabalho e o direitobrasileiro

No Brasil, em que pese o número significativo de Constitui-ções promulgadas desde o Império, a disciplina das relações entredireito interno e direito internacional permanece praticamente amesma desde a primeira Constituição da República (FRAGA, 2006,p. 48).

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Com efeito, a Constituição de 1891 estabelecia, no artigo 48,a competência privativa do Presidente da República para negociare celebrar ajustes, convenções e tratados internacionais, ad refe-rendum do Congresso Nacional, reconhecendo, ainda, no artigo34, a competência exclusiva deste para resolver definitivamentesobre tratados e convenções com nações estrangeiras. Mais tarde,as Constituições de 1934, 1946 e 1967, com a redação da EC nº 1/69, reproduziram praticamente o mesmo dispositivo (MEDEIROS,1995, p. 286-289). Hoje, os artigos 84, inciso VIII, e 49, inciso I, daConstituição Federal estabelecem a mesma disciplina das Cartasanteriores, atribuindo ao Presidente da República competênciaprivativa para "celebrar tratados, convenções e atos internacionais,sujeitos a referendo do Congresso Nacional" e, a este, a competên-cia exclusiva para "resolver definitivamente sobre tratados, acor-dos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromis-sos gravosos ao patrimônio nacional".

Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece, cons-titucionalmente, um mecanismo de recepção das normas internaci-onais que, aliado à prática brasileira desde antes da República(RESEK, 1984, p. 385), tem a seguinte formatação1: os compromis-sos negociados e adotados pelo Poder Executivo no plano externoserão submetidos à aprovação do Poder Legislativo internamente,quando, então, poderão ser ratificados por aquele novamente noplano internacional. Contudo, para ser válido e eficaz no âmbitointerno, o acordo deve, ainda, ser promulgado por Decreto doPoder Executivo, após a ratificação ocorrida no plano internacio-nal (FRAGA, 2006, p. 61-63).

A participação do Congresso Nacional na aprovação do trata-do é necessária para que o ato internacional reste concluído aomesmo tempo em que reflete a aquiescência à matéria versada noacordo. A intervenção do Legislativo se justifica pela funçãofiscalizadora que exerce sobre atos do Poder Executivo, que é ocompetente para negociar acordos e assiná-los no plano internaci-onal. No entanto, tal intervenção não é capaz de gerar uma normade obediência interna. Trata-se apenas de uma etapa no processode formação do ato internacional. A manifestação do CongressoNacional, se favorável, permitirá ao Poder Executivo a ratificaçãodo instrumento, obrigando o Brasil no plano externo, da mesmaforma que a rejeição impedirá a formalização do compromisso in-ternacional. Ademais, embora siga quase o mesmo processo desti-nado a gerar a lei, o decreto legislativo que aprova o tratado não

1 Alerta-se o leitor para o fato de que a abordagem, aqui, é a da regra geral, semingressar na discussão a respeito dos tratados executivos, cujo objeto foge aointuito do presente trabalho.

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pode ser a ela equiparado. Enquanto a lei em sentido estrito re-quer a participação de ambos os poderes, o decreto legislativo sedistingue pela matéria e por não poder ser sancionado ou vetado(FRAGA, 2006, p. 56-59).

Como se viu, após a aprovação pelo Poder Legislativo, se rati-ficado, o tratado entra em vigor na ordem internacional na datanele estipulada. Para vigorar no Brasil, contudo, é necessário queseja promulgado pelo chefe do Executivo por meio de decreto. É,pois, o decreto de promulgação que atesta a existência de umanorma jurídica. Por meio dele, o Executivo declara que foramexigidas as formalidades para que o ato se completasse. Não trans-forma o direito internacional em direito interno, apenas noticia aexistência de um tratado válido no âmbito interno. A publicação,por sua vez, é necessária para dar conhecimento a todos do decre-to de promulgação. É a partir dela que o tratado deve ser observa-do pelos particulares e aplicado pelos Tribunais (FRAGA, 2006,p. 68-69; RESEK, 1984, p. 383).

Acrescenta, ainda, Mazzuoli (2001, p. 179) que "a promulga-ção e a publicação no sistema brasileiro compõem a fase integratóriada eficácia da lei, vez que atestam sua adoção pelo PoderLegislativo, certificam a existência de seu texto, e afirmam, final-mente, seu valor imperativo e executório".

Tal construção é amplamente defendida pela doutrina, em-pregada na prática e encontra respaldo nos Tribunais. No que tan-ge ao Supremo Tribunal Federal, mesmo antes da Carta de 1988,sua posição consolidou-se no sentido da necessidade de promul-gação do tratado para ganhar força executória na ordem interna(FRAGA, 2006, p. 70-71).

Em importante precedente, já sob a égide da Constituição atu-al, o Supremo Tribunal Federal, instado a analisar caso concretoem que tratado não contava com promulgação por meio de Decre-to Executivo, assim manifestou-se no voto condutor:

A questão da executoriedade dos tratados internacio-nais no âmbito do direito interno - [...] - supõe a préviaincorporação desses atos de direito internacional públi-co ao plano da ordem normativa doméstica. Nãoobstante a controvérsia doutrinária em torno domonismo e do dualismo no plano do direito internacio-nal público tenha sido qualificada por CHARLESROUSSEAU ("Droit Internacional Public Aproffondi", p.3/16, 1958, Daloz, Paris") como mera "discussiond'ecole", torna-se necessário reconhecer que o meca-nismo de recepção, tal como disciplinado pela Carta Po-lítica brasileira, constitui a mais eloquente atestação deque a norma internacional não dispõe, por autoridadeprópria, de exequibilidade e de operatividade imedia-

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tas no âmbito interno, pois, para tornar-se eficaz e apli-cável na esfera doméstica do Estado brasileiro, depen-de, essencialmente, de um processo de integraçãonormativa que se acha delineado, em seus aspectosbásicos, na própria Constituição da República.[...]o sistema constitucional brasileiro - que não exige a in-corporação de lei para efeito de incorporação do atointernacional ao direito interno (visão dualista extre-mada) - satisfaz-se, para efeito de executoriedade do-méstica - dos tratados internacionais, com a adoção deiter procedimental que compreende a aprovaçãocongressional e a promulgação executiva do texto con-vencional (visão dualista moderada) (BRASIL, 2000).

Tem-se, assim, a exigência, pela ordem interna brasileira, deque os compromissos firmados pelo Brasil no plano internacionalpassem por um procedimento formal de incorporação, a fim deque possam irradiar efeitos na ordem jurídica interna. Resta evi-dente, portanto, a opção do legislador brasileiro pelo dualismomoderado desde os primeiros anos da República.

As Convenções da OIT obedecem ao iter procedimental ora re-latado, guardadas as particularidades analisadas no item anterior.

Outra discussão relacionada ao tema é apurar a força normativacom que ingressa a norma internacional do trabalho no plano in-terno, permitindo ao operador do direito solver questões como ade definir se o compromisso firmado pelo Brasil no plano interna-cional pode sobrepor-se à Constituição da República ou à lei ordi-nária preexistente ao ato de incorporação.

Especialmente após o advento da Emenda Constitucional 45/2004 e da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no RE466.343, a questão não suscita maiores discussões. Como as Con-venções da OIT têm inequívoco caráter protetivo do trabalhador,não há dúvida de que são tratados internacionais de direitos hu-manos, motivo pelo qual se forem aprovadas nas duas Casas doCongresso Nacional em dois turnos por três quintos dos congressis-tas terão força normativa de Emenda Constitucional, segundo co-mando do artigo 5º, §3º da CR/88. Por outro lado, se não obtido oquórum referido, ou em se tratando de instrumento que foi incor-porado ao ordenamento jurídico brasileiro antes da entrada emvigor da mencionada emenda, terão status normativo supralegal,tendo como consequência a inaplicabilidade da legislaçãoinfraconstitucional com elas eventualmente conflitante, seja emmomento anterior ou posterior à ratificação.

Infelizmente, nenhuma Convenção da OIT foi aprovada como referido quórum, tendo em vista que todos os instrumentos des-sa natureza foram incorporados ao direito brasileiro em data ante-

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rior à vigência da Emenda Constitucional 45, que definiu a reda-ção do parágrafo 3º do artigo 5º da CR. De qualquer sorte, pode-se afirmar que as Convenções da OIT possuem status normativosupralegal, o que lhes confere lugar de destaque no ordenamentojurídico pátrio.

3 A Convenção 158 da OIT e sua importância para a ordemjurídica internacional e interna

A Convenção 158 decorre de um movimento internacional quese iniciou muito antes de sua aprovação pela OIT. O primeiro infor-me preparatório da primeira discussão da Conferência Internacionaldo Trabalho a respeito do término do trabalho por iniciativa doempregador, em 1981, noticiava que, naquele momento, grandenúmero de países na Europa Ocidental (Alemanha, Áustria, ReinoUnido etc.) e na América (Canadá, México, Venezuela etc.) tinha,em suas legislações internas, dispositivos que exigiam explicitamen-te a justificação da despedida. A maior parte dessa legislação foiadotada depois da Recomendação 119 da OIT, segundo a qual

não deveria proceder-se à terminação da relação detrabalho ao menos que exista uma causa justificada re-lacionada com a capacidade ou a conduta do trabalha-dor ou baseada nas necessidades de funcionamento daempresa, do estabelecimento ou do serviço (GRECO,1992, p. 317).

Assim é que, depois de algumas iniciativas no plano internaci-onal e interno, a OIT adotou a Convenção 158 e a Recomendação166, que substituiu a Recomendação 119, atinentes à terminaçãoda relação do trabalho por iniciativa do empregador, propondoaos Estados-membros a adoção de normas de proteção contra adespedida imotivada, nos moldes existentes nos países europeus.Para Greco (1992, p. 318):

a votação desses instrumentos internacionais foi a últi-ma expressão da estratégia do sindicalismo operário detentar obter avanços sociais pela via das normais inter-nacionais do trabalho. A proteção contra a despedidaarbitrária foi então imposta aos países do terceiro mun-do, com a complacência do próprio Grupo dos Emprega-dores, como um símbolo da humanização das relaçõesde trabalho e da solidariedade que deve reger o relaci-onamento entre patrões e empregados. Em anos sub-sequentes, a Conferência da OIT, tentando equacionaros aspectos sociais da industrialização e da Política deEmprego, não conseguiu formular mais que tímidas re-soluções, mais propagandísticas do que eficazes.

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Assim é que, entre as principais disposições previstas na Con-venção 158 da OIT, e também controvertidas, está a prevista noartigo a seguir transcrito:

Art. 4. Não se dará término à relação de trabalho de umtrabalhador a menos que exista para isso uma causajustificada relacionada com sua capacidade ou seu com-portamento ou baseada nas necessidades de funciona-mento da empresa, estabelecimento ou serviço.

A Convenção 158 foi aprovada na 68ª reunião da ConferênciaInternacional do Trabalho em 1982 e entrou em vigor no planointernacional em 23 de novembro de 1985. Contudo, o Brasil ape-nas obteve aprovação do Congresso Nacional, por meio do Decre-to Legislativo nº 68, em 16 de setembro de 1992. Isso lhe possibili-tou ratificar o instrumento em 5 de janeiro de 1995 e, posterior-mente, incorporar o texto do tratado ao ordenamento jurídiconacional em 10 de abril de 1996, pelo Decreto nº 1.855. Ocorreque, em dezembro do mesmo ano, por Nota do Governo Brasileiroà OIT, registrada em 20 de novembro de 1996 na referida Organi-zação, o Presidente da República, em ato isolado do Poder Execu-tivo, denunciou a norma internacional promulgada alguns mesesantes, sem mesmo consultar o Congresso Nacional, tendo, posteri-ormente, promulgado o Decreto nº 2.100, de 20 de dezembro de1996, anunciando que, a partir de 20 de novembro de 1997, areferida Convenção deixaria de vigorar no Brasil.

Inicialmente, é importante atentar para o fato de que a Con-venção 158 ingressou regularmente no ordenamento jurídico bra-sileiro. Quanto ao ponto, não há qualquer insurgência. Contudo,ao denunciar o referido instrumento unilateralmente, sem consul-tar o Congresso Nacional, o Poder Executivo inaugurou uma longadiscussão a respeito do tema, com repercussões imediatas nas rela-ções de emprego.

Para muitos, o referido instrumento não poderia ter sido de-nunciado sem a concordância do Congresso Nacional. Como issoocorreu, a denúncia à Convenção 158 seria irregular. O principalargumento nesse sentido reside justamente nas regras existentesna ordem jurídica pátria, inclusive em sede constitucional, para aincorporação dos tratados.

Com efeito, se o direito brasileiro exige a convergência devontades entre os Poderes Executivo e Legislativo para que o Brasilse comprometa definitivamente com um tratado no plano interna-cional, igual raciocínio deveria ser feito quando o país deseja seretirar formalmente de um compromisso internacional assumido,por meio da denúncia. Essa parece ser a ótica mais adequada para

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análise da questão. Contudo, a conclusão não é tão óbvia, especi-almente se se considerar que a Constituição da República é poucoclara a esse respeito. Os artigos 49, inciso I, e artigo 84, inciso VIII,da CR apenas mencionam as expressões "celebrar" e "resolver de-finitivamente", silenciando quanto aos termos "retirar-se" de umtratado ou "denunciar" o seu texto.

Apesar disso, alguns autores, como Chohfi (2008, p. 3900),entendem que, sob o ponto de vista formal, a invalidade do De-creto nº 2.100 reside no fato de que a incorporação da Convençãono nosso ordenamento jurídico representa ato complexo, submeti-do a dois Poderes da República Federativa. Se para o ingresso delano mundo jurídico fizeram-se necessários tanto a aprovação do chefedo Poder Executivo quanto regular processo legislativo junto aoCongresso Nacional, da mesma forma, para extirpá-la doordenamento, seria necessário o mesmo caminho.

Portanto, haveria clara inconstitucionalidade formal no De-creto que declarou a revogação da Convenção ora em exame. Nãohaveria razões para que o tratamento para se comprometer porum texto de um tratado seria diverso daquele para anunciar o de-sejo de não mais se submeter a ele. Também não se pode olvidarque o artigo 49, inciso I, é claro ao determinar que é de competên-cia exclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobretratados e convenções que serão obrigatórios ao Brasil.

Expoentes do direito internacional pátrio entendem, de fato,que a denúncia para ocorrer deve ser precedida do aval do Con-gresso Nacional. Não há qualquer dúvida de que compete ao Pre-sidente da República/Poder Executivo atuar no plano internacio-nal. A grande questão que ora se impõe é que, para atuar externa-mente, o Presidente da República deveria ter a aprovação do Con-gresso Nacional (MAZZUOLI, 2011, p. 309).

Existem, ainda, outros argumentos que detectam vícios da de-núncia operada por ato unilateral do Poder Executivo. Defende-seque o artigo 84 da Constituição Federal, quando dispõe sobre acompetência privativa do Presidente da República, autoriza-o adispor, mediante decreto, apenas sobre "organização e funciona-mento da administração federal, quando não implicar aumentode despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; e extinçãode funções ou cargos públicos, quando vagos" (inciso VI, alíneas"a" e "b") ou expedir decretos para sancionar, promulgar, fazerpublicar leis e seus regulamentos (inciso IV, do mesmo artigo). Tan-to é assim que, em regra, todo o Decreto inicia-se mencionando osincisos acima referidos, o que não ocorreu no Decreto nº 2.100/96(SOUTO MAIOR, 2004). Logo, referido ato não teria o condão derevogar um tratado já incorporado ao ordenamento pátrio.

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Sob o ponto de vista formal, também se alega que a denúnciaà Convenção 158 não tem qualquer eficácia jurídica, já que referi-do instrumento ingressou no ordenamento pátrio como uma nor-ma efetivamente jurídica (CHOHFI, 2008, p. 3897). Assim é que, se-gundo determina o artigo 2º da Lei de Introdução às Normas doDireito Brasileiro, o Decreto não poderia ter revogado a Conven-ção, em face de sua força normativa. Com efeito, à época, os trata-dos gozavam de status de lei ordinária, o que impediria sua revo-gação por Decreto. Hodiernamente, ainda com mais razão o De-creto não poderia retirar do ordenamento jurídico brasileiro a Con-venção 158, já que, de acordo com a atual posição do STF, o instru-mento teria força normativa supralegal.

O mais interessante é que a própria OIT adota, por meio deseu Manual de Procedimentos em Matéria de Convenções e Reco-mendações Internacionais do Trabalho, alguns princípios para queo Estado realize a denúncia. Entre eles está a orientação de que ogoverno realize "longas consultas" com as organizações represen-tativas de trabalhadores e empregadores acerca dos problemas le-vantados e do que pode ser feito para resolvê-los. Contudo, nãohá notícia de que a denúncia efetuada pelo Poder Executivo brasi-leiro em 1996 tenha sido precedida de amplo debate social.

Há ainda os autores que entendem ter sido a denúncia efetu-ada em desacordo com o critério temporal estabelecido pela pró-pria OIT. A regra, para alguns, seria a de que o prazo de dez anospara denunciar uma Convenção perante a Organização é contadoa partir "de cada ratificação", e não do prazo de vigência interna-cional da Convenção original. Por esse raciocínio, como a denún-cia produziu efeitos internos apenas com a publicação do Decretonº 2.100 em 23 de novembro, a Convenção só poderia ter sidodenunciada até 22 de novembro de 1996, vez que o instrumentoentrou em vigor no âmbito internacional em 23 de novembro de1985, após efetivadas duas ratificações junto à OIT, conforme pre-visto no artigo 15, parágrafo 2º da Convenção. Assim, mesmo con-siderando-se o prazo dos 12 meses subsequentes ao decênio devigência no plano internacional, a denúncia somente poderia serefetivada pelo Brasil até 22 de novembro de 1996 (SOUTO MAIOR,2004).

Esse argumento, contudo, não parece ser o mais correto, sob oponto de vista do direito internacional, já que, sendo as ordensjurídicas internacional e interna distintas, seria necessário distin-guir-se o ato de denúncia, cujos efeitos são sentidos no plano in-ternacional, e o ato de revogação do decreto no plano interno,cuja repercussão se dá no ordenamento jurídico pátrio. Assim, aoque tudo indica, a verificação da obediência ao prazo de dez anos

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estabelecido pela Constituição da OIT não se dá pelo Decreto exis-tente na ordem jurídica interna de cada Estado, mas unicamentepelo depósito da denúncia na Organização. Nesse aspecto, pareceque o Brasil cumpriu a determinação, já que depositou o instru-mento de denúncia tempestivamente em 20 de novembro de 1996.

Por outro lado, se o prazo de dez anos for contado de acordocom o comando do Manual de Procedimentos da OIT (dentro deum intervalo - normalmente um ano, a contar de uma sucessão deexpiração de períodos; geralmente dez anos, contados a partir dadata em que a Convenção original entrou em vigor), a denúnciafoi efetuada corretamente no plano internacional (ORGANIZAÇÃOINTERNACIONAL DO TRABALHO, 1993, p. 41).

A par de todos os argumentos acima referidos, existem, ainda,sob o ponto de vista material, outras ponderações necessárias parao deslinde da questão. Para Piovesan (2003, p. 221), na Carta de1988, entre os princípios a reger o Brasil nas relações internacio-nais, destaca-se ineditamente o princípio da prevalência dos direi-tos humanos, o que significa que o país assume que tais direitossão um tema global, de legítimo interesse da comunidade interna-cional, e, assim, reconhece a existência de limites e condicionamen-tos à noção de soberania estatal, admitindo subordinar-se a regrasjurídicas, cujo parâmetro obrigatório seja a prevalência dos direi-tos humanos.

Também não se pode ignorar o disposto no artigo 5º, §1º daConstituição Federal, permitindo-se defender que os tratados queversem sobre direitos humanos sejam considerados, materialmente,como normas constitucionais. Mazzuoli (2005, p. 94-95) entende que

se a Constituição estabelece que os direitos e garantiasnela elencados "não excluem" outros provenientes dostratados internacionais em que a República Federativado Brasil seja parte, é porque ela própria está a autori-zar que esses direitos e garantias internacionais cons-tantes dos tratados internacionais de direitos humanosratificados pelo Brasil "se incluem" no nossoordenamento jurídico interno, passando a ser conside-rados como se escritos na Constituição estivessem.

Com base nesse entendimento, uma vez incorporada aoordenamento jurídico brasileiro, como de fato ocorreu com a Con-venção 158 da OIT, a norma protetiva ao trabalhador tornou-sematerialmente constitucional. Portanto, dentro de uma visão demáxima efetividade dos direitos humanos e em prestígio à vedaçãoao retrocesso, não seria possível a denúncia do tratado no planointernacional e consequente revogação da Convenção no planointerno.

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Ainda em sede constitucional, é interessante notar que, se-gundo o inciso II do artigo 4º da CR (localizado topograficamenteno título I, dos Princípios Fundamentais, título que condiciona ainterpretação da parte orgânica da Constituição), as relações inter-nacionais do Brasil serão regidas pelo princípio da prevalência dosdireitos humanos. Nessas condições, a defesa dos direitos humanose dos princípios do Estado Democrático deve ocorrer na esfera ex-terna das relações de Estado e também no plano interno, fazendoparte de um todo indissociável (PENIDO, 2004, p. 287).

Todas as questões ora levantadas tornam, de fato, insustentá-vel a denúncia da Convenção 158 da OIT na forma como efetuadapelo Estado brasileiro. Como não poderia deixar de ser em ques-tões dessa envergadura, o Supremo Tribunal Federal foi provoca-do a manifestar-se a respeito.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura(Contag) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.625contra o Decreto nº 2.100 em junho de 1997. Já houve a manifesta-ção de alguns ministros. O relator ministro Maurício Corrêa, já apo-sentado, e o ministro Carlos Ayres Britto votaram pela parcial pro-cedência, por considerarem que o decreto presidencial em questãodeve ter interpretação conforme o artigo 49, inciso I da CR, de for-ma a condicionar a denúncia da Convenção 158 da OIT ao referen-do do Congresso Nacional. Por outro lado, o ministro hoje aposen-tado Nelson Jobim julgou a ação improcedente, por entender que"no sistema constitucional brasileiro, a denúncia de tratado inter-nacional é feita unilateralmente pelo presidente da República queé o órgão que representa o país na ação".

O ministro Joaquim Barbosa, após pedido de vista, entendeuque seria equivocado condicionar a denúncia à aprovação do Con-gresso, porquanto o Decreto impugnado não denunciaria o tratadointernacional - por ser a denúncia um ato tipicamente internacionale, por isso, impassível de controle jurisdicional pelo Supremo -, massim tornaria pública a denúncia feita, a produzir seus efeitos em umdeterminado tempo. Assim, a declaração de inconstitucionalidadedo Decreto nº 2.100/96 teria como consequência a retirada da publi-cidade do ato da denúncia, o que levaria à não obrigatoriedade dadenúncia no Brasil, apesar de plenamente válida no plano interna-cional, e a manutenção da vigência do Decreto que incorporou aConvenção 158 ao direito interno brasileiro. Após a referida mani-festação, pediu vista a ministra Ellen Gracie, em cujo gabinete per-manecem os autos mesmo após a sua aposentadoria.

Como se vê, a questão ainda não está pacificada no âmbitointerno, o que não significa que não haja algumas conclusões pos-síveis.

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4 Conclusão: lições possíveis e inevitáveis para a Convenção158 e a ordem jurídica brasileira

Ainda que pareça inevitável concluir pela irregularidade dadenúncia de acordo com o direito interno, já que se deu sem oaval do Congresso brasileiro, o ato é plenamente válido no planointernacional, porquanto o desejo de não mais fazer parte da Con-venção foi expresso pelo Presidente da República perante a OIT notempo exigido pelos instrumentos que regem a Organização. Ado-tando o Brasil o dualismo moderado, as ordens jurídicas interna einternacional são distintas, motivo pelo qual também os atos reali-zados perante cada uma delas têm consequências diversas. No pla-no externo, a atuação do Brasil respeitou as exigências previstaspelos instrumentos que regem a OIT. Assim, eventual declaraçãode inconstitucionalidade do Decreto nº 2.100 pelo STF teria ape-nas o condão de considerar ainda em vigor a Convenção 158 naordem jurídica brasileira.

No entanto, mesmo esse desfecho não tornará a questão me-nos polêmica. Defende-se que haveria o risco de, uma vez em vi-gor, a Convenção ser mal interpretada, determinando a reintegra-ção dos empregados em seus antigos empregos. Também se enten-de que seria inevitável um engessamento das relações laborais eum estímulo à informalidade ante a obrigatoriedade de motiva-ção para a despedida do empregado. Segundo Greco (1992, p.319), as exigências de reconversão industrial e flexibilização domercado de trabalho dificultaram a ratificação da Convenção 158no mesmo momento em que os Estados interessados em estimularinvestimentos estrangeiros e manter satisfatórios níveis de ocupa-ção de mão de obra pressentiram que a Convenção criariadesestímulo à criação de novos empregos e reduziria a capacidadede modernização empresarial. Por esse motivo, até janeiro de 1991,apenas três países da Europa Ocidental (França, Suécia e Espanha)e um do Continente Americano (Venezuela) haviam ratificado aConvenção.

Alega-se, ainda, que o fato de a Convenção 158 estar em vi-gor na ordem jurídica brasileira não seria sinônimo de sua ampla eirrestrita aplicação às relações laborais. Isso porque, segundo o ar-tigo 7º, inciso I da CR, seria necessária a edição de lei complemen-tar para regulação da despedida imotivada. Sendo a Convenção158, em última análise, um tratado internacional, não poderia re-gulamentar matéria reservada à lei complementar. Esse entendi-mento já foi manifestado pelo próprio Supremo Tribunal Federalna ADI 1.480-3, julgada em 2001. À época, considerou-se que ha-veria impossibilidade jurídica de o tratado servir como sucedâneo

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da lei complementar exigido pela CR. Também se ponderou que asdisposições da Convenção 158 teriam conteúdo programático, cujaaplicabilidade dependeria da atuação legislativa de cada país. Porfim, entre outros argumentos, entendeu-se que a própria Conven-ção permite, através de seu artigo 10, que cada Estado opte pelasolução legislativa mais coerente com a legislação e prática nacio-nais.

Mesmo que essa decisão tenha sido proferida antes da refor-ma trazida pela Emenda Constitucional 45, que deu aos tratadosde direitos humanos aprovados com quórum específico a força deemenda constitucional, a decisão acima referida não pode ser ig-norada, já que trouxe importantes ponderações para o debate. Nocaso de se considerar em vigor a Convenção 158, essa discussãocertamente será novamente trazida.

Por outro lado, alguns autores asseveram que a proteção con-tra a despedida imotivada tem-se desenvolvido com mais eficáciaatravés da negociação coletiva do que propriamente através daação do legislador que, naturalmente, não pode prever todas assituações que surgirão no caso concreto (GRECO, 1992, p. 327). Ehá ainda os que defendem aplicação imediata da Convenção, comeficácia plena. Sob essa ótica, o máximo que uma lei complemen-tar poderia fazer seria regular o preceito constitucional e não im-pedir sua eficácia. O anseio do constituinte de obstar a dispensaarbitrária foi, sem sombra de dúvida, manifestado, e não seria umalei complementar ou a falta dela que poderia, simplesmente, anulá-lo. Por esse motivo, a Convenção 158, por estar em consonânciacom o artigo 7º, inciso I, complementa-o, até porque a formaçãode uma Convenção, que se dá no âmbito internacional, exige for-malidades mais complexas que a de uma lei complementar, sendofruto de um profundo amadurecimento internacional quanto àsmatérias por ela tratadas (SOUTO MAIOR, 2004).

Ainda que a denúncia seja mantida da maneira como propos-ta, o Brasil não se desvencilhou de alguns deveres que lhe compe-tem em decorrência de ser Estado membro da OIT. Explica-se. Deacordo com a Constituição da Organização, nos termos do artigo19, parágrafo 5º, letra "e", o Estado que não ratificar uma Con-venção tem o dever de informar o diretor-geral da Repartição In-ternacional do Trabalho sobre a sua legislação e prática observadarelativamente ao assunto de que trata a convenção. Deverá, tam-bém, precisar nestas informações até que ponto aplicou, ou pre-tende aplicar, dispositivos da convenção, por intermédio de leis,por meios administrativos, por força de contratos coletivos, ou, ain-da, por qualquer outro processo, expondo as dificuldades que im-pedem ou retardam a ratificação da Convenção. Portanto, o Brasil,

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A CONVENÇÃO 158 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

enquanto membro da OIT, também tem deveres vinculados à Con-venção que denunciou.

Por fim, resta referir que, ainda sob a presidência de Luiz Inácio"Lula" da Silva, o Poder Executivo encaminhou ao Congresso Naci-onal a Mensagem Presidencial 59/08 com o intuito de novamenteratificar a Convenção 158 da OIT. No entanto, depois de derrotasnas comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional; e de Traba-lho, Administração e Serviço Público, a mensagem foi encaminha-da à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, antes de ir aoPlenário, quando haverá a decisão final sobre o tema.

Como se pode depreender, por ser um tema sensível a empre-gadores e empregados, a questão está longe de ser definida, ha-vendo longo percurso ainda a ser percorrido. Isso porque eventualdecisão do Supremo Tribunal Federal não encerrará o debate, queainda poderá avançar para o campo constitucional e a necessidadede edição de lei complementar sobre o tema, como já referido.Isso, contudo, não exime o Brasil de seu compromisso com a ordeminternacional e com a proteção do trabalhador perante a OIT.

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47Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

TÍTULO

A Súmula 331 do TST e aresponsabilidade da

Administração Pública

Ronaldo E. Scarponi JúniorAdvogado trabalhista em Minas Gerais

Ex-estagiário do Jurídico da CAIXA

RESUMO

O presente trabalho trata da Súmula 331 do Tribunal Superiordo Trabalho e da polêmica envolvendo a responsabilidade daadministração pública pelas dívidas trabalhistas dos empregadosque lhe prestam serviços através da terceirização. Primeiramente,faz um breve levantamento histórico a respeito do instituto daterceirização, seu crescimento e atual importância dentro domercado, no Brasil e no mundo, para então estudar a Súmula 331,sua formação, importância e polêmicas. Finaliza com a recentedecisão do Supremo Tribunal Federal na ADC nº 16, analisandosua repercussão na jurisprudência, assim como as possíveisconsequências de tal posicionamento. Diante da ausência delegislação específica mais extensa sobre o assunto, baseou-seprimordialmente na jurisprudência e doutrina, de modo aesclarecer os fundamentos dos diferentes pontos de vista arespeito das polêmicas que acompanham o tema.

Palavras-chave: Súmula 331 do TST. Terceirização. Respon-sabilidade subsidiária. ADC 16.

ABSTRACT

The present work deals with the Súmula 331 of the SuperiorLabor Court and the controversy surrounding the government'sresponsibility about the debts of employees who provide servicesthrough outsourcing. First, it makes a brief historical survey aboutthe institute of outsourcing, its growth and importance in thecurrent market in Brazil and abroad, to then study the Súmula331, its formation, importance and controversies. It ends with therecent decision of the Supreme Court in ADC nº 16, analyzing itsimpact on case law, as well as the potential consequences of suchpositioning. Given the absence of more extensive and specificlegislation on the subject, it was based primarily on case law anddoctrine in order to clarify the foundations of the different pointsof view about the controversies that accompany the theme.

Keywords: Outsourcing. Subsidiary Liability. ADC 16.

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RONALDO E. SCARPONI JÚNIOR ARTIGO

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Introdução

É inegável o importante papel exercido pela terceirização nomercado atual. Por mais que muitos vejam no instituto um granderisco de fraude aos direitos dos trabalhadores, sua praticidade einegável eficiência permitem um aumento considerável na produ-tividade, o que é benéfico para toda a sociedade, se usado corre-tamente.

Pelas suas características, a terceirização é especialmente ade-quada para as entidades públicas, permitindo maior eficiênciana execução de serviços acessórios, uma vez que evita a burocra-cia e os altos gastos exigidos na contratação dos servidores efeti-vos.

Está claro, portanto, que o fenômeno veio para ficar. Entre-tanto, a inovação, se facilita por um lado, traz também uma sériede novos problemas. O uso abusivo da terceirização não tardou asurgir, sendo corriqueiras as contratações de empresa interposta paraexercício do que seria sua atividade-fim, evitando-se a contrataçãodireta.

Porém o principal problema é a questão da responsabilidadepor eventuais verbas trabalhistas não pagas aos funcionáriosterceirizados. No caso da terceirização entre particulares, a questãoé mais simples, apesar da ausência de legislação específica sobre otema, uma vez que é princípio básico do Direito do Trabalho aproteção ao empregado.

Entretanto, no caso da terceirização efetuada pela Adminis-tração Pública, a questão é mais complexa, levantando uma sériede discussões, tanto quanto aos princípios a serem privilegiados,quanto aos conflitos existentes entre legislação (ou a ausência dela),doutrina e jurisprudência.

Recentemente, a polêmica voltou a ser alvo de discussão den-tro do mundo jurídico, com o julgamento da Ação Declaratória deConstitucionalidade (ADC) nº 16 que, à primeira vista, exime o Es-tado da responsabilidade por dívidas trabalhistas de seusterceirizados.

E é exatamente esse o tema que este trabalho visa discutir,através de um levantamento histórico do instituto da terceirização,sua aplicação no Brasil, seu uso pela Administração Pública e a le-gitimidade da decisão citada, além de sua repercussão na jurispru-dência.

Através da exposição desse panorama, busca-se esclarecer osfundamentos dos diferentes pontos de vista, de modo a contribuirpara o debate da questão, facilitando o alcance de uma conclusãomais justa quanto possível.

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

1 Um breve histórico da terceirização

Inicialmente, faremos uma breve exposição sobre a origem ea evolução da terceirização na indústria moderna e sua aplicaçãono Brasil, de modo a facilitar a compreensão do instituto e suasconsequências para o Direito do Trabalho.

Ao abordar a terceirização, o professor Maurício Godinho Del-gado (2009) inicia explicando o significado e a origem do termo,"oriundo da palavra terceiro, compreendido como intermediário,interveniente". Isso porque o neologismo teve origem na área ad-ministrativa, associando terceiro à transferência da execução de certasatividades para outrem, estranho à empresa. Diferenciando-se,portanto, do sentido de terceiro comumente usado no Direito: umestranho a certa relação jurídica.

Para o Direito do Trabalho, a terceirização é definida como "ofenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalhoda relação justrabalhista que lhe seria correspondente" (DELGA-DO, 2009). Dessa maneira, é entre a relação econômica e a relaçãojustrabalhista que entra o terceiro.

Fica clara a quebra que se produz na clássica relação bilateralempregador/trabalhador, introduzindo-se uma relação trilateral,que não se enquadra em toda a estrutura teórica e normativa naqual o Direito do Trabalho se fundamenta.

Martins (2009), em brilhante obra sobre o tema, relata que acriação e disseminação da terceirização foi fato tão significativoque influenciou as ciências sociais e trouxe mudanças para a pró-pria ciência jurídica.

1.1 No mundo

Martins (2009) expõe histórico da terceirização, explicando queo instituto, nos moldes em que é aplicado atualmente no mercado,pode ter sua origem remetida à Segunda Guerra Mundial, em quea indústria de armas, diante da gigantesca demanda, dos recursosescassos e da urgência da situação, acabou recorrendo a esse siste-ma de trabalho fragmentado, buscando atuação de forma maistécnica em cada área especializada de produção.

Tais sistemas de trabalho fragmentado atuavam de forma maistécnica somente em sua área especializada de produção. As indús-trias focavam-se apenas na produção do produto principal, sendoque todo o restante (os serviços "acessórios") era repassado paraterceiros. Percebe-se que o instituto nasceu, portanto, como frutoda necessidade, na busca por maior eficiência, não tendo, a princí-pio, uma ampla e imediata disseminação de sua aplicação.

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Castro (2000), ao explicar as origens do fenômeno, destaca:

Antes da II Guerra Mundial existiam atividades presta-das por terceiros, porém não poderíamos conceituá-las como terceirização, pois somente a partir destemarco histórico é que temos a terceirização interferin-do na sociedade e na economia, autorizando seu estu-do pelo Direito Social, valendo lembrar que mesmoeste também sofre grande aprimoramento a partirde então.

Com o fim da Segunda Guerra veio o consequente período derecuperação da economia e da indústria, com abundância de em-pregos, acumulação de capital e crescimento da economia, geran-do relativa harmonia no universo trabalhista, o que estendeu amanutenção dos métodos tradicionais de produção, já que, noperíodo de prosperidade, alternativas não se faziam necessárias.

Lora (2008) explica que a situação sofreu um novo e definitivorevés diante da crise do modelo de produção capitalista dominan-te na época, o notório Fordismo criado por Henry Ford, caracteri-zado pela linha de produção em série, compartimentalização dasatividades e pouca especialização. No fim da década de 60, nospaíses desenvolvidos, esse modelo alcançou um estado de satura-ção, com redução da produtividade e, consequentemente, dos lu-cros.

A reação do mercado foi a reformulação do processo produti-vo, buscando maior flexibilidade, através da qualificação dos tra-balhadores, que executariam maior número de funções.

O novo modelo de produção teve origem na fábrica automo-bilística da empresa japonesa Toyota, sendo denominadoToyotismo. Entre suas características, Hoffman (2003) destaca o ob-jetivo de alteração de vários aspectos do processo de produção atra-vés da desregulamentação/fragmentação da classe trabalhadora,ruptura do sindicalismo, precarização do emprego e, como nãopoderia deixar de ser, terceirização da força de trabalho.

Com a globalização, as multinacionais acabaram absorvendotodas essas novas formas de trabalho e as levaram para todas aspartes do mundo. A flexibilidade virou a regra da vez, a salvaçãopara a indústria, a modernização do processo produtivo ultrapas-sado, solução para todos os males. Empregos seriam criados, e aindústria seria desafogada.

Esse entusiasmo resultou na terceirização indiscriminada deatividades não apenas acessórias, mas até daquelas essenciais aoobjetivo das empresas. O Estado e os sindicatos, diante do desem-prego e da crise econômica, viram-se reféns das grandes empresas,o que ajudou a impulsionar ainda mais as novas práticas.

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

1.2 No Brasil - correlações legislativas e jurisprudenciais

A terceirização chegou ao Brasil na década de 50, através demultinacionais. Porém, como ressalta Delgado (2009), o fenômenoé relativamente novo no Direito do Trabalho do país, assumindoamplitude de dimensão apenas nas últimas três décadas do séculoXX no Brasil.

Tanto é assim que a Consolidação das Leis do Trabalho apenasmenciona a empreitada e a subempreitada em seu artigo 455 comofiguras de subcontratação de mão de obra. Ou seja, são apenasmenções a um estágio ainda embrionário do que a terceirizaçãoveio a se tornar.

Foi só em meados da década de 60 que surgiram referênciaslegislativas mais diretas à terceirização, ainda que restrita ao âmbi-to público/estatal - administração direta e indireta da União.

O Decreto-Lei nº 200/1967 permitia a "descentralização" deserviços considerados acessórios, e a Lei 5.645/1970, no parágra-fo único de seu artigo 3º, listava as atividades a serem alvo daentão chamada "execução indireta": "transporte, conservação,custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelha-das".

Finalmente, em resposta ao crescimento progressivo daterceirização no setor privado, foi criada a Lei nº 6.019/1974, a Leido Trabalho Temporário, autorizando a contratação de trabalha-dores mediante empresa interposta. Restringia, porém, talcontratação apenas para atender a "necessidade transitória de subs-tituição de seu pessoal regular e permanente ou a acréscimo extra-ordinário de serviços", assim como estabelecia rigorosa restriçãotemporal de contratação para noventa dias, salvo autorização doMinistério do Trabalho.

Na década seguinte, a Lei nº 7.102/1983 permitia a terceirizaçãodo trabalho de vigilância bancária de forma permanente. Posteri-ormente, a prática foi também autorizada para os demais estabele-cimentos, públicos e privados, através das modificações trazidas pelaLei nº 8.863, de 28 de março de 1994.

Ainda na década de 80, a própria Constituição Federal previu,em seu artigo 37, inciso XXI, a possibilidade de contratação de ser-viços pelo ente público nos seguintes termos:

[...] ressalvados os casos especificados na legislação, asobras, serviços, compras e alienações serão contratadosmediante processo de licitação pública que assegureigualdade de condições a todos os concorrentes, comcláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento,mantidas as condições efetivas da proposta, nos termosda lei, o qual somente permitirá as exigências de quali-

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ficação técnica e econômicas indispensáveis à garantiado cumprimento das obrigações.

Apesar de a legislação específica sobre o tema restringir ouso da terceirização a casos específicos, com a previsão constituci-onal a contratação de serviços por empresa interposta cresceuexponencialmente, tanto na esfera privada quanto na pública,em muito extrapolando as hipóteses previstas nas leis menciona-das. O governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, entre1993 e 2005, contribui com esse crescimento através de políticasneoliberais, que incentivavam a flexibilização no Direito do Tra-balho. O instituto estava efetivamente se incorporando à indús-tria atual.

Diante desse quadro, ficou claro que a legislação sobre o temaera (e ainda é) insuficiente para lidar com o tamanho do fenôme-no, que por suas próprias características já traz um enorme potenci-al de fraude aos direitos dos trabalhadores.

Sendo assim, coube à jurisprudência manifestar-se a respeitodo tema, definindo parâmetros para guiar a solução dos litígios,evitando não só decisões contraditórias, como também violaçõesaos princípios do Direito do Trabalho. Foi daí que em 1986 o Tribu-nal Superior do Trabalho (TST) editou a Súmula de jurisprudênciauniforme nº 256, que, após revisão ocorrida em dezembro de 1993,foi alterada para a atual Súmula 331, que teve sua redação altera-da este ano, em resposta à polêmica que este trabalho visa discutir.Esta Súmula, desde sua edição, tem sido a principal fonte de refe-rência na solução dos inúmeros litígios envolvendo a matéria.

Atualmente no âmbito Legislativo, existe o Projeto de Lei (PL)nº 4.330/2004, de autoria do Deputado Sandro Mabel, que visafinalmente estabelecer, por legislação ordinária, os critérios paradefinir o processo da prestação de serviços por empresa interposta,regulamentando a terceirização no país.

A CUT e outras centrais sindicais combatem o PL 4.330, queconsideram danoso aos interesses dos trabalhadores. Naquele quetalvez seja seu aspecto mais polêmico, o projeto amplia a possibili-dade de terceirização pelas empresas, permitindo, inclusive, aterceirização de atividades-fim, determinada ilícita pela já citadaSúmula 331 do TST.

O PL tramita na Câmara, onde aguarda parecer da Comissãode Constituição, Justiça e Cidadania. Caso aprovado, segue para oSenado.

Tramitam também no Poder Legislativo projetos opostos aode Sandro Mabel, como o PL 1.621/2007, do Deputado petistaVicentinho, com propostas que visam defender o trabalhador da"precarização" causada pela intermediação de mão de obra.

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

2 Da antiga redação da Súmula 331 do TST

A Súmula 331 é, até hoje, talvez o mais importante instrumen-to normativo sobre a terceirização no país. Trazendo os parâmetrose definindo os limites tanto da aplicação quanto da responsabili-dade acerca da contratação por empresa interposta, sua influênciana Justiça Trabalhista é gigantesca, vez que ela suplementa o vaziodeixado pelo Poder Legislativo no que tange à matéria.

2.1 Origem

Em 1986, o TST fez sua primeira tentativa de suprimir a omis-são do Legislativo sobre o tema, unificando o entendimento sobrea terceirização através da edição do Enunciado nº 256, que previa:

Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço devigilância, previstos nas Leis ns. 6.019, de 3 de janeiro de1974, e 7.102, de 20 de junho de 1983, é ilegal acontratação de trabalhadores por empresa interposta,formando-se o vínculo empregatício diretamente como tomador dos serviços.

Entretanto, como exposto por Martins (2009, p. 128), estaSúmula se mostrou insuficiente para dirimir todas as polêmicasresultantes da extensa prática da terceirização, explicando mi-nuciosamente as necessidades que trouxeram a revisão desseEnunciado:

O Ministério do Trabalho, com base no inciso VI do art.83 da Lei Complementar nº 75/93, vinha ajuizando inqu-éritos civis públicos em face do Banco do Brasil e da Cai-xa Econômica Federal, que contratavam principalmen-te estagiários, com o objetivo de eximirem-se da reali-zação de concursos públicos para admissão de trabalha-dores estudantes ou desqualificados. Aqueles órgãosafirmavam que havia decisões do próprio TST, que defato existem, mitigando a aplicação da Súmula 256 doTST, além de permitir que fizessem contratações de ser-viço de limpeza e outros, de acordo com a Lei nº 5.645/70. O inquérito ajuizado contra a Caixa Econômica Fe-deral acabou dando origem à ação civil pública, que foijulgada parcialmente procedente em primeira instân-cia, reconhecendo-se as irregularidades existentes. OBanco do Brasil, porém, firmou compromisso com a Pro-curadoria-Geral do Trabalho, em 20 de maio de 1993,de acordo com o parágrafo 6º do artigo 5º da Lei nº7.347/85, de que a empresa iria, no prazo de 240 dias,abrir concurso público para regularizar as atividades delimpeza, ascensorista, telefonista, copa, gráfica, estivae digitação.

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A Procuradoria-Geral do Trabalho já havia encaminha-do expediente ao Presidente do TST, protocolado sob onº 31.696/93.4, em 6-10-93, requerendo a revisão parci-al da Súmula 256 do TST, para retirar de sua órbita asempresas públicas, as sociedades de economia mista eos órgãos da administração direta, indireta, autarquiae fundacional e, também, os serviços de limpeza.

Como se vê, o Enunciado 256 do TST necessitava de adequa-ção ao mercado atual. As tentativas de "proibir" - ou mesmo limi-tar bastante - a intermediação de mão de obra mostraram-se in-frutíferas, uma vez que esta se tornou prática corriqueira e indis-pensável na indústria e no mercado de trabalho. A terceirizaçãochegou para ficar. Cabia ao Judiciário lidar com ela. A jurispru-dência então se rendeu, aceitando aplicação mais ampla daterceirização, fora dos limites do trabalho temporário e dos servi-ços de vigilância.

Era essencial, porém, que a descentralização se desse dentrode certos limites, estabelecendo mais garantias para o empregadoterceirizado, muitas vezes prejudicado pela empresa prestadora deserviços que não quitava com suas obrigações trabalhistas, assimcomo pela empresa tomadora de serviços que se eximia de qual-quer responsabilidade.

Dentro desse pensamento, em dezembro de 1993 o referidoEnunciado foi revisado, dando origem à Súmula 331, com a se-guinte redação:

I - A contratação de trabalhadores por empresa inter-posta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente como tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho tem-porário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).II - A contratação irregular de trabalhador, medianteempresa interposta, não gera vínculo de emprego comos órgãos da administração pública direta, indireta oufundacional (art. 37, II, da CF/1988).III - Não forma vínculo de emprego com o tomador acontratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como ade serviços especializados ligados à atividade-meio dotomador, desde que inexistente a pessoalidade e a su-bordinação direta.IV- O inadimplemento das obrigações trabalhistas, porparte do empregador, implica na responsabilidade sub-sidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obriga-ções, desde que este tenha participado da relação pro-cessual e conste também do título executivo judicial.

Nota-se que a revisão foi extensa e gerou reflexos importantesque, como destaca Kisch (2010), tornaram a Súmula 331 "[...] um

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

dos principais elementos normativos do instituto da terceirizaçãotrabalhista".

Cabe, portanto, uma breve análise dos fundamentos jurídicospor trás de cada um dos incisos da Súmula ora debatida, de formaa melhor compreender suas intenções e os reflexos que geraram.

2.2 Fundamentos jurídicos

O inciso primeiro mantém a proibição do antigo Enunciado256 com todo seu rigor, excetuando apenas o trabalho temporá-rio, disciplinado na Lei nº 6.019/1974.

Já o inciso II inova, ao definir que, mesmo diante da contrataçãoirregular do inciso I, prevalece o exposto no artigo 37, II, da Cons-tituição Federal de 1988, in verbis:

II- a investidura em cargo ou emprego público dependede aprovação prévia em concurso público de provas oude provas e títulos, de acordo com a natureza e a com-plexidade do cargo ou emprego, na forma prevista emlei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissãodeclarado em lei de livre nomeação e exoneração.

Assim, vedou-se a formação de vínculo quando a empresatomadora de serviços seja órgão da Administração Pública, em obe-diência à Constituição, que restringe a entrada no serviço públicoà aprovação em concurso somente.

O inciso III do Enunciado 331 do TST introduz a alteração maisprofunda em comparação aos dispositivos anteriores, uma vez quepermite expressamente a terceirização de serviços de limpeza e con-servação, assim como de atividades-meio da empresa tomadora,desde que inexistam a subordinação e pessoalidade diretas.

Ao ampliar-se o leque de aplicação da terceirização, criou-seuma polêmica: o que seria "atividade-meio"? Qual a real diferen-ça entre "atividade-meio" e a "atividade-fim"? A discussão a res-peito persiste até hoje e é uma das críticas à Súmula a serem discu-tidas mais à frente neste trabalho. A princípio, porém, parece ób-via a intenção de impedir a terceirização irrestrita e indiscriminadadas principais atividades da empresa, limitando-a a tarefas "aces-sórias".

Finalmente, passamos à análise do inciso IV, que versa sobre aresponsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços, nocaso de inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte daempresa prestadora.

Nota-se, a princípio, a ausência de menção expressa aos ór-gãos da Administração Pública dentro da prevista responsabilida-de subsidiária, o que levantava dúvidas quanto a sua extensão

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ou não a tais órgãos. Com base nisso, a redação original foi alte-rada pela Resolução nº 96/2000 para extinguir os debates a res-peito da responsabilidade da Administração, ficando com a se-guinte redação:

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, porparte do empregador, implica a responsabilidade subsi-diária do tomador dos serviços, quanto àquelas obriga-ções, inclusive quanto aos órgãos da administração di-reta, das autarquias, das fundações públicas, das em-presas públicas e das sociedades de economia mista,desde que hajam participado da relação processual econstem também do título executivo judicial (art. 71 daLei nº 8.666, de 21.06.1993) (Grifo nosso).

Dessa maneira, o Judiciário não só resguardava o direito indis-cutível do trabalhador de receber as verbas devidas, como forçavaas empresas tomadoras a terem mais zelo na contratação das em-presas prestadoras de serviço. A responsabilidade das empresaspúblicas será mais amplamente discutida em seção própria.

Apesar da previsão expressa, não era incomum até recente-mente a atribuição de responsabilidade solidária em casos de fla-grante terceirização ilícita, sendo assim denominada aquela quetem por objeto a atividade-fim da empresa. A corrente que defen-de a responsabilidade solidária ainda tem muitos defensores (en-tre eles o próprio presidente do TST), como veremos no próximotópico, onde serão expostos alguns dos pontos controversos daSúmula.

2.3 Críticas

Além da polêmica envolvendo a responsabilidade da Admi-nistração - a ser discutida em seção própria deste trabalho -, aSúmula 331 também é alvo de outras críticas. Uma das mais notóri-as diz respeito à definição do termo "atividade-fim".

Visando evitar a "precarização" dos direitos trabalhistas, per-mitiu-se somente a descentralização de atividades não essenciais,acessórias ao objetivo principal da empresa/ente público queterceiriza.

Sobre a atividade-meio esclarece Martins (2009, p. 133):

A atividade-meio pode ser entendida como a atividadedesempenhada pela empresa que não coincide com seusfins principais. É a atividade não essencial da empresa,secundária, que não é seu objeto central. É uma ativida-de de apoio ou complementar. São exemplos daterceirização na atividade-meio: a limpeza, a vigilância,etc. Já a atividade-fim é a atividade em que a empresa

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concentra seu mister, isto é, na qual é especializada. Àprimeira vista, uma empresa que tem por atividade alimpeza não poderia terceirizar os próprios serviços delimpeza. Certas atividades-fins da empresa podem serterceirizadas, principalmente se compreendem a pro-dução, como ocorre na indústria automobilística, ou nacompensação de cheques, em que a compensação podeser conferida a terceiros, por abranger operaçõesinterbancárias.Tem-se então que a atividade-meio é um complementoque permite que a atividade-fim seja executada commaior agilidade e perfeição, porém é um conceito que,como já visto, manifestou uma grande discussão acercada ilicitude ou não de algumas empresas que, dentreinúmeros exemplos o da indústria automobilista, somen-te colocam seu slogan nos produtos ao passo que prati-camente toda a linha de produção é terceirizada, afe-tando assim a atividade-fim da empresa, discussão atéhoje sem uma solução eficaz, visto que ao passo que aSúmula parece ser taxativa ao elencar somente a ativi-dade-meio também não foi clara o suficiente para proi-bir sua terceirização.

Como se vê, os críticos alegam que essa definição do que seriaa "atividade-meio" fica, basicamente, a critério do Julgador, sendosubjetiva. Alegam que qualquer atividade - até mesmo as legal-mente autorizadas: vigilância das instituições bancárias e limpezae manutenção - pode ser, de uma maneira ou de outra, definidacomo "essencial" para aquele que terceiriza. Afinal, como podeuma empresa/escritório funcionar sem condições de higiene? Ouum banco funcionar sem a mínima segurança? Não seria isso essen-cial a tais atividades?

Tais questionamentos são levantados por Maciel (2009), embrilhante artigo que defende uma interpretação mais moderna emenos rigorosa sobre a terceirização.

O autor prega uma desvinculação do modelo datado em quese fundamenta a CLT. Alega que as relações trabalhistas não aten-dem mais somente o empregador e o empregado. Aceita aterceirização como inevitável para a economia atual, que exige maisrapidez e agilidade no processo produtivo e prestação de serviços.E diz que isso pode ser feito respeitando-se as leis trabalhistas eseus princípios, clamando para que se ingresse em uma nova era,em que "nem todos na Justiça Trabalhista são hipossuficientes".

E continua:

A atividade-meio quase sempre se confunde com a ati-vidade-fim, e sem a primeira a segunda não seria con-cluída. É possível considerar-se o que se chama atual-mente como atividade-meio, como atividade acessória

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do principal, que seria atividade-fim, mas ambas sãonecessárias para a realização final dos serviços.Esta diversificação jurisprudencial deixa ao arbítriodo magistrado, em uma zona gris, o entendimentodo que venha a ser terceirização lícita, sendo quedesestabiliza as empresas quando de boa-fé contra-tam terceirizados e correm o risco de uma contrataçãolegal tornar-se ilegal porque, em determinados Tri-bunais, aquele tipo de contratação passou a caracte-rizar-se como fraudulenta, dependendo do magistra-do novo, tranformando-se o que era legal em ilegal,sem possibilidades de revisão pelo Tribunal Superiordo Trabalho, uma vez que esta caracterização é consi-derada como matéria fática, aplicável à Súmula 126(MACIEL, 2009, p. 44-51).

Existem entendimentos ainda mais radicais, que defendem ofato de que, não sendo expressamente proibida em lei, aterceirização não só pode como deve terceirizar as atividades quebem entender, independente se forem atividades-meio ou ativida-des-fim.

Como exemplo podemos citar o acórdão abaixo, que pregaser perfeitamente lícita a contratação de terceiros, pouco impor-tando que se trate de atividade primária ou secundária da empre-sa, desde que não se infrinja a lei, a Constituição Federal e as con-venções coletivas próprias, senão vejamos:

É de se consignar que não existe norma proibitiva àcontratação de serviços, muito menos no sentido de queo empregado da prestadora deva ser vinculado àtomadora. Ao revés, decisão nesse sentido infringe oprincípio da reserva legal, já que o exercício de qualqueratividade lícita é assegurado pela Carta Magna.[...]Na doutrina, Octavio Bueno Magano já em 1990 (Folhade São Paulo, 1º de dezembro de 1990) ensinava que asempresas fornecedoras de mão-de-obra estão autori-zadas por lei (o artigo 15, § 2º, da Lei n.º 8.036/90 - Leido FGTS) o que tornou, na época, superado o Enunciadon.º 256 do C. TST, até porque, acrescentava o IlustreProfessor, a Constituição de 1988 não veda o funciona-mento dessas empresas.Inquestionavelmente, suas preciosas lições nos fazemrefletir sobre o assunto para concluirmos que a distin-ção de caso por caso faz-se necessária e presente.De fato, não haveria coerência no ordenamento jurídi-co em autorizar-se a criação de empresas fornecedorasde mão-de-obra, para depois considerar fraudulentassuas atividades. A lei não pode permitir agir e depoispunir porque assim se agiu.Do conglomerado de normas jurídicas permissivas eproibitivas sobre um determinado assunto, conclui-se

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que a atividade é permitida exceto se ficar configuradoo intuito fraudulento, que deve ser comprovado, já quenão presumido ante as normas permissivas (teoriaconglobante).Assim, entendemos que é perfeitamente lícita a ativi-dade das empresas fornecedoras de mão-de-obra excetose evidenciado o intuito fraudulento, nos termos do ar-tigo 9º da CLT (SÃO PAULO, 1999).

As opiniões pró-terceirização têm como fundamento inclusiveas seguintes disposições constitucionais, que garantem a livre inici-ativa:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pelaunião indissolúvel dos Estados e Municípios e do DistritoFederal, constitui-se em Estado Democrático de Direitoe tem como fundamentos:[...]IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;[...]Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção dequalquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aosestrangeiros residentes no País a inviolabilidade do di-reito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e àpropriedade, nos termos seguintes:[...]II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazeralguma coisa senão em virtude de lei;[...]XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ouprofissão, atendidas as qualificações profissionais que alei estabelecer;[...]Art. 170. A ordem econômica, fundada na valoriza-ção do trabalho humano e na livre iniciativa, tem porfim assegurar a todos existência digna, conforme osditames da justiça social, observados os seguintes prin-cípios;[...]Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercíciode qualquer atividade econômica, independentementede autorização de órgãos públicos, salvo nos casos pre-vistos em lei (grifos nossos).

Martins (2009, p. 99-100) compartilha desse entendimento, aoexpor:

Não se pode afirmar, entretanto, que a terceirizaçãodeva se restringir a atividade-meio da empresa, fican-do a cargo do administrador decidir tal questão, desdeque a terceirização seja lícita, sob pena de ser desvirtu-ado o princípio da livre iniciativa contido no art. 170 daConstituição. A indústria automobilística é exemplo tí-

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pico da delegação de serviços de atividade-fim, decor-rente, em certos casos, das novas técnicas de produçãoe até da tecnologia, pois uma atividade que antigamen-te era considerada principal pode hoje ser acessória.Contudo, ninguém acoimou-a de ilegal. As costureirasque prestam serviços na sua própria residência para asempresas de confecção, de maneira autônoma, não sãoconsideradas empregadas, a menos que exista o requi-sito subordinação, podendo aí serem consideradas em-pregadas em domicílio (art. 6º da CLT), o que tambémmostra a possibilidade de terceirização da atividade-fim.

Tais opiniões, entretanto, são minoria na jurisprudência, pre-valecendo ainda a cautela e a desconfiança com relação àterceirização, o que é absolutamente justificável e apropriado, ten-do-se como base o extenso histórico de abusos por parte de em-pregadores, amplamente existentes ainda nos dias de hoje.

E essa proteção à hipossuficiência do trabalhador, objetivoda Justiça do Trabalho, nos leva ao outro extremo quanto àscríticas à Súmula 331. Uma forte corrente nesse sentido é aquelaque acredita ser necessária a responsabilização solidária entretomador e prestador de serviços, independentemente da exis-tência de fraude.

Melo (2010) acredita que a questão da responsabilidade dotomador de serviço é exatamente a responsabilidade por ato deterceiro, regulada pelo Código Civil como objetiva e solidária. Fun-damenta-se nos seguintes artigos:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação ci-vil:[...]III - o empregador ou comitente, por seus empregados,serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhescompetir, ou em razão dele;Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigoantecedente, ainda que não haja culpa de sua parte,responderão pelos atos praticados pelos terceiros alireferidos.[...]Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou viola-ção do direito de outrem ficam sujeitos à reparação dodano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor,todos responderão solidariamente pela reparação.

O autor ressalta que tais artigos são plenamente aplicáveis naseara trabalhista, por força do artigo 8º da CLT:

Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça doTrabalho, na falta de disposições legais ou contratuais,

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decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por ana-logia, por equidade e outros princípios e normas geraisde direito, principalmente do direito do trabalho, e, ain-da, de acordo com os usos e costumes, o direito compara-do, mas sempre de maneira que nenhum interesse declasse ou particular prevaleça sobre o interesse público.

Dessa maneira, caberia ao lesado - no caso, o trabalhador -escolher entre os corresponsáveis aquele que tiver melhores condi-ções financeiras para arcar com os prejuízos sofridos.

A reforma do inciso IV da Súmula 331 neste sentido, segundoo autor, serve para proteger os trabalhadores terceirizados e "mo-ralizar o instituto da terceirização" (MELO, 2010, p. 55), uma vezque, diante da certeza de responsabilização solidária, o tomadorde serviços será mais cauteloso na decisão de terceirizar, assim comona escolha do prestador.

Entre os defensores da responsabilidade solidária podemos citaro presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro João OresteDalazen, que, em notícia disponível no site do TST, diz acreditarque tal mudança "seria um avanço social e induziria as empresasque contratam a prestação de serviços a participar mais do processode fiscalização". Nota-se, portanto, que a Súmula está longe de seruma unanimidade.

Passaremos agora a estudar a ADC 16 e a mudança de entendi-mento que este ensejou, inclusive com alteração do Enunciado 331.

3 A responsabilidade da Administração

A questão que tem gerado mais discussão quando se trata daterceirização é, sem dúvida, a responsabilidade da a AministraçãoPública frente aos empregados terceirizados.

A possibilidade de contratação de serviços pelo ente público,prevista no já mencionado artigo 37, XXI da CF, foi detalhada pelaLei nº 8.666/1993, chamada de Lei das Licitações, que definiu nor-mas para licitação e contratos na Administração Pública, excluindo,a princípio, a responsabilidade da Administração pelas verbas tra-balhistas inadimplidas pelo contratado.

Mesmo assim o TST, através da Súmula 331, viu por bem defi-nir a extensão da responsabilidade aos entes estatais, alimentandoo debate, diante das inúmeras dúvidas atreladas ao assunto.

A fonte da polêmica é facilmente perceptível, uma vez queocorre um imediato conflito de princípios. De um lado a proteçãoao erário, visando proteger o Estado e, consequentemente, o bemcomum, e de outro a proteção ao trabalhador e das verbas alimen-tares, de caráter essencial e indispensável.

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Além disso, surgem questionamentos referentes à vinculaçãode empregados ao serviço público sem prestar concurso, questõesrelativas à isonomia com os servidores/empregados públicos (comodireitos previstos em convenções coletivas etc.), enfim, à própriaextensão desta responsabilidade, desde que se aceite que ela exis-ta, em primeiro lugar.

Apesar da incerteza, a Súmula 331 firmou entendimento quan-to à extensão da responsabilidade à Administração, e cumpria seupapel de uniformização da jurisprudência, sendo aplicadairrestritamente pela Justiça do Trabalho desde sua edição.

3.1 Contratos administrativos - direitos e obrigações

Ao estudar a terceirização por ente público, cabe uma breveexposição sobre os contratos que regem essa relação, analisandoos direitos e obrigações que lhe são característicos.

A prática da terceirização pela Administração Pública pode serrealizada de acordo com diferentes modalidades, para realizaçãode diferentes fins. Cabe ressaltar, porém, que a Administração Pú-blica, diferentemente das pessoas jurídicas de direito privado, aquem é lícito fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, submete-seao princípio da legalidade, impondo ao administrador fazer tudoo que a lei determina.

Portanto, pela posição que ocupa, e pelos objetivos que onorteiam, o administrador público enfrenta maiores restrições emsua atuação do que o administrador privado. Sobre o tema, Meirelles(2006, p. 78) assim dispõe: "o administrador público está, em todasua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exi-gências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sobpena de praticar ato inválido". Como se vê, tal posicionamentodemonstra uma peculiaridade inerente à terceirização no setorpúblico.

Com base no exposto, a contratação realizada por ente públi-co tem de realizar-se através do processo de licitação, que tem seuscontornos definidos pela Lei nº 8.666/1993. Através desse processo,busca-se associar o oferecimento de iguais oportunidades para to-dos os interessados, com a escolha da oferta mais vantajosa para aadministração. A licitação tem formas e procedimentos especifica-mente delimitados pela lei mencionada, e, para que o contratotenha validade, o ente público deve contratar dentro dosparâmetros ali impostos, não existindo, em teoria, a livre escolhaque existe em um contrato entre particulares.

O contrato administrativo contém características específicas quenorteiam a sua execução. Entre tais características, Di Pietro (2001)

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cita a natureza intuitu personae, pois leva em consideração carac-terísticas pessoais do contratado, vedando-se a subcontratação. Afinalidade pública e a obediência à forma prescrita em lei tambémdevem sempre guiar a execução do contrato. Possui também carac-terística de contrato de adesão, uma vez que as cláusulas são im-postas pela administração.

Até aqui, as características do contrato administrativo sãosemelhantes ao contrato regido pelo Direito Privado, cuja teo-ria geral dos contratos aplica-se subsidiariamente aos contratosadministrativos. O que realmente o distingue do contrato priva-do é a supremacia do interesse público sobre o particular, quepermite ao Estado certos benefícios sobre o particular que nãoexistem no contrato privado. Esses benefícios são nomeados peladoutrina de cláusulas exorbitantes, que são prerrogativas espe-cíficas, previstas nos contratos administrativos de forma explícitaou implícita.

O artigo 58 da Lei nº 8.666/1993 expõe tais prerrogativas,senão vejamos:

Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativosinstituído por esta Lei confere à Administração, em re-lação a eles, a prerrogativa de:I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequa-ção às finalidades de interesse público, respeitados osdireitos do contratado;II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificadosno inciso I do art. 79 desta Lei;III - fiscalizar-lhes a execução;IV - aplicar sanções motivadas pela inexecução total ouparcial do ajuste;V - nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoria-mente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vincula-dos ao objeto do contrato, na hipótese da necessidadede acautelar apuração administrativa de faltascontratuais pelo contratado, bem como na hipótese derescisão do contrato administrativo.

Entre as mais relevantes para o tema discutido neste trabalho,podemos citar a fiscalização, exposta no inciso III e disciplinada maisespecificamente no artigo 67 da mesma lei, que define:

Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanha-da e fiscalizada por um representante da Administra-ção especialmente designado, permitida a contrataçãode terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informaçõespertinentes a essa atribuição.§ 1º O representante da Administração anotará emregistro próprio todas as ocorrências relacionadas coma execução do contrato, determinando o que for ne-

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cessário à regularização das faltas ou defeitos obser-vados.§ 2º As decisões e providências que ultrapassarem acompetência do representante deverão ser solicitadasa seus superiores em tempo hábil para a adoção dasmedidas convenientes.

Sobre o tema, Di Pietro (2001, p. 251) lembra que "o não atendi-mento da determinação da autoridade fiscalizadora enseja rescisãounilateral do contrato (art. 78, VIII), sem prejuízo de sanções cabíveis".

A mencionada rescisão unilateral pelo Estado também consis-te em outra prerrogativa do contrato administrativo, comoconsequência de improbidades percebidas através da fiscalização,ou quando for o que melhor atender ao interesse público. Comomedidas mais amenas, também existe a possibilidade de aplicaçãode sanções, assim como a modificação do contrato, tudo de modoa melhor se adaptar às finalidades do Estado.

A exposição das numerosas prerrogativas impostas edisponibilizadas ao Estado ajuda a colocar em perspectiva a ques-tão da responsabilidade nos contratos em que participa e comoesta se desenvolve. Afinal de contas, é razoável concluir que, secumprido à risca, seguindo-se o que a lei impõe e usufruindo-sedas opções que ela possibilita, o não cumprimento de um contratoadministrativo e a consequente responsabilização estatal seriammuito mais difíceis.

Isso porque, se fiscalizado como a lei prega, eventuais faltasna sua execução seriam prontamente identificadas e gerariam asconsequências correspondentes através da aplicação de sanções,modificações ou até rescisões contratuais.

É diante de tal quadro que surge a Ação Declaratória deConstitucionalidade nº 16, que surgiu para "colocar mais lenha nafogueira", visando isentar o Estado da responsabilidade por ver-bas trabalhistas nos contratos administrativos.

3.2 Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16

Em 5 de março de 2007, o Governo do Distrito Federal propôsperante o STF, por meio de sua Procuradoria-Geral, uma AçãoDeclaratória de Constitucionalidade com pedido de procedênciacautelar, em face do artigo 71, §1º da Lei 8.666/93.

O dispositivo objeto da ação, na redação dada pela Lei Fede-ral nº 9.032/1995, tem o seguinte teor:

Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos tra-balhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultan-tes da execução do contrato.

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§ 1º A inadimplência do contratado, com referência aosencargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfe-re à Administração Pública a responsabilidade por seupagamento, nem poderá onerar o objeto do contratoou restringir a regularização e o uso das obras eedificações, inclusive perante o Registro de Imóveis (Grifonosso).

Alegou-se, ainda, que a norma supracitada tem aplicação atodos os entes estatais, como dispõe o artigo 1º da mesma lei, emseu parágrafo único:

Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais sobre lici-tações e contratos administrativos pertinentes aobras, serviços, inclusive de publicidade, compras, ali-enações e locações no âmbito dos Poderes da União,dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.Parágrafo único. Subordinam-se ao regime destaLei, além dos órgãos da administração direta, osfundos especiais, as autarquias, as fundações públi-cas, as empresas públicas, as sociedades de econo-mia mista e demais entidades controladas diretaou indiretamente pela União, Estados, Distrito Fe-deral e Municípios.

Sendo assim, a Procuradoria-Geral do Distrito Federal afirmouque tal norma, legítima e constitucional, era constantemente vio-lada pelo TST, que com sua Súmula 331 havia tornado regra aresponsabilização estatal por encargos trabalhistas oriundos deintermediação de mão de obra.

Nos termos da própria ADC, "os sucessivos questionamentosque são feitos em relação à eficácia de tal norma promovem a inse-gurança jurídica e geram decisões judiciais díspares, instalando ocaos na sociedade e impedindo que os entes federativos realizem acontratação de obras e serviços de maneira eficiente".

Alegou-se que as decisões judiciárias que responsabilizavam oEstado estariam, em verdade, "criando o Direito", além de negarvigência à lei mencionada, sendo necessária a intervenção do Su-premo para restabelecer sua força normativa.

É evidente que não é função precípua do Poder Judiciário aelaboração de lei. Na verdade, compete ao Judiciário aplicar a leiao caso concreto decidindo os conflitos de interesse, como tambémvelar pelo controle da legitimidade das normas. Portanto, a ADCora discutida pregou que, na realidade, o TST agia como verdadei-ro legislador positivo.

Segundo esse raciocínio, o disposto no item IV da Súmula 331do TST seria totalmente inconstitucional, na forma dos artigos 2º,5º (inciso II), 22 (inciso I) e 60 (inciso III, do § 4º), da CF/88.

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3.2.1 Fundamentos para a constitucionalidade do artigo 71,§ 1º da Lei Federal nº 8.666/1993

A Procuradoria do Distrito Federal argumentou que os entes daAdministração Pública têm sua atuação restrita ao princípio da lega-lidade, ou seja, só podem agir de acordo com o definido em lei.

Tal restrição dos entes públicos ao disposto em lei impede quese cobre comportamento diverso do ali definido, no que concerneàs exigências a serem cumpridas pelas empresas participantes daslicitações. "Por mais diligente e operante que o Poder Público seja,encontra limites de atuação nos termos previstos em lei".

Dessa maneira, para contratar empresa prestadora de serviçossão obrigados a dispor de processo licitatório, onde são tomadastodas as cautelas legalmente necessárias relativas à qualificaçãotécnica e econômica da empresa a ser contratada, nada mais e nadamenos, inclusive sob risco de o administrador público ser acusadode direcionar a licitação.

Argumenta ainda que, mesmo após o extensivo processo deseleção mencionado, ainda procede-se à fiscalização da execuçãodo serviço, inclusive com a nomeação de funcionário exclusivo paratal função.

Entretanto, mesmo depois de observado todo o procedimen-to previsto, tendo a Administração agido com toda a cautela que alei exige, a Súmula 331, com seu inciso IV, pretenderia, na verdade,"realizar uma responsabilização objetiva do poder público, ado-tando-se, para tanto, a teoria do risco integral, no qual baste exis-tir o dano para exsurgir a necessidade de o Poder Público reparar,ainda que para tanto não tenha dado causa, e ainda que tenhatentado a todo custo evitar sua insurgência".

Assim sendo, a referida Súmula violaria diversos princípios queregem a Administração, como o princípio da legalidade, da liber-dade, da ampla acessibilidade nas licitações públicas, assim como oprincípio da responsabilidade do Estado por meio do risco admi-nistrativo.

A argumentação da procuradoria afirma ainda que talposicionamento, ao contrário de proteger o trabalhador, resguardaas empresas fraudulentas, "transferindo o ônus para o Estado, comose este fosse, de fato, o Segurador Universal da Humanidade".

3.2.2 Opiniões da doutrina a respeito da responsabilidade daAdministração

Delgado (2009, p. 459) acredita que a norma contida no artigo71, § 1º da Lei nº 8.666/1993 é absolutamente inconstitucional, por

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ser um privilégio que iria contra preceitos constitucionais que preveemresponsabilidade objetiva do Estado pelos atos de seus agentes:

[...] o Enunciado 331, IV, não poderia, efetivamente,absorver e reportar-se ao privilégio da isençãoresponsabilizatória contido no art. 71, § 1.º, da Lei deLicitações - por ser tal privilégio flagrantementeinconstitucional. A súmula enfocada, tratando, obvia-mente, de toda a ordem justrabalhista, não poderia in-corporar em sua proposta interpretativa da ordem jurí-dica - proposta construída após largo debatejurisprudencial - regra legal afrontante de antiga tradi-ção constitucional do país e de texto expresso da Cartade 1988... Não poderia, de fato, incorporar tal regrajurídica pela simples razão de que norma inconstitucionalnão deve produzir efeitos

Ressalta também que, mesmo que não se entenda pela res-ponsabilidade objetiva do Estado, não há como se opor a suaresponsabilização subjetiva, tendo em vista a culpa in eligendo,que consiste na má escolha da empresa prestadora dos serviços, e/ou a culpa in vigilando, que decorre da má fiscalização das obriga-ções contratuais.

Essa interpretação é a base para a formação da Súmula 331 evisa conciliar o que prevê a Constituição com os princípios do Direi-to do Trabalho.

Martins (2009, p. 135), por outro lado, não discute a constitu-cionalidade do polêmico artigo da Lei de Licitações. Contesta, em ver-dade, a validade do inciso IV do Enunciado 331, declarando:

A nova redação do inciso foi decorrente de Incidente deUniformização de Jurisprudência suscitado no processoTST-IUJ-RR-297.751/96, sendo que a decisão foi unâni-me. Entretanto, não foram indicados os precedentes doverbete. Da resolução não consta que houve a declara-ção de inconstitucionalidade do artigo 71 da Lei 8666 oude seus parágrafos. Logo, pode-se dizer que não éincostitucional.Penso que a nova redação do inciso IV do enunciado 331do TST, ao tratar da Administração Direta e Indireta, éilegal por violar expressamente o art. 71 da Lei nº 8.666,atribuindo responsabilidade subsidiária a quem não atem, além de haver expressa exclusão da responsabili-dade trabalhista na Lei de licitações.

3.2.3 Decisão do Supremo Tribunal Federal

Segundo o informativo 610 do STF, o Plenário, por maioria,julgou procedente o pedido formulado no ADC 16, declarando aconstitucionalidade do artigo 71, § 1º, da Lei nº 8.666/1993.

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Entendeu que a mera inadimplência do contratado não po-deria transferir à Administração Pública a responsabilidade pelopagamento dos encargos trabalhistas, mas reconheceu que isso nãosignificaria que eventual omissão da Administração Pública, naobrigação de fiscalizar as obrigações do contratado, não viesse agerar essa responsabilidade.

Entretanto, ressaltou que a tendência da Justiça do Trabalhonão seria analisar a omissão, mas "bater carimbo" com o Enuncia-do 331 do TST, aplicado irrestritamente.

A princípio, o Ministro Cesar Peluso, relator do processo, vo-tou pelo não conhecimento do processo, com base na ausência dapreliminar de controvérsia. Tal entendimento decorria de informa-ções prestadas pelo Presidente do TST, que afirmou que o Tribunaljamais questionou a constitucionalidade da norma ora discutida,reconhecendo a responsabilidade do Estado com base em fatos, enão com base em inconstitucionalidade da lei.

A Ministra Cármen Lúcia discordou, alegando que a Lei nº8.666/1993 é categórica ao afastar a responsabilidade do Estado eque o entendimento do TST foi diretamente contra o ali previsto,sendo relevante e necessário que o STF se pronunciasse, de modo aesclarecer a questão.

O Ministro Marco Aurélio afirmou que o TST, ao atribuir res-ponsabilidade estatal através da Súmula 331, efetivamente afas-tou o preceito contido na Lei nº 8.666/1993 sem cogitar a pecha deinconstitucionalidade, driblando o artigo 71, §1º.

Mencionou ainda os fundamentos do TST para edição daSúmula, observando que eles residiam tanto no § 6º do artigo 37da CF:...

Art. 37. A administração pública direta e indireta dequalquer dos Poderes da União, dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios obedecerá aos princípios delegalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade eeficiência e, também, ao seguinte:[...]§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as dedireito privado prestadoras de serviços públicos respon-derão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,causarem a terceiros, assegurado o direito de regressocontra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

quanto no § 2º do artigo 2º da CLT:

Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individu-al ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade eco-nômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoalde serviço.[...]

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

§ 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, em-bora, cada uma delas, personalidade jurídica própria,estiverem sob a direção, controle ou administração deoutra, constituindo grupo industrial, comercial ou dequalquer outra atividade econômica, serão, para osefeitos da relação de emprego, solidariamente res-ponsáveis a empresa principal e cada uma das subordi-nadas.

O primeiro (artigo 37, § 6º da CF) não encerraria a obrigaçãosolidária do Poder Público diante do inadimplemento da prestadorade serviços. Enfatizou que o verbete 331 teria partido para a res-ponsabilidade objetiva do Poder Público, presente esse preceitoque não versaria essa responsabilidade, porque não haveria atodo agente público causando prejuízo a terceiros que seriam osprestadores do serviço.

No que tange ao segundo dispositivo (§ 2º do artigo 2º daCLT), observou que a premissa da solidariedade nele prevista seriaa direção, o controle, ou a administração da empresa, o que não sedaria no caso, haja vista que o Poder Público não teria a direção, aadministração, ou o controle da empresa prestadora de serviços.Concluiu que restaria, então, o parágrafo único do artigo 71 daLei 8.666/1993, que, ao excluir a responsabilidade do Poder Públi-co pela inadimplência do contratado, não estaria em confrontocom a Constituição Federal.

Quanto à responsabilidade da Administração Pública, a Minis-tra Cármen Lúcia diferenciou a responsabilidade contratual daextracontratual. No caso, a responsabilidade seria contratual, o que,consequentemente, excluiria a aplicação do artigo 37, § 6º, da CF,que trata de responsabilidade objetiva extracontratual.

O Ministro Carlos Ayres Brito discordou da maioria, salientan-do que a terceirização não é permitida pela CF. O Ministro acreditaque existam apenas três formas constitucionais de contratar pesso-al: concurso, nomeação para cargo em comissão e contratação portempo determinado, para suprir necessidade temporária. Ou seja,a terceirização, embora amplamente praticada, não tem previsãoconstitucional. Por isso, no entender dele, nessa modalidade, ha-vendo inadimplência de obrigações trabalhistas do contratado, opoder público tem de responsabilizar-se por elas.

Em conclusão, a constitucionalidade da norma foi plenamen-te reconhecida. Apesar do decidido, o ministro Cezar Peluso ressal-tou, entretanto, que o resultado do julgamento "não impedirá oTST de reconhecer a responsabilidade com base nos fatos de cadacausa".

Entretanto, houve consenso entre os ministros no sentido deque o TST não poderá generalizar os casos e terá que investigar

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com mais rigor se a inadimplência tem como causa principal a falhaou a falta de fiscalização pelo órgão público contratante.

3.3 Nova redação da Súmula 331

Após o período de intensas discussões entre a AdministraçãoPública e a Justiça do Trabalho, aparentemente o STF tinha encer-rado a celeuma, com a declaração de constitucionalidade do arti-go 71, §1º da Lei nº 8.666/1993.

Após a decisão, a Justiça do Trabalho passou a ficar indecisa,não sabendo como julgar as inúmeras causas que envolviam a res-ponsabilidade subsidiária do ente público.

Vejamos como exemplo ementa de decisão proferida em mar-ço de 2011 (MINAS GERAIS, 2011c), na qual se procurou aplicar oentão recente entendimento do STF sobre a questão:

Processo: 01464-2009-006-03-00-1 RO - ROData de Publicação: 10-03-2011 - DEJT - Página: 83Órgão Julgador: Quarta TurmaTema: RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA - ADMINISTRA-ÇÃO PÚBLICARelator: Des. Julio Bernardo do CarmoRevisor: Juiz Convocado Fernando Luiz G. Rios NetoRecorrente(s): União FederalRecorrido(s): Flávia Custódia de Oliveira (1)Conservo Brasília Serviços Técnicos Especializados Ltda.(2)

EMENTA: UNIÃO FEDERAL - RESPONSABILIDADESUBSIDIÁRIA - LEI 8.666/93 - ADC 16/DF. O ColendoSTF, por maioria, julgou procedente o pedido formuladoem ação declaratória de constitucionalidade movidapelo Distrito Federal, para declarar a constitucionalidadedo art. 71, § 1º, da Lei 8.666/93 ("Art. 71. O contratadoé responsável pelos encargos trabalhistas, previden-ciários, fiscais e comerciais resultantes da execução docontrato. § 1º A inadimplência do contratado, com refe-rência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais nãotransfere à Administração Pública a responsabilidadepor seu pagamento, nem poderá onerar o objeto docontrato ou restringir a regularização e o uso das obrase edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis."),nos termos do julgamento prolatado na ADC 16/DF. To-davia, a exclusão de responsabilidade subsidiária do entepúblico é aplicável quando constatado que a Adminis-tração foi diligente no dever de fiscalizar a execução doobjeto contratual, inclusive no tocante ao cumprimentodas obrigações trabalhistas dos empregados da contra-tada diretamente envolvidos naquela execução. Na es-pécie, a reclamante não se desincumbiu de seu ônusprobatório a contento (art. 818/CLT e art. 333, inciso I,

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

do CPC), no tocante à comprovação da falha ou da faltade fiscalização pelo órgão público contratante, ora re-corrente. Com efeito, não ficou comprovada a culpa daUnião Federal pela ocorrência dos prejuízos causados àautora (artigos 186 e 927 do Código Civil). Nessediapasão, para não colidir com a diretriz emanada doguardião Maior da Constituição, tampouco criar expec-tativa à trabalhadora que, futuramente, é frustrada,curvo-me àquele posicionamento e, por tais razões, afas-to a responsabilidade subsidiária da União Federal(Grifos nossos).

Diante de tal quadro, em 24 de maio de 2011 o pleno do TSTreuniu-se para definir uma nova redação para a Súmula 331 do TST.

Em notícia veiculada no site do Tribunal Superior do Trabalhofoi divulgado pelos ministros que os comentários do Ministro Pelusono julgamento da ADC 16 - no sentido de que a responsabilidadeda Administração ainda pode ser reconhecida, sem generalizaçõese com investigação mais minuciosa sobre a culpa do ente público -serviram de base para a nova redação do Enunciado.

Com base nesse entendimento, o pleno do TST modificou oinciso IV da Súmula 331, adicionando mais dois incisos, resultandona redação atual, que é a seguinte:

IV- O inadimplemento das obrigações trabalhistas, porparte do empregador, implica a responsabilidade subsi-diária do tomador de serviços quanto àquelas obriga-ções, desde que haja participado da relação processuale conste também do título executivo judicial.V- Os entes integrantes da administração pública diretae indireta respondem subsidiariamente, nas mesmascondições do item IV, caso evidenciada a sua condutaculposa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666/93, especialmente na fiscalização do cumprimento dasobrigações contratuais e legais da prestadora de servi-ço como empregadora. A aludida responsabilidade nãodecorre de mero inadimplemento das obrigações tra-balhistas assumidas pela empresa regularmente con-tratada.VI - A responsabilidade subsidiária do tomador de servi-ços abrange todas as verbas decorrentes da condena-ção referentes ao período da prestação laboral.

Percebe-se, portanto que o TST, em resposta à ADC 16, procu-rou adaptar-se à nova realidade resultante da decisão, adicionan-do o inciso V, que condiciona a responsabilidade subsidiária dosentes públicos à efetiva comprovação de culpa in eligendo e/ou invigilando. Para reforçar tal entendimento, ressaltou-se que a res-ponsabilidade não mais decorre do mero inadimplemento das ver-bas trabalhistas.

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Em contrapartida, aproveitou a oportunidade para encerrar odebate quanto a quais verbas a responsabilidade se estende, coma inclusão do inciso VI, em que, sutilmente, o TST estendeu a res-ponsabilidade subsidiária do tomador a todas as verbas oriundasda condenação.

Obviamente, diferentes opiniões se levantaram, questionan-do as alterações. A nova redação respeita a decisão da ADC 16? É oque se discute a seguir.

3.3.1 Críticas

Salviano (2011) destaca o que considera uma falha na reda-ção do inciso V. No trecho "especialmente na fiscalização do cum-primento das obrigações contratuais e legais da prestadora de ser-viço como empregadora", denota uma preocupação com a carac-terização da culpa in vigilando, mas se esquece, no entanto, daculpa in eligendo. E continua, explicando:

Ou seja, a Lei de Licitações (8.666/93), no art. 44, § 3º,quando da apreciação das propostas, esclarece que oPoder Público deverá checar se o preço apontado pelaempresa terceirizadora, que quer "ganhar" uma licita-ção, seja compatível "com os preços dos insumos e salá-rios de mercado, acrescidos dos respectivos encargos",o que, caso não cubra os deveres sociais trabalhistas, aempresa licitante deverá ser desclassificada do pregão.Esta é a culpa in eligendo, ou seja, caso o Estado dêcomo vencedora da licitação para ceder mão-de-obrauma empresa que é insolvente, estar-se-á elegendouma firma que - a priori - já se sabe que não irá conse-guir pagar os direitos trabalhistas dos prestadores deserviço.E a Súmula alterada ontem deixou a desejar neste pon-to, abrindo uma brecha, portanto, para eventual discus-são na Justiça do Trabalho sobre se a culpa é só invigilando, ou também está contemplada a in eligendo,para que se admita a responsabilidade subsidiária doEstado (SALVIANO, 2011).

Restou evidente o foco na culpa in vigilando. Acreditamos,porém, que a redação não exclui a culpa in eligendo, sendo estacolocada em segundo plano por uma razão prática, já que, no casodos entes da administração, todas as contratações resultam de pro-cesso licitatório, legalmente previsto, o que minimiza as chances deresponsabilização com esse fundamento. A jurisprudência mostra quena grande maioria dos casos é muito mais razoável (e fácil) funda-mentar a responsabilidade na fiscalização falha, que efetivamenteocorre com mais frequência, até pelas dificuldades que impõe.

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Sirotheau (2011) vai mais longe, apontando que a nova reda-ção do Enunciado 331 simplesmente contraria a decisão do Supre-mo no julgamento da ADC 16.

Critica o fato da nova redação se basear no comentário doMinistro Cezar Peluso, alegando que este "não tem força executória,diferentemente do dispositivo da decisão da ADC 16" (SIROTHEAU,2011), que é clara ao definir a constitucionalidade de artigo queexclui a responsabilização da Administração por encargos traba-lhistas de terceirizados. E finaliza, desabafando:

A inserção de novas condicionantes para responsabili-zar a Administração Pública acaba de criar uma novabriga com o Judiciário Trabalhista, prejudicando o tra-balhador, visto que é comum tais demandas serem le-vadas até as instâncias extraordinárias, para um pro-nunciamento final do Supremo Tribunal Federal sobre oassunto.Necessita o Judiciário laboral ser mais imparcial, atuan-do com justiça para ambos os lados, e vendo os doislados da relação processual.O que vemos, na prática, é o magistrado do trabalhoatuando em prol do trabalhador, como verdadeiro ad-vogado, deixando de lado todos os princípios processu-ais, entre eles, a isonomia processual e da imparciali-dade.É que a magistratura trabalhista enxergue que o PoderJudiciário não é um programa social governamental dedistribuição de renda, onde o Poder Público acaba sen-do lesado por causa da visão jurisdicional de que os en-tes públicos devem ser os seguradores universais dostrabalhadores (SIROTHEAU, 2011).

A questão que resta é: efetivamente as mudanças deram resul-tado? Estão sendo aplicadas na prática? É o que veremos a seguir,ao analisar recentes decisões já influenciadas pela nova redação.

3.4 Consequências

A nova redação da Súmula adaptou-se ao previsto no julga-mento da ADC 16, mas tal alteração teve efeito prático? Afinal decontas, a existência de culpa da Administração, fundamento de suaresponsabilidade subsidiária, está sendo efetivamente verificada?Até que ponto essa verificação é possível?

A seguinte decisão do TRT-3 (MINAS GERAIS, 2011a), já se-guindo a nova orientação, responsabiliza o ente público:

Processo: 00185-2010-138-03-00-7 RO - ROData de Publicação: 08-08-2011 - DEJT - Página: 155Órgão Julgador: Sexta Turma

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Tema: RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA - ADMINISTRA-ÇÃO PÚBLICARelator: Des. Jorge Berg de MendonçaRevisor: Des. Rogério Valle FerreiraRecorrente: Irene da Silva Gomes e outrosRecorridos: Estado de Minas Gerais (1) AdservisMultiperfil Ltda. (2)

EMENTA: RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA - ADMI-NISTRAÇÃO PÚBLICA - O recente entendimento do STF,no julgamento da ADC-16/DF, no qual se declarou aconstitucionalidade do art. 71, §1º da Lei n. 8.666/93, im-pede que se aplique, automaticamente, o entendimentoda Súmula 331/TST, impondo responsabilidade subsidiá-ria aos entes da Administração Pública, pelo inadim-plemento das obrigações trabalhistas das empresas quecom ela contrataram. Não impede, contudo, que se façao exame da matéria sob a ótica da culpa in vigilando e ineligendo. Ora, a Lei n. 8.666/93 expressamente impõe odever de fiscalização à Administração Pública, que devese envolver de maneira direta e diária na rotina das prá-ticas trabalhistas da empresa contratada, o que não sevislumbrou na hipótese dos autos. Assim, tendo sidoomisso e negligente o 2º reclamado em relação ao seudever de fiscalização, caso é de se lhe imputar a respon-sabilidade subsidiária pelo adimplemento das verbas tra-balhistas devidas às autoras, limitadas, no entanto, aotermo final do contrato de prestação de serviços firmadocom a 1ª ré. Nesse sentido, aliás, é a nova redação daSúmula 33 do c. TST, que teve acrescido o inciso V, o qualdispõe: "Os entes integrantes da Administração Públicadireta e indireta respondem subsidiariamente, nas mes-mas condições do item IV, caso evidenciada a sua condutaculposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666/93, especialmente na fiscalização do cumprimento dasobrigações contratuais e legais da prestadora de serviçocomo empregadora. A aludida responsabilidade não de-corre de mero inadimplemento das obrigações traba-lhistas assumidas pela empresa regularmente contrata-da" - redação de maio/2011.

No voto, demonstra-se a preocupação em fundamentar a cul-pa da Administração no trecho:

Assim, considerando que a própria Lei de Licitação pre-vê como dever da Administração Pública o de fiscalizaro cumprimento dos direitos dos trabalhadoresterceirizados, o que também encontra regulamenta-ção na Instrução Normativa n. 02/2008 do Ministério doPlanejamento, Orçamento e Gestão, no âmbito da Ad-ministração Pública Federal, cabe analisar se, de fato,essa fiscalização ocorreu, pois, caso contrário, restarápatente a culpa que atrai o dever de indenizar.

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Registre-se que o próprio art. 29 da Lei de Licitaçõesprevê, na fase licitatória da habilitação, a exigênciapelo ente público da comprovação pelas empresas lici-tantes de sua regularidade para com os encargos soci-ais, inclusive trabalhistas, devendo a empresa "fazerprova de regularidade relativa à Seguridade Social eao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), de-monstrando situação regular no cumprimento dos en-cargos sociais instituídos por lei".Da mesma forma, o art. 67 da Lei de Licitações deter-mina que a Administração Pública fiscalize a execuçãodo contrato por meio de um representante especial-mente designado, "que anotará em registro própriotodas as ocorrências relacionadas com a execução docontrato, determinando o que for necessário à regula-rização das faltas ou defeitos observados".Vale salientar que o art. 34 da IN 02/2008, que regula-menta esse dispositivo da Lei de Licitações (art. 67),exige comprovações de regularidade para com o INSSe FGTS; de pagamento de salários no prazo exigido porlei, referente ao mês anterior; de fornecimento de vale-transporte e auxílio-alimentação quando cabível; depagamento de 13º salário; de concessão de férias ecorrespondente adicional; do cumprimento de obriga-ções contidas em convenção coletiva, acordo coletivoou sentença normativa em dissídio coletivo de traba-lho, dentre outros.Para tanto, o art. 36 dessa IN estabelece que a Admi-nistração Pública, no ato do pagamento da prestaçãomensal de serviço, exija da empresa a comprovação dopagamento de todas as suas obrigações trabalhistasrelativas à fatura anterior, sob pena de retenção dovalor da fatura para pagamento direto aos trabalha-dores.E, se houver descumprimento de tais exigências porparte da empresa contratada, tal fato é motivo parase declarar a rescisão contratual (art. 78 da Lei 8.666/93).Na hipótese em apreço, restou incontroverso odescumprimento, de forma reiterada, das férias acres-cidas do terço constitucional a que faziam jus as recla-mantes, v.g., por todo o pacto laboral.E conquanto também não se discuta que o contrato deprestação de serviços firmado pelas rés às fls. 240/250encerrou-se no dia 31/05/2009, remanescem parcelaspor cujo adimplemento responderá, subsidiariamente,o 2º reclamado, que da mão-de-obra autoral utilizou-se no período de vigência do referido ajuste.Assim, constatada a violação do dever fiscalizatóriopela Administração Pública em relação às obrigaçõesda empresa contratada para com as trabalhadoras quelhe prestaram serviço, fica reconhecida a responsabili-dade subsidiária do 2º réu, fundada, no entanto, naculpa in vigilando.

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Percebe-se a preocupação em fundamentar a culpa que ensejaa responsabilidade estatal. Se as verbas trabalhistas não foram pa-gas, o Estado falhou em fiscalizar o contrato, constituindo-se a cul-pa in vigilando.

Em outro exemplo extraído da jurisprudência, o acórdão doTRT-3 (MINAS GERAIS, 2011b), de 11 de julho de 2011, fundamen-ta a responsabilidade da Administração na ausência de prova emcontrário.

A responsabilidade mantém-se por culpa in vigilandodo tomador de serviços, durante a execução do contra-to de prestação de serviços, se, por óbvio, não houverprova contrária nos autos.[...]Assim, cuidando-se de responsabilização subjetiva, onexo causal a justificá-la é a conduta omissiva e negli-gente do ente público quanto ao dever de fiscalizar afiel execução e cumprimento do contrato de prestaçãode serviço (culpa in vigilando) por ele ajustado para coma empresa fornecedora de mão-de-obra, tal como de-terminado pelos artigos 58 e 67 da Lei 8.666/91 (Lei deLicitação).[...]Por consequência, não demonstrando o Ente Público,por meio idôneo e previsto na Lei de Licitações, o cum-primento de seu dever de fiscalizar o contrato de pres-tação de serviço para com a contratada (prestadoradesses serviços), não pode ser afastado o reconhecimen-to de seu dever de reparar o dano perpetrado aos em-pregados da empresa inadimplente, atraindo a suaresponsabilização subsidiária, e aí se incluindo as parce-las rescisórias e multas.

Ou seja, diante da inadimplência de verbas trabalhistas pelaempresa prestadora de serviços, a culpa in vigilando se assume, anão ser que a Administração produza prova em contrário.

Diante de tal quadro, a questão que se levanta é: não seriaisso nada além de uma responsabilização decorrente do meroinadimplemento das verbas trabalhistas? Visualiza-se a tendênciade uma interpretação nesse sentido, consequência da proteção aotrabalhador hipossuficiente, e ainda influenciada pela antiga edi-ção da Súmula 331.

Seria razoável exigir-se essa intensa fiscalização de todas asinúmeras verbas pagas a todos os milhares de empregadosterceirizados pela Administração Pública? Não seria isso umadesvirtuação do próprio objetivo da terceirização?

Existem decisões que exigem uma demonstração de prova maissólida, como demonstra o seguinte entendimento do TRT da 1ªRegião (RIO DE JANEIRO, 2011):

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

PODER JUDICIÁRIO FEDERALJUSTIÇA DO TRABALHOTRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 1ª REGIÃOGab Des Carlos Alberto Araujo DrummondPROCESSO: 0009200-23.2009.5.01.0047 (RO)A C Ó R D Ã OTERCEIRA T U R M ARESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. ENTE PÚBLICO.TOMADOR DE SERVIÇOS. CONTRATAÇÃO. PROCESSOLICITATÓRIO. Não havendo prova inequívoca de que oente público mostrou-se negligente na fiscalização docontrato administrativo firmado com a empresa con-tratada por meio de regular processo licitatório, forço-so não reconhecer a responsabilização subsidiária dotomador dos serviços pelos créditos trabalhistas deferi-dos ao empregado.[...]Tal entendimento tem como base o julgamento da AçãoDeclaratória de Constitucionalidade - ADC nº 16, em 24/11/2010, em que o Supremo Tribunal Federal, por maio-ria, declarou constitucional o art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/1993.[...]É certo que se vislumbra nos debates travados na-quele Excelso Pretório, especialmente em pondera-ção do eminente Relator, Ministro Cezar Peluso, queo ente público negligente, ou seja, que deixasse defiscalizar o fiel cumprimento das obrigações sociaisdos trabalhadores vinculados ao contrato administra-tivo, deveria ser responsabilizado subsidiariamente.Isso porque o dispositivo protetivo da Administraçãocontido na Lei de Licitações (art. 71, § 1º) só poderiaser adotado em situações de certeza, apurada emcada caso concreto submetido a esta Especializada,do correto comportamento do administrador públicoem fiscalizar o cumprimento das obrigações contraí-das pelo contratado com seus empregados atreladosàquele serviço.

Conclui-se, assim, que o sinal dado pelo E. Supremo Tri-bunal Federal, em que pese não vislumbrar qualquerindício de inconstitucionalidade no art. 71, § 1º, da Lei nº8.666/1993, foi de não generalizar os casos, permitindoa esta Justiça do Trabalho, em suas instâncias, verificara conduta da Administração Pública em cada processosubmetido a julgamento.

Na esteira desse entendimento, como não há prova ine-quívoca de que a recorrente mostrou-se negligente nafiscalização do contrato administrativo firmado com aempresa que lhe prestou serviços, forçoso não reconhe-cer a responsabilização subsidiária do tomador peloscréditos trabalhistas constituídos na sentençacondenatória sob exame. Essa conclusão se ampara no

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fato de que milita em favor da Administração Pública oprincípio da legalidade de seus atos, não se podendopresumir, sem que haja a necessária demonstração porparte do autor de que houve negligência do ente esta-tal, que este incorreu em alguma culpa, apenas por vir otrabalhador exigir diferenças de parcelas trabalhistase/ou o pagamento das verbas resilitórias.

Destarte, nego provimento ao apelo (Grifos nossos).

Percebe-se, portanto, a existência de diferentes interpretaçõessobre o conceito do que seria prova apta a ensejar aresponsabilização. A decisão levanta, ainda, outra questão: de quemseria a responsabilidade de provar a configuração ou não da cul-pa? Do autor da reclamação ou do ente público?

O ônus de prova é disciplinado no Código de Processo Civil,em seu artigo 333, I, que versa:

Art. 333. O ônus da prova incumbe:I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo,modificativo ou extintivo do direito do autor.

Relevante citar, ainda, o artigo 818 da CLT, que diz: "A provadas alegações incumbe à parte que as fizer".

Sendo assim, segundo o CPC, que aplica-se subsidiariamenteao Processo do Trabalho, e a própria CLT, a princípio nos pareceque, no que concerne aos fatos constitutivos do direito, o ônus daprova é de quem alega, ou seja, do reclamante, sob pena de ofen-sa aos artigos supracitados.

Porém, mais uma vez, a polêmica não se encerra aqui. Cabenovamente questionar a razoabilidade de exigir-se tal prova aotrabalhador. É possível produzi-la?

Como se vê, ainda existem vários pontos controversos quantoà matéria. Uma solução geral e definitiva, a nosso ver, ainda nãoexiste. A melhor alternativa reside na análise caso a caso, que podemostrar-se excessivamente onerosa, demorada e, em alguns casos,até inviável.

Em vista dessas complicações, a análise da jurisprudência re-cente demonstra que a decisão da ADC 16 e a nova redação daSúmula surtiram poucos efeitos práticos, continuando aresponsabilização do Estado se inferindo a partir do meroinadimplemento das verbas trabalhistas, com o fundamento de fa-lha na culpa in vigilando.

São vastos os exemplos jurisprudencias recentes, como demons-tram ementas publicadas nos últimos dois meses, que decidem nes-se sentido.

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Do TST, citam-se as decisões como a do Agravo de Instrumentoem Recurso de Revista 489003620095040010 (BRASIL, 2011a):

Processo: AIRR 489003620095040010 48900-36.2009.5.04.0010Relator(a): Sebastião Geraldo de OliveiraJulgamento: 19/10/2011Órgão Julgador: 8ª TurmaPublicação: DEJT 21/10/2011

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. AD-MINISTRAÇÃO PÚBLICA. TERCEIRIZAÇÃO. DEVER DE FIS-CALIZAÇÃO. OMISSÃO. -CULPA IN VIGILANDO-. RES-PONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. DECISÃO DO STF NA ADC16. No julgamento da ADC 16, o Supremo Tribunal Fe-deral, ao declarar a constitucionalidade do art. 71, § 1º,da Lei nº 8.666/93, ressalvou a possibilidade de a Justiçado Trabalho constatar, no caso concreto, a culpa invigilando da Administração Pública e, diante disso, atri-buir responsabilidade ao ente público pelas obrigações,inclusive trabalhistas, inobservadas pelo contratado. Aprópria Lei de Licitações impõe à Administração Públicao dever de fiscalizar a execução dos contratos adminis-trativos, conforme se depreende dos artigos 58, III, e 67,§ 1º, da Lei n 8.666/93. Na hipótese dos autos, o TRTregistrou a culpa in vigilando da Administração Pública,motivo pelo qual se atribui a responsabilidade subsidiá-ria ao ente público, com fundamento nos artigos 186 e927, caput, do Código Civil, pelo pagamento dos encar-gos trabalhistas devidos. Agravo de Instrumento nãoprovido.

Ou a do Recurso de Revista 12084620105030103 (BRASIL, 2011b):

Processo: RR 12084620105030103 1208-46.2010.5.03.0103Relator(a): Sebastião Geraldo de OliveiraJulgamento: 09/11/2011Órgão Julgador: 8ª TurmaPublicação: DEJT 11/11/2011

RECURSO DE REVISTA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁ-RIA. TERCEIRIZAÇÃO. DEVER DE FISCALIZAÇÃO DAADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. OMISSÃO. CULPA INVIGILANDO-. DECISÃO DO STF NA ADC 16. O Regionalregistrou expressamente que, no caso concreto, a Re-clamada deixou de acompanhar e fiscalizar o efetivocumprimento do ajuste pela empresa contratada, res-tando caracterizada a conduta culposa da Administra-ção Pública por culpa in vigilando et in eligendo. Recursode Revista conhecido e provido.

Ou, ainda, a do TRT-4 (RIO GRANDE DO SUL, 2011):

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Processo: 0019400-28.2002.5.04.0831 (AP)Redator: CLÓVIS FERNANDO SCHUCH SANTOSData: 10/11/2011 Origem: Vara do Trabalho de Santiago

EMENTA: AGRAVO DE PETIÇÃO. RESPONSABILIDADESUBSIDIÁRIA. ADC N. 16 DO SUPREMO TRIBUNAL FE-DERAL. INEXIGIBILIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO. NÃOOCORRÊNCIA. A declaração da constitucionalidade doartigo 71, parágrafo 1º, da Lei n. 8.666/1993, proferidapelo Supremo Tribunal Federal na ADC n. 16, não atrai aincidência do artigo 884, § 5º, da CLT, e do artigo 741,parágrafo único, do CPC, e, portanto, não autoriza quese declare a inexigibilidade do título executivo na fasede execução.

E a do TRT-5 (BAHIA, 2011):

Processo 0136800-47.2007.5.05.0027 AP, ac. nº 083540/2011, Relatora Desembargadora MARIZETE MENEZES,3ª TURMA, DJ 16/11/2011.

Ementa: RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA ENTE DAADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. CABIMENTO. O inadim-plemento das obrigações trabalhistas, por parte doempregador, implica a responsabilidade subsidiária dotomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclu-sive quanto aos órgãos da administração direta, dasautarquias, das fundações públicas, das empresas públi-cas e das sociedades de economia mista, desde que ha-jam participado da relação processual e constem tam-bém do título executivo judicial. (Súmula 331, IV do TST).

Conclusão

O centro da questão reside no aparente conflito de princípiosdecorrentes da responsabilização do ente público. De um lado,encontra-se o princípio da legalidade, que fundamenta o processolicitatório, excluindo a culpa in eligendo. Outro fundamento dodisposto no artigo 71 da Lei 8.666/1993 seria a proteção ao Erário,ou seja, o privilégio do bem comum, frente ao interesse particularde um trabalhador, ou um grupo de trabalhadores.

No polo oposto estão os direitos fundamentais do indivíduo,inscritos no artigo 1º da CF, notadamente o direito da dignidadeda pessoa humana e valor social do trabalho, que amparam a exi-gência da contraprestação pelo serviço prestado.

Após a análise dos institutos envolvidos, parece-nos que o con-flito ora proposto, na verdade, não existe. Isso porque é função doEstado Democrático de Direito e da Justiça resguardar o indivíduonão só contra abusos de terceiros, mas também contra a própriaadministração. O "bem público" não pode autorizar que o Estado

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

se isente de pagar o trabalhador que prestou serviços do qual eleusufruiu, sob pena de se ingressar em uma ditadura da maioria.

Sendo assim, nesse caso, está muito mais de acordo com osprincípios em que se baseia o Estado o privilégio do interesse par-ticular, do trabalhador, que nada tem a ver com os detalhes envol-vidos. Tal entendimento é o que verdadeiramente beneficiará amaioria, numa visão mais ampla.

Diante de todo o exposto, conclui-se que a intenção por trásda Súmula 331 é absolutamente razoável. Protege o trabalhador eo seu direito de receber pelo serviço prestado.

Entretanto, a aplicação automática da referida Súmula desvir-tuou seu fundamento, criando efetiva hipótese de responsabilida-de objetiva do Estado, diante da ausência de qualquer análise docaso concreto.

Tal posição incentiva, em longo prazo, a terceirização fraudu-lenta, com propostas falsas, que nascem já pretendendo não pagaras verbas trabalhistas, uma vez que o Estado arcará com tudo.

Dessa maneira, a decisão da ADC 16 e a reforma do Enunciado331 do TST são uma evolução na matéria, pois visam aperfeiçoar osjulgamentos e o próprio instituto da terceirização, emprestando-lhes mais credibilidade através de uma análise mais profunda so-bre a responsabilidade e a culpa.

O que se perde no debate entre interesse do Estado versus inte-resse do trabalhador é a responsabilidade da empresa prestadorados serviços. É a inadimplência dela que deve ser evitada. Na grandemaioria das terceirizações realizadas pela Administração o repassede verbas para a empresa prestadora é realizado. Por que, afinal decontas, especificamente nas terceirizações realizadas pelo Estado, ainadimplência de verbas trabalhistas é tão alta?

A ausência de legislação específica para regulamentar o insti-tuto, sem dúvida, contribui para a insegurança em torno deste, e ainsegurança, a incerteza, beneficia somente os mal-intencionados,aqueles que visam se beneficiar de licitações malfeitas e da imedia-ta responsabilização estatal, que encerra a demanda e minimiza apossibilidade de identificar-se os verdadeiros responsáveis.

Como dito no início do trabalho, a terceirização veio para fi-car. A hipótese de proibi-la parece inviável, diante de sua inegáveleficiência e importância dentro do mercado atual.

O foco do debate deve, então, direcionar-se para o aperfeiço-amento do instituto da terceirização - especialmente a realizadapelo Estado - em todos os níveis, com criação de regulamentaçãoextensiva para o instituto, além de métodos de fiscalização maiseficientes, porém razoáveis, desde o processo licitatório, até a fimdo contrato.

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E, diante do inadimplemento, não se satisfazer com a meraresponsabilização do tomador e pagamento do empregado, masaveriguar-se a questão da responsabilidade de quem licitou erro-neamente, de quem não fiscalizou, procedendo-se à punição, sejado agente responsável, seja do ente público.

Quando a questão chega aos Tribunais, independente de quemse responsabilize pelas verbas trabalhistas, o grande perdedor é opovo brasileiro, ou seja, todos nós já perdemos, mesmo que o em-pregado terceirizado receba. O dano é, somente, minimizado, e overdadeiro problema é varrido para debaixo do tapete.

Referências

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A SÚMULA 331 DO TST E A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL E A POLÍTICA DE DESAFOGAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Considerações sobre o juízo deadmissibilidade recursal e a

política de desafogamento dostribunais superiores

Karine Volpato GalvaniAdvogada da CAIXA no Rio Grande do SulEspecialista em Direito Processual Civil pela

Universidade de Santa Cruz do SulEspecialista em Direito Constitucional pela

Universidade do Sul de Santa Catarina

RESUMO

O presente estudo visa, com base no estudo da doutrina eda jurisprudência sobre os temas abordados, analisar a relaçãoexistente entre o juízo de admissibilidade recursal e a políticajudiciária de desafogamento dos tribunais superiores, sob o viésdas impropriedadades técnico-jurídicas nela estabelecidas. Paratanto, o trabalho utiliza-se do método indutivo de abordageme, no aspecto metodológico, de dados bibliográficos, de textoslegais e de decisões dos tribunais. Em consequência, suaargumentação dividiu-se na breve análise dos requisitos geraisde admissibilidade dos recursos e, também, dos que são própriosdos recursos excepcionais, com ênfase na questão da exigênciado prequestionamento, bem como de ilações acerca da aplicaçãoda política judiciária de desafogamento dos tribunais superiores.Ao final, busca demonstrar que a análise conjunta dos temasabordados aponta para a sedimentação da visão de que atentativa do Judiciário de conter a enorme demanda recursalque abarrota os tribunais superiores, na aplicação das diretrizesdo movimento chamado de “política judiciária”, acabou porgerar, além de incongruências técnico-jurídicas, verdadeirosentimento de descrédito na Justiça.

Palavras-chave: Recurso especial. Admissibilidade.Prequestionamento. Política judiciária.

ABSTRACT

The present paper, based on the study of doctrine andjurisprudence about the issues discussed, intends to analyze therelationship between the judgment of admissibility of appealsand the judicial policy of bottlenecking of the superior courts,

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observed by the angle of technical and legal improprieties of it.To do so, the paper uses the inductive method of approach, andin the methodological aspect, bibliographic data, legal texts andcourt decisions. Therefore, it’s argument was divided in a briefanalysis of the general requirements for the admissibility ofappeals and also of those that are proper of the exceptionalappeals, with emphasis on the prior questioning as well aslessons on the implementation of judicial bottlenecking of thecourts. At the end, seeks to demonstrate that the joint analysisof the themes points to the sedimentation of the view that thejudiciary’s attempt to contain the huge demand that fills up thesuperior courts, applying the guidelines of the movement called“judicial policy”, generate, in addition to technical and legalinconsistencies, real sense of discredit of the justice.

Keywords: Exceptional Appeals. Admissibility. PriorQuestioning. Judicial Policy.

Introdução

O recurso especial está previsto no art. 105, alíneas a, b e c daConstituição Federal, nos seguintes termos:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:[...]III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, emúnica ou última instância, pelos Tribunais Regionais Fe-derais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Fede-ral e Territórios, quando a decisão recorrida:a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vi-gência;b) julgar válido ato de governo local contestado em facede lei federal;c) der a lei federal interpretação divergente da que lhehaja atribuído outro tribunal.

O parágrafo 1° do art. 542 do CPC, por sua vez, dispõe que osrecursos extraordinário e especial serão submetidos ao exame deadmissibilidade após o decurso do prazo para apresentação dascontrarrazões do recorrido, ainda nos tribunais de origem.

Está, pois, definida a competência dos tribunais de segundainstância para apreciar a admissibilidade dos recursos excepcionais.

Interposto o recurso, cumpre ao Juízo primeiro deadmissibilidade, então, proceder ao exame dos pressupostos derecorribilidade, uma vez que esses devem anteceder o exame domérito, pois lhe são logicamente precedentes e eventualmente pre-judiciais.

Assim, como questões preliminares gerais, têm-se aquelas rela-cionadas às condições da ação (cabimento, interesse e legitimida-

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL E A POLÍTICA DE DESAFOGAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

de), ao prazo, à inexistência de fato extintivo ou impeditivo dopoder de recorrer e ao preparo, aplicáveis a todo e qualquer recur-so judicial.

A questão a ser tratada no presente trabalho diz respeito, porsua vez, à análise de requisitos específicos dos recursos excepcionais,com ênfase para o recurso especial e para o requisito doprequestionamento a ele aplicado. Isso porque, da análise da dou-trina e da jurisprudência sobre o tema, infere-se que a sua aprecia-ção pelos tribunais de origem acaba, em grande parte das vezes, porultrapassar a linha que divide a competência para análise dos requi-sitos de admissibilidade propriamente ditos, para passar a estabele-cer impertinente julgamento do mérito do recurso, invadindo com-petência que é do tribunal superior ao qual o recurso é dirigido.

Tal análise servirá, também, para demonstrar como a políticajudiciária de “desafogamento” dos tribunais superiores acaba porimputar ao jurisdicionado rigores no juízo de admissibilidade que,além de não estarem previstos em lei, denotam verdadeira injusti-ça chancelada pelo Poder Judiciário.

1 Requisitos de admissibilidade dos recursos

Os pressupostos de admissibilidade recursal são comumentecomparados às condições da ação. No dizer de Nery Junior (2000,p. 222):

as condições da ação, portanto, devem estar preenchi-das para que seja possível o exame do mérito, da pre-tensão deduzida em juízo. Somente depois de ultrapas-sado o seu exame é que o magistrado poderá colocarfim à incerteza que pesa sobre determinada relaçãoaplicando o direito ao caso concreto que lhe foi levadopelo autor.Quanto ao recurso, ocorre fenômeno assemelhado. Exis-tem algumas condições de admissibilidade que necessi-tam estar presentes para que o juízo ad quem possaproferir o julgamento do mérito do recurso.Chamamos o exame destes requisitos de juízo deadmissibilidade. O exame do recurso pelo seu fundamen-to, isto é, saber se o recorrente tem ou não razão quantoao objeto do recurso, denomina-se juízo de mérito.

Partindo da análise geral do juízo de admissibilidade dos re-cursos, faz-se necessária a verificação dos seus requisitos propria-mente ditos, o que, na analogia com as condições da ação, poder-se-iam chamar de pressupostos ou condições recursais.

Nesse sentido, Nery Junior (2000, p. 240-242) segue a classifi-cação de Barbosa Moreira e diz:

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Os pressupostos intrínsecos são aqueles que dizem res-peito a decisão recorrida em si mesmo considerada. Paraserem aferidos, leva-se se em consideração o conteúdoe a forma da decisão impugnada, tal modo que, paraproferir-se o juízo de admissibilidade, toma-se o ato ju-dicial impugnado no momento e da maneira como foiprolatado, entre eles o cabimento, a legitimação pararecorrer e o interesse em recorrer.[...]Os pressupostos extrínsecos respeitam aos fatores exter-nos à decisão judicial que se pretende impugnar, sendonormalmente posteriores a ela. Neste sentido, para se-rem aferidos não são relevantes os dados que compõem oconteúdo da decisão recorrida, mas sim fatos a estasupervenientes. Deles fazem parte a tempestividade, aregularidade formal, a inexistência de fato impeditivo ouextintivo do poder de recorrer e o preparo.

Passa-se, então, a analisar, de forma breve, os referidos requi-sitos, uma vez que são indispensáveis à compreensão dos requisitosespecíficos para admissibilidade do recurso especial, que serão tra-tados com maior ênfase.

Antes disso, no entanto, é preciso destacar que, nas hipóte-ses em que o juízo de admissibilidade exarado pelo órgão a quoé negativo, há a possibilidade de interposição de recurso ao tri-bunal competente (respectivo tribunal superior) para a aprecia-ção do recurso originário, de modo que o órgão superior possarever a decisão do inferior, especificamente no que tange àinadmissibilidade.

Assim, na hipótese de se ter juízos de admissibilidade negati-vos, para ambos os recursos excepcionais (especial e extraordiná-rio) pelas presidências ou vice-presidências dos tribunais locais (atri-buição definida pelos regimentos internos de cada tribunal), ha-verá a possibilidade da interposição de agravo de instrumento, noprazo de dez dias, conforme o disposto no art. 544 do CPC.

1.1 Dos requisitos intrínsecos

1.1.1 Cabimento

Esse requisito é aplicado no momento em que se analisa se adecisão deve comportar a impugnação pela via recursal e o recursoadequado para respectiva impugnação.

Desse modo, faz-se necessário haver decisão com carga decisóriarecorrível, bem como que o recurso interposto pela parte recorren-te seja adequado para atacá-la.

Assim, se o recurso utilizado não for adequado, este não seráadmitido, por lhe faltar o requisito cabimento.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL E A POLÍTICA DE DESAFOGAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

1.1.2 Legitimidade para recorrer

A legitimidade para recorrer vem disciplinada no art. 499 doCPC, nos seguintes termos:

Art. 499. O recurso pode ser interposto pela partevencida, pelo terceiro prejudicado, e pelo MinistérioPúblico.§ 1° Cumpre ao terceiro demonstrar o nexo de inter-dependência entre o seu interesse de intervir e a rela-ção jurídica submetida à apreciação judicial.§ 2º O Ministério Público tem legitimidade para recor-rer assim no processo em que é parte, como naquelesque oficiou como fiscal da lei.

Tem-se, então, que o referido artigo atribui a legitimidade pararecorrer às partes do processo, aos terceiros prejudicados, que de-vem demonstrar seu interesse jurídico na ação, e ao órgão do Mi-nistério Público, tanto quando atua como parte, quanto quandoatua como custos legis.

1.1.3 Interesse em recorrer

Nesse requisito, bastante elucidativo é o ensinamento de Nunes(2007, 115), que dispensa maiores anotações a esse respeito. Veja-se:

o interesse em recorrer deve sempre tomar por base o“binômio utilidade + necessidade: utilidade da provi-dência judicial pleiteada, necessidade da via que se es-colhe para obter essa providência. O interesse em re-correr, assim, resulta da conjugação de dois fatores: deum lado, é preciso que o recorrente possa esperar, dainterposição do recurso, a consecução de um resultadoa que corresponda situação mais vantajosa, do pontode vista prático, do que a emergente da decisão recorri-da; de outro lado, que lhe seja necessário usar o recursopara alcançar tal vantagem”.

1.2 Dos requisitos extrínsecos

1.2.1 Tempestividade

Tem-se, como regra, para cumprimento dos atos processuais,que esses obedeçam a prazos definidos na lei, sob pena da perdado direito de exercê-los, ou seja, sob pena do efeito da preclusão.

Com os recursos, ocorre idêntica situação, uma vez que odescumprimento dos prazos fixados na lei conduz ao seu não co-nhecimento, por desatendimento ao requisito da tempestividade,já que os respectivos prazos são considerados peremptórios. Os pra-

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zos para interposição dos recursos tratados no presente estudo sãode 15 dias para os recursos especial e extraordinário e cinco diaspara os embargos de declaração, sendo que os prazos devem sercontados na forma preconizada pela Lei nº 11.419, de 19/12/2006,que entrou em vigor no dia 19/03/2007 e diz:

DA COMUNICAÇÃO ELETRÔNICA DOS ATOS PROCES-SUAIS

Art. 4º Os tribunais poderão criar Diário da Justiça ele-trônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de com-putadores, para publicação de atos judiciais e adminis-trativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bemcomo comunicações em geral.§ 1º O sítio e o conteúdo das publicações de que trataeste artigo deverão ser assinados digitalmente com baseem certificado emitido por Autoridade Certificadoracredenciada na forma da lei específica.§ 2º A publicação eletrônica na forma deste artigo subs-titui qualquer outro meio e publicação oficial, para quais-quer efeitos legais, à exceção dos casos que, por lei,exigem intimação ou vista pessoal.§ 3º Considera-se como data da publicação o primeirodia útil seguinte ao da disponibilização da informaçãono Diário da Justiça eletrônico.§ 4º Os prazos processuais terão início no primeiro diaútil que seguir ao considerado como data da publica-ção.§ 5º A criação do Diário da Justiça eletrônico deverá seracompanhada de ampla divulgação, e o ato administra-tivo correspondente será publicado durante 30 (trinta)dias no diário oficial em uso (grifos nossos).

Assim, tanto o recurso especial quanto o recurso extraordiná-rio devem ser apresentados perante o tribunal de origem, no pra-zo de 15 dias contados a partir da publicação, considerando-sepublicada a decisão no primeiro dia útil seguinte ao dadisponibilização da informação no Diário de Justiça eletrônico e,conforme o artigo 240 e seu parágrafo único do CPC, começandoo início do prazo processual a fluir no primeiro dia útil após o diaconsiderado como da publicação.

1.2.2 Regularidade formal

A regularidade formal é o requisito extrínseco que está ligadoao cumprimento dos aspectos da interposição dos recursos que es-tão especificamente delineados na lei.

Em relação aos aspectos formais, faz-se necessário ressaltar al-gumas peculiaridades em relação ao recurso especial, como a apre-sentada a seguir.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL E A POLÍTICA DE DESAFOGAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

No recurso especial interposto com base no dissídiojurisprudencial (art. 105, III, c, da CF/88), há de se obedecer ao pre-visto no art. 541 e seu parágrafo único do CPC, sendo necessáriodemonstrar, analiticamente, que os arestos divergiram na aplica-ção da lei em casos análogos, não bastando a simples “citação outranscrição de ementas”. Tal observação é fruto da sua reiteradapresença no conteúdo dos acórdãos emanados pelo Superior Tri-bunal de Justiça.1

1.2.3 Da inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poderde recorrer

Também configura hipótese de inadmissibilidade recursal aexistência dos fatos impeditivos e/ou extintivos do poder de recor-rer.

Na exata lição de Nery Junior (2000, p. 335), “os fatos extintivosdo poder de recorrer são a renúncia ao recurso e a aquiescência àdecisão; os impeditivos do mesmo poder são a desistência do recur-so ou da ação, o reconhecimento jurídico do pedido, a renúncia adireito que se funda a ação”.

1.2.4 Preparo

A exigência de preparo recursal encontra-se disciplinada noart. 511 do CPC, verbis:

1 Nesse sentido:PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ALÍNEA “C”.NÃO-DEMONSTRAÇÃO DA DIVERGÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. REEXAME DE PROVA.IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.1. A divergência jurisprudencial deve ser comprovada, cabendo a quem recorredemonstrar as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confronta-dos, com indicação da similitude fática e jurídica entre eles. Indispensável a trans-crição de trechos do relatório e do voto dos acórdãos recorrido e paradigma,realizando-se o cotejo analítico entre ambos, com o intuito de bem caracterizar ainterpretação legal divergente. O desrespeito a esses requisitos legais e regimen-tais (art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI/STJ) impede o conhecimen-to do Recurso Especial, com base na alínea “c” do inciso III do art. 105 da Cons-tituição Federal.2. O reconhecimento, pelo Tribunal de origem, de que a questão necessita deprodução de prova impossibilita a utilização da via peculiar da Exceção de Pré-Executividade. Orientação reafirmada no julgamento do REsp 1.104.900/ES, sobo rito dos recursos repetitivos.3. Agravo Regimental não provido. (AgRg no Ag 1163985/SP, Rel. MinistroHERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/11/2009, DJe 18/12/2009).

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Art. 511. No ato de interposição do recurso, o recorren-te comprovará, quando exigido pela legislação perti-nente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessae de retorno sob pena de deserção.§ 1º São dispensados de preparo os recursos interpostospelo Ministério Público, pela União, pelos Estados eMunicípios e respectivas autarquias, e pelos que gozamde isenção legal.§ 2° A insuficiência no valor do preparo implicará deser-ção, se o recorrente, intimado, não vier a supri-lo noprazo de cinco dias.

No caso dos recursos excepcionais, oportuno ressaltar que nãose aplica o disposto no parágrafo segundo do artigo citado, umavez que acaso não seja interposto já com o preparo consideradodeserto. Nesse sentido, lembra-se, ainda, que é relativamente re-cente a modificação legislativa que impôs o pagamento de custastambém aos recursos especiais (Lei nº 11.636, de 28/12/2007), umavez que, até então, para interposição do referido recurso, o prepa-ro restringia-se ao pagamento do porte de remessa e retorno dosautos.

2 Requisitos de admissibilidade específicos do recursoespecial e sua aplicação no juízo de “inadmissibilidade”

Delineados, ainda que superficialmente, os requisitos genéri-cos dos recursos, passa-se a analisar, de forma mais detida, os requi-sitos de admissibilidade específicos dos recursos excepcionais, mor-mente da forma que serão impostos ao recurso especial.

Por essa razão, a par de conceituar brevemente esses requisi-tos, a abordagem ora utilizada será no sentido de destacar os pon-tos em que residem as exigências ilegais neles fundadas, quandoda feitura do juízo de admissibilidade do recurso especial pelostribunais de origem.

Em primeiro lugar, faz-se necessário salientar que não há una-nimidade na doutrina acerca de quais são, exatamente, os requisi-tos de admissibilidade específicos dos recursos especiais. Verifica-seque o Código de Processo Civil disciplina o tema de forma escassa,como no caso dos requisitos dispostos no parágrafo único do seuart. 541, citado alhures, bem como que muitos dos requisitos im-postos hodiernamente na jurisprudência encontram fundamentonos arts. 102, III, e 105, III, da CF/88, que disciplinam as hipóteses decabimento dos recursos especial e extraordinário de forma genéri-ca, sem impor qualquer restrição literal. Assim, o que se tem, naverdade, é que tais requisitos acabaram sendo disciplinados porprecedentes jurisprudenciais.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL E A POLÍTICA DE DESAFOGAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Por oportuno, é necessário que se transcreva as súmulas relaci-onadas ao tema, com maior aplicação na prática, no âmbito doSuperior Tribunal de Justiça. Veja-se:

Súmula 5: A simples interpretação de cláusulacontratual não enseja recurso especial.Súmula 7: A pretensão de simples reexame de provanão enseja recurso especial.Súmula 207: É inadmissível recurso especial quandocabíveis embargos infringentes contra o acórdão profe-rido no tribunal de origem.Súmula 211: Inadmissível recurso especial quanto àquestão que, a despeito da oposição de embargosdeclaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo.

Nesse passo, também é necessário mencionar a Súmula 284 doSupremo Tribunal Federal, por ser utilizada indistintamente para anegativa de admissão de ambos os recursos excepcionais, quandointerpostos por violação a legislação federal ou de dispositivo cons-titucional, e que tem o seguinte teor:

É inadmissível o recurso extraordinário, quando a defi-ciência na sua fundamentação não permitir a exata com-preensão da controvérsia.

Em vista do exposto, a par da inexistência de consenso sobre otema, o presente estudo visa traçar o perfil apenas dos principaisrequisitos de inadmissibilidade dos recursos especiais, como a ale-gação de inexistência de violação à lei e da existência dematéria fático-probatória a ser analisada no recurso, bemcomo (e mais especificamente) acerca da problemática existentequanto à exigência de prequestionamento dos dispositivoslegais arguidos no recurso especial.

2.1 Alegação de inexistência de violação à lei

Diz a redação do art. 105, III, a, da CF/88, que é admissível ainterposição de recurso especial em face de acórdão que violar ounegar vigência a dispositivo de lei federal.

A questão da apreciação de violação a dispositivo legal no juízode admissibilidade reside no fato de tal juízo dizer respeito ao méri-to dos recursos especiais, não podendo ser transferido ao exame deadmissibilidade do juízo a quo. É, no entanto, fundamento deinadmissão vastamente utilizado pelos tribunais de origem.

Nesse sentido, é de se lembrar que, como já visto, o juízo deadmissibilidade exercido pelo tribunal a quo não pode ser con-fundido com o juízo de mérito a ser exercido pelo tribunal ad

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quem, o que evidencia o descabimento de os tribunais de origemnão admitirem recurso especial, com base, em geral, no dispostona Súmula 284 do STF anteriormente transcrita, sob o fundamen-to de que não fora devidamente demonstrada a existência deviolação a dispositivo legal.

Nesse sentido, bem ensina Gouveia (2008, p. 33):

não é válido, portanto, que o exame de admissibilidadeultrapasse o âmbito de análise delimitado acima, produ-zindo juízo de valor acerca da apontada violação ao TextoConstitucional ou à legislação infraconstitucional, de for-ma a impor a não-admissão do apelo extraordinário ouespecial com base no prejulgamento do mérito recursal.[...]Das lições acima colacionadas infere-se que não é permi-tido à Corte de origem proceder à análise do méritorecursal, mas apenas limitar-se a avaliar se foi aponta-daa ofensa da decisão recorrida à Constituição Federal ou àlegislação infraconstitucional, de forma a viabilizar a ad-missão do recurso extraordinário interposto com baseno art. 102, III, “a”, da CF/88, ou do recurso especial inter-posto com fundamento no art. 105, II, “a”, da CF/88.

Em conclusão, vê-se que o tribunal de origem que deixa deadmitir determinado recurso especial, por entender que não hou-ve a violação apontada pelo recorrente, se imiscui indevidamentena competência recursal do tribunal superior, o que não pode seradmitido, por extrapolar a sua competência, que deve se restringirao cumprimento de requisitos objetivos.

2.2 Impossibilidade de reexame de matéria fático-probatória

A Súmula 7 do STJ dispõe que “a pretensão de simples reexamede prova não enseja recurso especial”. Tal criação jurisprudencialpretende reforçar o entendimento de que nos recursos excepcionaisapenas se pode analisar as matérias atinentes à violação ou negati-va de vigência aos dispositivos legais e constitucionais no caso con-creto, não se podendo examinar as circunstâncias fáticas do caso.

Não obstante, a referida súmula é utilizada indiscriminadamentepelos tribunais de origem com o fito de impedir a subida de recur-sos especiais. Exemplo clássico são ações de dano moral em caso deinscrição em cadastros de restrição de crédito. De um lado, tem-se anegativa sistemática dos tribunais de origem em admitir tais recur-sos especiais2, sob o fundamento de que implicariam análise de

2 Exemplo dos despachos de inadmissão proferidos pelo Tribunal Regional da 4ªRegião nos autos nº 2001.71.00.033978-4, 2004.71.00.037649-6 e2006.70.01.003658-5.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL E A POLÍTICA DE DESAFOGAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

matéria fático-probatória, e, de outro, jurisprudência vasta e paci-ficada do STJ no sentido de que cabe ao tribunal superior cuidardo quantum a ser arbitrado na indenização desse tipo de dano3, oque demonstra que não há nova análise dos fatos, mas tão somen-te fatos já analisados a serem considerados para fixação do valorda indenização.

A esse respeito, em excelente conclusão sobre o tema, diz Car-neiro (2008, p. 217):

importante frisar a advertência de que “a circunstânciade que os fatos da causa não devam ser reapreciadosem sede de RE e/ou REsp não significa, em si, adesconsideração dos fatos como elementos jurídicosnecessários à justa prestação jurisdicional”.Afinal de contas, a aplicação do direito é um fenômenotridimensional, que leva em conta o fato, a norma e asubsunção do fato à norma. Dessa forma, para que sepossa verificar se houve ou não a correta aplicação dalei ou da Constituição, tem-se que passar pelo exame dofato.O que é vedado, portanto, não é verificar os fatos queembasam o caso em tela, mas sim lhes alterar a dimen-são e versão que lhes foi dada pelo acórdão recorrido.Não caberá aos Tribunais Superiores verificar a existên-cia ou inexistência de determinados fatos, mas analisarse a lei foi aplicada corretamente, tomando os fatoscomo narrados na decisão recorrida.

2.3 Exigência de prequestionamento

A exigência de prequestionamento dos dispositivos legaisarguidos no recurso especial é, pois, a questão a ser analisada maisdetidamente no presente estudo.

Na definição de Castilho (2001, p. 19), o prequestionamento:

Trata-se de fenômeno processual que se deve identifi-car no curso da lide para demonstrar que a questãoconstitucional ou legal, que se quer trazer à discussãono Tribunal Superior, foi devidamente examinada notribunal inferior. Em outros termos, cuida-se de eviden-ciar que as instâncias ordinárias julgaram a lide enfren-tando os referidos temas como razão de decidir.

3 Exemplo dos acórdãos proferidos no REsp 874496/SC, Rel. Ministro JorgeScartezzini, Quarta Turma, julgado em 05.12.2006, DJ 12.02.2007, p. 269; REsp705371/AL, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em 24.10.2006,DJ 11.12.2006, p. 364; REsp 873922/MT, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, QuartaTurma, julgado em 14.11.1006, DJ 11.12.2006, p. 392; REsp 871465/PR, Rel.Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em 05.12.2006, DJ 12.02.2007,p. 267; REsp 612407/RS, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Quarta Turma,julgado em 27.03.2007, DJ 23.04.2007, p. 271.

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O autor diz que “a obviedade do axioma é patente, pois nãoteria sentido pedir ao Tribunal Superior a apreciação de questãoque o inferior não tivera necessidade ou oportunidade de exami-nar” (CASTILHO, 2001, p. 19).

A par de apresentar o conceito de prequestionamento, faz-senecessário dizer que esse é, com certeza, um dos aspectos mais dis-cutidos e controvertidos na doutrina e jurisprudência, no que serefere aos requisitos de admissibilidade dos recursos excepcionais.

O trato com a frequente interposição de recursos especiais fazver, nesse sentido, que a dificuldade da questão existe em virtudede, na ausência de regulamentação legal, a jurisprudência dos tri-bunais superiores não ter chegado a um entendimento sobre aforma de exigência do prequestionamento e, em assim sendo, terformulado entendimento de várias espécies.

A nomenclatura mais utilizada pelos tribunais identifica norequisito do prequestionamento três formas distintas: explícito,implícito e ficto.

A fim de identificar de forma esclarecedora os três tipos referi-dos, utilizar-se-á a lição de Carneiro (2008, p. 215), verbis:

sumarizando o entendimento doutrinário ejurisprudencial, e independente da definição adotadade prequestionamento, podemos afirmar que, em rela-ção à forma com que o Tribunal local se manifesta sobrea questão federal ou constitucional, o prequestiona-mento pode se dar de três modos: a) explícito; b) implí-cito; e c) ficto.A diferença entre o prequestionamento implícito e oexplícito (infelizmente também denominado de numé-rico) reside no fato de que no explícito o Tribunal localconsignou expressamente o dispositivo legal tido comoviolado, enquanto que no implícito o acórdão, emboratenha se manifestado sobre a questão, não mencionouexpressamente o dispositivo legal.[...]Há, ainda, o prequestionamento chamado de ficto, quese dá quando o Tribunal não apreciou a questão fede-ral ou constitucional no acórdão, mas a parte opôs osdevidos embargos de declaração. Nesse caso, mesmoque o tribunal não acolha os embargos de declaraçãoe, consequentemente, não se manifeste sobre a ques-tão suscitada, estaria atendido o requisito doprequestio-namento, pois a parte cumpriu com a exi-gência que lhe cabia, de provocar o órgão jurisdicionalpara se manifestar, não podendo ser responsável pelaomissão dele.

Identificadas as concepções mais utilizadas de prequestio-namento, a jurisprudência dos tribunais, tanto de origem quanto

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL E A POLÍTICA DE DESAFOGAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

dos superiores, demonstra que esses se utilizam concomitantementedas três formas. Não obstante, a análise dos acórdãos acerca damatéria demonstra que o verdadeiro problema consiste em severificar que não é possível se vislumbrar outra lógica, senão ade que, no caso concreto, a concepção aplicada pauta-se, prin-cipalmente, no interesse em julgar (ou não) o mérito de deter-minado recurso.

Nesse sentido, é importante destacar a criação jurisprudencialsurgida em torno dos embargos de declaração, a fim de subsidiar oprequestionamento ficto. Tem-se no Supremo Tribunal Federal asSúmulas 282 e 356, que dizem, respectivamente, que “é inadmissí-vel o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão re-corrida, a questão federal suscitada” e “o ponto omisso da deci-são, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, nãopode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito doprequestionamento” (grifo nosso).

O Superior Tribunal de Justiça, por seu turno, aponta entendi-mento contrário, ao dizer, na Súmula n° 211, que é “inadmissívelrecurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição deembargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo”(grifo nosso), bem como na Súmula n° 320 que “a questão federalsomente ventilada no voto vencido não atende ao requisito doprequestionamento”.

Visualizadas as súmulas aplicáveis à questão, é pontual a liçãode Gouveia (2008, p. 38-39) ao reconhecer que não há outra for-ma de se cumprir o requisito do prequestionamento se não ainterposição sistemática de embargos de declaração, nos seguintestermos:

por essas razões revela vital importância ao corretodeslinde do feito a oposição de embargos de declaraçãoquando a parte verificar inexistir na decisão a análisede questão levada ao processo.[...]sendo assim, conclui-se que o exame de admissibilidadedos recursos constitucionais, no que tange ao pressu-posto do prequestionamento, deve se ater apenas àanálise da existência na decisão recorrida de discussãoexpressa em torno dos dispositivos constitucionais e le-gais indicados como violados ou implícita acerca da ma-téria por eles regulada. Quando inexistente o debatedo tema no julgado contestado, cabe à parte interporembargos de declaração. Se mesmo assim não for sana-da a omissão, a mera oposição dos embargosdeclaratórios viabiliza a admissibilidade do recurso ex-traordinário e a alegação de ofensa ao art. 535 do Códi-go de Processo Civil viabiliza a admissibilidade do recur-so especial.

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A lógica dos tribunais, no entanto, não é assim tão escorreita.Bom exemplo é o posicionamento de Volkmer de Castilho em arti-go escrito na época em que atuou como Juiz Vice-Presidente doTribunal Regional Federal da 4ª Região. Isso porque esse autor, aose manifestar sobre o posicionamento dos tribunais superiores acercada questão do prequestionamento nos recursos excepcionais, tra-duz juízo de valor sobre tema, que é bastante elucidativo doposicionamento tomado atualmente pelos tribunais, razão pelaqual merece ser reproduzido.Veja-se:

o STF, embora exija o prequestionamento explícito, acei-ta que seja satisfeita a exigência com a simples apresen-tação dos declaratórios, reconhecendo-a cumprida mes-mo rejeitados os embargos. A solução da Corte Supremaparece contraditória, porque aceita a afirmação da par-te de que o não-provimento dos declaratórios vulnera odireito de prestação jurisdicional e isso implica a necessi-dade de examinar - para o suprimento do defeito - todaa matéria de fato e de direito para dizer que a omissãoou a contradição não declarada impediu ilegalmente asubida do recurso. Salvo melhor exame, não há comoaceitar qualquer delas: a primeira, porque faltando aexplicitação não há prequestionamento suficiente; e aoutra, porque, para consegui-lo, seria necessário exami-nar fatos e provas. A conclusão correta parece ser a deque, nesse caso, não há mais como examinar a pretensãoda parte, cabendo a movimentação da ação rescisória naqual se poderá desfazer o acórdão deficiente e, na reto-mada do julgamento do acórdão defeituoso, exigir o ade-quado prequestionamento. Certo é que não se pode, norecurso excepcional ou através dele, postular a reformado acórdão que rejeitou embargos declaratórios, penade transformar a instância excepcional em instânciarevisora de fatos e de prova, contrariando a própria juris-prudência que o veda. Aliás, é preciso ainda deixar claroque o costume, muito difundido entre os tribunais inferi-ores, de admitir - por embargos declaratórios - a“explicitação” dos artigos que o embargante quer sejamtidos por prequestionados, não tem nenhum fundamen-to (CASTILHO, 2001, p. 19, grifo nosso).

Diz, ainda:

Com efeito, o prequestionamento de que cuida a ve-lha jurisprudência do STF é a efetiva discussão e abor-dagem do tema respectivo na sentença e no acórdãoque julga a apelação, sendo evidentemente insufici-ente o mero requerimento, via embargosdeclaratórios do julgamento da apelação ou da açãorescisória, para que o tribunal de 2° grau faça a indi-cação dos artigos ou textos legais que se quer sejamtidos por prequestionados, mesmo quando não te-

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nham sido de fato discutidos como razão de decidirno respectivo julgamento. Esse expediente certamen-te não constitui o prequestionamento de que tecnica-mente cogita a interpretação constitucional predo-minante, a qual exige do recorrente uma provocaçãoconcreta do tribunal inferior sobre a questão consti-tucional ou federal capaz de habilitar a discussão noTribunal Superior. Em resumo, se os embargos desti-nados ao prequestionamento forem rejeitados, nadamais pode ser feito na via excepcional, não podendoser acolhidos só para dar por prequestionados os pon-tos solicitados como fundamento do julgado sem adevida discussão (CASTILHO, 2001, p. 20, grifo nosso).

Como já dito, o posicionamento do magistrado é bastanteilustrativo da situação atual da jurisprudência e o que permitesublinhar é que, ainda mais nos dias de hoje, a carga acerca dademonstração do prequestionamento é posta sobremaneira so-bre os ombros do recorrente, e não do órgão julgador, circuns-tância que altera o recomendável equilíbrio e papel das partesde uma ação judicial, em desfavor daquele que busca a tutelajurisdicional.

3 Da política de desafogamento do Poder Judiciário

A análise dos temas discutidos no presente trabalho demons-tra que o afã de impedir a subida dos recursos para julgamentodos tribunais, mormente dos tribunais superiores, é reflexo do cres-cente movimento, comumente chamado de “política judiciária”,que visa “desafogar” o Poder Judiciário do excesso de demandas.Estão nessa mesma linha as tentativas de reduzir a judicializaçãodos conflitos, por meio das alternativas de projetos de conciliação,inclusive pré-processuais, e de arbitragem.

Não obstante, a crítica feita a tal política é no sentido de quea sua aplicação na fase recursal tem implicado, indubitavelmente,a redução da qualidade técnica dos julgamentos. Nesse sentido, aquestão da exigência (ou não) do requisito “prequestionamento”e da interposição (ou não) de embargos declaratórios tornou-seemblemática para ilustrar esse descompasso.

Cada dia mais os acórdãos são precariamente fundamentados,muitas vezes sem qualquer indicação de dispositivo legal e comevidentes omissões de julgamento das matérias arguidas pelos re-correntes. Para estes, no entanto, contra esse movimento que vemnitidamente ao seu desfavor, resta apenas a interposição de em-bargos declaratórios, que, na grande maioria das vezes, deixam deser analisados e são rejeitados com fundamento genérico da inviávelpretensão de atribuição de efeitos infringentes.

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A análise dos julgamentos leva a crer, muitas vezes, que, quan-do convém ao tribunal julgar o mérito do recurso, admite-se até oprequestionamento ficto. Por outro lado, quando não é o caso derealizar o julgamento, exige o prequestionamento explícito (nu-mérico), de modo a não conhecer o recurso.

Tal posicionamento fica evidente ao se fazer análise das deci-sões proferidas nos agravos de instrumento interpostos contra osdespachos de inadmissibilidade. Na hipótese de a mesma matériaser enviada ao STJ por meio de recurso especial, diretamente, e pormeio de agravo de instrumento (art. 544 do CPC) em que o tribu-nal de origem impôs óbice da ausência de prequestionamento, épraticamente impossível que na última hipótese o mérito do recur-so especial seja analisado. No entanto, se a matéria é enviada aotribunal superior por meio de recurso especial, prequestionadaexplicitamente ou não, a chance de ser analisada aumenta consi-deravelmente, pois o julgamento pelo STJ fixa-se menos nos requi-sitos de admissibilidade e mais no mérito do recurso.

A análise detalhada de um dos requisitos de admissibilidadetorna plausível a afirmação de que o conjunto do Poder Judiciárioestá desafinado, tendo em vista que vem impondo rigores excessi-vos e, muitas vezes, ilegais aos recorrentes. Todos sabem, no entan-to, que o caminho é o equilíbrio e, nesse sentido, Moreira (2005, p.187-188) é contundente ao advertir:

o que se espera da lei e de seus aplicadores é um trata-mento cuidadoso da matéria, que não imponha sacrifí-cio excessivo a um dos valores em jogo, em homenagemao outro. Para usar palavras mais claras: negar conheci-mento recurso é atitude correta e é altamente reco-mendável, toda vez que esteja clara a ausência de qual-quer dos requisitos de admissibilidade. Não devem ostribunais, contudo, exagerar na dose, por exemplo, ar-vorando motivos de não conhecimento circunstância deque o texto legal não cogita, nem mesmo implicitamen-te, agravando sem razão inconsistente exigências porele feitas, ou apressando-se a interpretar em desfavordo recorrente dúvidas suscetíveis de suprimento.

Conclusão

O presente trabalho visa demonstrar inicialmente que a juris-prudência dos tribunais superiores tem criado requisitos deadmissibilidade que não constam da lei ou da Constituição para osrecursos excepcionais, bem como que a ausência de regulamenta-ção legal para tais exigências acaba por criar rigores formais que,além de incongruentes, são por vezes aplicados por instâncias in-competentes.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL E A POLÍTICA DE DESAFOGAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

A par da ilustração técnica do problema, que pode ser feitatranquilamente por meio da análise correlacionada entre os argu-mentos ora expendidos e os bancos de jurisprudência dos tribu-nais, é preciso dizer que é sabido que, sob a ótica menos técnica emais política, resta evidenciado que tal situação é resultado da ten-tativa do Judiciário de conter a enorme demanda recursal que abar-rota de recursos os tribunais superiores, na aplicação das diretrizesdo movimento comumente chamado de “política judiciária”.

A exigência do requisito prequestionamento é, pois, questãoque – conforme se verifica na análise efetuada no presente estudo– demonstra efetivamente que não há regra técnica exata para suaexigência, mas sim regra de conveniência.

Depois de anos pretendendo levar a justiça a todos os cida-dãos, nos memoráveis escritos e movimentos atinentes ao “acesso àjustiça”, propagados pela promulgação da Constituição Federal de1988, o que se tem hoje é um caminho diferente, que busca adesjudicialização dos conflitos. Há muito o que se fazer, no entan-to, para que sejam objeto de contenção, também, as oportunida-des em que o cidadão realmente chega até a Justiça, mas essa aten-de a sua provocação de forma precária.

O que se observa, também, como resultado da aplicaçãode tal política, é que esta, utilizada demasiadamente tanto pelostribunais de origem quanto pelo Superior Tribunal de Justiça,acaba por gerar situações de evidente injustiça, pois os requisi-tos de admissibilidade não são examinados tecnicamente, massim de acordo com a conveniência do órgão julgador, que temde deixar subir o recurso ou, no caso dos tribunais superiores,julgá-lo.

Tal forma de agir, no entanto, autoriza o jurisdicionado a pensarque, quando pretendem julgar o mérito dos recursos, os tribunaisexcepcionais interpretam com pouco rigor os requisitos deadmissibilidade dos recursos especiais e extraordinários. No entan-to, quando não desejam examinar o seu mérito, utilizam excessode rigor para achar, custe o que custar, algum requisito deadmissibilidade que não tenha sido atendido, valendo, inclusive,criar requisito novo a ser cumprido.

O que se questiona, dessa forma, não é a necessidade de seconter demanda excessiva de recursos enviados aos tribunais supe-riores, mas sim a forma com que os tribunais regionais e o próprioSTJ e STF estão lidando com o problema: utilizando-se dos requisi-tos de admissibilidade como instrumento da política para reduçãodos recursos, o que gera não só as incongruências técnico-jurídicasapontadas neste estudo, mas também a irresignação dosjurisdicionados e o seu descrédito na Justiça.

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KARINE VOLPATO GALVANI ARTIGO

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Referências

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CASTILHO. Manoel Lauro Volkmer de.Notas sobre o processamento do juízode admissibilidade dos recursos espe-ciais e extraordinários. Revista Jurí-dica, Porto Alegre, v. 281, p. 18-28,2001.

GOUVEIA, Carlos Marcelo. Os limitesdo exame de admissibilidade dos re-cursos constitucionais. Revista de Di-reito Processual, São Paulo, v. 67,p. 33-42, out. 2008.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Res-trições ilegítimas do conhecimento dosrecursos. Revista da AJURIS, PortoAlegre, ano 32, p. 187-188, dez.2005.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípiosfundamentais: teoria geral dos recur-sos. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tri-bunais, 2000.

NUNES, Dierle José Coelho. Algunselementos do sistema recursal: da suaimportância na alta modernidade bra-sileira, do juízo de admissibilidade ede seus requisitos. Revista de Direi-to Civil e Processual Civil, São Pau-lo, n. 47, p. 93-126, maio/jun. 2007.

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DIREITOS PATRIMONIAIS DE AUTOR VERSUS DIREITOS CULTURAIS DO CIDADÃO

Direitos patrimoniais de autor versusdireitos culturais do cidadão:

fundamentos para a proposição de umdireito autoral-constitucional

Ciro de Lopes e BarbudaAdvogado da CAIXA na Bahia

Mestre em Direito pela UniversidadeFederal da Bahia

Especialista em Direito do Estado pela JusPODIVM –Curso Preparatório para Carreiras Jurídicas

RESUMO

Este estudo colima demonstrar que a estruturação da disciplinado direito autoral-constitucional é condição para a superação dacrise dos direitos autorais no Brasil. Para tanto, examinam-se ascaracterísticas dos dois principais direitos fundamentais em sedejusautoralista: a propriedade autoral, influenciada pelo princípio dafunção social, e o direito à cultura, alimentado pelo valor da justiçasocial. A harmonização desses direitos, em face das regras contidasna vigente Lei n° 9.610/98, sem que eles se excluam mutuamente, éo grande desafio da sociedade da informação, apontando-se aponderação de bens como plausível solução.

Palavras-chave: Direito autoral constitucional. Função social.Direito à cultura. Ponderação de interesses fundamentais.

RESUME

Cette étude vise à démontrer que l’organisation de ladiscipline du droit d’auteur constitutionnel est une condition poursurmonter la crise des droits d’auteur au Brésil. Pour ce faire, sontexaminés les caractéristiques des deux principaux droitsfondamentaux dans le domaine du droit d’auteur: la proprietéd’auteur, influencié par le principe de la fonction sociale, et le droità la culture, alimenté par la valeur de la justice sociale.L’harmonisation de ces droits, selon les règles contenues dans laactuelle Loi n° 9.610/98, afin de qu’ils ne s’excluent pasmutuellement, est le grand défi de la société de l’information, enmontrant la pondération des biens comme une solution plausible.

Mots-clés: Droit d'auteur constitutionnel. Fonction sociale.Droit à la culture.Pondération des intérêts fondamentaux.

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CIRO DE LOPES E BARBUDA ARTIGO

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Introdução

Com o presente estudo, pretende-se (re)edificar a disciplinado direito autoral constitucional.

A fim de concretizar projeto tão ambicioso, revela-se necessá-rio o desenvolvimento preliminar de alguns assuntos, pendentesde pacificação na doutrina e na jurisprudência, os quais compõemo cenário da tão comentada “crise dos direitos autorais”, oriundada total falta de reconhecimento e eficácia sociais da Lei n.° 9.610/98, o que tem tornado esse ramo do direito nacional mera “letramorta”, ou, parafraseando Habermas (2003, p.25), o que tem agra-vado a “tensão entre facticidade e validade”.

A abordagem de tais questões constitui o instrumental jurídi-co-propedêutico necessário para que, em seguida, se defenda aexistência de um direito autoral-constitucional. Tal disciplina apoia-se, a nosso ver, na configuração tanto dos direitos de propriedadedo autor e direitos conexos quanto dos direitos culturais do públi-co consumidor das obras artísticas, científicas e literárias como di-reitos fundamentais, com as consequências jurídico-dogmáticas per-tinentes.

A caracterização e a efetivação desses direitos fundamentais,que, frequentemente, colidem na ordem constitucional-autoralistavigente é o que se erige como objeto da vertente investigaçãomonográfica, que intenta resolver o conflito jurídico-axiológico emespeque mediante a ponderação dos referidos bens fundamentais,à luz dos princípios regentes da ordem constitucional brasileira e dascláusulas gerais de direito privado, estas, germinadouro de ondepromanam os renovados princípios civilistas, favoráveis à dignidadehumana.

Desse modo, este trabalho pretenderá harmonizar o direitode propriedade de autor com o princípio da função social, e o di-reito à cultura e à informação com o valor da justiça social, a fim deque, ao final, a interpretação dos negócios jurídicos e das lidesenvolvendo direitos autorais possa estar alinhada ao direito auto-ral-constitucional.

1 Dos indícios da crise do direito autoral brasileiro positivo

O grande desafio do direito autoral contemporâneo consisteem regular, de maneira harmônica, o interesse público e o privado,de modo que o sistema autoral não seja, de um lado, excessivamen-te punitivo, com o alheamento da propriedade intelectual de suafunção social, a ruptura da noção de solidariedade social e o mono-pólio especulativo da informação, a qual é pressuposto para o de-senvolvimento social e econômico de qualquer povo; nem, por ou-

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DIREITOS PATRIMONIAIS DE AUTOR VERSUS DIREITOS CULTURAIS DO CIDADÃO

tro, seja retirada a atratividade econômica e desincentivada comer-cialmente a atividade cultural e científica, com a aberturaindiscriminada do sistema de regras de proteção da obra intelectual.

Assim é que, no plano constitucional, a Carta Magna de 1988conferiu ao direito de propriedade do autor o status de direito fun-damental, no inciso XXVII de seu art. 5º, que verbera que “aos auto-res pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou repro-dução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que alei fixar”. No inciso seguinte do Texto Maior, foram assegurados, ain-da, “a proteção às participações individuais em obras coletivas e àreprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividadesdesportivas”, e “o direito de fiscalização do aproveitamento econô-mico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores,aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas”.Entretanto, é preciso ter em conta que tais direitos patrimoniais, dis-ciplinados nos arts. 28 e 29 da Lei dos Direitos Autorais (LDA), hão delegitimar-se na medida em que atendam a exigência do inciso XXIIIdo mesmo dispositivo constitucional supramencionado, segundo oqual “a propriedade atenderá a sua função social”.

Além disso, o constituinte fez constar, no art. 215, § 3º, incisosII e IV, que o Plano Nacional da Cultura deveria visar à “produção,promoção e difusão de bens culturais” e à “democratização doacesso aos bens de cultura”. No art. 218, ao dispor sobre a Ciênciae a Tecnologia, o Diploma Maior prescreveu que “O Estado pro-moverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e acapacitação tecnológicas”.

Até agora, pois, ficou claro que legislador constituinte brasi-leiro pretendeu equacionar o interesse público, de ordem culturale artístico-científica, com o interesse privado, relativo à exploraçãoeconômica das obras individuais ou coletivas protegidas pelo di-reito autoral. Portanto, os bens jurídicos tutelados constitucional-mente não podem, como se tem verificado na prática, anular-sereciprocamente.

Infraconstitucionalmente, por sua vez, o direito autoral brasi-leiro é regulado, atualmente, pela Lei n.° 9.610/98 (LDA).1

1 Faça-se, neste passo, uma pequena digressão, a fim de evidenciar a taxonomia dodireito autoral. Ocorre que este ramo do direito, segundo a doutrina majoritária,é espécie do gênero “direitos intelectuais”, que também abrange o direito indus-trial. Assim, em matéria de direitos intelectuais, no Brasil, existem, além da LDA,também a Lei n.° 9.279/96, que abarca o direito industrial, disciplinando a con-cessão de marcas e patentes, a Lei de Cultivares, tombada sob o n.° 9.456/97, quedisciplina a manipulação biológica, e a Lei n.° 9.609/98, que regulamenta a utili-zação dos programas de informática, sem prejuízo das legislações extravagante,internacional e regulamentar afins.

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CIRO DE LOPES E BARBUDA ARTIGO

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São inúmeros os exemplos que nos levam à conclusão de queesse diploma legal ainda conserva o espírito patrimonialista eprivatista, herdado da cultura liberal e individualista que serviu depano de fundo para a positivação original do direito autoral nosséculos XVIII e XIX.

Exempli gratia, perceba-se que, no Brasil, a rigor, qualquerreprodução não autorizada da obra científica, artística ou literáriaserá ilícita, salvo quando a lei dispuser em contrário. Esse ilícito édenominado “contrafação” pelo inciso VII do técnico-conceitualart. 5º da LDA. Ao ser praticado, sujeita o contrafrator a indenizaras perdas e danos ocasionados ao titular do direito de autor, semprejuízo das sanções civis e administrativas cominadas nos arts. 102a 110 da LDA. Por isso, no Brasil, a regra é que qualquer reprodu-ção não autorizada de obra, salvo as exceções legais, seja ilícita.

As limitações à tutela autoralista são de dois tipos. Ou o obje-to é expressamente excluído da proteção do direito autoral – hipó-tese normada no art. 8º da LDA –, ou é excluída a antijuridicidadeda conduta subjetiva. Nesse último caso, deixa de configurar-se oilícito quando a reprodução inautorizada enquadra-se numa dashipóteses dos arts. 46 a 48 da LDA, em que o legislador reputouhaver superior interesse público ou justificável interesse privado,para afastamento dos direitos patrimoniais de autor.

Nas hipóteses em xeque – que a doutrina majoritária, de for-ma pusilânime, considera taxativas, ao argumento de que, em setratando de restrições, devem ser interpretadas restritivamente –,julgou o legislador que a reprodução ou utilização da obra artísti-ca, científica ou literária não configuraria ato ilícito, dada a exis-tência de superior interesse social (como nas hipóteses do inciso I,alínea “d”, do art. 46 da LDA, referente à reprodução de obraspara uso exclusivo dos deficientes visuais, sem fins lucrativos, nosistema Braille ou equivalente, e do inciso VII, referente à utiliza-ção de obras para fins de produção de prova judiciária ou adminis-trativa) ou a ocorrência de interesse privado justificado (demaisincisos).

Para eminente doutrinador português, todavia, as limitaçõesaos direitos do autor ainda são muito tímidas, revelando-se inade-quadas à real consecução da ratio legis autoralista:

O hiperliberalismo selvagem em que vivemos manifes-ta-se, no domínio do direito de autor, pelo que se cha-maria a “caça as exceções” (sic). Toda a restrição é per-seguida, invocando-se a qualificação do direito de autorcomo propriedade – quando, mesmo que a qualificaçãofosse verdadeira, nem por isso a “propriedade” deixa-ria de estar submetida às exigências da função social.[…]

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DIREITOS PATRIMONIAIS DE AUTOR VERSUS DIREITOS CULTURAIS DO CIDADÃO

As restrições ao direito de autor permitem a adaptaçãoconstante deste direito às condições de cada época.Agora, não só não se prevêem as restrições adequadasà evolução tecnológica como se impede toda a adapta-ção futura. O direito de autor torna-se rígido, insensívela todo o devir (ASCENSÃO, 2002, p. 135-137).

Dando prosseguimento à análise dos exemplos que personifi-cam a inconsistência do direito autoral do Brasil, toma-se como umverdadeiro símbolo do descompasso entre a teoria e a praxisautoralistas a polêmica questão da reprodução xerográfica de livrosem instituições de ensino, máxime nas universidades. A contrariosensu, o art. 46, inc. II da LDA só admite a reprodução, “em um sóexemplar”, “de pequenos trechos” de obras impressas, e desde que“para uso privado” e “sem intuito de lucro” por parte do copista.

O que se verifica, contudo, em qualquer faculdade, é o en-dosso de uma praxis contra legem, porquanto os estudantes, ami-úde incentivados pelos próprios professores, adquirem fotocópi-as integrais de livros, normalmente produzidas em série para di-versos colegas, a despeito de a LDA considerar tal conduta comocontrafação. Essa é uma norma completamente desprovida de efi-cácia, pois qualquer pessoa consegue obter cópias “ilícitas” deobras integrais na maioria dos estabelecimentos reprográficos. Eainda se mostra uma norma contra-histórica, uma vez que o art.49, inc. II da LDA revogada, a saber, a Lei n.° 5.988, de 1973, per-mitia, numa postura muito mais razoável e tolerante, a reprodu-ção integral de 1 (um) exemplar da obra, desde que sua utiliza-ção não tivesse fim lucrativo.

É, além disso, curioso notar que a LDA, além de prescrever res-trições ao direito de uso da obra intelectual alheia, muitas vezesacaba interferindo, indevidamente, na utilização da obra por par-te de seu próprio autor. Nessas hipóteses, o direito autoral brasilei-ro, ao invés de proteger o interesse do autor, acaba por prestar-lheum desserviço.

Precisa ser urgentemente repensado o aparato axiológico so-bre o qual se sustenta a construção legislativa dos direitos moraisdo autor, em razão da distorção teleológica contida no art. 27 daLDA, que lhes atribui os (indesejáveis) predicados dainalienabilidade e da irrenunciabilidade. Ora, sendo uma expres-são dos direitos da personalidade, os direitos morais do autor, en-tre os quais, verbi gratia, a paternidade, o ineditismo e a retirada,deveriam possuir, a princípio, os mesmos atributos que têm os di-reitos de personalidade.

Ocorre que, como o direito autoral é um direito civil especi-alizado, e como o atual estágio da doutrina civilista sobre autono-

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mia jurídica descrê da irrenunciabilidade e da inalienabilidade decertos direitos de personalidade2 – especialmente daqueles quepodem expressar-se economicamente, a exemplo do direito à inte-gridade física, vislumbrado na casuística dos casos de “barriga dealuguel”, por exemplo –, não há justificativa para que o Estadointervenha em direitos de personalidade que, a critério do sujeito,poderiam ser relativamente disponibilizados.

Essa disponibilidade relativa, ao invés de afetar a dignidadeda pessoa humana, como se poderia imaginar, pelo contrário, re-força-a. Até mesmo porque, em se encarando a realidade materialque envolve artistas, literatos e cientistas, amiúde, pode ser interes-sante para o autor da obra intelectual a alienação ou renúncia decertas manifestações de seus direitos morais, seja a título oneroso,seja a título gratuito, em consonância com o livre exercício da au-tonomia privada, que também incide sobre o campo jusautoralista,mormente em face do contexto mercadológico que demonstra asfartas possibilidades de negócios jurídicos intelectuais.

Dessa maneira, sustenta-se que o tratamento jurídico dispen-sado a tais situações, evidenciadoras da nova representatividadedos direitos morais do autor em face da evolução da teoria da au-tonomia jurídica, deveria ser idêntico àquele que é dispensado aosnegócios jurídicos em geral. Logo, não havendo vícios na manifes-tação de vontade do sujeito que possam vir a tornar o negócionulo ou anulável, não subsiste justificativa, prima oculi, para que aLDA impeça o pleno exercício da autonomia jurídica individual doautor.

Igualmente, considera-se descabida a restrição dos arts. 29 e33 da LDA, que submetem à prévia autorização do autor (ou doeditor, como habitualmente se verifica, na prática) qualquer utili-zação de sua obra. Parece razoável admitir que, como o autor bus-ca inspiração para suas criações no amplo repositório de informa-ções existente no mundo, não deveria haver restrição a que qual-quer ser humano pudesse fruir, desde que respeitando os direitosmorais do autor, dessa criação do espírito, sem necessidade de pré-

2 “Na verdade, o direito de personalidade, em si, não é disponível stricto sensu, ouseja: não é transmissível nem renunciável. A titularidade do direito não é objetode transmissão. Ou seja: a imagem não se separa do seu titular original, assimcomo sua intimidade. A imagem continuará sendo daquele sujeito, sendo impos-sível juridicamente – até fisicamente – sua transmissão a outrem ou, mesmo, suarenúncia. Mas expressões do uso do direito de personalidade podem ser cedidas,de forma limitada, com especificações quanto à duração da cessão e quanto àfinalidade do uso. Há, portanto, certa esfera de disponibilidade em alguns direi-tos de personalidade. O exercício de alguns direitos de personalidade podem,sim, sofrer limitação voluntária, mas essa limitação é também relativa” (BORGES,2007, p. 120-121, grifos nossos).

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via autorização. Inclusive, é esse mesmo pensamento – o de que aobra é feita no mundo e para o mundo – que subjaz à regulamen-tação da caída da obra em domínio público, após o prazo legal.

Um dos parâmetros plausíveis, para aferir a legitimidade dadestinação acima propugnada da obra intelectual, deveria ser, comefeito, a ausência de finalidade lucrativa. Assim, em se utilizandodeterminada obra, desde que na estrita observância dos direitosmorais do autor e sem fins lucrativos, seria teleologicamente ade-quado à ratio legis do direito autoral, de índole constitucional,que a lei permitisse o uso pessoal, não empresarial, da obra, atémesmo como uma maneira de universalizar o acesso do cidadãoaos bens da cultura (BARBUDA, 2010, p. 25).

Diante do exposto, fica patente a desconexão hodierna entrea teoria e a prática do direito autoral no Brasil. Cada vez mais, esobretudo após o advento da Internet, parece que o direito auto-ral corre risco de extinção, a menos que ultrapasse profundareformulação de suas premissas, de forma a ser reconduzido a seuverdadeiro papel na sociedade. Acerca da revolução paradigmáticaprotagonizada pela hodierna sociedade da informação, merecealusão o magistério de Moraes (2006a, p. 258, grifos do autor):

A digitalização não implode a edificação do Direito Auto-ral, mas impõe novo paradigma e uma profunda releitura.Antes, a proteção legal era vista como necessária aoscustos da reprodução e à circulação de obras. Com o gi-gantesco poder da Internet, torna-se desnecessário osuporte físico. O corpus misticum não necessita mais docorpus mechanicum. Metaforicamente, o gênio foge doconfinamento da garrafa; a alma, do corpo biológico. Overbo não precisa mais se fazer carne. Na digitalização, ocódigo binário, composto de “zeros e uns”, substitui omundo físico. A desmaterialização dos suportes gerabarateamento na circulação de idéias, obrigando um novoolhar sobre o papel do Direito Autoral, que, em suas pri-meiras leis, era justificado exatamente pelos custos damaterialização e reprodução de obras.

Hoje em dia, basta possuir um computador conectado à redemundial de computadores para que se esteja munido de todo oinstrumental necessário para violar uma série de direitos autorais.Com poucos cliques, é possível fazer o download, ou seja, a trans-ferência eletrônica de dados, de todo tipo de criação do gêniohumano “protegida” pelos direitos autorais: livros, músicas, ima-gens, vídeos, programas de computador. Há um acervo digital ili-mitado de obras, disponibilizadas na Internet à revelia dos auto-res, que podem, facilmente, ser vítimas do “copiar e colar”, ou,pior ainda, do comando “editar”.

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Nesse panorama de incerteza jurídica, as próprias noções deautor e obra metamorfoseiam-se, como relata Antonio (1998, p.4):

Na Internet, por exemplo, cada indivíduo pode assumirvárias identificações ao mesmo tempo: todos podemser autores, agentes, produtores, editores, leitores, con-sumidores, de um modo em que a subjetividade de cadapapel prevalece de acordo com o instante. Nesse senti-do, os papéis se misturam e se confundem, distancian-do-se de suas caracterizações tradicionais e colocandoem discussão a reorganização desses temas. […]A obra intelectual e artística na Internet não mais seapresenta exclusivamente como a produção íntegra eperene de autores que se pode reconhecer, mas tam-bém como obra coletiva, múltipla e, frequentemente,anônima, fragmentada, incompleta, mutante e, muitasvezes, fugaz.

Diante dessa realidade comunicacional, “tudo o que é sólidodesmancha no ar”, como sustentado por aqueles que acreditamestarmos vivenciando a emersão de um paradigma chamado pós-modernidade (BAUMAN, 1998, p. 30), que descortina uma socie-dade da informação em que as obras literárias, artísticas e científi-cas podem circular livremente, em tempo real, entre quaisquer pon-tos do mundo. Tal contexto germina questões e conflitos jurídicosaté então inimaginados, fazendo-se necessário repensar as própri-as categorias jurídicas basilares da relação jusautoralista. Apenasum exemplo dessa nova realidade é aquilo que, hoje, ao redor domundo, se organiza como um forte e subversivo movimento emprol da “cultura livre”, normalmente identificado ao licenciamentoironicamente apelidado de Copyleft:

O software livre é baseado na ideologia do “copyleft”,denominação surgida de um trocadilho feito por DonHopkins, numa carta enviada ao amigo RichardStellman na década de oitenta: “Copyleft – All RightsReversed” [Copyleft – Todos os direitos reversos]. Aexpressão foi utilizada por Stellman para batizar onovo conceito de distribuição de softwares. Para ele,os programas deveriam ser livres. Então, criou a licen-ça Pública GNU. O free não quer dizer “grátis”, massim “livre”. Ou seja, não é proibido cobrar pelosoftware, mas são livres o uso, a cópia, a modificação ea redistribuição de uma versão melhorada. Essas sãoas quatro liberdades que caracterizam o software li-vre: usar, copiar, modificar e redistribuir (MORAES,2006a, p.320, grifos do autor).

Não seria exagerado afirmar que a indústria fonográfica é aque mais tem, consecutivamente, sofrido o impacto dessas novas

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DIREITOS PATRIMONIAIS DE AUTOR VERSUS DIREITOS CULTURAIS DO CIDADÃO

tecnologias, simbolizado pela criação de softwares de compar-tilhamento de arquivos, como o pioneiro Napster e os atuais Kazaae eMule, baseados na tecnologia peer-to-peer (P2P) e afins:

Enquanto pequenos grupos de hackers radicais come-çaram campanhas de violação dos direitos autorais, dis-tribuindo música, vídeos, textos e programas de graçana internet sob o lema “a informação quer ser livre”,grandes movimentos espontâneos menos conscientes emenos radicais tomavam conta de um público maisamplo. Entres esses movimentos, o de maior impacto,sem dúvida, foi a formação da comunidade Napster.O Napster era um programa “ponto a ponto” desen-volvido em 1999 pelo estudante Shawn Fanning quebuscava superar a dificuldade de encontrar música emformato MP3 na internet. Até então, as músicas emformato MP3 eram disponibilizadas principalmente pormeio de servidores FTP que, em geral, ficavam no arapenas até uma grande gravadora encontrar o servi-dor e enviar uma mensagem ameaçando deflagrar umprocesso judicial. Para superar essa dificuldade, Fanningprojetou um sistema ponto a ponto, em que usuáriospoderiam acessar arquivos em pastas compartilhadasem computadores de outros usuários através de linksrecolhidos por um servidor. Assim, suprimia-se a media-ção dos servidores que armazenavam arquivos. Os ar-quivos de música ficavam no computador de cada usuá-rio e o servidor do Napster apenas disponibilizava oslinks de acesso a eles. O Napster trazia uma concepçãointeligente que descentralizava o armazenamento dosarquivos. Com isso, criava uma situação legal ambígua.Não se tratava mais de um grande servidor distribuindomúsica, mas de uma rede de usuários trocando genero-samente arquivos de música entre si (ORTELLADO, 2002,p. 7).

Ainda se subestima o impacto dessa explosão da informa-ção, conduzida através dos novos meios de comunicação etecnologias, sobre a subsistência do direito autoral. As possibili-dades ilimitadas de infringência da legislação autoral, outorga-das a qualquer usuário da World Wide Web, são resumidas peloteórico precursor da assim chamada “cultura livre” e incentivadordas Creative Commons, Lawrence Lessig, como uma arquiteturado “copiar e colar”, onde se torna possível localizar, em segun-dos, uma imagem “protegida” pelo copyright e, em seguida,usá-la em qualquer apresentação particular (LESSIG, [s.d.], p.113).Inclusive, o movimento das comunidades de criação e do softwarelivre levou o ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, a considerá-louma verdadeira “reforma agrária no campo da propriedade in-telectual” (ASSIS, 2004, p. E1).

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Nesse contexto, vale referir as ideias de juiz federal cearense,que, ainda no século passado, já propusera a licitude da reprodu-ção não autorizada de obras literárias, pela Internet, de acordocom a destinação dada ao produto pelo consumidor. Segundo essaorientação, nos casos em que a reprodução implicar o auferimentode lucro direto ou indireto – como nos casos das empresas quecomercializam essas obras pela rede, como provedores de acesso,empresas de programação e titulares de sítios eletrônicos que ce-dem espaço para publicidade –, o pagamento dos direitos autoraisseria devido. De outra sorte, nas hipóteses em que o usuário daInternet utiliza a obra sem finalidade lucrativa, não subsiste razãopara limitar a reprodução da obra (LIMA, 1997).

Não parece ser a solução adequada, para resolver o embateteórico-práxico sob comento, o endurecimento da legislação au-toral, com o aumento de figuras ilícitas e o agravamento das san-ções respectivas. Melhor seria, com efeito, abrir o sistema paulati-namente, ampliando ou reinterpretando as hipóteses de limita-ção aos direitos de autor, abandonando-se o raciocínio vetustoque presume a ocorrência de prejuízo em qualquer reproduçãonão autorizada pelo autor. Afinal, o uso pessoal de uma faixa demúsica no formato MP3, “baixada” por um internauta, não signi-fica que ele deixará de adquirir, nas lojas, o álbum inteiro, ouassistir ao show do artista, devendo ser levada em consideração,antes de punir a conduta, a existência de variáveis socioeconômicase político-culturais.

Por isso é que nos parece temerária a tipificação de crimes ele-trônicos no nosso país, que vem sendo recentemente discutida coma apresentação do Projeto de Lei de Crimes de Informática (“AI-5Digital”) e do PL n.° 5.361/2009, de autoria do Deputado Federalde São Paulo, Bispo Ge Tenuta, que pretende alterar a LDA para ainserção de novos tipos penais e a pena “restritiva de acesso àInternet” (MILAGRE, 2009).

Tais deliberações legislativas parecem contraproducentes, àmedida que, no Brasil, a pirataria, por exemplo, é uma prática soci-almente aceita, que democratiza o acesso à informação, gera tra-balho e renda, ainda que na informalidade, e garante o sustentode muitas famílias. Sem falar que, com os movimentos de liberta-ção cultural em voga, muitos autores já autorizam tal reprodução,visando à ampla divulgação de sua obra, como já ocorrera cominúmeras bandas estrangeiras, a exemplo do Radiohead, quedisponibilizaram álbuns inteiros gratuitamente. Por isso, em tese,seria até possível a alegação de erro de proibição em relação a taiscrimes, visto que sua noção de antijuridicidade foi totalmente dilu-ída no meio social.

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Para finalizar, merece transcrição integral a opinião deOrtellado (2002, p. 9) sobre as perspectivas do direito autoral apóso boom da rede mundial de computadores:

Hoje, o movimento pelo copyleft, pela livre circulaçãoda cultura e do saber ampliou-se muito além do univer-so dos programadores. O conceito de copyleft é aplica-do na produção literária, científica, artística e jornalística.Há ainda muito trabalho de divulgação e esclarecimen-to a ser feito e é preciso que discutamos politicamenteos prós e os contras dos diferentes tipos de licença. Pre-cisamos discutir se queremos conciliar a exploração co-mercial com a utilização não comercial livre ou se deve-mos simplesmente nos livrar dos mecanismos de difu-são comercial de uma vez por todas; precisamos tam-bém discutir questões relativas à autoria e à integrida-de da obra, principalmente numa época em que osampleamento e a colagem constituem formas de ma-nifestação artística importantes; temos, finalmente, quediscutir as inúmeras peculiaridades de cada tipo de pro-dução adequando a licença ao que estamos fazendo (aênfase na possibilidade de modificação de um progra-ma de computador tem pouco cabimento quando apli-cada à produção científica, etc.). Esse trabalho não é otrabalho de imaginar um mundo possível, mas de pas-sar a construí-lo, aqui e agora.

Diante de tamanha crise de legitimidade, validade e eficácia dodireito autoral em vigor, impende que se faça uma filtragem consti-tucional do discurso jurídico autoralista, que se tornou tão distanci-ado do “mundo circundante” (Umwelt), como ensinara Heidegger.

2 Resgatando a vocação constitucional dos direitos de autor

No âmbito do direito autoral, diz-se que é bastante perceptívela existência de um conflito jurídico entre o interesse privado, relati-vo à exploração econômica da propriedade autoral, e o interessepúblico, relativo à livre difusão do conhecimento na comunidadesocial. Nada obstante, como se verá mais adiante, o maniqueísmoque dá suporte a essa afirmação não é isento de críticas, posto que adicotomia entre interesse privado x interesse público, subjacente àprópria divisão entre direito privado x direito público sobre a qual aciência jurídica alicerçou-se, desde Roma, não é mais condizente coma proposta de concretização dos direitos fundamentais no EstadoSocial. Como bem pontua Portella (2006, p. 164), “a ConstituiçãoFederal de 1988 reflete, pois, as duas dimensões essenciais do serhumano, a da individualidade e a da socialidade, as quais devemser equilibradas, harmonizadas, com vistas à consecução do valorsupremo da dignidade da pessoa humana”.

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Ademais, muito se fala, em sede doutrinária, acerca daconstitucionalização do direito privado. Mais do que um fenômenoessencialmente legislativo, vinculado à técnica de cláusulas geraisadotada pelas novas codificações privatistas, parece-nos que a gran-de mudança de postura dos juristas radica-se no campo da novahermenêutica constitucional. Para Facchini Neto (2003, p. 37-39,grifos do autor), outrossim, a constitucionalização do direito priva-do pode ser encarada, em sentido mais moderno, sob dois enfoques:

No primeiro deles, trata-se da descrição do fato de quevários institutos que tipicamente eram tratados ape-nas nos códigos privados (família, propriedade, etc.)passaram a serem (sic) disciplinados também nas cons-tituições contemporâneas, além de outros institutos quecostumavam ser confinados a diplomas penais ou pro-cessuais. É o fenômeno de relevância constitucional dasrelações privadas. […]Numa segunda acepção, que costuma ser indicada cm aexpressão constitucionalização do direito civil, o fenôme-no vem sendo objeto de pesquisa e discussão apenas emtempos mais recentes, estando ligado às aquisições cul-turais da hermenêutica contemporânea, tais como a for-ça normativa dos princípios, à distinção entre princípios eregras, à interpretação conforme à Constituição, etc.Esse segundo aspecto é mais amplo do que o primeiro,pois implica analisar as consequências, no âmbito do di-reito privado, de determinados princípios constitucio-nais, especialmente na área dos direitos fundamentais,individuais e sociais.

Num contexto de pós-positivismo, como o que se costuma vin-cular à contemporaneidade, o papel central na modificação dodireito substancial não incumbe ao Poder Legislativo, como na erapositivista, mas sim ao Poder Judiciário. Essa idiossincrasia dosaplicadores do direito é bem identificada por Lôbo (1999, p. 100):

Antes havia a disjunção; hoje, a unidade hermenêutica,tendo a Constituição como ápice conformador da elabo-ração e aplicação da legislação civil. A mudança de atitu-de é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civilsegundo a Constituição e não a Constituição segundo oCódigo, como ocorria com frequência (e ainda ocorre).

Conforme a dicção de Tepedino (1999, p. 7),

O Código Civil perde, assim, definitivamente, o seu papelde Constituição do direito privado. Os textos constitucio-nais, paulatinamente, definem princípios relacionados atemas antes reservados exclusivamente ao código civil ea império da vontade: a função social da propriedade, oslimites da atividade econômica, a organização da famí-

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lia, matérias típicas de direito privado, passam a integraruma nova ordem pública constitucional. Por outro lado, opróprio direito civil, através da legislação extracodificada,desloca sua preocupação central, que já não se volta tan-to para o indivíduo, senão para as atividades por ele de-senvolvidas e os riscos delas decorrentes.

Além da ocupação do vértice do sistema pelas regras constitu-cionais, de maneira a dar harmonia e concordância prática ao todo,outros sintomas definem a ruptura de paradigma supra-aludida. Odireito privado descentraliza-se, abandonando o Código Civil asua posição central, antes conformada “como o sol dentre os de-mais astros da Via Láctea”, e é a Constituição que passa a irradiarsua luz sobre as normas jusprivatistas. Estas começam a migrar dalegislação codificada para a legislação extravagante, cujas leis es-peciais, por sua vez, dispõem de plena autonomia de princípios ede um arcabouço autossuficiente de regras cíveis, penais e admi-nistrativas, tanto materiais como processuais:

Diante de tais circunstâncias, que se reproduzem emdiversos países europeus, o Professor Natalino Irti, daUniversidade de Roma, anunciou a chamada “era dadescodificação”, com a substituição do monossistema,representado pelo Código Civil, pelo polissistema, for-mado pelos estatutos, verdadeiros microssistemas dodireito privado (TEPEDINO, 1999, p. 11).

A própria LDA, aliás, é um grande exemplo dessa tendência,agravada após a edição da Constituição de 1988, enquanto aindavigia o Código Civil de 1916. Inicialmente através da Lei n.° 5.988/73, e em seguida pela Lei n.° 9.610/98, o direito autoral emigroudo bojo do vetusto Código Beviláqua, onde era tratado no livrodos direitos reais, na condição de propriedade literária, artística ecientífica, e ganhou autonomia legislativa e científica.

Contudo, o legislador nacional envereda no caminho contra-histórico da recodificação – oposto, diga-se mais uma vez, à lógicasistêmica descentralizadora que então prevalecia –, consumado coma final promulgação do Projeto de Código Civil capitaneado porMiguel Reale, mediante a publicação da Lei n.° 10.406, em 10 dejaneiro de 2002.

Sem embargo, a noção de codificação é completamente alte-rada, em relação à concepção que grassava desde o florescimentodo liberalismo burguês através do Code Civil des français, de 1804.Assim é que o Código Civil brasileiro, de 2002, abandona os dogmasda exclusividade e da completude, convivendo pacificamente comos estatutos especiais vigentes, tendo como fiel da balança a Cons-tituição. Nesse sentido, o direito civil codificado, para poder sobre-

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viver num tal panorama de fragmentariedade do direito privado,adota, por conseguinte, a técnica de cláusulas gerais, que alavancaum processo de despatrimonialização e repersonalização do direi-to privado.3

Tendo como primazia a dignidade humana, e embebido nosnovos princípios regentes do direito privado, a saber, a eticidade4,a socialidade5 e a operabilidade6, é que se almeja reconstruir odireito civil dos dias atuais e, conseguintemente, suas especiali-zações, tais como o direito autoral. Constituindo matériarecentíssima na seara civilista, ainda muito pouco estudada noBrasil, como se depreende da circunstanciada análise dos fluxo-

3 “Da constitucionalização do direito civil decorre a migração, para o âmbito priva-do, de valores constitucionais, dentre os quais, como verdadeiro primus interparis, o princípio da dignidade da pessoa humana. Disso deriva, necessariamente,a chamada repersonalização do direito civil, ou visto de outro modo, adespatrimonialização do direito civil. Ou seja, recoloca-se no centro do direito civilo ser humano e suas emanações. O patrimônio deixa de estar no centro daspreocupações privatistas (recorde-se que o modelo dos códigos civis modernos, oCode Napoleon, dedica mais de 80% de seus artigos à disciplina jurídica dapropriedade e suas relações, sendo substituído pela consideração com a pessoahumana). Daí a valorização, por exemplo, dos direitos de personalidade, que onovo Código civil brasileiro emblematicamente regulamenta já nos seus primei-ros artigos, como a simbolizar uma chave de leitura para todo o restante doestatuto civil” (FACCHINI NETO, 2006, p. 34-35, grifos do autor).

4 “[…] se o Código Civil de 1916 já trazia consigo disposições que protegiamaquele que agia com boa-fé, numa alusão de caráter individual – interna à suarelação jurídica pontual – com a lanterna de guia da Carta Magna, princípio daeticidade iluminou o legislador do Código Civil de 2002, fazendo com que novasregras fossem embutidas para a proteção e realização de uma sociedade maisjusta e equilibrada, haja vista que somente através da vigência de preceitos éticosdo sistema será possível fazer valer o desejo de proteger concretamente a dignida-de humana, em toda sua extensão. A nova forma de interpretação do CódigoCivil, impulsionado pela Constituição Federal de 1988, aponta para a interpreta-ção de que a valorização do indivíduo não ficará apenas na garantia de tratamen-to humanitário e respeito à sua integridade física, pois o princípio da dignidadehumana vai mais além e prima pela vivência com valores ético-jurídicos” (MAZZEI,2005, p. CXIV).

5 “Em curtas linhas, com o princípio da socialidade afasta-se a concepção de que oDireito Privado tem os olhos voltados apenas para o cilindro fechado das relaçõesentre os particulares, pois esses vínculos têm também uma conotação que interes-sa à sociedade, razão pela qual se permite a intervenção estatal em hipótesesdeterminadas em lei” (MAZZEI, 2005, p.CXVI).

6 “Com o princípio da operabilidade, buscou o legislador civil que as matériasdispostas no Código Civil fossem de fácil aplicação, não causando embaraço nasua execução. Para tanto, o Código Civil de 2002 se utilizou de duas estratégiasdiferentes: (1) a abertura de acessos para facilitar a interpretação do Código Civil;e (2) afastar controvérsias que pudessem surgir de institutos privados constantesna codificação” (MAZZEI, 2005, p. CXXIII).

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gramas dos cursos universitários de Direito, nos quais raramenteo direito autoral é ensinado como disciplina autônoma, sequerna condição de cadeira eletiva, os direitos de autor precisam serrepensados com base no ethos constitucional e nos novos princí-pios gerais de direito privado preconizados pelo Código de 2002:boa-fé objetiva, vedação do abuso de direito, função social eequilíbrio econômico.

É preciso, neste passo, dissociar o processo de publicizaçãodo de constitucionalização do direito privado, nomenclatura queparte da doutrina confunde. A publicização corresponde aodirigismo estatal dos negócios privados, reduzindo o espaço daautonomia jurídica através da intervenção do Poder Público emnível infraconstitucional, normalmente para a tutela doshipossuficientes, ao passo que a constitucionalização segue o ca-minho oposto, remetendo o direito infraconstitucional aos fun-damentos de validade estabelecidos na Constituição; “enquantoo primeiro fenômeno é de discutível pertinência, o segundo éimprescindível para a compreensão do moderno direito civil”(LÔBO, 1999, p. 101-102).

Incontestável, portanto, o despontar da disciplina do DireitoAutoral-Constitucional, que deve passar a ser sistematicamente es-tudada para a redefinição do copyright na sociedade da informa-ção. De acordo com a doutrina especializada, assim como sucedecom a debatida tendência de constitucionalização do direito civil,o direito autoral também necessita abrir suas comportas à tutela dadignidade humana, para efetivação dos direitos morais do autor(MORAES, 2006b, p. 80). Todavia, mais ainda do que isso, tambémos direitos patrimoniais do autor, com o referido fenômeno, pas-sam a cingir-se à garantia dos direitos fundamentais em jogo, comose demonstrará a seguir.

2.1 Programa autoralista da Constituição Econômica: dodireito fundamental à propriedade intelectual

A Constituição Federal de 1988 conferiu ao direito de pro-priedade intelectual, previsto no art. 5º, incisos XXVII e XXVIII, ostatus de direito fundamental:

O art. 5º, XXVII, que assegura o direito autoral, con-tém duas normas bem distintas. A primeira e principalconfere aos autores o direito exclusivo de utilizar, pu-blicar e reproduzir suas obras, sem especificar, comofaziam as constituições anteriores, mas, compreendi-do em conexão com o disposto no inc. IX do mesmoartigo, conclui-se que são obras literárias, artísticas,

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científicas e de comunicação. Enfim, aí se asseguramos direitos do autor de obra intelectual e cultural, reco-nhecendo-lhe, vitaliciamente, o chamado direito depropriedade intelectual, que compreende direitos mo-rais e patrimoniais. A segunda norma declara que essedireito é transmissível aos herdeiros pelo tempo que alei fixar (SILVA, 2004, p. 274-275, grifos do autor).

A Constituição, na referida norma, assegurou, expressamente,aos autores os direitos patrimoniais decorrentes da exploração eco-nômica de suas obras, deixando implícita, contudo, a garantia dosdireitos extrapatrimoniais do autor. Sabe-se que o direito autoralpossui dupla dimensão: a) personalíssima, que abrange os direitosmorais ou pessoais de autor, correspondentes aos direitos autoraisde personalidade (reivindicação, paternidade, inédito, integrida-de, modificação, retirada, acesso a exemplar único e raro da obra),atualmente previstos no art. 24 da LDA, considerados pelo art. 27“inalienáveis e irrenunciáveis”; e b) patrimonial, que abrange odireito de propriedade autoral propriamente dito, o qual garantea exclusividade de utilização, fruição, disposição e reivindicaçãoda obra, prevista no art. 28 da LDA, e os demais direitos de explo-ração econômica da obra (reprodução, edição, adaptação, tradu-ção, inclusão, distribuição, representação, entre outros), previstosno art. 29 da LDA.

Desse modo, o direito autoral, subespécie dos direitos inte-lectuais, em que também se inclui o direito de propriedade in-dustrial – “primo rico” do direito autoral, como se tem asseveradojocosamente –, expressa-se tanto como direito patrimonial quan-to como direito pessoal. De acordo com a ilustre opinião de As-censão (1997, p. 129), a terminologia “direito pessoal” é mais pre-cisa do que o termo de origem francesa, “direito moral”7, o qualtem feição ética estranha aos direitos de autor. Em contraste coma doutrina autoralista mais atualizada, que inclui os direitos sub-

7 Avalizando, porém, a terminologia adotada pelo legislador, encontra-se a doutrinade Cavalieri Filho (1998, p. 44, grifos do autor): “Quanto ao primeiro – direito moraldo autor – o nome foi usado pela primeira vez por André Morillot em 1872, paraindicar as prerrogativas que tem a personalidade do autor sobre sua criação intelec-tual […]. Alguns autores preferem chamá-lo, com razão, de direito imaterial doautor, ou direito pessoal, em face do sentido restrito que o termo moral tem emnosso direito. A terminologia – Direito oral do Autor –, todavia, está consagradauniversalmente, de modo a desestimular qualquer tentativa de mudança. Basta quetenhamos em mente que o termo moral não é aqui utilizado no tradicional sentidodo dano moral, vinculado a sentimento de tristeza, dor, vexame, sofrimento e humi-lhação. Não, quando a lei fala em direito moral do ator está se referindo àqueledireito que decorre da manifestação da sua personalidade, emanação do seu espí-rito criativo, sem levar em conta qualquer conteúdo econômico”.

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jetivos de autor no rol dos direitos de personalidade8, o mesmoautor sustenta que

[…] os direitos pessoais não são direitos de personalida-de. Embora mantenham uma ligação, ao menos genéti-ca, aos direitos de personalidade, afastam-se estes noseu âmbito de tutela e no seu regime. Por isso, são ad-mitidos negócios sobre direitos pessoais que não seriamadmitidos sobre os direitos de personalidade (ASCEN-SÃO, 1997, p. 130).

Para os fins do presente estudo, porém, não serão abordadosos direitos pessoais de autor, e tanto o direito de propriedade inte-lectual stricto sensu (art. 28 da LDA) quanto os demais direitospatrimoniais do autor (art. 29 da LDA) serão denominados generi-camente de direito de propriedade autoral. E embora não se olvi-de a importância dos direitos morais – os quais, para Moraes (2006b,p.84), defensor da “repersonalização do direito autoral”, assumemdimensão central na tutela dos direitos intelectuais –, aqui nosateremos, principalmente, ao direito de propriedade autoral, como objetivo de desvendar o tratamento dos direitos autorais prescri-tos pela Constituição Econômica, em sua acepção formal.9

O programa econômico conferido pelo constituinte ao direitode propriedade atesta a premente necessidade de funcionalizaçãodos direitos autorais, consoante defendido por Lôbo (1999, p. 107):

A concepção de propriedade, que se desprende da cons-tituição, é mais ampla que o tradicional domínio sobrecoisas corpóreas, principalmente imóveis, que os códigoscivis ainda alimentam. Coenvolve a própria atividade eco-nômica, abrangendo o controle empresarial, o domínio

8 Vide, por todos: GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo, Novo cur-so de direito civil: parte geral (abrangendo o Código de 1916 e o novo CódigoCivil). 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p.178. V. I; BORGES,Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed.rev. São Paulo: Saraiva, 2007. (Coleção Prof. Agostinho Alvim; coord. Renan Lotufo),p.130-132; e MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor: repersonalizando odireito autoral. 2006(b). 340 f. Dissertação (Mestrado em Direito Privado e Econô-mico) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal da Bahia,Salvador, p. 68.

9 Scaff (2003, p. 261, grifos do autor) distingue três conceitos de ordem econômi-ca: “(1) o de ordem econômica, que diz respeito às normas inscritas na Constitui-ção de um país sob esta rubrica; (2) o de constituição econômica formal, quealcança o de ordem econômica e o amplia, alcançando todas as normas que dizemrespeito à matéria econômica em uma Constituição; e o de (3) constituição econô-mica material, onde o vocábulo “constituição” não corresponde ao de normafundamental de um país, pois extrapola seus limites alcançando todas as normasque organizam a economia”.

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sobre ativos mobiliários, a propriedade de marcas, pa-tentes, franquias, biotecnologias e outras propriedadesintelectuais. Os direitos autorais de software transfor-maram seus titulares em megamilionários. As riquezassão transferidas em rápidas transações de bolsas de va-lores, transitando de país a país, em investimentos volá-teis. Todas essas dimensões de propriedade estão sujei-tas ao mandamento constitucional da função social.

Ao tratar do regime constitucional dos direitos autorais, Bittar(1999, p. 37) também nota a ênfase atribuída pelo Constituinte de1988 ao aspecto patrimonial, em detrimento do aspecto pessoal,que para ele deveria ter sido positivado:

Inobstante esses pronunciamentos [menção aos auto-res que reconhecem a fonte constitucional dos direitosmorais do autor] – e que têm prevalecido na prática,pois parte (sic) de insignes juristas –, data venia, consi-deramos insuficiente e injustificado o posicionamentoatual da questão. A nosso ver, o direito moral deve serprevisto por expresso nas Constituições.Impõe-se, para nós, em nível constitucional, a consagra-ção do direito moral de autor, para que se torne tam-bém uma das liberdades públicas, tendo sido perdida aoportunidade na Carta de 1988 (BITTAR, 1999, p. 44).

Excelsa maxima venia, o argumento do autor, quanto à neces-sidade de previsão explícita dos direitos de personalidade do au-tor, para que tais interesses possam ser preservados pela ordem cons-titucional, é insustentável, à medida que o asseguramento dessesbens jurídicos, por meio do inciso XVII do art. 5º da Constituição, éuma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa hu-mana.

Além dessa justificativa teórica, existe um argumento práticoque demonstra a insubsistência da tese. A garantia constitucionalde exploração econômica da obra restaria inócua se não fosse tam-bém tutelado o direito de menção (expressão do direito moral depaternidade), do qual decorrem, do ponto de vista processual, ascondições da ação, relativas à legitimidade ad causam e ao interes-se de agir, para ingresso de demanda para reparação dos danosmorais e materiais eventualmente ocasionados pela violação aosdireitos de autor.

Contudo, a opinião de Bittar procede, no que pertine àprevalência do aspecto patrimonial dos direitos autorais segundoa ótica da Carta Magna. Certamente ainda imerso no paradigmaliberal-patrimonialístico do Código Civil de 1916 e da LDAderrogada, de 1973, que ainda vigiam quando da promulgaçãoda Carta Cidadã, o Constituinte de 1988 aderiu à concepção da

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natureza jurídica do direito autoral como um direito real10, enten-dido, portanto, como um direito de propriedade literária, artísticaou científica.

Tradicionalmente, estuda-se o direito de propriedade com basenos quatro poderes assistidos ao proprietário: jus utendi, fruendi,abutendi e reivindicandi. O Código Civil de 2002 repetiu a doutri-na românica milenar, ao verberar, no art. 1228, que “O proprietá-rio tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito dereavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua oudetenha”.

A grande polêmica, destarte, consiste em saber em que medi-da o não exercício dessas faculdades proprietárias implica violaçãoà função social da propriedade. Essa questio vexata revela-se ain-da mais tortuosa no campo jusautoralista, onde se asseguram aoautor certos direitos personalíssimos, pelos quais lhe é dado o di-reito, por exemplo, de furtar-se à exploração econômica da obra,mantendo-a impublicada, ou, até mesmo, de retirá-la de circula-ção, quando a utilização afrontar sua reputação ou imagem. Tra-ta-se, respectivamente, dos direitos de inédito e de arrependimen-to, assegurados na LDA, art. 24, incisos III e VI.

Em face de tais direitos subjetivos, inalienáveis e irrenunciáveis(e, a despeito da omissão do art. 27 da LDA, imprescritíveis), per-

10 Em consonância com o magistério de Ascensão (1997, p. 601-609), existem asseguintes correntes doutrinárias acerca da natureza jurídica do direito autoral: a)teoria personalística: classifica o direito autoral como um direito de personalida-de. Subdivide-se na corrente monista, que só vislumbra o aspecto pessoal narelação jusautoralista, e a dualista, que acolhe tanto a dimensão pessoal quantoa dimensão patrimonial dos direitos de autor (esta última parece ser a teoriaalbergada pela LDA); b) teoria patrimonialística: reduz o direito autoral à realidademeramente patrimonial, considerando-o um direito real (esta parece ser a teoriaadotada pela Constituição Federal). Ascensão critica tal corrente ao argumento deque a obra não é suscetível de apropriação exclusiva, razão pela qual não poderiainduzir o direito de propriedade; c) teoria da propriedade intelectual ou espiritual:posição alemã, parte do pressuposto de que o direito autoral trata-se de direitoreal diferenciado, porquanto a coisa apropriada é a criação do intelecto humano,bem espiritual que não se submete às mesmas vicissitudes da propriedade mate-rial comum; d) teoria do direito sui generis: corrente que, à falta de melhorcategorização jurídica para o direito autoral, considera-o um tertium genus, paraalguns denominado “direito intelectual”. Apesar da crítica de Ascensão, de queessa teoria é contraproducente, por recorrer a um artifício terminológico semfornecer a devida configuração do direito autoral, acredita-se que seja o pensa-mento mais adequado, devido à especificidade do objeto e dos princípios queregem o direito autoral, que reclamam sua autonomia jurídica. Importante notarque a classificação de Ascensão não esgota as teorias que, na atualidade, versamsobre a dinâmica natureza do direito autoral, reputando-o ora como direito real,ora como direito obrigacional, ora como direito do trabalho, ora como direito doconsumidor, entre outras.

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gunta-se: será que, eventualmente, o exercício desses direitos depersonalidade não atentaria contra o princípio da função social,ao atingir o direito de terceiros ao acesso à informação e à cul-tura?

Diante de tudo quanto exposto, ficam claros os “gargalosprincipiológico-axiológicos” em que invariavelmente se desembo-ca, quando se consideram os direitos fundamentais do autor. Adespeito da expressa previsão legal dos direitos morais de autor,devido ao corte metodológico aqui procedido, somente se avalia-rão os direitos patrimoniais de autor, conforme a natureza jurídicade propriedade intelectual conferida pelo Texto Maior. Nãoobstante essa opção teórico-legislativa consagre, apenas, uma dasdimensões dos direitos de autor, é justamente nesse locus que dor-mitam as maiores controvérsias, seja por admitir o exercício da au-tonomia privada, seja por se imbricar na polêmica questão da fun-ção social.

2.1.1 Do princípio da função social aplicado à propriedade eaos contratos intelectuais

Em sendo os direitos patrimoniais do autor enquadrados se-gundo a natureza jurídica de direito de propriedade pela Consti-tuição, tal direito só se justificará à medida que for atendido opressuposto de validade objetivado no art. 5º, inciso XXIII, do Tex-to Maior, que verbera que “A propriedade atenderá a sua funçãosocial”.

Além disso, a própria Constituição, ao elencar como princípiosgerais da atividade econômica, no art. 170, incisos II e III, respecti-vamente a propriedade privada e a função social da propriedade,evidencia que a ordem econômica nacional, baseada no modo deprodução capitalista, funda-se na livre iniciativa. Mas a proprieda-de privada não tem caráter absoluto e precisa ser funcionalizada,sob pena de não ser tutelada pela ordem constitucional.

Outrossim, o Código Civil de 2002, ao dispor explicitamentesobre a propriedade, no art. 1.228, § 1º, regulamentou o incisoXXIII do art. 5º da CF, traçando o perfil da funcionalização da pro-priedade. Embora este dispositivo seja mais invocado no âmbitoda propriedade imobiliária, também se revela extensível à proprie-dade intelectual:

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em con-sonância com as suas finalidades econômicas e sociais ede modo que sejam preservados, de conformidade como estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as bele-zas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histó-

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rico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e daságuas.

Comentando sobre o conteúdo da função social da proprie-dade, na acepção de direito real estabelecida pelo CC/02, Rizzardo(2004, p.178) aduz:

Os poderes assegurados ao proprietário cedem anteoutros direitos mais preponderantes e vitais, forçosa-mente reconhecidos em razão do direito natural. As-sim, se uma determinada quantidade de pessoas se es-tabeleceu em certa área, lá erguendo suas moradias, enão se lhe proporcionando qualquer outra oportunida-de para fixar a residência, é de direito que se proclamea função social da propriedade, a merecer a tutela esta-tal, que encontra respaldo no próprio direito à vida, pois,repetindo o bispo Dom Helder Câmara, se existe umalei de propriedade privada, existe o direito a uma casaprópria. Foi com vistas a princípio desta ordem que sepretende vigore, com o Código Civil de 2002, o § 4º doart. 1.228, encerrando que “o proprietário tambémpode ser privado da coisa se o imóvel reivindicando con-sistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número depessoas, e estas nela houverem realizado, com conjun-to ou separadamente, obras e serviços considerados pelojuiz de interesse social e econômico relevante”.

Observe-se que, de acordo com Ferraz Junior (1998, p. 13), a fun-ção social, mais do que um fundamento de validade de institutos jurí-dicos, tais como a propriedade ou o contrato, é uma necessidadezetética a ser observada por toda a dogmática jurídica, que somentese tem voltado, ao longo dos tempos, para duas ordens de preocupa-ção, a saber, os antecedentes históricos e a parte sistemática:

Neste sentido, uma problematização da Dogmática urgenos dias de hoje. Tal problematização, entretanto, nãosignifica a substituição da Dogmática por uma proble-mática, mas uma proposição de novas bases para a re-flexão sobre sua função e sobre seu próprio conceito”(FERRAZ JUNIOR, 1998, p. 12).

Já tivemos, aliás, oportunidade de preconizar, em outro traba-lho, uma abordagem zetética da Dogmática autoralista, como so-lução para o estado de crise dos direitos autorais:

Hoje, o direito autoral, para não ser “letra morta”, pres-supõe uma abertura axiológica para as demandas deuma sociedade online que, cada vez mais, se inter-rela-ciona intersubjetivamente em função dos processos dainformática.

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A fim de que as regras autoralistas sejam providas dealguma eficácia social, é mister que os problemas atuaisdesse campo da Ciência Jurídica sejam trazidos para odiálogo entre autores, financiadores e consumidores,para que, encarados zeteticamente, possam ser supe-rados de modo democrático e conciliador (BARBUDA,2009, p.203, grifo do autor).

A funcionalização da dogmática autoralista, portanto, pressu-põe ampla revisão da propriedade intelectual e dos negócios jurí-dicos correlatos, à luz da função social que devem exercer. Segun-do uma ótica tópico-problemática, torna-se possível, por conseguin-te, a restrição aos direitos de autor, para além dos limites legais,segundo avaliação casuística, a ser implementada pelo julgador,levando em consideração os vetores hermenêuticos da razoabilidadee da proporcionalidade.

Parte da doutrina vê na função social meras restrições aos di-reitos patrimoniais do autor:

a função social do Direito Autoral guarda relação dire-ta com as limitações impostas ao mecanismo autoral.Na realidade, as limitações têm o objetivo primordialde restringir o exercício do Direito Autoral à sua fun-ção (“social”), evitando criar uma vantagem excessivapara o autor em prejuízo da sociedade. Desse modo,função social e limitações, quando relacionadas ao Di-reito Autoral, estarão umbilicalmente ligadas ao equi-líbrio entre interesse individual e coletivo (TEIXEIRA,2008, p. 42).

No entanto, o setor mais avançado da doutrina autoralista temafastado a noção de função social como mero limitador do exercí-cio da propriedade, embutindo o referido princípio na própria es-trutura do direito de propriedade autoral:

não raras vezes, o princípio da função social da proprie-dade tem sido mal definido pela doutrina brasileira,obscurecido pela confusão que dele se faz com os siste-mas de limitação da propriedade. Porém, não se con-fundem. Limitações dizem respeito a exercício dessedireito, ao proprietário, enquanto a função social inter-fere com a estrutura do direito mesmo, levando emconsideração os interesses da coletividade em detrimen-to do direito individual (REIS, 2008, p. 155).

Hoje, a função social representa um componente estrutural dapropriedade, revelando-se em seu aspecto interno (LOUREIRO, 2003,p. 110). Dessa forma, a propriedade não mais se ergue de maneiraabsoluta, como no paradigma liberal da autonomia da vontade,

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mas, pelo contrário, amiúde se relativiza em face da ocorrência deoutros direitos fundamentais, que também merecem a atenção daConstituição. Estes são denominados por Tepedino (1999, p. 286-287) de contradireitos e se definem como centros de interesses aosquais o direito de propriedade tem de se conformar. Assim é que alimitação intraestrutural da propriedade, relativa à função social,aparece, exempli gratia, no confronto com meio ambiente, defesado consumidor, proteção da família e do idoso, saúde, segurança,lazer, relações de trabalho etc. (LOUREIRO, 2003, p. 113).

No que tange aos direitos autorais patrimoniais, além dessasrestrições subjetivas e casuísticas, decorrentes da tutela constitucio-nal dos direitos fundamentais de terceiros, individuais e coletivos,a própria LDA estabeleceu restrições objetivas e gerais, tais como asexcludentes de configuração de obras e de violações às obras (arts.8º, 46, 47 e 48) e a limitação temporal de exploração da obra até acaída em domínio público (arts. 41 a 44).

Já para outra corrente doutrinária, existiriam restrições intrín-secas e restrições extrínsecas ao direito de autor. Somente em rela-ção às últimas é que haveria a incidência do princípio da funçãosocial, já que as primeiras decorreriam da própria estrutura legal,como explica Carboni (2006, p. 97):

Normalmente, confunde-se a regulamentação da fun-ção social do direito de autor com as limitações e exce-ções ditadas em lei. Entendemos, porém, que tais limi-tações e exceções não são suficientes para resolver osconflitos entre o direito individual do autor e o interes-se público à livre utilização de obras intelectuais.Por essa razão, defendemos uma regulamentação maisabrangente da função social do direito de autor, de for-ma a abarcar não apenas as limitações previstas em lei,mas também outras limitações relativas à estrutura dodireito de autor (aqui chamadas “restrições intrínse-cas”), bem como as que dizem respeito ao seu exercício(aqui denominadas “restrições extrínsecas”).Como “restrições intrínsecas”, deverão ser considera-das as limitações estabelecidas em lei, bem como o pró-prio objeto e a duração do direito de autor. As “restri-ções extrínsecas” dizem respeito à aplicação ao direitode autor da função social da propriedade e dos contra-tos, da teoria do abuso de direito e das regras sobredesapropriação para reedição ou divulgação da obraintelectual. Todas essas restrições têm como intuito re-gular a função social do direito de ator.

No entanto, em sede de direitos autorais, afigura-se possível aconjugação de todas essas concepções doutrinárias, que não sãoincompatíveis entre si. Consoante tal proposição, a função social

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desmembra-se em seus dois aspectos, o da função e o social. Pelaótica da função, a propriedade autoral funcionaliza-se de maneiraintrínseca, posto que as limitações ao direito de autor são criadaspelo próprio legislador, como já analisado alhures, prendendo-seà consecução de interesses coletivos ou particulares de ordem su-perior. Por outro lado, ao focar o elemento social, a propriedadeautoral absorve as demandas envidas pelos centros de interessessociais, funcionalizando-se de maneira extrínseca. Nesse sentido, afunção social operaria tanto ope legis (elemento interno), paraestruturar a própria definição da propriedade intelectual, comoope iudicis (elemento externo), limitando-a pelo controle judicial.

As consequências práticas, advindas da filiação a uma ou ou-tra corrente acerca da posição da função social no direito de pro-priedade, são bem delineadas por Loureiro (2003, p. 124):

Ressalte-se, aqui, que discussão sobre a natureza dafunção social – interna ou externa à relação jurídica –não é neutra e produz efeitos relevantes. Para aquelesque vêem a propriedade ainda como um direito subjeti-vo e a função social como uma limitação externa, aplica-se o princípio da legalidade. As restrições e limitaçõesdevem sempre ser impostas por lei. Ao invés, para aque-les que enxergam a propriedade como relação jurídicacomplexa, carregada de direitos e deveres, as chama-das restrições e especialmente a função social constitu-em o próprio conteúdo do instituto, podendo, pois, deri-var da natureza das coisas ou de ato administrativo.

Grau (2004, p. 214) pontifica, por seu turno, que a função so-cial da propriedade contida no art. 170, III da CF/88, em se tratan-do de diretriz ou princípio constitucional impositivo incidente so-bre a ordem econômica, e, portanto, sobre a propriedade comobem de produção, difere da função social da propriedade contidano art. 5º, XXIII, que para ele não se justificaria, vez que aí se depa-ra o direito individual de propriedade, cuja função não seria soci-al, mas eminentemente individual:

Não se resume, no entanto, a função social de que cogi-tamos, a incidir pronunciadamente sobre os bens deprodução, afetando também a propriedade que exce-de o quanto caracterizável como propriedade tangidapor função individual. Entenda-se como excedente des-se padrão especialmente a propriedade detida para finsde especulação ou acumulada sem destinação ao uso aque se destina.Posso assim, sopesando as ponderações que venho de-senvolvendo, concluir que fundamentos distintos justifi-cam a propriedade dotada de função individual e pro-priedade dotada de função social.

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Encontra justificação, a primeira, na garantia, que sereclama, de que possa o indivíduo prover a sua subsis-tência e de sua família; daí por que concorre para essajustificação a sua origem, acatada quando a ordem jurí-dica assegura o direito de herança.Já a propriedade dotada de função social é justificadapelos seus fins, seus serviços, sua função (GRAU, 2004,p. 216, grifos do autor).

Inobstante a cultura jurídica do ex-Ministro do Supremo Tri-bunal Federal, sua tese não é, de todo, isenta de críticas. O direitoindividual de propriedade, inclusive o do autor, carece de atendi-mento de sua função social para ser tutelado. A grande questãoque se coloca, porém, é se essa funcionalização implica a observân-cia somente de deveres negativos (non facere), ou se também dedeveres positivos (facere).

Ainda de acordo com Grau, só o proprietário de bens de pro-dução é que se sujeitaria a obrigações positivas, inerentes ao cum-primento da função social econômica:

O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato deque o princípio da função social da propriedade impõeao proprietário – ou a quem detém o poder de controle,na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de ou-trem. Isso significa que a função social da propriedadeatua como fonte da imposição de comportamentos po-sitivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramen-te, de não fazer – ao detentor do poder que deflui dapropriedade. Vinculação inteiramente distinta, pois,daquela que lhe é imposta mercê de concreção do po-der de polícia (GRAU, 2004, p. 222, grifos do autor).

Contudo, parece-nos que, em se tratando de função social dosdireitos de autor, a previsão de deveres positivos somente para ostitulares de bens de produção, em detrimento dos titulares de bensindividuais, vai de encontro à feição constitucional do princípio dafunção social e ao paradigma da socialidade que alimenta o atualdireito privado. Além disso, os direitos patrimoniais do autor, parase poderem considerar funcionalizados, devem admitir eventualrestrição do campo de sua autonomia privada em razão tanto dedeveres de abstenção ou tolerância (obrigações negativas) quantode deveres de ação (obrigações positivas).

Os efeitos das novas tecnologias no nosso cotidiano, no con-texto da hodierna sociedade da informação, reclamam afuncionalização da propriedade autoral, o que é identificado porStuder e Oliveira (2006, p. 74-75, grifos dos autores):

Além da função social da propriedade imóvel ou móvel,a lei também defende a propriedade intelectual, po-

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rém, em tempos de Internet aumentou-se a necessida-de das pessoas à informação, e a prontidão em se fazercópias, sem qualquer compromisso com o autor intelec-tual. O acesso à informação e ao uso desta informação,que num primeiro momento poderia ser vista apenascomo cópia, em contraposição a proteção dos direitosautorais, faz parte da nossa estrutura evolutiva, ante oimpacto que a Internet tem sobre as nossas vidas, comoser social e integrado. Portanto vislumbra-se também oaspecto da função social da propriedade intelectual naépoca da Internet.

Nesse tortuoso, polêmico e emergente campo do Direito Vir-tual, merece ser citada, pelo menos, a tese que avaliza a usucapiãode direitos autorais no espaço da Internet – embora nela haja, ain-da, algumas inconsistências técnico-jurídicas11 –, que se configuracomo bom exemplo de aplicação da função social à propriedadeintelectual.

De acordo com Brant (2007), por se tratarem os direitos auto-rais de bens móveis, nos termos do art. 3º da LDA, eles se sujeitari-am à usucapião ordinária do art. 1260 (que pressupõe três anos deposse mais justo título e boa-fé) ou à usucapião extraordinária doart. 1261 do CC (que pressupõe cinco anos de posse, independen-temente de justo título e boa-fé). O exemplo dado pelo referidoautor é o dos domínios virtuais (endereços ou sítios eletrônicos, ouainda, segundo a terminologia inglesa, websites), os quais, namedida em que constituem propriedade intelectual, passível deregistro pelo INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial),poderiam ser passíveis à incidência de prescrição aquisitiva(usucapião).

Essa construção jurídica, todavia, não é bem aceita em terraebrasilis, como relata Cavalieri Filho (2001, p. 50, grifos do autor):

tanto a doutrina como a jurisprudência não admitem avia possessória para a defesa do direito autoral. A pos-

11 Não existe, no ordenamento jurídico-civil nacional, a figura da posse de direitosautorais, razão pela qual a aquisição da propriedade autoral não se poderia con-sumar através da usucapião, que tem como um dos requisitos a posse mansa epacífica do bem. A convolar esse entendimento, destaca-se a Súmula 228 doSuperior Tribunal de Justiça (STJ), que veda o manejo de interdito proibitório paraevitar a turbação do direito autoral, justamente porque o interdito é açãopossessória e, no campo autoralista, só se tutela o direito de propriedade. Nadaobstante, a construção jurídica de Cássio Brant, acerca da “usucapião virtual”,ainda assim, foi referenciada, somente para prestigiar a ideia original, nela embu-tida, de que o “desuso” da propriedade autoral poderia implicar a perda dapropriedade, o que condiz perfeitamente, prima oculi, com o princípio da funçãosocial da propriedade.

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se pressupõe a existência de coisa corpórea, o que nãose coaduna com direitos de natureza incorpórea. “Cons-tituindo os direitos autorais propriedade intelectual, nãopodem ser objeto de proteção por meio de interditoproibitório, dada a impossibilidade do exercício da pos-se sobre cosias incorpóreas, podendo o autor da obraindevidamente reproduzida valer-se das medidas auto-rizadas na lei autoral”. (RJTAMG 56/7, p. 267, rel. JuizGeraldo Augusto).

Nada obstante, é de se notar que a função social não é princí-pio que se adstringe, apenas, ao direito de propriedade autoral.Também os negócios jurídicos que têm por objeto direitospatrimoniais de autor hão de observá-lo. Com efeito, os contratos,na nova ordem civil-autoralista, carecem de funcionalização.

Talvez exista, nesses termos, uma interessante interface entre oassunto em baila e a teoria dos planos do negócio jurídico, eivadapor Pontes de Miranda. Entendida como elemento intrínseco docontrato, a função social constituiria seu fundamento de existência,de maneira que a inobservância daquele princípio acarretaria ainexistência do vínculo obrigacional. Já como elemento extrínseco,a função social configura-se como fundamento de validade, sendopassível de invalidação o negócio jurídico que a ela não se confor-me. Finalmente, para aqueles que veem na função social simplesrestrição ou limitação, alheia ao objeto do contrato, o descum-primento do princípio só acarretaria a ineficácia do negócio.

A funcionalização do direito autoral contratual restringe a in-cidência da autonomia privada nos negócios jurídicos envolvendodireitos autorais. Em se tratando o ordenamento jusautoralista demecanismo regulador das obras da ciência, da arte e da literatura,os negócios jurídicos envolvendo direitos de autor sempre acarre-tarão efeitos extrassubjetivos. O princípio da relatividade contratual,no campo autoralista, encontra-se completamente mitigado. As-sim, os contratos intelectuais não podem fechar os olhos para asmúltiplas influências nas relações jurídicas de terceiros, sob penade não cumprirem a função social dos contratos.

Na mesma esteira, o entendimento de Negreiros (2006, p. 208):

Partimos da premissa de que a função social do contrato,quando concebida como um princípio, antes de qualqueroutro sentido e alcance que se lhe possa atribuir, significamuito simplesmente que o contrato não deve ser conce-bido como uma relação jurídica que só interessa às par-tes contratantes, impermeável às condicionantes sociaisque o cercam e que são por ele próprio afetadas.

E, em seguida, a mesma autora complementa:

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À semelhança do que ocorre com a propriedade – cujaestrutura mesma é alterada pela função social, atuan-do esta como parâmetro de validação do exercício dodireito do titular do domínio – também o contrato, umavez funcionalizado, se transforma em um ‘instrumentode realização do projeto constitucional’. Neste sentido,o contrato não mais se compadece com uma leitura in-dividualista, de acordo com a qual haveria somente li-mites externos, isto é, confins para além dos quais seriaconcedida aos contratantes uma espécie de salvo-con-duto para exercerem a liberdade contratual à maneiraoitocentista, isto é, de forma absoluta. Deve, pois, serreforçada a ideia de que a funcionalização, acima detudo, é inerente à situação jurídica, conformando-a emseus aspectos nucleares, qualificando-a em sua nature-za e disciplina, donde ser equivocada a conceituação dafunção social como algo que seja contraposto ao direitosubjetivo e que o delimite apenas externamente (NE-GREIROS, 2006, p. 210-211).

Os contratos envolvendo direitos intelectuais comportam enor-me potencial de funcionalização. No âmbito do direito marcário epatentário, por exemplo, toda sorte de criações do intelecto hu-mano com aplicação industrial podem, em determinadas situações,cominadas legalmente, ser licenciadas compulsoriamente, comodecorrência direta da função social da propriedade, para evitar oabuso de direito ou de poder econômico na exploração da paten-te (PORTELLA, 2006, p. 187-188). Com efeito, o art. 2º da Lei n.°9.279/96 determina que a propriedade industrial deve pautar-sepelo interesse social e pelo desenvolvimento tecnológico e econô-mico brasileiro.

A função social do direito de propriedade das invenções in-dustriais é mais nítida ainda quando se cogita sobre patente demedicamentos, hipótese em que o direito intelectual pode ser afas-tado para tutelar o direito à saúde (“quebra de patente”):

Destarte, mesmo sendo resguardado o direito de pro-priedade, tal amparo não é atribuído de modo absolu-to. Veda-se a má utilização, a não utilização e, ainda, ouso com finalidade meramente emulativa, fatos queevidenciam o abuso de direito e, consequentemente,afrontam o princípio da função social. Cabe ao estado,nestas hipóteses, valer-se de meios que conduzam a umemprego produtivo dos bens, tais como a desapropria-ção e, […] (no que diz respeito à propriedade de inventosrelacionados a medicamentos), o licenciamento compul-sório (BOCHEHIN, 2008, p. 221-222).

Digno de menção, no que concerne à limitação da autonomiaprivada em sede de direitos autorais, é o caso Lüth, que tornou

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célebre a jurisdição constitucional alemã no pós-guerra. Veit Harlan,cineasta alemão que havia participado ativamente da propagan-da nazista alemã, lançara um novo filme, Amada imortal (1951),que não possuía nenhum traço antissemita. Um jornalista judeu,Eric Lüth, tendo em vista o histórico de Harlan, conclamou os cida-dãos alemães a boicotar o filme. Harlan processou Lüth postulan-do indenização pelos prejuízos ocasionados pela correspondênciae ganhou em todas as instâncias ordinárias, mas o Tribunal Consti-tucional Alemão reformou os acórdãos e, pela vez primeira, desen-volveu as teses da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, desua eficácia horizontal e da necessidade de ponderação, em casode colisão de direitos (ALEXY, 2008, p. 298-301).

O caso Lüth é paradigmático no estudo da função social dapropriedade autoral, uma vez que o boicote ao filme de Harlan foiratificado pela jurisprudência alemã, que, ao ponderar os interes-ses em jogo, reconheceu a superioridade do direito de expressãode Lüth em relação ao direito de exploração econômica da precitadaobra cinematográfica.

Ante tudo quanto exposto, conclui-se que o direito à proprie-dade intelectual é um direito fundamental albergado pela Consti-tuição brasileira, o qual, entretanto, não é absoluto, relativizando-se ao princípio da função social, compreendido tanto como ele-mento intrínseco e extrínseco como gerador de obrigações positi-vas e negativas. Vez que a função social mostra-se como elementoestrutural tanto da relação contratual quanto da propriedade in-telectual, não seria exagerado afirmar que a ordem jurídica nãoreconhece nem tutela, juridicamente, o direito de propriedadeautoral, ou o correlato contrato, se não estiverem funcionalizados,é dizer, comprometidos com a função social exercida, inter e ultrapartes.

2.2 Programa autoralista da Constituição Social: do direitofundamental à cultura

Sarlet (2004) procede à sistematização dos direitos fundamen-tais em quatro dimensões, excurso da Teoria da Constituição que,pela sua precisão e abrangência, merece, com a devida vênia, inte-gral transcrição aqui:

Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seureconhecimento nas primeiras Constituições escritas, sãoo produto peculiar (ressalvado certo conteúdo socialcaracterístico do constitucionalismo francês), do pensa-mento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cu-nho individualista, surgindo e afirmando-se como direi-

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tos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamen-te como direitos de defesa, demarcando uma zona denão-intervenção do Estado e uma esfera de autonomiaindividual em face de seu poder. São, por este motivo,apresentados como direitos de cunho “negativo”, umavez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma condu-ta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, nestesentido, “direitos de resistência ou de oposição peranteo Estado”. Assumem particular relevo no rol desses di-reitos, especialmente pela sua notória inspiraçãojusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à proprie-dade e à igualdade perante a lei. Ao, posteriormente,complementados por um leque de liberdades, incluindoas assim denominadas liberdades de expressão coletiva(liberdades de expressão, imprensa, manifestação, reu-nião, associação, etc.) e pelos direitos de participaçãopolítica, tais como o direito e voto e a capacidade eleito-ral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlaçãoentre os direitos fundamentais e a democracia. Tam-bém o direito de igualdade, entendido como igualdadeformal (perante a lei) e algumas garantias processuais(devido processo legal, habeas corpus, direito de peti-ção) se enquadram nesta categoria. Em suma, comorelembra P. Bonavides, cuida-se dos assim chamados di-reitos civis e políticos, que, em sua maioria, correspondemà fase inicial do constitucionalismo ocidental, mas quecontinuam a integrar os catálogos das Constituições nolimiar do terceiro milênio, ainda que se lhes tenha sidoatribuído, por vezes, o conteúdo e significado diferenci-ados.[…] na esfera dos direitos de segunda dimensão, há queatentar para a circunstância de que estes não englo-bam apenas direitos de cunho positivo, mas também asassim denominadas “liberdades sociais”, do que dãoconta os exemplos da liberdade de sindicalização, dodireito de greve, bem como do reconhecimento de di-reitos fundamentais aos trabalhadores, tais como o di-reito a férias e ao repouso semanal remunerado, a ga-rantia de um salário mínimo, a limitação da jornada detrabalho, apenas para citar alguns dos mais represen-tativos. A segunda dimensão dos direitos fundamentaisabrange, portanto, bem mais do que os direitos de cu-nho prestacional, de acordo com o que ainda propugnaparte da doutrina, inobstante o cunho “positivo” possaser considerado como o marco distintivo desta nova fasena evolução dos direitos fundamentais. Saliente-se, con-tudo, que, a exemplo dos direitos da primeira dimen-são, também os direitos sociais (tomados no sentidoamplo ora referido) se reportam à pessoa individual,não podendo ser confundidos com os direitos coletivose/ou difusos da terceira dimensão. A utilização da ex-pressão “social” encontra justificativa, entre outros as-pectos que não nos cabe aprofundar neste momento,na circunstância de que os direitos da segunda dimen-

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são podem ser considerados uma densificação do princí-pio da justiça social, além de corresponderem à (sic) rei-vindicações das classes menos favorecidos, de modo es-pecial da classe operária, a título de compensação, emvirtude da extrema desigualdade que caracterizava (e,de certa forma, ainda caracteriza) as relações com aclasse empregadora, notadamente detentora de ummaior ou menor grau de poder econômico.[…] Os direitos fundamentais da terceira dimensão,também denominados de direitos de fraternidade oude solidariedade, trazem como nota distintiva o fatode se desprenderem, em princípio, da figura do ho-mem-indivíduo como seu titular, destinando-se à pro-teção de grupos humanos (família, povo, nação) e ca-racterizando-se, consequentemente, como direitos detitularidade coletiva ou difusa. Para outros [Bonavides],os direitos da terceira dimensão têm por destinatárioprecípuo o “gênero humano mesmo, num momentoexpressivo de sua afirmação em termos de existen-cialidade concreta. Dentre os direitos fundamentaisda terceira dimensão consensualmente mais citados,cumpre referir os direitos à paz, à autodeterminaçãodos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente equalidade de vida, bem como o direito à conservaçãoe utilização do patrimônio histórico e cultural e o di-reito de comunicação. Cuida-se, na verdade, do resul-tado de novas reivindicações fundamentais do serhumano, geradas, dentre outros fatores, pelo impac-to tecnológico, pelo estado crônico de beligerância,bem como pelo processo de descolonização do segun-do pós-guerra e suas contundentes consequências,acarretando profundos reflexos da esfera dos direi-tos fundamentais.[…] Ainda no que tange à problemática das diversasdimensões dos direitos fundamentais, é de se referir atendência de reconhecer a existência de uma quartadimensão, que, no entanto, ainda aguarda sua consa-gração da esfera do direito internacional e das ordensconstitucionais internas. Assim, impõe-se examinar, numprimeiro momento, o questionamento da efetiva possi-bilidade de se sustentar a existência de uma nova di-mensão dos direitos fundamentais, ao menos nos diasatuais, de modo especial diante das incertezas que ofuturo nos reserva. Além do mais, não nos parece im-pertinente a ideia de que, na sua essência, todas as de-mandas na esfera dos tradicionais e perenes valores davida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidarieda-de), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidadeda pessoa.Contudo, há que referir, no âmbito do direito pátrio, aposição do notável Prof. Paulo Bonavides, que, com asua peculiar originalidade, se posiciona favoravelmenteao reconhecimento da existência de uma quarta dimen-são, sustentando que esta é o resultado da globalização

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dos direitos fundamentais, no sentido de umauniversalização no plano institucional, que corresponde,na sua opinião, à derradeira fase de institucionalizaçãodo Estado Social. Para o ilustre constitucionalistacearense, esta quarta dimensão é composta pelos direi-tos à democracia (no caso, a democracia direta) e à in-formação, assim como pelo direito ao pluralismo(SARLET, 2004, p. 54-59).

A cultura é, portanto, um direito fundamental de segundageração ou, de acordo com a terminologia mais aceita na doutrinaconstitucionalista atualizada, de segunda dimensão, revelando-se,logo, sob a forma de um direito prestacional. Costuma-se vincularcada dimensão dos diretos fundamentais a um dos lemas da Revo-lução Francesa, sendo que, se o direito de propriedade intelectual,na qualidade de direito de primeira dimensão, atrela-se à bandei-ra da “liberdade”, a cultura, como direito de segunda dimensão,concatena-se à bandeira revolucionária da “igualdade”.

Cumpre, ainda, desmistificar a ideia de que o catálogo dosdireitos fundamentais restringir-se-ia àqueles positivados nos arts.5° a 17 da CF/88 (quais sejam, os direitos individuais e coletivos, osdireitos sociais, os direitos de nacionalidade, os direitos políticos eos direitos dos partidos políticos). Destarte, existem direitos funda-mentais dispersos ao longo da Constituição, como, exempli gratia,as limitações constitucionais ao poder de tributar, prescritas nos art.150 a 152 (direitos fundamentais do contribuinte), os princípios daordem econômica, estipulados no art. 170 (direitos fundamentaisda ordem concorrencial) e o direito à seguridade social, inscrito noart. 194 e seguintes da CF (direitos fundamentais à previdência, àsaúde e à previdência social), entre outros. E, além dos espalhadosno Texto Constitucional, também existem direitos fundamentaisimplícitos e decorrentes do regime e da principiologia constitucio-nal, bem como aqueles oriundos da ratificação de tratados inter-nacionais, nos termos do § 2º do art. 5º do Estatuto Fundamentalda República.

Superada essa questão acerca da topografia dos direitos fun-damentais na Carta Cidadã, cumpre referir que o § 3º do art. 215,incisos II e IV, acrescentado pela Emenda Constitucional n.° 48/2005,estabeleceu o “Plano Nacional da Cultura”, com o intuito de reali-zar a “produção, promoção e difusão de bens culturais” e a “de-mocratização do acesso aos bens de cultura”. No art. 218, ao disporsobre a Ciência e a Tecnologia, o Diploma Maior prescreveu que“O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, apesquisa e a capacitação tecnológicas”.

Todavia, mais do que a mera oportunização do acesso à cul-tura, consubstanciada, no plano do direito autoral, na disponi-

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bilização de consulta às obras artísticas, científicas e literárias, oPlano Nacional da Cultura representa uma feliz inovação no ca-tálogo dos direitos fundamentais, com a criação do princípio de-nominado por Lenza (2009, p. 825) de “cidadania cultural”. Se-gundo esse princípio, o Estado deve promover o desenvolvimen-to cultural do país, imprescindível à consolidação da própria cida-dania dos brasileiros.

Interessante colacionar o arrazoado aduzido por parlamentar,acerca da necessidade de postura positiva do governo nos assuntosda cultura, durante a tramitação do Projeto de Emenda que se con-verteu na EC 48/2005, uma vez que deixa clara a importância daproteção do direito fundamental à cultura para um salto qualitati-vo no progresso brasileiro:

Ao comentar sobre a necessidade de um plano nacionalde cultura, o Senador Marcelo Crivella sinalizou que setratava “... de uma iniciativa do Governo Federal da maiorrelevância. Estamos sendo aculturados por potências es-trangeiras, hegemônicas, porque não temos ainda, nes-te País, um plano nacional que valorize a nossa cultura,que destine recursos suficientes e que organize desde osnossos sites antropológicos, onde estão (sic) a história dosnossos ancestrais, até mesmo uma organização consis-tente, um arcabouço completo da nossa cultura, das nos-sas festas, da nossa música, da nossa poesia, dos nossosquadros, principalmente da nossa história, para que osbrasileiros não cometam os erros do passado. O PlanoNacional de Cultura é fundamental tanto no seu conse-lho gestor como no seu fundo. É um momento importan-te em que o Congresso Nacional e o Senado Federal dãouma manifestação concisa, definitiva para que fique va-lorizada e preservada para as futuras gerações a culturado nosso povo…” (DSF, 02.06.2005, p. 17142) (LENZA,2009, p. 826).

Um grande risco, porém, desses discursos positivadores de di-reitos, mas desprovidos de eficácia social e dotação orçamentária, éincorrer na chamada desjuridificação dos direitos fundamentais,própria dos contextos de constitucionalização simbólica, como ode países periféricos como o Brasil. A desjuridificação nada mais éque a perda de espaço na realidade constitucional (produção deefeitos jurídicos), apesar de crescente ganho de espaço no TextoConstitucional (produção de mais normas jurídicas) (NEVES, 2007,p. 168). Em tal contexto de simbolismo constitucional, as normaspositivadas convertem-se em legislação-álibi, lograda quando “olegislador, muitas vezes, sob pressão direta do público, elabora di-plomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, semque com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respec-

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tivas normas” (NEVES, 2007, p. 36), ou se convertem, ainda, emfórmula de compromissos dilatórios, hipótese em que “o acordonão se funda no conteúdo do diploma normativo, mas sim na trans-ferência da solução do conflito para um futuro indeterminado”(NEVES, 2007, p. 41).

Os bens culturais não podem ser, destarte, encarados comodireitos meramente programáticos, ou compreendidos como legis-lação-álibi, de cunho dilatório dos compromissos sociais. Nesse sen-tido, os autores e os empresários da indústria cultural têm de assu-mir as responsabilidades constitucionais derivadas do fato de secolocarem como veículos difusores da cultura. E essa consciênciaacerca dos direitos fundamentais alheios, muito mais do que retó-rica subjacente ao contexto de constitucionalização simbólica, épressuposto para que a propriedade autoral seja também recipro-camente protegida como direito fundamental:

A dignidade humana pressupõe a satisfação das neces-sidades inerentes ao ser humano, a fim de garantir opleno desenvolvimento de sua personalidade, de reali-zar-se como ser inserido na sociedade. Tais necessida-des são deveres do Estado, constituindo-se assim, osDireitos e Garantias Fundamentais dos cidadãos, comopor exemplo o direito à educação, considerada comoum direito de todos e um dever do Estado. No entanto,a justiça social impõe que cada pessoa só é sujeito dedireito se reconhecer o outro também como sujeito dedireitos. No âmbito do direito autoral, significa que oautor, para ter seu devido reconhecimento, deve aomesmo tempo reconhecer o direito dos leitores de teracesso às suas obras, caso contrário tais obras seriaminéditas, o que impossibilitaria seu prestígio social(FRACALOSSI, [s.d.], p. 22).

Sob essa ótica, a cultura, a informação e a educação devem serencaradas como contradireitos a serem observados, necessariamente,pelos titulares de direitos autorais, até mesmo como decorrênciado caráter intrínseco-estrutural que a função social possui na pro-priedade de autor. Isso é um consectário lógico do próprio sistemaprivatista, que se tem alicerçado, desde a Constituição de 1988 eprincipalmente após o Novo Código Civil de 2002, sob a égide daeticidade, da solidariedade e da operabilidade.

As sete conclusões humanistas de Piovesan (2007), exaradasem estudo sobre as perspectivas da propriedade intelectual para ofuturo, em face das atuais conquistas dos direitos humanos, nãopodem deixar de ser infracolacionadas, a despeito de extensas. Taisopiniões sintetizam o leitmotiv que guia o projeto de direito auto-ral-constitucional de que se faz apologia, na presente monografia,

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ultrapassando-o até, à proporção que postula as bases dos direitoshumanos autorais, na seara internacionalista:

1) os contornos conceituais do direito à propriedade in-telectual devem considerar sua função social, transitan-do, assim, de um paradigma liberal individualista exclu-sivamente protetivo dos direitos do autor relativamen-te à sua produção artística, científica e literária para umparadigma coletivista que contemple as dimensões so-ciais do direito à propriedade intelectual, bem como dodireito à propriedade industrial, que tem dentre seusobjetivos principais o incentivo à inovação.2) à luz deste novo paradigma, há que se buscar umadequado equilíbrio entre a proteção dos direitos doautor relativamente à sua produção artística, cientí-fica e literária e os direitos sociais à saúde, à educa-ção e à alimentação assegurados pelo Pacto Interna-cional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais epelos demais tratados internacionais de proteção dosdireitos humanos. Ressalte-se que os Estados-partesassumem o dever jurídico de respeitar, proteger eimplementar tais direitos, garantindo um “minimumcore obligation” afeto aos direitos sociais, bem comoo dever de promover a aplicação progressiva destesdireitos, vedado retrocesso social. Daí a necessidadede compatibilizar os tratados de natureza comercialà luz dos parâmetros protetivos mínimos consagra-dos pelos tratados de direitos humanos, observando-se que, gradativamente, as dimensões e preocupa-ções relacionadas à proteção dos direitos humanostêm sido incorporadas pelos tratados comerciais.Note-se, ainda, que, via de regra, o conflito não en-volve os direitos do autor versus os direitos sociais detoda uma coletividade; mas, sim, o conflito entre osdireitos de exploração comercial (por vezes abusiva)e os direitos sociais da coletividade.3) os regimes jurídicos de proteção ao direito à proprie-dade intelectual devem ser avaliados no que concerneao impacto que produzem no campo dos direitos huma-nos, anteriormente à sua implementação e após deter-minado período temporal;4) medidas protetivas especiais devem ser adotadas emprol da proteção da produção científica, artística e lite-rária de povos indígenas e de minorias étnicas, religio-sas e linguísticas, considerando as peculiariedades (sic),singularidades e vulnerabilidades destes grupos, bemcomo a proteção de seus direitos coletivos, asseguradoo seu direito à informação e à participação nos proces-sos decisórios afetos ao regime de proteção da proprie-dade intelectual;5) a cooperação internacional e uma nova relação en-tre os hemisférios Norte/Sul, Sul/Sul e Sul/organismosinternacionais são essenciais para avanços no campo

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cultural e científico, com destaque ao acesso ao conhe-cimento e à efetiva transferência de tecnologia, sob ainspiração do direito ao desenvolvimento. Deve serencorajada a remoção de barreiras ao sistema educa-cional e de pesquisa, considerando a possibilidade daciência produzir avanços ao crescimento econômico, aodesenvolvimento humano sustentável e à redução dapobreza.6) o direito ao acesso à informação surge como um di-reito humano fundamental em uma sociedade globalem que o bem-estar e o desenvolvimento estão condici-onados, cada vez mais, pela produção, distribuição e usoequitativo da informação, do conhecimento e da cultu-ra. Destacam-se, nesta direção, importantes iniciativasde um “emerging countermovement”, cabendo men-ção, a título exemplificativo, à Wikipedia; ao CreativeCommons; à FLOSS, dentre outras, que objetivam trans-formar o paradigma tradicional vigente acerca da pro-priedade intelectual, tornando-a mais acessível, demo-crática e plural, eliminando, assim, barreiras ao acesso àinformação;7) há desafio de redefinir do direito à propriedade inte-lectual à luz da concepção contemporânea dos direitoshumanos, da indivisibilidade, interdependência eintegralidade destes direitos, com especial destaque aosdireitos econômicos, sociais e culturais e ao direito aodesenvolvimento, na construção de uma sociedade aber-ta, justa, livre e plural, pautada por uma democraciacultural emancipatória (PIOVESAN, 2007, p. 35-39).

Atente-se, no entanto, para que, seja por conta da eficáciahorizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas(SARMENTO, 2008, p. 185-186), seja pela acepção solidarista e fra-ternal do direito civil moderno, se nega aqui, veementemente,tanto a preponderância prima facie do direito à cultura sobre apropriedade autoral (prevalência da Constituição Social), como ooposto, isto é, a sobrepujança da propriedade autoral sobre odireito à cultura (prevalência da Constituição Econômica). Ora,não mais se pode defender, no atual estágio da doutrinaadministrativista, a supremacia apriorística do interesse públicosobre o interesse privado (SARMENTO, 2005, p. 23-25). Aliás, atémesmo a summa divisio romana, divisão metodológica da Ciênciado Direito entre direito público e direito privado, que subsidia anoção de superioridade do público sobre o privado (publicizaçãodo direito), é hoje profundamente questionada (FACCHINI NETO,2003, p. 15).

Nos países em desenvolvimento, onde a necessidade de difu-são das obras intelectuais é ainda mais revestida de interesse pú-blico e o conflito público-privado mostra-se ainda mais exacerba-do, delineia-se uma tendência perigosa de promover a cultura à

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custa dos direitos patrimonais dos autores, como adverte Bittar(1999, p. 170-171):

Assim é que, respeitadas as considerações em prol dodesenvolvimento cultural – necessários nos países emcausa – a verdade é que não se pode sustentar essaexpansão lastreada apenas no sacrifício e um setor dacoletividade, o intelectual, mas deve, ao revés, existirum planejamento adequado e que leve em conta todosos aspectos globais do problema.Deve haver uma conciliação entre os interesses em cau-sa, mas de sorte a que a carga não recaia somente so-bre os criadores intelectuais, cumprindo engendrarem-se fórmulas que repartam esses ônus pela coletividadeem geral, e aproveitando-se, nessa tarefa, das diretri-zes oferecidas pelas organizações internacionais, en-quanto norteadoras de ação eficaz nessa área.Cumpre seja efetuado planejamento adequado no cam-po cultural, desenvolvendo-se política própria, median-te a estimulação das artes, das letras e das ciências,consoante instrumental e técnicas disponíveis em cadapaís, e atendendo-se sempre, nesse mister, à tradição eàs condições específicas de cada qual.

De fato, não é razoável que o ativismo judicial em matériaautoral, conquanto tenha a intenção de universalização do direitofundamental à cultura, acabe por espoliar os autores de seus direi-tos patrimoniais. Corre-se o risco de inverter a ordem constitucio-nal, substituindo o Estado pelos particulares no dever de promo-ção dos bens culturais.

Do exposto, fica nítido o intuito do legislador constituinte bra-sileiro de incentivar o desenvolvimento e difusão da cultura, doconhecimento e da ciência no país, democratizando-lhes euniversalizando-lhes o acesso. E esse nobre programa cultural daConstituição Social brasileira, profundamente ramificado com osideais desenvolvimentistas do país, o direito autoral não pode, sim-plesmente, ignorar. Por outro lado, também não pode ser invoca-do para anular a propriedade autoral. Localizado na Seção II doCapítulo III do Título VII da Constituição Federal, o direito à cultu-ra insere-se dentro “Da Ordem Social”. Por conseguinte, é assazrelevante o valor da justiça social que deve alimentar esse direitofundamental, como se intentará demonstrar a seguir.

2.2.1 Do valor da justiça social no campo jusautoralista

Os valores determinam o agir e o pensar do homem. Aquelesque determinam a essência do dever-ser humano são denomina-dos invariantes axiológicas, que se conformam a cada vocação hu-

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mana: a sacralidade (sacerdote), a beleza (poeta), a riqueza (em-presário), a verdade (filósofo) e o útil-vital (trabalhador) (REALEapud BEZERRA, 2008, p. 7-8). A axiologia jurídica, teoria dos valo-res aplicada ao direito, retrata os fins que o homem busca realizar,convergindo as normas jurídicas para os valores ordem, segurança,liberdade e justiça (BEZERRA, 2008, p. 9-10).

Noronha (1999, p. 102) transporta esses valores para o direitoprivado, vislumbrando neles a plataforma fundamental da novateoria dos contratos:

A liberdade, no Direito dos Contratos, constitui o núcleoessencial do princípio da autonomia privada. A justiçaconforma o princípio da justiça contratual. A ordem, queno âmbito dos contratos seria melhor chamada de se-gurança, faz-se presente através do princípio da boa-fécontratual.

A justiça social é um dos valores fundantes do ordenamentojurídico e busca, justamente, coibir o darwinismo jurídico (LÔBO,1999, p. 101), isto é, a depredação dos mais fracos pelos economi-camente mais fortes.

Desse modo, a justiça social, ao ser invocada como meta dodireito autoral, pode embasar tanto a proteção do autor quanto ados cidadãos destinatários das obras, uma vez que, neste campodo direito privado, ao contrário de outros, como o direito do tra-balho e o direito das relações de consumo, não existe situação abs-trata de hipossuficiência de parte a parte.

De acordo com a doutrina espanhola, a ideia de justiçainterpenetra-se sempre com a de igualdade, consoante relata Be-zerra (2008, p. 15-16):

Apesar da diversidade de conceitos, observa RecásensSiches que um levantamento dessas teorias [acercada definição de justiça] demonstra, por trás de suaaparente contradição, alguma identidade. A similitudeestá em que a noção de justiça vem sempre ligada àde igualdade. O símbolo desse entrelaçamento é tam-bém o da justiça, a balança de pratos nivelados e fielvertical.

Na seara autoralista, a justiça social é valor que deve, cons-tantemente, ser perseguido. Concorrer para a justiça social signi-fica que o direito autoral deve possibilitar aos cidadãos o acessoao conhecimento, única via para a construção da cidadania e dodesenvolvimento humano e econômico de um povo. Não se tra-ta, sem embargo, de um mandamento “Robin Hood”, engajadona consecução de um ideal romântico do justo, mas sim de uma

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premissa metodológica a ser seguida, durante a aplicação doarcabouço jurídico-protetivo da LDA às lides em que se discute odireito material de autor. Fora do âmbito processual, a justiça so-cial autoralista quer dizer, ainda, que a produção artística, cientí-fica e literária deve ser dirigida à comunidade, da qual se extrai oinstrumental material para as criações do gênio humano e que,portanto, deve ter como contrapartida o direito de fruição da obrado autor.

Com isso, não se quer dizer que a autorização do autor é pres-cindida, em qualquer caso, para a utilização da obra. Da justiçasocial apenas se pode inferir que o uso pessoal da obra, ou seja,sem fins lucrativos, e tendo por finalidade a consecução do direitofundamental à cultura e, por conseguinte, da dignidade da pessoahumana, deve ser exercido sem as restrições que a LDA prescreve,se do cotejo entre o peso dos bens jurídicos envolvidos prevalecer,proporcionalmente, a cultura em detrimento da propriedade oudo contrato.

Parece-nos que um exemplo claro da incidência do valor dajustiça social, como orientador dos direitos patrimoniais de autor, éo domínio público. Após o prazo legal, atualmente de setenta anoscontados a partir de 1 de janeiro do ano seguinte ao da morte doautor, a obra cai em domínio público. Protegida, temporariamen-te, a exploração econômica dos direitos do autor por parte de atétrês gerações sucessoras, afigura-se absolutamente consentâneo àideia de justiça social que a obra seja devolvida à coletividade,para poder ser livremente utilizada por todos, ressalvando-se seusdireitos morais, que não prescrevem.

Como já aduzido anteriormente, o ativismo judicial não podeespoliar os autores de seus direitos patrimoniais, contudo, devecaminhar na direção da harmonização dos interesses econômicosparticulares com os interesses culturais coletivos. Afinal, sendo aerradicação da pobreza um dos objetivos fundamentais da Repú-blica (CF, art. 3º, III), a igualdade formal evolui para a acepção deigualdade substancial e a justiça retributiva evolui no sentido deuma justiça distributiva (TEPEDINO, 1999, p. 15).

Em outras palavras, Fracalossi ([s.d.], p. 39) ensina:

O Estado, ente responsável pela distribuição igualitáriados ônus e encargos entre os cidadãos, tem o dever depromover o acesso de todos aos diversos meios cultu-rais existentes. Entretanto, tem também o dever detutelar os pensadores, garantindo-lhes respeito e re-compensa pro suas criações. É a chamada Justiça Social,que como fundamento do Estado Democrático de Di-reito deve buscar a harmonia entre os interessesconflitantes.

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Ao que tudo indica, o conflito de normas de direitos funda-mentais em xeque, ambas buscando máxima concreção, pode sermais bem equacionado à luz da Teoria dos Direitos Fundamen-tais, de Alexy (2008), segundo uma avaliação casuística baseadana técnica de ponderação de interesses, mediante aplicação damáxima de proporcionalidade, dividida nas subfases da necessi-dade, adequação e proporcionalidade stricto sensu (ALEXY, 2008,p. 116-117).

Aplicando a técnica de ponderação de bens proposta por Alexy(2008) a situações hipotéticas regulamentadas pela legislação dedireitos autorais, têm-se algumas conclusões interessantes.

A título lúdico, examine-se um caso fictício, envolvendo o exem-plo do direito pessoal de arrependimento do autor: “Art. 24. Sãodireitos morais do autor: […] VI - o de retirar de circulação a obraou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quan-do a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação eimagem”. Essa regra poderia colocar os princípios fundamentaisautoralistas em colisão, por exemplo, na hipótese em que, sob aalegação de afronta à sua honra objetiva, o autor quisesse fazervaler o seu direito de retirada de obra única, a respeito de determi-nado tema, distribuída em estabelecimentos públicos de ensino.Aplicando-se a máxima de proporcionalidade, ter-se-ia:

a) Exame de adequação: a previsão do direito de retirada doautor como direito moral, nesse contexto fático, é adequada, nosentido de proteger a dignidade do autor? Sim, porque a retiradada obra de circulação é meio apto a interromper a ocorrência dodano moral.

b) Exame de necessidade: a previsão do direito de retiradado autor como direito moral, nesse contexto fático, é necessária,no sentido de haver algum meio alternativo menos gravoso? Sim,porque a não retirada da obra implicará a consumação ou re-crudescimento do dano, caso toda a obra comprometa a digni-dade do autor; ou não, se a distribuição de uma errata ou su-plemento literário for suficiente para coibir a emergência do danomoral.

c) Exame de proporcionalidade em sentido estrito: a previsãodo direito de retirada do autor como direito moral, nesse contextofático, é proporcional, no sentido de importar em um valor superiorao desvalor ocasionado? Não, porque a preservação da integridademoral do autor poderá implicar o alijamento de inúmeros alunos doacesso a obra insubstituível para o bom desempenho de seus estu-dos.

Em face do resultado do exame de proporcionalidade strictosensu, observa-se que, na hipótese vertida, a medida de retirada ou

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suspensão de distribuição da obra seria desproporcional, devendo-seprivilegiar o direito fundamental de acesso à cultura por parte dosestudantes, em detrimento do direito de personalidade autoral.

Conclusão

Ao longo desta monografia, verificaram-se os fundamentos dodireito autoral-constitucional. Foram elucidados os principais di-reitos fundamentais em conflito, na ambiência jusautoralista, e aprincipiologia e axiologia constitucionais correlatas. Por esse moti-vo, seria pleonástico e cansativo, à guisa de conclusão, resumir ostemas enfrentados, em virtude do que se optou por encerrar comuma perspectiva geral do fenômeno de constitucionalização dodireito autoral objetivo brasileiro.

Uma vez que, após a consolidação do Estado Social no Brasil,com o advento da Carta Cidadã de 1988, a Constituição passou aregular as relações privadas e econômicas, anteriormente submetidasao jugo da codificação civil, todo o direito privado nacional, atual-mente, tem que passar por um processo de filtragem constitucional.

Com o direito autoral não poderia ser diferente. Se a dignida-de da pessoa humana passa a ser a cláusula-matriz, o centrogravitacional do ordenamento jurídico, os direitos autorais, paracorresponderem às expectativas constitucionais, hão de colocar oser humano como centro da tutela autoralista, e não os direitospatrimoniais, de índole marcadamente liberal e patrimonialista,eivados pelo modelo de copyright consolidado no common law.

Note-se que “colocar o ser humano como centro da tutelaautoralista” não tem relação de sinonímia com “proteger sempreos direitos culturais, em detrimento dos direitos patrimoniais pre-vistos na LDA”. Em verdade, não é possível encarar a questão coma arrogância de alguns administrativistas, que postulam a supre-macia do interesse público sobre o privado. Primeiro, a dicotomiapúblico x privado já caiu por terra, desde que se tem verificado aeficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Segun-do, ainda que subsistisse a tradicional clivagem, não seria possíveldefinir, aprioristicamente, a superioridade do interesse culturalcoletivo do cidadão em detrimento do interesse proprietário par-ticular do autor. Ambos possuem a mesma natureza de direitofundamental.

Eis por que se faz apologia, no presente estudo, da adoção damáxima de proporcionalidade alexyana como critério racional paraa ponderação casuística das regras de direitos fundamentais quecolidem quando se defrontam os interesses dos autores com os dospopulares.

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A total inefetividade do direito autoral brasileiro, agravada pelodesenvolvimento das novas tecnologias de comunicação, deixa claraa necessidade de uma profunda reformulação das premissas e da re-gulamentação da LDA. Ainda excessivamente conservadora, privatista,patrimonializada, liberal e inapta para a proteção dos interesses dosautores, artistas e intérpretes e da sociedade consumidora dos bensintelectuais por eles produzidos, a Lei n.° 9.610/98 somente poderávencer o patente estado de crise que a ultrapassa se, ao invés de pre-conizar desmedida “guerra contra a pirataria”, conciliar os direitosculturais dos cidadãos ambientados numa sociedade da informação,líquida, instantânea, estandardizada e supostamente pós-modernacom os direitos autorais, sem anulá-los reciprocamente.

O princípio da função social e o valor da justiça social não po-dem, nesse contexto, ser desprezados pelo ordenamento autoralista,tal como hoje se pode notar. Assim, apenas para se ficar num exem-plo, muito mais eficiente do que proibir o direito de reproduçãointegral da obra para fins particulares, prática livremente dissemina-da em todos os segmentos da sociedade e que concretiza, amiúde, oprojeto constitucional de acesso ao conhecimento e à cultura porparte do cidadão, seria que o legislador apenas vedasse a reprodu-ção com fins comerciais e, máxime, aparelhasse os órgãos competen-tes com a infraestrutura necessária para a fiscalização das regras. Seisso fosse feito, sairiam ganhando o cidadão, que mais facilmenteangariaria o mínimo existencial cultural; o autor, que teria o seu di-reito fundamental de propriedade muito mais bem tutelado peloEstado; e o próprio Estado, que atuaria, um pouco mais, na direçãodo que está simbolicamente escrito na Constituição.

Lamentavelmente, o Brasil é um país que não lê e é espantosoque o próprio direito formal, que deveria chancelar o desenvolvi-mento humano, artístico e científico deste povo, pressuposto parao abandono da condição de subdesenvolvimento, crie óbices, porintermédio da tutela autoralista, para a mudança dessa realidade.Como diria o diretor teatral Antônio Abujamra: “No Japão, quemnão sabe ler vai preso. Aqui no Brasil, eles são eleitos!”

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O DIREITO À CULTURA COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO BRASILEIRO

O direito à cultura como um direitofundamental do cidadão brasileiro1

Jairdes Carvalho GarciaAdvogado da CAIXA em Minas GeraisPós-graduado em Direito Processual:

Grandes TransformaçõesPós-graduando em Justiça Federal

RESUMO

O direito à cultura, apesar de não constar expressamente dotexto constitucional como um direito fundamental do cidadãobrasileiro, pela sua natureza e imprescindibilidade para o exercícioda cidadania, deve ser considerado como tal. Para comprovar aindispensabilidade do direito à cultura para o cidadão brasileiroforam analisadas, neste trabalho, as características e classificaçõesdos direitos fundamentais, assim como as características do direitoà cultura, concluindo-se pela sua essência de direito fundamentalna ordenação constitucional brasileira e na ordem jurídicainternacional.

Palavras-chave: Direito à cultura. Cultura. Direitos humanos.Direitos fundamentais.

ABSTRACT

The right to culture, although not expressly stated in theconstitutional text as basic right of a citizen of Brazil, by theirnature end indispensability to the exercise of citizenship, shouldbe considered as such. To prove the indispensability of the rightculture for Brazilian citizens were analyzed in this paper thecharacteristic of the right to culture, concluding the essence offundamental rights in the Brazilian constitutional order andinternational legal order.

Keywords: Right culture. Culture. Human rights. Fundamentalrights.

1 Cultura: um direito universal

Uma pergunta sempre vem à tona quando se analisa direito ecultura, que é como lidar com o direito à cultura, se o próprio Di-

1 Excertos da monografia apresentada para conclusão do curso em Direito na Uni-versidade Vale do Rio Doce – UNIVALE.

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reito é uma ciência cultural. O objeto do presente artigo não é acultura no seu sentido lato, enquanto expressão de tudo aquilocriado pelo homem, mas o conceito restrito da norma jurídica rela-tiva às artes, à espiritualidade, às tradições e ao saber popular.

Desta forma, as concepções de que a cultura é a base de todosos direitos fundamentais, ou de que constitui um quarto elementodo Estado, como sustentadas por Peter Häberle (apud CUNHA FI-LHO, 2000, p. 30-31), ficam prejudicadas neste trabalho. Pela mes-ma razão, deve aqui ser refutada a classificação de Bonavides (2003,p. 67) da quarta dimensão de direitos fundamentais como direitoseminentemente culturais. Outrossim, fica prejudicada a classifica-ção da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e doPacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, poisincluem o direito ao lazer e à educação como direitos culturais,assim como a classificação de Silva (2000, p. 809), que fala numaordem constitucional da cultura ou constituição cultural, que abran-geria os direitos a educação, ensino, cultura (estritamente conside-rada), desporto, ciência e tecnologia, comunicações sociais e meioambiente.

A Constituição não ampara a cultura como concepção antro-pológica, mas como um sistema de referência à identidade, à açãoe à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasi-leira. Isso porque cultura, do ponto de vista antropológico, é tudoo que o homem construiu e deu sentido, enquanto, para a Consti-tuição, só é cultura aquilo que ela elegeu como de fundamentalimportância para o cidadão, como veremos a seguir. Assim, confor-me exemplo lapidar de Silva (2001, p. 35), um garfo, uma colher,uma faca, uma espada, que são objetos culturais num conceitoantropológico, só o serão para a Constituição se tiverem sido, porexemplo, utilizados por uma personagem histórica importante ouparticipado de uma batalha expressiva.

Antes de tratar explicitamente da cultura enquanto direitofundamental, há que se definir e diferenciar algumas expressõescorrentes no âmbito da regulamentação da cultura, dentre as quais,distinguir direito à cultura de direitos culturais e estes de direito dacultura.

1.1 Do direito à cultura

O direito à cultura é um direito de caráter social, que implicauma ação positiva do Estado para sua satisfação. É uma faculdadede agir (facultas agendi) conferida pela norma jurídica cultural (SIL-VA, 2001, p. 48). Assim como se fala em direito ao trabalho ou dedireito à liberdade quando se refere a todos os direitos trabalhistas

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ou a todas as formas de liberdade, deve-se falar em direito à cultu-ra como gênero que abrange todos os direitos culturais. Deve-seter em conta, no entanto, que, embora seja o direito à cultura umdireito de segunda geração, existem direitos culturais que são clas-sificados como de primeira, de terceira e, até mesmo, de quartageração, mas isso não implica que o direito à cultura, como gêne-ro, não seja um direito social ou um direito fundamental de presta-ção, embora tenha como “subdireitos” outros direitos acessóriosde defesa (como, por exemplo, os direitos autorais) e direitos departicipação (como o direito de participação cultural).

Já direitos culturais são aqueles direitos atinentes à cultura aptosa serem exercidos por uma pessoa em uma determinada sociedade,por serem assegurados por uma norma de natureza cultural.Destarte, o direito autoral, o direito de acesso à cultura, o direito àmemória histórica, o direito à criação cultural etc. são, cada umdeles, um direito cultural. Segundo Cunha Filho (2000, p. 34),

direitos culturais são aqueles afetos às artes, à memó-ria coletiva e ao repasse de saberes, que asseguram aseus titulares o conhecimento e uso do passado, inter-ferência ativa no presente e possibilidade de previsão edecisão de opções referentes ao futuro, visando sem-pre à dignidade da pessoa humana.

O conjunto de todas as normas que disciplinam a cultura for-ma a ordem jurídica da cultura. Esse conjunto de todas as normasjurídicas sobre cultura, seja de natureza constitucional ou ordiná-ria, constitui o direito objetivo da cultura, que é o chamado direitoda cultura, um novo ramo do direito público em formação. Segun-do Alain Riou (apud SILVA, 2001, p. 47), “o direito da cultura éconstituído do conjunto de regras que se aplicam às atividades cul-turais públicas e privadas assim como às relações destas entre si, dajurisprudência que elas suscitam e dos comentários da doutrina sobreesse assunto”. Conforme este mesmo autor, o direito da culturacompreende quatro grandes domínios: o direito patrimonial dacultura, o direito da criação e da formação culturais, o mecenatocultural e a propriedade literária e artística. Autores franceses cita-dos por Silva (2001, p. 47-51) entendem que o direito da culturaimplica um serviço público da cultura, uma política cultural e umcontencioso da cultura.

O estabelecimento de uma ordem jurídica cultural implica adefinição de conceitos de bens culturais e patrimônio cultural, quesão os objetos culturais a serem tutelados pelo Estado através danorma jurídica. Bens culturais são, assim, “coisas criadas pelo ho-mem mediante projeção de valores” (SILVA, 2001, p. 26) e podemser de natureza material ou imaterial. Neles se fundem um objeto

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material que lhe dá corpo e um valor que lhe dá sentido. Patrimôniocultural, segundo Maria Casteli (apud ROS, 2003, p. 196) é um“conjunto de bens, produto da expressão criativa do homem e daevolução da natureza, com um valor ou importância para a ciên-cia, o espírito ou a cultura em geral”. É um conjunto de bens cultu-rais, tomados individualmente ou em conjunto, que expressem va-lores relacionados à identidade de um lugar, região ou comunida-de (CRETELLA JÚNIOR, 1993, p. 4.435).

Segundo o item 23 da Conferência Mundial da UNESCO sobrePolíticas Culturais, de 1982:

O patrimônio cultural de um povo compreende as obrasde seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios,assim como as criações anônimas, surgidas da alma po-pular, e o conjunto de valores que dão sentido a umavida. Ou seja, as obras materiais e imateriais que ex-pressam a criatividade desse povo, a língua, os ritos, ascrenças, os lugares e monumentos históricos, a literatu-ra, as obras de arte e os arquivos e bibliotecas.

Para a realização do direito à cultura, torna-se necessária aimplantação de uma política cultural clara e democrática, que nadamais é que um conjunto de ações culturais governamentais comvistas a dar efetividade às normas jurídicas que asseguram os direi-tos culturais, ou seja, é a atuação prática do Estado para garantir oexercício do direito à cultura. Esse tema, de fundamental impor-tância para dar efetividade aos direitos culturais, será mais bemanalisado a posteriori.

Estabelecidas as diferenças entre os institutos supracitados, cabeagora comprovar pela análise das normas brasileiras que o direitoà cultura é um direito fundamental do cidadão brasileiro. Antes,porém, torna-se necessário analisar, de passagem, os documentosinternacionais que consagraram esse direito.

1.2 A cultura nos documentos internacionais

Foi a partir da Constituição Mexicana de 1917 e da Constitui-ção de Weimar de 1918, com a consagração dos direitos sociais,que a cultura passou a integrar textos constitucionais. Mas foi apartir da Declaração Universal dos Diretos Humanos de 1948 queos direitos culturais foram alçados ao patamar de direitos funda-mentais do ser humano. Outra não é a interpretação do artigo 27da citada Declaração, que dispõe:

1. Toda pessoa tem o direito de participar livrementeda vida cultural da comunidade, de fruir das artes e departicipar do progresso científico e de seus benefícios;

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O DIREITO À CULTURA COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO BRASILEIRO

2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interessesmorais e materiais decorrentes de qualquer produçãocientífica, literária ou artística da qual seja autor.

Da mesma forma, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos,Sociais e Culturais de 1966, que veio regulamentar a Declaração In-ternacional dos Direitos Humanos, dispôs em seu artigo 15, in verbis:

1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem acada indivíduo o direito de:[...]b) Participar da vida cultural;c) Desfrutar o progresso científico e suas aplicações;d) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e ma-teriais decorrentes de toda a produção científica, literá-ria ou artística de que seja autor.2. As medidas que os Estados Partes no presente Pactodeverão adotar com a finalidade de assegurar o plenoexercício desse direito incluirão aquelas necessárias àconservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciênciae da cultura.3. Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa cien-tífica e à atividade criadora.4. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem osbenefícios que derivam do fomento e do desenvolvi-mento da cooperação e das relações internacionais nodomínio da ciência e da cultura.

No âmbito regional do continente americano, há que se des-tacar a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de1948, que dispôs em seu artigo 13:

Toda pessoa tem o direito de tomar parte na vida cultu-ral da coletividade, de gozar das artes e de desfrutardos benefícios resultantes do progresso intelectual e,especialmente, das descobertas científicas. Tem o direi-to, outrossim, de ser protegida em seus interesses mo-rais e materiais no que se refere às invenções, obrasliterárias, científicas ou artísticas de sua autoria.

A Carta da Organização dos Estados Americanos de 1948, re-ferendada em 1967, garantiu o direito à cultura em seu artigo 45,verbis:

Os Estados membros darão primordial importância den-tro dos seus planos de desenvolvimento ao estímulo daeducação, da ciência e da cultura orientadas no sentidodo melhoramento integral da pessoa humana e comofundamento da democracia, da justiça social e do pro-gresso.

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A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, chamadaPacto de San José de Costa Rica, adotada na Conferência Especi-alizada Interamericana sobre Direitos Humanos em San José daCosta Rica, em 22 de novembro de 1969, e ratificada pelo Brasil em25 de setembro de 1992, dispõe em seu capítulo III, que trata dosdireitos econômicos, sociais e culturais, no artigo 26, com a rubricade desenvolvimento progressivo, que

Os Estados Partes comprometem-se a adotar providên-cias, tanto no âmbito interno como mediante coopera-ção internacional, especialmente econômica e técnica,a fim de conseguir progressivamente a plena efetividadedos direitos que decorrem das normas econômicas, soci-ais e sobre educação, ciência e cultura, constantes daCarta da Organização dos Estados Americanos, refor-mada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dosrecursos disponíveis, por via legislativa ou por outrosmeios apropriados.

No artigo 13, itens 1 e 2, da citada Convenção, o direito àliberdade de expressão foi consagrado nos seguintes termos:

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamentoe de expressão. Este direito compreende a liberdade debuscar, receber e difundir informações e idéias de todaíndole, sem considerações de fronteiras, seja oralmen-te, por escrito ou em forma impressa ou artística, oupor qualquer outro procedimento de sua eleição.2. O exercício do direito previsto no item precedente nãopode estar sujeito a prévia censura, senão a responsabi-lidades ulteriores, as quais devem estar expressamentefixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:a) o respeito a todos os direitos ou à reputação dosdemais; oub) a proteção da segurança nacional, a ordem públicaou a saúde ou a moral pública.

Da mesma forma, o Protocolo Adicional à Convenção Ameri-cana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos,Sociais e Culturais, denominado Protocolo de San Salvador, de 1988,dispôs em seu artigo 14, com a rubrica de direito aos benefícios dacultura, que

1. Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem o di-reito de toda pessoa a:Participar da vida cultural e artística da comunidade;Gozar dos benefícios do progresso científico etecnológico;Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e ma-teriais que lhe caibam em virtude das produções cientí-ficas, literárias ou artísticas de que for autora.

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2. Entre as medidas que os Estados Partes neste Proto-colo deverão adotar para assegurar o pleno exercíciodeste direito, figurarão as necessárias para a conserva-ção, desenvolvimento e divulgação da ciência, da cultu-ra e da arte.3. Os Estados Partes neste Protocolo comprometem-sea respeitar a liberdade indispensável para a pesquisacientífica e atividade criadora.4. Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem osbenefícios que decorrem da promoção e desenvolvimen-to da cooperação e das relações internacionais em as-suntos científicos, artísticos e culturais e, nesse sentido,comprometem-se a propiciar maior cooperação inter-nacional nesse campo.

No continente africano, vale destacar a Carta Africana dos Di-reitos Humanos e dos Povos, chamada Carta de Banjul, de 1981,que dispõe em seu artigo 17:

1. Toda pessoa tem direito à educação.2. Toda pessoa pode tomar livremente parte na vidacultural da comunidade.A promoção e a proteção da moral e dos valores tradi-cionais reconhecidos pela comunidade constituem umdever do Estado no quadro da salvaguarda dos direitoshumanos.

E complementa, no artigo 22:

1. Todos os povos têm direito ao seu desenvolvimentoeconômico, social e cultural, no estrito respeito da sualiberdade e da sua identidade, e ao gozo igual dopatrimônio comum da humanidade.

Já em relação aos povos árabes, embora ainda predomine namaioria dos Estados um poder autocrático de natureza divina, háuma sensível evolução no sentido de consagrarem-se os direitosfundamentais do homem. E o direito à cultura consta do Projetode Carta dos Direitos Humanos e dos Povos no Mundo Árabe, de1971, no artigo 33 ao 35, como segue:

Artigo 33. Todos têm direito a viver em ambiente inte-lectual livre, a participar da vida cultural, a desenvolverseus talentos intelectuais e criativos e a beneficiar-seda proteção dos interesses morais e materiais resultan-tes de qualquer produção científica, artística e literáriada qual seja autor.Artigo 34. A educação e a cultura terão como meta odesenvolvimento da personalidade humana, consolidan-do a fé na unidade árabe, ressaltando valores espirituais ereligiosos e fortalecendo o respeito aos direitos humanose às liberdades fundamentais dos indivíduos e grupos.

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Artigo 35. Comunidades nacionais cujos membros sesentem ligados por uma herança étnica ou cultural têmdireito a preservar e usufruir de sua própria cultura eusar sua própria língua.

Enfim, hoje há uma série de documentos internacionais queconsolidam o direito à cultura na esfera internacional, principal-mente capitaneados pela Organização das Nações Unidas para aCultura, Educação e Ciência – UNESCO, que disciplina os direitosculturais em suas diversas conferências. Além das Conferências daUNESCO, vale ressaltar outros tratados e convenções, tais como aConvenção Universal sobre Direito de Autor (1952), a Convençãopara a Proteção do Patrimônio Cultural em Evento de Conflito Ar-mado (1954), a Declaração dos Princípios da Cooperação CulturalInternacional (1966), a Convenção para a Proteção do PatrimônioCultural e Natural Mundial (1972), a Declaração do México sobrePolíticas Culturais (1982), a Convenção para a Proteção doPatrimônio Cultural Submerso (2001); no continente europeu, aConvenção Cultural Europeia de 1954, a Conferência Europeia paraa Proteção do Patrimônio Arqueológico (1969), a Convenção paraSalvaguarda do Patrimônio Arquitetônico da Europa (1985); e, noâmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), vale desta-car os Tratados sobre a Proteção dos Bens Imóveis de Valor Históri-co e de Instituições Artísticas e Científicas e Monumentos Históricos,ambos de 1935, a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Ar-queológico, Histórico e Artístico dos Estados Americanos (1976),entre outros.

1.3 A cultura nas constituições alienígenas

Como já salientado alhures, foram a Constituição Mexicanade 1917 e a de Weimar de 1919 que primeiramente trataram dodireito à cultura. Após esse primeiro passo, e, principalmente, de-pois da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a cultura pas-sou a constar do texto de quase todas as constituições modernas.

Uma das mais importantes constituições que dispuseram sobreo tema foi a Lei Fundamental que instituiu a ex-União das Repú-blicas Socialistas Soviéticas (URSS), seja pelo seu caráter histórico,seja por constituir uma nova modalidade de sociedade. Essa Cons-tituição, no artigo 17 do capítulo 3, que se intitula Desenvolvimen-to Social e Cultura, dispunha:

O Estado vela pela preservação e desenvolvimento dosvalores espirituais da sociedade, pela sua ampla utiliza-ção na formação moral e estética dos soviéticos e naelevação do seu nível cultural.

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O DIREITO À CULTURA COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO BRASILEIRO

Na URSS é estimulado por todos os meios de desenvolvi-mento das atividades artísticas, quer profissionais, querpopulares.

Nesse documento o chamado direito autoral não é sequermencionado, posto que a sua razão de ser está diretamente ligadaà propriedade privada e o Estado Socialista tem como um de seusmaiores fundamentos a eliminação de qualquer tipo de proprie-dade individual. Da mesma forma, a Constituição da República deCuba de 24 de fevereiro de 1976 e a da República Popular da Chi-na, de 4 de dezembro de 1982. A primeira, uma das mais completasconstituições no que tange à consagração do direito à cultura, dis-põe sobre este direito em diversos artigos, elegendo-o como umdos fundamentos do Estado quando o consagra como um dos fun-damentos políticos, sociais e econômicos, e no artigo 8º do capítu-lo segundo, quando diz que o Estado socialista realiza a vontadedo povo trabalhador e assegura o avanço educacional, científico,técnico e cultural do País, garantindo que não haja pessoa quenão tenha acesso ao estudo, à cultura e ao esporte (alíneas a e b).Dispõe ainda no capítulo quarto (artigo 38), que trata da educa-ção e cultura, que o Estado orienta, fomenta e promove a educa-ção, a cultura e as ciências em todas as suas manifestações e arrolaos postulados em que se deve basear a política educacional e cul-tural.

Já a Constituição chinesa dispõe de forma sucinta no artigo 47de seu capítulo segundo, que trata dos direitos e deveres funda-mentais dos cidadãos, que

Os cidadãos da República Popular da China são livres dese dedicar à investigação científica, à criação literária eartística e a outras atividades culturais. O Estado incen-tiva e apoia as atividades criadoras, de interesse do povo,levadas a cabo por cidadãos empenhados em trabalhoeducativo, científico, tecnológico, literário, artístico ecultural em geral.

Nos Estados que adotam a common law, como Estados Unidose Grã-Bretanha, o direito à cultura é sequer mencionado nos tex-tos constitucionais. Em outros, como no Japão, a consagração cons-titucional se dá de forma tímida, dispondo tão somente no artigo25 que todos terão direito à manutenção de padrão mínimo desubsistência cultural e salutar. Esta, felizmente, não é regra, postoque vários Estados europeus tradicionalmente contemplam em suasconstituições o direito à cultura. É o caso, por exemplo, da Itália,da Espanha, da Alemanha e da França. A primeira Constituiçãofrancesa a garantir os direitos culturais foi a de 1946, que em seupreâmbulo dispunha que “a nação garante acesso igual à criança

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e ao adulto à educação, à formação profissional e à cultura”. ÀFrança é devido também o conceito de exceção cultural, que al-guns denominam pejorativamente de política protecionista, pelaqual se estabelece cotas para a cultura nacional e para culturas nãohegemônicas em detrimento da indústria cultural estrangeira, par-ticularmente a estadunidense.

A Constituição Espanhola de 1978, por sua vez, declara emseu artigo 44 que os Poderes Públicos promoverão e tutelarão oacesso à cultura, a que todos têm direito, e promoverão também aciência e a investigação científica e técnica em benefício do inte-resse geral. Quanto à competência, dispõe que o Governo Centralconsiderará o serviço da cultura como dever e atribuição essenciale que facilitará a comunicação cultural entre as Comunidades Au-tônomas, que, por sua vez, têm a competência de assumir o fomen-to da cultura, da investigação e do ensino da respectiva língua(arts. 148, 1, 17º e 149, 2).

Na América Latina é de se destacar as Constituições do Pana-má, de 1985, e da Colômbia, de 1991. A primeira, dos artigos 76 a86, dispõe que o Estado reconhece o direito de todo ser humano aparticipar da cultura e o seu dever de fomentar a participação detodos os cidadãos na cultura nacional, que é constituída pelas ma-nifestações artísticas, filosóficas e científicas produzidas pelo ho-mem no Panamá através das épocas. A Constituição panamenhaprotege o patrimônio cultural, as tradições folclóricas, a identida-de das comunidades indígenas e o patrimônio histórico, além dese comprometer a estimular as artes nacionais. Já a Constituiçãocolombiana, em seus artigos 70 a 72, estabelece que o Estado temo dever de promover e fomentar o acesso à cultura de todos oscolombianos em igualdade de oportunidades, por meio da educa-ção permanente e do ensino científico, técnico, artístico e profissi-onal em todas as etapas do processo de criação da identidade na-cional. Determina que o Estado promoverá o desenvolvimento e adifusão dos valores culturais da nação e que fomentará a cultura,criando incentivos para as instituições e produtores culturais. Pro-tege o patrimônio arqueológico e declara que a expressão artísticae a busca do conhecimento são livres.

Enfim, a Constituição da República Portuguesa de 1976, pro-fusa em direitos culturais – tanto que Canotilho (apud SOUZA, 1996,p. 589), quando a mencionava, falava em Constituição cultural –,declara que é livre a criação intelectual, artística e científica, liber-dade esta que compreende o direito à invenção, produção e divul-gação da obra científica, literária ou artística, incluindo a proteçãolegal dos direitos do autor (art. 42º). Consagra em seu texto aindao capítulo terceiro do título terceiro (Direitos Econômicos, Sociais e

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O DIREITO À CULTURA COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO BRASILEIRO

Culturais), dedicado aos direitos e deveres culturais, em que se ins-creve que todos têm direito à cultura e que o Estado deve promo-ver a democratização cultural, incentivando e assegurando o aces-so de todos os cidadãos à fruição e à criação cultural em colabora-ção com a sociedade organizada (art. 73º, 1 e 3). Garante a preser-vação, defesa e valorização do patrimônio cultural e o apoio a ini-ciativas que estimulem a criação individual e coletiva, nas suas múl-tiplas formas e expressões, assim como uma maior circulação dasobras e dos bens culturais de qualidade. Prega ainda o desenvolvi-mento das relações culturais com todos os povos, especialmente osde língua portuguesa, e assegura a defesa e a promoção da cultu-ra portuguesa no estrangeiro. Defende também uma maiorintegração entre a política cultural e as demais políticas públicas(art. 78º).

2 A cultura no direito brasileiro

2.1 A cultura nas constituições brasileiras

A cultura, no constitucionalismo brasileiro, foi sempre um temaquase de irrelevância, sendo tratada de forma meramente residu-al, sem, no entanto, ser garantida enquanto direito do cidadãobrasileiro. Somente a Constituição de 1946 avançou nesse sentidoao declarar que o amparo à cultura é um dever do Estado; as de-mais lhe dedicaram, quando muito, um único artigo e, mesmo as-sim, como um instrumento de promoção de políticas educacionaisou como um adorno, um ornamento.

A Constituição Política do Império do Brasil de 1824, por exem-plo, dispunha tão somente, no número 33 do artigo 179, que oselementos das ciências, das artes e das belas-artes seriam ensinadosnos colégios e universidades. A Constituição de 1891, por sua vez,estabeleceu, em seu artigo 35, 2º, que incumbia ao Congresso, masnão privativamente, desenvolver no país as letras, artes e ciências,sem privilégios que tolham a ação dos governos locais.

Já a Constituição de 1934 dispunha em seu artigo 10, inciso III,que “compete concorrentemente à União e aos Estados protegeras belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico,podendo impedir a evasão de obras de arte”. A Constituição de1937, em seu artigo 128, dispunha que a arte, a ciência e o seuensino eram livres à iniciativa individual e de associações ou pesso-as coletivas, públicas e particulares e que o Estado deveria contri-buir para o seu estímulo e desenvolvimento, favorecendo ou crian-do instituições artísticas, científicas ou de ensino. Dispunha aindaque os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as

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paisagens e os locais particularmente dotados pela natureza, de-veriam ser protegidos pela Nação, pelos Estados e pelos Municípiose que os atentados contra eles eram equivalentes aos crimes contrao patrimônio nacional (art. 134).

A Constituição de 1946, como já mencionado, foi a que primei-ro garantiu o amparo à cultura como um dever do Estado, dispondoainda sobre a criação de institutos de pesquisas e da proteção dopatrimônio histórico e artístico (arts. 174 e 175). A Constituição de1967, em seu artigo 172, parágrafo único, e a Emenda Constitucio-nal número 1, de 1969, em seu artigo 180, parágrafo único, garanti-ram a proteção especial ao patrimônio histórico e artístico, assim comoàs paisagens naturais notáveis e às jazidas arqueológicas.

A Constituição-cidadã de 1988, por sua vez, deu novos con-tornos ao direito à cultura, inaugurando uma nova ordem jurídi-co-constitucional da cultura. Ela, além de consagrar os direitos cul-turais de natureza individual, como o direito à liberdade de ex-pressão (art. 5º, IX) e o direito autoral (art. 5º, XXVII e XXVIII), e aação popular contra ato lesivo ao patrimônio histórico e cultural(art. 5º, LXXIII), dedicou à cultura a seção dois do capítulo três (DaEducação, da Cultura e do Desporto), do título oitavo (Da OrdemSocial). Não bastasse, determinou as regras de competência emmatéria cultural nos artigos 23, III e IV; 24, VII, VIII e IX; e 30, IX, e aconsagrou nos capítulos que tratam da ciência e da tecnologia (art.219), da comunicação social (art. 221), da família, da criança, doadolescente e do adulto (art. 227) e dos índios (art. 231).

Embora esteja prenhe de normas culturais, o direito à culturanão é mencionado nos artigos que tratam dos direitos fundamen-tais do cidadão brasileiro (arts. 5º a 17). Será que, mesmo assim,pode ele ser considerado um direito fundamental do cidadão bra-sileiro? É o que será examinado a seguir.

2.2 Cultura: um direito fundamental do cidadão brasileiro

Bobbio (1992, p. 24-26) disse que na definição dos direitosfundamentais “não se trata de encontrar um fundamento absolu-to, mas de buscar, em cada caso concreto, os vários fundamentospossíveis”. E diz ainda que há três modos para fundamentá-los:“deduzi-los de um dado objetivo constante, como, por exemplo, anatureza humana; considerá-los como verdades evidentes em simesmas; e finalmente, a descoberta de que, num dado períodohistórico, eles são geralmente aceitos”, que seria a prova do con-senso.

A cultura, além de ser inerente ao próprio homem, como sali-entado anteriormente, tem sido, contemporaneamente, tratada por

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todos os tratados e constituições como um direito fundamental,como demonstrado na seção anterior. Embora tenha sido consa-grado expressamente e de forma unânime na órbita internacional,o legislador constituinte pátrio não declarou de forma incontestá-vel no Título II da Constituição de 1988, que trata dos direitos egarantias fundamentais, que o direito à cultura é um dos direitosfundamentais ali assegurados. Nem mesmo no artigo 6º, que trataespecificamente dos direitos sociais, ficou explicitado o direito àcultura como um daqueles direitos, sendo a redação do citado arti-go a seguinte, in verbis:

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, amoradia, o lazer, a segurança, a previdência social, aproteção à maternidade e à infância, a assistência aosdesamparados, na forma desta Constituição.

Outrossim, alguns dos direitos culturais, especialmente os denatureza individual, como o direito autoral, o direito à liberdadede expressão e o direito de impetrar ação popular contra ato lesivoao patrimônio histórico e cultural, foram expressamente assegura-dos no artigo 5º, incisos IX, XXVII, XXVIII e LXXIII da Carta Magnade 1988, como já anteriormente citado. No entanto, a consagraçãodesses direitos, que são, incontestavelmente, direitos culturais, nãoimplica dizer que o direito à cultura em sentido lato tenha sidoalçado à categoria de direito fundamental na Constituição brasi-leira.

Outrossim, o parágrafo segundo do artigo 5º da ConstituiçãoFederal dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Consti-tuição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípiospor ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repú-blica Federativa do Brasil seja parte”. Ora, todos os tratados inter-nacionais supracitados que garantem expressamente o direito àcultura e têm o Brasil como Estado parte foram ratificados peloEstado brasileiro, o que implica dizer, numa interpretaçãointegradora do citado dispositivo, que o direito à cultura foirecepcionado pela Constituição brasileira.

Não bastasse esse argumento inatacável, outros se apresentampara reforçar a tese de que o direito à cultura é um direito funda-mental. O primeiro é o defendido por Silva (2000, p. 316), queaduz que, como o direito à educação foi consagrado no artigo 6ºda Constituição como direito social, o direito à cultura, por via deconsequência, dada a natureza similar de ambos – tanto que sãodisciplinados no mesmo capítulo do Título VIII –, também o foi.Ademais, até mesmo o lazer, que, na Constituição, é apenas umasubdivisão da seção que trata do desporto, mencionado apenas

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em um parágrafo do artigo 217, foi expressamente citado comoum dos direitos sociais.

Destarte, analisando-se o dispositivo constitucional sem a vi-seira da interpretação literal, não restarão dúvidas de que o direitoà cultura, assim como o direito ao desporto, é, sim, direito funda-mental do cidadão brasileiro. Isso porque aquela norma do artigo6º é meramente exemplificativa e não taxativa, podendo ser acres-centados, por meio de uma interpretação extensiva, outros direitosque tenham as características de direitos sociais, como é o caso dodireito à cultura.

Por outro lado, o direito à cultura identifica-se tanto em for-ma quanto em conteúdo a um direito fundamental. Formalmente,porque os direitos culturais estão encartados no texto constitucio-nal, sendo que alguns desses direitos, como os encartados no arti-go 5º, fazem parte inclusive do núcleo insusceptível de reforma daConstituição – as chamadas cláusulas pétreas. Em conteúdo, por-que, se forem suprimidos ou negligenciados, atingem a própriadignidade humana, como o direito de expressão e a identidadeindividual e social (CUNHA FILHO, 2000, p. 134).

Quanto às demais características dos direitos fundamentais ci-tadas na seção anterior, ambas se aplicam perfeitamente ao direitoà cultura. Os direitos culturais são históricos, isto é, estão em cons-tante evolução, tanto que surgem convenções e tratados internaci-onais constantemente tratando desse tema, inovando-o. A culturaé um direito insusceptível de ser negociado ou alienado, posto queimanente à própria natureza humana. O que pode ser alienadosão os produtos culturais, enquanto artefatos materiais queretransmitem a sensação da manifestação cultural, jamais o direitoà cultura. O direito à cultura pode ser exigido a qualquer tempo,pois é imprescritível, embora estejam sujeitos à prescrição o direitoautoral, o direito à indenização por danos ao patrimônio culturaletc. O direito à cultura, até pelo seu caráter social, jamais pode serrenunciado, sob pena de afrontar a dignidade do ser humano.

Cunha Filho (2000, p. 41) diz que para que um direito sejaconsiderado fundamental há que satisfazer uma dessas condições:ou deve estar inserido na Constituição, preferencialmente no títu-lo que trata dos direitos e garantias fundamentais; ou, caso nãoesteja inserto no texto constitucional, deve ser tão importante parao sistema jurídico que os princípios relativos aos direitos funda-mentais, especialmente a dignidade da pessoa humana, o consa-grem. Ora, os direitos culturais do cidadão brasileiro estão todosexpressamente consagrados na Constituição, embora não estejamtodos contemplados no título dois, que trata dos direitos e garan-tias fundamentais. Por outro lado, todos os direitos culturais têm

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ligação estrita com o princípio da dignidade da pessoa humana,pois o ser humano que é privado dos laços afetivos, morais e artís-ticos que o ligam aos seus semelhantes não tem respeitadas suascaracterísticas humanas mais profundas e, portanto, vê massacrada,pisoteada e infringida a sua dignidade.

Resta saber, então, se um direito que não é encartado no títu-lo dois da Constituição Federal pode ser considerado um direitofundamental. Outro não é o entendimento abalizado de Silva(2000, p. 288), para quem há uma estrita ligação entre o capítulodois do título dois da Constituição Federal, que trata dos direitossociais, e o título oitavo, que dispõe sobre a ordem social, postoque os direitos sociais são algo ínsito na ordem social. Segundoeste autor, a expressão final do artigo 6º “na forma desta Consti-tuição”, quando trata do conteúdo dos direitos sociais, diz respei-to precisamente ao título da ordem social.

Como o direito à cultura é expressamente garantido na seçãodois do capítulo três do referido título oitavo, fica demonstrado deforma cristalina que o legislador constituinte, apesar do defeitometodológico de redação, quis dizer que o direito à cultura, assimcomo os demais direitos ali inseridos, é, incontestavelmente, umdireito sociail. Deixou o constituinte ao jurista a função de inter-pretar de forma sistemática os dispositivos constitucionaissupracitados para extrair deles os mecanismos e aspectosorganizacionais que caracterizam os direitos sociais.

Certo é que o tratamento jurídico da cultura como um direitoconstitucional do cidadão brasileiro a elevou ao status de normafundamental do direito positivo brasileiro, consagrando um direi-to que é a marca da própria existência de um povo. Dessa forma éque é possível falar-se numa ordenação constitucional da culturabrasileira.

2.2.1 A ordem constitucional da cultura

A ordem jurídica cultural brasileira é composta de instituições,princípios e direitos culturais, ambos inferidos em uma análise maisdetalhada na Constituição brasileira. Assim é que Cunha Filho (2000,p. 54) identificou na Constituição Federal as seguintes instituiçõesculturais: a memória coletiva, o pluralismo cultural, a participaçãopopular e a livre manifestação popular.

Outrossim, diz o mencionado autor que os princípios constitu-cionais por excelência são:

A) Princípio do pluralismo cultural ou, como preferimos,princípio da diversidade cultural. A Constituição dispõe que oEstado garantirá o acesso às fontes da cultura nacional (art. 215,

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caput). Mas, numa nação com tamanha diversidade como o Brasil,é quase impossível falar-se em cultura nacional ou brasileira (vide2.2). Melhor seria falar-se em culturas brasileiras. Por isso, deve-seinterpretar tal dispositivo em sintonia com os demais artigos, espe-cialmente o parágrafo primeiro do citado artigo, que diz: “O Esta-do protegerá as manifestações das culturas populares, indíge-nas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes doprocesso civilizatório nacional”.

Isso implica dizer que o Estado brasileiro deve privilegiar emsuas políticas públicas de cultura a diversidade cultural, ou seja,deve promover a democratização da cultura, sem “adotar” comooficial nenhuma das diversas culturas existentes. Este princípio de-corre também da forma do Estado brasileiro adotada pela Consti-tuição, que é um Estado Democrático de Direito, que consagra umasociedade pluralista, que “respeita a pluralidade de idéias, cultu-ras e etnias” (SILVA, 2000, p. 123).

Há que se salientar, inclusive, que esse princípio não se aplicatão somente ao Estado, mas a todo cidadão, que deve respeitar apluralidade de culturas, estando sujeito às sanções penais, admi-nistrativas e civis cabíveis por qualquer tipo de discriminação cultu-ral (cf. artigo 39 da Lei 8.313/91, entre outros). Do princípio dapluralidade cultural decorrem o direito de livre expressão culturale o próprio direito à identidade cultural.

B) Princípio da participação popular. A Constituição deter-mina que “o poder público, com a colaboração da comunida-de, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro” (art.216, §1º). É a consagração da cidadania cultural, ou seja, da parti-cipação efetiva do cidadão na formulação e desenvolvimento depolíticas públicas.

Essa participação popular, embora ainda de forma tímida, éaplicada pela legislação ordinária quando institui os ConselhosFederais, Estaduais e Municipais relacionados à Cultura. Ademais,a participação popular pode dar-se também por meio das açõesjudiciais garantidas ao cidadão em casos específicos – matéria estaa ser estudada na próxima seção, quando trataremos dos meiosprocessuais e administrativos de tutela do direito à cultura.

C) Princípio da atuação estatal como suporte logístico,que preferimos denominar princípio da intervenção cultural doEstado. Consiste na obrigação do Estado de apoiar e incentivar avalorização e a difusão das manifestações culturais (parte final docaput do artigo 215 da Constituição Federal), ou seja, não cabe aoEstado, no que tange à cultura, apenas uma posição passiva, nosentido de que garantirá o exercício do direito à cultura aos cida-dãos somente se provocado, mas a afirmação solene de que o Esta-

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do deve ser agente na implantação de uma política cultural efeti-va, que valorize e difunda as diversas manifestações culturais dopaís.

Essa intervenção, no entanto, não deve ser entendida no sen-tido de dirigismo ou de cerceamento do direito à expressão e àcriação cultural, mas no sentido de que o Estado deve garantir oacesso a todos os cidadãos brasileiros do direito à cultura, atravésde mecanismos de incentivo cultural, de apoio logístico e financei-ro e, até mesmo, se necessário, da atuação direta do Estado napromoção das culturas.

D) Princípio do respeito à memória coletiva. Em diversaspassagens da Constituição brasileira é citada a preservação dopatrimônio histórico, artístico e natural como uma atividade essen-cial do Estado e do cidadão (v.g. arts. 5º, LXXIII; 23, III e IV; 24, VII eVIII; 30, IX; 216, V, §§ 1º, 4º e 5º). Essa proteção se justifica, porquea memória coletiva se revela principalmente nos produtos, artefa-tos e instrumentos que a produzem e estes suportes materiais éque, em última análise, constituem o patrimônio histórico-culturalde uma sociedade.

2.2.2 Os direitos culturais em espécie

Levando-se em conta os documentos internacionaisconsagradores do direito à cultura, podem ser destacados os se-guintes direitos culturais: o direito autoral, o direito à livre partici-pação na vida cultural, o direito à identidade e à diversidade cul-tural e o direito/dever de cooperação cultural internacional.

Marilena Chauí (apud OLIVIERI, 2002, p. 116), numa análisepolítico-filosófica do direito à cultura, diz que ele é composto dosseguintes direitos:

- a produzir cultura;- a participar das decisões quanto ao fazer cultural;- a usufruir os bens da cultura;- a estar informado sobre os serviços culturais;- à formação cultural e artística pública;- à experimentação e à invenção do novo;- a espaços para reflexão, debate e crítica;- à informação e à comunicação.Sintetizando, o direito à cultura para a citada autora abran-

geria o apoio ao fomento, à criação, à produção, à distribuição eao acesso dos bens culturais.

Silva (2000, p. 316; 2001, p. 51-52), analisando os artigos 5º,215 e 216 da Constituição brasileira, concluiu que os direitos cultu-rais assegurados ao cidadão brasileiro são:

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- liberdade de expressão cultural da atividade intelectual, ar-tística e científica;

- direito de criação cultural, compreendidas as criações cientí-ficas, artísticas e tecnológicas;

- direito de acesso às fontes da cultura nacional;- direito de difusão das manifestações culturais;- direito de proteção às manifestações das culturas populares,

indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes doprocesso civilizatório nacional;

- direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural bra-sileiro e de proteção dos bens de cultura, que, assim, ficam sujeitosa um regime jurídico especial, como forma de propriedade de inte-resse público.

Cumpre acrescentar a essa lista o direito à identidade e à di-versidade cultural (que está diretamente relacionado ao direito deproteção das diversas culturas brasileiras – art. 215, § 1º da Consti-tuição Federal – mas vão além dele), o direito/dever de cooperaçãocultural internacional, especialmente a integração cultural, econô-mica, política e social dos povos da América Latina (art. 4º, pará-grafo único da Constituição Federal), os direitos autorais e o direi-to de participação cultural.

Vejamos, mais detidamente, cada um destes direitos culturaisconsagrados na Constituição Federal:

A) Liberdade de expressão culturalA liberdade de expressão cultural pressupõe a liberdade de

ação cultural, que por sua vez já é assegurada no artigo 5º, II, daConstituição, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer oua deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Aí se pre-vê a liberdade de fazer, a liberdade de atuar, a liberdade de agir(SILVA, 2001, p. 55). A liberdade de expressão cultural é um direitode primeira dimensão, posto que, segundo Luís Gustavo GrandinettiCastanho de Carvalho (apud SILVA, 2001, p. 57-58):

envolve um dever de abstenção do Estado e dos demaisquanto a uma faculdade de pensar, de emitir pensa-mento, de criar artisticamente, de professar determi-nado culto religioso ou doutrina política, sem qualquerembaraço, respeitados os direitos das demais pessoas.Assim, a liberdade de expressão engloba as atividadesartísticas humanas como cinema, teatro, novela, humor,desenho, pintura, criação literária, música, além damanifestação de qualquer opinião.

O artigo 220 da Constituição dispõe que “a manifestação dopensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquerforma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, obser-

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O DIREITO À CULTURA COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO BRASILEIRO

vado o disposto nesta Constituição”, vedada toda e qualquer cen-sura de natureza política, ideológica ou artística. A Constituição,além de garantir a liberdade de expressão, protege, especificamen-te, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensa-mento, a arte e o saber (art. 206, II). A liberdade de expressão es-tende-se também às emissoras de rádio e televisão, conforme dis-põe a Constituição no artigo 221, obedecendo aos seguintes prin-cípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, cultu-rais e informativas;II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo àprodução independente que objetive sua divulgação;III – regionalização da produção cultural, artística ejornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e dafamília.

Como se vê, essa liberdade de expressão não é absoluta, ca-bendo ao Estado, na forma da lei, estabelecer regras de defesa dapessoa e da família, podendo inclusive classificar os programas derádio e televisão e as diversões públicas, para efeitos indicativos,conforme permissivo do artigo 21, XVI, da Constituição Federal.

No entanto, deve-se ter em conta que a liberdade de expres-são independe de censura ou licença de qualquer espécie, confor-me preceituam os artigos 5º, IX e 220, § 2º da Constituição Federal.Outro não é o entendimento dos tribunais brasileiros, como, porexemplo, a decisão da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça doRio de Janeiro no Mandado de Segurança 1.011/95, que teve comorelator o desembargador João Wehbi Dib, cuja ementa dispôs que“a liberdade de expressão é direito fundamental. Vedação total dacensura. Os autores de possíveis abusos ao direito de expressão res-pondem civil e criminalmente”.

B) Direito de criação culturalAlém da liberdade para se expressar, há que se garantir ao

cidadão o direito de criar bens culturais, isto é, o ser humano nãopode ser apenas receptor de atividades e produtos culturaishegemônicos, mas deve, também, ter assegurado o direito de pro-duzir cultura. Essa talvez seja uma das mais difíceis e, ao mesmotempo, uma das mais importantes tarefas de uma política culturaldemocrática, posto que a maioria dos administradores confunde oacesso com a criação cultural. Pouquíssimas políticas públicas decultura estimulam os cidadãos a produzirem cultura. Quando mui-to disponibilizam incentivos fiscais ou parafiscais ou, ainda, outrasformas de apoio para que uma determinada manifestação culturalse expresse ou se amplie.

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C) Direito de acesso à cultura nacionalO artigo 215 da Constituição dispõe que “o Estado garantirá

a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fon-tes da cultura nacional”, consagrando o direito de acesso à cultu-ra. Entretanto, o texto constitucional fala no acesso à cultura na-cional, sendo que este termo, geralmente, se contrapõe ao senti-do de cultura “regional”, “estadual” e “local”. Mas a Constitui-ção quando fala em cultura nacional ou brasileira a utiliza emoposição ao sentido de “estrangeiro” e “internacional”, diferen-ciando e destacando a cultura brasileira da cultura estrangeira(SILVA, 2001, p. 77-78).

Então, não é função do Estado garantir o acesso aos bens cul-turais estrangeiros, notadamente os bens culturais da humanida-de? Consideramos que sim, e, embora não seja consagrado o aces-so à cultura universal na Constituição brasileira como um direitodo cidadão, inúmeros tratados que tratam sobre o tema ratificadospelo Brasil asseguram esse direito.

Desta garantia de acesso aos bens culturais surge ainda umasérie de interrogações, tais como: a que cultura nacional o cidadãobrasileiro deve ter acesso? A Constituição fala em acesso às fontesda cultura nacional, mas qual (ou quais) cultura é a nacional? Quemdetermina o que seja ou não cultura nacional? Somente há pistasna Constituição para essas perguntas, sendo a mais importante aque trata da proteção das manifestações populares, indígenas, afro-brasileiras e de grupos que formaram a civilização brasileira (art.215, § 1º). Mas será que só as manifestações culturais desses povose/ou camadas sociais devem ser consideradas nacionais? Essesquestionamentos devem ser respondidos na elaboração das políti-cas culturais à luz dos princípios democráticos consagrados na Cons-tituição, tendo-se em vista a diversidade cultural de nosso povo,sem, contudo, impor uma determinada cultura como legítima re-presentante da cultura nacional.

D) Direito de difusão culturalDispõe o artigo 215, caput, da Constituição Federal que o Es-

tado apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifesta-ções culturais. Cabe ao Estado uma ação afirmativa no sentido defazer com que as diversas manifestações sejam difundidas, guar-dando este direito estreita relação com o direito de acesso à cultu-ra, pois somente com a maior difusão dos bens e produtos culturaisé que se aumentará o acesso à cultura. Outrossim, o Estado nãopode inibir a difusão dos bens culturais, mas, antes, deve incentivá-la e apoiá-la.

A respeito da difusão cultural, já dispunha o preâmbulo daConstituição da UNESCO que

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a ampla difusão da cultura e da educação da humanida-de para a justiça, a liberdade e a paz é indispensávelpara a dignidade do homem e constitui um dever sagra-do que todas as nações devem cumprir com um espíritode responsabilidade e de ajuda mútua.

E) Direito à identidade e à diversidade culturalO direito à identidade e à diversidade cultural, embora

restritivamente, está consagrado na Constituição através do artigo215, § 1º, que dispõe: “o Estado protegerá as manifestações dasculturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros gru-pos participantes do processo civilizatório nacional”. Essa proteçãoé algo mais do que simplesmente apoiar e incentivar. Exigem-seações governamentais de preservação, valorização e difusão dessasculturas consideradas especiais para a nação brasileira.

Mas essa proteção especial não implica, de forma alguma, asupressão das outras culturas, posto que um dos princípios que re-gem nossa Constituição é justamente o de uma sociedade pluralista,sendo o pluralismo cultural também um princípio constitucionalda cultura. Daí que a Carta Política fala em culturas populares, in-dígenas e afro-brasileiras no plural, destacando as diversas formasde manifestação cultural desses povos. O pluralismo decorre inclu-sive da democracia, pois toda sociedade é composta de umapluralidade de grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos,sendo que ambos devem ter liberdade para se expressar da formaque melhor lhes convier.

Aliás, é a diversidade cultural brasileira o nosso traço mais dis-tintivo e, ao mesmo tempo, mais admirado pelos povos estrangei-ros nestes tempos de intolerância racial, cultural e ideológica. Odireito à diversidade cultural implica, necessariamente, respeitar aidentidade cultural do outro, sendo estes direitos conexos.

A Conferência Mundial da UNESCO sobre políticas culturais,de 1982, estabeleceu que “cada cultura representa um conjuntode valores únicos e insubstituíveis, já que as tradições e as formasde expressão de cada povo constituem a sua maneira mais exitosade estar presente no mundo”.

Garantir o direito à diversidade é respeitar e proteger as dife-renças e não criar desigualdades, pois as diferenças são biológicase culturais, enquanto as desigualdades são arbitrárias, estabele-cem uma relação de inferioridade de pessoas ou grupos em rela-ção a outros. As desigualdades devem ser proscritas, mas as dife-renças devem ser respeitadas, posto que representam a riquezacultural de um povo (COMPARATO, 2001, p. 200).

Nesse sentido é que a UNESCO, por meio da Declaração Uni-versal sobre a Diversidade Cultural, de 2 de novembro de 2001,

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erigiu a diversidade cultural como um patrimônio comum da hu-manidade, como dispõe o artigo 1º da citada declaração, in verbis:

A cultura adquire formas diversas através do tempo edo espaço. Essa diversidade se manifesta na originali-dade e na pluralidade de identidades que caracterizamos grupos e as sociedades que compõem a humanidade.Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, adiversidade cultural é, para o gênero humano, tão ne-cessária como a diversidade biológica para a natureza.Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da huma-nidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefí-cio das gerações presentes e futuras.

F) Direito de formação e proteção do patrimônio culturalO patrimônio cultural brasileiro, descrito no artigo 216 da Cons-

tituição, deve ser promovido e protegido pelo poder público e acomunidade, por meio de inventários, registros, vigilância, tomba-mento e desapropriação e de outras formas de acautelamento epreservação (art. 216, § 1º da Constituição Federal). Outrossim, oartigo 215, § 1º dispõe que “o Estado protegerá as manifestaçõesdas culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros gru-pos participantes do processo civilizatório nacional”.

A Constituição Federal, nos incisos III e IV do artigo 23, decla-ra que é competência comum da União, dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios “proteger os documentos, as obras eoutros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumen-tos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”, bemcomo “impedir a evasão, a destruição e a descaracterização deobras de artes e de outros bens de valor histórico, artístico oucultural”. Já os incisos VII e VIII do artigo 24 dispõem que a União,os Estados e o Distrito Federal devem legislar concorrentementesobre “proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turís-tico e paisagístico”, assim como sobre a responsabilidade por danoa esses bens culturais.

Como se dá essa proteção está contido no artigo 216, § 1º,segundo o qual “o Poder Público, com a colaboração da comuni-dade, protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de in-ventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e deoutras formas de acautelamento”. Cumpre ressaltar, porém, quenão basta proteger o patrimônio cultural, sendo de fundamentalimportância também a sua formação, daí que o tombamento e adesapropriação são institutos essenciais para que o patrimônio cul-tural, que é dinâmico, se renove e se amplie ao longo do tempo.

Outro bem cultural essencial que deve ser preservado e prote-gido é a língua portuguesa, pois, segundo Ricci Pontier e Bourdon

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(apud SILVA, 2001, p. 212), a “proteção da língua é um elemento-chave da política cultural de um país, porquanto a língua é aomesmo tempo um instrumento de comunicação, um modo de re-presentação do real e uma certa concepção do mundo”.

G) Direito/dever de cooperação cultural internacionalVários tratados internacionais tratam da cooperação cultural

internacional, especialmente o Pacto Internacional de Direitos So-ciais, Econômicos e Culturais em seu artigo 15, 4 e o Pacto de SanJosé de Costa Rica em seu artigo 26 (item 3.2.1), além de diversasoutras Convenções da UNESCO. Embora a consagração da coope-ração cultural entre os Estados nos tratados internacionais seja ex-plícita e, por via de consequência, recepcionada pelo Brasil, a Cons-tituição só tratou dessa cooperação no parágrafo único do artigo4º, que versa sobre os princípios que regem as relações na órbitainternacional, dispondo que “a República Federativa do Brasilbuscará a integração econômica, política, social e cultural dospovos da América Latina, visando à formação de uma comunidadelatino-americana de nações”.

Enfim, essa cooperação internacional no que tange à culturaé fundamental para qualquer país democrático, posto que há bensnacionais que recebem a característica de bens da humanidade,não pertencendo a este ou àquele Estado, mas a todos os homensindistintamente, constituindo-se num verdadeiro direito difuso: éo chamado patrimônio cultural da humanidade.

É objetivo do Programa Nacional de Apoio à Cultura(PRONAC), segundo o artigo 1º da Lei nº 8.313, de 1991, “desen-volver a consciência internacional e o respeito aos valores culturaisde outros povos e nações”, além de “estimular a produção e difu-são de bens culturais de valor universal, formadores e informadoresde conhecimento, cultura e memória”. Trata-se da consagração nalei ordinária desta cooperação entre povos e nações, que implicarespeito às outras culturas, equilíbrio na troca de bens simbólicos,igualdade entre as culturas e respeito à diversidade, na busca deuma paz mundial.

H) Direitos autoraisSilva (2001, p. 176) não considera os direitos autorais como

direitos culturais, sob o fundamento de que são direitos patrimoniaisde natureza privada, ao passo que os direitos culturais são direitossociais. Ousamos discordar, posto que, como já salientado na seçãoanterior quando tratamos da classificação dos direitos fundamen-tais, o direito à cultura é uma fórmula genérica que, embora desegunda geração, no sentido de exigir uma prestação positiva doEstado, inclui uma série de direitos culturais das diversas geraçõesde direitos, entre eles os direitos autorais. O simples fato de serem

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classificados como direitos de primeira geração não exclui sua ca-racterística de direito eminentemente cultural, estando, portanto,açambarcado pela classificação geral de direito à cultura.

Não se cuidará aqui de esmiuçar a matéria sobre direitos auto-rais, por demais extensa e que não é o foco central do presentetrabalho. Cabe delinear suas linhas básicas, principalmente de or-dem constitucional, para demonstrar sua natureza de direito cultu-ral fundamental do cidadão brasileiro.

A proteção essencial do direito à cultura está insculpida noartigo 5º, XXVII, que determina que “aos autores pertence o direi-to exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras,transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. Dispõe ain-da o inciso XXVIII do referido artigo que são assegurados, na formada lei, aos autores:

a) a proteção às participações individuais em obras cole-tivas e à reprodução da imagem e da voz humanas,inclusive nas atividades desportivas;b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômi-co das obras que criarem ou de que participarem oscriadores aos intérpretes e às respectivas representa-ções sindicais e associativas [...].

Os direitos de autor são conceituados como “um conjunto defaculdades morais e patrimoniais que a Constituição e a lei confe-rem ao autor sobre a obra intelectual ou artística que tenha pro-duzido ou venha a produzir” (SILVA, 2001, p. 176). São regula-mentados pela Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que discipli-na quais obras são protegidas, como se dará o registro e a utiliza-ção destas obras, as sanções aplicáveis em caso de violação dos di-reitos autorais etc.

Importa ressaltar a proteção internacional dos direitos auto-rais (copyright), especialmente o dispositivo 27-2 da DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem que dispõe: “Toda pessoa temdireito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentesde qualquer produção científica, literária ou artística da qual sejaautor”.

I) Direito de participação culturalA participação cultural foi disciplinada de forma tímida pela

Constituição quando esta trata no artigo 216, § 1º que “o poderpúblico, com a colaboração da comunidade, promoverá e pro-tegerá o patrimônio cultural brasileiro [...]”. É prevista ainda aparticipação do cidadão no artigo 5º, inciso LXXIII da Constitui-ção, que trata da ação popular para anular ato lesivo aopatrimônio histórico e cultural do Estado ou de entidade de queo Estado participe.

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Cabe ressaltar, no entanto, que essa participação deve se dartanto nos processos quanto nos produtos culturais, ou seja, a po-pulação brasileira não pode ser somente receptora de produtosculturais prontos e acabados, mas deve participar ativamente dasdiscussões e decisões sobre quais produtos e manifestações são im-portantes para a comunidade. Esta política de abrir canais de par-ticipação popular é chamada de empoderamento (empowerment),que é uma forma de atribuir poder aos atores sociais, para estimu-lar o exercício da cidadania através de métodos de decisão demo-cráticos (FARIA, 2000, p. 14-15).

Coube às leis ordinárias, no entanto, a maior evolução quan-to à participação cultural dos cidadãos, especialmente ao prever acriação de Comissões e Conselhos de Cultura. Assim é que a Lei nº8.313/91 criou a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura para aavaliação de projetos culturais, com composição paritária entre re-presentantes da sociedade e do Poder Público. No entanto, aindafalta muito para que este diálogo entre o poder público e os agen-tes culturais seja, de fato, construtor de uma nova política cultural,visto que o processo de participação nas decisões é mais complexodo que a simples criação de órgãos colegiados. Mais até do que ainstitucionalização da participação cultural, torna-se necessário queos governantes estejam dispostos a superar o corporativismo e ofisiologismo que ainda grassa nas administrações para ouvir a vozdos órgãos, agentes e associações que criam, difundem e promo-vem a nossa cultura.

Conclusão

O homem, embora seja um ser eminentemente cultural, quasesempre desconsidera a cultura como um bem fundamental. Muitosveem a cultura como um mero ornamento, um penduricalho, um arti-go de luxo. Mas a história e os documentos internacionais vêm com-provar que o direito à cultura é um dos mais importantes direitos fun-damentais contemporâneos, pois só por meio de sua garantia é queos povos respeitarão a identidade cultural, ideológica, social e religi-osa uns dos outros. No período de intolerância em que vivemos, acultura certamente é um baluarte na disseminação de alternativaspacíficas de solução de conflitos, além de ser meio de expressão dacriatividade, da inovação, do prazer, da beleza e do saber humanos.

Nesse contexto histórico, a Constituição brasileira de 1988,apesar do defeito de redação – pois insere a cultura no título quetrata da ordem social em vez de incluí-la no título que trata dosdireitos fundamentais –, consagra o direito à cultura como um di-reito fundamental do cidadão brasileiro, sendo esta a conclusão

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que se chega por meio da análise de obras de abalizadosconstitucionalistas pátrios. Para comprovar este caráter fundamen-tal do direito à cultura, optou-se no trabalho em tela por, primei-ramente, definir o termo cultura, fazendo um estudo interdisciplinarentre as diversas áreas do conhecimento que estudam o tema, par-tindo-se, logo após, para a definição e caracterização de direitofundamental, com o objetivo de situar e de determinar a naturezajurídica do direito à cultura, para, enfim, tratar mais especificamen-te sobre o direito à cultura, primeiramente na órbita internacionale, logo depois, no direito constitucional pátrio.

Destarte, a hipótese lançada de que, mesmo não constando odireito à cultura expressamente nos artigos que tratam dos direitosfundamentais do cidadão brasileiro na Constituição Federal, eledeve ser considerado como tal, devido à sua natureza jurídica. Issoporque além de o direito à cultura ser um direito social insofismável,ligado que é ao direito à educação e ao direito ao lazer, expressa-mente consagrados no artigo 6º da Constituição Federal, tambémé ele objeto de diversos tratados internacionais, que, por disposi-ção constitucional, podem acrescentar direitos fundamentais ao rolelencado na Carta Magna de 1988. Constatando-se que o direito àcultura é, sem sombra de dúvidas, um direito fundamental de se-gunda geração, conclui-se, por interpretação do parágrafo primei-ro do artigo 5º da Constituição Federal, que, tal como os outrosdireitos fundamentais, deve ter aplicação imediata. E mais, o direi-to à cultura, especialmente os direitos culturais de natureza indivi-dual, não pode ser suprimido pelo poder constituinte derivado pormeio de emendas, pois faz parte do núcleo imutável da Constitui-ção Federal denominado pela doutrina de cláusulas pétreas (art.60, § 4º, IV), conforme entendimento de substanciosas doutrinasjurídicas. Ora, como o direito à cultura é um direito fundamental e,portanto, possui aplicação imediata, não se pode argumentar queas normas constitucionais que o consagram são programáticas, daía necessidade de se delinear os meios jurídicos necessários para darefetividade a esse direito.

Portanto, mais do que consagrar o direito à cultura, é necessá-rio dar-lhe efetividade, pois, jogado como está no limbo dos direi-tos de segunda dimensão, que incluem ainda os direitos sociais eeconômicos, é o mais relegado dos direitos, apesar de todos osdemais direitos fundamentais também serem flagrantemente vio-lentados. Escoltados por argumentos ideológicos de que os direi-tos de segunda dimensão são meramente normas programáticas,sem nenhuma efetividade e exequibilidade, doutrinadores e polí-ticos se recusam a dar-lhes o mínimo de eficácia, protelando-os adeternum.

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Buscar alternativas para tornar efetivos os direitos sociais, eco-nômicos e culturais é uma das tarefas mais honrosas para o estudi-oso do direito que não se contenta em elaborar fórmulas teóricassobre o mundo jurídico, mas que se compromete a transformar osubstrato social que lhe dá fundamento. Pois só por meio da reali-zação dos direitos fundamentais de segunda dimensão é que po-der-se-á falar em liberdade, igualdade e solidariedade, fundamen-tos dos direitos humanos.

A cultura é, sem sombra de dúvidas, a maior riqueza de umanação e como tal deve ser estimulada, incentivada e preservada, paraque todos os cidadãos tenham pleno acesso aos bens culturais. O di-reito à cultura, como o direito à educação, à saúde, a um meio ambi-ente saudável, é um direito básico de cidadania e todo Estado querespeita a dignidade da pessoa humana – prevista expressamente comoum dos fundamentos do Estado brasileiro (CF, art. 1º, III) – deve não sóprever, mas também garantir esse fundamental direito.

A partir da Constituição de 1988, felizmente, estão à disposi-ção dos cidadãos brasileiros vários instrumentos processuais e ad-ministrativos para dar efetividade ao direito à cultura, como umdireito de aplicação imediata que é, segundo interpretação do pró-prio dispositivo constitucional. Outrossim, na órbita internacionaltambém está garantido o direito de provocar os órgãos das NaçõesUnidas para dar efetividade aos direitos humanos consagrados nostratados internacionais.

Cabe aos cidadãos, portanto, tornar o direito à cultura um di-reito eficazmente protegido, pois o dinamismo da transformaçãohistórica social se dá, principalmente, pela atitude cidadã. Por issoé que hoje se fala em cidadania e democracia culturais, posto queo direito à cultura – assim como os demais direitos fundamentais –só será eficazmente garantido com a participação efetiva dos cida-dãos na construção das políticas públicas e na defesa intransigen-te, seja administrativa ou juridicamente, dos direitos que lhes sãoassegurados.

Para tanto, vale a participação efetiva nos conselhos munici-pais, estaduais e federais de cultura e de patrimônio histórico, nascomissões de incentivo à cultura, nas associações, nas fundações enos institutos que promovem a cultura e a cidadania e, sobretudo,vale a fiscalização e a exigência diuturnas do cumprimento das fun-ções e atividades públicas atribuídas às autoridades constituídas.Só assim, com o verdadeiro exercício da cidadania, é que dar-se-áefetividade ao direito à cultura e a todos os outros direitos assegu-rados ao cidadão.

O Brasil, como um caldeirão de raças e culturas diversificadas,tem uma lição de harmonia e de respeito à diferença a dar ao

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mundo, cercado de conflitos ideológicos, étnicos e culturais, e issosó será possível se forem garantidos a todos os cidadãos os direi-tos culturais assegurados pela Constituição brasileira e pelos tra-tados internacionais. Para tanto, cabe aos governantes, com a par-ticipação ativa da comunidade de cidadãos, inserir em suas políti-cas formas efetivas de garantia dos direitos culturais,universalizando os bens e instituições culturais sem, no entanto,privilegiar determinados grupos em detrimento de outros, tratan-do com o devido respeito e com os mecanismos adequados deincentivo as manifestações culturais, conforme sua especificidadee importância social.

O histórico texto constitucional de 1988, que, pela primeiravez, tratou de forma sistemática e abundante sobre o direito à cul-tura, consagrando os direitos à participação cultural, à liberdadede expressão cultural, aos direitos autorais, à proteção dopatrimônio histórico-cultural, à cooperação cultural internacional,à criação, ao acesso e à difusão cultural, só deixará de ser “letramorta” quando a democracia cultural for exigida pelos próprioscidadãos. Meios legais para esse exercício cidadão foramdisponibilizados no texto constitucional e na legislação ordináriabrasileira, cabendo aos cidadãos lançarem mão dessas garantiasquando o seu direito for violado ou não for atendido.

A cultura promove a inserção social das classes alijadas doprocesso de desenvolvimento nacional, além de ser instrumentode geração de emprego e renda e de contribuir para a reduçãoda violência. A cultura desenvolve a criatividade, o prazer, os sen-tidos, as emoções, enfim, torna as pessoas mais sensíveis ao outro,ao diferente, ao novo. A cultura gera divisas econômicas, fortale-ce ideologias, dissemina a paz. Proteger as culturas nacionais egarantir instrumentos jurídicos eficazes à sua proteção, dissemi-nação e exercício é garantir a própria sobrevivência do Estadoenquanto nação, pois a cultura é a argamassa que une e ao mes-mo tempo diferencia as diversas nações e regiões. Por isso e poroutras inúmeras razões, é que os direitos culturais são fundamen-tais não somente para a preservação e evolução da civilizaçãobrasileira, mas também e principalmente para que o cidadão bra-sileiro, seja qual for sua raça, cor, cultura ou religião, tenha asse-gurada a sua dignidade enquanto pessoa humana. Pois, comobem observou Marx (apud VALENTINO SOBRINHO, 1996, p. 586),uma sociedade somente será justa quando garantir a um meninoque nascer com o talento de um Mozart todas as condições paratornar-se outro Mozart.

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RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE CRÉDITOS E PARAÍSOS FISCAIS

Recuperação judicial de créditose paraísos fiscais

Gilberto Moreira CostaProcurador da Fazenda Nacional

Ex-advogado da CAIXA

RESUMO

A presente investigação, sem a pretensão de esgotamentodo tema, pretende suscitar reflexões acerca das possibilidades elimites da atuação do Poder Judiciário na recuperação de créditosdiante de devedores estabelecidos ou com seus patrimôniosblindados em países, províncias ou estados componentes de paísessoberanos considerados paraísos fiscais de forma que a angústiados credores destes devedores “intocáveis” seja, ao menos,minorada com a esperança de efetividade judicial na satisfaçãode seus créditos.

Palavras-chave: Recuperação judicial de créditos. Paraísosfiscais. Blindagem Patrimonial Off-Shore. Cooperação jurídicainternacional.

ABSTRACT

This research, without claiming to exhaust the subject, aimsto encourage reflection on the possibilities and limits of judicialpower in the recovery of claims on debtors established or shieldedtheir assets in countries, provinces or states components ofsovereign haven tax so that the anguish of the creditors of thesedebtors ‘untouchables’ is, at least, eased with the hope ofeffectiveness in meeting their legal claims.

Keywords: Recovery of credits by judicial power. Tax havens.Equity Shield Off-Shore. International legal cooperation.

Introdução

Não há quem goste de pagar impostos. Ao longo da Histórianão faltam exemplos de guerras, revoluções com ruptura da or-dem social motivadas, ou mesmo deflagradas, pela insatisfação comexcessos na cobrança de tributos.

Um exemplo pouco conhecido desse recorrente sentimentohistórico se refere ao tempo em que a cobrança de impostos foi“privatizada”.

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GILBERTO MOREIRA COSTA ARTIGO

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Findo o Império Romano, seu vasto território passou a ser alvoda cobiça dos chamados povos bárbaros, tribos que mais tarde tor-nar-se-iam reinos até a constituição dos Estados Nacionais.

Os reis francos, antecessores distantes dos atuais franceses, naconquista sangrenta de territórios valiam-se do então complexosistema de tributação deixado pelos romanos, fonte de riquezapessoal dos reis e de cada guerreiro a seu serviço.

Assim cada guerreiro teria direito a parte das riquezas espolia-das, sem contar a expectativa que nutriam junto aos reis na obten-ção de recompensas pelos serviços a eles prestados, expectativa sa-tisfeita, até certo ponto, pelos reis merovíngios e carolíngeos.

Ocorre que os reis, mesmo reconhecendo o direito dos guer-reiros à obtenção de parte dos bens obtidos pelo sangue derrama-do, os dispensavam do pagamento daqueles devidos pelos povossubjugados, porém tentavam a captação de impostos incidentessobre os territórios incorporados aos seus reinos.

Obviamente que tal tributação direta sofreu resistência porparte dos guerreiros e a realeza saiu derrotada, ou seja, os impos-tos incidentes diretamente sobre propriedade das terras conquista-das foram “privatizados”, dado que eram pagos pelos camponesesaos conquistadores de tais territórios, e não aos reis a quem taisconquistadores deviam vassalagem. Assim, “franco” passou a signi-ficar livre de impostos, termo que até hoje significa isento de paga-mento (ARIÉS; DUBY, 2009, p. 413).

Hoje em dia é desnecessária a luta banhada em sangue paraque os agentes econômicos se vejam livres de impostos, basta quese estabeleçam nos paraísos fiscais.

1 Paraísos fiscais – breves considerações

O conceito inicial de paraíso fiscal conduz à ideia de país ouEstado soberano que não tributa ou tributa em valores oupercentuais baixos ou irrisórios a renda e o patrimônio das pessoas,físicas ou jurídicas, neles domiciliadas.

Com efeito, muitos desses países ou cidades-Estado espalha-dos pelo globo, normalmente com o propósito de atraírem capitaise patrimônios e fomentarem suas economias, passaram a não tri-butar ou mesmo a tributar em valores irrisórios os haveres daquelesque para lá resolvessem fixar seus domicílios, prática a rigor isentade maiores críticas, por se tratar de reflexo do exercício soberanode seu poder de tributar.

Ocorre que, diante do sucesso de tal “vantagem competitivaeconômica”, muitas regiões, províncias ou estados federados tam-bém adotaram tal prática, (exemplifique-se com as ilhas inglesas

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do Canal da Mancha Alderney, Guernsey, Jersey e Sark) bem como,na concorrência pela maior atratividade dos capitais e patrimôniosem busca de abrigo à tributação, passaram a oferecer e garantir osigilo total ou parcial das informações fiscais, financeiras e empre-sariais dos agentes econômicos neles domiciliados, inclusive peran-te as autoridades dos países de origem de tais agentes.

Tal sigilo garantiu abrigo seguro para riquezas e patrimôni-os de origem criminosa, servindo inclusive de plataforma para ofinanciamento de organizações criminosas transnacionais liga-das ao terrorismo, tráfico internacional de drogas e armas, entreoutras.

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Eco-nômico (OCDE) – entidade criada em 30 de setembro de 1961,mediante convenção firmada entre o Canadá e os Estados Unidosda América com os membros da Organização para a CooperaçãoEconômica Europeia, tendo como objetivo primacial a cooperaçãopara o desenvolvimento econômico entre seus membros – atentaao problema e levando em conta um padrão fiscal internacional,estabeleceu quatro critérios para considerar as jurisdições comoparaísos fiscais, a saber1:

a) inexistência de tributação, ou tributação meramente nomi-nal, sobre patrimônio ou renda;

b) ausência de transparência em relação às informações fiscais;c) locais onde as leis ou práticas administrativas impedem o in-

tercâmbio de informações fiscais e bancárias com outros governos;d) ausência de exigências e controle para os agentes econômi-

cos se estabelecerem ou exercerem suas atividades.Como corolário dessa definição, a OCDE passou a divulgar lis-

tas de países, ou territórios, tidos por paraísos fiscais, classificando-os tendo em conta o grau de cooperação internacional nocompartilhamento de informações fiscais e bancárias, sendo queem 2 de abril de 2009 publicou em seu sítio eletrônico duas listasde paraísos fiscais: a) a de países e territórios que não cooperam eb) a dos países que cooperam, subdividida esta em países e territó-rios que cooperam totalmente e países e territórios que cooperamparcialmente.2

Indubitavelmente os paraísos fiscais colocam em risco a satisfa-ção dos credores mundo afora, quando, no abuso do sigilo fiscal,bancário e empresarial, servem à proteção plena dos patrimôniosde devedores neles estabelecidos, prática usualmente denomina-da Blindagem Patrimonial Off-Shore.

1 Disponível em: <http//:www.oecd.org/documentprint/>. Acesso em: 25 out. 2011.2 Disponível em: <http//:www.oecd.org/taxhaven/list>. Acesso em: 27 out. 2011.

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2 Um caso de Blindagem Patrimonial Off-Shore

Durante a análise da estrutura societária de uma empresa gran-de devedora da Procuradoria da Fazenda Nacional em Minas Ge-rais, deparei-me com um caso emblemático de BlindagemPatrimonial Off-Shore.

Tratava-se de empresa estabelecida e em operação num muni-cípio da grande Belo Horizonte há mais de trinta anos, detentorade participação nacional significativa de seu segmento de merca-do, titular de marca renomada de seu principal produto decomercialização.

Pois bem, dita sociedade foi constituída sob a forma de socie-dade anônima de capital fechado, sendo que 99,99% das açõesrepresentativas de seu capital social era de titularidade de outrasociedade anônima de capital fechado, sua controladora.

Por sua vez, 99,99% das ações representativas do capital socialda sociedade controladora eram de titularidade da empresa [...] LLC,ou seja, uma Limited Law Company, sediada na cidade de Cheyenne,capital e maior cidade do estado norte-americano do Wyoming.

Através de alteração estatutária registrada na Junta Comercialde Minas Gerais, os antigos controladores da empresa, como numpasse de mágica, transferiram o controle da empresa para um esta-do componente dos Estados Unidos da América, tendo em vistaque referido estado garante o sigilo das informações empresariaisdas empresas sediadas em seu território e constituídas sob suas leis.

É este o aspecto inusitado e desanimador do caso, um estadocomponente da grande Federação Estadunidense passível de serdenominado paraíso fiscal, pelo fato de garantir sigilo de informa-ções referentes a empresas lá estabelecidas.

3 A legislação brasileira do Imposto de Renda e a lista daOCDE

O artigo 24 da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, quedispõe sobre o Imposto de Renda, estabelece critérios para o reco-nhecimento válido de dedução de despesas e apropriação de re-ceitas nas operações de venda de bens de serviços praticadas entrepessoas domiciliadas no Brasil com pessoas domiciliadas em paísessob regime de tributação favorecida, bem como conceitua os regi-mes fiscais privilegiados para fins de aplicação das mesmas regrasaplicáveis às operações praticadas com domiciliados em paraísosfiscais, nos seguintes termos3:

3 Disponível em: <http//:www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Leis/Ant2000/lei943096.htm>. Acesso em: 25 out. 2011.

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Art. 24. As disposições relativas a preços, custos e taxasde juros, constantes dos arts. 18 a 22, aplicam-se, tam-bém, às operações efetuadas por pessoa física ou jurídi-ca residente ou domiciliada no Brasil, com qualquer pes-soa física ou jurídica, ainda que não vinculada, residenteou domiciliada em país que não tribute a renda ou quea tribute a alíquota máxima inferior a vinte por cento.§ 1º Para efeito do disposto na parte final deste artigo,será considerada a legislação tributária do referido país,aplicável às pessoas físicas ou às pessoas jurídicas, con-forme a natureza do ente com o qual houver sido prati-cada a operação.§ 2º No caso de pessoa física residente no Brasil:I - o valor apurado segundo os métodos de que trata oart. 18 será considerado como custo de aquisição paraefeito de apuração de ganho de capital na alienação dobem ou direito; II - o preço relativo ao bem ou direitoalienado, para efeito de apuração de ganho de capital,será o apurado de conformidade com o disposto no art.19; III - será considerado como rendimento tributável opreço dos serviços prestados apurado de conformidadecom o disposto no art. 19; IV - serão considerados comorendimento tributável os juros determinados de con-formidade com o art. 22.§ 3º Para os fins do disposto neste artigo, considerar-se-á separadamente a tributação do trabalho e do capital,bem como as dependências do país de residência oudomicílio. (Incluído pela Lei nº 10.451, de 2002)§ 4º Considera-se também país ou dependência comtributação favorecida aquele cuja legislação não permi-ta o acesso a informações relativas à composiçãosocietária de pessoas jurídicas, à sua titularidade ou àidentificação do beneficiário efetivo de rendimentosatribuídos a não residentes. (Incluído pela Lei nº 11.727,de 23 de junho de 2008) (Vide art. 41da Lei 11.727/2008)Art 24-A. Aplicam-se às operações realizadas em regi-me fiscal privilegiado as disposições relativas a preços,custos e taxas de juros constantes dos arts. 18 a 22 des-ta Lei, nas transações entre pessoas físicas ou jurídicasresidentes e domiciliadas no País com qualquer pessoafísica ou jurídica, ainda que não vinculada, residente oudomiciliada no exterior. (Incluído pela Lei nº 11.727, de23 de junho de 2008)Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, conside-ra-se regime fiscal privilegiado aquele que apresentaruma ou mais das seguintes características: (Redaçãodada pela Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009)I - não tribute a renda ou a tribute à alíquota máximainferior a 20% (vinte por cento); (Incluído pela Lei nº11.727, de 23 de junho de 2008)II - conceda vantagem de natureza fiscal a pessoa físicaou jurídica não residente: (Incluído pela Lei nº 11.727, de23 de junho de 2008)

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a) sem exigência de realização de atividade econômicasubstantiva no país ou dependência; (Incluído pela Lei nº11.727, de 23 de junho de 2008)b) condicionada ao não exercício de atividade econômi-ca substantiva no país ou dependência; (Incluído pela Leinº 11.727, de 23 de junho de 2008)III - não tribute, ou o faça em alíquota máxima inferior a20% (vinte por cento), os rendimentos auferidos forade seu território; (Incluído pela Lei nº 11.727, de 23 dejunho de 2008)IV - não permita o acesso a informações relativas à com-posição societária, titularidade de bens ou direitos ou àsoperações econômicas realizadas. (Incluído pela Lei nº11.727, de 23 de junho de 2008)Art 24-B. O Poder Executivo poderá reduzir ou restabe-lecer os percentuais de que tratam o caput do art. 24 eos incisos I e III do parágrafo único do art. 24-A, ambosdesta Lei. (Incluído pela Lei nº 11.727, de 23 de junho de2008)Parágrafo único. O uso da faculdade prevista no caputdeste artigo poderá também ser aplicado, de formaexcepcional e restrita, a países que componham blocoseconômicos dos quais o País participe. (Incluído pela Leinº 11.727, de 23 de junho de 2008)

A Instrução Normativa SRF nº 188, de 6 de agosto de 2002,limitou-se a listar 23 países ou dependências com tributaçãofavorecida ou que oponham sigilo relativo à composição societáriade pessoas jurídicas, para fins de aplicação das normas do Impostode Renda.

Referida Instrução Normativa foi revogada em 4 de junho de2010 pela Instrução Normativa RFB nº 1.037, de 4 de junho de 2010,que, além de listar os países ou dependências tidos como paraísosfiscais, elencou em seu artigo 2º quais seriam os regimes fiscais pri-vilegiados, conforme adiante:

Art. 2º São regimes fiscais privilegiados:I - com referência à legislação de Luxemburgo, o regimeaplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a formade holding company; (Revogado pelo Ato DeclaratórioExecutivo RFB nº 3, de 25 de março de 2011)II - com referência à legislação do Uruguai, o regimeaplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a formade “Sociedades Financeiras de Inversão (Safis)” até 31de dezembro de 2010;III - com referência à legislação da Dinamarca, o regimeaplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a formade holding company;IV - com referência à legislação do Reino dos Países Bai-xos, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídassob a forma de holding company;

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III - com referência à legislação da Dinamarca, o regimeaplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a formade holding company que não exerçam atividade econô-mica substantiva; (Redação dada pela InstruçãoNormativa RFB nº 1.045, de 23 de junho de 2010)IV - com referência à legislação do Reino dos Países Bai-xos, o regime aplicável às pessoas jurídicas constituídassob a forma de holding company que não exerçam ativi-dade econômica substantiva; (Redação dada pela Ins-trução Normativa RFB nº 1.045, de 23 de junho de 2010)(Vide Ato Declaratório Executivo RFB nº 10, de 24 dejunho de 2010)V - com referência à legislação da Islândia, o regimeaplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a formade International Trading Company (ITC);VI - com referência à legislação da Hungria, o regimeaplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a formade offshore KFT;VII - com referência à legislação dos Estados Unidos daAmérica, o regime aplicável às pessoas jurídicas consti-tuídas sob a forma de Limited Liability Company(LLC) estaduais, cuja participação seja composta de nãoresidentes, não sujeitas ao imposto de renda federal;ouVIII - com referência à legislação da Espanha, o regimeaplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a formade Entidad de Tenencia de Valores Extranjeros(E.T.V.Es.);IX - com referência à legislação de Malta, o regime apli-cável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma deInternational Trading Company (ITC) e deInternational Holding Company (IHC).

Conforme dito anteriormente, a OCDE divulgou em 2 de abrilde 2009 duas listas de paraísos fiscais: a) a de países e territóriosque não cooperam e b) a dos países que cooperam, subdivididaesta em países e territórios que cooperam totalmente e países eterritórios que cooperam parcialmente.

Curiosamente, na lista dos países que cooperam totalmente seencontram Dinamarca, Holanda, Islândia, Hungria, Estados Unidosda América, Espanha e Malta, os mesmos que mereceram maioratenção da Receita Federal do Brasil, que, corajosamente, equipa-rou as operações praticadas para com tais nações, nas condiçõesque define, àquelas perpetradas por paraísos fiscais.

A razão de tal conduta reside no fato, surpreendente é verda-de, de que tais nações, democracias que funcionam sob o impériodo Estado Democrático de Direito, toleram práticas comerciais típi-cas de paraísos fiscais, especialmente a prática nefasta da blinda-gem patrimonial.

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4 A recuperação judicial de créditos

No Estado Democrático de Direito o Poder Judiciário detém,via de regra, o monopólio da força para a submissão legítima devontade resistente a uma pretensão legítima.

O credor necessita da intervenção judicial para buscar nopatrimônio do devedor recalcitrante o bem, ou seu valor em di-nheiro, necessário à satisfação de seu crédito; todavia, jurisdição éreflexo da soberania estatal, ou seja, esta é o limite daquela, assim,como superar a perplexidade quando o patrimônio do devedor,alvo do credor, estiver fora do alcance da jurisdição do feito, pelofato de sua titularidade estar acometida a pessoa jurídicadomiciliada em paraíso fiscal?

Quando a efetividade da jurisdição se vê ameaçada pelo prin-cípio da soberania das nações, necessária se faz a cooperação jurí-dica internacional de forma a garantir, via tratados e convenções,o intercâmbio entre as nações soberanas e o prestígio ao Princípioda Justiça Universal.

4.1 A cooperação jurídica internacional – uma novidadepromissora

Num mundo globalizado onde a comunicação flui em segun-dos e a transferência de recursos financeiros pode ser feita em diasou mesmo em horas, as cartas rogatórias, mecanismo tradicional decooperação jurídica entre Estados soberanos dada sua utilizaçãoeminentemente processual e a conhecida lentidão em suaefetivação, não atendem à demanda dos credores, pois, até que osatos de constrição patrimonial nelas contidos sejam de fatoimplementados junto à jurisdição rogada, o devedor já teve tem-po suficiente para se esquivar de seus efeitos.

Da necessidade de celeridade na efetivação de atos de coope-ração jurídica internacional surge um novo mecanismo de coope-ração que se convencionou chamar Auxílio Direto.

Ao contrário das cartas rogatórias que exigem juízo dedelibação atribuído ao Superior Tribunal de Justiça, os pedidos decooperação jurídica internacional feitos através do Auxílio Diretosão acometidos diretamente ao juízo de primeira instância4, sendoque o trâmite de tais pedidos é efetuado pela Autoridade Central,conceituação presente nos Tratados que preveem tal mecanismoexpedito de cooperação jurídica internacional.

No Brasil exerce a função de Autoridade Central em coopera-ção jurídica internacional a Secretaria Nacional de Justiça, por meio4 Art.7º da Resolução nº 9, de 4/5/2005, do Superior Tribunal de Justiça.

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do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídi-ca Internacional (DRCI), criado pelo Decreto nº 4.991, de 18 defevereiro de 2004.

As solicitações de Auxílio Direto baseiam-se em tratado ou acor-dos bilaterais (Mutual Legal Assistance Treatis ou MLATs) ou mesmona promessa de reciprocidade, na ausência de tratado entre Esta-do demandante e demandado, e constituem uma inovação pro-missora, verdadeiro alento aos credores, pois, a despeito de seremmais frequentes os que versam sobre matéria penal e de família,não obstam a que as nações possam cooperar em matéria tributá-ria ou empresarial, prevendo, inclusive, mecanismos cautelares, taiscomo o sequestro de bens e o congelamento de ativos financeiros(BRASIL, 2008, p. 26-27).

4.2 A desconsideração da personalidade jurídica – a coragemna busca de efetividade na prestação jurisdicional

As técnicas modernas de cooperação jurídica internacional sãoalvissareiras, mas ainda estão longe de significar um cenário práti-co e confiável de luta pela recuperação de créditos diante da Blin-dagem Patrimonial Off-Shore pelos devedores.

De toda forma, mesmo num cenário ideal de pleno e célerefuncionamento de tais mecanismos internacionais de cooperação,a eficácia esperada de sua aplicação pode ser comprometida pelacriatividade, digamos assim, dos agentes econômicos envolvidos emoperações internacionais de blindagem.

Uma das formas usuais de Blindagem Patrimonial Off-Shoreconsiste na constituição de sociedades cujo capital, integralizadocom o patrimônio que se pretende blindar, é representado por tí-tulos ao portador, assim, a empresa existe e pratica os atos empre-sariais através de um Diretor ou Procurador, porém seus sócios nãosão passíveis de identificação, pois são aqueles que detêm a possedos referidos títulos.

Ora, mesmo que o credor dos supostos sócios obtivesse êxitonuma resposta efetiva e célere no manejo de mecanismos inter-nacionais de cooperação judicial, teria que conviver com a frus-tração e a perplexidade ao se deparar com uma empresa sob apropriedade de verdadeiros fantasmas, sem nome ou domicílioidentificáveis.

O Direito foi capaz de reconhecer efeitos jurídicos à pratica deatos por parte de uma ficção – a pessoa jurídica –, dada suainexistência na dimensão sensível e material de nosso plano fático.

Porém, repugna ao Direito a proteção do abuso, da fraude,da má-fé, especialmente quando, sob seu pretenso regular exercí-

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cio, se está abusando das formas na prática dos atos com o nítidointeresse de prejudicar a outrem.

A Desconsideração da Personalidade Jurídica tal como pre-vista na cláusula geral a que se refere o artigo 50 do Código Civilde 2002 constitui ferramenta de extraordinária utilidade para oafastamento ocasional da autonomia da pessoa jurídica para quesejam excutidos os bens dos sócios ou administradores para finsde viabilizar a satisfação dos créditos contraídos pela pessoa jurí-dica.

Referido artigo contempla a denominada Teoria Maior daDesconsideração da Personalidade, eis que sua aplicação exigeprova da insolvência da pessoa jurídica, bem como a demonstra-ção de desvio de finalidade (Teoria Subjetiva da Desconsideração)ou de confusa patrimonial, também denominada DesconsideraçãoDireta.

A criatividade dos que pretendem fraudar é bem maior doque o texto da lei supõe, assim, a interpretação judicial do institu-to contemplou a chamada Desconsideração Inversa, situação naqual, demonstrados os requisitos do instituto, afasta-se a autono-mia da pessoa jurídica para atingir não o patrimônio dos sócios,mas sim o da própria sociedade para a satisfação das obrigaçõescontraídas por aqueles.

Com menor aplicabilidade, dado o caráter drástico da medidae o risco de instabilidade no mundo dos negócios com impacto novolume de investimentos capitalistas, há a Teoria Menor daDesconsideração da Personalidade, que prescinde do requisito daconfusão patrimonial e prova de insolvência, bastando a ocorrên-cia do prejuízo ainda que culposo, hipótese presente na legislaçãoambiental.

Assim, trata-se de mecanismo legal capaz de devolver a crençana efetividade da justiça, mediante a retomada do uso correto eadequado das formas jurídicas utilizadas indevidamente eabusivamente para a prática de fraudes em detrimento dos credo-res e da economia e da credibilidade do sistema capitalista.

O temor de que o uso indiscriminado do instituto possa com-prometer a segurança jurídica necessária à normalidade da vidaempresarial e enfraquecer o empreendedorismo que caracteriza umaeconomia de mercado não se sustenta, pelo fato de que o Judiciá-rio o tem utilizado com critério, desde que provados seus requisi-tos, que, no caso da Teoria Maior, são de ordem subjetiva e objeti-va, aplicando-o sempre a determinados atos ou seus efeitos.

No REsp 948.117, a eminente relatora Nancy Andrighi pon-tuou com precisão o caráter finalístico do instituto, conforme adi-ante:

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Assim procedendo, verifica-se que a finalidade maiorda disregard doctrine, contida no referido preceito le-gal, é combater a utilização indevida do ente societáriopor seus sócios. A utilização indevida da personalidadejurídica da empresa pode, outrossim, compreender tan-to a hipótese de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoajurídica para fraudar terceiros, quanto no caso de eleesvaziar o seu patrimônio pessoal, enquanto pessoanatural, e o integralizar na pessoa jurídica, ou seja, trans-ferir seus bens ao ente societário, de modo a ocultá-losde terceiro.

Por se tratar de cláusula geral, não há razão para limitar seuuso em favor dos credores de obrigações civis, contratuais ouextracontratuais, pode perfeitamente se valer do instituto o credortrabalhista ou mesmo o fisco, por exemplo, sendo desnecessária areprodução do instituto em todo e qualquer subsistema jurídicoque trate do correto cumprimento de obrigações e dos meios paraa garantia eficaz de tal cumprimento.

4.3 Um caso de aplicação judicial drástica da Teoria daDesconsideração diante de devedor com sede em paraísofiscal

A falência é o evento mais dramático na vida de uma em-presa. Imagine-se o grau de dramaticidade na vida de uma em-presa por sofrer os efeitos da decretação de falência de outraempresa em razão de ter entendido o Judiciário que ambas,mesmo que não possuam entre si vínculos societários formais,teriam praticado atos negociais simulados com o único propósi-to de ocultação do patrimônio da empresa falida em desfalquedos credores desta.

Pois é este o contexto de decisão proferida pela Terceira Tur-ma do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do Re-curso Especial nº 1.259.018-SP, datada de 9/8/2011, DJe de 25/8/2011, cujo acórdão restou assim ementado:

PROCESSO CIVIL. FALÊNCIA. EXTENSÃO DE EFEITOS. SO-CIEDADES COLIGADAS. POSSIBILIDADE. AÇÃO AUTÔ-NOMA. DESNECESSIDADE. DECISÃO INAUDITA ALTE-RA PARTE. VIABILIDADE. RECURSO IMPROVIDO.1. Em situação na qual dois grupos econômicos, unidosem torno de um propósito comum, promovem uma ca-deia de negócios formalmente lícitos mas com intuitosubstancial de desviar patrimônio de empresa em situ-ação pré-falimentar, é necessário que o Poder Judiciá-rio também inove sua atuação, no intuito de encontrarmeios eficazes de reverter as manobras lesivas, punin-do e responsabilizando os envolvidos.

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2. É possível ao juízo antecipar a decisão de estender osefeitos de sociedade falida a empresas coligadas na hi-pótese em que, verificando claro conluio para prejudi-car credores, há transferência de bens para desviopatrimonial. Inexiste nulidade no exercício diferido dodireito de defesa nessas hipóteses.3. A extensão da falência a sociedades coligadas podeser feita independentemente da instauração de pro-cesso autônomo. A verificação da existência de coliga-ção entre sociedades pode ser feita com base em ele-mentos fáticos que demonstrem a efetiva influência deum grupo societário nas decisões do outro, independen-temente de se constatar a existência de participação nocapital social.4. Na hipótese de fraude para desvio de patrimônio desociedade falida, em prejuízo da massa de credores,perpetrada mediante a utilização de complexas formassocietárias, é possível utilizar a técnica dadesconsideração da personalidade jurídica com novaroupagem, de modo a atingir o patrimônio de todos osenvolvidos.5. Recurso especial não provido.

As empresas perpetraram variados e complexos negócios jurí-dicos com o propósito de desfalcar o patrimônio da empresa fali-da, quando ainda se encontrava em estado empresarial comatoso,e ocultá-lo perante seus credores, valendo-se do uso ilegítimo eirregular das formas jurídicas negociais, tudo sob uma aparênciade exercício legítimo da liberdade contratual.

O Tribunal a quo, em decisão mantida pelo STJ, manejandoo instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, esten-deu os efeitos da decretação da quebra de uma empresa a todasas outras que, em conluio com esta, teriam simulado, em verda-deiras pantomimas, atos negociais cujo conteúdo verdadeiro eradeletério aos credores da empresa moribunda, assim agindo oTribunal para levantar o véu de normalidade de todas e restauraro status quo ante patrimonial da falida para a satisfação de seuscredores.

A decisão é drástica em razão da magnitude e da complexida-de dos atos perpetrados e da consequência nefasta destes, tendo oTribunal chegado ao extremo de reconhecer a ocorrência de socie-dades coligadas de fato, mesmo que sem a prova do requisito daparticipação acionária cruzada, previsto na Lei das S/A.

Observa-se que a gravidade da reação judicial funda-se nofato de que o patrimônio sob ocultação teve sua titularidade finalacometida a empresas off-shores sediadas na Ilhas Virgens Britâni-cas, renomado paraíso fiscal, conforme trecho do voto condutorque abaixo se reproduz:

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Isso é especialmente significativo quando nos debruça-mos sobre a operação societária aqui descrita, consis-tente em arrendamento de bens, posteriorinadimplemento da arrendante, retomada judicial dagarantia, constituição de empresas para a administra-ção desses bens e seu posterior redirecionamento a su-cessivas sociedades que, na forma, são aparentementeindependentes, mas cujo capital social é, na maioria dasvezes, detido por sociedades off shore cuja efetiva pro-priedade não é dado aos credores da massa falida co-nhecer.( fl.12/14)

Diante de verdadeiro enredo jurídico para fins exclusivos deblindagem patrimonial, a relatora fundamenta o uso e a necessi-dade de aplicação do mecanismo da Desconsideração da Persona-lidade em desfavor das empresas envolvidas conforme adiante,verbis:

É possível coibir esse modo de atuação mediante o em-prego da técnica da desconsideração da personalidadejurídica, ainda que, para isso, seja necessário dar-lhenova roupagem. Para as modernas lesões, promovidascom base em novos instrumentos societários, são ne-cessárias soluções também modernas e inovadoras. Adesconsideração da personalidade jurídica é técnica de-senvolvida pela doutrina diante de uma demanda soci-al, nascida da praxis, e justamente com base nisso foiacolhida pela jurisprudência e pela legislação nacional.Como sói ocorrer nas situações em que a jurisprudênciavem dar resposta a um anseio social, encontrando no-vos mecanismos para a atuação do direito, referida téc-nica tem de se encontrar em constante evolução paraacompanhar todas as mutações do tecido social e coibir,de maneira eficaz, todas as novas formas de fraudemediante abuso da personalidade jurídica.

A decisão não é uma ameaça à livre iniciativa e estabilidadejurídica dos negócios privados, pilares de uma economia capitalis-ta de mercado, mas sim uma correta, atual e corajosa resposta doPoder Judiciário ao uso abusivo da forma em prejuízo dacredibilidade da mesma economia de mercado cuja solidez e res-peitabilidade dependem do correto e adequado cumprimento dasobrigações e deveres por parte de seus agentes.

Conclusão

A guerra fiscal entre nações, mecanismo de atração de patri-mônios sob a promessa de baixa ou nenhuma tributação, para finsde fomento das economias de países ou dependência destes trou-xe como consequência nefasta a proliferação de ambientes de pro-

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teção e blindagem de patrimônios, muitos produtos de crime, emprejuízo tanto no combate aos crimes transnacionais quanto doscredores dos titulares de tais patrimônios.

Democracias estruturadas sob o império do Estado Democráti-co de Direito dependem do vigor, solidez, agilidade e criatividadedo Poder Judiciário mediante a prestação jurisdicional reparatóriamesmo diante de empecilhos aparentemente intransponíveis, comoa soberania das nações.

A despeito de o Brasil se inserir na busca de mecanismos mo-dernos de cooperação jurídica internacional a fim de fazer preva-lecer os interesses dependentes da colaboração de nações sobera-nas, o Superior Tribunal de Justiça, ao confirmar a correção no usoda Desconsideração da Personalidade Jurídica diante da Blinda-gem Patrimonial Off-Shore quando lesiva aos credores, lança sen-da promissora, corajosa e juridicamente equilibrada para reprimirprática tão odiosa quanto prejudicial à credibilidade doordenamento jurídico e à dignidade do próprio Poder Judiciário.

Referências

ARIÉS, Philippe; DUBY,Georges. História da Vida Pri-vada, I. São Paulo: Companhiadas Letras, 2009.

BRASIL. Ministério da Justi-ça. Manual de Cooperação Ju-rídica Internacional e Recu-peração de Ativos. Brasília,2008. 536 p.

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O ESTADO E SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

O Estado e sua responsabilização civil

Lisandra de Andrade PereiraBacharel em Ciências Jurídicas e Sociais

no Rio Grande do Sul

RESUMO

O presente trabalho aponta a importância do estudo daresponsabilidade civil, no tocante à responsabilidade civil do Estado.Nesse estudo é apresentado o conceito da responsabilidade civildo Estado, suas origens, fundamentos e peculiaridades,examinando suas características e traços distintivos nas hipótesesde ação e omissão, ressaltando quais são os impactos destaresponsabilidade e a que efeitos se destinam. É utilizado o métodoinvestigativo na realização de um paralelo entre a doutrina,princípios constitucionais e jurisprudência. Conclui-se que o Estadotem a obrigação de ressarcir os danos causados a terceiros porsuas atividades.

Palavras-chave: Estado. Administração Pública. Responsabi-lidade. Responsabilização civil do Estado.

ABSTRACT

The present essay is aimed towards evidencing theimportance of studying Civil Liability, mainly concerning the CivilLiability of the State. In this sense, this essay will present theconcept of State’s Civil Liability, its origins, basis and peculiarities,analyzing its characteristics and distinctive traits regarding actionand omission and emphasizing the impacts of this liability and itseffects. An investigative method and approach will be used todraw a parallel between the doctrines, constitutional principlesand court precedents. In conclusion, the State is liable forcompensating any damages caused by it to third parties.

Keywords: State. Government. Liability. State Civil Liability.

Introdução

Neste estudo, tratar-se-á da obrigação do Estado de reparar osdanos causados, seja por ação ou omissão dos seus agentes.

O trabalho será desenvolvido, primeiramente, por meio de umapesquisa doutrinária, que consistirá na investigação do conceitode responsabilidade civil, sua evolução histórica, seus elementosconstitutivos e suas espécies.

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LISANDRA DE ANDRADE PEREIRA ARTIGO

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Serão trazidos os aspectos da teoria geral da responsabilidadecivil em nosso ordenamento jurídico. Os pressupostos da responsa-bilidade civil, tais como a conduta do agente, o nexo causal e odano – elementos estes essenciais na caracterização do dever deindenizar –, a distinção entre as modalidades de responsabilidadecivil, objetiva e subjetiva, bem como suas teorias.

Após, será desenvolvido um paralelo com a doutrina e princí-pios constitucionais que norteiam a responsabilidade civil do Esta-do, baseando-se em fundamentos jurídico-constitucionais.

No tocante à responsabilidade civil do Estado, a riqueza dehipóteses demonstra a relevância do tema e a necessidade de sedesenvolver um estudo minucioso do conceito de responsabilida-de civil, especialmente no que diz respeito ao Estado, apontandoas suas origens e fundamentos, bem como, se estão sendo garanti-dos os direitos e deveres previstos na Constituição Federal.

O trabalho buscará apresentar o conceito de responsabilidadecivil do Estado, apontando as suas origens, fundamentos e peculi-aridades, examinando, sob a perspectiva dos princípios constituci-onais, suas características e traços distintivos nas hipóteses de açãoe omissão, ressaltando quais são os impactos desta responsabilida-de e a que efeitos se destinam.

Será analisada, neste estudo, a obrigação do Estado de repa-rar o dano causado, seja por ação ou omissão dos seus agentes,não exigindo que estes estejam em serviço quando da prática doato danoso, bastando apenas que esteja relacionado à função.

Há, ainda, casos em que o Estado se vale de serviçosterceirizados; porém, da mesma forma, se estes causarem danos, oEstado não pode eximir-se de reparar.

Os problemas abordados e explorados neste estudo serão quan-to à responsabilidade civil do Estado, quando e por quais razões oEstado passa a ter a obrigação de reparar e como o Estado respondenos casos em que a obrigação de reparar nasce de sua omissão.

O objetivo deste trabalho é fazer uma análise das atribuiçõesdo Estado no que diz respeito à responsabilidade civil, compreen-dendo, assim, a importância desse instituto.

1 A responsabilidade civil

Com o presente estudo analisaremos, no que diz respeito àresponsabilidade civil, sua evolução histórica, seu conceito e fun-ção, bem como seus elementos essenciais – conduta humana, nexocausal e dano – à caracterização do dever de indenizar. Apontan-do, também, a distinção entre as modalidades de responsabilidadecivil, objetiva e subjetiva, bem como suas teorias.

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O ESTADO E SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

1.1 Evolução histórica da responsabilidade civil

A responsabilidade civil tem sua origem no direito romano,criador do princípio “non neminen leadere”, ou seja, não lesarninguém (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 1).

Teve como fase inicial a vingança privada, uma fase selvagem,em que se fazia justiça com as próprias mãos. A vítima, em um atoinstintivo, buscava ressarcir-se daquilo que perdeu vingando-se doseu opressor. Nessa época, a Lei de Talião (Lei das XII Tábuas) de-monstrava a reparação em “olho por olho, dente por dente” ou“quem com ferro fere com ferro será ferido”.

Após essa primeira fase, veio a fase da composição voluntária,em que se passou da vingança para algo que aprouvesse melhor,ou seja, iniciou-se a busca de reparação através de bens ou dinhei-ro. A própria vítima escolhia o bem ou quantia e, assim, fazia oresgate de sua culpa. Nesta fase existia o perdão, assim, em vez detambém ofender quem lhe agrediu, a vítima podia pedir dinheiroou outro bem de seu interesse (GONÇALVES, 2009, p. 4).

Na terceira fase, chamada de composição tarifária, o Estadopassa a intervir, pois havia danos que repercutiam não somente noâmbito privado, mas na sociedade e, por este motivo, passou-se atarifar os danos. A partir de então, a vítima passou a pedir ao Esta-do e não fazer mais justiça com as próprias mãos. Nessa fase, ini-ciou-se o que hoje se entende por indenização (GONÇALVES, 2009,p. 4).

No entanto, os romanos, após essa terceira fase, realizaram umplebiscito e assim deram origem a Lex Aquilia, introduzindo o ele-mento culpa e trazendo também a ideia de uma reparação pro-porcional ao dano causado. Antes bastava o dano, com a LexAquilia passa-se a exigir o elemento culpa “in lege Aquilia etlevissima culpa venit”, ou seja, bastava a culpa, ainda que levíssima,para haver o dever de indenizar (GONÇALVES, 2009, p. 5).

O Código de Napoleão (1804), que criou a teoria subjetiva,aprimorou a Lex Aquilia, e em seu artigo 1382, em que trata daresponsabilidade civil, acolheu a culpa (GONÇALVES, 2009, p. 6).Mais tarde, a responsabilidade subjetiva aparece no artigo 159 doCódigo Civil de 1916, permanecendo hoje no Código Civil de 2002,em seu artigo 186.

1.2 Conceito e função da responsabilidade civil

A responsabilidade civil nasce da violação a um dever jurídicopreexistente. Traz a ideia de uma obrigação, mas uma obrigaçãosecundária, pois surge após a violação a um direito (obrigação ori-ginária), trazendo assim um dano.

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Havendo o dano, causa-se também o rompimento do equilí-brio econômico-jurídico. No entanto, esse rompimento não precisaser apenas do equilíbrio econômico-jurídico, podendo ser tambémpsicológico, quando haverá o dano moral. No dano moral, não sebusca uma reparação, vez que o dano é irreparável, mas sim umacompensação.

A função da responsabilidade civil é tornar “indene” a vítima,ou seja, sem o dano. A reposição desse desequilíbrio pode ser feitade forma natural ou pecuniária.

O objetivo da responsabilidade civil é a “restitutio in integrum”,ou seja, a restituição integral. A regra é indenizar os danos, nadamais, nada menos, levando a vítima ao “status quo ante”(CAVALIERI FILHO, 2010, p. 13).

Conclui-se, então, que a responsabilidade civil tem, em algunscasos, outra função que não a de reparação, mas sim a de compen-sação e punição ao ofensor.

1.3 Elementos da responsabilidade civil

A responsabilidade civil divide-se em duas espécies: responsa-bilidade subjetiva e responsabilidade objetiva.

Os elementos da responsabilidade civil, comuns à responsabi-lidade objetiva e subjetiva, são a conduta humana (ação ou omis-são), o nexo de causalidade e dano ou prejuízo. Além desses ele-mentos, a culpa (elemento acidental da responsabilidade) deve estarpresente na responsabilidade subjetiva.

1.3.1 Conduta humana

A conduta humana (culposa e voluntária) está prevista no ar-tigo 186 do Código Civil, caracterizada pela expressão “ação ouomissão”. A ação é a exteriorização da conduta, um comportamentopositivo. Já a omissão podemos definir como um comportamentonegativo, ou seja, é quando o agente tinha o dever de agir e im-pedir o resultado, mas não o fez.

A ação ou omissão “é o aspecto físico, objetivo, da conduta,sendo a vontade o seu aspecto psicológico, ou subjetivo”(CAVALIERI FILHO, 2010, p. 24). A omissão é um comportamentonegativo, ou seja, não agir quando deveria. Então, a rigor, nãocausaria dano físico e material, pois nada foi feito. Porém, o enten-dimento é que o não agir, quando deveria, torna a pessoa respon-sável, pois acaba por permitir que a causa se opere e essa omissãoadquire relevância jurídica.

A responsabilidade pode derivar de ato próprio, de ato deterceiro que esteja sob a guarda do agente e, ainda, de danos

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causados por coisas e animais que lhe pertençam (nesse caso, emregra é objetiva, independe de culpa).

1.3.2 Culpa

O elemento culpa (lato sensu) é considerado um elemento nãoessencial, um elemento acidental e está presente somente na res-ponsabilidade subjetiva. Ora deverá ser comprovado para que avítima tenha êxito na sua ação, ora será dispensado por completo.A exigência ou a dispensa desse elemento dependerá da espéciede teoria que irá fundamentar a ação indenizatória, isto é, se sub-jetiva, a prova desse elemento se torna necessária; se objetiva, édispensada por completo.

Esse elemento subjetivo, culpa, lato sensu, divide-se em culpastricto sensu (negligência, imprudência e imperícia) e dolo. Por doloentende-se uma conduta intencional, ou seja, uma vontade cons-ciente dirigida à prática de um resultado ilícito causando assim danoa outrem (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 31).

Essa culpa caracteriza-se em um comportamento humano vo-luntário que se exterioriza por meio de uma ação ou omissão, assimproduzindo consequências jurídicas. Nesse caso, a conduta culposado agente é o pressuposto principal da obrigação de indenizar.

Uma das maiores fontes geradoras do dever de indenizar é oato ilícito, ou seja, um ato praticado em contrariedade ao direito.

O ato ilícito também está previsto no artigo 186 do CódigoCivil e exige, para a sua caracterização, além da contrariedade aodireito, a prova da culpa do agente (lato sensu), ou seja, deve-seprovar se o agente agiu ou se omitiu dolosamente (conduta inten-cional) ou pela culpa stricto sensu (negligência, imprudência ouimperícia), o dano e o nexo causal. Se esses três elementos se carac-terizarem, haverá o dever de indenizar.

Portanto, percebe-se que a culpa é o cerne da teoria da res-ponsabilidade civil subjetiva, ou seja, triunfa a culpa, enquanto aresponsabilidade objetiva independe de culpa.

Culpa é um dos pressupostos da responsabilidade civil. É a “vi-olação de dever objetivo de cuidado, que o agente podia conhe-cer e observar” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 32). Pode-se dizer quehouve culpa stricto sensu quando o prejuízo da vítima é decorren-te de comportamento negligente, imprudente ou imperito do au-tor do dano. A culpa implica a violação de um dever de diligência,ou em outras palavras, a violação do dever de previsão de certosfatos ilícitos e de adoção das medidas capazes de evitá-los.

Para a caracterização da culpa, o critério para aferição da dili-gência exigível do agente é o da comparação de seu comporta-

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mento com o do homo medius (homem médio), que diligentementeprevê o mal e precavidamente evita o perigo. A culpa stricto sensué também chamada de culpa aquiliana.

Portanto, constata-se que a responsabilidade civil consiste emreparar um conflito preexistente, originado em uma condutaomissiva ou comissiva, dolosa ou culposa, e que não se configurana inexistência de um dano.

1.3.3 Nexo causal

O nexo causal é a relação de causa e efeito entre a ação ouomissão do agente e o dano verificado. Sem ele, não existe a obri-gação de indenizar. Sabe-se que, para que haja a responsabilizaçãodo agente, não basta somente a prática de uma conduta ilícita porparte deste e que a vítima tenha sofrido um dano. Faz-se necessá-rio que esse ato ilícito realmente seja a causa deste dano, ou seja,que o prejuízo seja resultado desse ato ilícito.

Sem a prova efetiva de que tal ato tenha sido relevante para oresultado danoso, não haverá obrigação de indenizar. O nexo decausalidade é elemento necessário para configurar o dever de in-denizar.

Conclui-se, então, que, além da ilicitude, a conduta positivaou negativa, a culpabilidade ou dolo e o dano causado a outrem,é essencial a verificação da relação de causa e efeito, ou seja, onexo causal entre a conduta indevida e o dano causado.

Tanto na responsabilidade civil subjetiva como na responsabi-lidade civil objetiva, o nexo causal é indispensável, pois, como jámencionado, é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissãodo agente e o dano verificado, e é imprescindível sua comprova-ção.

1.3.4 Dano

Dano é lesar, invadir, violar direito alheio, portanto, é causarprejuízo. A partir desse prejuízo, surge o dever de reparar/indeni-zar, como bem estipulado no caput do artigo 927, do Código Civilde 2002.

Não existe responsabilidade civil sem o dano (CAVALIERI FI-LHO, 2010, p. 73), e esse dano tem que ser atual, certo, direto, deveter subsistência e, claro, violação a um interesse jurídico, materialou moral, sem o qual não há que se falar em indenização. Portan-to, o dano já deve ter ocorrido no momento do ajuizamento daação, por isso classificado como “atual” – o que não significa im-possibilidade de indenização por danos futuros, desde que sejapossível de apurar que eles certamente ocorrerão, ainda que num

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O ESTADO E SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

futuro próximo (GONÇALVES, 2009, p. 589) –; dano certo, que éaquele que foi efetivamente produzido, realmente ocorreu, poisnão se indenizam danos hipotéticos (CAVALIERI FILHO, 2010,p. 75); direto, que é aquele sofrido pela própria vítima.

Sem a prova do dano, ninguém pode ser responsabilizadocivilmente, ainda que a conduta tenha sido culposa, exceto noscasos de dano moral puro que existe in re ipsa. A reparação temo objetivo de trazer a vítima ao estado em que se encontravaantes da prática ilícita. Então, se não houve dano, não há quese falar em responsabilidade civil e tampouco em reparação porparte do agente à vítima, tendo em vista a falta de comprovaçãode dano.

O dano também é um elemento essencial tanto na responsa-bilidade civil subjetiva como na responsabilidade civil objetiva edivide-se em duas espécies: dano material e dano extrapatrimonial.

1.3.4.1 Dano materialDano material, também chamado de dano patrimonial, é aque-

le que atinge bens suscetíveis de valoração econômica, é aquiloque tem conteúdo econômico e pode ser apurado pecuniariamente(GONÇALVES, 2009, p. 705). Importante observar que não se presu-me dano material, sendo necessário prová-lo e assim demonstrar arelação de causa e efeito entre a conduta do agente causador dodano e o prejuízo patrimonial produzido.

Os danos materiais dividem-se em duas espécies: danos emer-gentes e lucros cessantes, e estão previstos em nosso ordenamentojurídico – Código Civil de 2002, artigo 402. Dano emergente é tudoque a pessoa perde imediatamente em razão do dano, não se pre-sume e para ser concedido deve ser comprovado. Já o lucro cessanteé o que a pessoa deixará de ganhar em razão do dano sofrido(GONÇALVES, 2009, p. 706-707).

1.3.4.2 Dano extrapatrimonialDano extrapatrimonial é um gênero e sua espécie mais conhe-

cida é o dano moral, por esse motivo, por muitas vezes acaba dan-do nome ao próprio gênero, mas há outras espécies de danoextrapatrimonial, como, por exemplo, o dano estético, havendoinclusive Súmula do Superior Tribunal de Justiça1 no sentido dacumulatividade do dano moral com o dano estético. O dano moralé aquele que lesa direito personalíssimo, causa à vítima sensaçõesnegativas ou desprazerosas, tais como dor, sofrimento, humilha-

1 “Súmula 387 - É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e danomoral.”

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ção, vergonha, vexame, constrangimento além do tolerável. Nãose configurando nenhuma das hipóteses citadas, pode ser conside-rado um mero aborrecimento, incômodo, dissabor e não configuradano moral (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 87).

Com frequência, se costuma tratar o gênero danoextrapatrimonial por sua espécie mais usual, o dano moral podeser presumido (o dano moral puro ou in re ipsa); no entanto,essa presunção é iuris tantum (relativa). Nesse sentido, ensinaem sua obra o doutrinador Sergio Cavalieri Filho, quando colo-ca que, “por se tratar de algo imaterial ou ideal, a prova dodano moral não pode ser feita através dos mesmos meios utiliza-dos para a comprovação do dano material” (CAVALIERI FILHO,2010, p. 90).

Somente com a Constituição Federal de 1988 essa espécie dedano passou a ter previsão legal (artigo 5º, incisos V e X). O danoextrapatrimonial está vinculado a valores humanos e podemos di-zer que encontra fundamento no princípio da dignidade da pes-soa humana.

O dano moral é subjetivo (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 81-84).Portanto, não se deve fazer tabelamento de valores. A fixação dodano moral deve seguir o binômio compensatório/satisfatório e pu-nitivo/pedagógico (GONÇALVES, 2009, p. 628). Para atingir o cará-ter compensatório, se deve analisar a vítima (quem era, seu podersocioeconômico, repercussão no meio social, gravidade da lesão,duração do sofrimento). Os mesmos requisitos para aferição do ca-ráter pedagógico devem ser observados em relação ao agente cau-sador do dano, incluindo-se ainda a gravidade da conduta e aatitude após causar o dano. Assim, tem-se que o juiz deverá fixar odano moral atendendo o princípio da razoabilidade e daproporcionalidade (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 100). Isso significadizer que o juiz não poderá fixá-lo num valor irrisório a ponto denão significar nada para a vítima, nem exorbitante a ponto deenriquecê-la.

Importante salientar a possibilidade de cumulação de danomoral com dano material, desde que oriundos do mesmo fato, con-forme Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça.2

Por oportuno, lembra-se, ainda, matéria também sumuladapelo Superior Tribunal de Justiça3: a pessoa jurídica também podepleitear indenização por danos morais se sua honra objetiva forviolada.

2 “Súmula 37 - São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moraloriundos do mesmo fato.”

3 “Súmula 227 - A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.”

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O ESTADO E SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

1.4 A responsabilidade objetiva e subjetiva

Na teoria objetiva, também chamada de teoria do risco, todoaquele que desenvolve uma atividade perigosa e que aufere lu-cros dela deve assumir os riscos que ela causar a terceiros e é dis-pensada por completo a prova da culpa do agente, exigindo-se,tão somente, a prova do dano e do nexo causal. Nessa teoria, im-porta apreciar o liame jurídico entre a ação ou omissão do autordo dano e o prejuízo causado à vítima, pois se o dano causadopartiu de conduta dolosa ou culposa não importa e é irrelevantepara que a obrigação de indenizar seja efetiva.

Pode-se concluir então que, na teoria objetiva, não se faz ne-cessário que a reparação do dano decorra da culpabilidade, sendosuficiente que o ato lícito ou ilícito gere risco e que o prejuízo surjado fato violador de direito de outrem.

A teoria subjetiva, também chamada de teoria da culpa, ana-lisa o comportamento do agente causador do dano (aspectoanímico), se ele agiu com culpa (lato sensu). Por essa teoria, a víti-ma deverá provar a culpa do causador do dano, o dano e o nexocausal. Essa teoria foi resumida na máxima “sem culpa não há re-paração” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 29-30).

Para caracterização da responsabilidade subjetiva, além daprova da culpa do agente, se faz necessário uma ação ou omissão(conduta humana), verificação do nexo de causalidade entre essaconduta e o prejuízo causado à vítima e o dano.

Concluímos, então, que uma conduta ilícita (ação ou omissão)e a culpa lato sensu (dolo ou culpa stricto sensu) é que definem aresponsabilidade civil subjetiva, sendo a culpa o seu principal pres-suposto.

Portanto, entende-se que a vítima que quiser obter reparaçãopelo dano sofrido deverá provar a culpa ou dolo do agente que alesou, além dos elementos dano e nexo causal.

1.5 A responsabilidade contratual e extracontratual

Pode-se dividir a responsabilidade civil em responsabilidadecontratual, também chamada de ilícito contratual ou relativo, eresponsabilidade extracontratual, conhecida também por ilícitoaquiliano, delitual ou absoluto.

Na responsabilidade contratual é preciso que exista uma rela-ção jurídica entre as partes antes da ocorrência do dano – ou seja,o vínculo jurídico entre as partes é preexistente ao dano –consubstanciada em um contrato existente e válido. Decorre da vi-olação desse contrato, encontrando a sua fonte no descumprimentocontratual. Nessa modalidade, via de regra, o ônus da prova é do

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réu da ação, do devedor, e somente nessa modalidade cabe aaplicabilidade da cláusula de não indenizar (CAVALIERI FILHO, 2010,p. 15).

Já na responsabilidade extracontratual, a relação jurídica sur-ge depois do dano. Surge da violação do dever genérico “nonneminen leadere”, encontrando a sua fonte no ato ilícito.

Percebe-se, então, que nas duas modalidades de responsabili-dade – contratual e extracontratual – deve-se levar em conta a con-duta do agente, o dano e o nexo. O que diferencia uma da outra,conforme Cavalieri Filho (2010, p. 288), é “[...] se a transgressão serefere a um dever estabelecido em negócio jurídico, a responsabi-lidade será contratual; se a transgressão é de um dever jurídicoimposto pela lei, a responsabilidade será extracontratual”. Pode-se concluir, então, que o grande diferencial entre essas duas moda-lidades de responsabilidade civil é a natureza do dever jurídicoviolado.

Outra diferença que pode ser apontada entre a responsabili-dade contratual e a extracontratual é quanto ao ônus da prova daculpa. Na primeira, a regra geral é que o ônus da prova cabe aoréu, pois a culpa é presumida. Já na responsabilidadeextracontratual, quem deve provar a existência de fato constitutivodo seu direito é o autor, ele deve provar que o réu falhou no deverde diligência.

Com base no exposto, podemos concluir que na culpacontratual temos o não cumprimento de uma obrigaçãoestabelecida em contrato; portanto, é a violação de um dever posi-tivo de adimplir. Enquanto na culpa extracontratual, “viola-se umdever negativo, isto é, a obrigação de não prejudicar, de não cau-sar dano a ninguém” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 291).

Analisados os elementos da responsabilidade civil, bem comosuas teorias e espécies, pode-se passar para a análise do Estado.

2 Do Estado

O Direito é um conjunto de normas que disciplinam a socieda-de. Podemos dividir o Direito em dois grandes ramos: o DireitoPúblico e o Direito Privado. O Direito Privado regula relações entreparticulares, podendo-se dizer que é regido pela autonomia davontade. Já o Direito Público trata dos interesses da sociedade, dosinteresses públicos. Então, nesse caso, não há que se falar em auto-nomia da vontade, e sim em uma ideia de função, um dever deatendimento do interesse público, e esse atendimento é realizadopelo Estado (MELLO, 2010, p. 27).

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O ESTADO E SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

2.1 Origem, evolução e conceito

Uma das primeiras formas de organização política foi atravésdo chamado Estado religioso, momento este em que toda autori-dade era fundada na vontade divina e o papel do Estado era man-ter a segurança, os costumes e os cultos. A partir do Renascimentosurge na Europa o Estado-nação, caracterizado pela centralizaçãodo poder no monarca e apresentação de certa autonomia perantea religião, mas ainda não se falava em Direito Público. Somente nofinal do século XVII os representantes religiosos passam a autorida-de aos príncipes e, a partir deste momento, começa uma pequenaseparação entre público e privado, tendo em vista o nascimentodo individualismo (MOREIRA NETO, 2006, p. 17).

Buscando definir a atuação do Estado, não permitindo queeste ultrapassasse as suas funções de guardião e garantidor da se-gurança, surge o Estado de polícia, originário do liberalismo. Apósessa fase, surge o segundo modelo de organização política do li-beralismo, o Estado de Direito, momento este em que surge nitida-mente o Direito Público (MOREIRA NETO, 2006, p. 17-18), ou seja,o nascimento do Direito Administrativo.

Conforme disposto em Meirelles (2010, p. 61), o Estado de Di-reito é “o Estado juridicamente organizado e obediente às suaspróprias leis”. Nesse mesmo sentido ensina Moreira Neto (2006,p. 46):

O Estado de Direito, o que se subordina à lei, não é sóaquele em que a legislação está limitada e condicionadapor uma Constituição e em que a jurisdição garante suaaplicação na solução dos conflitos de interesses, mas aque-le em que a administração pública está totalmente sub-metida ao princípio da legalidade (grifos do autor).

A sociedade, buscando exercer e garantir sua autodetermina-ção, organiza-se política e juridicamente em um território, institu-indo assim o Estado (MOREIRA NETO, 2006, p. 7). O Estado é cons-tituído por três elementos: o elemento humano (povo), o elemen-to físico (território) e o elemento condutor do Estado (governo so-berano) (MEIRELLES, 2010, p. 61).

A partir da segunda metade do século XX houve o aperfeiço-amento do Estado de Direito, passando então para Estado Demo-crático de Direito, estando nosso país organizado dessa forma, con-forme artigo 1º da Constituição Federal de 1988:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pelaunião indissolúvel dos Estados e Municípios e do DistritoFederal, constitui-se em Estado Democrático de Direitoe tem como fundamentos:

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I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana;IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V - o pluralismo político.Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que oexerce por meio de representantes eleitos ou direta-mente, nos termos desta Constituição.

Verifica-se então que, com base no dispositivo Constitucionalcitado, o Estado é submisso ao povo e à lei.

Os poderes do Estado são divididos em Legislativo, Executivoe Judiciário, conforme disposição Constitucional.

Esses poderes são a estrutura do Estado e a cada um deles éatribuída uma função. O poder Legislativo tem função normativa,ou seja, a elaboração de leis, o poder Executivo transforma estasleis em atos individuais e concretos, sendo assim de função admi-nistrativa, e o poder Judiciário tem a função de aplicação destasleis aos litigantes, ou seja, é a função judicial do Estado (MEIRELLES,2010, p. 61). Com essa tripartição de poderes chegamos à organi-zação do Estado.

Percebemos então que o Direito Administrativo é ramo do Di-reito Público, ocupando-se com uma das funções do Estado, a fun-ção administrativa. Por esta função entende-se, conforme odoutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello, a “atividadeexercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público,mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários confe-ridos pela ordem jurídica” (MELLO, 2010, p. 29). Esse dever de al-cançar o interesse público é o objetivo maior do Estado em todosos setores do Governo e Administração e esse serviço é realizadopor suas entidades (pessoas jurídicas), seus órgãos públicos (cen-tros de decisões) e seus agentes (pessoas físicas investidas em cargose funções) (MEIRELLES, 2010, p. 64-66).

Portanto, podemos concluir que o Direito Administrativo nas-ce com o Estado de Direito (MELLO, 2010, p. 47) e tem como fun-ção primordial regular as relações entre o Estado e os cidadãos. ODireito Administrativo surge para dar limites à conduta do Estadoe, assim, consequentemente, proteger a sociedade, atuando pormeio dos órgãos públicos que integram a estrutura do Estado edesempenham funções estatais através de seus agentes.

2.2 Atos administrativos

O ato administrativo é a manifestação de vontade da Adminis-tração Pública e destina-se a produzir efeitos jurídicos, sendo en-tão classificado como uma espécie de ato jurídico (MOREIRA NETO,

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2006, p. 135). Ato jurídico, conforme doutrina de Meirelles (2010,p. 153), é “todo aquele que tenha por fim imediato adquirir, res-guardar, transferir, modificar ou extinguir direitos”.

O ato administrativo possui os mesmos elementos do ato jurí-dico, o que os diferencia é que no primeiro o sujeito é sempre umagente com prerrogativas públicas e o objeto está determinado aointeresse público (CARVALHO FILHO, 2010, p. 107).

O ato administrativo constitui, conforme Medauar (2006, p.135), “um dos principais meios pelos quais atuam e se expressam asautoridades e órgãos administrativos”. O ato administrativo, en-tão, é a maneira pela qual a Administração Pública realiza sua fun-ção executiva.

Analisando o ato administrativo, percebemos a existência decinco elementos necessários à sua formação: competência, finali-dade, forma, motivo e objeto (MEIRELLES, 2010, p. 155).

No ato administrativo, a competência é a primeira condição parasua validade e caracteriza o sujeito ativo do ato administrativo.

Em se tratando de ato jurídico, é exigida apenas a capacidadedo agente, mas para a prática do ato administrativo o que real-mente importa é se a manifestação de vontade da AdministraçãoPública partiu do ente, órgão ou agente incumbido por lei na fun-ção de exprimi-la e de vinculá-la juridicamente (MOREIRA NETO,2006, p. 138).

Portanto, a competência decorre de norma expressa, ou seja,da lei e nesta encontram-se suas dimensões e limitações quanto àsatribuições dos agentes, órgãos e entes públicos no que diz respei-to às suas funções.

Quanto à finalidade, segundo elemento do ato administrati-vo, está diretamente ligada ao interesse público. Ou seja, o atoadministrativo tem que atingir o interesse público.

Como vimos, o ato administrativo é a manifestação de vonta-de da Administração Pública exteriorizada por agente ou órgãoincumbido desta função através de lei, cuja finalidade é atingir ointeresse público.

Outro elemento caracterizador do ato administrativo é a for-ma. A forma é elemento que leva o ato administrativo a ser válido.Mello (2010, p. 394) assim dispõe sobre esse elemento: “Forma é orevestimento exterior do ato; portanto, o modo pelo qual este apa-rece e revela sua existência”.

Portanto, forma é o modo de se exteriorizar materialmente oato administrativo, bem como a maneira pela qual a manifestaçãode vontade da Administração Pública se expressa.

O quarto elemento do ato administrativo vem como funda-mento da manifestação de vontade praticada pelo ente, órgão e

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agente público. Esse elemento, o motivo, “é a situação de direitoou de fato que determina ou autoriza a realização do ato adminis-trativo” (MEIRELLES, 2010, p. 157).

O motivo, mais um elemento necessário à formação do atoadministrativo, pode ser vinculado ou discricionário. O primeiro sedá quando o motivo é expresso em lei; o segundo fica a critério doadministrador.

O motivo, no âmbito do direito administrativo, significa umasituação de fato e de direito que provoca a realização do ato ad-ministrativo. Temos como situação de fato um conjunto de aconte-cimentos que levam a Administração a praticar o ato, e situação dedireito quando é na lei que o ato se baseia (DI PIETRO, 2010, p.210).

O quinto e último elemento do ato administrativo é o objeto.Por objeto entende-se o resultado prático que a Administraçãopretende alcançar, “exprime sua eficácia jurídica: o resultado visa-do pelo ato, que será sempre a constituição, declaração, confirma-ção, alteração ou desconstituição de uma relação jurídica”(MOREIRA NETO, 2006, p. 140, grifos do autor).

O objeto do ato administrativo deve ser lícito, possível, certo emoral (DI PIETRO, 2010, p. 206). Portanto ele deve ser conformeprevisto em lei, praticável no mundo dos fatos e do direito, defini-do quanto aos seus efeitos, tempo e lugar e de acordo com pa-drões de comportamento aceitos como corretos e justos.

Apontado os elementos necessários à formação do ato admi-nistrativo, passa-se às suas características de atuação no mundo dodireito: a presunção de legitimidade, imperatividade e aautoexecutoriedade (MEIRELLES, 2010, p. 162).

Por presunção de legitimidade entende-se que, até prova emcontrário, os atos administrativos têm essa qualidade, portanto, sãopresumidos verdadeiros e de acordo com o Direito (MELLO, 2010,p. 418). Esta presunção de legitimidade está relacionada à confor-midade do ato com a lei (DI PIETRO, 2010, p. 197). Outra caracterís-tica da presunção de legitimidade é “a transferência do ônus daprova de invalidade do ato administrativo para quem a invoca”(MEIRELLES, 2010, p. 162). Portanto, até que seja dada a anulaçãodo ato administrativo, este terá plena eficácia.

Já o conceito de imperatividade é bem colocado em Meirelles(2010, p. 164-165):

A imperatividade é o atributo do ato administrativoque impõe a coercibilidade para seu cumprimento ouexecução. [...] A imperatividade decorre da só existên-cia do ato administrativo, não dependendo da sua de-claração de validade ou invalidade. Assim sendo, todo

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ato dotado de imperatividade deve ser cumprido ouatendido enquanto não for retirado do mundo jurídicopor revogação ou anulação, mesmo porque as manifes-tações de vontade do Poder Público trazem em si a pre-sunção de legitimidade (grifos do autor).

Quanto à autoexecutoriedade, pode-se dizer que é o “atribu-to pelo qual o ato administrativo pode ser posto em execução pelaprópria Administração Pública, sem necessidade de intervenção doPoder Judiciário” (DI PIETRO, 2010, p. 200). Por essa característicapode-se dizer que assim que praticado o ato administrativo podeter seu objeto alcançado com sua imediata execução (CARVALHOFILHO, 2010, p. 134).

Com o exposto, conclui-se que a existência do ato administra-tivo no mundo do Direito está ligada à integração dos cinco ele-mentos fundamentais à sua formação e, ainda, que possui caracte-rísticas próprias e condições diferenciadas de atuação, tendo emvista surgirem do Poder Público, e a necessidade de distinção dosatos jurídicos privados.

2.3 Agentes públicos

Agentes públicos são todos aqueles vinculados à Administra-ção Pública, direta e indireta, que prestam serviços ao Estado (DIPIETRO, 2010, p. 510-511).

Quanto ao conceito desta expressão, pode-se dizer que “sãotodas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente,do exercício de alguma função estatal” (MEIRELLES, 2010, p. 75).

Os agentes públicos, conforme Meirelles (2010, p. 76), divi-dem-se em cinco espécies diferenciadas: agentes políticos, agentesadministrativos, agentes honoríficos, agentes delegados e agentescredenciados.

Os agentes políticos são aqueles que têm com o Estado umvínculo político, e não de natureza profissional, e esta relaçãoadvém das leis e da Constituição Federal. Eles têm a função deconduzir o destino da sociedade e do país. Pode-se dizer entãoque os agentes políticos são o Presidente da República, os gover-nadores, prefeitos e vices, ministros e secretários de Estado, sena-dores, deputados federais e estaduais e os vereadores (MELLO,2010, p. 247-248).

Quanto aos agentes administrativos, também denominados deservidores públicos, estes sim têm vínculo de natureza profissionalcom o Estado. Não exercem atribuições políticas, estão sujeitos àhierarquia funcional – podendo inclusive ter uma parcela de auto-ridade pública, mas jamais poder político – e são remunerados por

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prestarem serviço à Administração Pública, são sujeitos ao regimeda entidade que servirem e às normas do órgão em que estiveremtrabalhando (MEIRELLES, 2010, p. 80).

Os agentes honoríficos são aqueles que exercem função pú-blica momentaneamente e, pelo período que exercerem, estão su-jeitos à hierarquia e disciplina do órgão que estiverem desempe-nhando tal função, mas não são servidores públicos. É um serviçovoluntário e pode ser pago um pro labore. O exercício dessa fun-ção pública não gera vínculo empregatício, porém pode contarcomo tempo de serviço público (MEIRELLES, 2010, p. 81).

Dos agentes delegados pode-se dizer que não são enquadra-dos no conceito de agentes públicos, são apenas pessoas que rece-bem a incumbência de executar determinada tarefa, obra ou servi-ço público, atuam por conta própria e assumindo os riscos da ativi-dade, porém seguem as normas do Estado e ficam sob a fiscaliza-ção do delegante. São pessoas físicas ou jurídicas que formam umacategoria à parte de colaboradores do Estado, não sendo enqua-dradas como agentes honoríficos nem servidores públicos. Comoexemplo pode-se citar os tradutores e intérpretes públicos que sãodelegados a uma atividade estatal de interesse público (MEIRELLES,2010, p. 81-82).

Definidas as espécies de agentes públicos, passa-se a análise econceito dos cargos, ou empregos, ou função na AdministraçãoPública.

O cargo público é o lugar instituído na organização do serviçopúblico, é criado por lei e tem definido o seu padrão de remunera-ção e suas atribuições (DI PIETRO, 2010, p. 510-518). Todo cargoquando criado já tem definidas as funções que a ele são atribuídase estas funções correspondem às tarefas a serem realizadas peloservidor titular do cargo.

Função pública “significa o exercício de atividade da compe-tência da Administração, em nome desta e de acordo com as finali-dades desta, ou seja, para atender ao interesse público”(MEDAUAR, 2006, p. 261). Todo cargo tem função, “porque não sepode admitir um lugar na Administração que não tenha apredeterminação das tarefas do servidor” (CARVALHO FILHO, 2010,p. 662), porém há função sem cargo – como exemplo, os emprega-dos públicos.

Quanto ao empregado público, pode-se dizer que são pesso-as que não possuem cargo público, mas sim uma função (ativida-de), tem uma relação funcional trabalhista com a AdministraçãoPública. Emprego público “são núcleos de encargos de trabalhopermanentes a serem preenchidos por agentes contratados paradesempenhá-los” (MELLO, 2010, p. 256).

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Conclui-se, então, que agentes públicos são as pessoas quetêm vínculo com a Administração Pública, prestando serviços aoEstado com a finalidade de atender ao interesse público, exercen-do a função atribuída ao cargo que efetivamente ocupam.

2.4 Contratos administrativos: concessão e permissão

Entende-se por contrato um acordo de vontades, firmado deforma livre pelas partes, com objetivo de criar obrigações e direitosrecíprocos. Via de regra, o contrato é negócio jurídico bilateral ecomutativo, portanto, as pessoas que realizam um contrato se obri-gam a prestações mútuas e equivalentes em encargos e vantagens(MEIRELLES, 2010, p. 214).

Todo contrato é regido por dois princípios básicos: o “da leientre as partes (lex inter partes) e o da observância do pactuado(pacta sunt servanda). O primeiro impede a alteração do que aspartes convencionaram; o segundo obriga-as a cumprir fielmenteo que avençaram e prometeram reciprocamente” (MEIRELLES, 2010,p. 214).

A Administração Pública utiliza-se da instituição contrato, to-davia suas regras são baseadas em normas e princípios próprios doDireito Público, portanto é nominado de contrato público. Con-trato público é o gênero, sendo sua espécie os contratos adminis-trativos que são classificados como o “ajuste firmado entre a Admi-nistração Pública e um particular, regulado basicamente pelo direi-to público, e tendo por objeto uma atividade que, de alguma for-ma, traduza interesse publico” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 191).

Quanto ao contrato administrativo pode-se dizer que é sem-pre consensual, formal, oneroso, comutativo e realizado intuitupersonae.

É possível apontar várias espécies de contratos administrativos,neste trabalho é analisado somente quanto aos contratos de con-cessão e de permissão que estão expressos na Constituição Federal,no artigo 175.

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei,diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,sempre através de licitação, a prestação de serviçospúblicos.Parágrafo único. A lei disporá sobre:I - o regime das empresas concessionárias e permis-sionárias de serviços públicos, o caráter especial de seucontrato e de sua prorrogação, bem como as condiçõesde caducidade, fiscalização e rescisão da concessão oupermissão;II - os direitos dos usuários;

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III - política tarifária;IV - a obrigação de manter serviço adequado.

Tanto a concessão como a permissão de serviço público “impli-cam prestação de serviços públicos por particulares” (MEDAUAR,2006, p. 326). As diferenças substanciais dessas espécies de contra-tos administrativos são apontadas por Medauar (2006, p. 326-327):

a diferença entre concessão e permissão de serviço pú-blico situa-se em dois aspectos: a) a concessão é atribu-ída a pessoa jurídica ou consórcio de empresas, enquan-to a permissão é atribuída a pessoa física ou jurídica; b)a concessão destinar-se-ia a serviços de longa duração,inclusive para propiciar retorno de altos investimentosda concessionária; a permissão supõe média ou curtaduração (grifos do autor).

Ainda diferenciando concessão e permissão de serviço públi-co, pode-se dizer que “a diferença está na forma de constituição,pois a concessão decorre de acordo de vontades e, a permissão, deato unilateral; e na precariedade existente na permissão e não naconcessão” (DI PIETRO, 2010, p. 301).

Portanto a concessão de serviço público é quando o Estadotransfere ao particular algumas faculdades, é um processo dedescentralização, sempre formalizado por instrumento contratuale o concessionário tem a seu cargo o exercício de atividade pública(CARVALHO FILHO, 2010, p. 204).

Quanto à permissão de serviço público, pode-se dizer que éato precário, por motivo de interesse público pode ser alterado ourevogado a qualquer momento, o permissionário fica sujeito àscondições estabelecidas pela Administração, bem como a sua fisca-lização, tem como objeto a execução de serviço público e dependede licitação, conforme a Constituição Federal. Portanto, as diferen-ças entre o instituto da concessão e da permissão quase não se per-cebem (DI PIETRO, 2010, p. 302).

Tanto a concessão quanto a permissão têm suas normas geraisestabelecidas na Lei nº 8.987/1995.

3 A responsabilidade civil do Estado

Nesta seção analisaremos, no que diz respeito à responsabi-lidade civil, as atribuições do Estado nas hipóteses de ação eomissão, bem como sua origem, fontes e caracterização do de-ver de indenizar; apontando, também, a distinção entre as mo-dalidades de responsabilidade do Estado, objetiva e subjetiva,e suas teorias.

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3.1 Origem e fontes da responsabilidade do Estado

A responsabilidade civil do Estado, também chamada de res-ponsabilidade da Administração Pública, nos dias atuais encontra-se positivada nos casos de responsabilidade objetiva; porém, paraque chegasse a esse estágio foi necessário um longo tempo, umaevolução lenta e com origem no Direito Francês, com a construçãodo Conselho de Estado (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 239).

No princípio, época dos Estados absolutos em que predomi-nava a ideia de soberania, o que vigorava era a irresponsabilidadedo Estado, ou seja, o Estado não tinha responsabilidade pelos atosde seus agentes. Tinha-se nessa época a noção de que “o rei nãoerra”, seria uma ofensa ao rei e a sua honra atribuir ao Estadoqualquer tipo de responsabilidade (DI PIETRO, 2010, p. 644). Nessafase, sendo o Estado imune a qualquer responsabilidade pelosdanos causados aos indivíduos, e sendo ele o guardião do Direitoe responsável por atender aos interesses públicos, chega-se à con-clusão de que esta teoria da irresponsabilidade “era a própria ne-gação ao direito” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 239).

A partir da segunda metade do século XIX, esta teoria dairresponsabilidade foi superada e passou-se a responsabilizar o Es-tado com base na culpa do agente, passando então para uma se-gunda fase, a da concepção civilista da culpa (DI PIETRO, 2010, p.644).

No primeiro momento, a responsabilidade era dividida em atosdo império e atos de gestão. Atos do império decorriam do podersoberano e estariam isentos de responsabilidade, enquanto os atosde gestão se assemelhavam com os atos do direito privado, ou seja,sua atuação era “equivalente à dos particulares em relação aos seusempregados ou prepostos; como para os particulares vigorava aregra da responsabilidade, nesse plano o Estado também seria res-ponsabilizado, desde que houvesse culpa do agente” (MEDAUR,2006, p. 366) .

Esta separação da responsabilidade em atos do império e atosde gestão foi uma forma de suavizar os prejuízos causados pelateoria da irresponsabilidade, houve uma separação do que eramatos do rei (atos do império) dos atos do Estado (atos de gestão)(DI PIETRO, 2010, p. 645).

Esta pequena forma de responsabilização foi um passo muitoimportante na evolução da responsabilidade civil do Estado, pois ha-via a “possibilidade de responsabilizar o Estado, mesmo em pequenaescala, o que seria antes inadmissível” (MEDAUAR, 2006, p. 366).

Em seguida percebeu-se que o Estado, por ser pessoa jurídi-ca, não teria como manifestar vontade nem ação e que essa facul-

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dade caberia somente às pessoas físicas; porém, o Estado age atra-vés dos agentes atuantes em seus órgãos e estes sim exteriorizama vontade do Estado. Essa é a teoria do órgão, em que o “Estadoé concebido como um organismo vivo, integrado por um conjun-to de órgãos que realizam as suas funções” (CAVALIERI FILHO,2010, p. 240), não se divide mais em Estado e agente, passa-se afalar em unidade.

O marco do reconhecimento da responsabilidade civil do Esta-do foi a jurisprudência francesa do famoso caso Blanco. Esse casotrata-se de uma menina (Agnès Blanco) que ao atravessar uma ruafoi atropelada por um vagonete que pertencia ao Estado. Seu paipromoveu ação de indenização baseando-se no princípio de queo Estado é civilmente responsável pelos prejuízos causados a ter-ceiros em razão de ação danosa praticada pelos agentes. Nessaquestão o Tribunal de Conflitos decidiu que o problema deveriaser solucionado pelo tribunal administrativo por tratar-se de res-ponsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público.Assim, foi entendido que a responsabilidade do Estado estava su-jeita a regras especiais – baseadas na necessidade do serviço –, enão aos princípios do Código Civil (DI PIETRO, 2010, p. 645).

A partir de então surgem as teorias publicistas da responsabili-dade do Estado, tendo em vista que a concepção civilista da culpaficou ultrapassada, passando-se a falar em culpa do serviço ou faltado serviço “que ocorre quando o serviço não funciona, funcionamal ou funciona atrasado” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 241). Estaconcepção, também chamada de culpa anônima, não está mais li-gada a um agente determinado, basta a vítima comprovar umafalha ou o simples mau funcionamento do serviço público paraque se caracterize a responsabilidade do Estado.

A última fase dessa evolução da responsabilidade do Estado écom a teoria do risco, que, adaptada à Administração Pública, ser-viu de fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado,dando origem à teoria do risco administrativo (CAVALIERI FILHO,2010, p, 242).

Na teoria do risco não importa se houve falta ou culpa doserviço, pois, se o Estado exerce suas atividades para o benefício dasociedade – parte-se do princípio de que todos são alcançados poresse benefício –, nada mais justo que ao causar danos a alguém areparação seja também realizada por todos, ou seja, cabe ao Esta-do indenizar o prejudicado (DI PIETRO, 2010, p. 646).

Nessa teoria não há que se falar em culpa, o que importa é “arelação de causalidade entre a ação administrativa e o dano sofri-do pelo administrado” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 243), ou seja, onexo de causalidade entre a ação ou omissão administrativa e o

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dano sofrido pela vítima. Nesse caso não se questiona se o serviçopúblico funcionou bem ou mal, o que importa é a prática de umato lícito ou ilícito por um agente do Estado, um dano específico eanormal e se há nexo causal entre o ato do agente e o dano supor-tado pela vítima. Essa, então, é a responsabilidade objetiva do Es-tado (DI PIETRO, 2010, p. 646).

Cabe ressaltar que a teoria do risco administrativo não se con-funde com a teoria do risco integral. Na primeira, o Estado é res-ponsabilizado “pelo risco criado e sua atividade administrativa”(CAVALIERI FILHO, 2010, p. 243); na segunda, “a Administração fi-caria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado porterceiros, ainda que resulte de culpa ou dolo da vítima” (MEIRELLES,2010, p. 683).

A teoria do risco administrativo dispensa a prova da culpa doEstado, mas permite que o Estado afaste sua responsabilidade noscasos de culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior efato exclusivo de terceiro, pois nesses casos é afastado o nexo decausalidade.

Quanto à teoria do risco integral, pode-se dizer que é umaversão extremada da doutrina do risco (MEIRELLES, 2010, p. 683),que responsabiliza o Estado mesmo nos casos de fato exclusivo davítima, caso fortuito ou força maior e fato exclusivo de terceiro.

Com base no exposto, pode-se concluir que a responsabilida-de civil do Estado consiste em uma obrigação de ressarcir os danoscausados a terceiros por suas atividades.

3.2 Responsabilidade subjetiva do Estado

No Brasil não foi acolhida a teoria da irresponsabilidade doEstado. Mesmo com a falta de normas legais expressas, os tribunaise doutrinadores brasileiros não aceitavam esta teoria (DI PIETRO,2010, p. 648).

Em 1824, com a Constituição do Império, e em 1891, com aConstituição Republicana, não havia responsabilidade do Estado,e sim previsão de responsabilidade do funcionário em casos deabuso ou omissão praticados no exercício de suas funções. Nessaépoca havia apenas leis ordinárias prevendo a responsabilidadedo Estado, que era acolhida pela jurisprudência como sendo soli-dária à responsabilidade com os funcionários (DI PIETRO, 2010,p. 648).

Foi no Código Civil de 1916, no artigo 15, que a responsabili-dade do Estado teve previsão legal. A doutrina predominante naépoca atribuiu a esse dispositivo o entendimento de que a respon-sabilidade do Estado era fundamentada na teoria da culpa, ou

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seja, na concepção civilista. Na Constituição Federal de 1934, noartigo 171, era prevista a responsabilidade solidária da FazendaPública e dos funcionários quando estes agiam com negligência,omissão ou abuso, sendo direito da Fazenda Pública ação de re-gresso contra o funcionário causador do dano (MEDAUAR, 2006,p. 367).

A atual Constituição Federal, em seu artigo 37, § 6º, traz duasquestões: relações jurídicas entre pessoas diferentes e diversos fun-damentos jurídicos.

Art. 37. A administração pública direta e indireta dequalquer dos Poderes da União, dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios obedecerá aos princípios delegalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade eeficiência e, também, ao seguinte:[…]§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as dedireito privado prestadoras de serviços públicos respon-derão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,causarem a terceiros, assegurado o direito de regressocontra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Percebe-se que na primeira parte do dispositivo a relação jurí-dica se dá entre o Estado e a vítima e verifica-se a responsabilizaçãopor parte do Estado pelos danos causados à vítima, portanto trata-se de responsabilidade objetiva do Estado. Já na segunda parte, aparte final do texto, o que se tem é uma relação entre o Estado e oseu agente, garantindo àquele o direito de regresso contra o agenteresponsável em caso de dolo ou culpa, portanto trata-se de res-ponsabilidade subjetiva.

Dessa maneira, estão presentes, “no preceito constitucional,dois tipos de responsabilidade civil: a do Estado, sujeito à respon-sabilidade objetiva, e a do agente estatal, sobre o qual incide aresponsabilidade subjetiva ou com culpa” (CARVALHO FILHO, 2010,p. 604).

Outra questão importante é se esse dispositivo refere-se so-mente à conduta comissiva do Estado ou também à condutaomissiva. Para Cavalieri Filho (2010, p. 251, grifos do autor), “o art.37, § 6º, da Constituição não se refere apenas à atividade comissivado Estado; pelo contrário, a ação a que alude engloba tanto aconduta comissiva como omissiva”.

Focando na conduta omissiva do Estado, “se o dano foi possí-vel em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funci-onou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teo-ria da responsabilidade subjetiva” (MELLO, 2010, p. 1012-1013, grifodo autor).

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Contudo, se não houve uma ação por parte do Estado, nãopode ele ser responsabilizado como autor do dano. Porém, se estetinha o dever de impedir a ocorrência do dano e não o fez, podeser responsabilizado por não impedir o evento lesivo.

Quanto ao ato ilícito, o Estado pratica não só em casos deomissão (deixar de fazer o que deveria ser feito), mas também noscasos de comissão (faz o que não deveria fazer) (CAVALIERI FILHO,2010, p. 252).

A omissão é dividida em omissão genérica do Estado e omis-são específica. Na primeira, o Estado tem uma atuação deficientequando deveria impedir o evento danoso, quando deixa de reali-zar algo que seria normalmente exigível ou não faz algo que lheseria possível, nesse caso haverá responsabilidade subjetiva do Es-tado. Já na segunda, “haverá omissão específica quando o Estado,por omissão sua, crie a situação propícia para a ocorrência do eventoem situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo”(CAVALIERI FILHO, 2010, p. 252). Nesse caso haverá responsabilida-de objetiva do Estado.

Uma questão que não foi trazida no § 6º, do artigo 37, daConstituição Federal foi quanto à responsabilização do Estado poratos praticados por terceiros e por danos decorrentes de fenôme-nos da natureza, pois a menção no dispositivo legal é sobre osdanos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros.

Como causas excludentes da responsabilidade são considera-das a força maior, a culpa exclusiva da vítima e a culpa de terceiro,tendo ainda como atenuante a culpa concorrente da vítima. Porforça maior entende-se um “acontecimento imprevisível, inevitávele estranho à vontade das partes, como uma tempestade, um terre-moto, um raio” (DI PIETRO, 2010, p. 652). Nesses casos não há res-ponsabilidade do Estado, pois não existe nexo causal entre o danoe a conduta da Administração. Quando se tratar de culpa da vítima,deve-se verificar se é culpa exclusiva (o Estado não responde), ouculpa concorrente com o Poder Público (diminui a responsabilida-de, é dividida entre o Estado e a vítima) – esta questão é consagradapelo nosso Código Civil, no artigo 945.4 Já quanto à culpa de tercei-ro, “também tem sido apontada como excludente de responsabili-dade. No entanto, nem sempre é essa a solução diante de inovaçõesintroduzidas pelo Código Civil de 2002” (DI PIETRO, 2010, p. 653).

Analisada esta questão das excludentes, cabe salientar que noscasos de força maior poderá haver responsabilidade do Estado seeste se omitir na realização de um serviço.

4 “Art. 945 - Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danos, a suaindenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confrontocom a do autor do dano.”

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Percebe-se que a responsabilidade subjetiva do Estado aindaexiste em nosso sistema jurídico, tendo em vista fato de terceiros efenômenos da natureza, caracterizando a responsabilização daAdministração com base na culpa anônima – por considerar que aomissão nem sempre deixa vestígios –, ou falta de serviço, incluin-do assim o fato de o serviço não ter funcionado quando deveria,porque funcionou mal ou tardiamente.

Ademais, em nosso ordenamento jurídico está a cláusula geralda responsabilidade subjetiva, artigo 186 do Código Civil.5 Então,sempre que não for responsabilidade objetiva ou esta não estiverconfigurada, aplica-se esta cláusula geral.

3.3 Responsabilidade objetiva do Estado

Iniciando o estudo da responsabilidade objetiva do Estado, éimportante salientar que na época da vigência do art. 15 do Códi-go Civil de 1916, mesmo a doutrina predominante atribuindo aesse dispositivo o entendimento que a responsabilidade do Estadoera fundamentada na teoria da culpa, houve doutrinadores quecomeçaram a sustentar a tese de responsabilidade objetiva do Es-tado, tendo em vista a redação ambígua desse artigo. Nessa épocao Supremo Tribunal Federal, em seus votos, já falava na teoria dorisco administrativo e, por esse motivo, se conclui que antes de aresponsabilidade objetiva do Estado se transformar em texto legalela já existia na jurisprudência (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 245).

A responsabilidade objetiva do Estado, em texto positivado,aparece em nosso ordenamento jurídico somente com a Constitui-ção de 1946, em seu artigo 194 (CAHALI, 2007, p. 31).

Este artigo não mencionava a culpa do funcionário como con-dição à responsabilidade do Estado, somente em seu parágrafoúnico havia previsão de ação de regresso contra o seu servidor.Portanto, o entendimento era de que “se somente para a açãoregressiva do Estado contra o funcionário se exige a prova de cul-pa e dolo, é porque para a ação da vítima contra o Estado se pres-cinde desses elementos subjetivos” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 245-246).

A partir de então a responsabilidade objetiva do Estado nãofoi mais retirada do texto constitucional, estando hoje no artigo37, § 6º, da Constituição Federal.

Esta responsabilidade tem seu fundamento na teoria do ris-co administrativo e, conforme estudo já realizado nesta seção,

5 “Art. 186 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou impru-dência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,comete ato ilícito.”

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O ESTADO E SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

no tópico “Origem e fontes da responsabilidade do Estado”,nessa teoria não há de se falar em culpa, pois o que importa é arelação de causalidade entre a ação do Estado e o dano sofridopela vítima. Na teoria do risco também não se questiona se oserviço público funcionou bem ou mal, pois o que importa é aprática de um ato lícito ou ilícito por um agente do Estado, quehaja um dano específico e anormal e se há nexo causal entre oato do agente e o dano suportado pela vítima (DI PIETRO, 2010,p. 646).

Com o exposto, percebe-se que essa relação de subordinaçãodo indivíduo à Administração Pública pode trazer riscos, ou seja,traz a possibilidade de causar danos para a sociedade em decor-rência do exercício normal ou anormal das atividades do Estado epor este motivo nada mais certo que o Estado – representante detodos – suporte o ônus de suas atividades perante todos.

A teoria do risco administrativo tem sua base no princípio daigualdade dos indivíduos perante os encargos públicos (CAVALIERIFILHO, 2010, p. 243). Segundo Di Pietro (2010, p. 646), no artigo13 da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, está previstoque “para a manutenção da força pública e para as despesas deadministração é indispensável uma contribuição comum que deveser dividida entre os cidadãos de acordo com as suas possibilida-des”, ou seja, se os benefícios da atividade do Estado são alcança-dos a todos, nada mais correto e justo que os ônus e encargos des-tas atividades também sejam suportados por todos.

Com isso tem-se que a responsabilidade objetiva do Estado éa obrigação que o Estado tem de indenizar em razão de uma prá-tica de atividade lícita ou ilícita que produziu danos na esfera jurí-dica de outrem e que para configurá-la basta prova da relação decausalidade entre a conduta do Estado e o dano sofrido pela víti-ma (MELLO, 2010, p. 1005-1006).

Analisando então o texto do dispositivo citado (§ 6º, artigo 37da Constituição Federal), nota-se menção a duas categorias de pes-soas sujeitas à responsabilidade objetiva: as pessoas jurídicas dedireito público e as pessoas jurídicas de direito privado prestadorasde serviço público.

Com relação à primeira categoria mencionada no dispositivolegal, têm-se como objetivamente responsáveis as pessoas jurídicasde direito público e estas estão qualificadas no artigo 41 do Códi-go Civil Brasileiro:

Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:I - a União;II - os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;III - os Municípios;

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IV - as autarquias, inclusive as associações públicas;V - as demais entidades de caráter público criadas porlei.

Nesse caso, considerando então que o Estado não tem comocausar dano a ninguém por ser pessoa jurídica, e que sua atuaçãoé realizada pelos seus agentes (pessoas físicas), os quais efetiva-mente manifestam a vontade estatal, cabe ao Estado respondercivilmente pelos danos que estes causarem a terceiros. Esta questãotambém está disposta no Código Civil, artigo 43:

Art. 43: As pessoas jurídicas de direito público internosão civilmente responsáveis por atos dos seus agentesque nessa qualidade causem danos a terceiros, ressal-vado direito regressivo contra os causadores do dano,se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

Uma questão levantada por Cavalieri Filho (2010, p. 247) équanto à relação entre o ato do agente ou da atividade adminis-trativa e o dano. “Terá o ato que ser praticado durante o serviço,ou bastará que seja em razão dele?” Haverá responsabilidade doEstado sempre que o dano causado a terceiro tenha relação com aatuação do agente da Administração.

Portanto, a Administração Pública deve exercer suas ativida-des com muita segurança, pois, como demonstrado até agora, aresponsabilidade civil do Estado tem seu fundamento na teoria dorisco, ou seja, suas atividades geram risco para a sociedade.

Agora com relação à segunda categoria mencionada no dis-positivo legal também se tem como objetivamente responsáveis aspessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público,ou seja, estas são equiparadas ao regime da Administração Públicano que diz respeito à responsabilidade civil. Em sendo assim, osentes jurídicos privados que prestam serviço público têm “a mesmaresponsabilidade que tem a Administração Pública” (CAVALIERI FI-LHO, 2010, p. 257).

Para que seja configurada a responsabilidade objetiva, umadas regras a serem exigidas “é que as entidades de direito privadoprestem serviço público, o que exclui as entidades da administra-ção indireta que executem atividade econômica de natureza pri-vada” (DI PIETRO, 2010, p. 649). Só respondem objetivamente, nostermos do previsto na Constituição Federal, as que prestam serviçopúblico, mesmo as concessionárias e permissionárias, e causam danoem decorrência desse serviço.

Percebe-se que o serviço público, mesmo que realizado porentidade privada, não perde a natureza estatal, a titularidade per-manece sendo da entidade pública.

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O ESTADO E SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

Essas entidades privadas que prestam serviços públicos respon-dem pelos danos causados com o seu próprio patrimônio e em nomepróprio, pois são pessoas jurídicas com patrimônio e capacidade.São sujeitos de direitos e obrigações, agem por sua conta e risco esão responsáveis pelos resultados de suas ações. O único objetivoda norma constitucional foi estender a estas entidades privadas aresponsabilidade objetiva, deixando-as assim de forma idêntica aoEstado, e não que o Estado responda por elas. Somente após esgo-tados todos os recursos da entidade prestadora de serviço públicoé que o Estado responde subsidiariamente, afinal “se o Estado es-colheu mal aquele a quem atribui a execução de serviços públicos,deve responder subsidiariamente caso o mesmo se torne insolven-te” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 258).

Conclusão

O tema analisado neste trabalho é de fundamental importân-cia perante o Direito Constitucional e o Direito Administrativo, bemcomo perante o Direito Privado. O estudo da responsabilidade ci-vil, no tocante à responsabilidade civil do Estado, demonstra a re-levância do tema, haja vista a riqueza de hipóteses deresponsabilização do Estado pelos danos causados a terceiros.

O Estado tem como função e objetivo atender ao interessepúblico. Esse serviço de atendimento ao interesse público é reali-zado por suas entidades, seus órgãos públicos e seus agentes, epara que seja cumprido esse dever de atendimento ao interessepúblico utiliza-se de todos os poderes necessários e conferidos aele pela ordem jurídica.

Nosso país é organizado na forma de um Estado Democráticode Direito, conforme estabelecido na Constituição Federal. O Di-reito Administrativo tem sua origem no Estado Democrático de Di-reito, portanto é ramo do Direito Público e tem como função pri-mordial regular as relações entre o Estado e os cidadãos. O DireitoAdministrativo surge para dar limites à conduta do Estado e assim,consequentemente, proteger a sociedade, atuando por meio dosórgãos públicos que integram a estrutura do Estado e desempe-nham funções estatais através de seus agentes.

Os agentes do Estado são pessoas físicas que exteriorizam avontade estatal, sendo que esta manifestação se dá através do atoadministrativo e destina-se a produzir efeitos jurídicos com a finali-dade de atingir o interesse público. Os agentes do Estado são in-cumbidos de função pública.

Após um longo processo evolutivo da responsabilidade civildo Estado, foi com a teoria do risco, adaptada à Administração

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Pública, que iniciou a teoria do risco administrativo. Nessa teorianão importa se houve por parte do Estado falta ou culpa do servi-ço, pois, se o Estado exerce suas atividades para o benefício dasociedade e por algum motivo esta atividade acaba por prejudicaralguém, cabe a ele indenizar a pessoa pelo prejuízo causado, poiso Estado é responsável pelo risco criado do exercício de suas ativi-dades administrativas.

Há duas modalidades de responsabilidade do Estado: a res-ponsabilidade subjetiva e a responsabilidade objetiva. Aplica-se ateoria da responsabilidade subjetiva quando o dano causado peloEstado foi em decorrência de sua omissão, quando o seu serviçonão funcionou, funcionou mal ou com atraso. A responsabilidadesubjetiva do Estado existe em nosso sistema jurídico, tendo em vis-ta fato de terceiros e fenômenos da natureza. Cabe também essetipo de responsabilidade quando o Estado se omite na realizaçãode um serviço, quando deixa de agir no momento em que deveriae o dano acaba surgindo desta “falta do agir” do Estado. Nessescasos, basta à vítima comprovar uma falha ou o simples mau funci-onamento do serviço público para que se configure a responsabili-dade do Estado, caracterizando a responsabilização da Adminis-tração com base na culpa anônima, pois não está ligada à figurade um agente determinado.

Porém, prevalece em nosso ordenamento jurídico a responsa-bilidade objetiva do Estado. Esta responsabilidade tem seu funda-mento na teoria do risco administrativo e nessa teoria não há quese falar em culpa, pois o que importa é a relação de causalidadeentre a ação administrativa e o dano sofrido pelo administrado, ouseja, o nexo de causalidade entre a ação ou omissão administrativae o dano sofrido pela vítima.

Na teoria do risco também não se questiona se o serviço públi-co funcionou bem ou mal, pois o que importa é a prática de umato lícito ou ilícito por um agente do Estado, que cause um danoespecífico e anormal e que haja nexo causal entre o ato do agentee o dano suportado pela vítima. A responsabilidade objetiva doEstado então é a obrigação que o Estado tem de indenizar emrazão de uma prática de atividade lícita ou ilícita que produziudanos na esfera jurídica de outrem.

Contudo, o Estado jamais será responsabilizado se não existirnexo causal entre o dano e a conduta da Administração. A exem-plo disso, há os casos de culpa exclusiva da vítima.

Dessa mesma forma é a responsabilidade das entidades priva-das que prestam serviços públicos, pois agem por sua conta e riscoe são responsáveis pelos resultados de suas ações. Se estas entida-des privadas prestadoras de serviço público causarem danos a ter-

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O ESTADO E SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

ceiros vão responder em nome próprio e com o seu própriopatrimônio. Somente depois de esgotados todos os recursos daentidade prestadora de serviço público é que o Estado respondesubsidiariamente.

A responsabilidade civil do Estado consiste em uma obrigaçãode ressarcir os danos causados a terceiros por suas atividades. Suasatividades geram riscos e a Administração Pública não poderia ficarisenta de responsabilização pelos riscos de suas atividades, bem comopelo resultado da prática de seus atos.

Referências

CAHALI, Yussef Said. Responsabili-dade civil do estado. 3. ed. rev. atual.ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,2007.

CARVALHO FILHO, José dos Santos.Manual de direito administrativo.23 ed. rev., ampl. e atualizada até31.12.2009. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2010.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programade responsabilidade civil. 9. ed.São Paulo: Atlas, 2010.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Di-reito administrativo. 23 ed. SãoPaulo: Atlas, 2010.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Res-ponsabilidade Civil. 11. edição re-vista. São Paulo: Saraiva, 2009.

MEDAUAR, Odete. Direito adminis-trativo moderno. 10 ed. rev. atual.e ampl. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2006.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Ad-ministrativo Brasileiro. 36 ed. atu-al. São Paulo: Malheiros, 2010.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de.Curso de Direito Administrativo.27. ed. rev e atual. São Paulo:Malheiros, 2010.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Curso de Direito Administrativo:parte introdutória, parte geral e parteespecial. 14. ed. Rio de Janeiro: Fo-rense, 2006.

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PARTE 2

JURISPRUDÊNCIA

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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

Superior Tribunal de Justiça

Direito Processual Civil. Recurso Especial representativo decontrovérsia. Cumprimento de sentença. Impugnação. Honoráriosadvocatícios. Art. 543-C do CPC. 1

1 Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200900662419&dt_publicacao=21/10/2011> Acesso em: 29 abr. 2012.

EMENTA OFICIAL

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO.DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CUM-PRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUG-NAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCA-TÍCIOS.

1. Para efeitos do art. 543-C doCPC:

1.1. São cabíveis honoráriosadvocatícios em fase de cumpri-mento de sentença, haja ou nãoimpugnação, depois de escoado oprazo para pagamento voluntárioa que alude o art. 475-J do CPC,que somente se inicia após aintimação do advogado, com abaixa dos autos e a aposição do"cumpra-se" (REsp. n.º 940.274/MS).

1.2. Não são cabíveis honorári-os advocatícios pela rejeição daimpugnação ao cumprimento desentença.

1.3. Apenas no caso de acolhi-mento da impugnação, ainda queparcial, serão arbitrados honorári-os em benefício do executado, combase no art. 20, § 4º, do CPC.

2. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO

Prosseguindo no julgamento,após o voto-vista do Sr. Ministro

Teori Albino Zavascki dando pro-vimento ao recurso especial, noque foi acompanhado pelas Sras.Ministras Eliana Calmon e LauritaVaz e pelos Srs. Ministros CastroMeira, Massami Uyeda e HumbertoMartins, a Corte Especial, por una-nimidade, conheceu do recurso es-pecial e deu-lhe provimento, nostermos do voto do Senhor Minis-tro Relator. Os Srs. Ministros FelixFischer, Eliana Calmon, Laurita Vaz,João Otávio de Noronha, TeoriAlbino Zavascki, Castro Meira,Massami Uyeda e HumbertoMartins votaram com o Sr. Minis-tro Relator.

Não participaram do julga-mento os Srs. Ministros CesarAsfor Rocha, Gilson Dipp, Fran-cisco Falcão e Maria Thereza deAssis Moura.

Impedida a Sra. Ministra NancyAndrighi.

Ausentes, justificadamente, osSrs. Ministros Arnaldo Esteves Limae Luis Felipe Salomão.

Brasília (DF), 1º de agosto de2011 (Data do Julgamento).

MINISTRO ARI PARGENDLER,Presidente.

MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO,Relator.

REsp 1.134.186 - DJe 21.10.2011.

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA JURISPRUDÊNCIA

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RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO LUISFELIPE SALOMÃO (Relator):

1. Cuida-se, na origem, deimpugnação ao cumprimento desentença, manejada por BrasilTelecom S/A em face de pedidoformulado por Sônia CarvalhoLeffa Lumertz. No processo de co-nhecimento, a autora, ora recorri-da, obteve sentença condenandoa ré a cumprir obrigação de fazer,consistente na entrega de açõesnão-subscritas, convertida em per-das e danos, que totalizou R$420.891,40 (fl. 34, e-STJ), com deci-são transitada em julgado.

A impugnação foi desacolhidapelo Juízo de Direito da 8ª VaraCível do Foro Central da Comarcade Porto Alegre/RS, sem, conduto,condenar a impugnante ao paga-mento de honorários advocatícios,ao argumento de que sãoincabíveis em sede de incidenteprocessual (fls. 88/91).

Interposto agravo de instru-mento, o recurso foi monocra-ticamente provido pelo relator,decisão contra a qual foi maneja-do agravo interno, cuja ementa éa seguinte:

AGRAVO INTERNO. BRASILTELECOM. SUBSCRIÇÃO DEAÇÕES. PEDIDO DE CUMPRI-MENTO DE SENTENÇA. HONO-RÁRIOS ADVOCATÍCIOS.Argumentos já rechaçadosquando do julgamento do agra-vo de instrumento. O simplesfato de a nova sistemática pro-cessual introduzida pela Lei nº11.232/05 ter passado a consi-derar a execução como um

mero procedimento incidentalnão impede o arbitramento deverba honorária, mormente nocaso concreto em que a deve-dora não cumpriu de imediatoe de forma espontânea a deci-são, reabrindo nova discussãosobre a questão de fundo,ensejando trabalho docausídico. Interpretação do es-pírito da nova legislação.AGRAVO INTERNO DESPROVI-DO. (fl. 113/116, e-STJ)

Opostos embargos de declara-ção, foram eles rejeitados (fls. 136/139, e-STJ).

Sobreveio recurso especial, ar-rimado nas alíneas "a" e "c" dopermissivo constitucional, no qualhá alegação de ofensa ao art. 20, §4º, ao argumento de que "sendo ocumprimento de sentença apenasuma nova fase do processo de co-nhecimento, não há justificativapara que sejam fixados novamen-te honorários advocatícios". Assim,"mesmo que haja impugnação, adecisão que a solve não pode con-denar a parte vencida a pagar ho-norários advocatícios, pois nãoexiste a rigor sentença" (fls. 148/150, e-STJ).

Sinaliza, ademais, dissídiojurisprudencial em relação aacórdão proferido pelo Tribunal deJustiça do Estado de São Paulo.

Contra-arrazoado (fls. 156/162,e-STJ), o especial foi admitido (fls.165/168).

Considerando a multiplicidadede recursos a versar o tema ora emdebate, afetei o presente feito àapreciação desta E. Corte Especial,nos termos do art. 543-C do Códi-go de Processo Civil.

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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

O Ministério Público Federal,mediante parecer subscrito peloilustre Subprocurador-Geral da Re-pública Geraldo Brindeiro, opinapelo conhecimento e despro-vimento do recurso especial (fls.192/194, e-STJ).

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO LUISFELIPE SALOMÃO (Relator):

2. Cuida-se de saber se são devi-dos e, em caso positivo, como de-vem incidir os honoráriosadvocatícios em fase de cumpri-mento de sentença, de acordo coma nova sistemática adotada peloCódigo de Processo Civil, a partirda edição da Lei n.º 11.232/05.

2.1. A celeuma nasce com aimplementação da chamada tercei-ra etapa da reforma processual ci-vil, iniciada com a Lei n.º 8.952/94,interpolada pela Lei n.º 10.444/02e, finalmente, chegando-se à Lein.º 11.232/05, a qual assume pos-tura sincrética em relação às tute-las de conhecimento e executiva.

Com efeito, as tutelas declara-tória/condenatória e executivaprestadas pelo Estado manifestam-se com a instalação de apenas umarelação processual, tão logo o réuseja citado para responder à peti-ção inicial do autor até o prontocumprimento da obrigação impos-ta, sem necessidade de, após de-clarado o direito, proceder-se anova instauração de processosatisfativo.

Não obstante, é de se agitar, paralogo, o alerta de Barbosa Moreirasobre o tema, para quem:

Raiaria pelo absurdo, note-se,pensar que a Lei n.º 11.232 purae simplesmente 'aboliu a exe-cução'. O que ela aboliu, dentrode certos limites, foi a necessi-dade de instaurar-se novo pro-cesso, formalmente diferencia-do, após o julgamento da cau-sa, para dar efetividade à sen-tença - em linguagem carne-luttiana, para fazer que real-mente seja aquilo que deve ser,de acordo com o teor do pro-nunciamento judicial. (Cumpri-mento e Execução de Senten-ça: Necessidade de Esclareci-mentos Conceituais. In. RevistaDialética de direito Processual,n.º 42, p. 56)

2.2. De fato, "execução" é es-pécie de tutela judicial (e não deprocesso), sendo certo que a ativi-dade estatal levada a efeito após asentença - quer se instaure um pro-cesso autônomo, quer se desenro-le de forma continuada à tutelaanterior - não deixa de ser execu-ção.

Nesse passo, muito embora osartigos regentes da nova tutelaexecutiva estejam sob o título "Documprimento da sentença", o le-gislador manteve a técnica antigaao proclamar no art. 475-I que "ocumprimento da sentença far-se-áconforme os arts. 461 e 461-A des-ta Lei ou, tratando-se de obriga-ção por quantia certa, por execu-ção, nos termos dos demais artigosdeste Capítulo" (grifado).

2.3. Essa característica do cum-primento de sentença - a de se tra-tar de verdadeira execução - é obastante para atrair a incidência doart. 20, § 4º, do CPC, porquanto taldispositivo não cogita deveras de

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA JURISPRUDÊNCIA

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"processo de execução", como ten-ta demonstrar parte pequena dadoutrina, mas de "execução" ape-nas, verbis:

Nas causas de pequeno valor,nas de valor inestimável, na-quelas em que não houver con-denação ou for vencida a Fa-zenda Pública, e nas execu-ções, embargadas ou não, oshonorários serão fixados con-soante apreciação equitativado juiz, atendidas as normasdas alíneas a, b e c do pará-grafo anterior.

3. De fato, a Lei n.º 11.232/05nada disse sobre os honoráriosadvocatícios nessa nova etapa pro-cessual.

Malgrado a omissão legislativa,deve-se concluir pelo seu cabimen-to.

3.1. O valor a ser fixado diz res-peito ao trabalho do advogado emrelação à nova fase de cumprimen-to de julgado, não se confundin-do com aqueloutro estabelecidono processo de conhecimento.

Nesse particular, verifique-se oensinamento de Araken de Assis:

É omissa a disciplina do 'cum-primento da sentença' acercado cabimento dos honoráriosadvocatícios. No entanto, har-moniza-se com o espírito da re-forma, e, principalmente, coma onerosidade supervenientedo processo para o condenadoque não solve a dívida no prazode espera de quinze dias - ra-zão pela qual suportará, a títu-lo de pena, a multa de 10%(art.475- J, caput) -, a fixaçãode honorários em favor doexequente, senão no ato que

deferir a execução, no mínimona oportunidade do levanta-mento do dinheiro penhoradoou do produto de alienação dosbens. Os honorários advoca-tícios já contemplados no títulojudicial (e sequer em todos) sereferem ao trabalho desenvol-vido no processo de conheci-mento, conforme se infere dasdiretrizes contempladas no art.20, §3º, para sua fixação na sen-tença condenatória. E continuaem vigor o art. 710: retornamas sobras ao executado somen-te após a satisfação principal,dos juros, da correção, das des-pesas processuais e dos hono-rários advocatícios. Do contrá-rio, embora seja prematuroapontar o beneficiado com a re-forma, já se poderia localizar oprocesso e incidentes, a exem-plo da impugnação do art.475-L, sem a devida contraprestação(in Cumprimento de sentença,Editora Forense, 2006, p. 264).

Entendo que com mais razão sãocabíveis honorários advoca-tícios nafase de cumprimento de sentença,porquanto as Leis 11.232/05 e11.382/06, além de transformaçõesde índole procedimental, reafirma-ram tendência processualista de re-tirar o devedor-vencido de seu tra-dicional estado de passividade eimputar-lhe o ônus de sua inércia.Sinais dessa vontade legislativa po-dem ser encontrados no próprio art.475-J, que prevê multa de 10% emcaso de não-cumprimento voluntá-rio da sentença no prazo de 15 dias,e no art. 600, inciso IV, o qual con-sidera ato atentatório à dignidadeda justiça o executado não indicarquais são e onde estão os bens su-jeitos à penhora.

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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

Mostram-se relevantes, ade-mais, as ponderações da e. Minis-tra Nancy Andrighi, na relatoria doREsp. n.º 978.545/MG, para quem:

"(...) há de se considerar o pró-prio espírito condutor das alte-rações pretendidas com a Lei nº11.232/05, em especial a multade 10% prevista no art. 475-Jdo CPC.(...)Nesse contexto, de nada adian-taria a criação de uma multa de10% sobre o valor da condena-ção para o devedor que nãocumpre voluntariamente a sen-tença se, de outro lado, fosseeliminada a fixação de verbahonorária, arbitrada nopercentual de 10% a 20%, tam-bém sobre o valor da condena-ção.Considerando que para o deve-dor é indiferente saber a quempaga, a multa do art. 475-J doCPC perderia totalmente suaeficácia coercitiva e a nova sis-temática impressa pela Lei nº11.232/05 não surtiria os efei-tos pretendidos, já que não ha-veria nenhuma motivação com-plementar para o cumprimen-to voluntário da sentença. Aocontrário, as novas regras viri-am em benefício do devedorque, se antes ficava sujeito auma condenação em honorári-os que poderia alcançar os 20%,com a exclusão dessa verba, es-taria agora adstrito tão-somen-te a uma multa no percentualfixo de 10%".

Muito embora haja doutrina denomeada (THEODORO JÚNIOR,Humberto. As novas reformas docódigo de processo civil. 1ª ed.Editora Forense), inclusive com re-

flexos em julgamento turmário noâmbito deste STJ, no sentido deque "não é cabível, por ausênciade disposição legal, novos hono-rários advocatícios pelo fato de oexequente ser obrigado a requerero cumprimento de sentença" (REsp.1.025.449/RS, rel. Ministro JOSÉDELGADO, PRIMEIRA TURMA), nãome parece consentâneo com a re-forma o entendimento.

Deveras, é o próprio art. 475-Rdo CPC que determina aplicar"subsidiariamente ao cumprimen-to da sentença, no que couber, asnormas que regem o processo deexecução de título extrajudicial".

Vale dizer, se são cabíveis ho-norários advocatícios em execuções"embargadas ou não", nada maislógico e razoável também caber afixação das verbas advocatícias empedidos de cumprimento de sen-tença, impugnados ou não.

Com efeito, havendo pedido decumprimento (execução) do títuloconstituído na fase de conhecimen-to - ou seja, escoado o prazo de 15dias previsto no art. 475-J do CPC -, mesmo que o devedor pague semresistência, incidirão novos hono-rários advocatícios, porquanto oque determina a fixação da verbaé o princípio da causalidade.

Nesse sentido, é certo que,transcorrido em branco o prazo doart. 475-J sem pagamento volun-tário da condenação, o devedordará causa à instalação da novafase (execução), sendo de rigor opagamento também de novos ho-norários a serem fixados de acor-do com o art. 20, § 4º, do CPC.

3.2. Esse entendimento - de queé cabível a fixação de honorários

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na fase de cumprimento de sen-tença, haja ou não impugnação - éaceito de forma torrencial nestaCasa:

PROCESSO CIVIL. CUMPRIMEN-TO DE SENTENÇA. NOVA SISTE-MÁTICA IMPOSTA PELA LEI Nº11.232/05. CONDENAÇÃO EMHONORÁRIOS. POSSIBILIDADE.- A alteração da natureza daexecução de sentença, que dei-xou de ser tratada como pro-cesso autônomo e passou a sermera fase complementar domesmo processo em que o pro-vimento é assegurado, não traznenhuma modificação no quetange aos honorários advoca-tícios.- A própria interpretação lite-ral do art. 20, § 4º, do CPC nãodeixa margem para dúvidas.Consoante expressa dicção doreferido dispositivo legal, os ho-norários são devidos "nas exe-cuções, embargadas ou não".- O art. 475-I, do CPC, é expres-so em afirmar que o cumpri-mento da sentença, nos casosde obrigação pecuniária, se fazpor execução.Ora, se nos termosdo art. 20, § 4º, do CPC, a execu-ção comporta o arbitramentode honorários e se, de acordocom o art. 475, I, do CPC, o cum-primento da sentença é reali-zado via execução, decorrelogicamente destes dois postu-lados que deverá haver a fixa-ção de verba honorária na fasede cumprimento da sentença.- Ademais, a verba honoráriafixada na fase de cognição levaem consideração apenas o tra-balho realizado pelo advogadoaté então.- Por derradeiro, também nafase de cumprimento de sen-

tença, há de se considerar opróprio espírito condutor dasalterações pretendidas com aLei nº 11.232/05, em especial amulta de 10% prevista noart.475-J do CPC. Seria inútil ainstituição da multa do art. 475-J do CPC se, em contrapartida,fosse abolida a condenação emhonorários, arbitrada nopercentual de 10% a 20% so-bre o valor da condenação.Recurso especial conhecido eprovido.(REsp 1028855/SC, Rel. MinistraNANCY ANDRIGHI, CORTE ES-PECIAL, julgado em 27/11/2008,DJe 05/03/2009)_________________________

No mesmo sentido, cito outrosvários precedentes: REsp 1084484/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON,SEGUNDA TURMA, julgado em 06/08/2009; REsp 1054561/SP, Rel. Mi-nistro FRANCISCO FALCÃO, PRI-MEIRA TURMA; REsp 1165953/GO,Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRATURMA; AgRg no Ag 1066765/RS,Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DENORONHA, QUARTA TURMA; REsp1130893/SP, Rel. Ministro CASTROMEIRA, SEGUNDA TURMA.

3.3. É de se ressaltar que o mo-mento processual adequado parao arbitramento dos honorários pelojuízo, em fase de cumprimento desentença, é o mesmo da execuçãode títulos extrajudiciais, ou da an-tiga execução de título judicial. Édizer, podem ser fixados tão logoseja despachada a inicial - caso omagistrado possua elementos parao arbitramento -, sem prejuízo,contudo, de eventual revisão aofinal, tendo em vista a complexi-dade superveniente da causa, a

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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

qualidade e o zelo do trabalhodesenvolvido pelo causídico, den-tre outros aspectos.

Vem a calhar o magistério deAraken de Assis:

Nenhum juiz é adivinho. Fixaráo órgão judiciário os honoráriosna execução, por equidade (art.20, § 4º), avaliando a inicial sobseus olhos e projetando os tra-balhos normais que competirão,ulteriormente, ao advogado doexequente. Nada impede que,no estágio final da entrega dodinheiro, o órgão judiciárioreexamine a verba inicialmen-te arbitrada, considerando oefetivo trabalho e a técnica su-perior das peças processuaisjuntadas pelo advogado doexequente.

Também esta Corte vem enten-dendo que a verba honorária podeser fixada de início na execução ouem momento posterior, diante deelementos que melhor informemo juízo acerca do valor devido:

EXECUÇÃO POR TÍTULO JUDI-CIAL. HONORÁRIOS DE ADVO-GADO CABIMENTO.- Na execução por título judici-al, são devidos os honoráriosadvocatícios, ainda que nãoembargada. Fixação, todavia,relegada para o momento emque o Magistrado dispuser deelementos suficientes paratanto.Recurso especial conheci-do e parcialmente provido.(REsp604560/SP, Rel. Ministro BAR-ROS MONTEIRO, QUARTA TUR-MA, julgado em 24/08/2004, DJ29/11/2004 p. 346)_________________________PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃOPOR TÍTULO JUDICIAL. PEDIDO

DE FIXAÇÃO DA VERBA HONO-RÁRIA AB INITIO. RECUSA DOJUÍZO. AGRAVO. IMPROVI-MENTO. DISSÍDIO NÃO CONFI-GURADO. SÚMULA N. 13-STJ.OFENSA AO ART. 20, § 4º, NÃOCARACTERIZADA. POSSIBILIDA-DE DE ESTABELECIMENTO DOSHONORÁRIOS EM MOMENTOULTERIOR.I. Não se configura o dissídiojurisprudencial se os arestosparadigmas do STJ não trazema mesma particularidade discu-tida nos autos e os demais ema-nam da própria Corte a quo,atraindo a incidência da Súmulan. 13.II. Conquanto devida a verbahonorária na execução por tí-tulo judicial, embargada ou não,inexiste imposição, no art. 20,parágrafo 4o, do CPC, para queseja fixada ab initio, podendoocorrer a imposição do valor dasucumbência em momento emulterior.III. Recurso especial não conhe-cido. (REsp 612666/RJ, Rel. Mi-nistro ALDIR PASSARINHOJUNIOR, QUARTA TURMA, jul-gado em 19/08/2004, DJ 14/02/2005 p. 213)_________________________

4. Porém, a discussão crescequando ocorre impugnação aocumprimento da sentença, comono caso ora tratado, em que o in-cidente foi rejeitado pelo juízo,sem o arbitramento de honorári-os advocatícios, somente sendo re-formada a decisão em grau de re-curso.

4.1. Necessária se faz a investi-gação acerca da natureza jurídicada novel impugnação ao cumpri-mento de sentença, criada pela Lei

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n.º 11.232/05, para só então saberse a decisão que a rejeita ou a aco-lhe rende ensejo a honorários deadvogado.

Na sistemática antiga, os em-bargos à execução eram, quase àunanimidade, considerados açãoautônoma de conhecimento e asentença que o julgava deveriacondenar o sucumbente nas verbasde advogado.

Há quem defenda que aimpugnação ao cumprimento dasentença possui também naturezade ação, com honrosa representa-ção de Arruda Alvim (Aspectos po-lêmicos da nova execução, v. III, p.45/50) e Araken de Assis (Manualda execução. 11 ed. São Paulo: Edi-tora Revista dos Tribunais, p.1.177).

Por outro lado, há também res-peitável posição a afirmar que "anatureza jurídica da impugnaçãodepende do que por meio dela sealegue" (José Miguel Garcia Medina,Luiz Rodrigues Wambier e TeresaArruda Alvim. Aspectos polêmicosda nova execução, v. III, p. 400). Nes-se caso, a impugnação ora apresen-ta-se como incidente processual -acaso verse sobre inexistência de re-quisitos de executividade ou vícioprocedimental - ora ação incidental-, caso as teses defensivas digam res-peito à inexistência da obrigaçãocontida no título executivo. Respec-tivamente, a impugnação assumiriafeições de exceção de pré-executividade ou de embargos àexecução.

De resto, a impugnação seriapura e simplesmente um inciden-te processual ou uma defesaincidental, teses encabeçadas por

Athos Gusmão Carneiro (Revista daAjuris, n. 102, pp. 65/66), ErnaneFidélis dos Santos (As reformas de2005 do Código de Processo Civil,p. 60) e Alexandre Freitas Câmara(A nova execução. 5 ed. p. 135/136).

Não obstante as respeitáveisposições doutrinárias em contrário,é de se considerar como traço derelevância o rompimento do novosistema com as idéias liebmanianasde segregação de ação de conheci-mento e de execução.

Por isso, parece melhor opção atese segundo a qual a impugnaçãoao cumprimento de sentença émero incidente processual, mesmoporque esse foi o espírito da refor-ma, de simplificar o procedimen-to de satisfação do direito, unindoem uma só relação processual atutela cognitiva e a executiva.

Com efeito, não há mais a pre-ocupação em se examinar apar-tadamente os pedidos relativos a"processo de conhecimento" e a"processo de execução" - tal comoconcebido por Liebman -, sendoque a se considerar a impugnaçãouma ação de conhecimentoincidental haveria, deveras, umretorno à sistemática revogada, emque somente mediante ação pró-pria de conhecimento (embargosà execução) poderiam ser discuti-dos eventuais vícios da pretensãoexecutória do autor - a salvo a penacriativa de Pontes de Miranda aconceber a exceção de pré-executividade para matérias deordem pública, com prova pré-c o n s t i t u í d a .

4.2. Por outro lado, a decisãoque solvia os embargos à execução(sentença) era sempre impugnável

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pela via da apelação, sendo que aimpugnação ao cumprimento desentença está sujeita a recursosecundum eventum litis, vale dizer,caberá agravo de instrumento emcaso de rejeição total ou parcial daimpugnação, ou apelação - recur-so que somente hostiliza sentença- em caso de acolhimento, por-quanto extinta estará a execução(art. 475-M, § 3º).

Na sistemática anterior,destarte, de oposição à execuçãomediante embargos, a jurisprudên-cia da Casa era firme em procla-mar o cabimento dos honorários,tanto na execução quanto nosembargos, mas precisamente por-que estes eram considerados açãode conhecimento autônoma, ex-tinta por sentença.

Confira:

PROCESSUAL CIVIL - EMBAR-GOS DE DIVERGÊNCIA - PRO-CESSO DE EXECUÇÃO - EMBAR-GOS DO DEVEDOR - NATURE-ZA - AÇÃO DE CONHECIMEN-TO - FIXAÇÃO DE HONORÁRI-OS ADVOCATÍCIOS - CUMU-LAÇÃO - POSSIBILIDADE - JURIS-PRUDÊNCIA UNIFORMIZADANO ÂMBITO DA CORTE ESPECI-AL DO STJ.I - Mais do que mero incidenteprocessual, os embargos do de-vedor constituem verdadeiraação de conhecimento. Nestecontexto, é viável a cumulaçãodos honorários advocatícios fi-xados na ação de execução comaqueles arbitrados nos respec-tivos embargos do devedor.Questão jurídica dirimida pelaCorte Especial do STJ, no julga-mento dos Embargos de Diver-gência nº 97.466/RJ.

II - Conhecimento e provimentodos Embargos de Divergência.(EREsp 81.755/SC, Rel. MinistroWALDEMAR ZVEITER, CORTEESPECIAL, julgado em 21/02/2001, DJ 02/04/2001 p. 247)_________________________

4.3. Porém, tal solução não meparece cabível em sede deimpugnação ao cumprimento desentença.

É que se deve ter sempre emmira o princípio da causalidade,segundo o qual arcará com as ver-bas de advogado quem deu causaà lide, deduzindo pretensão ilegíti-ma ou resistindo a pretensão legíti-ma. Nesse sentido, a causalidade,como bem advertira Chiovenda,está intimamente relacionada coma evitabilidade do litígio:

O direito do titular deveremanescer incólume à deman-da, e a obrigação de indenizardeve recair sobre [quem] deucausa à lide por um fato especi-al, ou sem um interesse própriocontrário ao interesse do ven-cedor, seja pelo simples fato deque o vencido é sujeito de uminteresse oposto àquele dovencedor. O que é necessário,em todo caso, é que a lide "fos-se evitable" da parte dosucumbente (o que sempre sesubentende, sem qualquer con-sideração à culpa). E estaevitabilidade poderá consistirseja no abster-se do ato a que alide é dirigida, seja no adaptar-se efetivamente à demanda,seja em não ingressar na de-manda mesma (CAHALI, YussefSaid. Honorários advocatícios. 2ed. São Paulo: Editora Revistados Tribunais, 1990, p. 36).

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Nesse passo, mostra-se consen-tânea com o princípio a fixação dehonorários no cumprimento dasentença, porquanto a inércia dovencido deu causa à instalação deum novo procedimento execu-tório, muito embora nos mesmosautos.

Porém, aviando o executado asua impugnação, restando vencidoa final, não se vislumbra nisso cau-sa de instalação de nenhum outroprocedimento novo, além daque-le já aperfeiçoado com o pedidode cumprimento de sentença.

Por outro lado, em caso de su-cesso da impugnação, comextinção do feito mediante senten-ça (art. 475-M, § 3º), revela-se quequem deu causa ao procedimentode cumprimento de sentença foi oexequente, devendo ele arcar comas verbas advocatícias.

4.4. Em realidade, da leituraatenta do art. 20 e seus parágrafos,extrai-se clara a conclusão de que,exceto em execução, somente a sen-tença arbitra honorários advoca-tícios (caput), sendo devida apenasdespesas em caso de incidentes pro-cessuais (§ 1º), considerando-secomo tais apenas as "custas dos atosdo processo", "indenização de via-gem, diária de testemunha e remu-neração do assistente técnico" (§ 2º),mas não honorários.

Vale dizer, há clara diferencia-ção entre despesas e honorários,sendo que em incidentes somentecabem aquelas, exceção feita seporventura o incidente gerar aextinção do processo - como o aco-lhimento da exceção de pré-executividade ou da impugnação-, circunstância que, deveras, recla-

ma a prolação de sentença, subsu-mindo-se o fato processual aocaput do art. 20 do CPC.

Uma vez mais, valho-me da dou-trina do professor Yussef SaideCahli:

Entenda-se, pois - e, sob esseaspecto, nenhuma dúvida podeser admitida - que, no caso doincidente, ou do recurso, o juiz,ao decidi-lo, condenará nas des-pesas, e só nelas, sem, portan-to, a condenação em honorári-os de advogado (base na regrada sucumbência do art. 20),aquele que o provocou, que lhedeu causa inutilmente. (Idem,p. 216)

4.5. Portanto, por qualquer ân-gulo que se analise a questão, aimpugnação ao cumprimento desentença se assemelha muito maisà exceção de pré-executividade -que é defesa endoprocessual - doque aos embargos à execução, sen-do de todo recomendável a apli-cação das regras e princípios àque-la inerentes para o desate daceleuma relativa ao cabimento dehonorários advocatícios em sede deimpugnação ao cumprimento dasentença.

No que concerne ao cabimentode honorários advocatícios em ex-ceção de pré-executividade, a ju-risprudência desta Corte Especialresolveu a controvérsia, ao procla-mar o cabimento da verba apenasquando acolhida a objeção, comconsequente extinção da execução,restando indevida no caso de re-jeição da insurgência:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA.DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EX-

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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

CEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVI-DADE JULGADA IMPROCEDEN-TE. HONORÁRIOS ADVOCATÍ-CIOS. INCABIMENTO.1. Não é cabível a condenaçãoem honorários advocatícios emexceção de pré-executividadejulgada improcedente.2. Precedentes.3. Embargos de divergência co-nhecidos e rejeitados.(EREsp 1048043/SP, Rel. Minis-tro HAMILTON CARVALHIDO,CORTE ESPECIAL, julgado em17/06/2009, DJe 29/06/2009)_________________________

Transcrevo como razões de deci-dir os substanciosos fundamentosdo e. Ministro Hamilton Carvalhido,na relatoria do precedente acimamencionado:

Em casos tais, a impugnaçãoocorre por meio de simples peti-ção nos próprios autos e possuinatureza de mero incidenteprocessual, para o qual a lei pro-cessual não prevê o cabimentode honorários advocatícios, aodispor:

"Art. 20. A sentença conde-nará o vencido a pagar ao ven-cedor as despesas que anteci-pou e os honorários advoca-tícios. Esta verba honoráriaserá devida, também, nos ca-sos em que o advogado funci-onar em causa própria.§ 1º O juiz, ao decidir qual-quer incidente ou recurso,condenará nas despesas ovencido."

(...)

A propósito do tema, veja-se adoutrina de Yussef Said Cahali:

"(...)No sistema processual do Có-digo de 1939, o adjetivo (sen-tença final), com um concei-to restrito de causa, levou oTribunal de Justiça de SãoPaulo a proclamar que o art.64 não se aplicava aos pro-cessos incidentes: 'Somenteincidirá na decisão final dacausa principal, quando seapreciam todas as questõesdiscutidas, inclusive as inci-dentes, apurando-se então asucumbência das partes emtoda a sua extensão.O novo Código de Processorefere-se simplesmente àsentença, sem atribuir-sequalquer qualificativo, comosendo o provimento judicialcom que se 'condenará ovencido a pagar ao vencedoras despesas que antecipou eos honorários advocatícios'(art. 20); entendendo-se,porém, como a sentença fi-nal ou definitiva, do Direitoanterior e da doutrina.Segue-se, porém, o primeiroparágrafo que, se não for in-terpretado em consonânciacom o todo do dispositivo edivorciado do sistema do pro-cesso, pode degenerar emcontradições, ao estatuirque 'o juiz, ao decidir qual-quer incidente ou recurso,condenará nas despesas ovencido'.Inobstante o teorda disposição legal, trata-se,em realidade de caso emque não tem aplicação a re-gra da sucumbência, mas,sim e exatamente, o princí-pio da causalidade, senão,mesmo, da culpa.

(...)Pois, antecipando o que melhorserá examinado oportunamen-

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te (cap. XII), referindo-se espe-cificamente o § 1º do art. 20 adespesas, nestas não se inclu-em necessariamente - segundoa pretensa linguagem técnicado novo Código de Processo Ci-vil - os honorários de advogado;o que, aliás, é realçado pelo pró-prio Pontes de Miranda.

Entenda-se, pois - e, sob esseaspecto, nenhuma dúvidapode ser admitida - que, nocaso do incidente, ou do re-curso, o juiz, ao decidi-lo, con-denará nas despesas, e sónelas, sem, portanto, a con-denação em honorários deadvogado (base na regra dasucumbência do art. 20),aquele que o provocou, quelhe deu causa inutilmente.(...)Em linha de princípio, tem-se que, na técnica do novoCódigo de Processo, qualifi-ca-se como incidente toda equalquer questão suscitadano curso do processo e quese resolve através de um pro-vimento judicial sem as ca-racterísticas de uma senten-ça. As questões suscitadas, eque, acolhidas, determinama extinção do processo semjulgamento de mérito (art.267), e bem assim a extinçãodo processo com julgamen-to de mérito (art. 269), comoprovimento judicial de quecaberá apelação (art. 515),passam a constituir a ques-tão principal na decisão dalide, resolvida sob a forma deprovimento final e definiti-vo sob forma de sentença; e,como tal, a carga de res-ponsabilidade das custas edos honorários de advogadose faz segundo a regra doart. 20, caput.

(...)(in Honorários Advocatícios,2ª ed., RT, pág. 215/220).

Não testilha com essa posiçãodiversos outros precedentes sobreo tema:

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO.EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTI-VIDADE. IMPROCEDÊNCIA.VERBA HONORÁRIA. INCABÍ-VEL. ART. 20, § 1º , DO CPC.I. Improcedente o incidente deexceção de pré-executividade,devido o pagamento das des-pesas respectivas pelo peticio-nário à parte contrária, mas nãode honorários, haja vista o pros-seguimento da execução (art.20, § 1º, do CPC), sem que te-nha termo o processo.II. Recurso especial conhecidoem parte e desprovido.(REsp694.794/RS, Rel. Ministro ALDIRPASSARINHO JUNIOR, QUARTATURMA, julgado em 04/05/2006, DJ 19/06/2006 p. 143)_________________________RECURSO ESPECIAL. PROCESSOCIVIL. LOCAÇÃO. EXECUÇÃO.EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTI-VIDADE. IMPROCEDÊNCIA.CONDENAÇÃO EM VERBA HO-NORÁRIA. DESCABIMENTO.De acordo com recente julgadodesta 5ª Turma (REsp nº 442.156-SP, rel. Min. JOSÉ ARNALDO, DJde 11/11/2002), a condenação aopagamento de verba honoráriasomente é cabível no caso emque a exceção de pré-execu-tividade é julgada procedente,com a consequente extinção daexecução. Ao réves, vencido oexcipiente-devedor, prosseguin-do a execução (como ocorreu incasu), incabível é a condenaçãoem verba honorária.

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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

Recurso provido.(REsp 446.062/SP, Rel. MinistroFELIX FISCHER, QUINTA TUR-MA, julgado em 17/12/2002, DJ10/03/2003 p. 295)_________________________PROCESSUAL CIVIL - EMBAR-GOS DE DECLARAÇÃO - INEXI-STÊNCIA DE QUALQUER DASHIPÓTESES DO ART. 535 DO CPC- EFEITO INFRINGENTE - EXECU-ÇÃO FISCAL - EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE - CONDENA-ÇÃO EM HONORÁRIOS ADVO-CATÍCIOS - CABIMENTO SOMEN-TE NAS HIPÓTESES DE ACOLHI-MENTO DO INCIDENTE.1. Inexistente qualquer hipóte-se do art. 535 do CPC, não me-recem acolhida embargos dedeclaração com nítido caráterinfringente.2. Verificada a rejeição da ex-ceção de pré-executividade,indevida é a verba honorária,devendo a mesma ser fixadasomente no término do proces-so de execução fiscal.3. Embargos de declaração re-jeitados (ambos).(EDcl no REsp 1084581/SP, Rel.Ministra ELIANA CALMON, SE-GUNDA TURMA, julgado em13/10/2009, DJe 29/10/2009)_________________________

Com efeito, por analogia ao queocorre com a exceção de pré-executividade, em incidente pro-cessual de impugnação ao cumpri-mento da sentença, somente sãocabíveis honorários advocatíciosem caso de acolhimento, com aconsequente extinção do procedi-mento executório.

4.6. Cumpre assinalar, no entan-to, que o acolhimento ainda queparcial da impugnação gerará o

arbitramento dos honorários, queserão fixados nos termos do art. 20,§ 4º, do CPC, do mesmo modo queo acolhimento parcial da exceçãode pré-executividade, porquanto,nessa hipótese, há extinção tam-bém parcial da execução.

Nesse sentido, são os seguintesprecedentes:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁ-RIO. EXECUÇÃO FISCAL.PRESCRIÇÃO.NÃO-OCORRÊN-CIA. PARALISAÇÃO DO PROCES-SO POR CULPA DO PODER JUDI-CIÁRIO. SÚMULA 106/STJ.REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ.ENTENDIMENTO FIRMADOPELA PRIMEIRA SEÇÃO NO JUL-GAMENTO DO RESP 1.102.431/RJ, MEDIANTE UTILIZAÇÃO DASISTEMÁTICA PREVISTA NOART. 543-C DO CPC E DA RESO-LUÇÃO 08/2008 DO STJ. EXCE-ÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE.ACOLHIMENTO PARCIAL. CON-DENAÇÃO EM HONORÁRIOSADVOCATÍCIOS. POSSIBILIDADE.[...]4. A jurisprudência do STJ en-tende ser cabível a condenaçãoem verba honorária, nos casosem que a Exceção de Pré-Executividade for julgada pro-cedente, ainda que em parte.5. Recurso Especial parcialmen-te provido.(REsp 1198481/PR, Rel. MinistroHERMAN BENJAMIN, SEGUN-DA TURMA, julgado em 17/08/2010, DJe 16/09/2010)_________________________PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO.EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTI-VIDADE. IMPROCEDÊNCIA. HO-NORÁRIOS ADVOCATÍCIOS ECUSTAS PROCESSUAIS. ART.20,§ 1º , DO CPC.

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1. O STJ entende que somentecabe a imposição do pagamen-to de verba sucumbencial quan-do o pedido do excipiente é aco-lhido e o processo de execuçãoé extinto, ainda que parcialmen-te. Precedentes.[...](REsp 1106152/RS, Rel. MinistroMAURO CAMPBELL MARQUES,SEGUNDA TURMA, julgado em10/08/2010, DJe 10/09/2010)_________________________EXECUÇÃO FISCAL. EXCEÇÃODE PRÉ-EXECUTIVIDADE ACO-LHIDA. EXTINÇÃO PARCIAL DAEXECUÇÃO. HONORÁRIOSADVOCATÍCIOS. CABIMENTO.PRECEDENTES.1. É cabível a fixação de hono-rários advocatícios em exceçãode pré-executividade acolhidapara a extinção parcial da exe-cução.3. Recurso especial provido.(REsp 1192177/PR, Rel. MinistraELIANA CALMON, SEGUNDATURMA, julgado em 15/06/2010, DJe 22/06/2010)_________________________TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CI-VIL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTI-VIDADE. INCIDÊNCIA DE HONO-RÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CÁLCU-LO SEGUNDO APRECIAÇÃOEQUITATIVA (CPC, ART. 20, § 4º).1. O Superior Tribunal de Justi-ça tem entendimento no senti-do de que é cabível a condena-ção em honorários advocatíciosna hipótese de acolhimento deexceção de pré-executividade.A orientação se aplica à Fazen-da Pública, na execução fiscal.2. Em casos tais, a verba hono-rária deve ser fixada segundoaplicação equitativa do juiz,com base no art. 20, § 4º do CPC.3. Recurso especial parcialmen-te provido.

(REsp 949.881/RJ, Rel. MinistroTEORI ALBINO ZAVASCKI, PRI-MEIRA TURMA, julgado em 06/11/2007, DJe 29/05/2008)_________________________Processo civil. Agravo no recur-so especial. Exceção de pré-executividade. Fixação de hono-rários. Possibilidade.- Se configurada a sucumbência,deve incidir a verba honoráriaem hipótese de acolhimentoparcial de exceção de pré-executividade, mesmo que nãoextinta a execução, porquantoexercitado o contraditório. Pre-cedentes.Agravo no recurso especial nãoprovido.(AgRg no REsp 631.478/MG, Rel.Ministra NANCY ANDRIGHI,TERCEIRA TURMA, julgado em26/08/2004, DJ 13/09/2004, p.240)_________________________

4.7. É de se ressaltar ainda queo aviamento de impugnação nãocompromete, por si só, a regularmarcha do cumprimento da sen-tença, porquanto o sistema de efei-to suspensivo agora é ope iudicis,cabendo ao juiz suspender ou nãoo procedimento (art. 475-M,caput), ao reverso do que ocorriacom os embargos à execução, cujoefeito suspensivo era ope legis (an-tiga redação do art. 739, § 1º, doCPC).

Nesse passo, sendo infundada aimpugnação, o procedimento exe-cutivo prossegue normalmente,cabendo, eventualmente, incidên-cia de multa por litigância de má-fé ou por ato atentatório à digni-dade da justiça, mas não honorári-os advocatícios.

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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

Esse também é o entendimentode abalizada doutrina:

Seja qual for o alcance dodecisum, o juiz condenará o(s)vencido(s) nas despesas do inci-dente (art. 20, § 1º), distribuin-do-se os ônus no caso de êxitoparcial. Somente haverá conde-nação do(s) vencido(s) nos ho-norários advocatícios, arbitra-dos consoante apreciaçãoequitativa, a teor do art. 20, §4º, ocorrendo extinção da exe-cução.(...)(...)Julgada totalmente improce-dente a impugnação, a execu-ção prosseguirá na condição emque iniciou, ou seja, definitivaou provisoriamente. (...) À se-melhança do que sucede na ex-ceção de pré-executividade, sócabe condenação nas despesas,a teor do art. 20, § 1º. (ASSIS,Araken. Manual da execução.11 ed. São Paulo: Editora Revis-ta dos Tribunais, p. 1191/1192)_________________________Assim, como já afirmado, emregra, a decisão que resolver aimpugnação será interlocutóriae, portanto, impugnável pormeio de recurso de agravo.Apenas quando extinguir a exe-cução, é que o recurso contraessa decisão será o de apelação.A relevância de tais argumen-tos para o estudo da incidênciade honorários advocatícios naimpugnação está no fato de quea decisão da lide é pressupostoda sucumbência. Nessa esteira,não pode haver condenaçãonos honorários sucumbenciaisquando se decide qualquerquestão incidental (art. 20, § 1º,do CPC).Como observa Yussef Cahali,somente poderá haver derrota

(causa de aplicação do princípioda sucumbência) quando hou-ver uma declaração de direito,isto é, quando a lei atuar a fa-vor de uma parte contra a ou-tra. Por isso, o conceito de der-rota relaciona-se estreitamen-te com a sentença. Uma deci-são interlocutória não podeconter condenação na sucum-bência.Nesse passo, tendo em vista quetão-somente é possível falar-seem sucumbência quando hou-ver o reconhecimento de umasituação jurídica e a respectivaatribuição de um bem jurídicoao impugnante, parece claroque somente haverá honorári-os advocatícios na condenaçãodo vencido na impugnação, ar-bitrados consoante apreciaçãoequitativa, a teor do art. 20, §4º, do CPC, ocorrendo, conse-quentemente, a extinção daexecução. Como dito, do pro-nunciamento desse teor cabe-rá apelação (art. 475-M, § 3º, infine, do CPC) (RIBEIRO, FláviaPereira. A sucumbência naimpugnação ao cumprimentode sentença. In. Execução civil ecumprimento da sentença, vo-lume II. Gilberto Gomes Bruschie Sérgio Shimura (Coord.). SãoPaulo: Método, p. 202).

5. Assim, as teses que encami-nho para efeitos do art. 543-C doCPC são as seguintes:

a) São cabíveis honoráriosadvocatícios em fase de cumpri-mento de sentença, haja ou nãoimpugnação, depois de escoado oprazo para pagamento voluntárioa que alude o art. 475-J do CPC,que somente se inicia após aintimação do advogado, com abaixa dos autos e a aposição do

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA JURISPRUDÊNCIA

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"cumpra-se" (REsp. n.º 940.274/MS);

b) Não são cabíveis honoráriosadvocatícios pela rejeição daimpugnação ao cumprimento desentença.

c) Apenas no caso de acolhi-mento da impugnação, ainda queparcial, serão arbitrados honorári-os em benefício do executado, combase no art. 20, § 4º, do CPC.

4. No caso concreto, houve con-denação à verba advocatícia emrazão da rejeição da impugnação,o que testilha com o entendimen-to aqui firmado, razão pela qualdevem ser decotados os honorári-os fixados no acórdão recorrido,sem prejuízo de arbitramento noâmbito do próprio cumprimentoda sentença, nos termos do art. 20,§ 4º, do CPC.

5. Diante do exposto, dou pro-vimento ao recurso especial.

É como voto.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO JOÃOOTÁVIO DE NORONHA:

Pedi vista dos autos para melhorexame da matéria, particularmen-te do ponto em que se discute so-bre a condenação em honoráriosde sucumbência na impugnação aocumprimento da sentença.

A ementa sugerida pelo emi-nente Relator condensa, de formaapropriada, as diversas teses desen-volvidas em seu voto, estando as-sim redigida:

"RECURSO ESPECIAL REPETI-TIVO. DIREITO PROCESSUAL CI-VIL. CUMPRIMENTO DE SEN-

TENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONO-RÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. Para efeitos do art. 543-C:1.1. São cabíveis honoráriosadvocatícios em fase de cumpri-mento de sentença, haja ou nãoimpugnação, depois de escoa-do o prazo para o pagamentovoluntário a que alude o art.475-J do CPC, que somente seinicia depois da intimação doadvogado, com a baixa dos au-tos e a aposição do 'cumpra-se'(REsp. n. 940.274/MS).1.2. Somente são cabíveis hono-rários advocatícios na impugna-ção ao cumprimento de senten-ça em caso de acolhimento des-ta, com consequente extinçãodo procedimento executório.1.3. Não se cogita, porém, dedupla condenação. Os honorá-rios fixados no cumprimento dasentença, de início ou em mo-mento posterior, em favor doexequente, deixam de existirem caso de acolhimento daimpugnação com extinção doprocedimento executório, oca-sião em que serão arbitradoshonorários únicos ao impu-gnante. Por outro lado, em casode rejeição da impugnação, so-mente os honorários fixados nopedido de cumprimento de sen-tença subsistirão.2. Recurso especial provido."

Após detida análise dos autos,percebo que todas as dúvidas queme assaltaram durante a sessão dejulgamento foram bem esclarecidasno voto do Relator, razão pela qualacompanho suas conclusões, tantoaquelas extraídas para efeitos doart. 543-C do CPC quanto as aplicá-veis ao caso concreto.

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CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPUGNAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO FELIXFISCHER: Trata-se de recurso espe-cial em que se discute, em síntese,(i) se são devidos honoráriosadvocatícios na fase de cumpri-mento de sentença, inclusive na suaimpugnação, e, (ii) caso devidos,como devem incidir, de acordocom a nova sistemática adotadapelo Código de Processo Civil.

A reforma processual consubs-tanciada pela Lei nº 11.232/2005,ao abrigo do sincretismo processu-al e com o intuito de dar maiorefetividade à prestação jurisdi-cional, tornou desnecessário novoprocesso para que o credor pudes-se, desde logo, fazer cumprir o es-tabelecido no título executivo ju-dicial.

Diante dessa nova sistemáticado processo de conhecimento, a ju-risprudência desta e. Corte Superi-or, inicialmente, oscilou a respeitodo cabimento de honoráriosadvocatícios na fase de cumpri-mento de sentença, ora admitin-do-os (v.g. AgRg no Ag 1.080.092/RS, 4ª Turma, Rel. Min. João Otá-vio de Noronha e REsp 987.388/SC,3ª Turma, Rel. Min. Humberto Go-mes de Barros), ora os negando(v.g. REsp 1.025.449/RS, 1ª Turma,Rel. p/ Acórdão Min. José Delga-do).

A c. Corte Especial, no julga-mento do REsp 1.028.855/SC (Rel.ªMin.ª Nancy Andrighi, DJe de 5/3/2009), solucionou o impasse,reconhecendo o cabimento dehonorários advocatícios na novafase executiva. Desse modo, emvista do referido julgado, enten-

do que são devidos honoráriosadvocatícios na fase de cumpri-mento de sentença.

Superada esta matéria, restouo questionamento a respeito docabimento de honorários advo-catícios na impugnação ao cum-primento de sentença. Entendo,acompanhando o Relator e parteda doutrina (v.g. AlexandreFreitas Câmara e Ernane Fidélisdos Santos), que a impugnação aocumprimento de sentença é meroincidente processual e, diferente-mente dos embargos à execuçãode título executivo extrajudicial,não possui natureza de ação, as-semelhando-se à exceção de pré-executividade.

Como asseverado no voto doem. Min. Relator, a c. Corte Espe-cial sedimentou sua jurisprudên-cia no sentido de que somente sãocabíveis honorários de advogadoem sede de exceção de pré-executividade caso esta sejajulgada procedente, pois, assim,põe-se fim à execução (EREsp1.048.043/SP).

Portanto, entendo serem devi-dos honorários advocatícios naimpugnação ao cumprimento desentença, caso esta seja acolhida,porquanto extinguirá o procedi-mento executório, de modo quedeixarão de existir os honoráriosfixados anteriormente nesta faseem favor do exequente. Por outrolado, caso a impugnação seja re-jeitada, permanecerão os honorá-rios advocatícios fixados no inícioda fase executiva.

Ante o exposto, acompanho asconclusões do em. Min. Relator.

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VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO TEORIALBINO ZAVASCKI: Questiona-seaqui, unicamente, a respeito docabimento ou não da condenaçãodo executado em honoráriosadvocatícios na hipótese de julga-mento de improcedência deimpugnação por ele oferecida aexecução de título judicial, comolhe faculta o CPC, no art. 475-J, §1º, parte final. Tem razão o voto dorelator ao afirmar que essaimpugnação tem natureza jurídicade incidente, semelhante à deno-minada "exceção de pré-execu-tividade", merecendo, por isso, tra-tamento também semelhante noque se refere a sucumbência. Ora,a jurisprudência firmada nesta Cor-te Especial nega condenação emhonorários em caso de improcedên-cia da referida "exceção". É de serprestigiada, portanto, a conclusãodo voto do relator. Com esse fun-damento e considerados os limitesda discussão aqui estabelecida, douprovimento ao recurso, acompa-nhando o relator. É o voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

Certifico que a egrégia CORTEESPECIAL, ao apreciar o processo

em epígrafe na sessão realizadanesta data, proferiu a seguinte de-cisão:

A Corte Especial, por unanimi-dade, indeferiu o pedido de desis-tência.

Após o voto do Sr. MinistroRelator conhecendo do recurso es-pecial e dando-lhe provimento,pediu vista antecipadamente o Sr.Ministro João Otávio de Noronha.

Aguardam os Srs. Ministros FelixFischer, Aldir Passarinho Junior,Hamilton Carvalhido, ElianaCalmon, Laurita Vaz, Luiz Fux,Teori Albino Zavascki, CastroMeira, Arnaldo Esteves Lima,Massami Uyeda e HumbertoMartins.

Impedida a Sra. Ministra NancyAndrighi.

Ausentes, justificadamente, osSrs. Ministros Cesar Asfor Rocha,Gilson Dipp e Francisco Falcão.

Os Srs. Ministros Cesar AsforRocha e Gilson Dipp foram substi-tuídos, respectivamente, pelos Srs.Ministros Massami Uyeda eHumberto Martins.

Presidiu o julgamento o Sr. Mi-nistro Ari Pargendler.

Brasília, 19 de maio de 2010.VANIA MARIA SOARES ROCHA,

Secretária.

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DUPLICATA RECEBIDA POR ENDOSSO-MANDATO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO. NECESSIDADE DE CULPA

Superior Tribunal de Justiça

Direito Civil e Cambiário. Recurso Especial representativo decontrovérsia. Art. 543-C do CPC. Duplicata recebida por endosso-mandato. Protesto. Responsabilidade do endossatário.Necessidade de culpa.1

1 Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200801285010&dt_publicacao=17/11/2011>. Acesso em: 29 abr. 2012.

EMENTA OFICIAL

DIREITO CIVIL E CAMBIÁRIO. RE-CURSO ESPECIAL REPRESENTATIVODE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DOCPC. DUPLICATA RECEBIDA POR EN-DOSSO-MANDATO. PROTESTO. RES-PONSABILIDADE DO ENDOS-SATÁRIO. NECESSIDADE DE CULPA.

1. Para efeito do art. 543-C doCPC: Só responde por danos mate-riais e morais o endossatário querecebe título de crédito por endos-so-mandato e o leva a protesto seextrapola os poderes de mandatá-rio ou em razão de ato culposopróprio, como no caso de aponta-mento depois da ciência acerca dopagamento anterior ou da falta dehigidez da cártula.

2. Recurso especial não provi-do.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos osautos em que são partes as acimaindicadas, acordam os Ministros daSegunda Seção do Superior Tribu-nal de Justiça, por unanimidade,negar provimento ao recurso espe-cial, nos termos do voto do Sr. Mi-nistro Relator.

Para efeito do art. 543-C do CPC,só responde por danos materiais emorais o endossatário que recebetítulo de crédito por endosso-man-dato e o leva a protesto, se extrapolaos poderes de mandatário ou emrazão de ato culposo próprio, comono caso de apontamento depois daciência acerca do pagamento ante-rior ou da falta de higidez dacártula.Os Srs. Ministros Raul Araú-jo, Paulo de Tarso Sanseverino, An-tonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi,Nancy Andrighi e Massami Uyedavotaram com o Sr. Ministro Relator.

Impedido o Sr. Ministro RicardoVillas Bôas Cueva.

Ausente, justificadamente, a Sra.Ministra Maria Isabel Gallotti.

Sustentou, oralmente, a Dra.ANA DIVA TELES RAMOS EHRICH,pelo RECORRENTE BANCO DO BRA-SIL S/A.

Brasília (DF), 28 de setembro de2011 (Data do Julgamento).

MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO,Relator.

REsp 1.063.474, DJe 17.11.2011.

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO LUISFELIPE SALOMÃO (Relator):

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA JURISPRUDÊNCIA

244 Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

1. Promosul Comércio de Veí-culos Ltda ajuizou ação decla-ratória de inexistência de débitocumulada com pedido de indeni-zação por danos morais em facede Vieira e Michel Ltda. e Bancodo Brasil S/A. Argumentou, em sín-tese, que títulos de crédito (duasduplicatas), nos quais constava oautor como sacado, foramindevidamente apontados paraprotesto, mas que não possui ne-nhum débito com o sacador ori-ginário (Vieira e Michel Ltda) eque o protesto por indicação foifraudulento, uma vez que as du-plicatas não lhe foram apresenta-das para aceite.

O Juízo de Direito da 3ª VaraCível da Comarca de Novo Hambur-go/RS - 2º Juizado - julgou proce-dentes os pedidos para declarar ainexigibilidade dos títulos e con-denar solidariamente os requeridosa pagarem ao autor o valor de R$7.600,00 (sete mil e seiscentos re-ais) a título de dano moral (fls. 110-116).

A sentença foi mantida em graude apelação, nos termos da seguin-te ementa:

DIREITO PRIVADO NÃO ESPECI-FICADO. AÇÃO DECLARATÓRIADE INEXIGIBILIDADE DE TÍTU-LO C/C INDENIZAÇÃO POR DA-NOS MORAIS.Ilegitimidade passiva. Inocor-rência. Responsabilidade da ins-tituição financeira ré que rece-beu o título via endosso man-dato. Conduta culposa caracte-rizada. Dano moral. Ocorrên-cia. Quantum da indenização.Munutenção.Apelos improvidos. (fl. 161)

Opostos embargos de declara-ção, foram eles rejeitados (fls. 179-182).

Sobreveio recurso especial in-terposto por Banco do Brasil S/A,apoiado nas alíneas “a” e “c” dopermissivo constitucional, noqual se alega, além de dissídiojurisprudencial, ofensa ao art. 535do CPC; e arts. 186 e 188, inciso I,do Código Civil de 2002 (arts. 159e 160 do Código Civil de 1916).

Aduz o recorrente ter agidodentro dos limites legais no queconcerne ao protesto dos títulosem questão, não havendo nenhu-ma ilicitude ou abuso de direito.Sustenta ser mero mandatário docredor que lhe transmitiu os títu-los apontados por endosso-manda-to e, nessa qualidade, agiu noexercício do direito asseguradopelo art. 17, inciso I, da Lei Unifor-me de Genebra, bem como pelo art.25 da Lei n. 5.474/68 e art. 43 doDecreto n. 2.044/08.

Em face disso, requereu o pro-vimento do especial para que fos-se reconhecida a ilegitimidade dobanco para responder à açãoindenizatória, afastar a condena-ção imposta ou, subsidiariamente,reduzir o quantum.

Sem contrarrazões, o especialfoi admitido (fls. 205-210).Ascen-dendo os autos a esta Corte, e ve-rificando a existência demultiplicidade de feitos a versar,de um modo geral, acerca da res-ponsabilidade da instituição fi-nanceira que, recebendo títulopor endosso-mandato, leva-oindevidamente a protesto, afeteio julgamento da controvérsia àapreciação da Segunda Seção,

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DUPLICATA RECEBIDA POR ENDOSSO-MANDATO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO. NECESSIDADE DE CULPA

nos termos do art. 543-C do CPCe Resolução n. 8/2008 do STJ.

A Federação Brasileira de Ban-cos - FEBRABAN manifestou-secomo amicus curiae pela ilegitimi-dade passiva da instituição finan-ceira, na qualidade de endos-satária-mandatária, porquanto to-das as funções são exercidas emnome do endossante-mandante,não possuindo o endossatário dis-ponibilidade sobre o crédito, en-carregando-se unicamente dos atosde cobrança. (fls. 228-274)

O Ministério Público Federal,mediante parecer subscrito peloSubprocurador-Geral da RepúblicaDurval Tadeu Guimarães (fls. 283-287), opina pelo não conhecimen-to ou pelo não provimento do re-curso especial.

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUISFELIPE SALOMÃO (Relator):

2. O presente caso submetido aorito do art. 543-C do CPC circuns-creve-se ao tema relativo à respon-sabilidade de quem recebe títulode crédito por endosso-mandato eleva-o a protesto, o qual, posteri-ormente, é tido por indevido.

2.1. Como é de conhecimentocursivo, o endosso próprio, pleno,também chamado translativo, éaquele mediante o qual se transfe-rem os direitos decorrentes do tí-tulo de crédito (LUG, at. 14, e LC,art. 20).

O impróprio, à sua vez, é o atopelo qual o endossante transfereapenas o exercício dos direitosemergentes da cártula, sem que

remanesça ao endossante respon-sabilidade cambiária pelo aceite oupagamento.

O chamado endosso-mandato,com efeito, é espécie do gênero“endosso impróprio”, constituindocláusula pela qual o endossanteconstitui o endossatário seu man-datário, especificamente para aprática dos atos necessários ao re-cebimento dos valores representa-dos no título, e para tal desideratotransfere-lhe todos os direitos cam-biais do título.

É medida de simplificação daoutorga de poderes do mandanteao mandatário, porquanto é ins-trumento exclusivamente cambiale se perfectibiliza com cláusulaaposta no próprio título.

É o endosso a que faz mençãoo art. 18 da Lei Uniforme de Gene-bra relativa a nota promissória eletra de câmbio:

Art. 18. Quando o endosso con-tém a menção “valor a cobrar”(valeur en recouvrement), “paracobrança” (pour encaissement),“por procuração” (par procu-ration), ou qualquer outra men-ção que implique um simplesmandato, o portador pode exer-cer todos os direitos emergen-tes da letra, mas só podeendossá-la na qualidade de pro-curador.

Disposição semelhante é encon-trada no art. 26 da Lei do Cheque(Lei n. 7.357/85) e art. 917 do Códi-go Civil de 2002.

Nos termos do magistério deRubens Requião, com o endosso-mandato, “transmite-se ao man-datário-mandatário, assim inves-

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246 Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

tido de mandato e da posse dotítulo, o poder de efetuar a co-brança, dando quitação de seuvalor” (REQUIÃO, Rubens. Cursode direito comercial. 2º volume.São Paulo: Saraiva, 2010, p. 495).O endosso translativo, à sua vez,espécie de endosso próprio e ple-no, é o ato cambiário medianteo qual “o endossador transfere aoendossatário o título e, emconsequência, os direitos nele in-corporados” (Ibidem, p. 492).

Assim, no endosso-mandato oendossatário não age em nomepróprio, mas em nome doendossante, razão pela qual o de-vedor poderá opor as exceções pes-soais que tiver somente contra oendossante, mas nunca contra oendossatário.

Com efeito, não agindo oendossatário-mandatário em nomepróprio nos atos de cobrança dacártula, a responsabilidade peran-te terceiros não decorre exatamen-te de sua condição de endossatário,mas sim da posição de mandatáriodo credor primitivo ou decorrentede ato culposo próprio.

2.2. Vale dizer, a responsabili-dade do endossatário-mandatárionão resulta diretamente das regrasde direito cambial, mas de direitocivil comum, sobretudo as aplicá-veis à responsabilidade do manda-tário em relação a terceiros.

Daí por que, com acerto, tem-se afirmado na jurisprudência daCasa que “[r]esponde o banco peloprotesto indevido da duplicata,não em face da simples existênciade endosso-mandato, mas por tereste participado para o evento da-noso com culpa apenas a ele im-

putável” (AgRg no REsp 1021046/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,TERCEIRA TURMA, julgado em 15/04/2008).

Também nessa linha é a doutri-na comercialista:

Os atos devem ser praticadospelo endossatário em nome epor conta do endossante-man-dante, inclusive a propositurade ação cambiária e a habilita-ção de crédito em concordataou falência. Do mesmo modo, oendossatário-mandatário éparte ilegítima para figurar nopólo passivo em ação cautelarde sustação de protesto de tí-tulo de crédito, e falece compe-tência ao endossatário paraagir em nome próprio por nãoser o proprietário do título. [...]Não se pode esquecer que arelação entre o endossante e oendossatário consubstanciacontrato de mandato, e, assim,o endossatário só pode agir emnome e por conta do mandan-te. Não é por outra razão que aalínea 2ª do art. 18 da LUG sóconfere aos coobrigados o direi-to de opor ao endossatário-mandatário as exceçõesoponíveis ao endossante-man-dante, por ser este a parte au-tora da ação (ROSA JUNIOR. LuizEmygdio Franco da. Títulos decrédito. 4 ed. Rio de Janeiro:Renovar, 2006, pp. 268-269).

2.3. São exemplos de circunstân-cias em que há responsabilidadepor protesto indevido daquele querecebeu título por endosso-manda-to: a conduta ultra vires queextrapola os poderes transferidospela cláusula-mandato, mercê doque dispõe o art. 662 do CC/2002,

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DUPLICATA RECEBIDA POR ENDOSSO-MANDATO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO. NECESSIDADE DE CULPA

além de conduta culposa pratica-da com negligência (art. 186 do CC/2002), de que é exemplo o aponta-mento do título a protesto a des-peito da ciência prévia acerca dafalta de higidez da cártula ou daocorrência de pagamento.

Nessa linha, a jurisprudência éuníssona:

Processual civil. Agravo no agra-vo de instrumento. Ação de nu-lidade de título cambial. Indeni-zação. Duplicata. Legitimidadepassiva da instituição financei-ra. Endosso-mandato. Respon-sabilidade. Precedentes da Cor-te.- O banco endossatário, aindaque por endosso-mandato, que,advertido pela suposta devedo-ra do desfazimento do negócio,leva o título a protesto, tem le-gitimidade passiva para ação deindenização.Agravo não provido.(AgRg no Ag 552.667/RJ, Rel.Ministra NANCY ANDRIGHI,TERCEIRA TURMA, julgado em03/08/2004, DJ 23/08/2004, p.230)_________________________AGRAVO REGIMENTAL NOAGRAVO DE INSTRUMENTO.ENDOSSO-MANDATO. PROTES-TO INDEVIDO DE TÍTULO. RES-PONSABILIDADE CIVIL DA INS-TITUIÇÃO FINANCEIRA. RECO-NHECIMENTO PELO TRIBUNALDE ORIGEM DE ATUAÇÃO COMNEGLIGÊNCIA. REEXAME DECIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS DOC A S O . I M P O S S I B I L I D A D E .SÚMULA 7/STJ. PRECEDENTES.1. A jurisprudência desta C. Cor-te entende que, em regra, a ins-tituição financeira que recebetítulo de crédito por endosso-mandato não é responsável

pelos efeitos de eventual pro-testo indevido, exceto se exce-der os poderes do mandato,agir de modo negligente ou,caso alertada sobre falha do tí-tulo, levá-lo a protesto.[...](AgRg no Ag 1161507/RS, Rel.Ministro RAUL ARAÚJO, QUAR-TA TURMA, julgado em 01/03/2011, DJe 21/03/2011)._________________________PROCESSUAL CIVIL E CIVIL.AGRAVO REGIMENTAL. PRO-TESTO INDEVIDO. ENDOSSO-MANDATO. ILEGITIMIDADEPASSIVA DA INSTITUIÇÃO FI-NANCEIRA. DECISÃO CONFOR-ME PRECEDENTES DESTA COR-TE. AGRAVO REGIMENTAL AQUE SE NEGA PROVIMENTO.1 - Encontra-se pacificado nes-ta Corte Superior o entendimen-to no sentido de que a institui-ção financeira que recebe o tí-tulo por endosso-mandato e nãoage de forma temerária, oucom desídia, é parte ilegítimapara figurar como réu na açãocautelar de sustação de protes-to, cumulada com danos mo-rais.2 - Agravo regimental a que senega provimento.(AgRg no Ag1127336/RJ, Rel. Ministro LUISFELIPE SALOMÃO, QUARTATURMA, julgado em 10/05/2011, DJe 13/05/2011)_________________________AGRAVO REGIMENTAL. RECUR-SO ESPECIAL. PROTESTOINDEVIDO DE DUPLICATA. EN-DOSSO-MANDATO. ILEGITIMI-DADE DA INSTITUIÇÃO FINAN-CEIRA.O banco que recebe por endos-so-mandato duplicatas repre-sentadas por boletos bancáriossomente é parte legítima pararesponder pelos danos causa-

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA JURISPRUDÊNCIA

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dos pelo indevido protesto dotítulo se houver sido advertidopreviamente sobre a falta dehigidez da cobrança e, aindaassim, nela prosseguir, hipóte-se não caracterizada nos autos.Agravo improvido.(AgRg no REsp 902.622/AL, Rel.Ministro SIDNEI BENETI, TERCEI-RA TURMA, julgado em 04/11/2008, DJe 26/11/2008)_________________________AGRAVO REGIMENTAL. RECUR-SO ESPECIAL. PROTESTOINDEVIDO DE DUPLICATA. EN-DOSSO-MANDATO. ILEGITIMI-DADE DA INSTITUIÇÃO FINAN-CEIRA. CASO CONCRETO. PECU-LIARIDADES.1. O banco que recebe por en-dosso-mandato duplicatas re-presentadas por boletos bancá-rios somente é parte legítimapara responder pelos danoscausados pelo indevido protes-to do título se houver sido ad-vertido previamente sobre afalta de higidez da cobrança e,ainda assim, nela prosseguir,hipótese não caracterizada nosautos.2. AGRAVO DESPROVIDO.(AgRg no REsp 866.748/PR, Rel.Ministro PAULO DE TARSOSANSEVERINO, TERCEIRA TUR-MA, julgado em 16/11/2010,DJe 01/12/2010)_________________________COMERCIAL E PROCESSUAL.PROTESTO DE TÍTULO. ENDOS-SO MANDATO. BANCO MAN-DATÁRIO. RESPONSABILIDADE.ADVERTÊNCIA PRÉVIA DO CRE-DOR. DANO MORAL. VALOR.ARBITRAMENTO EM CONFOR-MIDADE COM OS PRINCÍPIOSDA RAZOABILIDADE EPROPORCIONALIDADE.1. Consoante a jurisprudênciaconsolidada do STJ, no endosso

mandato o endossatário res-ponde pelo protesto indevido detítulo quando procede ou man-tém o apontamento após ad-vertido de sua irregularidade,seja pela falta de higidez dacártula, seja pelo seu devidopagamento. Precedentes.[...](AgRg no Ag 1101072/SP, Rel.Ministra MARIA ISABELGALLOTTI, QUARTA TURMA,julgado em 02/08/2011, DJe 12/08/2011)_________________________CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DEINDENIZAÇÃO. JULGAMENTOEXTRA PETITA. NÃO CONFIGU-RAÇÃO. PROTESTO INDEVIDODE DUPLICATA. COMUNICA-ÇÃO PRÉVIA DA DEVEDORASOBRE A FALTA DE HIGIDEZ DOTÍTULO. BANCO COBRADOR.ENDOSSO-MANDATO. RES-PONSABILIDADE. DANO MO-RAL. PESSOA JURÍDICA.SÚMULA N. 227-STJ.I. Há responsabilidade do ban-co quando este, recebendo aduplicata em endosso-manda-to, mas previamente advertidopor escrito pela sacada, sobre afalta de higidez da cártula, ain-da assim promove o protesto,sem antes certificar-se junto àempresa credora, o que é mui-to fácil, sobre a veracidade da-quela informação, causandodano moral.II. “A pessoa jurídica pode so-frer dano moral” - Súmula n.227/STJ.III. Recurso especial não conhe-cido.(REsp 259.277/MG, Rel. MinistroALDIR PASSARINHO JUNIOR,QUARTA TURMA, julgado em27/06/2002, DJ 19/08/2002, p.171)_________________________

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DUPLICATA RECEBIDA POR ENDOSSO-MANDATO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO. NECESSIDADE DE CULPA

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DA-NOS MORAIS E MATERIAIS.PROTESTO INDEVIDO DE DU-PLICATA PAGA NO VENCIMEN-TO. BANCO ENDOSSATÁRIO.ENDOSSO-MANDATO. CIÊNCIADO PAGAMENTO. LEGITIMIDA-DE PASSIVA.O banco endossatário, aindaque por endosso-mandato, que,advertido do pagamento da du-plicata, leva o título a protesto,tem legitimidade passiva paraação de indenização pelo danoexperimentado pela sacada,relativamente aos efeitos doato indevido.Recurso especialnão conhecido.(REsp 285.732/MG, Rel. MinistroCESAR ASFOR ROCHA, QUARTATURMA, julgado em 05/12/2002, DJ 12/05/2003, p. 304)_________________________

3. Com efeito, mantendo a ju-risprudência há anos sufragada noâmbito deste Colegiado, a tese queencaminho para efeitos do art. 543-C do CPC é a seguinte:

Só responde por danos materi-ais e morais o endossatário querecebe título de crédito por en-dosso-mandato e o leva a pro-testo, se extrapola os poderesde mandatário ou em razão deato culposo próprio, como nocaso de apontamento depois daciência acerca do pagamentoanterior ou da falta de higidezda cártula.

4. No caso concreto, afasto porprimeiro a alegação de ofensa aoart. 535 do CPC, porquanto oacórdão abordou todas as questõesnecessárias ao desate da controvér-sia.

E, no mérito, ao recurso há deser negado provimento.

Consta dos autos que o bancoendossatário recebeu duplicatanão aceita e sem nenhum compro-vante da entrega da mercadoria ouda prestação de serviço e, aindaassim, indicou o título a protesto.

Em situação idêntica, já decidiuesta Corte que “ausente o aceitedas duplicatas, cabe ao endos-satário exigir do endossante a apre-sentação do comprovante de en-trega das mercadorias ou da pres-tação dos serviços, no momentoem que realizado o endosso” (REsp770.403/RS, Rel. Ministro CASTROFILHO, TERCEIRA TURMA, julgadoem 25/04/2006, DJ 15/05/2006,p. 212).

Com efeito, no caso concreto,o título apontado a protesto nãoostentava, primo icto oculi, condi-ções de exigibilidade, razão pelaqual, assim como entendeu oacórdão recorrido, tenho por con-figurada a conduta negligente doendossatário.

Também o valor da indenizaçãoarbitrada na origem (R$ 7.600,00,com correção monetária a partir doarbitramento e juros de mora apartir da citação) não autoriza aintervenção desta Corte para redu-zi-lo, porquanto inexistente aexorbitância.

Tem-se entendido que, em se tra-tando de inscrição indevida em ca-dastros de proteção ao crédito, épossível a fixação de indenização pordanos morais em até 50 (cinquenta)salários mínimos. Nesse sentido, sãoos seguintes precedentes: AgRg noREsp 971.113/SP, Rel. Ministro JOÃOOTÁVIO DE NORONHA, QUARTA

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TURMA, julgado em 23/02/2010;AgRg no Ag 889.010/SP, Rel. Minis-tro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TUR-MA, julgado em 11/03/2008.

Também inexiste recurso no queconcerne à forma de atualizaçãodo débito, em razão do que ficatambém mantido o acórdão noparticular.

5. Diante do exposto, nego pro-vimento ao recurso especial.

É como voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

Certifico que a egrégia SEGUN-DA SEÇÃO, ao apreciar o processoem epígrafe na sessão realizadanesta data, proferiu a seguinte de-cisão:

A Seção, por unanimidade, ne-gou provimento ao recurso espe-cial, nos termos do voto do Sr. Mi-nistro Relator.

Para efeito do art. 543-C do CPC,só responde por danos materiais emorais o endossatário que recebetítulo de crédito por endosso-man-dato e o leva a protesto, seextrapola os poderes de mandatá-rio ou em razão de ato culposopróprio, como no caso de aponta-mento depois da ciência acerca dopagamento anterior ou da falta dehigidez da cártula.

Os Srs. Ministros Raul Araújo,Paulo de Tarso Sanseverino, Anto-nio Carlos Ferreira, Marco Buzzi,Nancy Andrighi e Massami Uyedavotaram com o Sr. Ministro Relator.

Impedido o Sr. Ministro RicardoVillas Bôas Cueva.

Ausente, justificadamente, a Sra.Ministra Maria Isabel Gallotti.

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DUPLICATA DESPROVIDA DE CAUSA RECEBIDA POR ENDOSSO TRANSLATIVO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO

Superior Tribunal de Justiça

Direito Civil e Cambiário. Recurso Especial representativo decontrovérsia. Art. 543-C do CPC. Duplicata desprovida de causarecebida por endosso translativo. Protesto. Responsabilidade doendossatário.1

1 Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=201001785938&dt_publicacao=14/11/2011>. Acesso em: 29 abr. 2012.

EMENTA OFICIAL

DIREITO CIVIL E CAMBIÁRIO.RECURSO ESPECIAL REPRESENTATI-VO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-CDO CPC. DUPLICATA DESPROVIDADE CAUSA RECEBIDA POR ENDOSSOTRANSLATIVO. PROTESTO. RESPON-SABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO.

1. Para efeito do art. 543-C doCPC: O endossatário que recebe,por endosso translativo, título decrédito contendo vício formal, sen-do inexistente a causa para confe-rir lastro a emissão de duplicata,responde pelos danos causados di-ante de protesto indevido, ressal-vado seu direito de regresso con-tra os endossantes e avalistas.

2. Recurso especial não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidosos autos em que são partes as aci-ma indicadas, acordam os Minis-tros da Segunda Seção do Superi-or Tribunal de Justiça, por unani-midade, negar provimento ao re-curso especial, nos termos do votodo Sr. Ministro Relator.

Para efeito do art. 543-C do CPC,o endossatário que recebe, por en-

dosso translativo, título de créditocontendo vício formal, inexistentea causa para conferir lastro a emis-são de duplicata, responde pelosdanos causados diante de protestoindevido, ressalvado seu direito deregresso contra os endossantes eavalistas.Os Srs. Ministros Raul Ara-újo, Paulo de Tarso Sanseverino,Antonio Carlos Ferreira, MarcoBuzzi, Nancy Andrighi e MassamiUyeda votaram com o Sr. MinistroRelator.

Impedido o Sr. Ministro RicardoVillas Bôas Cueva.

Ausente, justificadamente, a Sra.Ministra Maria Isabel Gallotti.

Sustentou, oralmente, a Dra.ANA DIVA TELES RAMOS EHRICH,pelo RECORRENTE BANCO DO BRA-SIL S/A.

Brasília (DF), 28 de setembro de2011 (Data do Julgamento).

MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO,Relator.

REsp 1.213.256 - DJe 14.11.2011.

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO LUISFELIPE SALOMÃO (Relator):

1.Vagner Adalberto dos S.Brandão & CIA Ltda. ajuizou ação

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declaratória de cancelamento deprotesto cumulada com reparaçãopor danos morais em face de Brume Saraiva Ltda. e Banco do BrasilS/A . Alega inexistência de causapara emissão das duas duplicataslevadas a protesto. Aduz ter de-sistido do negócio jurídico antesda sua validade, em virtude dademora na entrega da mercado-ria. Nesse contexto, pleiteia inde-nização a título de ressarcimentopor danos morais causados porprotesto indevido, o qual acarre-tou a inscrição do seu nome emórgão de proteção ao crédito -SERASA.

Após excluído da lide o réuBrum e Saraiva, o Juízo de Direitoda 3ª Vara Cível da Comarca dePelotas/RS julgou procedentes ospedidos e determinou o cancela-mento do protesto, condenando osréus ao pagamento de indenizaçãopor danos morais no valor de 10salários vigentes ao tempo deprolação da sentença, com juros demora e correção monetária nos ter-mos das súmulas 54 e 362 do STJ,respectivamente (fls. 70-76).

O Banco do Brasil S/A interpôsrecurso de apelação, ao qual foinegado provimento, nos termos daseguinte ementa (fls. 99-104):

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSA-BILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO.DANOS MORAIS. CANCELA-MENTO DE PROTESTO. ENDOS-SO TRANSLATIVO. LEGITIMIDA-DE DO BANCO ENDOSSATÁRIO.SENTENÇA MANTIDA. REJEITA-RAM A PRELIMINAR E NEGA-RAM PROVIMENTO AO AGRA-VO RETIDO E AO APELO. UNÂ-NIME.

Opostos embargos de declara-ção, foram eles rejeitados (fls. 116-120).

Sobreveio recurso especial in-terposto por Banco do Brasil S/A,apoiado nas alíneas “a” e “c” dopermissivo constitucional, no qualse aponta, além de dissídiojurisprudencial, violação dos arti-gos 535, II, e 458 do CPC; e art. 13,§ 4º, da Lei 5.474/68.

Aduz que, em casos de endossotranslativo, por se tratar de cobran-ça simples, os comandos para taldesiderato são automáticos, nos ter-mos da Lei de Duplicatas, que auto-riza a remessa dos títulos a cartóriodepois de transcorridos 5 (cinco) diasdo vencimento das duplicatas.

Nesses termos, requer seja de-clarada a nulidade do acórdão re-corrido por negativa de prestaçãojurisdicional ou reconhecida suailegitimidade, a fim de não ser res-ponsabilizado pelos danos morais.

Pleiteia, por fim, o afastamen-to da condenação aos ônus sucum-benciais ou, subsidiariamente, suacompensação.

Sem contrarrazões, o especial foiadmitido (fl. 152).

Ascendendo os autos a esta Cor-te, e verificando a existência demultiplicidade de feitos a versar,de um modo geral, acerca da res-ponsabilidade da instituição finan-ceira que, recebendo título porendosso translativo, leva-o inde-vidamente a protesto, afetei o jul-gamento da controvérsia à apreci-ação da Segunda Seção, nos ter-mos do art. 543-C do CPC e Resolu-ção n. 8/2008 do STJ.

A Federação Brasileira de Ban-cos - FEBRABAN manifestou-se

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DUPLICATA DESPROVIDA DE CAUSA RECEBIDA POR ENDOSSO TRANSLATIVO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO

como amicus curiae pela nãoresponsabilização do endossatáriopor vícios na criação ou circulaçãoda cártula. Assim, na sistemática doinstituto do endosso, prevalece aregra da inoponibilidade das exce-ções pessoais a terceiros de boa-fé,configurando o protesto do títuloum exercício regular de direito,inclusive para preservar o direitode regresso contra o endossante(fls. 181-231).

O Ministério Público Federal,mediante parecer oferecido peloSubprocurador-Geral da RepúblicaWashington Bolívar Júnior, opinapelo não provimento do recursoespecial. Entende o Parquet que,para o endossatário realizar o pro-testo da cártula, deve antes se cer-tificar se o título realmente guar-da correspondência com a causa deemissão, cautela que não foi devi-damente observada no caso emapreço (fls. 233-238).

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO LUIS FELIPESALOMÃO (Relator):

2. O presente caso submetido aorito do art. 543-C do CPC circuns-creve-se ao tema relativo à respon-sabilidade de quem recebe títulode crédito por endosso translativoe leva-o a protesto.

2.1. Ressalto, nesse primeiromomento, haver diferença substan-cial entre o endosso translativo e oendosso-mandato. Com este, “trans-mite-se ao endossatário-mandatá-rio, assim investido de mandato eda posse do título, o poder de efe-tuar a cobrança, dando quitação de

seu valor” (REQUIÃO, Rubens. Cur-so de direito comercial. 2º volume.São Paulo: Saraiva, 2010, p. 495).Aquele, o endosso translativo, queé espécie de endosso próprio e ple-no, é o ato cambiário mediante oqual “o endossador transfere aoendossatário o título e, emconsequência, os direitos nele incor-porados” (Ibidem, p. 492).

2.2. Nesse passo, cumpre, nosegundo momento, esclarecer quehá também diferenças notáveisentre duplicata sem causa (“fria”ou simulada) e aquela cujo negó-cio jurídico subjacente, posterior-mente, tenha se desfeito ou tenhasido descumprido.

É de se notar que a “causalida-de” da duplicata reside apenas nasua origem, mercê do fato de so-mente poder ser emitida para adocumentação de crédito nascidode venda mercantil ou de presta-ção de serviços.

Porém, a duplicata mercantil étítulo de crédito, na sua generali-dade, como qualquer outro, estan-do sujeita às regras de direito cam-bial, nos termos do art. 25 da Leinº 5.474/68, ressaindo daí,notadamente, os princípios dacartularidade, abstração, autono-mia das obrigações cambiais einoponibilidade das exceções pes-soais a terceiros de boa-fé.

Vale dizer, conquanto a dupli-cata mercantil seja “causal” na suaemissão, sua circulação, mormen-te após o aceite do sacado, rege-sepelo princípio da abstração, des-prendendo-se de sua causa origi-nal, sendo por isso inoponíveis ex-ceções pessoais a terceiros de boa-fé, como o desfazimento do negó-

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cio jurídico subjacente que deralastro à emissão da duplicata.

Esse também é o preciso enten-dimento de Amador Paes deAlmeida, que bem identifica a cau-salidade da duplicata apenas na suaemissão, desaparecendo esse traçocom o aceite do sacado e com acirculação mediante endosso:

Título eminentemente causal,tem seu alicerce no contrato decompra e venda mercantil ou naprestação de serviços. Sem es-tes, como adverte CarlosFulgêncio da Cunha Peixoto, éinexistente. Conquanto mante-nha traços comuns com a letrade câmbio, desta distingue-sepor ter sua origem necessaria-mente presa a um contratomercantil - disso decorrendo suanatureza causal. Daí só admitir,com relação ao sacador, as ex-ceções que se fundarem emdevolução da mercadoria, víci-os, diferenças de preço, etc.,exceções, entretanto, jamaisarguíveis contra terceiros. To-davia, de causal torna-se abs-trato por força do aceite,desvinculando-se do negócio ju-rídico subjacente sobretudoquando se estabelece a circula-ção por meio do endosso(ALMEIDA, Amador Paes de.Teoria e prática dos títulos decrédito. 29 ed. São Paulo: Sarai-va, 2011, p. 196).

Fábio Ulhoa Coelho, na esteirado magistério de Pontes deMiranda, faz o mesmo alerta,verbis:

[...] Claro que, sendo endossadoa terceiro de boa-fé, em razãodo regime cambiário aplicável

à circulação do título (LD, art.25), a falta de causa legítimanão poderá ser oposta pelo sa-cado perante o endossatário. Aineficácia do título como dupli-cata, em função da irregulari-dade do saque, somente podeser invocada contra o sacador,o endossatário-mandatário outerceiros de má-fé (quer dizer,os que conhecem o vício na emis-são do título).Da causalidade da duplicata,note-se bem, não é correto con-cluir qualquer limitação ou ou-tra característica atinente ànegociação do crédito registra-do pelo título. A duplicata mer-cantil circula como qualqueroutro título de crédito, sujeitaao regime do direito cambiário.Isso significa, em concreto, queela comporta endosso, que oendossante responde pela sol-vência do devedor, que o exe-cutado não pode opor contraterceiros de boa-fé exceçõespessoais, que as obrigações dosavalistas são autônomas emrelação às dos avalizados, etc.Não é jurídico pretendervinculação entre a duplicata e acompra e venda mercantil, quelhe deu ensejo, maior do que aexistente entre a letra de câm-bio, a nota promissória ou o che-que e as respectivas relaçõesoriginárias. (Curso de direito co-mercial, volume I: direito deempresa. 12ª ed. São Paulo: Sa-raiva, 2008, p. 459)

Ou seja, o desfazimento do ne-gócio jurídico subjacente, depoisde concluída a emissão da dupli-cata, sobretudo com o “aceite”,não torna o título desprovido decausa, aplicando-se - desde o pri-meiro endosso - a regra da inoponi-

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DUPLICATA DESPROVIDA DE CAUSA RECEBIDA POR ENDOSSO TRANSLATIVO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO

bilidade das exceções pessoais aterceiros de boa-fé.

Vale dizer, o que confere lastroà duplicata mercantil que contacom “aceite”, como título de cré-dito apto à circulação, é apenas aexistência do negócio jurídicosubjacente, e não o seu adim-plemento, o qual se consubstanciaexceção pessoal do sacadooponível apenas ao credor originá-rio, mas não a terceiros de boa-fé.

Nesse sentido já se manifestoua jurisprudência desta Corte:

DIREITO COMERCIAL. DUPLICA-TA ACEITA E ENDOSSADA EMGARANTIA PIGNORATÍCIA. EXE-CUÇÃO PELO ENDOSSATÁRIODE BOA-FÉ. OPOSIÇÃO PELOSACADO. IMPOSSIBILIDADE.AUTONOMIA E ABSTRAÇÃO DOTÍTULO. DIREITO PROCESSUALCIVIL. EMBARGOS DE DECLARA-ÇÃO. PREQUESTIONAMENTO.FINS NÃO PROCRASTINATÓRIOS.MULTA DO ART. 538, PARÁGRA-FO ÚNICO, CPC. INAPLICA-BILIDADE.- A duplicata mercantil é títulode crédito criado pelo direitobrasileiro, disciplinada pela Lei5.474/68, submetendo-se aomesmo regime jurídico cambialdos demais títulos de crédito,sujeita, portanto, aos princípiosda cartularidade, da literalidadee, principalmente, da autono-mia das obrigações.- Nos termos do art. 15 da Leinº 5.474/68, para execução ju-dicial da duplicata basta o pró-prio título, desde que aceito.Assim, não se exige que oendossatário confira a regula-ridade do aceite, pois se tratade ato pelo qual o títulotransmuda de causal para abs-

trato, desvencilhando-se do ne-gócio originário.- Ausente qualquer indício demá-fé por parte do endossa-tário, exigir que ele respondapor fatos alheios ao negócio ju-rídico que o vinculam à duplica-ta contraria a própria essênciado direito cambiário, aniquilan-do sua principal virtude, que épermitir a fácil e rápida circula-ção do crédito.- Embargos dedeclaração que tenham por fimo preques-tionamento não sesujeitam à sanção do artigo 538,parágrafo único, do CPC. Sú-mula 98/STJ.Recurso especialconhecido e parcialmente pro-vido.(REsp 1102227/SP, Rel. MinistraNANCY ANDRIGHI, TERCEIRATURMA, julgado em 12/05/2009, DJe 29/05/2009)_________________________RECURSO ESPECIAL. COMERCI-AL. TÍTULOS DE CRÉDITO. DU-PLICATA. ACEITE. TEORIA DAAPARÊNCIA. AUSÊNCIA DE EN-TREGA DAS MERCADORIAS.EXCEÇÃO OPOSTA A TERCEI-ROS. PRINCÍPIO DA AUTONO-MIA DAS CAMBIAIS. IMPOSSIBI-LIDADE.1. Ainda que a duplicata mer-cantil tenha por característicao vínculo à compra e vendamercantil ou prestação de ser-viços realizada, ocorrendo oaceite - como verificado nosautos -, desaparece a causalida-de, passando o título a osten-tar autonomia bastante paraobrigar a recorrida ao paga-mento da quantia devida, inde-pendentemente do negócio ju-rídico que lhe tenha dado cau-sa;2. Em nenhum momento restoucomprovado qualquer compor-tamento inadequado da recor-

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rente, indicador de seu conhe-cimento quanto ao descum-primento do acordo realizadoentre as partes originárias;3. Recurso especial provido.(REsp 668682/MG, Rel. MinistroHÉLIO QUAGLIA BARBOSA,QUARTA TURMA, julgado em13/02/2007, DJ 19/03/2007 p.355)_________________________

Tal entendimento foi por mimadotado na relatoria do REsp.261.170/SP, QUARTA TURMA, julga-do em 4/8/2009.

Em suma, em se tratando de ale-gação de desacerto comercial de-corrente do negócio jurídicosubjacente, o caso é de exceçãopessoal inoponível ao endossatáriode boa-fé, motivo pelo qual é líci-to eventual protesto realizado peloendossatário em razão do inadim-plemento do sacado.

Ademais, nessa hipótese, o pro-testo é medida que se impõe, comoforma de resguardo do próprio di-reito de regresso do endossatáriocontra o endossante e avalistas, nostermos do que dispõe o art. 13,§ 4º, da Lei n. 5.474/68, verbis:

O portador que não tirar o pro-testo da duplicata, em formaregular e dentro do prazo da30 (trinta) dias, contado da datade seu vencimento, perderá odireito de regresso contra osendossantes e respectivosavalistas.

Assim, desfeito o negócio jurí-dico subjacente, depois de aperfei-çoada a emissão da duplicata, econtando com o “aceite”, tal fatosomente pode ser alegado em face

do credor originário, o qual arcarácom todos os prejuízos decorren-tes dos atos de cobrança do título,como o protesto.

Esse sempre foi o entendimen-to da jurisprudência da Casa:

DUPLICATA. ENDOSSO. PAGA-MENTO FEITO PELO DEVEDORDIRETAMENTE AO ENDOS-SANTE. PROTESTO PRETENDI-DO PELO BANCO ENDOSSA-TARIO.Aceita a duplicata e endossada,legitimado a receber o paga-mento é o endossatário. O de-vedor que paga a quem não é odetentor do titulo, contentan-do-se com simples quitação emdocumento separado, corre orisco de ter de pagar segundavez ao legitimo portador. Quempaga mal paga duas vezes.Protesto intentado peloendossatário. Sua necessidade,para resguardo do direitocambiário de regresso contra oendossante. É, pois, ato lícito,praticado no exercício regularde um direito.Lei 5.474, de 18.07.68, art. 13,par. 4º.Recurso especial conhecido eprovido.(REsp 596/RS, Rel. MinistroATHOS CARNEIRO, QUARTATURMA, julgado em 10/10/1989, DJ 06/11/1989, p. 16690,REPDJ 06/11/1989, p. 16690)_________________________DUPLICATA NÃO ACEITA - EN-DOSSO - PROTESTO - PEDIDODE NULIDADE FUNDADO EMINADIMPLEMENTO DE OBRIGA-ÇÃO ASSUMIDA PELO SACA-DOR.A irregularidade na emissão daduplicata ou a inadimplência doemitente poderá ser utilmente

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DUPLICATA DESPROVIDA DE CAUSA RECEBIDA POR ENDOSSO TRANSLATIVO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO

arguida entre as partes origi-nais.Endossado, entretanto, o títu-lo, cuja validade condiciona-seà observância dos requisitos deforma e não a regularidade dosaque, poderá o endossatárioexercer amplamente os direi-tos dele emergentes. No caso,o direito de regresso contraendossante.Protesto - direito de regresso.Juridicamente o protesto emnada afeta a posição do sacadoque não aceitou. Entretanto,não podem ser ignoradas asenormes consequências que ocomércio lhe empresta. Ematenção a isso, mantém-se oimpedimento ao protesto, re-conhecendo-se a inexistência deobrigação do sacado para como emitente, mas ressalva-se, ex-pressamente, o direito de re-gresso do endossatário.(REsp 2166/RS, Rel. MinistroEDUARDO RIBEIRO, TERCEIRATURMA, julgado em 29/05/1990, DJ 25/06/1990, p. 6037)_________________________COMERCIAL - DUPLICATA - EN-DOSSO - PROTESTO - DIREITODE REGRESSO.I - A duplicata, uma vez endos-sada, sua validade condiciona-se à observância dos requisi-tos de forma e não à regulari-dade do saque, poderá oendossatário exercer ampla-mente os direitos dele emer-gentes. No caso, o direito deregresso contra o endossantee, ao menos para garantir esseefeito, o protesto do titulo seimpõem. Esse, o entendimen-to que o STJ consolidou no as-pecto.II - Recurso não conhecido.(REsp 15.623/SP, Rel. MinistroWALDEMAR ZVEITER, TERCEI-

RA TURMA, julgado em 24/03/1992, DJ 20/04/1992, p. 5251)_________________________

2.3. Coisa bem distinta é ainexistência de contrato de vendamercantil ou de prestação de ser-viços subjacente ao título de cré-dito, portanto, emitido sem lastro,hipótese em que há caracterizaçãoda simulação ou emissão de dupli-cata “fria”, prática, inclusive, con-siderada crime, nos termos do art.172 do Código Penal.

Nessa hipótese, a inexistência delastro à emissão da duplicata podeser observada pelo endossatário,porquanto, à falta de negócio ju-rídico subjacente, o título endos-sado está desprovido de “aceite”ou do comprovante da entrega damercadoria/prestação do serviço.

A bem da verdade, a inexis-tência de causa à emissão de dupli-cata não consubstancia verdadeira-mente exceção pessoal, mas víciode natureza formal para emissão dotítulo, que o acompanha, portan-to, desde o nascedouro e não seconvola com endossos sucessivos.(REQUIÃO, Rubens. Curso de direi-to comercial. 2º volume. São Pau-lo: Saraiva, 2010, p. 517/518).

Vale dizer, a regra da inoponi-bilidade das exceções pessoais aterceiros de boa-fé, prevista emvários diplomas legais, como noDecreto n.º 2.044/1908, no CódigoCivil de 1916 e na Lei Uniforme deGenebra, não abarca os vícios deforma do título, extrínsecos ou in-trínsecos, como a emissão de du-plicata simulada, desvinculadade qualquer negócio jurídico e,ademais, sem aceite.

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Nesse sentido, confira-se prece-dente de minha relatoria, dentremuitos outros:

DIREITO COMERCIAL. DUPLICA-TA DE PRESTAÇÃO DE SERVI-ÇOS. EMISSÃO IRREGULAR. SI-MULAÇÃO. INOPONIBILIDADEDAS EXCEÇÕES PESSOAIS AENDOSSATÁRIOS DE BOA-FÉ.NÃO-APLICAÇÃO. VÍCIO FOR-MAL INTRÍNSECO.1. O que o ordenamento jurídi-co brasileiro veda - e isso desdeo Decreto n.º 2.044/1908, pas-sando-se pelo Código Civil de1916 e, finalmente, chegando-se à Lei Uniforme de Genebra -é a oposição de exceções denatureza pessoal a terceiros deboa-fé, vedação que não abar-ca os vícios de forma do título,extrínsecos ou intrínsecos, comoa emissão de duplicata simula-da, desvinculada de qualquernegócio jurídico e, ademais, semaceite ou protesto a lhe suprira falta.2. Em relação à Duplicata - é atéocioso ressaltar -, a Lei n.º 5.474/68 condiciona a sua emissão à re-alização de venda mercantil ouprestação de serviços, bem comoa aceitação do sacado ou, na au-sência, o protesto acompanhadode comprovante da realização donegócio subjacente, sem os quaisestará configurado o vício de for-ma intrínseco, o qual poderá seroposto pelo sacado a qualquerendossatário, ainda que de boa-fé.3. Recurso especial conhecido eimprovido.(REsp 774.304/MT, Rel. MinistroLUIS FELIPE SALOMÃO, QUAR-TA TURMA, julgado em 05/10/2010, DJe 14/10/2010)_________________________

Assim, cuidando-se de vício for-mal no título, como a inexistênciade causa apta a conferir lastro àemissão, eventual protesto levadoa efeito pelo endossatário, aindaque de boa fé, deve ser considera-do indevido.

Nessa hipótese, também nãopoderá alegar o endossatário a exi-gência legal do protesto paraviabilizar-lhe o direito de regressocontra o endossante, porquanto, aoreceber título evidentemente des-provido de causa, assumiu os ris-cos da inadimplência.

Ressalva-se apenas o direito deregresso do endossatário contra oendossante independentemente doprotesto.

Nesse sentido é a antiga juris-prudência da Corte:

COMERCIAL. DUPLICATA SEMACEITE E SEM LASTRO CO-MERCIAL.ENDOSSATÁRIA. AS-SUNÇÃO DO RISCO. RESPONSA-BILIDADE. DANO MORAL. CABI-MENTO. VINCULAÇÃO AO SALÁ-RIO MÍNIMO. INVIABILI-DADE.O endossatário de duplicatasem aceite e sem lastro comer-cial assume o risco de ser de-mandado por eventuais intem-péries relacionadas ao título,devendo responder por danosmorais. Precedentes.[...]Recurso especial parcialmenteconhecido e, nessa extensão,provido.(REsp 592.939/MG, Rel. MinistroCESAR ASFOR ROCHA, QUARTATURMA, julgado em 17/08/2004, DJ 16/11/2004 p. 297)_________________________DUPLICATA. Falta de causa. En-dosso. Protesto. Anulação. Per-das e danos. Pessoa Jurídica.

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DUPLICATA DESPROVIDA DE CAUSA RECEBIDA POR ENDOSSO TRANSLATIVO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO

- O banco que recebe por en-dosso, em operação de descon-to, duplicata sem causa, respon-de pela ação de sustação de pro-testo e deve indenizar o danodele decorrente, ressalvado seudireito contra a endossante.[...]Recurso conhecido pela diver-gência, mas improvido.(REsp 195.842/SP, Rel. MinistroRUY ROSADO DE AGUIAR,QUARTA TURMA, julgado em11/02/1999, DJ 29/03/1999,p. 188)_________________________COMERCIAL. DUPLICATA NÃOACEITA. SUSTAÇÃO DE PRO-TESTO. ANULAÇÃO. ENDOSSO.DIREITO DE REGRESSO.Pode ser sustado o protesto eanulada a duplicata sem aceiteque esteja esvaziada de seuconteúdo causal, por não tersido consumado o negóciosubjacente, mas com a ressalvaem ordem a assegurar o direi-to de regresso do endossatáriode boa-fé.Recurso parcialmente conheci-do e, nessa parte, parcialmen-te provido.(REsp 95.605/SP, Rel. MinistroCESAR ASFOR ROCHA, QUARTATURMA, julgado em 29/10/1998, DJ 01/02/1999, p. 197)_________________________Endosso. Duplicata sem aceite.Ação de nulidade movida pelosacado.Encargos da sucumbência.O endossatário que leva a pro-testo duplicata não aceita, ain-da que isso seja necessário paraassegurar direito de regresso,assume o risco de colocar-secomo réu, em ação movida pelosacado e deverá, se vencido,arcar com o pagamento de cus-tas e honorários.

(REsp 248.275/GO, Rel. MinistroEDUARDO RIBEIRO, TERCEIRATURMA, julgado em 11/04/2000, DJ 29/05/2000, p. 152)_________________________

No mesmo sentido é a jurispru-dência mais recente do STJ:

AGRAVO REGIMENTAL - AGRA-VO DE INSTRUMENTO - RESPON-SABILIDADE CIVIL - DUPLICATA- PROTESTO INDEVIDO - ENDOS-SO-TRANSLATIVO - DANOS MO-RAIS CARACTERIZADOS - FIXA-ÇÃO - RAZOABILIDADE - COR-REÇÃO MONETÁRIA - INCIDÊN-CIA - ARBITRAMENTO DA VER-BA - DECISÃO AGRAVADAMANTIDA - IMPROVIMENTO.I. A jurisprudência desta Corteé pacífica ao proclamar que,tratando-se de duplicata irregu-lar, desprovida de causa ou nãoaceita, hipótese observada nocaso em tela, deve o Agravan-te responder por eventuais da-nos que tenha causado, em vir-tude desse protesto, pois, aoencaminhar a protesto títuloendossado, assume o risco so-bre eventuais danos que pos-sam ser causados ao sacado.Assim, não há que se falar emexercício regular de direito.[...](AgRg no Ag 1380089/SP, Rel.Ministro SIDNEI BENETI, TERCEI-RA TURMA, julgado em 12/04/2011, DJe 26/04/2011)AGRAVO REGIMENTAL NOAGRAVO DE INSTRUMENTO.PROTESTO INDEVIDO DE DU-PLICATA. ENDOSSO TRANS-LATIVO. RESPONSABILIDADEDA INSTITUIÇÃO FINANCEIRAPELA REPARAÇÃO DOS PREJU-ÍZOS. PRECEDENTES.1. A instituição financeira querecebe duplicata de origem ir-

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA JURISPRUDÊNCIA

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regular mediante endossotranslativo responde pelos da-nos decorrentes do protestoindevido. Precedentes.2. Agravo regimental despro-vido.(AgRg no Ag 1211212/SP,Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DENORONHA, QUARTA TURMA,julgado em 22/02/2011, DJe 04/03/2011)_________________________AGRAVO REGIMENTAL. AGRA-VO DE INSTRUMENTO. INDENI-ZAÇÃO. DANOS MORAIS. PRO-TESTO. DUPLICATA DESPROVI-DA DE CAUSA. ENDOSSO. RES-PONSABILIDADE. VALOR.RAZOABILIDADE.1. O Banco, portador do título,é responsável pela reparaçãode danos causados ao sacadopelo protesto de duplicata nãoaceita ou emitida sem vin-culação à uma dívida real.2. A boa-fé da instituição finan-ceira não afasta a sua respon-sabilidade, porque, ao levar otítulo a protesto sem as devi-das cautelas, assume o risco so-bre eventual prejuízo acarreta-do a terceiros, alheios à relaçãoentre endossante e endossa-tário.[...](AgRg no Ag 777.258/SP, Rel.Ministro MASSAMI UYEDA, Rel.p/ Acórdão Ministro MASSAMIUYEDA, QUARTA TURMA, jul-gado em 16/04/2009, DJe 08/06/2009)_________________________CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DEINDENIZAÇÃO. PROTESTOINDEVIDO. ENDOSSO TRANS-LATIVO. DUPLICATA. EXISTÊN-CIA DE DIVERSOS PROTESTOSANTERIORES. DANO MORAL.VALOR. REDUÇÃO.I. Procedendo o banco réu a pro-testo de duplicata, recebida

mediante endosso translativo,torna-se ele responsável peloato ilícito causador da lesão, severificado que a cártula não dis-punha de causa à sua emissão,assumindo, pois, o recorrente,o risco negocial.[...](REsp 976.591/ES, Rel. MinistroALDIR PASSARINHO JUNIOR,QUARTA TURMA, julgado em04/10/2007, DJ 10/12/2007,p. 395)_________________________Anulação de títulos de crédito.Duplicata. SERASA. Protesto.Danos morais. Endosso. Caução.1. A instituição financeira querecebe a duplicata medianteendosso-caução responde pelosdanos decorrentes do protesto,já que caberia àquela verificara causa do título.2. Recurso especial não conhe-cido, por maioria.(REsp 397.771/MG, Rel. MinistroARI PARGENDLER, Rel. p/Acórdão Ministro CARLOSALBERTO MENEZES DIREITO,TERCEIRA TURMA, julgado em02/06/2005, DJ 29/08/2005, p.328)_________________________PROCESSUAL CIVIL E BANCÁ-RIO. AGRAVO REGIMENTALNO AGRAVO DE INSTRUMEN-TO. RECURSO ESPECIAL. DU-PLICATA. PROTESTO. ENDOS-SO TRANSLATIVO. RESPONSA-BILIDADE DA INSTITUIÇÃO FI-NANCEIRA PARA RESPONDERPOR DEMANDA AJUIZADAPELO SACADO, BEM COMOPELO PAGAMENTO DOS ÔNUSSUCUMBENCIAIS. PRECEDEN-TES.1. A instituição financeira querecebe o título por endossotranslativo responde pelo pro-testo indevido. Precedentes.

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DUPLICATA DESPROVIDA DE CAUSA RECEBIDA POR ENDOSSO TRANSLATIVO E PROTESTADA. RESPONSABILIDADE DO ENDOSSATÁRIO

2. Tendo sido reconhecida aresponsabilidade do bancopelo protesto indevido,inviável afastar-se sua res-pectiva sucumbência.3. Agravo regimental a que senega provimento.(AgRg no Ag 415.005/SP, Rel.Ministra MARIA ISABELGALLOTTI, QUARTA TURMA,julgado em 02/08/2011, DJe 12/08/2011)_________________________

3. Com efeito, mantendo a ju-risprudência da Casa, a tese queencaminho, para efeito do art. 543-C do CPC, é a seguinte:

O endossatário que recebe,por endosso translativo, títu-lo de crédito contendo vícioformal, sendo inexistente acausa para conferir lastro aemissão de duplicata, respon-de pelos danos causados dian-te de protesto indevido, res-salvado seu direito de regres-so contra os endossantes eavalistas.

4. No caso concreto, rejeito aalegação de ofensa aos arts. 535 e458 do CPC, porquanto o acórdãorecorrido abordou todos os pontosnecessários ao desate da controvér-sia.

No mais, o especial também nãoprospera.

Conforme ficou claro na senten-ça, as duplicatas protestadas nãoforam aceitas pelo autor,inexistindo também comprovaçãoda entrega das mercadorias.

Assim, cuida-se de genuínasduplicatas sem causa, cujo recebi-mento por endosso translativo

transfere ao endossatário os riscosde intempéries relativas ao títulorecebido, inclusive o risco de pro-testo indevido.

Confira-se:

Conforme recibos de intimaçãoacostados às fls. 09/10, os títu-los não foram aceitos pelo au-tor, de modo que, ressaltandoa natureza causal da duplicatamercantil, deveria o requerido,quando recebeu os títulos paradesconto, ter verificado que amercadoria negociada foi efe-tivamente entregue. Entre-tanto, nada há nos autos de-monstrando que ao réu Bancodo Brasil tenha sido apresen-tada, na falta de aceite, notafiscal assinada pelo devedor.(fl. 72)

Vislumbrando a ocorrência deato ilícito, o juízo sentenciantecondenou o réu ao pagamento deindenização por danos morais novalor de 10 (dez) salários mínimosvigentes à época da sentença, cor-rigidos monetariamente desdeentão e acrescidos de juros demora à razão de 12% ao ano, acontar da data do fato (Súmulan. 54/STJ).

Essas premissas fáticas forammantidas pelo acórdão e delas nãopode se distanciar esta Corte Su-perior, sob pena de infringência àSúmula 7/STJ. Com efeito, dianteda moldura entregue à instânciasuperior, afiguram-se incensuráveisas decisões de piso.

5. Diante do exposto, nego pro-vimento ao recurso especial.

É como voto.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO

Certifico que a egrégia SEGUN-DA SEÇÃO, ao apreciar o processoem epígrafe na sessão realizadanesta data, proferiu a seguinte de-cisão:

A Seção, por unanimidade, ne-gou provimento ao recurso espe-cial, nos termos do voto do Sr. Mi-nistro Relator.

Para efeito do art. 543-C do CPC,o endossatário que recebe, porendosso translativo, título de cré-dito contendo vício formal,

inexistente a causa para conferirlastro a emissão de duplicata, res-ponde pelos danos causados dian-te de protesto indevido, ressalva-do seu direito de regresso contraos endossantes e avalistas.

Os Srs. Ministros Raul Araújo,Paulo de Tarso Sanseverino, Anto-nio Carlos Ferreira, Marco Buzzi,Nancy Andrighi e Massami Uyedavotaram com o Sr. Ministro Relator.

Impedido o Sr. Ministro RicardoVillas Bôas Cueva.

Ausente, justificadamente, a Sra.Ministra Maria Isabel Gallotti.

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SFI . REINTEGRAÇÃO DA POSSE DO IMÓVEL PELO CREDOR ANTERIORMENTE AO LEILÃO EXTRAJUDICIAL. LEI N. 9.514/97. POSSIBILIDADE

Superior Tribunal de Justiça

SFI. Inadimplemento. Consolidação do imóvel na propriedadedo fiduciário. Reintegração da posse do imóvel pelo credoranteriormente ao leilão extrajudicial previsto no art. 27 da Lei9.514/97. Possibilidade.1

1 Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200901598205&dt_publicacao=22/03/2012>. Acesso em: 29 abr. 2012.

EMENTA OFICIAL

SFI - SISTEMA FINANCEIRO IMO-BILIÁRIO. LEI 9.514/97. ALIENAÇÃOFIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL.INADIMPLEMENTO DO FIDUCIANTE.CONSOLIDAÇÃO DO IMÓVEL NAPROPRIEDADE DO FIDUCIÁRIO. LEI-LÃO EXTRAJUDICIAL. SUSPENSÃO.IRREGULARIDADE NA INTIMAÇÃO.PRETENSÃO, DO CREDOR, A OBTERA REINTEGRAÇÃO DA POSSE DOIMÓVEL ANTERIORMENTE AO LEI-LÃO DISCIPLINADO PELO ART. 27 DALEI 9.514/97. POSSIBILIDADE. INTER-PRETAÇÃO SISTEMÁTICA DA LEI.

1. Os dispositivos da Lei 9.514/97, notadamente seus arts. 26, 27,30 e 37-A, comportam dupla inter-pretação: é possível dizer, por umlado, que o direito do credorfiduciário à reintegração da possedo imóvel alienado decorre auto-maticamente da consolidação desua propriedade sobre o bem nashipóteses de inadimplemento; oué possível afirmar que referido di-reito possessório somente nasce apartir da realização dos leilões a quese refere o art. 27 da Lei 9.514/97.

2. A interpretação sistemática deuma Lei exige que se busque, nãoapenas em sua arquitetura interna,mas no sentido jurídico dos insti-

tutos que regula, o modelo ade-quado para sua aplicação. Se aposse do imóvel, pelo devedorfiduciário, é derivada de um con-trato firmado com o credor fidu-ciante, a resolução do contrato noqual ela encontra fundamento tor-na-a ilegítima, sendo possível qua-lificar como esbulho sua perma-nência no imóvel.

3. A consolidação da proprieda-de do bem no nome do credorfiduciante confere-lhe o direito àposse do imóvel. Negá-lo implica-ria autorizar que o devedorfiduciário permaneça em bem quenão lhe pertence, sem pagamentode contraprestação, na medida emque a Lei 9.514/97 estabelece, emseu art. 37-A, o pagamento de taxade ocupação apenas depois da rea-lização dos leilões extrajudiciais. Seos leilões são suspensos, como ocor-reu na hipótese dos autos, a lacunalegislativa não pode implicar a im-posição, ao credor fiduciante, de umprejuízo a que não deu causa.4.Recurso especial não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidosestes autos, acordam os Ministrosda Terceira Turma do Superior Tri-

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bunal de Justiça, na conformidadedos votos e das notas taquigráficasconstantes dos autos, por unanimi-dade, negar provimento ao recur-so especial, nos termos do votodo(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a).Os Srs. Ministros Massami Uyeda,Sidnei Beneti, Paulo de TarsoSanseverino e Ricardo Villas BôasCueva votaram com a Sra. Minis-tra Relatora. Dr(a). ROBERTOMARIANO DE OLIVEIRA SOARES,pela parte RECORRIDA: VIA EMPRE-ENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS S/A.

Brasília (DF), 13 de março de2012(Data do Julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI,Relatora.

REsp 1.155.716 - DJe 22.03.2012.

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NAN-CY ANDRIGHI (Relator):

Trata-se de recurso especial in-terposto por LUIZ FERNANDO GAR-CIA COTTA e por TAIS AUGUSTOGARCIA COTTA objetivando im-pugnar acórdão exarado pelo TJ/DFT no julgamento de agravo deinstrumento.

Ação: de Reintegração de Pos-se, ajuizada por VIA EMPREENDI-MENTOS IMOBILIÁRIOS S/A emface dos recorrentes, tendo comoobjeto imóvel por ela vendido aosréus mediante alienação fiduciáriaem garantia.

Tendo em vista a inadimplênciados recorridos desde agosto de 2007,a autora constituiu-os em mora me-diante notificação e, sem pagamen-to, consolidou o imóvel em sua pro-priedade, nos termos do art. 26, §7º, da Lei 9.514/97. Em seguida, es-

tabeleceu datas para a realização dedois leilões extrajudiciais do bem,nos termos do art. 27, caput e §§, dareferida Lei.

Alegando irregularidade em suaintimação acerca do procedimento,o réu LUIZ FERNANDO GARCIACOTTA, antes da possessória ajuiza-da por VIA EMPREENDIMENTOS, ha-via proposto outra ação, pelo pro-cedimento ordinário, objetivandosuspender os leilões extrajudiciais.Referida ação foi distribuída à 7ª VaraCível de Brasília, DF (Processo nº2008.01.1.143058-5). Nessa ação, ojuízo deferiu medida liminar para,com base na irregularidade naintimação dos réus, suspender o lei-lão (fl. 623 a 624, e-STJ e, após, a fl.699 a 700, e-STJ). Referido processofoi precedido por outro, ajuizadopor TAIS AUGUSTO GARCIA COTTAcom o mesmo objeto (processo nº2008.01.1.140976-7, distribuído à 11ªVara Cível do TJ/DFT).

Independentemente da realiza-ção do leilão, suspenso por deci-são judicial, a VIA EMPREENDIMEN-TOS solicitou a reintegração daposse do bem na ação que deu ori-gem a este recurso especial, moti-vando a controvérsia aqui discuti-da.

Medida liminar: deferida, apóspedido de reconsideração (fl. 47,e-STJ).

Agravo de instrumento: inter-posto pelo ora recorrente. Os ar-gumentos são os de que: (i) a reali-zação dos leilões extrajudiciaisconsubstanciam condição para opedido de reintegração de posse;(ii) o procedimento extrajudicial devenda dos imóveis não pode pros-seguir na pendência de ação em

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SFI . REINTEGRAÇÃO DA POSSE DO IMÓVEL PELO CREDOR ANTERIORMENTE AO LEILÃO EXTRAJUDICIAL. LEI N. 9.514/97. POSSIBILIDADE

que se discute o débito; (iii) o de-vedor ofereceu, para depósito, ovalor que entende devido peloimóvel.

Decisão: O TJ/DFT negou provi-mento ao agravo por decisãounipessoal do relator. Nessa deci-são, o relator ponderou: (i) que odireito à reintegração de possedecorreria diretamente da normado art. 30 da Lei 9.514/97; (ii) quea jurisprudência do TJ/DFT enten-de que a “discussão de valores emações revisionais não impede areintegração da posse; (iii) o depó-sito oferecido pelo recorrente foiindeferido em primeiro grau dejurisdição, por decisão mantida noTJ/DFT.

Acórdão: negou provimento aoagravo, mantendo a decisãounipessoal.

Recurso especial: interpostocom fundamento na alínea “a” dopermissivo constitucional, pelosréus da ação possessória. Alega-seviolação dos arts. 26, 27, 30 e 37-Ada Lei 9.514/97, bem como do art.34 do DL 70/66, aplicável à maté-ria por força do art. 39, II, da mes-ma Lei 9.514/97 (fls. 791 a 801, e-STJ).

Admissibilidade: o recurso foiadmitido na origem, por decisãoda lavra do Des. Romão C. Oliveira(fls. 828 a 830).

Medida cautelar: ajuizada nes-ta sede, distribuída à minharelatoria sob o nº 15.590/DF. À épo-ca, deferi a medida liminar nos ter-mos da seguinte ementa:

SFI - SISTEMA FINANCEIRO IMO-BILIÁRIO. LEI 9.514/97. ALIENA-ÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓ-

VEL. INADIMPLEMENTO DOFIDUCIANTE. CONSOLIDAÇÃODO IMÓVEL NA PROPRIEDADEDO FIDUCIÁRIO. LEILÃO EXTRA-JUDICIAL. PRETENSÃO, DOCREDOR, A OBTER A REINTE-GRAÇÃO DA POSSE DO IMÓVELANTERIORMENTE AO LEILÃOPÚBLICO DISCIPLINADO PELOART. 27 DA LEI 9.514/97. IMPOS-SIBILIDADE. INTERPRETAÇÃOSISTEMÁTICA DA LEI.- À primeira leitura, o art. 30 daLei 9.514/97 indica que o credorde imóvel objeto de contrato dealienação fiduciária pode solici-tar a sua reintegração na pos-se, independentemente dos lei-lões públicos de que trata o art.27 da Lei, desde que tenha pro-movido a consolidação de suapropriedade, nos termos do art.26 da Lei.- A análise sistemática da nor-ma, contudo, leva a outra con-clusão. Se o art. 37-A da Lei fixaa data dos leilões judiciais comomarco inicial para o pagamen-to, pelo devedor, de taxa deocupação, seria contraditóriosupor, antes desse momento, ailicitude da sua posse.- A possibilidade de purgação damora até a data da alienaçãojudicial vem somar-se aos argu-mentos em prol da interpreta-ção da Lei 9.514/97 no sentidode que o imóvel somente deveser desocupado pelo devedor-fiduciante após a realização dosleilões públicos.Medida liminar deferida.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NAN-CY ANDRIGHI (Relator):

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Cinge-se a lide a estabelecer sehá pretensão possessória em favordo credor por contrato de financi-amento de imóvel com pacto dealienação fiduciária em garantia,na hipótese em que tal pretensãoé exercida depois da consolidaçãoda propriedade do imóvel, masantes dos leilões a que se refere oart. 27 da Lei 9.514/97.

Quando da decisão da MC15.590/DF, deferi a medida liminarentão requerida pelos recorrentescom os seguintes fundamentos:

Na hipótese dos autos, o reque-rente se insurge contra a inter-pretação dada, pelo TJ/DF, àconjugação das regras dos arts.26, 27, 30 e 37-A da lei 9.514/97. Toda a discussão estácentrada no momento em quedeve ser determinada a reinte-gração do credor na posse doimóvel, na hipótese de inadim-plemento da obrigação.A arquitetura da Lei é a seguin-te: O art. 26 disciplina que, umavez constatada a mora dofiduciante no contrato de alie-nação fiduciária de bem imóvel,o credor-fiduciário deveránotificá-lo mediante o Cartóriode Registro de Imóveis parapurgá-la em 15 dias. Nãopurgada a mora, a proprieda-de do imóvel, antes transferidaao devedor-fiduciante, seráconsolidada em nome do cre-dor-fiduciário.A seguir, o art. 27 determinaque, com a consolidação da pro-priedade em nome do credor,este deverá, no prazo de 30 dias,promover público leilão para avenda do bem. Dois leilões sãorealizados. O primeiro deles,terá como preço mínimo o mon-

tante da avaliação do imóvel. Osegundo, 15 dias depois, terácomo preço mínimo o valor dadívida mais despesas, seguro,tributos e demais encargos in-cidentes.Por fim, o art. 30 da Lei discipli-na que “é assegurada aofiduciário, seu cessionário ou su-cessores, inclusive o adquirentedo imóvel por força do públicoleilão (...), a reintegração na pos-se do imóvel, que será concedi-da liminarmente, para desocu-pação em sessenta dias, desdeque comprovada, na forma dodisposto no art. 26, a consolida-ção da propriedade em seunome.”Ou seja, todos esses atos: con-solidação da propriedade, lei-lões públicos e reintegração naposse, são previstos, pela lei,numa sequência lógica. Se tudocorrer como determina a lei, emhipótese alguma a reintegraçãona posse do imóvel poderá ocor-rer antes da realização dos lei-lões de que trata o art. 27.Ocorre que no processo sob jul-gamento essa ordem não pôdeser obedecida. Por força de in-correta publicação dos editais,reconhecida pelo juízo de 1ºgrau, os leilões públicos que de-veriam ser realizados em 30 e45 dias contados do registro daconsolidação da propriedade doimóvel, acabaram por não acon-tecer. E daí surgiu a questão: areintegração na posse do imó-vel, disciplinada pelo art. 30,pode ocorrer sem esses leilões?A leitura isolada do art. 30 daLei 9.514/97 indica que sim. Nãohá, nessa norma, em princípio,qualquer indicação de que areintegração da posse do imó-vel não deva ser deferida emfavor de seu proprietário, inde-

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SFI . REINTEGRAÇÃO DA POSSE DO IMÓVEL PELO CREDOR ANTERIORMENTE AO LEILÃO EXTRAJUDICIAL. LEI N. 9.514/97. POSSIBILIDADE

pendentemente da realizaçãodos leilões.Contudo, a Lei deve ser inter-pretada de maneira sistemáti-ca. Há duas disposições, comobem observado pelo requeren-te, que não podem deixar de serlevadas em consideração.A primeira delas, é a do art. 37-A da Lei 9.514/97, que determi-na que “o fiduciante pagará aofiduciário, ou a quem vier a su-cedê-lo, a título de taxa de ocu-pação do imóvel, por mês oufração, valor correspondente aum por cento do valor a que serefere o inciso VI do art. 24, com-putado e exigível desde a datada alienação em leilão até adata em que o fiduciário, ouseus sucessores, vier a serimitido na posse do imóvel”. Orequerente argumenta que nãohá sentido em se deferir a rein-tegração de posse antes da re-alização dos leilões, se a próprialei fixa a data desses leilõescomo marco inicial para aexigibilidade da taxa de ocupa-ção a ser paga pelo devedor-fiduciante. Antes disso, a taxade ocupação não seria exigíveljustamente porque a posse dodevedor, sobre o imóvel, nãoseria irregular.A segunda dessas disposições éa norma contida no art. 34 doDL 70/66 que, disciplinando Cé-dula Hipotecária, determinaque “é lícito ao devedor, a qual-quer momento, até a assinatu-ra do auto de arrematação,purgar o débito, totalizado deacôrdo com o artigo 33, e acres-cido ainda dos seguintes encar-gos (...)”. Essa disposição é ex-pressamente aplicável aos con-tratos regulados pela Lei 9.514/97 (art. 39, II). O argumento dorequerente é o de que, se é pos-

sível a purgação da mora até oleilão, não há sentido em seautorizar a desocupação doimóvel antes disso. Não se podeamparar a família do devedorpor um lado, e desampará-lapor outro.A matéria é complexa e deman-da discussão mais aprofundada.Neste momento, porém, medi-ante o perfunctório exame queé possível fazer em sedecautelar, vislumbra-se aparênciado direito em favor do reque-rente. De fato, não há qualquernorma, na Lei 9.514/97, que in-dique, de maneira expressa, serpossível desalojar o devedor-fiduciante antes do leilão públi-co do imóvel. Ao contrário, aprópria arquitetura da Lei, comseus prazos calculados e sobre-postos em um procedimentoescalonado, indica que a deso-cupação do bem somente deve-rá ocorrer após a arrematação.De todas as disposições, entre-tanto, a mais significativa é ado art. 37-A, da Lei 9.514/97. Sea própria lei estabelece, comomarco inicial para a cobrança dataxa de ocupação, a data do lei-lão público, não há sentido emse interpretar a lei de modo aque o devedor seja obrigado adeixar o imóvel antes dessemomento.

Nas contrarrazões deste recursoespecial, a recorrida opõe-se à pre-tensão dos recorrentes com novosfundamentos. Para além da alega-ção de litigância de má-fé e deinépcia do recurso especial(Súmula 284/STF), o recorrido sus-tenta que “o espírito da Lei 9.514/97 visa conferir celeridade eefetividade ao credor-fiduciário” eque a consolidação do imóvel em

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nome do credor, sem a respectivareintegração de sua posse sobreele, seria providência inócua e semsentido. Para o recorrido, o argu-mento de que “a Lei confere aosRecorrentes a possibilidade de pur-gar a mora até a data da alienaçãojudicial do imóvel” é carente denexo, uma vez que, além de pode-rem arrematar o imóvel no leilãomesmo que destituídos da respec-tiva posse, nada leva a crer que osdevedores venham, no futuro, apurgar uma mora que até estemomento vêm ignorando.

Outrossim, a recorrida sustentaque “além de não receber peloimóvel que está sendo utilizadopelos Recorrentes há dois anos,sem nenhum ônus, a Recorrida ain-da está sendo obrigada a pagar osdébitos de condomínio e os tribu-tos”, experimentando, com isso,significativo prejuízo. Por fim, sus-tenta que:

Sabe-se que a posse do devedor-fiduciante decorre da relaçãofiduciária e é exercida como con-sequência natural dessa relação,só sendo admitida, por isso mes-mo, enquanto adimplente o de-vedor-fiduciante. Ao romper-sea relação fiduciária por inexe-cução culposa do devedor-fiduciante, sua posse deixa deexistir a justo título, de modoque a recusa à restituição doimóvel caracteriza esbulho, mo-tivando assim a ação de reinte-gração da posse.

Para solução da questão, é ne-cessário que se tenha em vista quesó há sentido numa disputapossessória quando se está dianteda afirmação de duas posses, cada

uma com o seu respectivo funda-mento de fato e de direito. A pos-se dos recorrentes sobre o imóveldiscutido foi adquirida por atointer vivos, consubstanciado nacompra e venda com alienaçãofiduciária em garantia. O imóvel,a partir desse contrato, ingressouem sua esfera jurídica, de modoque, com fundamento nos direitosdecorrentes desse instrumento, osrecorrentes exerceram seu poder defato sobre o imóvel discutido. Aaquisição da posse, portanto, éderivada.

Com a inadimplência, o credor,aqui recorrido, inaugurou os pro-cedimentos para a retomada dobem, previstos na Lei nº 9.514/97,constituindo em mora o devedore, ato contínuo, consolidando emseu nome a propriedade do bem,nos termos do o art. 26, §1º a 7º,da Lei 9.514/97. Ao fazê-lo, o re-corrido resolveu o contrato quefundamentara a posse do imóvelpelos recorrentes, de modo que ofundamento jurídico dessa posse seesvaiu.

Vê-se, portanto, que não há, nahipótese dos autos, a disputa daposse sobre o bem fundamentadaem situações de fato autônomas.A posse, pelos recorrentes, decor-ria do contrato que estes haviamfirmado com o próprio recorrido.Resolvido esse contrato, o funda-mento de seu poder de fato sobreo bem desapareceu.

Diante desse panorama, não hácomo manter o que restou decidi-do por ocasião da apreciação damedida liminar deferida nos autosda MC 15.590/DF. De fato há, comoponderei naquela oportunidade,

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SFI . REINTEGRAÇÃO DA POSSE DO IMÓVEL PELO CREDOR ANTERIORMENTE AO LEILÃO EXTRAJUDICIAL. LEI N. 9.514/97. POSSIBILIDADE

diversos dispositivos na Lei 9.514/97 cuja interpretação conjugadalevam a uma situação de dúvidaacerca do direito aplicável. Por umlado, a Lei pode atribuir ao credor-fiduciário a propriedade do bemnas hipóteses de inadimplência emum momento (ausência de purga-ção da mora no prazo legal), masestabelece a cobrança de taxa deocupação apenas em momentoposterior (a partir das datas dosleilões).

A solução da dúvida, contudo,não pode se dar em um sentidocontrário ao que recomenda a ló-gica jurídica. Resolvido o contratodo qual emergia o fundamento daposse derivada, esta retorna ao seuantigo titular, podendo-se interpre-tar a permanência do antigo pos-suidor no bem como um ato deesbulho.

O argumento utilizado pelosrecorrentes, de que a ausência deprevisão de cobrança, pela Lei, detaxa de ocupação do bem antes darealização dos leilões judiciais, emlugar de militar em favor de usapretensão, na verdade milita emsentido contrário a ela. A ausênciade previsão para a cobrança dessataxa só faz com que a injustiça dapermanência dos devedores noimóvel seja maior: o bem não seencontra mais em sua proprieda-de; o fundamento de sua posse

desapareceu; e ainda assim, casomantidas as conclusões da medidaliminar anteriormente deferida,eles poderão permanecer, a títulogratuito, residindo no imóvel.

À questão levantada pelos re-correntes, acerca de que destinodeve ser dado ao imóvel entre oprazo da consolidação da proprie-dade em nome do credor-fiduciante, e a data dos leilões ju-diciais, a resposta é simples: deveser dado ao imóvel sua naturaldestinação econômica. A perma-nência daquele que promoveuesbulho do bem no imóvel nãoatende a essa destinação.

Forte nessas razões, conheço dorecurso especial e nego-lhe provi-mento.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

Certifico que a egrégia TERCEI-RA TURMA, ao apreciar o processoem epígrafe na sessão realizadanesta data, proferiu a seguinte de-cisão:

A Turma, por unanimidade, ne-gou provimento ao recurso espe-cial, nos termos do voto do(a) Sr(a).Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Mi-nistros Massami Uyeda, SidneiBeneti, Paulo de Tarso Sanseverinoe Ricardo Villas Bôas Cueva vota-ram com a Sra. Ministra Relatora.

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AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO.NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL REALIZADA POR CARTÓRIO SITUADO EM COMARCA DIVERSA DA DO DOMICÍLIO DO DEVEDOR

Superior Tribunal de Justiça

Ação de busca e apreensão. Contrato de financiamento deautomóvel com garantia de alienação fiduciária. Notificaçãoextrajudicial realizada por cartório de títulos e documentossituado em comarca diversa da do domicílio do devedor.Validade.1

1 Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=201100332435&dt_publicacao=09/03/2012>. Acesso em: 29 abr. 2012.

EMENTA OFICIAL

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DEBUSCA E APREENSÃO. CONTRATODE FINANCIAMENTO DE AUTOMÓ-VEL COM GARANTIA DE ALIEN-TAÇÃO FIDUCIÁRIA. NOTIFICAÇÃOEXTRAJUDICIAL REALIZADA PORCARTÓRIO DE TÍTULOS E DOCU-MENTOS SITUADO EM COMARCADIVERSA DA DO DOMICÍLIO DODEVEDOR. VALIDADE.

1. “A notificação extrajudicialrealizada e entregue no endereçodo devedor, por via postal e comaviso de recebimento, é válidaquando realizada por Cartório deTítulos e Documentos de outraComarca, mesmo que não sejaaquele do domicílio do devedor”(REsp n. 1237699/SC, Rel. MinistroLuiz Felipe Salomão, Quarta Tur-ma, julgado em 22/03/2011, DJe 18/05/2011).

2. Recurso especial conhecidoem parte e, nesta parte, provido.

ACÓRDÃO

A Seção, por unanimidade, deuprovimento ao recurso especial, nostermos do voto da Sra. Ministra

Relatora. Os Srs. Ministros AntonioCarlos Ferreira, Ricardo Villas BôasCueva, Marco Buzzi, MassamiUyeda, Luis Felipe Salomão, RaulAraújo e Paulo de Tarso Sanseverinovotaram com a Sra. MinistraRelatora. Ausente, justificadamente,a Sra. Ministra Nancy Andrighi.

Brasília/DF, 29 de fevereiro de2012 (Data do Julgamento).

MINISTRA MARIA ISABEL GAL-LOTTI, Relatora.

REsp 1.283.834 - DJe 09.03.2012.

RELATÓRIO

MINISTRA MARIA ISABEL GAL-LOTTI: Trata-se de recurso especialinterposto com fundamento na alí-nea “a” do art. 105, III, da Consti-tuição Federal, contra acórdão quemanteve sentença proferida peloJuiz de Direito da 18ª Vara dos Fei-tos de Relações de Consumo Cíveise Comerciais da Comarca de Salva-dor-BA que, nos autos de ação debusca e apreensão, reconheceu anulidade da notificação extrajudi-cial realizada por Cartório de Re-gistro de Títulos e Documentos deComarca diversa do domicílio dodevedor.

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O acórdão recorrido recebeu aseguinte ementa (e-STJ fl. 81):

APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO DEBUSCA E APREENSÃO. NOTIFI-CAÇÃO EXTRAJUDICIAL REALI-ZADA POR TABELIÃO FORA DOÂMBITO DE SUA DELEGAÇÃO.MORA NÃO COMPROVADA.PROCESSO EXTINTO SEM JUL-GAMENTO DO MÉRITO COMFULCRO NO ART. 267, INCISO IV,DO CPC. SENTENÇA MANTIDA.RECURSO IMPROVIDO.I - A Ação de Busca e Apreen-são fundada no Decreto-Lei911/69 pressupõe a prévia cons-tituição em mora do devedorinadimplente, mediante notifi-cação regular.II - A competência territorial dotabelião é limitada à circunscri-ção para a qual tiver sido no-meado, sob pena de invalidade.III - A notificação juntada aosautos não pode ser consideradaválida e regular, visto que o ape-lado reside nesta Comarca deSalvador, mas foi notificado peloCartório de Títulos e Documen-tos da Comarca de Caucaia/CE, oque não pode ser admitido. Ora,a notificação extrajudicial envi-ada por cartório distinto dacomarca do devedor é impres-tável para constituí-lo em mora,pois o ato do tabelião praticadofora do âmbito de sua delega-ção é inválido.

Sustenta o banco recorrenteofensa ao art. 3º, § 5º do Decreto-Lei n. 911/69 ao argumento de quepara a comprovação da mora nãoé necessária a notificação local dofinanciado por meio de Cartório deTítulos e Documentos ou Protestoda mesma comarca do domicíliodo devedor.

Assevera que o recorrido foiconstituído em mora na forma daNotificação Extrajudicial expedidapor Cartório de Títulos e Documen-tos demonstrada pela entrega decarta no endereço do devedor eque o art. 3º do Decreto-Lei nº 911/69 preconiza que, comprovada amora, será concedida liminar dereintegração de posse.

Ressalta que a fundamentaçãodo acórdão de não ter sido a noti-ficação realizada por cartório damesma comarca não tem o condãode retirar-lhe a força comproba-tória exigida por lei.

Não foram apresentadascontrarrazões ao recurso especial(cf. e-STJ fl. 137).

Não admitido o recurso especi-al na origem, dei provimento aoagravo e o converti em recurso es-pecial.

É o relatório.

VOTO

MINISTRA MARIA ISABELGALLOTTI (Relatora): Como vistodo relatório, a questão discutidanos presentes autos atém-se à vali-dade, ou não, de notificaçãoextrajudicial realizada por Cartó-rio de comarca diversa do domicí-lio do devedor.

No que interessa, constou dovoto condutor do acórdão recorri-do (e-STJ fl. 83):

“Compulsando os autos, verifi-ca-se que o apelado reside nes-ta Comarca de Salvador/BA, maso apelante, com o objetivo deconstituí-lo em mora, realizoua notificação extrajudicial porintermédio do Cartório de Re-

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AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO.NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL REALIZADA POR CARTÓRIO SITUADO EM COMARCA DIVERSA DA DO DOMICÍLIO DO DEVEDOR

gistro de Títulos e Documentosde Comarca de Caucaia/CE (fls.14/16).Data vênia ao entendimentoesposado pelo apelante, tenhoque de fato a notificação junta-da aos autos não pode ser con-siderada válida e regular, vistoque realizada em Cartórios deTítulos e Documentos de Co-marca diversa, o que não podeser admitido.Ora, a notificação extrajudicialenviada por cartório distinto dacomarca do devedor éimprestável para constituí-loem mora, pois o ato do tabe-lião praticado fora do âmbitode sua delegação é inválido.”

A jurisprudência desta Corte,quanto à questão da mora, pacifi-cou-se no sentido de que, na açãode busca e apreensão, cujo objetoé contrato de financiamento comgarantia fiduciária, a mora consti-tui-se ex re nas hipóteses do art.2.º, § 2.º, do Decreto-Lei n.º 911/69, ou seja, uma vez não paga aprestação no vencimento, já seconfigura a mora do devedor quedeverá ser comprovada por cartaregistrada expedida por intermé-dio de Cartório de Títulos e Docu-mentos ou pelo protesto do títu-lo, a critério do credor (art. 2º, §2º, do Decreto-Lei n. 911/69).

Confira-se, nesse sentido, o se-guinte precedente:

“Ainda que haja possibilidade deo réu alegar, na ação de busca eapreensão, a nulidade das cláu-sulas do contrato garantido coma alienação fiduciária, ou mes-mo seja possível rever, de ofício,cláusulas contratuais considera-das abusivas, para anulá-las,

com base no art. 51, IV do CDC, ajurisprudência da 2.ª Seção do STJé pacífica no sentido de que naalienação fiduciária a mora cons-titui-se ‘ex re’, isto é, decorre au-tomaticamente do vencimentodo prazo para pagamento, porisso não cabe qualquer inquiri-ção a respeito do montante ouorigem da dívida para a aferi-ção da configuração da mora. -Na alienação fiduciária, compro-va-se a mora do devedor peloprotesto do titulo, se houver, oupela notificação extrajudicial fei-ta por intermédio do Cartório deTítulos e Documentos, que éconsiderada válida se entregueno endereço do domicílio do de-vedor, ainda que não seja entre-gue pessoalmente a ele. - A bus-ca e apreensão deve ser conce-dida liminarmente se compro-vada a mora do devedorfiduciante. Recurso especialprovido.” (ut REsp 810.717/RS,Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJ04.09.2006)

Ainda no que diz respeito àconstituição em mora por meio denotificação extrajudicial, foi con-solidado o entendimento de quepara a sua caracterização, é sufici-ente a entrega da correspondênciano endereço do devedor, ainda quenão pessoalmente. A propósito:

“PROCESSUAL CIVIL. ALIENA-ÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DEBUSCA E APREENSÃO. CON-VERSÃO EM DEPÓSITO. CONS-TITUIÇÃO EM MORA. NOTIFICA-ÇÃO ENTREGUE NO ENDERE-ÇO DO DEVEDOR. VALIDADE.DECRETO-LEI N. 911, ART. 2º, §2º. EXEGESE.I. Válida a notificação para cons-tituição em mora do devedor

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efetuada em seu domicílio, ain-da que não lhe entregue pesso-almente. Precedentes do STJ.II. Recurso especial conhecido eprovido, para afastar a extinçãodo processo, determinando aoTribunal de Alçada a apreciaçãodas demais questões postas noagravo de instrumento.” (REsp692.237/MG, Rel. Ministro AldirPassarinho Junior, DJ de 11/4/2005).

“DIREITO CIVIL E PROCESSUALCIVIL. RECURSO ESPECIAL. BUS-CA E APREENSÃO. ALIENAÇÃOFIDUCIÁRIA. CARACTERIZAÇÃODA MORA. PRECEDENTES.COMPROVAÇÃO DA MORA.VALIDADE DA NOTIFICAÇÃO.REQUISITO PARA CONCESSÃODE LIMINAR.- Ainda que haja possibilidadede o réu alegar, na ação de bus-ca e apreensão, a nulidade dascláusulas do contrato garanti-do com a alienação fiduciária,ou mesmo seja possível rever,de ofício, cláusulas contratuaisconsideradas abusivas, paraanulá-las, com base no art. 51,IV do CDC, a jurisprudência da2.ª Seção do STJ é pacífica nosentido de que na alienaçãofiduciária a mora constitui-se exre, isto é, decorre automatica-mente do vencimento do prazopara pagamento, por isso nãocabe qualquer inquirição a res-peito do montante ou origemda dívida para a aferição daconfiguração da mora.- Na alienação fiduciária, com-prova-se a mora do devedorpelo protesto do titulo, se hou-ver, ou pela notificaçãoextrajudicial feita por intermé-dio do Cartório de Títulos e Do-cumentos, que é consideradaválida se entregue no endere-

ço do domicílio do devedor, ain-da que não seja entregue pes-soalmente a ele.- A busca e apreensão deve serconcedida liminarmente secomprovada a mora do deve-dor fiduciante. Recurso especi-al provido.” (REsp 810717/RS,Terceira Turma, Rel. Min. NancyAndrighi, DJ de 4.9.2006)

Outrossim, a Quarta Turma des-ta Corte, quando do julgamentodo Recurso Especial nº 1.237.699-SC, de relatoria do Min. Luis FelipeSalomão, DJe de 18.5.2011, deci-diu que a notificação extrajudicial,exigida para a comprovação damora do devedor nos contratos definanciamento com garantia dealienação fiduciária, pode ser rea-lizada por Cartório de Títulos eDocumentos de Comarca diversado domicílio do devedor. Confira-se a ementa:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DEBUSCA E APREENSÃO. CONTRA-TO DE FINANCIAMENTO DE AU-TOMÓVEL COM GARANTIA DEALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. NOTI-FICAÇÃO EXTRAJUDICIAL REALI-ZADA POR CARTÓRIO DE TÍTU-LOS E DOCUMENTOS LOCALIZA-DO EM COMARCA DIVERSA DADO DOMICÍLIO DO DEVEDOR.1. A notificação extrajudicialrealizada e entregue no ende-reço do devedor, por via postale com aviso de recebimento, éválida quando realizada porCartório de Títulos e Documen-tos de outra Comarca, mesmoque não seja aquele do domicí-lio do devedor.2. De fato, inexiste norma noâmbito federal relativa ao limi-te territorial para a prática de

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atos registrais, especialmenteno tocante aos Ofícios de Títu-los e Documentos, razão pelaqual é possível a realização denotificações, como a efetivadano caso em apreço, mediante orequerimento do apresentantedo título, a quem é dada liber-dade de escolha nesses casos.3. A notificação extrajudicial,seja porque não está incluídanos atos enumerados no art.129, seja porque não se tratade ato tendente a dar conheci-mento a terceiros acerca de suaexistência, não está submetidoao disposto no art. 130 da Lei6.015/73.4. Recurso especial conhecidoem parte e, nesta parte,provido.(REsp 1237699/SC, Rel.Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,QUARTA TURMA, julgado em22/03/2011, DJe 18/05/2011, su-blinhei)

Por ocasião do referido julga-mento foi ressaltado pelo ExmºRelator que não existe norma noâmbito federal relativa ao limiteterritorial para a prática de atosregistrais, especialmente no tocan-te aos Ofícios de Títulos e Docu-mentos, razão pela qual é possívela realização de notificações medi-ante o requerimento do apre-sentante do título, a quem é dadaliberdade de escolha nesses casos.

Constou do voto condutor doacórdão citado:

“É bem verdade que a E. Ter-ceira Turma desta Corte, emprecedente de 2007, entendeuque, em virtude do disposto nosart. 8º e 9º da Lei n. 8.935/94, otabelião não pode praticar atosfora do município para o qual

recebeu delegação, conforme aseguinte ementa:

Notificação extrajudicial.Artigos 8º e 9º da Lei nº8.935/94.1. O ato do tabelião pratica-do fora do âmbito de sua de-legação não tem validade,inoperante, assim, a consti-tuição em mora.2. Recurso especial conheci-do e provido.(REsp 682399/CE, Rel. Ministro CARLOSALBERTO MENEZES DIREI-TO, TERCEIRA TURMA, julga-do em 07/05/2007, DJ 24/09/2007, p. 287)

Contudo, penso que não se deveaplicar o mesmo entendimen-to para a hipótese ora em jul-gamento.3. Com efeito, os arts. 8º, 9º e12 da Lei 8.935/94 dispõem que:

Art. 8º É livre a escolha do ta-belião de notas, qualquer queseja o domicílio das partes ouo lugar de situação dos bensobjeto do ato ou negócio.Art. 9º O tabelião de notasnão poderá praticar atos deseu ofício fora do Municípiopara o qual recebeu delega-ção.Art. 12. Aos oficiais de regis-tro de imóveis, de títulos edocumentos e civis das pes-soas jurídicas, civis das pes-soas naturais e de interdiçõese tutelas compete a práticados atos relacionados na le-gislação pertinente aos re-gistros públicos, de que sãoincumbidos, independente-mente de prévia distribui-ção, mas sujeitos os oficiaisde registro de imóveis e civisdas pessoas naturais às nor-mas que definirem as cir-cunscrições geográficas.

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Verifica-se que os dispositivosreferem-se, especificamente,aos tabelionatos de notas e aosregistros de imóveis e civis daspessoas naturais, limitando aprática dos atos notariais reali-zados por estes oficiais de re-gistro às circunscrições geográ-ficas para as quais receberamdelegação.Nesse passo, a contrario senso,se a norma não restringiu a atu-ação dos Cartórios de Títulos eDocumentos ao município parao qual recebeu delegação, nãocabe a esta Corte interpretar anorma de forma mais ampla,limitando a atuação destes car-tórios.Máxime porque, no tocante àsnotificações extrajudiciais rea-lizadas por via postal, não háqualquer deslocamento do ofi-cial do cartório a outra comarca.De fato, inexiste norma no âm-bito federal relativa ao limiteterritorial para a prática deatos registrais, especialmenteno tocante aos Ofícios de Títu-los e Documentos, razão pelaqual é possível a realização denotificações, como a efetivadano caso em apreço, mediante orequerimento do apresentantedo título, a quem é dada liber-dade de escolha nesses casos. 4. Por outro lado, cumpre des-tacar, ainda, que o art. 130 daLei 6.015/73, quando prevê oprincípio da territorialidade, aser observado pelas serventiasde registro de títulos e docu-mentos, não alcançou os atos denotificação extrajudicial, verbis:

Art. 130. Dentro do prazo devinte dias da data da sua as-sinatura pelas partes, todosos atos enumerados nos arts.128 e 129, serão registradosno domicílio das partes con-

tratantes e, quando residamestas em circunscriçõesterritoriais diversas, far-se-á o registro em todas elas.(Renumerado do art. 131pela Lei nº 6.216, de 1975).Parágrafo único. Os regis-tros de documentos apresen-tados, depois de findo o pra-zo, produzirão efeitos a par-tir da data da apresentação.

O art. 129, por sua vez, enume-ra os atos que deverão serregistrados no domicílio daspartes contratantes:

Art. 129. Estão sujeitos a re-gistro, no Registro de Títulose Documentos, para surtirefeitos em relação a tercei-ros: (Renumerado do art. 130pela Lei nº 6.216, de 1975).1º) os contratos de locaçãode prédios, sem prejuízo dodisposto do artigo 167, I,nº 3;2º) os documentos decorren-tes de depósitos, ou de cau-ções feitos em garantia decumprimento de obrigaçõescontratuais, ainda que emseparado dos respectivos ins-trumentos;3º) as cartas de fiança, emgeral, feitas por instrumen-to particular, seja qual for anatureza do compromissopor elas abonado;4º) os contratos de locaçãode serviços não atribuídos aoutras repartições;5º) os contratos de compra evenda em prestações, com re-serva de domínio ou não, qual-quer que seja a forma de quese revistam, os de alienaçãoou de promessas de venda re-ferentes a bens móveis e osde alienação fiduciária;6º) todos os documentos deprocedência estrangeira,

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AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO.NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL REALIZADA POR CARTÓRIO SITUADO EM COMARCA DIVERSA DA DO DOMICÍLIO DO DEVEDOR

acompanhados das respecti-vas traduções, para produzi-rem efeitos em repartiçõesda União, dos Estados, doDistrito Federal, dos Territó-rios e dos Municípios ou emqualquer instância, juízo outribunal;7º) as quitações, recibos econtratos de compra e ven-da de automóveis, bem comoo penhor destes, qualquerque seja a forma que revis-tam;8º) os atos administrativosexpedidos para cumprimen-to de decisões judiciais, semtrânsito em julgado, pelasquais for determinada a en-trega, pelas alfândegas emesas de renda, de bens emercadorias procedentes doexterior.9º) os instrumentos de ces-são de direitos e de créditos,de sub-rogação e de daçãoem pagamento.

Walter Ceneviva, ao tratar doart. 130 da Lei 6.015/73, afir-ma:

“O domicílio determina aatribuição ao serviço de cer-ta comarca, para que se as-segure a cognoscibilidadepor todos os terceiros. O as-sentamento fora do domicí-lio das partes, dos apresen-tados e interessados, dificul-taria o conhecimento do atopor terceiros.Havendo mais de um regis-tro na comarca, a transcriçãopoderá ser feita em qual-quer deles, vedada que é adistribuição (art. 131).”

5. Assim, a notificação extra-ju-dicial, seja porque não está in-cluída nos atos enumerados noart. 129, seja porque não se tra-ta de ato tendente a dar conhe-

cimento a terceiros acerca desua existência, não está subme-tido ao disposto no art. 130 daLei 6.015/73.

Na linha do citado precedenteseguiu-se a seguinte decisão singu-lar proferida no AG nº 1.401.254-BA, Rel. Min. Raul Araújo, DJe de28.10.2011.

Observe-se que a limitação des-crita no art. 9º da Lei nº 8.935/94 édirigida ao tabelião na prática deserviços notariais e de registro,dentro das atribuições do cartóriode notas.

Já a realização de notificaçãoextrajudicial está a cargo do cartó-rio de títulos e documentos, cujotitular denomina-se oficial de re-gistro, para o qual não vinga a es-pecífica restrição.

Em resumo, o art. 9º da Lei nº8.935/94, inserido na Seção II “DasAtribuições e Competências dosNotários”, traz restrição à práticade atos fora do Município para oqual recebeu delegação, mas dizrespeito expressamente ao tabeliãode notas, não se aplicando ao car-tório de títulos e documentos.Observe-se que, para este último,há seção específica na referida lei:“Atribuições e Competências dosOficiais de Registros”.

Assim, por ausência de normadispondo em contrário e tendo emvista o pleno alcance de sua finali-dade (dar conhecimento da moraao próprio devedor a quem éendereçada a notificação), tenhocomo válida a notificação extra-judicial realizada por via postal, noendereço do devedor, ainda que otítulo tenha sido apresentado em

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Cartório de Títulos e Documentossituado em comarca diversa dodomicílio daquele.

No caso ora em exame, o deve-dor reside na Comarca de Salva-dor/BA e o recorrente, Banco FinasaS/A, com o objetivo de constituí-lo em mora, realizou a notificaçãoextrajudicial por intermédio doCartório de Registro de Títulos eDocumentos de Comarca deCaucaia/CE.

Ante o exposto, conheço emparte do recurso especial e, nessaparte, dou-lhe provimento paracassar o acórdão e a sentença, de-terminando o retorno dos autos àprimeira instância para prossegui-mento da demanda, analisando-seos demais aspectos da lide.

É como voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

Certifico que a egrégia SEGUN-DA SEÇÃO, ao apreciar o processoem epígrafe na sessão realizadanesta data, proferiu a seguinte de-cisão:

A Seção, por unanimidade, deuprovimento ao recurso especial,nos termos do voto da Sra. Minis-tra Relatora.

Os Srs. Ministros Antonio CarlosFerreira, Ricardo Villas Bôas Cueva,Marco Buzzi, Massami Uyeda, LuisFelipe Salomão, Raul Araújo e Pau-lo de Tarso Sanseverino votaramcom a Sra. Ministra Relatora.

Ausente, justificadamente, a Sra.Ministra Nancy Andrighi.

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CCB VINCULADA A CONTRATO DE CRÉDITO ROTATIVO. EXEQUIBILIDADE. LEI N. 10.931/2004

Superior Tribunal de Justiça

Direito bancário e processual civil. Cédula de Crédito Bancáriovinculada a contrato de crédito rotativo. Exequibilidade. Lein. 10.931/2004. Possibilidade de questionamento acerca dopreenchimento dos requisitos legais relativos aos demons-trativos da dívida.1

1 Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200802419665&dt_publicacao=26/04/2012>. Acesso em: 29 abr. 2012.

EMENTA OFICIAL

DIREITO BANCÁRIO E PROCESSU-AL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.ÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO VIN-CULADA A CONTRATO DE CRÉDITOROTATIVO. EXEQUIBILIDADE. LEI N.10.931/2004. POSSIBILIDADE DEQUESTIONAMENTO ACERCA DO PRE-ENCHIMENTO DOS REQUISITOS LE-GAIS RELATIVOS AOS DEMONSTRA-TIVOS DA DÍVIDA. INCISOS I E II DO§ 2º DO ART. 28 DA LEI REGENTE.

1. A Lei n. 10.931/2004 estabeleceque a Cédula de Crédito Bancário étítulo executivo extrajudicial, repre-sentativo de operações de crédito dequalquer natureza, circunstância queautoriza sua emissão para documen-tar a abertura de crédito em contacorrente, nas modalidades de crédi-to rotativo ou cheque especial.

2. Para tanto, o título de créditodeve vir acompanhado de claro de-monstrativo acerca dos valores utili-zados pelo cliente, trazendo o diplo-ma legal a relação de exigências queo credor deverá cumprir, de modo aconferir liquidez e exequibilidade àCédula (art. 28, § 2º, incisos I e II, daLei n. 10.931/2004).

3. No caso em julgamento, afas-tada a tese de que, em abstrato, aCédula de Crédito Bancário não pos-sui força executiva, os autos devemretornar ao Tribunal a quo para aapreciação das demais questões sus-citadas no recurso de apelação.

4. Recurso especial parcialmenteprovido.

ACÓRDÃO

A Turma, por unanimidade, deuparcial provimento ao recurso espe-cial, nos termos do voto do Sr. Mi-nistro Relator.Os Srs. Ministros RaulAraújo e Maria Isabel Gallotti vota-ram com o Sr. Ministro Relator.

Impedido o Sr. Ministro AntonioCarlos Ferreira.

Ausente, justificadamente, o Sr.Ministro Marco Buzzi.

Brasília (DF), 10 de abril de 2012(Data do Julgamento).

MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO,Relator.

REsp 1.103.523 - DJe 26.04.2012.

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPESALOMÃO (Relator):

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1. GET Propaganda Ltda. e ErnaniBuchmann opuseram embargos àexecução ajuizada pela Caixa Econô-mica Federal, aduzindo os embar-gantes inexistência de título executi-vo, porquanto, a despeito de ter sidocarreada aos autos Cédula de CréditoBancário, o que se executa é contra-to de abertura de crédito em contacorrente, ou crédito rotativo, despro-vido de liquidez e certeza, nos ter-mos das Súmulas n. 233 e 247 do STJ.Pleitearam, de forma subsidiária, aredução dos juros remuneratórios aparâmetros que mantivessem o equi-líbrio contratual.

O Juízo da 4ª Vara Federal deCuritiba/PR julgou improcedentes osembargos à execução, reconhecen-do a exequibilidade da Cédula deCrédito Bancário e a inexistência dejuros abusivos (fls. 56-64).

Em grau de apelação, todavia, asentença foi reformada para julgarextinta a execução, nos termos doacórdão assim ementado:

APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATOSBANCÁRIOS. EXECUÇÃO DE TÍTU-LO EXTRAJUDICIAL. CÉDULA DECRÉDITO BANCÁRIO. EXTINÇÃO.O contrato de crédito fixo - comtaxas, prestações e vencimen-tos previamente estabelecidos- reveste-se dos requisitos ine-rentes aos títulos executivosextrajudiciais.A cártula analisada no caso con-creto (Cédula de Crédito Bancá-rio), no entanto, decorre de Con-trato de Crédito Rotativo que,apesar de apresentado por escri-to e firmado na presença de duastestemunhas, não se constitui emtítulo executivo extrajudicial, pornão gozar dos requisitos daliquidez e certeza. Sob esta ótica,

fica, in casu, verificada a ineficáciado art. 28, da Lei nº 10.931/04 quenão pode fazer tábula rasa doordenamento processual vigente.Não há na referida avença se-quer os valores e as respectivasdatas de liberação do crédito aomutuário. Diante disso, mostra-se perfeitamente subsumido opresente caso no verbete daSúmula nº 233 do STJ, “o contra-to de abertura de crédito, aindaque acompanhado de extratode conta corrente, não é títuloexecutivo.” (fl. 107)

Os embargos de declaração opos-tos (fls. 110-112) foram rejeitados (fls.113-116).

Sobreveio recurso especial apoi-ado na alínea “a” do permissivo cons-titucional, no qual se alega ofensaao art. 28 da Lei n. 10.931/2004, umavez que a Cédula de Crédito Bancá-rio é título executivo extrajudicial,não se aplicando o que dispõe aSúmula n. 233/STJ, restrita à hipóte-se de contrato de abertura de crédi-to. Contra-arrazoado (fls. 129-135), oespecial foi admitido (fls. 137-138).

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPESALOMÃO (Relator):

2. A controvérsia ora instaladaversa sobre a questão da exequi-bilidade de Cédula de Crédito Ban-cário, criada inicialmente pela MP n.2.160, de 2001, a qual, após diversasreedições, culminou parcialmente naaprovação da Lei n. 10.931/2004.

A problemática hospeda-se nofato de que, na grande maioria dasvezes, encontra-se subjacente à Cé-dula de Crédito Bancário um con-

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CCB VINCULADA A CONTRATO DE CRÉDITO ROTATIVO. EXEQUIBILIDADE. LEI N. 10.931/2004

trato de abertura de crédito rotativo,cuja exequibilidade fora afastadapor sólida jurisprudência do STJ, cris-talizada nas Súmulas 233 e 247:

Súmula 233: O contrato de aber-tura de crédito, ainda que acom-panhado de extrato da conta-corrente, não é título executivo.Súmula 247: O contrato de aber-tura de crédito em conta-corren-te, acompanhado do demons-trativo de débito, constitui docu-mento hábil para o ajuizamentoda ação monitória.

Daí por que se tem entendidoque a criação da Cédula de CréditoBancário constituiu nítida reação dolegislador contra a jurisprudênciado STJ.

Segundo aqueles que rivalizamcom o entendimento insculpido nasSúmulas 233 e 247, a jurisprudênciadeixara o Sistema Financeiro “órfão,desamparado, de instrumentos jurí-dicos que conferisse celeridade e se-gurança às volumosas transações queenvolvem abertura de crédito, che-que especial ou crédito rotativo”(THEODORO JÚNIOR. Humberto. Acédula de crédito bancário como tí-tulo executivo extrajudicial no direi-to brasileiro. in. Revista Jurídica. Ano55, dezembro de 2007, n. 362, p. 15).

A mencionada jurisprudência doSTJ - com a qual este Relator con-corda integralmente - finca raízesno fato de que o contrato de aber-tura de crédito em conta corrente,em si, não revela obrigação líquidae certa assumida pelo cliente, e nãopode o credor, à revelia do assenti-mento do devedor, criar título exe-cutivo “terminado” unilateralmen-te, mediante impressão de extratos

bancários ou elaboração de pla-nilhas.

Tive a oportunidade de enfren-tar a questão na relatoria do REsp.n. 800.178/SC, quando asseverei:

[...] o contrato de abertura decrédito rotativo (utilizado, nomais das vezes, em sua modali-dade “cheque especial”) nãoconsubstancia, em si, uma obri-gação assumida pelo consumi-dor. Ao contrário, incorpora umaobrigação da instituição financei-ra em disponibilizar determina-da quantia ao seu cliente, poden-do dela utilizar-se ou não.[...]A ausência de executividade docontrato de abertura de créditodecorre do fato de que, quandoda assinatura do instrumentopelo consumidor – ocasião em quea obrigação nasce para a institui-ção financeira, de disponibilizardeterminada quantia ao seu cli-ente -, não há dívida líquida e cer-ta, sendo que os valores eventu-almente utilizados são documen-tados unilateralmente pela pró-pria instituição, sem qualquer par-ticipação, muito menos consenti-mento, do cliente.Inexistindo, pois, certeza e liquidezno próprio instrumento, exigênci-as que não são alcançadas medi-ante a complementação unilate-ral do credor com a apresentaçãode extratos bancários, porquantonão lhe é dado criar títulos execu-tivos à revelia do devedor, tem-seque o contrato de abertura de cré-dito carece, realmente, deexequibilidade.

Em suma, porque não havia leiprevendo a exequibilidade do con-trato de abertura de crédito em con-ta corrente, não podia o credor su-

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prir a iliquidez e a incerteza que emer-gia diretamente do contrato, medi-ante a elaboração unilateral de cál-culos relativos ao crédito utilizado,enquadrando o contrato de aberturade crédito na categoria geral de “do-cumento particular assinado pelodevedor e por duas testemunhas” aque faz referência o art. 585, inciso II,do Código de Processo Civil, ao indi-car os títulos executivos extrajudiciaisaceitos no ordenamento jurídico.

3. Contudo, com o advento da Lein. 10.931/2004, foi criada a Cédulade Crédito Bancário, exatamente nosmesmos moldes da prática bancáriaantes rechaçada pela jurisprudênciado STJ, de modo a conferir certeza,liquidez e exigibilidade “seja pelasoma nela indicada [na Cédula], sejapelo saldo devedor demonstrado emplanilha de cálculo, ou nos extratosda conta corrente” (art. 28).

Tal a perplexidade gerada pelamencionada Lei que levou o ilustreex-ministro Ruy Rosado de AguiarJunior a asseverar, em sede doutri-nária, que:

Certamente não se encontrarános países ocidentais, no âmbitodas instituições financeiras, umdiploma que conceda mais po-deres ao credor estipulante decontrato de adesão, sem limitespara taxas, comissões e multas:para completar, faltaria apenasexcluí-lo do controle judicial(AGUIAR JUNIOR. Ruy Rosado de.Os contratos bancários e a juris-prudência do Superior Tribunalde Justiça . Disponível na Biblio-teca Digital do Superior Tribunalde Justiça, BDJur, p. 101).

As críticas alcançam a estatura dainconstitucionalidade (NERY JUNIOR,

Nelson [et. al.]. Código de processocivil comentado e legislação extra-vagante . 9 ed. São Paulo: Revista dosTribunais, 2006, pp. 837-838), muitoembora não se me afigure que a dis-cussão, por esse enfoque, esteja sufi-cientemente madura a ponto de per-mitir o incidente adequado.

4. Nessa esteira, o fato é que há leiregulando a matéria controvertida.

O legislador agiu pela via pró-pria e validou as práticas bancáriasque antes não encontravam lastrono ordenamento jurídico brasileiro.

Em outras palavras, a Cédula deCrédito Bancário é título executivoextrajudicial representativo de ope-rações de crédito de qualquer natu-reza, circunstância que autoriza suaemissão para documentar a abertu-ra de crédito em conta corrente.

Os arts. 26 e 28 da Lei n. 10.931/2004 confirmam essa situação:

Art. 26. A Cédula de Crédito Ban-cário é título de crédito emitido,por pessoa física ou jurídica, emfavor de instituição financeira oude entidade a esta equiparada,representando promessa de pa-gamento em dinheiro, decorren-te de operação de crédito, dequalquer modalidade.§ 1o A instituição credora deveintegrar o Sistema Financei-ro Nacional, sendo admitida aemissão da Cédula de CréditoBancário em favor de instituiçãodomiciliada no exterior, desdeque a obrigação esteja sujeitaexclusivamente à lei e ao forobrasileiros.§ 2o A Cédula de Crédito Bancá-rio em favor de instituiçãodomiciliada no exterior poderáser emitida em moeda estran-geira.

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CCB VINCULADA A CONTRATO DE CRÉDITO ROTATIVO. EXEQUIBILIDADE. LEI N. 10.931/2004

[...]Art. 28. A Cédula de Crédito Ban-cário é título executivo extrajudiciale representa dívida em dinheiro,certa, líquida e exigível, seja pelasoma nela indicada, seja pelo saldodevedor demonstrado em planilhade cálculo, ou nos extratos da con-ta corrente, elaborados conformeprevisto no § 2o.

Com efeito, havendo lei a pre-ver a complementação da liquidezdo contrato bancário medianteapresentação de cálculos elaboradospelo próprio credor - ou, na lingua-gem da lei, tocando ao credor “aapuração do valor exato da obriga-ção” -, cabe ao Judiciário, em sedede jurisdição infraconstitucional,aplicar o novo diploma.

Esse entendimento foi sufragadopor este Colegiado em mais de umprecedente, tendo este Relator, noprimeiro abaixo citado, ficado ven-cido, por entender que, naquelecaso, incidiria a Súmula 7/STJ (AgRgno REsp 599.609/SP, Rel. MinistroLUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DENORONHA, QUARTA TURMA, julga-do em 15/12/2009; AgRg no REsp1038215/SP, Rel. Ministra MARIA ISA-BEL GALLOTTI, QUARTA TURMA,julgado em 26/10/2010).

Nesse mesmo sentido, para a Cé-dula de Crédito Rural, o art. 10,caput e § 1º, do Decreto-lei n. 167/67, assim dispõe:

Art 10. A cédula de crédito ruralé título civil, líquido e certo,exigível pela soma dêla constan-te ou do endôsso, além dos ju-ros, da comissão de fiscalização,se houver, e demais despesas queo credor fizer para segurança, re-

gularidade e realização de seudireito creditório.§ 1º Se o emitente houverdeixado de levantar qualquerparcela do crédito deferidoou tiver feito pagamentosparciais, o credor descenta-los-á da soma declarada nacédula, tornando-se exigívelapenas o saldo.

Com artigo e parágrafo de mes-ma numeração, o Decreto-lei n. 413/69 preceitua comando normativoidêntico para a Cédula de CréditoIndustrial. O art. 3º, da Lei n. 6.313/75 manda aplicar à Cédula de Cré-dito à Exportação as disposições doDecreto-lei n. 413/69, relativas à Cé-dula de Crédito Industrial.

Disposição análoga está contidano art. 5º da Lei n. 6.840/80, aplicá-vel à Cédula de Crédito Comercial eà Nota de Crédito Comercial.

E a própria jurisprudência vemaceitando a emissão de outras cédu-las de crédito, como a comercial e aindustrial, para documentar contra-to de abertura de crédito em contacorrente (REsp 791.676/GO, Rel. Mi-nistro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUAR-TA TURMA, julgado em 28/06/2011;REsp 480.261/SC, Rel. Ministro BAR-ROS MONTEIRO, QUARTA TURMA,julgado em 03/05/2005; REsp253.433/RS, Rel. Ministro CASTROFILHO, Rel. p/ Acórdão MinistroCARLOS ALBERTO MENEZES DIREI-TO, TERCEIRA TURMA, julgado em22/02/2005).

Em suma, descabe indagar se, emabstrato, a Cédula de Crédito Ban-cário é título executivo, mesmo quedecorra diretamente de contrato deabertura de crédito, seja rotativo oucheque especial.

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5. Cumpre investigar se, em con-creto, a Cédula de Crédito Bancá-rio reúne os requisitos legais parasua emissão e execução da dívida,requisitos que estão contemplados,sobretudo, no § 2º do art. 28 e art.29 da Lei n. 10.931/2004, verbis:

Art. 28. A Cédula de Crédito Ban-cário é título executivoextrajudicial e representa dívidaem dinheiro, certa, líquida eexigível, seja pela soma nelaindicada, seja pelo saldo devedordemonstrado em planilha decálculo, ou nos extratos da contacorrente, elaborados conformeprevisto no § 2o.[...]§ 2o Sempre que necessário, aapuração do valor exato da obri-gação, ou de seu saldo devedor,representado pela Cédula deCrédito Bancário, será feita pelocredor, por meio de planilha decálculo e, quando for o caso, deextrato emitido pela instituiçãofinanceira, em favor da qual aCédula de Crédito Bancário foioriginalmente emitida, docu-mentos esses que integrarão aCédula, observado que:I - os cálculos realizados deverãoevidenciar de modo claro, preci-so e de fácil entendimento e com-preensão, o valor principal da dí-vida, seus encargos e despesascontratuais devidos, a parcela dejuros e os critérios de sua incidên-cia, a parcela de atualização mo-netária ou cambial, a parcela cor-respondente a multas e demaispenalidades contratuais, as des-pesas de cobrança e de honorári-os advocatícios devidos até adata do cálculo e, por fim, o valortotal da dívida; eII - a Cédula de Crédito Bancáriorepresentativa de dívida oriunda

de contrato de abertura de cré-dito bancário em conta correnteserá emitida pelo valor total docrédito posto à disposição do emi-tente, competindo ao credor, nostermos deste parágrafo, discrimi-nar nos extratos da conta corren-te ou nas planilhas de cálculo, queserão anexados à Cédula, as par-celas utilizadas do crédito aber-to, os aumentos do limite do cré-dito inicialmente concedido, aseventuais amortizações da dívi-da e a incidência dos encargos nosvários períodos de utilização docrédito aberto.

Aliás, as exigências constantesnos inciso I e II do § 2º do art. 28 daLei n. 10.931/2004, grosso modo, sãoas mesmas que preceituava a Quar-ta Turma do STJ, antes da edição dasSúmulas n. 233 e 247, no sentido deser exequível o contrato de abertu-ra de crédito, mas exigia a adequa-da demonstração contábil do valorutilizado pelo cliente, sob pena denão se lhe conferir liquidez.

Na mesma linha são os seguintesprecedentes: REsp 6.949/CE, Rel.Ministro ATHOS CARNEIRO, QUAR-TA TURMA, julgado em 05/03/1991;REsp 11.037/DF, Rel. Ministro SÁLVIODE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTATURMA, julgado em 12/05/1992;REsp 8715/MG, Rel. Ministro SÁLVIODE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTATURMA, julgado em 10/12/1991.

Portanto, a Lei n. 10.931/2004 nãopermite a utilização da Cédula deCrédito Bancário como mera roupa-gem do antigo contrato de abertu-ra de crédito, como se a simplesnomenclatura diversa lhe conferis-se força executiva.

Ao reverso, o novo título de cré-dito, para ostentar exequibilidade,

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CCB VINCULADA A CONTRATO DE CRÉDITO ROTATIVO. EXEQUIBILIDADE. LEI N. 10.931/2004

deve vir acompanhado de claro de-monstrativo acerca dos valores uti-lizados pelo cliente, trazendo onovo diploma legal uma série deexigências para conferir liquidez eexequibilidade à Cédula, a saber:

I - os cálculos realizados deverãoevidenciar, de modo claro, precisoe de fácil entendimento e compre-ensão, o valor principal da dívida,seus encargos e despesas contratuaisdevidos, a parcela de juros e os cri-térios de sua incidência, a parcelade atualização monetária ou cam-bial, a parcela correspondente amultas e demais penalidadescontratuais, as despesas de cobran-ça e de honorários advocatícios de-vidos até a data do cálculo e, porfim, o valor total da dívida; e

II - a Cédula de Crédito Bancáriorepresentativa de dívida oriunda decontrato de abertura de crédito ban-cário em conta corrente será emitidapelo valor total do crédito posto àdisposição do emitente, competindoao credor, nos termos deste parágra-fo, discriminar nos extratos da contacorrente ou nas planilhas de cálculo,que serão anexados à Cédula, as par-celas utilizadas do crédito aberto, osaumentos do limite do crédito inici-almente concedido, as eventuaisamortizações da dívida e a incidên-cia dos encargos nos vários períodosde utilização do crédito aberto.

Assim, muito embora não sejapossível insurgir-se, no âmbitoinfraconstitucional, contra aexequibilidade em abstrato da Cédu-la de Crédito Bancário, eventuaisquestionamentos acerca da força exe-cutiva do título podem gravitar emtorno do preenchimento das exigên-cias legais alusivas à demonstração

clara e precisa dos valores utilizadospelo devedor, bem como os métodosde cálculo realizados pelo credor, exi-gências materializadas, sobretudo,nos inciso I e II do § 2º do art. 28 e art.29, ambos da Lei n. 10.931/2004.

6. No caso concreto, o acórdãorecorrido rejeitou a executividadeda Cédula de Crédito Bancário, emrazão do fato de ter se originadode contrato de crédito rotativo enão possuir, ela mesma, a Cédula,os valores e as liberações do crédi-to, tendo sido complementada comos extratos bancários.

Nesse sentido, confira-se o se-guinte trecho da fundamentação dovoto condutor:

A cártula ora analisada (Cédulade Crédito Bancário), decorre deContrato de Crédito Rotativo que,apesar de apresentado por escri-to e firmado na presença de duastestemunhas, não se constitui emtítulo executivo extrajudicial, pornão gozar dos requisitos daliquidez e certeza. Sob essa ótica,fica, in caso, verificada a ineficá-cia do art. 28, da Lei nº 10.931/04,que não pode fazer tábula rasado ordenamento jurídico proces-sual vigente.Com efeito, não há na referidaavença sequer os valores e as res-pectivas datas de liberação do cré-dito ao mutuário, sendo necessá-ria a sua complemen-tação comextratos produzidos unilateral-mente pela própria exequente.Diante disso, mostra-se perfei-tamente subsumido o presentecaso no verbete da Súmula nº233 do STJ, “o contrato de aber-tura de crédito, ainda que acom-panhado de extrato de contacorrente, não é título executivo”.(fl. 106)

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA JURISPRUDÊNCIA

286 Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

Percebe-se, assim, que o acórdãorecorrido rejeitou a executividadeem abstrato da Cédula de CréditoBancário, uma vez que sua liquidezdecorreria de extratos elaboradosunilateralmente pelo credor, práti-ca que, como se afirmou anterior-mente, foi autorizada pela Lei n.10.931/2004.

Destarte, cumpre afastar esse fun-damento do acórdão para conferirexecutividade, em tese, à Cédula deCrédito Bancário.

Porém, descabe ao STJ, na hipó-tese, determinar o prosseguimentonormal da execução, uma vez que,conforme se depreende da petiçãode apelação carreada às fls. 68-84, oexecutado deduziu outros pedidose fundamentos em seu recurso, osquais não foram analisados pelo Tri-bunal a quo em razão do acolhi-mento do primeiro, isto é, o da au-sência de executividade em abstra-to da Cédula de Crédito Bancário.

Assim, permaneceram em aber-to, sem a apreciação do ColegiadoRegional, as seguintes teses:

a) cerceamento de defesa - emrazão do indeferimento de provapericial pleiteada como necessáriaà demonstração de cobrança de en-cargos abusivos, tendo em vista queos embargos do devedor foram tam-bém rejeitados sem essa apreciação;

b) nulidade de intimação de des-pacho que os apelantes entenderamlhes ser prejudicial;

c) ausência de exequibilidade emconcreto da Cédula de Crédito Ban-cário que aparelhou a execução,uma vez que os extratos queespelhavam o débito seriamimprestáveis ao fim a que se desti-nam, pois não evidenciariam, de

modo claro, preciso e de fácil en-tendimento, o valor total da dívi-da, de modo também a possibilitarao devedor a compreensão da com-posição de seu débito.

Destarte, afastando esta Corte atese de que, em abstrato, a Cédulade Crédito Bancário não possui for-ça executiva, devem os autosretornar ao Tribunal a quo para aapreciação das demais questões sus-citadas no recurso de apelação, en-tre elas a ausência de liquidez daCédula de Crédito Bancário em ra-zão do descumprimento das exigên-cias previstas no art. 28, § 2º, incisosI e II, da Lei n. 10.931/2004.

7. Diante do exposto, dou parci-al provimento ao recurso especialpara que os autos retornem ao Tri-bunal a quo e prossiga no julgamen-to do recurso de apelação.

É como voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

Certifico que a egrégia QUARTATURMA, ao apreciar o processo emepígrafe na sessão realizada nestadata, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, por unanimidade, deuparcial provimento ao recurso espe-cial, nos termos do voto do Sr. Mi-nistro Relator.

Os Srs. Ministros Raul Araújo eMaria Isabel Gallotti votaram como Sr. Ministro Relator.

Impedido o Sr. Ministro AntonioCarlos Ferreira.

Ausente, justificadamente, o Sr.Ministro Marco Buzzi.

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287Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CORRESPONDENTES BANCÁRIOS. LOTÉRICAS. EQUIPARAÇÃO AOS BANCÁRIOS

Tribunal Superior do Trabalho

Recurso de Revista. Ação civil pública. Correspondentes bancários.Lotéricas. Equiparação aos bancários. Responsabilidade exclusivada CEF afastada. 1

1 Disponível em: <http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?act ion=pr int Inte i roTeor&highl ight=true&numeroFormatado=RR%20-%20103200-21.2006.5.20.0005&base=acordao&numProcInt=493968&anoProcInt=2008&dataPublicacao=13/05/2011%2007:00:00&query=>. Acesso em:29 abr. 2012.

ACÓRDÃO

RECURSO DE REVISTA. AÇÃOCIVIL PÚBLICA. ESTADO DESERGIPE. CEF. CORRESPONDEN-TES BANCÁRIOS. LOTÉRICAS.EQUIPARAÇÃO AOS BANCÁRI-OS. RESPONSABILIDADE EXCLU-SIVA DA CEF. O contrato de pres-tação de serviços firmado entre aCEF e os donos de lotéricas não temo condão de atrair a responsabili-dade exclusiva da CEF pelos direi-tos e obrigações decorrentes doscontratos de trabalho mantidosentre os empregados e os donos dascasas lotéricas. Assim, a tentativado Ministério Público em buscarmelhores condições de trabalhopara os empregados das casaslotéricas, atribuindo à CEF a res-ponsabilidade exclusiva pela im-plantação de tais medidas, à mar-gem do contrato de trabalho queregula a relação entre empregadose empregadores, não se mostracapaz de viabilizar o pleito. Revis-ta parcialmente conhecida e pro-vida.

Vistos, relatados e discutidos es-tes autos de Recurso de Revista n.º

TST-RR-103200-21.2006.5.20.0005, em que é Recorrente CAIXAECONÔMICA FEDERAL - CEF e Re-corrido MINISTÉRIO PÚBLICO DOTRABALHO DA 20.ª REGIÃO.

RR 103200-21.2006.5.20.0005.DJe 13.05.2011.

RELATÓRIO

Trata-se de Ação Civil Pública,pela qual o Ministério Público bus-ca a equiparação dos funcionáriosque prestam serviço em casaslotéricas do Estado de Sergipe aosbancários, bem como a condena-ção ao pagamento de indenizaçãopor danos morais coletivos e adap-tação das lotéricas às condiçõesque garantam a segurança físicados funcionários.

O Regional afastou as prelimi-nares de incompetência da Justi-ça do Trabalho, ilegitimidade doMinistério Público e ilegitimidadeda CEF e manteve a sentença quecondenou a Reclamada a provi-denciar as medidas necessáriaspara garantir a segurança dos fun-cionários que trabalham naslotéricas, bem como promover a

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TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO JURISPRUDÊNCIA

288 Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

equiparação deles aos bancários epagar indenização a título dedano moral coletivo (a fls. 475).

O Reclamado interpõe o presen-te Recurso de Revista, a fls. 477/510,mediante o qual se insurge contraa decisão quanto ao temas anteri-ormente mencionados.

O Recurso de Revista foi admi-tido por meio do despacho profe-rido a fls. 516/517.

Contrarrazões a fls. 528/529.Dispensada a remessa dos autos

ao Ministério Público do Trabalho.Despacho proferido em sede de

Ação Cautelar Inominada, noticia-do a fls. 563, que, liminarmente,concedeu efeito suspensivo ao Re-curso de Revista interposto, até ojulgamento final do recurso.

É o relatório.V O T OPresentes os pressupostos

extrínsecos de admissibilidade,passo ao exame dos intrínsecos afei-tos à Revista.

I - CONHECIMENTOINCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA

DO TRABALHOO Regional assim se manifestou

sobre a matéria, a fls. 461/462:

Compete à Justiça do Trabalhoapreciar e julgar, por expressaprevisão do art. 114 da Consti-tuição Federal, não só dosdissídios individuais e coletivosentre trabalhadores e empre-gadores, mas também outrascontrovérsias decorrentes darelação de trabalho.A presente ação civil públicabusca a defesa de interesses co-letivos no âmbito das relaçõesde trabalho, visto que visa aadoção de medidas relativas ao

ambiente e condições de traba-lho, de sorte que esta Especi-alizada se afigura como compe-tente.

A Recorrente sustenta quenão pode interferir nas relaçõesentre os empregados e os empre-gadores, permissionários loté-ricos. Entende que mantém comas lotéricas contrato de nature-za diversa daqueles que regemas relações de trabalho. Requera remessa do feito à Justiça Fe-deral, órgão que entende com-petente para julgá-lo. Diz vio-lados os arts. 109, I, e 114 daConstituição Federal. Traz arestoao confronto jurisprudencial (afls. 484/486).

A discussão originária diz res-peito às relações de trabalho sobo ponto de vista das condiçõesimpostas aos empregados queprestam serviço em casaslotéricas e as funções atribuídasaos bancários. Assim, corretos osargumentos lançado pelo Regio-nal e que balizaram a decisão ata-cada no sentido de que se aplicaao caso em tela o disposto noart. 114 da Constituição Federal,que, de forma ampla, estende acompetência desta Justiça Espe-cializada para as controvérsiasdecorrentes da relação de traba-lho. Inaplicável, portanto, o art.109, I, da Constituição Federal.

O aresto apresentado ao con-fronto jurisprudencial é oriundoda Terceira Turma desta Corte, sen-do, portanto, inservível ao confron-to, nos termos do art. 896, -a-, daCLT.

Não conheço, no particular.

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AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CORRESPONDENTES BANCÁRIOS. LOTÉRICAS. EQUIPARAÇÃO AOS BANCÁRIOS

ILEGITIMIDADE DO MINISTÉ-RIO PÚBLICO

O Regional assim se manifestousobre a matéria, a fls. 462/463:

A Lei n.º 7.347/85, Lei da AçãoCivil Pública, estabelece em seuartigo 5.º, I, a legitimidade doMinistério Público para a pro-posição de ação civil pública, sen-do que o inciso IV, do art. 1.º,prevê a possibilidade deajuizamento de ação civil públi-ca para a defesa de interessesdifusos ou coletivos.Ressalte-se que o art. 83 da LeiComplementar 75/93, que dis-põe sobre a organização, asatribuições e o estatuto do Mi-nistério Público da União, aca-bou com qualquer dúvidaporventura existente no querespeita à legitimidade do Mi-nistério Público do Trabalhopara a propositura de Ação Ci-vil Pública no âmbito da Justi-ça do Trabalho, ao assim dis-por:Art. 83. Compete ao MinistérioPúblico do Trabalho o exercíciodas seguintes atribuições juntoaos órgãos da Justiça do Traba-lho:_________________________III - promover a ação civil públi-ca no âmbito da Justiça do Tra-balho, para defesa de interes-ses coletivos, quando desrespei-tados os direitos sociais consti-tucionalmente garantidos;’Por fim, não procede o argu-mento do Recorrente, de queos presentes autos se reportama interesses disponíveis, vistoque, em verdade, como já men-cionado, cuidam da defesa deinteresses coletivos no âmbitodas relações de trabalho, vistoque visam à adoção de medi-

das relativas ao ambiente econdições de trabalho.Rejeita-se a preliminar, portan-to.

A Recorrente sustenta a impos-sibilidade de defesa, pelo Ministé-rio Público, de interesses individu-ais disponíveis e individuais homo-gêneos. Requer a extinção do fei-to sem julgamento do mérito (art.267, VI, do CPC). Diz violados osarts. 81, III, da Lei n.º 8.078/90 c/carts. 295, II e III, e 267, VI, do CPC e127 e 129 da CF. Traz aresto ao con-fronto jurisprudencial (a fls. 489/490).

Esta Corte já pacificou seuposicionamento de que é patentea legitimidade do Ministério Públi-co para interpor Ação Civil Públicana defesa de interesses individuaishomogêneos.

A Lei Complementar n.º 75, de20 de maio de 1993, atribui ao Mi-nistério Público a competência parapromover Ação Civil Pública paraa proteção de interesses individu-ais indisponíveis, homogêneos,sociais, difusos e coletivos (art. 6.º,alínea -d-). No entanto, especifica-mente quanto ao Ministério Públi-co do Trabalho, estabelece o art.83, inciso III, da Lei Complemen-tar n.º 75/93, in verbis:

Compete a este Órgão promo-ver a Ação Civil Pública no âm-bito da Justiça do Trabalho, paradefesa de interesses coletivos,quando desrespeitados os direi-tos sociais, constitucionalmentegarantidos.

Note-se que o dispositivo se re-fere a interesses coletivos, quando

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TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO JURISPRUDÊNCIA

290 Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

desrespeitados os direitos sociais,constitucionalmente garantidos,não havendo incompatibilidadeentre a norma e o dispositivo cons-titucional que atribui ao sindicatoa defesa dos direitos coletivos dacategoria que representa (art. 8.º,III, da CF), tampouco entre a refe-rida norma e o dispositivo consti-tucional que dispõe sobre o man-dado de segurança coletivo (art.5.º, LXX, da CF).

Ademais, o que se vê é que areferida Lei Complementar veio aregulamentar os termos do art.129, inciso II, da Constituição Fe-deral, que enumera como funçãoinstitucional do MP a promoção deAção Civil Pública, visando à pro-teção do patrimônio público e so-cial, do meio ambiente e de ou-tros interesses difusos e coletivos.

Portanto, da interpretação sis-temática dos dispositivos acimareferidos extrai-se o entendimen-to de que o Ministério Público de-tém competência para a defesa dosinteresses individuais homogêneospor meio de Ação Civil Pública.

Registre-se, por oportuno, quea SBDI-1 tem reiteradamente deci-dido pela legitimidade ativa doMPT para intentar Ação Civil Pú-blica em defesa de direitos indivi-duais homogêneos, com funda-mento em interesse social relevan-te, constando a matéria dos prece-dentes de temas ainda não conver-tidos em OJ, sob o n.º TDD1 401,sendo o entendimento retratadopelos seguintes precedentes:EEDRR- 1108/1999-002-23-00.0 -Min. Aloysio Corrêa da Veiga, jul-gado em 4/12/2008 - Decisão unâ-nime; ERR-734211/2001 - Min. Ma-

ria de Assis Calsing, DJ 31/10/2008 -Decisão unânime; ERR-411489/1997- Min. Lelio Bentes Corrêa, DJ 7/12/2007 - Decisão por maioria; ERR-635002/2000 - Min. Carlos AlbertoReis de Paula, DJ 27/10/2006 - Deci-são unânime; ERR-717555/2000 -Min. João Oreste Dalazen, DJ 15/4/2005 - Decisão unânime; ERR-379855/1997 - Red. Min. LelioBentes Corrêa, DJ 25/6/2004 - Deci-são por maioria, ERR-473110/1998- Min. Vieira de Mello Filho, DJ 13/2/2002 - Decisão unânime; ERR-636470/2000 - Red. Min. LelioBentes Corrêa, DJ 20/8/2004 - Deci-são unânime; ERR-512988/1998 -Juiz Conv. José Antonio Pancotti,DJ 12/5/2006 - Decisão unânime;ERR-374202/1997 - Min. João Batis-ta Brito Pereira, DJ 29/4/2005 - De-cisão unânime; RR-1738/1998-092-15-40.8, 8.ª T - Min. Dora Maria daCosta, DJ 18/4/2008 - Decisão unâ-nime.

Pelo exposto, constata-se que adecisão regional encontra-se emconsonância com a atual jurispru-dência desta Corte sobre a maté-ria, motivo pelo qual ficainviabilizado o conhecimento daRevista em razão da aplicação daSúmula 333 do TST e art. 896, § 4.º,da CLT.

Não conheço, no particular.ILEGITIMIDADE PASSIVA DE

CEFA decisão regional foi no se-

guinte sentido, a fls. 463/464: Nos moldes em que a lide foidelineada, onde o Ministério Pú-blico do Trabalho atribui respon-sabilidade à recorrente pelaadoção de medidas relativas aoambiente e condições de traba-

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AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CORRESPONDENTES BANCÁRIOS. LOTÉRICAS. EQUIPARAÇÃO AOS BANCÁRIOS

lho, tem-se que a existência ounão dos elementos que carac-terizam a sua responsabilidade,representa questão a ser en-frentada como mérito.Rejeita-se a preliminar.

A CEF sustenta que a simplesindicação do Ministério Públiconão é suficiente para justificar a suapresença no polo passivo da de-manda. Entende que a legitimida-de é medida pela -dicção legal- enão pela -vontade do Autor-. Ale-ga que os empresários lotéricosdevem assumir os riscos de sua ati-vidade e, portanto, é deles a legi-timidade para figurar no polo pas-sivo da presente ação. Diz violadosos arts. 2.º, IV, da Lei n.º 8.987/96,6.º do CPC e 170, caput e II, da CF.

A legitimidade da causa decor-re das afirmações lançadas na ini-cial. In casu, as afirmações do Au-tor vinculam a CEF à titularidadedo direito pleiteado, condição quesó se resolve após o exame meritó-rio da demanda (Teoria da Asser-ção). Assim, por ora, não se vislum-bra na decisão regional a alegadaafronta aos dispositivos legais econstitucionais invocados pela Re-corrente.

Não conheço, no particular. LITISCONSÓRCIO PASSIVO

NECESSÁRIOO Regional assim se manifestou

sobre a matéria, a fls. 464/465:

As condições em que o traba-lho é prestado, nos agenteslotéricos, são determinadaspela Caixa Econômica Federal,conforme pode ser inferido dostermos dos Contratos de Ade-são colacionados aos autos a fls.

57/86, aos quais citados agen-tes apenas aderem, não tendo,assim, qualquer poder de nego-ciação com referência a taiscondições.Conforme corretamente ressal-tou o Juízo de 1.º grau, -mereceressaltar que as lotéricas care-ceriam de legítimo interesseprocessual neste processo, poisas mesmas não têm força paraestipular as cláusulas contra-tuais na permissão administra-tiva. O contrato é de adesão,isto é, as cláusulas são impostasverticalmente pela CEF, de acor-do com a ordem jurídica, inclu-indo as decisões judiciais envol-vendo interesses coletivos latosenso (a fls. 340/341).Assim, desnecessária a forma-ção de litisconsórcio, pelo quese rejeita a preliminar.

A Recorrente entende que de-vem ser chamados à lide todos ospermissionários lotéricos, uma vezque a solução do litígio acaba porestabelecer novas obrigações àque-les entes. Diz violado o art. 472 doCPC.

O Regional sustenta que osagentes permissionários aderem àscondições contratuais impostaspela CEF. Nessas condições, osagentes lotéricos apenas cumpremas regras e normas previamenteacordadas, não detendo qualquerpoder de negociação, não poden-do assim responder pelos direitospleiteados na presente ação. A de-cisão regional encontra-se funda-mentada na prova documentalproduzida nos autos e cujoreexame não é mais possível naatual fase recursal. Aplicação daSúmula 126 do TST.

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TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO JURISPRUDÊNCIA

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Imutáveis as circunstânciasfáticas norteadoras do posicio-namento decisório adotado, nãohá de se falar em violação do art.472 do CPC.

Não conheço, no particular. DA DECISÃO ULTRA PETITAA decisão regional acerca da

matéria foi no seguinte sentido, afls. 465:

O pleito da Recorrente, de limi-tação dos efeitos da decisão aoslotéricos que funcionem comocorrespondentes bancários, nãomerece guarida visto que seapresenta como inovação àlide, tendo em vista que nãofora formulado quando da apre-sentação da contestação.Ademais, não se vislumbra ojulgamento ultra petita menci-onado pela recorrente, vistoque a sentença decidiu nos exa-tos termos propostos pela peçade ingresso.Rejeita-se a preliminar.

A Recorrente sustenta que nemtodos os permissionários lotéricosfuncionam como correspondentesbancários, pois, -boa parte deles-permanece com funções -tradicio-nais ou clássicas de loterias- (a fls.493). Entende, portanto, que a de-cisão, ao não fazer tal distinção,acabou por julgar além do que foipedido. Diz violado o art. 460 doCPC.

As razões recursais não enfren-tam a tese decisória eleita sobre amatéria, no sentido de que os ar-gumentos lançados em sede deRecurso Ordinário se mostraminovatórios. Assim, à margem doque foi deduzido pelo Recorrente,merece ser mantido o entendimen-

to regional. Incólume o dispostono art. 460 da CPC, visto que se-quer demonstrada sua aplicação aocaso em tela, diante os fundamen-tos adotados pelo órgão julgador.

Não conheço, no particular.RESPONSABILIDADE DA CEF

- INDENIZAÇÃO POR DANO MO-RAL COLETIVO - DAS PENAS EMULTAS - CONDIÇÕES DE TRABA-LHO - EQUIPARAÇÃO AOS BAN-CÁRIOS

O Ministério Público ajuizou apresente ação buscando a equipa-ração dos empregados lotéricos aosbancários, bem como a adaptaçãodas condições de trabalho no quediz respeito à segurança do esta-belecimento e às adequaçõesergonômicas. Na esteira de tal pe-dido, pretende ainda a condena-ção da CEF ao pagamento de inde-nização por -dano moral genéricode natureza difusa- no valor de R$500.000,00 (quinhentos mil reais) emulta diária pelo descumprimentode obrigação de fazer no importede R$ 5.000,00 (cinco mil reais).

O Regional acolheu os pedidosdeterminando o afastamento dequalquer cláusula contratual queafaste a responsabilidade da CEFpela prestação de serviços decor-rentes do convênio firmado comas lotéricas, assim como condenoua Reclamada a promover as medi-das de segurança e adaptaçõesergonômicas requeridas na inicial;a equiparação dos empregados aosbancários; o pagamento da inde-nização por dano moral coletivo ea multa pelo descumprimento daobrigação de fazer.

As questões recursais recla-mam o exame conjunto, pois de-

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293Revista de Direito da ADVOCEF – Ano VII – Nº 14 – Mai 12

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CORRESPONDENTES BANCÁRIOS. LOTÉRICAS. EQUIPARAÇÃO AOS BANCÁRIOS

correm originariamente do mes-mo fato gerador, qual seja, a res-ponsabilidade da CEF pelo reco-nhecimento dos direitos adquiri-dos pela categoria dos bancáriosaos empregados das casaslotéricas.

A Recorrente sustenta, em sín-tese, que os empregados lotéricosnão executam as mesmas funçõesatribuídas aos bancários. Alega ainexistência dos requisitos capa-zes de autorizar o pagamento deindenização por dano moral.Aduz as dificuldades de implan-tação de sistemas de segurançanos mesmos moldes daqueles uti-lizados nos bancos. Afirma a res-ponsabilidade das lotéricas pelascondições de trabalho de seusfuncionários. Diz violados os arts.7.º, XXVII, da Constituição Fede-ral e 13 da Lei n.º 7.347/85, 1.142do CCB, 1.º da Lei n.º 7.102/83 e2.º da res./CNM n.º 3.110/2003.Traz aresto ao confronto jurispru-dencial.

O Regional atribuiu à CEF a res-ponsabilidade pela implantaçãodas mesmas condições de traba-lho dos bancários aos lotéricos,em decorrência do convênio fir-mado com as casas lotéricas paraa prestação de determinados ser-viços bancários.

Dentro de tal contexto, oaresto trazido, a fls. 498/500, de-monstra a existência de divergên-cia jurisprudencial, ao atribuir aocorrespondente bancário (lotéri-ca) a responsabilidade exclusivapelo contrato de trabalho de seusempregados, o que autoriza o co-nhecimento da Revista (art. 896,-a-, da CLT).

MÉRITOCASAS LOTÉRICAS - EQUIPA-

RAÇÃO COM OS BANCÁRIOS -AÇÃO CIVIL PÚBLICA - CONDI-ÇÕES DE TRABALHO - INDENIZA-ÇÃO POR DANO MORAL COLETI-VO

Assim se pronunciou o Regio-nal sobre a matéria, a fls. 342/347:

A unidade lotérica comercializatodas as loterias federais, osprodutos assemelhados e atuana prestação de todos os servi-ços delegados pela CEF.Quais são, afinal, os serviçosdelegados pela CEF para as uni-dades lotéricas? São os seguin-tes: o recebimento de contas deconcessionárias (água, luz e te-lefone), carnês, prestações, fa-turas e documentos de diversosconvênios, os serviços financei-ros como correspondentes daCEF autorizados pelo BancoCentral e os pagamentos dosbenefícios da rede de proteçãosocial, com o objetivo de favo-recer a população, propiciandomaior comodidade. É inegável,diante dessa lista, que existeprestação de serviço idênticoaos dos bancários.É claro que os serviços típicos debancários não são exclusivos,pois existe a comercialização,por convênio firmado pela CEF,de jogos e produtos semelhan-tes às loterias, mas é certo que,cada vez mais, com a benevo-lência do Estado, o que era re-gra está se tornando exceção evice-versa.Essa questão é fundamental naidentificação da decisão adequa-da deste processo, merecendoser explicada detalhadamente.Basicamente, a atividade bancá-ria está relacionada à interme-

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TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO JURISPRUDÊNCIA

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diação financeira, ou seja, nacaptação, no mercado, de recur-sos dos doadores, transferindo-se aos tomadores, com incidên-cia de juros, que são maiores nosempréstimos e menores no pa-gamento da captação.As loterias realizam, atualmen-te, inúmeras atividades bancá-rias, dentre as quais se desta-cam as seguintes:Pagamento de benefícios soci-ais (bolsa família, INSS, FGTS,PIS, seguro-desemprego, etc..);Recebimento de contas de con-cessionárias públicas (água, luze telefones);Recebimento de boletos de ou-tros bancos com valor de até R$500,00 (quinhentos reais);Recebimento de prestaçãohabitacional;Consultas de saldos de contascorrentes e poupanças;Saques em contas correntes epoupanças com cartão magné-tico;Vendas de produtos de capita-lização;Recebimento de propostas deconta corrente, cartão de cré-dito, cheque especial e emprés-timo por consignação para apo-sentados do INSS.’Como facilmente se percebe, adelegação está desvirtuada. Emsua larga maioria, os serviçosprestados pelas lotéricas estãoinseridos nas atividades-fim dasinstituições financeiras, vistoque são de bancos múltiplos ecomerciais. Com outras pala-vras, vale dizer que os empre-gados das lotéricas, quando au-tenticam os aludidos documen-tos, contam dinheiro, recebempropostas de cartões de crédi-to e empréstimos etc., realizamatividades típicas de bancários.Nesse cenário, impõe-se regis-

trar a luta histórica da catego-ria dos bancários, a qual, atra-vés do instrumento da greve,tem alcançado ganhos mereci-dos em nível normativo, princi-palmente em virtude de suadesgastante e perigosa ativida-de, inerente aos trabalhadoresdas instituições financeiras. Oque acontece é que os bancos-que, à evidência, são as institui-ções que mais se beneficiam dapolítica neoliberal (discurso ofi-cial) - encontraram, enfim, umafórmula mágica de maximizaros seus lucros pagamento me-nos ao que lhe é mais caro, ouseja, aos trabalhadores, que,quando não são substituídospelo maquinário, se vêem dis-pensados em troca de mão-de-obrea mais barata, sob a más-cara da terceirização. Longe fi-cou a atividade de jogos, quesempre esteve fora do ambien-te bancário. No caso presente,observa-se que, atualmente, naprática, a CEF, além de delegara comercialização de loteriasfederais, realiza intermediaçãoilícita de mão-de-obra.A influência da CEF é tamanhaque ela influência até mesmo nolocal da instalação das lotéricas.A CEF identifica áreas (bairros,Municípios etc.), constantes noedital de licitação, através do es-tudo de mercado. Em sua pro-posta, o candidato indica o localpara instalação, e a CEF avalia aindicação, de acordo com os cri-térios preestabelecidos noedital. Se o empresário lotéricoquiser mudar de local, deveráter prévia anuência da CEF. Vale perceber que o empre-sário lotérico não tem custo emrelação à aquisição dos equipa-mentos da unidade lotérica, jáque estes são fornecidos pela

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CEF, sob regime de comodato,sem ônus para o empresáriolotérico. A manutenção pelacorreta utilização dos equipa-mentos da unidade lotérica, jáque estes são fornecidos pelaCEF, sob regime de comodato,sem ônus para o empresáriolotérico. A manutenção pelacorreta utilização dos equipa-mentos também ocorre porconta da CEF. Isso ocorre, porcerto, em razão da inegávelvantagem na intermediaçãodos serviços bancários.A CEF oferece aos empresárioslotéricos o direito de utilizaçãoda marca, sempre conforme di-retrizes traçadas pela própriaCEF. Observe-se que é obrigató-ria a comercialização dos produ-tos lotéricos da CEF. Em outraspalavras, as loterias têm quecomercializar todas as loteriasfederais, atuar na prestação deserviços delegados e na vendade produtos convencionados ad-ministrados pela CEF.Normalmente, para a contra-tação, a CEF exige, tanto doempresário lotérico como dedseus funcionários, treinamentoe/ou desenvolvimento de natu-reza empresarial, gerencial ad-ministrativa, financeira, contá-bil, recursos humanos e vendas,de acordo com a carga horária.Demais disso, é obrigatória aparticipação do empresáriolotérico em todos os cursos mi-nistrados pela CEF ou por em-presa por ela contratada.A alteração contratual é facul-tada, desde que haja prévia au-torização pela CEF.Como se vê, a CEF exerce umaforte zona de influência sobreas loterias, cujas atividades, aolongo do tempo, passaram aabranger serviços típicos de

bancários. Trata-se, pois, de ilí-cita intermediação de mão-de-obra, que, por alteração na for-ma de celebração do convênio(contrato de adesão), exige re-visão nos efeitos trabalhistas darespectiva permissão adminis-trativa.Os empregados das loterias tra-balham com numerários em lo-cais de constante circulação depessoas. Esse fato reclamaatenção para o perigo de assal-tos. A insegurança, de maneirainegável, é um problema detoda a sociedade, mas ela seagrava em locais onde os ban-didos sabem da existência deconstante circulação de nume-rários. Nas loterias, ao contrá-rio das instituições financeiras,não é registrada a presença deguardas armados, portas gira-tórias com detector de metaise circuito interno de TV. Os tra-balhadores das lotéricas mere-cem menos proteção que osbancários? É evidente que não.Ambos lidam com numerários.Como se vê, esse problema so-cial está em discussão nesteprocesso, e a Justiça do Traba-lho não pode deixar de tutelaro jurisdicionado que carece deproteção. Veja-se que não é so-mente a vida dos trabalhado-res das lotéricas - que, por si, jábastava - que está em jogo. Sãotemas como os efeitos psicoló-gicos de um assalto (depressão,síndrome do pânico etc.), au-mento no recebimento de be-nefícios previdenciários, deses-truturação familiar etc. O fatoimprevisível, pela sua natureza,não ‘avisa’ a respeito de suaocorrência.... Cabe à justiça doTrabalho, identificando os ‘si-nais de previsibilidade’, anteci-par a prevenção do ilícito....

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TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO JURISPRUDÊNCIA

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Dessarte, alternativa não res-ta a este juízo senão o deferi-mento dos pedidos deduzidosna petição inicial.

A princípio, cumpre examinara responsabilidade da CEF frenteaos pedidos formulados na inicial.

O Ministério Público pleiteia aexclusão de cláusula prevista emcontrato firmado entre a CEF e ascasas lotéricas, bem como a equi-paração dos empregados daquelascasas aos bancários e, ainda, a im-plantação de normas de seguran-ça, já adotadas nos estabelecimen-tos bancários, nas lotéricas.

Não se pode deixar de conside-rar que as casas lotéricas não sãoobrigadas a firmar o contrato coma CEF para a prestação de serviçosreferentes ao chamado -correspon-dente bancário-. Aliás, a autono-mia das partes é condição essenci-al para a validade do contrato.

Embora se evidencie, na presen-te ação, a intenção do MinistérioPúblico em garantir melhores con-dições de trabalho aos empregadosdas lotéricas, iniciativa que deve serlouvada, o contrato firmado coma CEF não tem o condão de afastaras obrigações e direitos decorren-tes da relação mantida entre osempregados e os donos daslotéricas. Dentro de tal contexto,tais obrigações dizem respeito àsegurança dos empregados e ascondições de trabalho oferecidas,justamente o objeto da presenteação.

A implantação de normas capa-zes de propiciar condições maisfavoráveis de trabalho aos empre-gados passa pela opção dos empre-

gadores em arcar com tal ônus,decidindo, portanto, se lhes sãofavoráveis as condições oferecidaspela CEF por meio do contrato.

Atribuir à CEF a responsabilida-de principal pelas obrigações seriaretirar o poder diretivo dos donosda lotérica em relação a seus em-pregados e, consequentemente,restringir-lhes a capacidade degerenciamento dos seus empreen-dimentos. Este não é o objetivo docontrato de prestação de serviçosproposto pela CEF.

Ainda que se permita a discus-são acerca da possibilidade de im-plantação do sistema de -corres-pondentes bancários-, diga-se, im-plantado com inegáveis benefíci-os à população, a questão não seresolve somente pela responsa-bilização da CEF pelas condiçõesde trabalho a serem impostas àmargem da relação legítima queregula o vínculo de emprego fir-mado entre os donos das lotéricase seus funcionários.

Nesse sentido, considerando ospedidos formulados na presenteação, constata-se que a responsa-bilidade da CEF seria, no máximo,subsidiária em relação aos contra-tos de trabalho firmados entre osempregados e os donos daslotéricas, sendo que tal discussãosomente seria cabível dentro docontexto fático experimentado porcada relação de emprego formali-zada e não à luz do contrato deprestação de serviço mantido en-tre empresas.

Assim, diante da impossibilida-de de se atribuir à CEF a titula-ridade dos direitos e obrigaçõesque regulam a relação de empre-

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AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CORRESPONDENTES BANCÁRIOS. LOTÉRICAS. EQUIPARAÇÃO AOS BANCÁRIOS

go firmada entre os empregados edonos de lotéricas, não há comose deferir os pedidos formuladosna inicial por meio da presenteAção Civil Pública.

Pelo exposto, dou provimento àRevista para excluir da condenaçãoa determinação de afastamento dacláusula que isenta a CEF da respon-sabilidade decorrente da prestaçãode serviços pelas lotéricas, o cum-primento das obrigações decorren-tes da equiparação dos lotéricos aosbancários, bem como a indenizaçãopor danos morais coletivos e a multapelo descumprimento da obrigaçãode fazer, julgando, consequen-te-mente, improcedente a ação.

ISTO POSTOACORDAM os Ministros da

Quarta Turma do Tribunal Superi-or do Trabalho, unanimemente,conhecer do Recurso de Revistaquanto à responsabilidade da CEF

pelos direitos decorrentes da equi-paração entre os bancários e oslotéricos, por divergência jurispru-dencial, e, no mérito, dar-lhe pro-vimento para excluir da condena-ção a determinação de afastamen-to da cláusula que isenta a CEF daresponsabilidade decorrente daprestação de serviços pelaslotéricas, o cumprimento das obri-gações decorrentes da equiparaçãodos lotéricos aos bancários, bemcomo a indenização por danosmorais coletivos e a multa pelodescumprimento da obrigação defazer, julgando, consequente-men-te, improcedente a ação. Custas emreversão. Isento na forma da lei(art. 790-A da CLT).

Brasília, 04 de maio de 2011.Firmado por Assinatura Eletrô-

nica (Lei nº 11.419/2006)Maria de Assis CalsingMinistra Relatora

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PARTE 3

NORMAS EDITORIAIS

DE PUBLICAÇÃO

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NORMAS EDITORIAIS

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Normas Editoriais de Publicação

I - INFORMAÇÕES GERAIS

A Revista de Direito da ADVOCEF é uma publicação científicaperiódica da Associação Nacional dos Advogados da Caixa Econô-mica Federal. Publica artigos originais referentes à atuação profis-sional do advogado, à pesquisa, ao ensino ou à reflexão críticasobre a produção de conhecimento na área do Direito.

Sua missão principal é contribuir para a formação profissionale acadêmica do advogado da Caixa e demais Operadores do Direi-to, bem como socializar o conhecimento técnico e científico produ-zido por aqueles que pesquisam e/ou atuam em todos os camposdo conhecimento jurídico.

II – LINHA EDITORIAL

Os textos remetidos para publicação devem ser preferencial-mente inéditos e abranger assuntos pertinentes ao Direito. Os tra-balhos serão avaliados por um Conselho Editorial, sem a identifica-ção dos autores e instituições (blind review system), o qual decidirápela publicação do material enviado com base em critérios científi-cos, interesse institucional ou técnico e, ainda, atualidade de seuconteúdo.

Eventual adequação do conteúdo ao formato eletrônico po-derá ser proposta, sem prejuízo da informação. Pequenas modi-ficações no texto poderão ser feitas pelo Conselho Editorial, masas modificações substanciais serão solicitadas aos autores. Serápermitida a reprodução parcial dos artigos, desde que citada afonte.

Ao remeter o texto para publicação, o Autor cede à ADVOCEFo direito de fazer uso do material enviado na Revista de Direito,no encarte “Juris Tantum” do Boletim Informativo Mensal e/ou emseu site na internet, a critério da associação.

A publicação em qualquer veículo de comunicação daADVOCEF não é remunerada e o conteúdo é de responsabilidadedo autor. Os originais, publicados ou não, não serão devolvidos.

III – TIPOS DE TEXTO

1. Artigos doutrinários – análise de temas e questões funda-mentadas teoricamente, levando ao questionamento de modos depensar e atuar existentes e a novas elaborações na área jurídica;

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2. Relatos de experiência profissional e estudos de caso – rela-tos de experiência profissional ou estudos de caso de interesse paraas diferentes áreas de atuação do advogado;

3. Comunicações – relatos breves de pesquisas ou trabalhosapresentados em reuniões científicas/eventos culturais;

IV - APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS

O texto, de até 30 laudas, deve ser enviado por e-mail àADVOCEF, no formato Word, redigido em fonte Times New Roman,tamanho 12, com espaçamento entre linhas de 1,5 cm e margensde 2 cm (eventualmente, o conselho editorial poderá aprovar tex-tos acima de 30 laudas, caso entenda ser de interesse da Revista apublicação na íntegra do material enviado).

O autor deve ainda enviar à ADVOCEF, por correio ou malote,devidamente preenchido e assinado, um termo de cessão de direitosautorais, elaborado a partir de formulário padrão disponibilizado em<http://www.advocef.org.br/_arquivos/40_1047_termocessao.doc>.

O arquivo do trabalho deve conter:

1. Folha de rosto com o nome do(s) autor(es) e: a) título emportuguês; b) nome de cada autor, seguido da afiliação institucionale titulação acadêmica; c) endereço eletrônico para envio de corres-pondência.

2. Resumo em português – com no máximo 150 palavras e acom-panhado de quatro palavras-chave. Palavras-chave são vocábulosrepresentativos do conteúdo do documento que devem ser sepa-rados entre si por ponto e finalizados também por ponto.

2.1 Sumário indicando as principais partes ou seções do artigo.

2.2 Resumo bilíngue – Título, resumo e palavras-chave devemser traduzidos para outro idioma, acompanhando os originais emportuguês.

3. Notas de rodapé – As notas não bibliográficas devem serreduzidas a um mínimo, ordenadas por algarismos arábicos e colo-cadas no rodapé da página, não podendo ser muito extensas.

4. As citações de autores devem ser feitas da seguinte forma:a) Por meio do último sobrenome do autor, com apenas a pri-

meira letra maiúscula, seguido, entre parênteses, do ano de publi-cação do trabalho e, para citações diretas, do número da página.

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Quando o sobrenome do autor vier entre parênteses, deve ser es-crito todo em letra maiúscula.

b) As obras e fontes citadas devem constar, obrigatoriamente,nas referências.

c) As citações diretas com mais de três linhas são consideradascitações longas e são transcritas em parágrafo distinto, começandoa 4 cm da margem esquerda, sem deslocamento da primeira linha.O texto é apresentado sem aspas e transcrito com espaçamento entrelinhas simples e fonte tamanho 10, devendo ser deixada uma linhaem branco entre a citação e os parágrafos anterior e posterior.

5. Referências – Deve-se utilizar a norma ABNT 6023. Exem-plos:

a) Livros: DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico.São Paulo: Max Limonad, 2001.

b) Capítulo de livro: Autor(es) (ponto). Título do capítulo (pon-to). In: referência completa do livro seguida pela paginação iniciale final do capítulo (p. XX-XX) ou pelo número dele (cap. X).

Exemplo: VELOSO, Zeno. Efeitos da declaração de incons-titucionalidade. In: NOVELINO, Marcelo (Org.). Leituras comple-mentares de Direito Constitucional: controle de constitucio-nalidade. Bahia: JusPodivm, 2007. cap. 7.

c) Artigo em periódico científico: Autor (ponto). Título do arti-go (ponto). Nome da revista ou periódico em negrito (vírgula),local de publicação (vírgula), volume e/ou ano (vírgula), fascículoou número (vírgula), paginação inicial e final (vírgula), data ouintervalo de publicação (ponto).

Exemplo: DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Os povosindígenas brasileiros e os direitos de propriedade intelectual. Hiléia:Revista de Direito Ambiental da Amazônia, Manaus, v. 1, n. 1, p.85-120, ago./dez. 2003

d) Documentos consultados na internet: além dos elementosindicados em a, b e c, deve-se informar o endereço eletrônico com-pleto inserido dentro de < > (que remeta diretamente à fonte con-sultada, e não apenas à página inicial do site) e precedido de "Dis-ponível em:". Informa-se também a data de acesso, precedida daexpressão "Acesso em:" (o horário de acesso é opcional).

Exemplo: STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo AndradeCattoni; LIMA, Martonio Mont'Alverne Barreto. A nova perspec-tiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle Difuso:mutação constitucional e limites da legitimidade da Jurisdição Cons-titucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1498, ago. 2007.Não paginado. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10253>. Acesso em: 6 nov. 2007.

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V - ANÁLISE DOS TRABALHOS

A análise dos trabalhos recebidos para publicação respeitará oseguinte fluxo:

1. Análise pelos membros do Conselho Editorial;2. Resposta ao autor, informando se o texto foi aceito (com ou

sem ressalvas) ou não;3. Remessa para a composição e diagramação;4. Publicação.

VI - ENDEREÇO PARA REMESSA DOS TRABALHOS

Associação Nacional dos Advogados da Caixa Econômica Fe-deral – ADVOCEF

Brasília/DF:SBS, Quadra 2, Bloco Q, Lote 3, Sala 1410 - Ed. João Carlos SaadFone (61) 3224-3020

E-mail: [email protected]

**O envio eletrônico do documento pelo e-mail pessoal doautor substitui a assinatura física da carta de encaminhamento.

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Justiça e razão prática a partir de AristótelesGryecos Attom Valente Loureiro

A Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho: por que o direito internacional pode

colaborar com o direito interno brasileiro?Anelise Ribeiro Pletsch

A Súmula 331 do TST e a responsabilidade da Administração Pública

Ronaldo E. Scarponi Júnior

Considerações sobre o juízo de admissibilidade recursal e a política de desafogamento

dos tribunais superioresKarine Volpato Galvani

Direitos patrimoniais de autor versus direitos culturais do cidadão: fundamentos para a proposição

de um direito autoral-constitucionalCiro de Lopes e Barbuda

O direito à cultura como um direito fundamental do cidadão brasileiro

Jairdes Carvalho Garcia

Recuperação judicial de créditos e paraísos fiscaisGilberto Moreira Costa

O Estado e sua responsabilização civilLisandra de Andrade Pereira