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Ano XXIX • Nº 267 • Fevereiro 2019 • R$ 15,00 • www.eco21.com.br facebook.com/revista.eco21 ECO 21 Alexandria Ocasio-Cortez • Cristiana Pasca Palmer • Paulo Artaxo Greta Thunberg • José Goldemberg • Paulo Nogueira-Neto ISSN 0104-0030

Ano XXIX • Nº 267 • Fevereiro 2019 • R$ 15,00 ... · acontecida no dia 25 deste mês de Fevereiro. Nome essencial para a história do ambientalismo brasileiro e mundial, nasceu

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Ano XXIX • Nº 267 • Fevereiro 2019 • R$ 15,00 • www.eco21.com.br • facebook.com/revista.eco21

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Diretora Lúcia Chayb

Editor

René Capriles

Redação Tara Ayuk

Erik von Farfan Rudá Capriles

Colaboradores

André Trigueiro José Mon serrat Filho

Samyra Crespo Elisa Homem de Mello

Sergio Trindade

Fotografia Ana Huara

Correspondentes no Brasil

São Paulo: Lídia Chaib Belém: Edson Gillet Brasil

Correspondentes no Exterior

Bolívia: Carlos Capriles Farfán México: Carlos Véjar Pérez-Rubio

Itália: Mario Salomone e Bianca La Placa França: Aurore Capriles

Serviços Infor mativos

Argentina: Ecosistema Brasil: Envolverde, ADITAL, EcoAgência,

EcoTerra, O ECO, Ambiente Brasil França: Valeurs Vertes, La Recherche

Itália: ECO (Educazione Sostenibile) México: Archipiélago

Direção de Arte

ARTE ECO 21

CTP e impressão Tricontinental

Jornalista Responsável

Lúcia Chayb - Mtb: 15342/69/108

Assinaturas Anual: R$ 130,00

[email protected]

Uma publicação mensal de Tricontinental Editora

Av. N. Sra. Copacabana 2 - Gr. 301 22010-122 - Rio de Janeiro

Tel.: (21) 2275-1490 [email protected]

www.eco21.com.br

Facebook www.facebook.com/revista.eco21

A n o 2 9 • Feve r e i r o 2019 • N º 267

ECO•21

Capa: Paulo Nogueira-Neto Foto: Prêmio Ford

Gaia viverá! Lúcia Chayb e René Capriles

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Paulo Nogueira-Neto virou uma estrelinha no céuEm 1990, quando lançamos o número “0” da revista ECO•21, chamada então “ECO-RIO”, um dos primeiros leitores foi o professor Paulo Nogueira-Neto. No dia seguinte o professor telefonou para a redação solicitando uma assinatura. Nossa resposta foi que ainda não tínhamos assinaturas e que ele receberia sem custo um exemplar de cada edição. Não aceitou a ideia e poucos dias depois recebemos um cheque dele. Assim, Paulo Nogueira-Neto, se transformou no nosso assinante número “1”. Passaram os anos, os eventos ambientais e o professor sempre esteve nos acompanhando. Um dia, num evento, falamos pessoalmente e manifestou a sua satisfação de ler nas nossas páginas os artigos de seus “amigos”. Foi assim até sua morte acontecida no dia 25 deste mês de Fevereiro. Nome essencial para a história do ambientalismo brasileiro e mundial, nasceu em São Paulo no dia 18 de abril de 1922, em pleno fervor da Semana de Arte Moderna que introduziu o Brasil nos conceitos do Modernismo. Em 1945 recebeu o título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da USP e, em 1959, bacharelou-se em História Natural, também pela USP. Sua Tese de Livre-docência (1980) foi sobre o comportamento das pombas e dos psitacídeos silvestres. Trabalhou proficuamente pesquisando o comportamento das abelhas indígenas sem ferrão se tornando o maior especialista nesse campo. Virou “o senhor das abelhas”. Após obter título de Professor Titular de Ecologia em 1988, durante vários anos deu cursos sobre comportamento dos animais sociais, mudanças climáticas e sobre os ecossistemas terrestres. Foi também um dos fundadores do Departamento de Ecologia Geral, no Instituto de Biocências da USP. Sendo Presidente da Associação de Defesa do Meio Ambiente de São Paulo, o professor Paulo foi convidado para criar a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), cargo que exerceu com prerrogativa de Ministro por 12 anos (1974-1986) no âmbito do Ministério do Interior, nos governos Geisel e Figueiredo. Seu amigo, o físico José Goldemberg disse: “Em pleno regime militar, Nogueira-Neto foi suficientemente hábil e corajoso para introduzir uma legislação ambiental que já à época era moderna no Brasil. Ela deu origem a toda a legislação brasileira nessa área, um feito extraordinário. Trata-se de um legado incomparável, somando-se o fato de que Nogueira-Neto foi o grande responsável pela criação de zonas protegidas da Amazônia”. Ele criou 26 estações e reservas ecológicas, entre elas a Estação Ecológica do Taim (RS) e a da Juréia (SP) que inicialmente protegeu a região da instalação de usinas nucleares. Na Amazônia, foram instaladas 12 áreas de proteção ambiental, resguardando mais de 4 milhões de hectares de floresta. Paulo Nogueira-Neto também assessorou deputados e senadores e obteve apoio tanto da direita como da esquerda para aprovar a primeira legislação brasileira sobre meio ambiente. Foi o único brasileiro que participou da Comissão Brundtland, da ONU, em 1983. Sobre essa experiência ele lembra “Fiz parte, como um dos dois representantes da América Latina, da Comissão da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Comissão Brundtland. A Comissão, que preparou o terreno para a RIO-92, procurou estudar a fundo os principais problemas ambientais do Planeta e dos seus complicados e muitas vezes imprevisíveis habitantes”. Os trabalhos realizados estão condensados no livro “Nosso Futuro Comum” que definiu para o mundo o conceito de “desenvolvimento sustentável”. A sua vida e obra ficou definitivamente registrada no seu livro “Uma trajetória ambientalista – Diário de Paulo Nogueira-Neto” que teve a gentileza de nos enviar no Natal de 2010 com a seguinte dedicatória; “À Lúcia Chayb, que através da ECO•21 publica notícias e artigos de grande importância ambiental, envio o meu abraço cordial”. Paulo Nogueira-Neto faleceu em companhia de 400 milhões de abelhas exterminadas pelos agrotóxicos no Rio Grande do Sul e outros Estados melíferos do Brasil. A doçura de Paulo Nogueira-Neto, que era como uma colmeia cheia do mel das suas queridas abelhas, voou como um beija-flor, se transformando numa estrelinha no céu. Viva o professor Paulo Nogueira-Neto, viva!

4 Diego Freire - Morre Paulo Nogueira-Neto, pioneiro do ambientalismo no Brasil 6 Marcia Hirota - Paulo Nogueira-Neto, pai do ambientalismo brasileiro 8 Paulo Nogueira-Neto - Os grandes problemas ambientais do mundo contemporâneo13 Paulo Nogueira-Neto - Viva! Mil vezes viva o Instituto Chico Mendes!14 José Goldemberg - Lições de Nogueira-Neto: Vale, Mariana e Brumadinho16 Rafael Muñoz - O que podemos aprender com a catástrofe de Brumadinho18 Edézio Teixeira de Carvalho - Desastre em princípio perfeitamente evitável20 Tasso Azevedo - Por que esperar a tragédia?21 Paulo Artaxo - A quem interessa atacar a ciência?22 Elisa Homem de Mello - Oceano plástico: como escapar desse emaranhado?24 Mauricio Voivodic - Brasil é o 4º país do mundo que mais gera lixo plástico28 Michael Roberts - Green New Deal e o impacto econômico nos EUA31 Jon Wiener - Entrevista com Naomi Klein34 Cristiana P. Palmer - Um planeta e uma economia saudáveis andam juntos36 Hudson Pinheiro - Esperança e desafios para os ecossistemas marinhos37 Karina Ninni - Algas podem transformar os GEE em biomoléculas38 Maria F. Ziegler - Reconquistar corações e mentes face às mudanças climáticas40 Peter Moon - Mudança climática pode alterar a interação entre espécies42 Adel Sarkozi - Desaparece a biodiversidade que sustenta o sistema alimentar44 Camila Rossi - Um governo com mais fome de veneno46 Jonathan Watts - Greta Thunberg, estudante guerreira da mudança climática50 Greta Thunberg - Minha mensagem para as elites de Davos

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Diego Freire | Jornalista da Pesquisa FAPESP

O ambientalista Paulo Nogueira-Neto foi responsável pela criação de 26 reservas, estações ecológicas e outras unidades dedicadas à proteção do meio ambiente. Entre 1974 e 1986, tornou-se o primeiro titular da Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), cargo equivalente ao atual ministério da área. Um dos criadores e professor titular do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), o biólogo paulistano Nogueira-Neto morreu de falência múltipla dos órgãos na segunda-feira (25/2), em São Paulo, aos 96 anos. Membro da Comissão da Organização das Nações Unidas sobre Ecologia, é considerado o pai da política ambiental brasileira.

A bióloga Vera Imperatriz Fonseca, do Instituto Tecno-lógico Vale, conta que, entre 1938 e 1946, Nogueira-Neto viajava para a Argentina de avião para visitar seu pai no exílio, o então deputado federal Paulo Nogueira Filho. Lá de cima, ele observava com preocupação os 100 mil quilômetros quadrados de matas de araucária que cobriam São Paulo e os estados da região Sul darem lugar a vazios promovidos pelo desmatamento para a fabricação de móveis. Era então um jovem estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – na qual se formou em 1945 – manifestando o ambientalista em que se converteria após também se graduar em história natural na USP, em 1959.

Morre Paulo Nogueira-Neto, pioneiro do ambientalismo no Brasil

A história foi compartilhada pelo próprio Nogueira-Neto com Fonseca. Contratada como professora em 1972 pelo Departamento de Zoologia do IB-USP, ela assumiu as aulas do professor na instituição a partir de 1974, quando ele foi convidado a ocupar a então recém-criada Sema, instalada no Ministério do Interior. Ainda de acordo com a bióloga, o interesse pela conservação ambiental começou com a paixão de Nogueira-Neto pelas abelhas, tema de pesquisa que ambos tinham em comum e no qual ele se tornou um dos mais destacados especialistas.

“Ele começou a se interessar pelas abelhas ainda estudante de direito, quando conheceu a fazenda do seu sogro, pai de Lúcia Ribeiro do Valle, mãe de seus três filhos, que morreu em 1995. Lá era praticada a apicultura e havia colônias de abelhas sem ferrão, as jataís [Tetragonisca angustula]”, disse Vera Imperatriz Fonseca.

“Ele ficou fascinado com aqueles animais, mas descobriu em suas pesquisas informais que se sabia muito pouco a res-peito deles e de como garantir sua existência, passando a se interessar não só pelas abelhas, mas pelo ambiente em que viviam”, disse Fonseca. Naquele momento, de acordo com a bióloga, a preocupação com as florestas encontrara um sentido ainda mais amplo, envolvendo toda a vida impactada pela devastação do meio ambiente.

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A preocupação não era exagerada: hoje restam apenas 2% das florestas de araucária avistadas do alto pelo jovem Nogueira-Neto nas décadas de 1930 e 1940. O biólogo dedicou boa parte da vida para evitar que a mesma situação se repetisse com a Amazônia e outros biomas. “Desbravar florestas era motivo de orgulho, sinal de progresso. A própria capital brasileira, Brasília, foi construída na década de 1950 – sobre o Cerrado, bem no centro do país. À época, a ética que guiava a ação governamental era a de que o progresso humano tinha um valor tão alto que não era necessário pensar nos demais seres vivos ou em outros elementos do ambiente”, disse o biólogo Marcos Buckeridge, atual Diretor do IB-USP, Presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo e Coordenador do Programa Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP.

“Foi contra essa lógica que Nogueira-Neto trabalhou. Ele criou ou participou da criação de diversos órgãos do governo responsáveis pela conservação da biodiversidade, esteve em reuniões internacionais relacionadas às questões sobre mudanças climáticas, bioenergia e outros assuntos pertinentes ao ambientalismo, ainda na década de 1980”, disse Buckeridge. É importante lembrar, diz, que a maior parte dessa atuação ocorreu sob o governo militar (1964-1985). “Isso não impediu que Nogueira-Neto fosse um dos artífices da construção da forma do governo brasileiro lidar com as questões ambientais”, disse.

O físico José Goldemberg, Secretário do Meio Ambiente em 1992 durante a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a RIO-92, e Presidente da FAPESP entre 2016 e 2018, corrobora as informações de Buckeridge. “Em pleno regime militar, Nogueira-Neto foi suficientemente hábil e corajoso para introduzir uma legislação ambiental que já à época era moderna no Brasil. Ela é quem deu origem a toda a legislação brasileira nessa área, um feito extraordinário. Trata-se de um legado incomparável, somando-se o fato de que Nogueira-Neto foi o grande responsável pela criação de zonas protegidas da Amazônia”, disse Goldemberg.

Nogueira-Neto e Goldemberg eram colegas desde a década de 1970, como professores da USP, e começaram uma colaboração anos mais tarde, no início da década de 1980, quando o ambientalista integrou a Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento, a Comissão Brundtland, da ONU. Presididos pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, os 23 membros da Comissão tinham o objetivo de estudar a interface entre economia e meio ambiente e visitavam um país diferente a cada 3 meses, onde faziam audiências públicas sobre o tema. No Brasil, Nogueira-Neto convidou Goldemberg para fazer uma exposição à Comissão sobre energia, que acabou baseando um capítulo no documento “Nosso Futuro Comum”, um dos legados da Comissão Brundtland, que deu origem à RIO-92.

Na década de 1980, Nogueira-Neto contribuiu para que a ONU adotasse o conceito de desenvolvimento sustentável. Sua atuação foi decisiva na criação de reservas e estações ecológicas para proteger cerca de 3,2 milhões de ha de áreas de vegetação nativa. Em 1954 criou a Associação de Defesa do Meio Ambiente, a mais antiga entidade de defesa do meio ambiente do país; em 1984 foi um dos fundadores do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Integrou entidades governamentais como a Fundação Florestal, e ONGs, como a SOS Mata Atlântica e o WWF Brasil. Escreveu 9 livros sobre fauna, meio ambiente e sobre sua trajetória intelectual.

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“Sou razoavelmente otimista em relação ao futuro. Porque

muito otimismo é ingenuidade. Quase nada é fácil, a gente tem de lutar muito pelas coisas. Mas

sou razoavelmente otimista, por-que vejo coisas boas acontecerem”.

Paulo Nogueira-Neto Muitas boas iniciativas que

aconteceram no Brasil em relação ao meio ambiente foram respon-sabilidade do advogado, professor, cientista, político e pesquisador dedicado às abelhas indígenas na preservação da floresta, Paulo Nogueira-Neto.

Em 1953, aos 31 anos, criou a Associação de Defesa da Flora e da Fauna e desde então, não parou mais. Foi ele quem inaugurou o primeiro órgão ambiental federal do país, a Secretaria Especial de Meio Ambiente, que dirigiu de 1974 a 1986. Em sua gestão foram criadas 26 estações ecoló-gicas, reservas biológicas e outras Unidades de Conservação, num total de 3,2 milhões de hectares de áreas protegidas. Também elaborou, articulou e apoiou a criação de diversas leis ambientais.

Dr. Paulo, como era conhecido, foi fundador da Funda-ção SOS Mata Atlântica (SOSMA) e integrava o Conselho Administrativo, onde também desempenhou o papel de vice-presidente. Ele morreu no dia 25 deste mês (Fevereiro), aos 96 anos. “Ele é uma grande inspiração para nossa equipe e para todo o movimento ambientalista. Foi um fervoroso defensor da Mata Atlântica e teve uma vida dedicada à pro-teção da natureza, à ciência e às políticas ambientais e deixa um imenso legado, ensinamentos e importantes Unidades de Conservação no Brasil”, afirma Marcia Hirota, Diretora Executiva da SOS Mata Atlântica.

Este ambientalista pioneiro registrou suas memórias em diários que foram transformados no livro “Diário de Paulo Nogueira-Neto – Uma trajetória ambientalista”. “Ele foi um incansável em busca do desenvolvimento sustentável e sempre esteve comprometido com a construção de um mundo melhor. Promoveu não só a reflexão e o debate sobre temas até então considerados de pouca relevância pelo grande público, como ainda estimulou, ao lado de seus parceiros e colegas, um novo olhar sobre Meio Ambiente na sociedade brasileira”, diz Pedro Passos, Presidente da SOS Mata Atlântica.

Marcia Hirota e Mario Mantovani | Diretora Executiva e Diretor de Políticas Públicas da SOSMA

Paulo Nogueira-Neto, pai do ambientalismo brasileiro

Para Roberto Klabin, vice-Presidente da SOS Mata Atlântica, Dr. Paulo foi “um grande líder ambientalista que conseguiu deixar um enorme legado de proteção e conservação ambiental para o Brasil. Tive o privilégio de conhecê-lo e por ele tenho um enorme respeito. Seu exemplo de vida e de trabalho deve ser continuado pelas novas gerações de ambientalistas, lutando pela criação de novas áreas protegidas e por mecanismos para sua viabiliza-ção”, afirma. Em 2011, Dr. Paulo foi homenageado na Solenidade que abriu o Viva a Mata e come-morou o aniversário de 25 anos da SOS Mata Atlântica.

Temor pela Mata Atlântica

“A saúde da minha mãe Regina era frágil. Ela precisou morar

longo tempo em Campos do Jordão, devido a um fungo pulmonar, mas felizmente se recuperou desse problema de saúde. Nas férias, convivendo lá com as araucárias, aprendi a admirá-las, o que mais tarde me levou a defendê-las, inclusive como membro de uma Comissão do Ministério do Meio Ambiente que tinha esse objetivo.”1

“Eu tinha 20 e poucos anos (1945) quando fui visitar meu pai, exilado político na Argentina. Íamos de DC-3, um avião que voava mais ou menos a 3 mil metros de altura. Era um avião relativamente lento. Mas o interessante é que, de Curitiba até Assunção do Paraguai, alguns minutos depois de sair da capital do Paraná, já não se via mais nada em matéria de civilização. Não se via mais uma casa nem estrada, nada. Só floresta. Voávamos bastante até chegar em Foz do Iguaçu, que na época era quase um acampamento militar, um vila-rejo. Depois levantávamos de Foz do Iguaçu e até perto de Assunção também não se via nada de cidades – só floresta. Essa era a Mata Atlântica ao Sul do Brasil. Imensa Mata Atlântica. E eu aqui estou vivo, e hoje o que sobrou desse ‘mar’ de Mata Atlântica foi somente o Parque Nacional do Iguaçu, isso por ser um Parque Nacional, senão até ele… Eu vi essa Mata Atlântica que parecia inacabável desaparecer no período de uma vida – a minha. E fico pensando angustiado: A Amazônia, como é que estará daqui a 50 anos?”2

1- Uma Trajetória Ambientalista - Diário de Paulo Nogueira-Neto2- A Mata Atlântica é Aqui. E daí? História e Luta da Fundação SOS Mata Atlântica

Paulo Nogueira-Neto e Marcia Hirota

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TexTo da conferência realizada no iea em 25/8/1994

Após a Conferência RIO-92, houve um grande vácuo no que se refere às esperadas ações com-plementares de grande porte, que somente agora começam a despontar. Imensas expectativas, geradas numa reunião cheia de esperanças, mas que produziu poucos resultados concretos na sua esteira, levaram a uma situação de desalento. Os preparativos foram feitos com muito entusiasmo. Universidades se mobilizaram. A USP constituiu uma Comissão de Meio Ambiente, da qual participei.

O próprio Secretário Geral do evento, Maurice Strong, visitou essa Comissão na Cidade Universitária. A Prefeitura Municipal de São Paulo organizou eventos, assim como o Estado e outras entidades. Tínhamos a sensação de ter o futuro do planeta ao nosso alcance. Não aqui e agora, mas amanhã.

Nesse ambiente festivo, esperançoso e diria ambicioso, a Conferência se iniciou com grande entusiasmo cívico. Durante a reunião falaram numerosos oradores, mas havia no ar uma certa decepção. As entidades não governamentais, e mesmo as governamentais de nível mais modesto, verificaram ter à sua disposição apenas o acampamento de tendas que se montou no Aterro do Flamengo, e pouco mais que isso. A própria organização das tendas funcionou de modo precário, com excessivo calor físico em alguns locais. Pior que isso, os organizadores dos eventos não governamentais ultrapassaram os seus orçamentos.

Prestadores de serviços, com pagamentos atrasados, ame-açaram suspender fornecimentos. Os jornais comentaram a inusitada situação. Como colaborador de Maurice Strong, vi o misto de surpresa e desolação com que pessoas ligadas aos governos de países desenvolvidos comentavam a situação. Observei também a preocupação de membros do segundo escalão do governo brasileiro, que não podiam resolver sozi-nhos os problemas. Os países ricos não estavam dispostos a abrir as bolsas além do que havia sido planejado.

Logo depois da RIO-92 retornei às minhas origens paulis-tanas e não sei como a crise financeira foi resolvida. Por outro lado, na Conferência propriamente dita, à qual tive acesso, o ambiente era de preocupação, principalmente com a posição dos Estados Unidos. O Presidente Bush chegou ao ponto de não assinar a Convenção sobre as Mudanças Climáticas e a Biodiversidade, os dois pontos básicos da RIO-92. Essa atitude somente foi reparada muito depois pelo seu sucessor, o Presidente Clinton, que firmou os documentos.

Os grandes problemas ambientais do mundo contemporâneo

Paulo Nogueira-Neto | Biólogo. Professor Honorário do Instituto de Estudos Avançados

A RIO-92, que realmente foi a maior reunião internacional realizada fora da sede da ONU, nos seus últimos dias mergu-lhou numa atmosfera de anticlímax. Essa situação atravessou os umbrais da reunião e espalhou pelo mundo uma sensação de que o meio ambiente não era mais um assunto tão prio-ritário. Tenho a impressão de que somente agora, quase três anos depois da RIO-92, começa a tomar novo impulso uma autêntica e forte preocupação pela qualidade ambiental.

Na realidade, a luta por um meio ambiente melhor não se paralisou nesse tempo de vacas magras. Contudo, inegavel-mente ela entrou num processo de marcha lenta. Essa situação foi agravada no plano internacional pela guerra na Croácia e na Bósnia. No Brasil, a queda de um Presidente e o disparo da inflação, limitaram muito as atividades ambientalistas. Enfim, dentro e fora da Federação Brasileira, outros cenários e outros atores ocuparam a ribalta.

Coincidência ou não, uma série de fatores vêm atuando em conjunto e sinergicamente, uns agravando os outros, para saturar a capacidade de carga do Planeta Terra. Assim, por exemplo, os adeptos da chamada "Revolução Verde" dos anos 60 e 70, depois dos seus sucessos iniciais em matéria de aumento de produtividade agrícola, ao que parece tendem a pensar que os cultivares e híbridos de plantas poderão ser continua e sucessivamente aperfeiçoados, no sentido de tor-narem a agricultura mais e mais produtiva.

Contudo, esse é um processo que não pode continuar indefinidamente, por maiores que sejam os progressos bio-tecnológicos. A razão é simples. A produtividade de qualquer planta, em termos de produção matéria orgânica, depende basicamente da clorofila, indispensável à fotossíntese.

Há um limite para a quantidade de clorofila que numa folha pode funcionar efetivamente, por centímetro quadrado ou qualquer outra unidade de área. Não existe crescimento material infinito. Estamos chegando perto dessa última barreira à expansão agrícola. É fácil aumentar muito a produtividade de uma roça cabocla. Mas é difícil tornar mais produtivo um campo de cultivo agrícola que já emprega as melhores tecno-logias atuais. Além de um certo patamar, os ganhos adicionais são progressivamente mais difíceis, como aliás já se sabia desde o Século XIX, principalmente em relação à adubação. Por outro lado, há pessoas que acenam com a possibilidade de incorporar novas áreas à produção agrícola, à custa da incorporação de pastagens ou da derrubada de florestas.

No primeiro caso, é necessário considerar que mais e mais as pastagens cedem lugar à agricultura e a pecuária se refugia em lugares acidentados, ou de solos frágeis, arenosos ou pedregosos. Como regra geral, a agricultura torna-se mais intensiva e o pastoreio mais extensivo. Não estou me referindo, obviamente, à engorda de gado em confinamento, pois esta é, no final das contas, um subproduto da agricultura.

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Assim é possível, numa primeira etapa, expandir a agricultura à custa da pecuária, como foi realizado nos anos 70 e 80 com a expansão da cultura canavieira no Estado de São Paulo. Depois, porém, novas expansões agrícolas que desloquem a pecuária se tornam muito difíceis. É preciso considerar que os limites para a ocupação agrícola são basicamente, os limites impostos à atividade dos tratores e seus implementos. É totalmente enganoso pensar em propriedades agrícolas rentáveis à base da enxada. Esta somente subsiste em cultivos de subsistência. Os que dependem da enxada estão condenados à miséria, como se vê frequentemente na Amazônia, na Serra do Mar e em outros lugares.

Outra possibilidade de expansão da Agricultura seria a derrubada das florestas. Contudo, florestas vice-jando em terra boa constituem, hoje, verdadeira raridade. A FAO em anos passados, num dos seus estudos, considerou de um modo geral a floresta amazônica como uma grande reserva agrícola do futuro. Isso é, simplesmente, uma miragem. Há anos passados, indaguei de um dos dirigentes do Projeto RADAM, qual a porcentagem de terras boas para a agricultura existentes na Amazônia. Foi-me dito que cerca de 7% da Amazônia poderia figurar nessa categoria. Outros 48% poderiam ser ocupados pela agricultura, mas com grandes limitações. Assim, essa terra teria que ser continuamente coberta por leguminosas e as culturas deveriam ser permanentes. Os restantes 45% eram compostos por solos tão frágeis, que não deveriam nunca ser cultivados. Não será demasiado lembrar, nesse contexto, que a estrada de rodagem Manaus-Caracaraí teve que mudar 3 vezes de traçado, por serem demasiado arenosos os solos de uma vasta região cortada pela rodovia. Não tenho os dados do que ocorre no Zaire e na Indonésia, onde ainda existem grandes florestas tropicais, mas é de supor que a situação seja semelhante à da Amazônia. Como todos sabem, o clima é o grande agente que transforma a rocha matriz em solo.

Em resumo, as possibilidades de aumentar grandemente os solos agrícolas do mundo são muito limitados. Poderíamos, talvez, expandir a agricultura em cerca de 20%, embora em muitas regiões já exista uma tendência inversa, a da perda desses solos, por uma série de fatores. É o que ocorre, por exemplo, no Sahel, na África, e na região do Mar de Aral, na antiga União Soviética. Mesmo entre nós, em parte do Vale do Ribeira, os bananais das encostas das montanhas estão sendo substituídos naturalmente por caapoeiras, onde a arvoreta dominante é a quaresmeira (Tibuchina mutabilis). Em Março-Abril, isso é muito visível e constitui um belo espetáculo, pois nessa ocasião a quaresmeira está em flor.

Nestes mesmos dias, em que a possibilidade de ocupação de terras novas pela agricultura é cada vez mais escassa, surgem com intensidade crescente os primeiros efeitos mais visíveis do chamado "Efeito Estufa". As quantidades de carbono lançadas anualmente na atmosfera têm aumentado continuamente desde meados do último século.

Há uma estreita correlação posi-tiva entre a quantidade do carbono na atmosfera e os períodos de maior aquecimento climático. Um notável trabalho foi realizado na Estação Russa de Vostok, na Antártica, por uma equipe francesa e russa. O exame de uma coluna de gelo de 2 km de profundidade permitiu examinar a atmosfera do passado através do exame das bolhas de ar ali aprisionadas. Por outro lado, a proporção do O16 e do O18, assim como o exame do Deutério, per-mitiram datar as amostras. Assim, foi possível determinar, de modo bastante preciso, quais os períodos mais quentes e mais frios, durante os últimos 160 mil anos. Foi possível, igualmente, conhecer as quantidades de carbono existentes na atmosfera de cada uma dessas épocas, seja em gás carbônico CO2, seja em metano (CH4). Assim, não há mais dúvidas sobre a veracidade da ocorrência do

efeito estufa em épocas passadas. Veja-se, a respeito, o excelente artigo de R.A. Houghton &

G.M. Woodwell, publicado em Scientific American, 1989, vol. 260 (4) pp. 18-26. Um dos efeitos mais claros do aquecimento da atmosfera é o deslocamento dos cinturões climáticos, que se expandem na direção dos polos. Nos períodos mais frios, ou seja, nos períodos glaciais, houve o efeito oposto. C.E.P. Brooks comentou o assunto no seu excelente livro de 1949 "Climate through the ages": (Mc Graw-Hill Book Co). Esse trabalho, diga-se de passagem, teve pouquíssima repercussão no Brasil, talvez por dedicar mais atenção à África Oriental.

O aquecimento climático, devido ao Efeito Estufa, faz os ecossistemas migrarem. Isso lhes causa a perda de numerosas espécies, pois nem todas avançam para as novas áreas com a mesma velocidade. Distâncias que durante a última glacia-ção ou no presente período interglacial, em cada oscilação climática maior eram vencidas em centenas ou mesmo em milhares de anos, agora tem que ser transpostas em apenas 30, 40 ou 50 anos.

Segundo o Prof. Eneas Salatti, um aumento médio de temperatura de 2°C será suficiente para fazer o clima da região de São Paulo se deslocar para Buenos Aires. Uma árvore, por exemplo, gera frutos e sementes que a fauna leva a alguns quilômetros mais adiante. Ali as sementes germinam e apenas uns 6 ou 10, às vezes 20 ou 30 anos mais tarde, novos frutos e sementes são formados. Nessa "marcha rápida" muitas espécies vegetais e os seus seguidores animais não sobrevivem e morrem. Haveria uma extinção maciça da biodiversidade.

O deslocamento dos cinturões climáticos constitui também um duríssimo golpe à agricultura. Significa uma mudança geral nos climas locais. Assim, terras férteis e com pluviosidade suficiente para a produção de grandes safras, como os praries da América do Norte, ou os pampas argentinos, poderão no futuro ter novos climas e consequentemente produzir menos. Por outro lado, terras semiáridas que se tornarem mais chuvosas, levarão muitos anos para que ali se formem bons solos agrícolas.

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Apelar, nessa emergência, para a irrigação, poderá ser em grande parte inútil. Os enormes investimentos que serão necessários para manter a produtividade de solos hoje muito cultivados, e que se tornarem mais secos, chocam-se com os incessantes aumentos de demanda d'água doce por parte das populações urbanas, cada vez mais exigentes e politicamente mais fortes. Além disso, a salinização e a consequente perda de solos irrigados é uma constante. É preciso haver muita água disponível e excelente tecnologia, nem sempre de aplicação factível, para evitar a salinização, que já inutilizou grandes áreas no mundo que antes eram irrigadas. É o caso da Mesopotâmia, da região do Mar de Aral, e até de partes do Nordeste Brasileiro. No Egito, vi pessoalmente essa situação no grande Oásis de Fayaun.

Outro grande problema, que está na raiz de muitos outros, é a explosão demográfica que ainda está em curso. O planeta tem hoje cerca de 5,5 bilhões de habitantes. A média anual de incremento é de 2%. Assim, se essa média for mantida, a população dobrará em apenas 36 anos. A Organização das Nações Unidas e outros organismos preveem geralmente um prazo mais dilatado para que a população dobre, pois na opinião da maioria dos demógrafos a porcentagem anual de incremento tem decrescido e continuará a decrescer com o passar dos anos.

Esses demógrafos preveem que o mundo terá de 10 a 12 bilhões de habitantes em meados do próximo século. Esse número, ao que tudo leva a crer, constitui a capacidade máxima planetária de suporte que poderá ser razoavelmente admitida. Mesmo assim, os 10 ou 12 bilhões previstos não poderão ostentar o grau elevado de consumo que hoje tem os países ditos do primeiro mundo.

Não haverá nem comida, nem energia, nem outras neces-sidades disponíveis se, repito, essa população desejar ter, em média, o padrão de vida atual da União Europeia ou da Amé-rica do Norte. Se, depois de meados do próximo século [este texto foi escrito em 1994], a população continuar crescendo, os cenários mais favoráveis serão catastróficos, para dizer o mínimo. Mais adiante voltarei a me referir a esses pontos.

O quadro aqui exposto mostra, numa trágica coincidência convergente, que em meados do próximo século os grandes processos agrícolas, edáficos (solos), climáticos, de exaustão de petróleo, demográficos e de extinção de biodiversidade, a que me referi, terão atingido e em muitos casos já ultrapassado alguns limites extremos ou críticos. Convém recapitulá-los brevemente.

A- Os combustíveis fósseis líquidos terão finalmente chegado perto do seu limite econômico, pois restarão ape-nas algumas jazidas fósseis de extração mais cara e difícil, como certos fundos de mar mais profundos. Além do preço muito mais elevado, as novas quantidades descobríveis serão provavelmente bastante limitadas.

B- As terras novas agricultáveis já estarão todas utiliza-das, inclusive as irrigáveis. As perdas anuais de solo, devido à erosão e aos processos de urbanização, excederão de muito os processos naturais de formação de solos novos.

C- A produção agrícola por área já terá chegado ao seu limite máximo, seja pelo melhor uso de adubos e pesticidas, seja pela engenharia genética e pelos processos integrados de combate às pragas. Há, contudo, um limite máximo fisiológico de produção possível, em cada área (clorofila por cm2, água disponível, etc.). Nota-se que o uso desordenado e excessivo de pesticidas pode agravar a situação e diminuir a produção.

D- Ao mesmo tempo em que a crescente população, já dobrada nessa época, exigirá maiores quantidades de alimentos, as mudanças climáticas, com o deslocamento dos grandes cin-turões climáticos do planeta, transformarão muitas áreas hoje altamente produtivas, em extensões muito menos capazes de produzir. Essas áreas poderão se tornar mais secas. Por outro lado, numerosas áreas que hoje são semiáridas e pouco produ-tivas, nesse quadro de mudanças climáticas poderão passar a ser úmidas, mas continuarão produzindo escassamente, pois a constituição de novos solos é um processo muito lento. E, pelos mesmos motivos, as aceleradas mudanças climáticas obrigarão os ecossistemas terrestres a se deslocarem rapidamente, o que os desestruturará, radicalmente, extinguindo muitas espécies e assim diminuindo enormemente a atual biodiversidade.

O que acontecerá não será o fim do mundo, nem a extinção da Humanidade. Contudo, representará o fim de todo um estilo de vida. A biodiversidade será radicalmente reduzida e todos os climas locais mudarão, ou melhor, se deslocarão, pois essa é uma consequência certa do avanço ou do recuo dos cinturões climáticos. Em consequência, como já expli-quei, os ecossistemas se desorganizarão profundamente ou mesmo "implodirão" biologicamente, numa extinção maciça de espécies. A produção agrícola se desorganizaria de alto a baixo. Contudo não se extinguiria, pois a Agronomia tem a tecnologia necessária para se reorganizar e desenvolver novos patrimônios genéticos. Além disso, muitos cultivares adaptados a um determinado clima podem ser usados também na nova região para onde esse clima se transloucou. Um planeta em rápida mudança climática estará mais aberto ao intercâmbio de cientistas e de material genético.

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Apesar desses aspectos compensatórios, as mudanças climáticas deverão causar certamente uma profunda perda da produtividade agrícola em termos planetários. Como disse, simplesmente não haverá tempo para a formação de novos solos. Isso poderá significar certamente a fome de bilhões de seres humanos. Haverá também uma degradação imensa de muitos solos, pelo cultivo excessivo, realizado para suprir a perda de outros solos cultiváveis. Sob o aspecto biológico, a extinção de muitas espécies vegetais e animais, representará uma perda genética irreparável. Viveremos, enfim num planeta mais pobre, superpovoado de gente, mais degradado, com menores opções ambientais.

Assim, todas essas tendências em ação certamente pro-vocarão uma situação global muito deteriorada, por volta da metade do próximo século. Existe uma série de previsões catastróficas, com se o fim do mundo estivesse à nossa espera, na época em que tantas tendências apontam para uma super-calamidade. No entanto, não sou dessa opinião.

Caminhamos, é certo para uma grande desolação. Mas não haverá nada de parecido com um super-evento cósmico, como foi provavelmente o impacto do grande asteroide, que liquidou subitamente os Dinossauros. O planeta já demons-trou ter uma resistência capaz de absorver e superar muitos impactos desfavoráveis como esse e, sobretudo como os imen-sos derrames de basalto no Mesozoico e épocas de intenso vulcanismo, além do que ocorreu em pelo menos 6 grandes e intensos períodos glaciais, desde o Paleozoico.

Apesar de todas essas observações profundamente pes-simistas sobre o futuro do planeta, há também razões para crer que fatores corretivos poderão se desenvolver a tempo de evitar ou de minorar alguns desses males e perigos. A uma série de considerações muito desfavoráveis, é possível também contrapor uma outra série de argumentos moderadamente otimistas. O resultado final, ou seja, a forma que tomará o mundo do futuro dependerá da interação de muitas variá-veis. Passarei a expor, ou melhor, a explorar a possibilidade de se efetivarem projeções capazes de reduzir os impactos negativos previstos.

É possível, embora não seja provável, que já no início do Século XXI, premida pelas desastrosas tendências climáticas em curso, a Humanidade terá finalmente que encarar com prioridade a questão de pôr um paradeiro às imensas quan-tidades de carbono que todos os dias despejamos irrespon-savelmente na atmosfera. Para isso há duas grandes medidas que deverão ser aplicadas, com a maior brevidade possível. Brevidade, aliás, relativa, pela própria natureza e imensidade do que é possível fazer.

Assim, somente há uma maneira prática de sequestrar o excesso de carbono existente na atmosfera. Refiro-me ao reflo-restamento. As árvores, ao crescerem, através da fotossíntese retiram carbono atmosférico e o fixam na matéria orgânica da sua própria estrutura física, como as raízes, os troncos, os galhos, as folhas, etc. Parte dessa matéria orgânica irá se decompor, como é o caso folhas caídas no chão, e o seu carbono será devol-vido ao ar. Contudo, outra parte permanece íntegra por um certo número de anos. Lembro aqui que o Projeto FLORAM, elaborado sob a égide do Instituto de Estudos Avançados da USP, com a colaboração do Instituto Florestal do Estado e de outras instituições, se propõe a reflorestar na Federação Brasileira cerca de 20 milhões de hectares. É um projeto de alto padrão técnico. A tecnologia necessária já existe. O que faltam são os necessários recursos e a decisão política.

Outra maneira, complementar à primeira, consiste em substituir as fontes de energia à base da utilização de com-bustíveis fósseis, por outros meios de produção energética. Há interessantes possibilidades tecnológicas, como a utilização das radiações solares em células fotovoltaicas, o uso da energia eólica, em locais de vento constante, a energia geotérmica, baseada no calor existente nas camadas mais profundas da crosta terrestre, etc. Contudo, a meu ver, nenhuma fonte de energia sem carbono é tão promissora quanto a energia da fusão nuclear. Trata-se do mesmo tipo de energia que é produzida pelo sol. Há, é verdade, dificuldades técnicas consideráveis a superar, para que no ambiente da Terra essa energia possa ser produzida de maneira contínua e sustentável. Contudo, já foram e estão sendo realizadas numerosas pesquisas a respeito. O mais difícil já foi conseguido, ou seja, colocar um reator de fusão em funcionamento, embora por um tempo extrema-mente curto. Para isso foi necessário produzir temperaturas da ordem de 100 milhões de graus centígrados ou algo mais. O problema é que a energia produzida durante o processo é menor que a energia necessária para pôr o equipamento em marcha. Ainda é necessário tornar econômico o processo. É uma questão de tempo. Anualmente vários países, como os EUA, a Grã Bretanha, a Alemanha, o Japão e outros, gastam bilhões de dólares em pesquisas para que a fusão nuclear venha a ser uma fonte prática de energia.

Tive ocasião de visitar o reator (Tokamak) da Universidade de Princeton (USA), a principal unidade experimental em funcionamento. Uma das grandes vantagens de fusão nuclear é o fato dela produzir pouca radioatividade durante o seu processamento. Dois átomos de isótopos de hidrogênio, trítio e deutério, fundem-se para produzir um átomo de hélio.

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É certo que as paredes e outras partes do equipamento necessário se tornarão radioativos, mas é uma radioatividade de curta duração, da ordem de poucas dezenas de anos. Nada comparável aos muitos milhares de anos de atividade de alguns elementos radioativos como o plutônio, produzidos pelos atu-ais reatores de fissão nuclear. É preciso não confundir fissão com fusão nuclear. Com a produção da energia praticamente ilimitada que a fusão nuclear poderá tornar disponível, será possível iniciar uma nova era industrial e energética, com a utilização do hidrogênio como combustível básico. Com isso, será evitado o Efeito Estufa, que está na raiz dos grandes males ambientais que nos ameaçam.

Isso tudo, porém, não seria suficiente para reverter as expectativas pessimistas, se não for possível contornar um outro grande polo de preocupações. Trata-se de extirpar do mundo a explosão demográfica. Todas as grandes pressões exercidas contra a integridade física do planeta decorrem direta ou indiretamente, do crescimento demográfico desordenado. Esse tipo de crescimento desastroso e indesejado tem várias causas, que às vezes estão nas raízes culturais de determinados povos. No entanto, para efeitos imediatos e pragmáticos, é possível dizer que a elevação do nível de vida das populações que vivem em estado de miséria, é a maneira mais segura e rápida de conter a explosão demográfica.

De um modo geral, é o que a História nos ensinou. Quando as populações atingem um nível econômico mais elevado, via de regra podem cuidar melhor de sua saúde. Além disso, podem concentrar esforços e recursos para que, tendo poucos filhos, estes consigam obter melhores oportunidades de educação, de assistência médica, de habitação, de emprego e assim por diante. Quem está em estado de miséria mal tem tempo para refletir sobre as alternativas existentes para a sua sobrevivência. As famílias que estão em condições miseráveis, para sua subsistência necessitam contar com a ajuda de muitos filhos e agregados, cada um dos quais trás algo que permite ao conjunto subsistir. Mas isso geralmente não permite sair dos desumanos círculos viciosos da miséria.

Fiz parte, como um dos dois representantes da América Latina, da Comissão da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Comissão Brundtland, nome da nossa Presidente Gro Brundtland, Primeira Minis-tra da Noruega. A Comissão, que preparou o terreno para a RIO-92, procurou estudar a fundo os principais problemas ambientais do Planeta Terra e dos seus complicados e muitas vezes imprevisíveis habitantes. Os trabalhos realizados estão condensados no livro "Nosso Futuro Comum".

Uma das principais conclusões, ou pelo menos a que se tornou mais conhecida, é a proposição do desenvolvimento sustentável. Está se criando toda uma nova ideologia, em torno desses conceitos e propósitos. Não se trata de uma proposta de caráter liberal, pois cabe ao Poder Público intervir quando for necessário, no campo social, ambiental, educacional, da justiça e ordem pública democrática, para assegurar um nível mínimo de qualidade de vida a todos. Por outro lado, não é uma ideologia de caráter socialista, pois as atividades econô-micas, embora fiscalizadas pelo Estado, cabem basicamente à iniciativa privada, com limitações democraticamente fixadas. No campo ambiental, e em outros setores, o Estado não pode abrir mão do Poder de Polícia.

O critério de sustentabilidade aplicado ao campo econô-mico, poderá contribuir muito para evitar atividades preda-tórias. O conceito estabelecido pela Comissão Brundtland para poder dar ao termo uma definição mais consistente, dizia que são autossustentáveis as atividades que não prejudicam as gerações futuras. Realmente, não podemos usar os recursos materiais terrenos sem deixar a mesma possibilidade aos nossos descendentes. Isso é importante, mas há certos recursos, como os minerais, que não podem se recompor. Por essa e por outras razões de ordem prática, hoje fala-se mais em sustentabilidade que em auto-sustentabilidade. Evidentemente não se pode dar aos termos definições rígidas, quando a referência é feita a recursos que são muito necessários, mas que não se sabe se poderão ser efetivamente mantidos por um tempo que exceda ao período de vida de várias gerações. Sustentabilidade, pois, tem o significado de uso continuado, não predatório, de uti-lização racional, visando sustentar ao máximo, ao longo do tempo não somente os recursos econômicos, mas também os valores ambientais, sociais, culturais e, sobretudo éticos, como o mandamento do amor ao próximo. Além disso, é necessário incorporar ao conceito de sustentabilidade, o critério de que as decisões a seu respeito devem respeitar o interesse público, serem transparentes e assumidas de modo democrático pelas populações interessadas. Toda a legislação referente aos EIA-RIMAS (Estudos e Relatórios de Impacto sobre o Meio Ambiente) está dentro desse contexto democrático de qualidade de vida. Por isso mesmo os compostos e as autoridades com tendências autoritárias não gostam dos EIA-RIMAS.

O quadro geral das perspectivas ambientais para a época crítica de meados do próximo século, apresenta perspectivas perigosas, no que se refere ao aquecimento climático e as suas tremendas consequências ecológicas e econômicas. Também as perspectivas demográficas ainda são preocupantes, embora estejam melhorando. Essas duas grandes ameaças, a bomba demográfica e a bomba climática serão certamente capazes de trazer a morte e incontáveis sofrimentos a bilhões de pessoas. Contudo, para desarmar esses 2 grandes perigosos explosivos, que se ramificam em muitos outros, há um instrumento válido. Trata-se, repito, do desenvolvimento democrático e sustentável, princípio que não nasceu pronto e acabado, mas que urge desenvolver, aperfeiçoar e implantar como a grande ideologia do Séc. XXI. Dela e dos seus desdobramentos depende a qualidade de vida das gerações futuras. Não é pouca coisa. E mesmo sob o aspecto teológico, devemos considerar essas futuras gerações também como o nosso próximo. O Cria-dor nos legou este mundo com deveres e responsabilidades implícitas e explícitas, que não podemos ignorar. Certamente não foi para transformar o planeta numa imensa Somália, que estamos aqui.

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Na Federação brasileira a efetiva proteção da biodiversi-dade começou tarde, nos anos 30 do século passado, com a criação de alguns Parques Nacionais e com a aprovação de um Código Florestal bem intencionado, mas muito pouco aplicado. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, os problemas ambientais começaram a se agravar. Algumas décadas depois, os principais países resolveram convocar a Conferência de Estocolmo, em 1972, para tratar do assunto. A Federação muito pouco se preocupava com o meio ambiente, a ponto de um jornal de certo Estado publicar um anúncio de meia página, com um desenho de uma chaminé soltando fumaça e os dizeres “Tragam para cá a sua poluição”. Não quero entrar em detalhes, mas aos poucos a opinião pública foi mudando, principalmente em consequência de graves problemas de degradação atmosférica nas cidades de São Paulo, Cubatão, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Contagem, e a poluição aquática em vários rios e pontos da costa. Louvo a clarividência de pessoas como Henrique Brandão Cavalcante, autor do Decreto que em 1973 criou a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA). Fui parte desse processo, como primeiro Secretário da SEMA, a qual inicialmente contava com 3 salas e 5 funcionários. Quero apenas dizer que sou um sobrevivente dessa época difícil.

A Secretaria foi crescendo e ocupando vácuos de poder. Chegamos a estabelecer uma rede de 18 estações ecológicas, com 3.200.000 hectares, equivalente à área de 3 Repúblicas do Líbano. Houve também nessa época a criação, com a ajuda de vários Estados, de alguns milhões de hectares de Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Era o início de um esforço continuado para salvaguardar grandes espaços necessários à proteção da biodiversidade. Em certo ponto do processo de salvaguarda, foi criado o IBAMA, mediante a fusão de SEMA, IBDF e órgãos relacionados com a pesca e com a proteção a seringueiros. O IBAMA nasceu com uma estrutura de mini-Ministério. Mais adiante foi estabelecido o Ministério do Meio Ambiente, que de certo modo duplicou a estrutura do IBAMA. Esse fato trouxe uma série de problemas que perduram até hoje, quando vemos uma parte do IBAMA agir como se fosse o órgão máximo ambiental do País.

O resultado prático dessa história sui generis foi um conjunto de acertos, mas também de dificuldades. O IBAMA cresceu enormemente, passando a gerir cerca de 60 milhões de hectares de Áreas Protegidas, o que foi excelente no que se refere à sua extensão protetora. Contudo, permaneceram problemas de administração. O IBAMA tornou-se um gigante problemático, apesar dos esforços e da integridade do seu presidente (até Maio de 2007), professor Marcos Barros, e dos seus colaboradores. Além das dificuldades administrativas que prejudicavam as Unidades de Conservação, surgiram outras.

Paulo Nogueira-Neto | Vice-Presidente da SOS-Mata Atlântica. Presidente honorário do WWF-Brasil, membro do CONAMA

Viva! Mil vezes viva o Instituto Chico Mendes!

Diante desse quadro, que preocupava as ONGs ambien-talistas e também a área central do Ministério do Meio Ambiente, a Ministra Marina Silva, com a colaboração do Secretário de Biodiversidade e Florestas, João Paulo Ribeiro Capobianco, e com o apoio de muitas ONGs e personalida-des, com a devida autorização do Presidente da República, optou por uma solução radical, mas necessária e inadiável. Foi finalmente dividido o IBAMA.

O IBAMA poderá dedicar-se mais a estudos ambientais, aos licenciamentos e à tomada de medidas necessárias ao desenvolvimento sustentável do país. Poderá expandir suas atividades nos campos do controle do aquecimento climático, do controle federal da poluição nos rios federais e no oceano e em muitos outros setores. Haverá, assim, um aperfeiçoamento efetivo do IBAMA, com a concentração de suas atividades.

Por outro lado, o novo Instituto Chico Mendes cuidará melhor das Unidades de Conservação, superando uma série de entraves e dificuldades burocráticas. Poderá receber e dirigir muito melhor e mais de perto a ajuda externa e interna que lhe for destinada, como é o caso das compensações ambientais federais. Somente isso já justificaria, de sobra, e criação do Instituto Chico Mendes. Poderá ter a sua responsabilidade reforçada com um corpo de consultores provenientes de uni-versidades e de ONGs brasileiras. Terá, em resumo, a possibi-lidade de resolver questões fundamentais de biodiversidade, sem desviar suas atenções para outros assuntos.

Quando a Ministra Marina Silva, em boa hora, anunciou durante uma reunião do Conselho Nacional do Meio ambiente (CONAMA) a criação do Instituto Chico Mendes de Proteção à Biodiversidade, gritei de onde estava um sonoro: Viva!

Nada de melhor para o meio ambiente poderia ter acon-tecido nestes tempos, em matéria de novos rumos ambientais a seguir, que essa decisão de criar essa nova instituição para proteger a biodiversidade. Viva! Mil vezes Viva!Nota: texto escrito em meados de 2007

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Fui Secretário do Meio Ambiente em 1992 durante a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-mento, a RIO-92, e também Presidente da Fundação do Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), de 2016 a 2018, e afirmo com convicção que Paulo Nogueira-Neto foi, em pleno período ditatorial, suficientemente hábil e corajoso para introduzir uma legislação já à época moderna no Brasil. Foi a mesma que deu origem a toda a atual legislação brasileira nessa área, um feito extra-ordinário. Trata-se de um legado incomparável, somando-se a isso o fato de que Nogueira-Neto foi o grande responsável pela criação de zonas protegidas da Amazônia.

Eu e Paulo fomos colegas desde a década de 1970, ambos professores da USP, e começamos uma colaboração, anos mais tarde, no início dos anos 1980, quando ele integrou a Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento, a Comissão Brundtland, como ficou conhecida. Nogueira-Neto foi um dos 23 membros dessa Comissão, cujo objetivo era estudar a relação entre economia e meio ambiente.

Lições de Nogueira-Neto: Vale, Mariana e Brumadinho

José Goldemberg | Professor Emérito da USP, foi Ministro do Meio Ambiente e Secretário do Meio Ambiente de São Paulo

Em tempo de tragédia em Mariana e Brumadinho, fico imaginando o que diria Paulo Nogueira-Neto sobre as catás-trofes patrocinadas pela Vale em Minas Gerais. Esses desastres ambientais põem na ordem do dia – com alta prioridade – o problema do licenciamento ambiental, o que significa uma séria inversão de prioridades do Governo Federal.

A reorganização administrativa federal promovida em Janeiro levou à extinção e realocação de várias áreas ligadas a questões ambientais, o que indica uma visão desenvolvi-mentista, em que o licenciamento ambiental parece ser um obstáculo a esse mesmo desenvolvimento.

Tal visão era explicitamente a do governo militar em 1972, por ocasião da primeira Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, que levou à criação de Ministérios do Meio Ambiente na maioria dos países do mundo, ou órgãos equivalentes. A visão do Governo na época era a de “desenvolver primeiro” e se preocupar depois com as consequências sociais e ambientais decorrentes.

Apesar disso, Paulo Nogueira-Neto, professor da Uni-versidade de São Paulo, conseguiu convencer o então Presi-dente General Emílio Garrastazu Médici a criar, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA) no Ministério do Interior, à frente da qual permaneceu e onde conseguiu introduzir toda a legislação e os órgãos administrativos da área ambiental do Brasil.

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A criação da SEMA deveu-se mais ao prestígio pessoal de Paulo Nogueira-Neto – integrante de tradicional família paulista e sua reputação científica – do que a uma compre-ensão clara do governo militar de conciliar desenvolvimento com proteção ambiental.

Paulo era visto com reservas por grupos interessados na expansão da ocupação da Amazônia, mas com seu perfil não confrontacional conseguiu introduzir no País legislação ambiental moderna, copiada de países da Europa e dos Estados Unidos. O melhor exemplo é o da Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambiental (CETESB) em São Paulo. O sucesso em resolver o problema ambiental de Cubatão, no Governo Montoro (1986-1989), deu à CETESB estatura e prestígio para enfrentar outros desafios.

Isso não ocorreu, contudo, em muitos outros Estados e certamente não no Governo Federal, em que órgãos como o IBAMA não tiveram apoio para pôr em prática a excelente legislação criada por Paulo Nogueira-Neto.

Estamos pagando hoje o preço disso com os desastres de Mariana e Brumadinho. E o Governo Bolsonaro não ajudou nada, até agora, a resolver os problemas reais do setor ao reduzir o status do Ministério do Meio Ambiente (que até cogitou de extinguir) e tolerar entrevistas e declarações, de membros de sua administração, desqualificando a defesa do meio ambiente como inspirada por agentes internacionais e, de modo geral, “xiita” nas suas reivindicações.

A realidade é outra e esta é uma boa hora de recolocar o problema nos termos corretos. A legislação atual tem basicamente dois instrumentos para forçar o cumprimento das normas ambientais adequadas: multas e interdições. A aplicação de multas revelou-se insuficiente, como o próprio Presidente Bolsonaro tem declarado, porque a judicialização dos processos tornou-a inoperante. O único instrumento eficaz é o poder das agências ambientais de interditar empreendi-mentos. Foi o uso dela que permitiu à Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambiental “limpar” Cubatão 40 anos atrás.

Mariana e Brumadinho

Exemplo na área federal é dado pela redução dramática do desmatamento na Amazônia conseguido pela Ministra Marina Silva entre 2005 e 2010, que contou com o apoio entusiástico de setores importantes da sociedade e intimidou os promotores do desmatamento. Algo semelhante ocorreu no Governo Collor, em 1991, quando a Polícia Federal e o monitoramento do desmatamento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) foi tornado público – levaram a uma redução do desmatamento, que recomeçou a subir no Governo Fernando Henrique. Em ambos os casos foi a firmeza e a coragem do Governo Federal, que apoiaram os técnicos da área ambiental a cumprir suas tarefas. Não foi preciso criar novas Leis, mas decidir cumpri-las.

Esta é uma situação parecida com a Operação Lava Jato e o papel do Juiz Sergio Moro. A legislação anticorrupção, com delação premiada e outros dispositivos legais, já existia, mas foi a coragem do juiz em aplicá-la que fez toda a diferença.

Para evitar novos desastres, como em Mariana e Bruma-dinho, o Governo Federal precisa demonstrar claramente que vai aplicar as Leis vigentes, “doa a quem doer”. Somente assim os técnicos e engenheiros responsáveis pelos projetos e pela fiscalização se sentirão respaldados para propor a interdição de projetos inadequados e não conceder novas licenças sem a permissão de medidas protetoras da população.

Licenciar uma barragem como a de Brumadinho, per-mitindo que abaixo dela fossem instalados uma pousada e um refeitório da Vale, ultrapassa as raias do absurdo na sua irresponsabilidade. E poderia ter sido evitado por uma simples medida administrativa. O que seria uma declaração de Paulo Nogueira-Neto sobre isso, se ele ainda estivesse na ativa?

Não é possível, como querem alguns, resolver os proble-mas da pobreza no País mantendo a natureza intocada. Mas é possível, isso sim, fazer um licenciamento ambiental mais rigoroso e ágil, que proteja a população sem impedir o desen-volvimento. Exatamente como dizia o professor Paulo.

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Três anos após o maior desastre ambiental da história do Brasil, em Mariana, nos defrontamos com mais uma tragé-dia, com o rompimento de uma barragem de mineração em Brumadinho.

Vários especialistas já alertavam sobre os riscos das bar-ragens a montante que não deveriam ser utilizados em países úmidos como o Brasil, por causa do alto risco de infiltração. Enquanto o governo continua a realizar buscas, salvamentos e resgates, e atender a população afetada, esta tragédia já pode ser considerada uma das maiores da história do Brasil dado o número de afetados e os danos ambientais. Enquanto aguardamos os laudos finais da perícia sobre as causas deste acidente, é necessário repensar o modelo de gestão da segurança de barragens e de gestão de riscos de desastres no Brasil. De acordo com a ANA (Agência Nacional de Águas), existem 790 barragens de rejeito de mineração de um total de mais de 24 mil barragens no país, a maioria de pequeno porte.

Todas as barragens são categorizadas com base no risco de rompimento e no potencial impacto que causarão nas comu-nidades próximas e no meio ambiente em caso de acidente.

Após a tragédia em Brumadinho, o Governo Federal publicou uma portaria que recomenda a fiscalização de todas as barragens com alto dano potencial associado e cobra os órgãos fiscalizadores para que exijam das empresas responsáveis a atualização dos seus planos de segurança. No entanto, tudo isso já está previsto na PNSB (Plano Nacional de Segurança de Barragens).

Rafael Muñoz | Coordenador da área econômica do Banco Mundial para o Brasil*.

O que podemos aprender com a catástrofe de Brumadinho

Fica, portanto, a pergunta: por que este acidente aconteceu e, além disso, o que fazer para que haja mecanismos de previsão e alerta para que eventos como esses possam ser evitados e as consequentes tragédias jamais se repitam?

Como sabemos, qualquer barragem tem um risco que precisa ser gerenciado de forma efetiva e transparente para minimizar a probabilidade de rompimento e os potenciais danos a jusante. No Brasil, a avaliação de segurança de barragens é feita por meio de inspeções periódicas para identificação de anomalias estruturais e funcionais do barramento e de suas estruturas auxiliares. Essa avaliação é o principal instrumento para auditoria e prevenção de possíveis acidentes. Porém, ela só se torna eficaz se acompanhada de testes regulares para assegurar o comportamento correto e o bom funcionamento, dentre outros, de sensores de pressões internas, estáticas e hidráulicas da barragem – os “piezômetros”. Auditorias inde-pendentes são necessárias para assegurar que os instrumentos estão funcionando e os dados gerados sejam confiáveis e representativos da situação real do barramento.

Além disso, a coleta, interpretação e divulgação dos dados precisam ser feitas de forma mais transparente e automatizada, com acesso direto por órgãos de fiscalização e controle do Estado, bem como de todos os atores envolvidos na gestão dos riscos. Esses dados não devem ser tratados como sigilosos, mas prontamente disponibilizados a especialistas independentes dos órgãos púbicos. O que está em jogo é o risco dos afetados, da população e do meio ambiento a jusante da barragem, sendo que o poder público, responsável pela segurança e preserva-ção ambiental, deve intervir com agilidade para prevenir ou responder aos vários estágios e situações de emergência que possam advir.

Problemas devem ser detectados com antecedência e medidas preventivas e corretivas devem ser discutidas e ado-tadas rapidamente. Ainda que não saibamos em detalhes as causas do rompimento em Brumadinho, é certo que nenhuma barragem se rompe sem dar sinais prévios de vulnerabilidade. Resta saber se houve problemas na coleta, no gerenciamento ou na divulgação dos dados. Sabendo-se que, mesmo com a melhor engenharia e monitoramento do mundo, sempre haverá um risco “residual” de um eventual acidente, preci-samos investir muito no gerenciamento integrado de riscos de desastres. Infelizmente, desastres fazem parte do nosso dia a dia como foi mais uma vez evidenciado com as chuvas torrenciais no Rio de Janeiro na semana passada.

A tendência é que eventos extremos como esse se agravem com as visíveis e severas mudanças climáticas, embora, infeliz-mente, o maior problema não seja climático, mas sim a falta de percepção e de reconhecimento do perigo e a ausência de políticas e planejamento efetivo e preventivo, visando evitar e atenuar os riscos.

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Países como o Chile, o Japão e a Holanda são bons exem-plos de países que investiram muito na redução de riscos de perigos naturais que sempre existirão (como terremotos e enchentes) com engenharia, planejamento e sistemas eficazes de resposta a emergências, minimizando impactos sociais e econômicos.

Dessa forma, é necessário ir além da fiscalização, da recuperação ou do descomissionamento destas barragens, que devem levar anos. É necessário desenvolver sistemas integra-dos de redução de riscos. A começar, precisamos fortalecer rapidamente os sistemas de alerta e de resposta a acidentes, principalmente nas comunidades próximas às barragens de alto risco. Além dos sistemas de alarmes sonoros, deverá ser cogitado o desenvolvimento de aplicativos para alertar a população.

O planejamento e ocupação territorial é talvez a ferramenta mais importante para reduzir riscos. Retirar antecipadamente habitantes e evitar a ocupação de áreas de alto risco e de amor-tecimento, muito próximas às barragens, deve ser efetivada como medida de redução de impactos.

A onda de rejeitos chegou às instalações da empresa e em Brumadinho em poucos segundos, impossibilitando qualquer evacuação pós-rompimento. Canteiro de obras e outras atividades não essenciais relacionados a barragens (tal como o refeitório diretamente afetado) devem ser planejados a montante de barragens.

Finalmente existem maneiras de conter e direcionar a fluxo de rejeito com barragens emergenciais a jusante da barragem em análise. Esse planejamento integrado de riscos deve se iniciar imediatamente e em paralelo à recuperação do acidente de Brumadinho.

Porém, é importante integrar todos os outros riscos rela-cionados a enchentes, desmoronamentos e outros desastres que se tornaram “corriqueiros e recorrentes” no Brasil.

*Artigo escrito em colaboração com Paul Procee, Coordenador da área de Desenvolvimento Sustentável do Banco Mundial no Brasil

Infelizmente, como em muitas outras ocasiões, não são as políticas que falharam, mas sim a sua implementação.

A legislação brasileira é robusta, comparável, e, em alguns casos, mais severa, que a de outros países no mundo. Porém, há falta de clareza sobre o papel, incumbências e responsa-bilidades de cada instituição nos âmbitos federal, estadual e municipal, e sobre a capacidade para monitorar e fiscalizar o cumprimento das normas (que devem ser constantemente aperfeiçoadas, principalmente após situações limites como o dessas ocorrências), o tão famoso “compliance”.

O licenciamento ambiental no Brasil, por exemplo, é desproporcionalmente burocrático com o licenciamento de certos empreendimentos de pequeno porte e baixo risco. Os requerimentos e a documentação vão muito além da capacidade dos próprios órgãos públicos em processá-los e aprová-los, atrasando obras ou simplesmente deixando empreendimentos em situação irregular.

Por outro lado, faltam fiscalização e indenização efetiva de obras e empreendimentos de grande porte e risco, onde muitas vezes interesses específicos prevalecem acima da lei. Esses projetos de grande risco precisam, muito além do licenciamento, um monitoramento diferenciado das áreas passíveis de serem afetadas, instruindo possíveis e/ou neces-sárias medidas, ações e obras de prevenção.

Após o desastre acontecido em Mariana (5 de novembro de 2015), muitas medidas foram discutidas, porém poucas foram efetivamente implementadas. Esperamos que desta vez haja um acompanhamento mais contundente, envolvendo todos os interessados e todos os atores, e assegurando a punição dos culpados e que todas as medidas identificadas sejam adotadas, implementadas e monitoradas.

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Em 29/11/16 caiu avião que levava o time da Chapecoense para Medellín, por falta de combustível. Foi divulgado que o piloto abasteceu o avião na Bolívia com combustível exata-mente suficiente para chegar a Medellín. A funcionária em terra estranhou o fato e consultou o despachante da empresa LaMia, que a teria tranquilizado dizendo que a viagem demoraria menos que o previsto (suposta folga não explicitada no plano de voo). O resto, todos sabem.

No caso da Mina 1 de Brumadinho, hóspedes da pousada e a maioria dos funcionários da Vale não terão sido alcançados por comentários entre funcionários e terceirizados quanto a resultados desfavoráveis da instrumentação ou de indícios visuais. Certamente, entre operadores, poderiam estar correndo rumores de insegurança da estrutura. Suposições compreen-síveis de quem nunca participou de evento semelhante de que alguns não terão saído da área receando demissão por justa causa ou desapreço de colegas e de superiores são naturais. Há outras hipóteses a justificar os dois casos, um com apenas três possibilidades certas e o outro, possivelmente com algumas dezenas. Não escrevo a comparação para levantar reflexões de escasso interesse, porque me parece útil para as investigações por maior que pareça a diferença.

Edézio Teixeira de Carvalho | MSc Engenheiro Geólogo

Desastre em princípio perfeitamente evitável

Nos casos da barragem e do avião, a situação é diferente, sendo que, reflitamos, pode haver situação de ser considerada hipótese (até aqui não levantada?), de responsáveis pela decisão evitarem operação volumosa que, se não seguida de ruptura a justificar a medida poderia espalhar situação posterior de descrédito intenso. Só o aprendizado da leitura geológica na idade certa administraria de modo diverso situações como essa e as que acabaram resultando em inúmeras ocorrências com centenas a milhares de fatalidades em várias grandes cidades do Brasil.

O terrível acidente que sacrifica Brumadinho só pode garantir segurança média maior à população brasileira, se passarmos a ser mais cuidadosos com a nossa terra, aprendendo um mínimo sobre leitura geológica, porque estamos vendo morrerem inocentes igualmente nas ladeiras montanhosas, nas péssimas rodovias, nas grandes inundações urbanas estimuladas por absurdas Leis e nas frequentíssimas quedas de árvores urbanas.

Na sexta-feira à tarde retornava eu do campo quando recebi a notícia do acidente de Brumadinho. Ao chegar, minha esposa assistia a uma exposição na televisão. Aproveitei intervalo comercial e corri para o computador a ver imagens do Google e qual não foi minha surpresa ao ver uma imagem feita de helicóptero e disse a minha esposa: ruptura por erosão interna! Ao que ela perguntou o que era isso. Respondi-lhe que me parecia ser uma ruptura do tipo provocado por erosão interna (piping), e que conhecia dois casos de ruptura por piping, o da Teton Dam nos Estados Unidos, e, surpresa maior, o da barragem da Pampulha, ambas não sendo de rejeitos. A característica que vi de piping foi o fato de a calda mineral ter vazado pelo fundo da barragem, ficando sua crista com características sem deformação visível. A ruptura por piping pode ser discreta ao início. Todavia, fiquei sabendo mais tarde que uma senhora dissera a quem a entrevistava que seu filho, dias atrás, dissera “estar com medo” porque vira saindo água do pé da barragem (suponho que ele notara variação do aspecto, talvez quantidade ou turbidez da água que vira sair).

Estou sem saber até o momento se o rapaz chegara a comunicar preocupações a seus superiores e se morrera. Faço questão de dizer não ser especialista em projetos de barragens, mas convivo bem com aspectos geológicos básicos das obras geotécnicas tendo passagens por comissões de análises de rupturas, lembrando-me agora dos casos de vila Barraginha, Fernandinho, Rio Verde (todas em Comissões do CREA) e de Comissão da Assembleia Legislativa sobre o caso do main ore body da mina Velha em Nova Lima.

Devo ainda dizer que assisti a uma reunião da FAPEMIG com a RENOVA para um plano de distribuição de recursos de pesquisa para o caso de Mariana.

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Emiti manifestação de surpresa de os roteiros básicos não apresentarem (nenhum deles) um item a meu ver obrigató-rio, que seria a descrição de casos de ruptura internacionais, como o da vila carvoeira de Aberfan (País de Gales) em que deslizamento de pilha de estéril matou mais de 150 pessoas, incluídas 64 crianças de escola situada exatamente a jusante da pilha; segundo os dados coletados, todas as crianças de sua faixa etária da localidade; a ruptura, recente, em La Stada (Trento, Itália), de barragem de rejeitos de não ferrosos, há poucos anos, com mais de 290 pessoas mortas; se formos para as hidrelétricas, também na Itália, o caso de ruptura não da barragem de Vajont, com mais de 250 metros de altura, mas por ruptura da encosta de montante pela margem esquerda com mais de 2600 fatalidades na cidade de Longaroni.

Nos anos 80 na Colômbia geólogos fizeram o que podiam para retirar a população de Armero da linha de risco, tendo sido, segundo um dos relatos, chamados catastrofistas, dias antes de ocorrer o “lahar” (avalanche, em javanês) que acabou matando 25.000 dos 28.500 habitantes da cidade.

No caso da barragem de Teton (USA), foi contado que geóloga pedira demissão da equipe por não concordar com o uso de um solo característico das áreas periglaciais resultantes do esmagamento do solo na movimentação de geleiras em degelo no sistema de drenagem previsto em anteprojeto. Este é caso a justificar reflexão profunda sobre a absoluta falta de leitura geológica dos brasileiros, e não só como se viu acima, por insistirem em não “conversar” com a terra.

Informo ao leitor que participei de Grupo de Trabalho da Fundação Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais (FEAM) chamado “GT Barragens” para oferecer documento previsto em Resolução do COPAM Nº 53 com a finalidade de estabelecer classificação de nada menos que 718 barragens de rejeitos diversos existentes em Minas Gerais1. O conjunto dos membros do GT foi o seguinte (permita o leitor usar as siglas): IBRAM, SINGEO (representado por mim, Coorde-nador), SME, DNPM, SENGE, MPMG, FEAM, IGAM, IEF, UFMG Engenharia, CREA MG.

O “GT Barragens” elaborou uma classificação em três níveis ou graus de risco conforme a altura da barragem, volume do reservatório, ocupação humana a jusante, interesse ambiental a jusante, instalações na área de jusante.

Vê-se, pois, que, além dos elementos técnicos altura e volume do reservatório, ocupação, interesse ambiental e ins-talações na área de jusante, constituem elementos a exigirem atenção especial do proprietário, dos responsáveis técnicos pelo projeto e evidentemente dos órgãos de governo responsáveis. É claro que, passado certo período de aplicação, poderão as autoridades responsáveis introduzir ajustes que considerarem necessários. Nos dois casos de ocorrências a ocupação a jusante revelou-se condicionamento a merecer drástica reavaliação. Com efeito, embora os materiais constituintes do corpo da barragem possam ser suficientemente conhecidos, não estou bem certo de que a constituição da fundação o seja.

Considerando as diversas resistências à atuação da atividade mineral, em especial a questão relacionada ao processamento do rejeito, é evidente que se imponha crescente impaciência da população quanto aos correspondentes dispositivos. Por outro lado a natureza geológica dos terrenos coloca os recur-sos minerais em locais ora favoráveis, ora desfavoráveis para receberem os projetos de lavra.

Leio no livro “Colapso” do biogeógrafo Jared Diamond que Montana, belíssimo estado montanhoso dos Esta-dos Unidos caiu do 10º lugar em PIB per capita entre os Estados federados para o 46º. Um dos Estados mais ricos passou a se posicionar entre os mais pobres. Não se atribui a causa exclusivamente à opção de fechar grande parte dos empreendimentos minerais em virtude do altíssimo custo de reabilitação das áreas degradadas pela drenagem ácida e pelos resíduos pesados (cobre, zinco, cádmio), mas também à degradação do solo pelas macieiras que teriam esgotado as reservas naturais de nitrogênio.

Vê-se no sucinto texto que em verdade o problema de Montana tinha outro “vilão”: a agricultura; mas não existe nada mais intolerável do que a perda de vidas humanas, especialmente quando evitável. Não preciso conhecer a exata história da mina para dizer que lamento profundamente a coexistência entre a barragem de rejeito e as instalações imediatamente a jusante das barragens I e VI, mesmo não estando a maior recebendo material novo (cargas adicionais de solicitações mecânicas) nem águas pluviais nos 10 ou 15 dias antecedentes sem chuva (o chamado veranico que costuma marcar nossos janeiros).

Para finalizar, gostaria de chamar atenção para o fato de que o documento de cuja elaboração participei já terá ajudado a ampliar a disseminação da manipulação a seco dos rejeitos, como a própria Vale já o faz no Estado do Pará. Por outro lado, penso que agora acabo de usar certamente mais de uma dezena de materiais de origem mineral copos, pratos, colheres, etc. Lembro-me de algumas dezenas de palestras que fiz sobre as questões geológicas que afetam a vida dos brasileiros e em especial uma feita aos soldados do Corpo de Bombeiros aos quais disse, na ocasião, ser o acidente a hora deles, a minha é a de fatos já passados ou previsíveis.

Naturalmente, em comunhão com toda a humanidade, resta-me comunicar ao povo de Brumadinho minha mais profunda solidariedade e continuar a cumprir com meus compromissos permanentes de divulgar o conhecimento geológico, como nunca o deixei de fazer, inclusive com meu livro intitulado “Morte e Vida São Francisco”.

1 - O documento foi publicado com a seguinte ficha técnica: “G393 Fundação Estadual do Meio Ambiente. Gestão de barragens de rejeitos e de resíduos em Minas Gerais: Histórico, requisitos legais e resultados/Fundação Estadual do Meio Ambiente”. – Belo Horizonte: Fundação Estadual do Meio Ambiente, 2008. 92 p.; il 1. Barragem – Minas Gerais. 2. Barragem – Aspectos ambientais. 3. Barragem – Resíduos. 4. Barragem – Legislação. 1. Título CDU:627.82: 628.4

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Passado o calor dos acon-tecimentos do rompimento da barragem de Mariana em 2015, restou o doloroso e complexo processo de reparação às viti-mas e recuperação dos danos ambientais e da economia, que segue em curso com muitos aprendizados e avanços, mas ainda com um longo caminho a ser percorrido.

De lá para cá, pouco foi feito para fortalecer o sistema de licenciamento, monitoramento, fiscalização e mitigação de risco de barragens e evitar outra tragédia. Ao contrá-rio, nos últimos três anos, as tentativas de fortalecimento desta agenda foram sufocadas, desvirtuadas, esquecidas ou simplesmente ignoradas em nome de um discurso antigo e ambidestro, mas plenamente revigorado de caracterização do cuidado ambiental como um entrave do desenvolvimento. Esse discurso está embrenhado de forma quase orgânica no governo do Presidente Bolsonaro, do próprio Presidente à Ministra da Agricultura, do Ministro do Meio Ambiente ao Chefe da Casa Civil. Sob esta ótica, a forma de harmonizar meio ambiente e o chamado “setor produtivo” seria submeter o primeiro ao segundo. Licenciamento deveria ser expedito, pois é uma burocracia despropositada; a fiscalização precisa ser controlada para deixar de perseguir os produtores.

Tasso Azevedo | Engenheiro florestal, Coordenador do SEEG e do MapBiomas

Por que esperar a tragédia?Se uma autuação for revertida na Justiça, que seja punido

quem cumpriu seu dever de fiscalizar. Já a sociedade civil, ao pressionar pelo controle ambiental, estaria atendendo a inte-resses internacionais e se locupletando de recursos públicos em detrimento da agenda de desenvolvimento econômico.

Infelizmente, foi preciso que mais uma tragédia acon-tecesse para que fosse acionado um freio de arrumação. A repetição da tragédia do rompimento de uma barragem, que nem ativa estava, escancarou a fragilidade dos sistemas de monitoramento e fiscalização e a debilidade dos sistemas de gestão de risco no país.

Se acontece com uma das empresas mais estruturadas do país, que dirá nas outras centenas de casos com significativa-mente menos recursos?

O estrondoso “eu te disse” de especialistas e representantes da sociedade civil ecoa desde os processos de licenciamento onde foram votos vencidos até os debates da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e no Congresso Nacional, onde as propostas de avanços para fortalecer a legislação foram arquivadas.

Pode até ser que o rompimento da barragem seja um caso fortuito, mas a falha nos sistemas de monitoramento, alerta e alarme, entre tantos outros, é fruto de problema sistêmico muito maior. Agora é hora de atender à emergência das vítimas de Brumadinho, mas, logo após, é fundamental enfrentar o problema de frente, fortalecendo o sistema de licenciamento e controle ambiental antes que a próxima tragédia recaia sobre todos nós.

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O recente movimento glo-bal “anticiência”, do qual o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump é um dos expo-entes, tenta colocar a ciência em xeque, quando os resultados científ icos não apoiam seus interesses. Com a questão das mudanças climáticas não pode-ria ser diferente.

Portanto, pode-se afirmar, de antemão, que as manifes-tações “anticiência” não são questionamentos científicos propriamente ditos, mas uma clara investida no sentido de desconstruir discursivamente a credibilidade científica com o objetivo de defender posições econômicas, políticas ou até mesmo religiosas próprias. Assim, qualquer tentativa de trazer ao debate o método científico nesta discussão é inócua.

No caso específico das mudanças climáticas, a posição de negação à ciência é emblemática. O enfrentamento das questões climáticas vai exigir profundas mudanças no sistema socioeconômico em nível global e nacional, de acordo com o recente relatório SR1.5 do IPCC (www.ipcc.ch/). Os setores econômicos que hoje arrecadam trilhões de dólares, obvia-mente, não têm interesse em diminuir seus lucros, mesmo à custa de colocar em risco o futuro da humanidade e, em última análise, o futuro de seu próprio negócio. Não há uma visão de longo prazo acerca dos danos possíveis e prováveis ao nosso planeta.

Não por acaso, a indústria do petróleo e carvão financia campanhas de políticos no mundo todo (Estados Unidos liderando) com o intuito de não aprovar medidas que dimi-nuam seus lucros. É a tal lógica do “mercado”. Os negacio-nistas climáticos são, em geral, financiados por essas grandes corporações ou por grupos ultraconservadores de extrema direita, que não querem perder seus atuais privilégios econô-micos. A luta para manter esse atual sistema econômico de concentração de renda não cessará. Se cada casa puder gerar sua própria energia (solar ou eólica), por exemplo, os grandes conglomerados energéticos e os governos perdem força para um sistema descentralizado, que é muito mais difícil de ser controlado do que o modelo vigente.

Pensando em um mundo no qual as mudanças climáticas seriam realmente enfrentadas, teríamos obrigatoriamente que redirecionar nossos padrões socioeconômicos, começando por uma forte redução do consumo, especialmente em países desenvolvidos, e isso, claro, vai contra toda a indústria e a economia como as conhecemos hoje.

Paulo Artaxo | Professor do Instituto de Física (IF-USP)

A quem interessa atacar a ciência?

Nessa perspectiva, deixaríamos de privilegiar o indivíduo para priorizar o interesse comum maior. É premente imple-mentar fortes políticas públicas de reordenamento do modelo de desenvolvimento atual, propondo alternativas sustentáveis que garantam a preservação do meio ambiente.

Convém salientar que ciência, por definição, é um processo dinâmico de construção do conhecimento, em permanente evolução. Não é imutável, nem poderia.

No caso das mudanças climáticas, não se pode ignorar o atual estágio de robustez a que chegou a ciência do clima, com resultados sólidos nas pesquisas e também com a intensifica-ção de eventos climáticos extremos, tais como secas severas, queimadas, enchentes etc.

Para a ideologia predominante hoje, contudo, mudanças climáticas são vistas como uma “ameaça”. Afinal, uma das medidas mais urgentes é impor limites ao uso indiscriminado dos nossos recursos naturais, contrariando grandes indústrias de petróleo e carvão, do agronegócio etc.

Por outro lado, não há qualquer interesse dos países ricos em diminuir o consumo desenfreado.

Não há uma consciência global de que só teremos saída se atuarmos todos juntos.

O enfrentamento das mudanças climáticas exige uma ação cuidadosamente planejada, coordenada e urgente, que está muito além da lógica competitiva das indústrias que buscam aumentar o valor de suas ações o mais rápido possível e sempre crescer.

Governos e iniciativa privada geralmente fazem planos para quatro anos, ou no máximo até dez anos. Porém, a humanidade tem que pensar nas próximas décadas e sécu-los. A ciência das mudanças climáticas é muito clara: temos que agir agora, mudar nosso nível de consumo e o uso dos recursos naturais do planeta, e construir uma nova sociedade mais igualitária e sustentável.

Este é o embate das próximas décadas. A ciência há de vencer. Caso contrário, todos perderão.

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Promovido pela Proteção Animal Mundial (World Ani-mal Protection - WAP, por suas siglas em inglês) e pela ONU Meio Ambiente, o evento “Oce-ano Plástico: como escapar desse emaranhado?”, que ocorreu em Dezembro passado, no Unibes Cultural/SP, trouxe à tona o debate sobre a atual situação e as soluções inovadoras para as questões da pesca fantasma e do lixo plástico nos oceanos.

Lixo plástico merece atenção da economia circular

Considerado um dos grandes desafios ambientais dos dias de hoje, a poluição plástica nos oceanos impacta diretamente boa parte da fauna marinha e traz consequências para a vida humana, uma vez que os próprios oceanos são fonte primordial de vida. “Os oceanos são o nosso lar e garantem a sobrevivência de toda raça humana”, afirmou Vilfredo Schürmann, velejador e líder do Schürmann Corporate Workshop - consultoria na implantação de programas de gestão estratégica de grandes corporações -, durante a abertura do evento.

A Família Schürmann relatou as mudanças que vivenciaram nos mares em mais de 30 anos de navegação e demonstraram real preocupação com o nível de microplástico nos oceanos e a consequente ingestão deste material por parte dos animais que, depois de pescados, são ingeridos por nós, além de debater o futuro dos plásticos, com foco na economia circular.

Oceano plástico: como escapar desse emaranhado?

Elisa Homem de Mello | para Revista ECO21

Os plásticos são divididos em macro e microplásticos. São considerados microplásticos todos os pedaços menores que 5 mm e macroplásticos, os maiores. Produzimos, atualmente, 5,3 milhões de tons de macroplástico, e a principal fonte, segundo um relatório recente da ONU Meio Ambiente, é o mau gerenciamento de resíduos sólidos municipais. A quali-dade da gestão dos resíduos gerados está comprometida por dois fatores intrinsecamente proporcionais: nossos hábitos de consumo e uso inadequados do plástico, que geram uma produção em larga escala de resíduos sólidos, e a falta de disposição final adequada deste material.

Para o cineasta David Schürmann, filho do comandante Schürmann, o plástico é uma tendência e não irá desaparecer de nossas vidas, por isso é importante pensar o fechamento do ciclo de vida deste material e a forma como cuidar para que ele não acabe nos oceanos.

“Precisamos encontrar soluções e descartar ideias absurdas como o “single use plastic”. Precisamos acreditar que pequenas mudanças de atitudes irão acontecer e nossa missão principal é mudar a consciência, buscando testemunhar, criar soluções e educar as pessoas”, disse Schürmann.

Na área das Políticas Públicas, a missão não é diferente, ou seja, conscientizar e educar seguem sendo primordiais. Desta forma, ONU Meio Ambiente e WAP propõem inicia-tivas práticas como o “Plano Nacional de Combate ao Lixo Marinho”; as Regulamentações para incentivar mudanças na produção e no consumo do plástico, bem como no setor pesqueiro; dar atenção a setores-chave, como pesca e turismo; ações sistemáticas de retirada do passivo; sensibilizar a socie-dade; aumento na reciclagem; incentivo à produção e ao consumo conscientes.

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O consumidor consciente sabe que tem um grande poder ao escolher um produto e pode transformar a sua compra num ato de reconhecimento de boas práticas sustentáveis. Há um visível aceleramento da cultura de consumidores conscientes e o apelo às indústrias dos setores de Cosméticos, Limpeza e Têxtil é forte, uma vez que o microplástico é composto, dentre outros, por microesferas e microfibras, boa parte das quais encontradas em sabonetes, sabões e vestuário, e cujas chances de acabarem nos oceanos são grandes.

O consumo de orgânicos e materiais “sustentáveis” aumen-tou consideravelmente no Brasil. São consumidores que se preocupam com a origem do que compram, a matéria-prima do que consomem, todas as etapas do processo produtivo e o comportamento sustentável das empresas. Em seis anos, o número de consumidores brasileiros que comprou produtos feitos com material reciclado pulou de 29% para 48%. Os que adquiriram alimentos orgânicos também saltou de 23% para 48%. Os dados fazem parte da Pesquisa Akatu 2018, divulgada recentemente pela entidade, que analisa o panorama de consumo consciente no Brasil. Os dados apresentados por Fernanda Daltro, Head Campaigner da ONU Meio Ambiente e Helena Pavese, Diretora Executiva da WAP, mostram que todo o plástico já produzido no mundo ainda existe.

Estamos falando de 8,3 bilhões de toneladas, desde 1950, dos quais 6,3 bilhões de toneladas já viraram lixo. O destino dos 2 bilhões de toneladas restantes de lixo plástico está dividido entre: reciclado – 9%; incinerado – 12%; e acumulados em aterros ou lixões ou presentes no meio ambiente – 79%.

Com apenas 9 por cento do lixo plástico sendo reciclado, não é necessário ser nenhum especialista para concluir que o plástico está se acumulando no meio ambiente e que, a única possibilidade de reverter essa situação é repensarmos, com base nos conceitos da economia circular, a forma como desenhamos nossos produtos e como os consumimos. “É preciso rever nossa relação com o plástico enquanto socie-dade” enfatiza Daltro, para quem a mudança do cenário atual passa por um estímulo à inovação na indústria, bem como um redesign de produtos de equipamentos de pesca e embalagens. Esta última, considerada a menina dos olhos da economia circular.

Durante o evento, a WAP lançou a prévia do relatório “Maré Fantasma – Situação atual, desafios e soluções para a pesca fantasma no Brasil”, com dados sobre petrechos de pesca perdidos e abandonados nos mares brasileiros e seu impacto na fauna marinha do país.

Segundo o estudo da Iniciativa Global de Combate à Pesca Fantasma (GGGI, por suas siglas em inglês), que desde 2015 reúne países e organizações no combate a essa prática, o fenômeno Maré Fantasma (ou Pesca Fantasma) refere-se a todo e qualquer petrecho de pesca (redes de emalhar, redes de arrasto, varas, linhas, anzóis, espinhéis etc.) que são aban-donados ou perdidos nos oceanos. Os motivos são vários e vão desde material encontrado seja por perda, intempéries marítimas, tormentas ou pesca noturna, até o ato irresponsável de descarte do material para se esquivar de fiscalizações de alto mar e portuárias no combate à pesca ilegal.

De acordo com o relatório, os filamentos de plástico deste material são ultrarresistentes, chegando muitas vezes a uma resistência mecânica 10 vezes maior que a do próprio aço, e a serem utilizados como matéria prima de coletes à prova de bala. Atualmente, eles representam 70% do peso de todo o lixo contido no mar, o equivalente a 640 mil tons de petrechos.

As embalagens representam cerca de 40% de todos os plásticos que usamos no mundo. Quando o plástico é usado e se torna obsoleto, passa a apresentar uma qualidade muito inferior e se torna mais difícil de trazê-lo de volta ao estado original pois contém aditivos, à princípio, colocados para evitar que se oxidem durante sua vida útil. Não há uma resposta para todas as necessidades de embalagem, cada produto requer diferentes propriedades do material, as quais precisam ser avaliadas para se encontrar a correspondente correta. Mas é crescente a demanda por embalagens sustentáveis e certamente isso levará a um crescimento na participação do mercado de embalagens renováveis e compostáveis.

Outras iniciativas que lidam com a poluição plástica dos oceanos e a pesca fantasma marcaram presença no evento: o Instituto Oceanográfico da USP, o Senac Alagoas, Positiva, Meu Copo Eco e MentaH. Se o desperdício de alimentos fosse um país, seria o 3º maior em emissão de GEE.

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A crise mundial da poluição por plásticos só vai piorar a menos que todos os atores da cadeia de valor dos plásticos se responsabilizem pelo custo real do material para a natureza e para as pessoas, alerta um relatório do WWF (Fundo Mundial para a Natureza) publicado hoje. O novo estudo “Solucionar a Poluição Plástica: Transparência e Responsabilização”, reforça a urgência de um acordo global para conter a polui-ção por plásticos. A proposta desse acordo global será votada na Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEA-4), a ser realizada em Nairóbi, no Quênia, de 11 a 15 de Março próximo. Segundo o estudo do WWF, mais de 104 milhões de toneladas de plástico irão poluir nossos ecossistemas até 2030 se nenhuma mudança acontecer na nossa relação com o material.

Neste mês (Fevereiro), o WWF lançou uma petição para pressionar os líderes globais a defenderem esse acordo legal-mente vinculativo sobre a poluição dos plásticos marinhos na UNEA-4, que até agora atraiu 200.000 assinaturas em todo o mundo. Para participar da petição, acesse: http://bit.ly/OceanoSemPlastico

Segundo o estudo lançado pelo WWF, o volume de plástico que vaza para os oceanos todos os anos é de aproximadamente 10 milhões de toneladas, o que equivale a 23 mil aviões Boeing 747 pousando nos mares e oceanos todos os anos – são mais de 60 por dia. Nesse ritmo, até 2030, encontraremos o equivalente a 26 mil garrafas de plástico no mar a cada km2, revela o estudo conduzido pelo WWF.

“Nosso método atual de produzir, usar e descartar o plástico está fundamentalmente falido. É um sistema sem responsabilidade, e atualmente opera de uma maneira que praticamente garante que volumes cada vez maiores de plástico vazem para a natureza”, afirma Marco Lambertini, Diretor-Geral do WWF-Internacional.

Brasil é o 4º país do mundo que mais gera lixo plástico

Mauricio Voivodic | Diretor Executivo do WWF-Brasil

De acordo com o estudo: “O plástico não é inerentemente nocivo. É uma invenção criada pelo homem que gerou bene-fícios significativos para a sociedade. Infelizmente, a maneira com a qual indústrias e governos lidaram com o plástico e a maneira com a qual a sociedade o converteu em uma conve-niência descartável de uso único transformou esta inovação em um desastre ambiental mundial. Aproximadamente metade de todos os produtos plásticos que poluem o mundo hoje foram criados após 2000. Este problema tem apenas algumas décadas e, ainda assim, 75% de todo o plástico já produzido já foi descartado”.

O Brasil, segundo dados do Banco Mundial, é o 4º maior produtor de lixo plástico no mundo, com 11,3 milhões de toneladas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia. Desse total, mais de 10,3 milhões de toneladas foram coletadas (91%), mas apenas 145 mil toneladas (1,28%) são efetivamente recicladas, ou seja, reprocessadas na cadeia de produção como produto secundário. Esse é um dos menores índices da pesquisa e bem abaixo da média global de recicla-gem plástica, que é de 9%.

Mesmo parcialmente passando por usinas de reciclagem, há perdas na separação de tipos de plásticos (por motivos como estarem contaminados, serem multicamadas ou de baixo valor). No final, o destino de 7,7 milhões de toneladas de plástico são os aterros sanitários. E outros 2,4 milhões de toneladas de plástico são descartados de forma irregular, sem qualquer tipo de tratamento, em lixões a céu aberto. O levantamento do WWF com base nos dados do Banco do Mundial analisou a relação com o plástico em mais de 200 países, e apontou que o Brasil produz, em média, aproximadamente 1 quilo de lixo plástico por habitante a cada semana.

É hora de mudar a maneira como enxergamos o problema: há um vazamento enorme de plástico que polui a natureza e ameaça a vida. O próximo passo para que haja soluções concretas é trabalharmos juntos por meio de marcos legais que convoquem à ação os responsáveis pelo lixo gerado. Só assim haverá mudanças urgentes na cadeia de produção de tudo o que consumimos.

A poluição do plástico afeta a qualidade do ar, do solo e sistemas de fornecimento de água. Os impactos diretos estão relacionados a não regulamentação global do tratamento de resíduos de plástico, ingestão de micro e nanoplásticos (invisível aos olhos) e contaminação do solo com resíduos. A queima ou incineração do plástico pode liberar na atmosfera gases tóxicos, alógenos e dióxido de nitrogênio e dióxido de enxofre, extremamente prejudiciais à saúde humana. O descarte ao ar livre também polui aquíferos, corpos d’água e reservatórios, provocando aumento de problemas respiratórios, doenças cardíacas e danos ao sistema nervoso de pessoas expostas.

AFP

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Na poluição do solo, um dos vilões é o microplástico oriundo das lavagens de roupa e o nanoplástico da indústria de cosméticos, que são filtrados pelo sistema de tratamento de água das cidades e acidentalmente usados como fertilizante, em meio ao lodo de esgoto. Quando não são filtradas, essas partículas acabam lançadas no ambiente, ampliando a conta-minação. Micro e nanoplásticos vêm sendo ainda consumidos por humanos via ingestão de sal, pescados, principalmente mariscos, mexilhões e ostras. Estudos indicam que 241 em cada 259 garrafas de água também estão contaminadas com microplásticos. Apesar de alarmante, ainda são pouco conhe-cidos os impactos desta exposição humana, a longo prazo.

Apesar de haver poucos estudos sobre o impacto da ingestão de plástico por seres humanos e outras espécies de animais, a Organização Mundial de Saúde declarou, em 2018, que entender os efeitos do microplástico na água potável é um passo importante para dimensionar o impacto da poluição de plásticos em humanos. O estudo do WWF também aponta as possíveis soluções e caminhos capazes de estimular a criação de uma cadeia circular de valor ao plástico. Pensados para cada elo do sistema, que envolve a produção, consumo, des-carte, tratamento e reúso do plástico, os cuidados necessários propostos oferecem uma orientação para os setores público e privado, indústria de reciclagem e consumidor final, de modo que todos consumam menos plástico virgem (o plástico novo) e estabeleçam uma cadeia circular completa.

Os principais pontos da proposta:

• Cada produtor ser responsável pela sua produção de plástico – O valor de mercado do plástico virgem não é real, pois não quantifica os prejuízos causados ao ambiente e não considera investimentos em reúso ou reciclagem. São necessários meca-nismos para garantir que o preço do plástico virgem reflita seu impacto negativo na natureza e na sociedade, o que incentivaria o emprego de materiais alternativos e reutilizados.

• Zero vazamento de plástico nos oceanos – O custo da reci-clagem é afetado pela falta de coleta e por fatores como lixo não confiável, ou seja, misturado ou contaminado. As taxas de coleta serão maiores se a responsabilidade pelo descarte correto for colocada em empresas produtoras dos produtos de plástico e não apenas no consumidor final, uma vez que serão encorajadas a buscar materiais mais limpos desde seu design até o descarte.

• Reúso e reciclagem serem base para o uso de plástico – A reciclagem é mais rentável quando o produto pode ser rea-proveitado no mercado secundário. Ou seja, o sucesso desse processo depende de que valor esse plástico é negociado e seu volume (que permita atender demandas industriais). Preço, em grande parte, depende de qualidade do material, e essa qualidade pode ser garantida quando há poucas impurezas no plástico, e quando ele é uniforme – em geral, oriundo de uma mesma fonte. Um sistema de separação que envolva as empresas produtoras do plástico ajuda a viabilizar esta uni-formidade e volume, ampliando a chance de reúso.

• Substituir o uso de plástico virgem por materiais recicla-dos – Produtos de plástico oriundo de uma única fonte e com poucos aditivos reduzem os custos de gerenciamento desses rejeitos e melhoram a qualidade do plástico para uso secundário. Por isso o design e o material de um produto são essenciais para diminuir esse impacto, e cabe às empresas a responsabilidade por soluções.

Brasil e biodiversidade

Reduzir o consumo de plástico resulta em mais opções de materiais que sirvam como opção ao plástico virgem, garantindo que seu preço reflita plenamente seu custo na natureza e, assim, desencorajando o modelo de uso único. “Criar uma cadeia circular de valor para o plástico requer melhorar os processos de separação e aumentar os custos por descarte, incentivando o desenvolvimento de estruturas para o tratamento de lixo”, afirma Gabriela Yamaguchi, Diretora de Engajamento do WWF-Brasil.

Estima-se que os resíduos plásticos existentes nos solos e rios seja ainda maior do que nos oceanos, impactando a vida de muitos animais e contaminando diversos ecossistemas, abrangendo agora os quatro cantos do mundo – inclusive a Antártida.

“No Brasil, a maior parte do lixo marinho encontrado no litoral é plástico. Nas últimas décadas, o aumento de con-sumo de pescados aumentou em quase 200%. As pesquisas realizadas no país comprovaram que os frutos do mar têm alto índice de toxinas pesadas geradas a partir do plástico em seu organismo, portanto, há impacto direto dos plásticos na saúde humana. Até as colônias de corais – que são as ‘flores-tas submarinas’ – estão morrendo. É preciso lembrar que os oceanos são responsáveis por 54,7% de todo o oxigênio da Terra”, afirma Anna Carolina Lobo, Gerente do Programa Mata Atlântica e Marinho do WWF-Brasil.

Criado como uma solução prática para a vida cotidiana e difundido na sociedade a partir da segunda metade do século 20, o plástico há muito vem chamando atenção pela polui-ção que gera, uma vez que o material, feito principalmente a partir de petróleo e gás, com aditivos químicos, demora aproximadamente 400 anos para se decompor plenamente na natureza. Estimativas indicam que, desde 1950, mais de 160 milhões de toneladas de plástico já foram depositadas nos oceanos de todo o mundo. Ainda assim, estudos indicam que a poluição de plástico nos ecossistemas terrestres pode ser pelo menos quatro vezes maior do que nos oceanos.

Os principais danos do plástico à natureza podem ser listados como estrangulamento, ingestão e danos ao hábitat. O estrangulamento de animais por pedaços de plástico já foi registrado em mais de 270 espécies animais, incluindo mamífe-ros, répteis, pássaros e peixes, ocasionando desde lesões agudas e até crônicas, ou mesmo a morte. Esse estrangulamento é hoje uma das maiores ameaças à vida selvagem e conservação da biodiversidade. A ingestão de plástico já foi registrada em mais de 240 espécies. A maior parte dos animais desenvolve úlceras e bloqueios digestivos que resultam em morte, uma vez que o plástico muitas vezes não consegue passar por seu sistema digestivo.

Peso na economia

A poluição por plástico gera mais de US$ 8 bilhões de prejuízo à economia global. Levantamento do PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente –, aponta que os principais setores diretamente afetados são o pesqueiro, comércio marítimo e turismo. Enquanto o lixo plástico nos oceanos prejudica barcos e navios utilizados na pesca e no comércio marítimo, o plástico nas águas vem reduzindo o número de turistas em áreas mais expostas, como Havaí, Ilhas Maldivas e Coréia do Sul.

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No início deste mês (Fevereiro), deputados Democratas de esquerda no Congresso dos Estados Unidos, liderados por Alexandria Ocasio-Cortez, militante dos Socialistas Democráticos da América, lançou junto com o Senador Ed Markey o projeto que denominam Green New Deal (GND), um programa alternativo para que um futuro governo dos EUA forneça serviços públicos adequados em educação e saúde, além de lidar com o aquecimento global e a poluição ambiental. Eles afirmam que o financiamento do GND, que é um programa de governo necessário para ser implementado se forem aplicadas as conclusões políticas da Modern Monetary Theory (MMT) pós-keynesiana.

O Green New Deal é uma proposta para mudar as priori-dades da política econômica e social em favor dos trabalhadores nos Estados Unidos, pela primeira vez desde o New Deal da década de 1930. O GND quer estabelecer um serviço nacional de saúde gratuita para todos no local de uso, como existe na maior parte da Europa Ocidental e outras economias capi-talistas avançadas. Quer introduzir a educação universitária gratuita e acabar com a pesada carga dos empréstimos para os estudantes o que asfixia a classe trabalhadora.

Green New Deal e o impacto econômico nos EUA

Michael Roberts | Economista marxista britânico, editor do blog The Next Recession

Também quer criar postos de trabalho com salários dignos para projetos ecologicamente racionais mediante o investimento público. Um programa deste tipo pode ser modesto, mas enfrentará uma forte oposição do capital estadunidense.

No preâmbulo do Green New Deal se assinala que “as mobilizações lideradas pelo Governo Federal durante a Segunda Guerra Mundial e a era do New Deal criaram a maior classe média que os EUA já viram” e define o GND como “uma oportunidade histórica para criar milhões de empregos decentes com bons salários nos Estados Unidos”.

De todos os projetos do GND, a prioridade é o investimento em “projetos e estratégias” definidos pela comunidade para aumentar a resiliência. A segunda proposta é a melhora das infraestruturas junto com “uma distribuição da propriedade e rentabilidade do investimento, acesso adequado ao capital (incluindo subvenções à comunidade, bancos públicos e outras formas de financiamento público), conhecimentos técnicos, políticas de apoio e outras formas de assistência às comunidades, organizações, agências governamentais federais, estatais e locais, e as empresas que trabalharem na mobilização do Green New Deal”.

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A congressista de Nova York Alexandria Ocasio-Cortez e o Senador de Massachusetts Ed Markey apresentando o Green New Deal

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Como se trata de um “Novo Acordo” como o da década de 1930, mas desenhado para o Século 21, para reativar o investimento público, os benefícios devem reverter em favor dos cidadãos. O GND conclama os EUA a “atingir 100% da nossa demanda de energia através de fontes limpas, renováveis e não contaminantes”.

O Green New Deal propõe também o que chama de “aspi-rações”, como “garantir um trabalho com salário suficiente para manter a família, permissões de incapacidade, férias pagas e aposentadoria garantida para todas as pessoas nos EUA”. Em outras palavras, a garantia de emprego promovida pelos entu-siastas da MMT. E mais direitos para os sindicatos: “fortalecer e proteger o direito de todos os trabalhadores a se organizar, sindicalizar e negociar coletivamente livres de coerção, inti-midação e acosso”. Outra aspiração chave é “proporcionar a todos os membros da sociedade um sistema sanitário de alta qualidade, moradia acessível, segura e adequada, segurança econômica e acesso a água e ar limpos, alimentos saudáveis e acessíveis e ao desfrute da natureza”.

Dessa forma, o GND significa uma garantia federal de trabalho, o direito à sindicalização, medidas contra o livre comércio e os monopólios, moradia e atenção sanitária uni-versal. Na Europa e outras economias capitalistas avançadas, estas aspirações não são tão radicais (ainda que no mundo neoliberal o seja cada vez mais), mas nos EUA de Trump, onde os interesses corporativos pesam enormemente e o inimigo principal neste momento é o “socialismo”, então, o projeto Green New Deal é um anátema.

Mas, não somente Trump e Wall Street ficaram indignados e horrorizados perante as propostas do GND. Muitos key-nesianos ortodoxos se preocuparam. Noah Smith, colunista keynesiano da Bloomberg, soltou um berro de angústia porque calcula que o GND, “sem dúvida parece que inclui: 1) uma atenção sanitária universal paga pelas medidas da MMT; 2) trilhões de dólares para infraestruturas pagas também pela MMT; 3) segurança econômica para aqueles que ‘não querem trabalhar’, pagos pela MMT e deixa claro que, em última instância, se trata de déficits que seriam pagos pelo GND. Como justificação, aponta às ideias básicas da MMT”.

Smith está horrorizado porque considera que as “boba-gens” da MMT minam completamente os objetivos do GND. Quer que os Democratas de esquerda optem entre as políticas baseadas no trabalho e as políticas da redistribuição.

Parece que Alexandria Ocasio-Cortez e outros promoto-res do projeto Green New Deal pensam que a MMT pode justificar e explicar de onde sairá o dinheiro para pagar todas essas “aspirações” e o investimento público necessário. Por exemplo, perguntaram à conhecida economista condutora do MMT, Stephanie Kelton: “Podemos nos permitir um #GreenNewDeal? E ela respondeu: “Sim, o Governo Federal pode se permitir o luxo de comprar na sua própria moeda o que está à venda”.

O financiamento do GND, parece, que pode se conseguir se o governo investe o dinheiro necessário, mediante o déficit e a ‘impressão’ da quantidade de moeda requerida. Outros meios de ingressos, como os impostos, vêm despois (no seu caso), e a emissão de bônus do Governo não é necessária para que os lares ou as instituições financeiras comprem.

Que é o que não funciona? Bem, a Modern Monetary Theory é uma nova versão do “ardil da circulação” (Marx) que faz caso omisso de todo o circuito do dinheiro, que vai desde o investimento do capital até a produção de lucros e mais dinheiro. A MMT afirma que podemos começar sim-plesmente com a impressão de dinheiro pelo Estado e que todo fluirá: mais investimento, mais produção, mais ingressos, mais emprego; como se as relações sociais do capitalismo fossem irrelevantes.

A MMT conseguirá pleno emprego com salários dignos, saúde, educação e outros serviços públicos, sem interferir nos grandes bancos, as multinacionais, as grandes companhias farmacêuticas e Wall Street. Porque como o Estado controla o dinheiro (o dólar), então é todo-poderoso frente aos Gold-man Sachs, Bank of America, Boeing, Caterpillar, Amazon, Walmart, etc.

Aí está o perigo da MMT como argumentação teórica e política para o investimento e o déficit público. Mesmo que não seja necessário adotar a MMT para aplicar o programa do GND. Há muitas formas de tratar as despesas.

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Em primeiro lugar, a redistribuição das despesas federais e a dos Estados nos EUA. A despesa militar e em defesa é quase de US$ 700 bilhões anuais, quase 3,5% do PIB do país. Se aplicassem em projetos de investimento civis para a mudança climática e o meio ambiente e os que trabalham no setor de armamento usassem suas habilidades para este tipo de projeto, se percorreria um longo caminho para cumprir com as aspirações do GND. Uma mudança deste tipo provocaria a indignação do complexo financeiro e industrial militar e não poderia se realizar sem limitar seu poder político.

A redistribuição do ingresso e da riqueza a través de impostos progressivos para aumentar as entradas para um maior gasto público voltado para as necessidades da maioria é outro problema. A Administração Trump fez grandes cortes fiscais para os muito ricos e as grandes corporações e incentivou e permitiu a transferência de seus lucros para paraísos fiscais de todo o mundo, até um equivalente de 1-3% do PIB dos EUA.

Assim que a proposta de Alexandria Ocasio-Cortez e de outros democratas de esquerda de aumentar a taxa impositiva máxima a 70%, junto com a ideia da senadora Democrata Elizabeth Warren de aplicar um imposto ao patrimônio dos ativos dos muito ricos, é outra direção a seguir. Esta última medida poderia arrecadar até US$ 275 bilhões ao ano. Eviden-temente, estas medidas só arranham a superfície da grotesca desigualdade do ingresso e da riqueza nos EUA. O expert em desigualdade fiscal Gabriel Zucman reconhece que o imposto de Warren sobre o patrimônio elevaria a carga efetiva total da cúpula superior mais rica do 3,2% ao 4,3% líquido. Esta carga tributaria seguiria sendo inferior à carga média de 7,2% do valor pago pela maioria dos estadunidenses.

O problema é o já alto nível de desigualdade na riqueza e na entrada antes dos impostos: os EUA e o Reino Unido têm o maior nível de desigualdade das economias avançadas e, apesar de suas cargas tributárias e transferências reduzirem conside-ravelmente a desigualdade, seguem sendo as maiores.

As economias escandinavas têm grandes desigualdades, mas redistribuem mais, e acabam tendo os mais baixos níveis de desigualdade. Mas, para mudar as coisas de verdade em relação à desigualdade se requereria uma mudança na estrutura da economia, isto é, do capitalismo. Warren, um partidário do capitalismo, não quer isso. Em cambio, outros esquerdistas querem, igualmente (Joe Stiglitz), pôr fim à “manipulação” da economia em favor dos ricos e dos grandes monopólios.

A verdadeira maneira de encontrar o financiamento neces-sário para levar a cabo o programa do GND seria repartir mais ingressos através de um crescimento econômico mais rápido. Trump se gabou de que seu governo obteve um crescimento do PIB real de 4% anual por causa dos cortes de impostos e incentivos para o mercado de valores. Evidentemente, era uma fanfarronada. No final de 2018, o crescimento do PIB real dos EUA atingiu o máximo de 3% no último trimestre e se prevê uma rápida desaceleração (inclusive se a economia evitar uma recessão). O prognóstico em longo prazo para o crescimento econômico dos EUA realizado pela Junta do Congresso é somente de 1,7% anual. Por isso, os cortes de Trump aos impostos dos ricos já criaram crescentes déficits anuais no orçamento federal; algo do qual não necessitam se preocupar, segundo Trump e os partidários da MMT.

Estou em dívida com Scott Fullwiler, importante MMT no Instituto Levy, por destacar num comentário que os exper-tos da MMT simularam suas próprias projeções do custo de obter o pleno emprego com salários acima dos US$ 15 a hora e acreditam que aumentaria o déficit federal num 1,0-1,5% do PIB ao ano durante os próximos dez anos, sem incorrer em nenhum aumento significativo da inflação.

Quero que fique claro: os democratas de esquerda e os partidários da MMT não se equivocam ao defender medidas que realmente ajudem a “muitos” nos Estados Unidos. Mas, em minha opinião, seria uma ilusão pensar que o Green New Deal pode ser implementado, inclusive exclusivamente em termos econômicos, seguindo simplesmente a doutrina da MMT e imprimindo os dólares necessários. Sim, o Estado pode imprimir tanto quanto quiser, mas o valor de cada dólar na criação de bens de produção não pode ser controlado pelo Estado no modo de produção capitalista. Que acontece quando os lucros diminuem e se produz uma queda dos investimentos do setor capitalista? O crescimento e a inflação ainda dependem das decisões do capital, não do Governo. Se os capitalistas não investem (e exigirão que esse investimento seja rentável), não bastará só com os investimentos públicos.

Mesmo admitindo que as projeções da MMT/Levy sejam corretas e factíveis, não resultariam no que produziria multiplicar por dois a taxa de crescimento sustentável dos EUA, que equivaleria a mais de US$ 750 bilhões ao ano. Isso significaria triplicar o crescimento do investimento, mesmo se fosse só uma parte disso durante mais de uma década, e cumprindo com folga as necessidades de financiamento do GND. Uma taxa de crescimento semelhante é impossível de atingir sem uma mudança substancial na estrutura econômica dos Estados Unidos. Não pode acontecer quando 80% de todo o investimento procede do setor capitalista e está con-dicionado “à rentabilidade do capital”.

O Green New Deal só é possível se 80% dos setores produtivos da economia se socializarem e se integrarem em planos federais, estatais e locais de investimentos e produção. Esta espinhosa questão não pode e não deve ser ignorada pelos partidários da Modern Monetary Theory.

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Naomi Klein é a autora dos best-sellers “Não basta dizer não”, “Cercas e janelas”, “A Doutrina do Choque” e “Sem Logo”. Ela é membro do conselho de diretores do grupo inter-nacional de ação contra o clima 350.org. E é correspondente sênior do Intercept, colaboradora do The Nation, e da Gloria Steinem Chair em Mídia, Cultura e Estudos Feministas na Rutgers University.

Como você descreveria a proposta do Green New Deal lançada por Alexandria Ocasio-Cortez e Ed Markey?

É um plano abrangente para transformar radicalmente a forma como obtemos energia, como nos movimentamos, vivemos nas cidades, cultivamos nossa comida; e coloca a justiça no centro da problemática – a justiça é amplamente definida, desde a justiça racial e de gênero até garantir que nenhum trabalhador seja deixado para trás, combatendo a desigualdade em todos os níveis. É realmente sobre mul-titarefa. É sobre entender que estamos num momento de múltiplas crises sobrepostas, e que estamos com um prazo incrivelmente apertado quando se trata de reduzir as emissões de gases de Efeito Estufa a tempo de evitar o aquecimento verdadeiramente catastrófico. A fim de trazer as pessoas junto com essas mudanças necessárias, tem que haver benefícios no aqui e agora em termos de que tipos de empregos que são oferecidos e da justiça que virá com eles.

Como você já mencionou, o projeto Green New Deal não é uma questão que será resolvida apenas por meio das eleições. O que você quer dizer com isso?

Em termos de ganhar o poder de introduzir um pacote tão ambicioso quanto a proposta, o único precedente histórico real é o New Deal original. E a dinâmica política que produziu o New Deal original não veio um político benevolente que entregou reformas de cima para baixo através da bondade de seu coração. É claro que importava ter um Presidente como Franklin Delano Roosevelt no poder em vez de um como Herbert Hoover, mas importava ainda mais ter uma população organizada que estivesse exercendo seus músculos de todas as maneiras concebíveis nos anos 1930 – desde greves nas fábricas de automóveis até o fechamento dos portos na Costa Oeste, para fechar cidades inteiras com greves gerais.

O Green New Deal está alterando as bases do possível

Jon Wiener | Editor colaborador de The Nation

E importava também ter vozes mais radicais ainda, que pediam políticas mais radicais do que o New Deal oferecia, como uma economia verdadeiramente cooperativa. Tudo isso criou um contexto em que Roosevelt conseguiu vender o New Deal às elites. Eles estavam relutantes sobre isso, mas a alternativa parecia ser uma revolução política.

Então, a única maneira de acontecer algo assim é se for acompanhada por uma enorme mobilização de base, onde cada local de trabalho, cada setor, cada movimento está per-guntando: “O que um Green New Deal significa para nós? O que isso significaria no nosso local de trabalho? O que significaria para os grupos que representamos?” Se quisermos ter sucesso, eles precisam fazer isso por conta própria. Então, vai ser preciso muita organização de base, mobilizando todos esses setores para realmente acreditar que o Green New Deal vai melhorar suas vidas, levando políticos em todos os níveis de governo, inclusive para presidente, a concorrerem com uma promessa de promulgar isso no primeiro dia.

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Entrevista com Naomi KleinJornalista, escritora e ativista canadense

Naomi Klein

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Construir o poder político, você afirmou, é sobre como mudar o cálculo do que é possível. Isso é um grande obstáculo. Vimos isso numa coluna de Gail Collins no The New York Times na semana passada. Ela argumentou que o Green New Deal é muito abrangente e, em vez disso, devemos concentrar nossos esforços em coisas mais gerenciáveis, como criar mais capacidade de geração elétrica a partir de energia solar e eólica. Não é exatamente contrário ao Green New Deal, mas certamente não está ajudando.

Existe essa ideia de que uma política mais incremental focada apenas no clima seria mais vendável – algo que não fala sobre a luta contra a desigualdade, um enorme programa de empregos e serviços de saúde para todos. Mas o que real-mente atrapalhou uma política climática forte no passado foi o fato de que, em tempos de estresse econômico real, como os que vivemos, as pessoas frequentemente classificam o clima abaixo dos serviços de saúde e de empregos. Muitas vezes, ocupa o último lugar na lista de prioridades políticas. E é por isso que os políticos sempre acham que isso pode ser sacrificado. Obama fez isso. Ele olhou para as pesquisas e priorizou os cuidados com a saúde. E quando isso levou a uma enorme quantidade de retrocessos, ele não investiu em uma política de descarbonização – embora isso fosse total-mente inadequado.

E a outra coisa que fica no caminho quando os políticos realmente introduzem as políticas climáticas é que, se eles não priorizarem a justiça social, as propostas são ativamente injustas. Por exemplo, o presidente neoliberal Emmanuel Macron na França, decretou um corte de impostos para os muito, muito ricos ao mesmo tempo em que implementou uma nova taxação de carbono que aumentou o custo de vida dos trabalhadores. Então gerou revoltas e tumultos nas ruas, lideradas pelo movimento dos Coletes Amarelos – precisa-mente porque, como disse um dos manifestantes, “os políticos se importam com o fim do mundo quando nós temos que nos preocupar com o fim do mês”. Eu acho que o brilho da estrutura do Green New Deal é que não exige que as pessoas escolham. Diz: “Todos nós nos importamos com o fim do mundo, mas também nos preocupamos com o final do mês. Então como nós podemos desenvolver políticas que possam simultaneamente baixar as emissões e as tensões econômicas?”. E é exatamente isso que eles estão tentando fazer.

Tem havido oposição à legislação sobre mudanças climáticas do Sindicato dos Trabalhadores Internacionais e de alguns setores da construção civil. Mas um dos sindicatos que tem sido muito bom nisso é a União Canadense dos Trabalha-dores dos Correios.

Eu estive envolvida num projeto no Canadá chamado Leap Manifesto, que é a versão do nosso povo de um Green New Deal, para se livrar dos combustíveis fósseis urgentemente e colocar justiça e proteção trabalhista no centro do debate. Após o lançamento do Leap Manifesto, nossa equipe trabalhou com esse sindicato, a pedido deles, para elaborar um plano e aplicar os princípios do Leap Manifesto aos Correios – que, naquele momento, enfrentavam uma perspectiva muito real de serem privatizados e radicalmente reduzidos.

Então, em vez de apenas dizer: “Queremos manter as coisas como estão, apesar do fato de que a forma como tendemos a enviar correspondências foi radicalmente alterada pela Amazon e pelos serviços de correio”, eles disseram: “Queremos mudar esse serviço que há muito tempo tem uma importância central para as comunidades e queremos estar agora no centro de uma transição dos combustíveis fósseis. Queremos ter serviços bancários postais, queremos ter painéis solares nos telhados de todos os correios, queremos uma estação de carregamento lá fora, queremos uma frota de veículos que sejam todos elétricos e todos produzidos internamente, e queremos não apenas entregar o correio, mas também entregar alimentos cultivados localmente, dar assistência aos idosos, queremos fazer parte de uma economia solidária”.

É um plano radical que está sendo defendido por um sindicato descaradamente progressista. E voltando para onde começamos, é isso que significa fazer o Green New Deal com as próprias mãos. Precisamos que as pessoas de todos os locais de trabalho estejam organizadas e imaginem como seria seu local de trabalho se levassem a descarbonização a sério. E perguntando como isso poderia melhorar suas vidas? Como isso poderia levar a uma economia mais justa?

Pela primeira vez, com o Green New Deal, vejo um cami-nho para a política mundial claro e crível, que poderia nos levar em segurança a um lugar no qual os piores resultados climáticos são evitados e um novo pacto social é forjado, o que é radicalmente mais humano do que qualquer coisa atualmente em oferta.

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Precisamos entender a natureza e a gravidade da crise coletiva que confronta agora a civilização humana se quiser-mos responder às questões que ela coloca. Se não frearmos e revertermos em breve a nossa atual trajetória descontrolada de mudanças climáticas, degradação ambiental e perda generalizada da biodiversidade, a economia global vai sofrer consequências negativas por conta própria.

Não é “salvar o Planeta” que vai matar o crescimento. Ao contrário, a destruição acelerada da natureza vai minar não apenas a economia global, mas poderia eventualmente ameaçar muitas formas de vida na Terra, incluindo a nossa própria espécie.

O consenso científico sobre esse fato é praticamente universal – e suas implicações econômicas negativas também estão ficando cada vez mais claras. Um paralelo pode ser tra-çado com uma crise anterior. Durante o auge da Guerra Fria, quando os conselheiros econômicos do então Presidente dos Estados Unidos, Dwight D. Eisenhower, foram informá-los sobre o impacto potencial de uma guerra nuclear sobre o dólar dos Estados Unidos, dizem que ele teria dito: “Esperem um minuto, rapazes, (caso haja uma guerra nuclear) não estare-mos reconstruindo o dólar. Estaremos escavando a terra em busca de minhocas”.

Embora as mudanças climáticas possam parecer que estão ocorrendo num período de tempo mais longo, em escala geológica elas estão acontecendo num piscar de olhos. Por mais importante que seja o crescimento econômico, a dura realidade é que, como Eisenhower, se não impedirmos essa crise, nós provavelmente estaremos preocupados com coisas distintas do crescimento econômico.

Um planeta e uma economia saudáveis andam juntos

Cristiana Pasca Palmer | Secretária-Executiva da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica

A questão fundamental, portanto, é como salvar o Planeta e, com ele, a economia, dessa crise de gerações, dados os incentivos extremamente de curto prazo das nossas principais instituições – as corporações e os governos em especial, que funcionam respectivamente à base dos lucros trimestrais e dos resultados das próximas eleições, mas também o público global, que está corretamente preocupado com suas próprias vidas e meios de subsistência.

Como podemos incentivar as lideranças a tomar decisões de longo prazo para o benefício comum da humanidade? Como podemos educar e ativar o público global para enten-der e fazer parte dessa luta? E como podemos reimaginar a economia, de modo que as oportunidades da transição verde não sejam apenas realizadas, mas distribuídas de maneira mais igual entre as pessoas, em vez de levar a uma desigualdade e instabilidade ampliadas? Simplificando, como podemos garantir o nosso próprio futuro e o do Planeta?

Três caminhos para a ação se destacam:1) Desenvolver indicadores mais holísticos que expliquem

melhor o crescimento econômico, junto com métricas mais amplas sobre o bem-estar humano e ambiental.

2) Incentivar todos os atores na economia a mudar os atuais caminhos de inovação e popularizar as transições ambientais necessárias para os seus principais modelos de negócios.

3) Uma liderança sábia que possa tanto mapear uma nova visão para viver em harmonia com a natureza quanto inspirar um compromisso compartilhado para alcançá-la.

Que o Produto Interno Bruto (PIB) tem falhas como uma medida do bem-estar humano, isso já é amplamente reconhecido por economistas.

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Falta de indicadores ambientais

Muitas dessas falhas estão relacionadas à falta de indi-cadores ambientais que apontem os benefícios associados da saúde humana, segurança alimentar e hídrica e a economia. Além disso, ecossistemas saudáveis oferecem serviços que, em muitos casos, têm valor econômico significativo.

Por exemplo, mais de três quartos das principais culturas alimentares globais dependem da polinização por insetos ou animais. Entre 5 e 8 por cento da produção agrícola global, com um valor anual de mercado entre 235 e 577 bilhões de dólares, é diretamente atribuível à polinização natural. No entanto, os polinizadores estão sob grave ameaça, e pode-se esperar que isso leve a perdas econômicas significativas.

Aliás, em alguns casos, o desenvolvimento econômico pode ocorrer em detrimento de atividades econômicas informais, mas valiosas. Por exemplo, o uso comercial das florestas acontece frequentemente em detrimento da coleta de recursos florestais não madeireiros, que variam da lenha até fontes tradicionais de alimentos. Nesses casos, o crescimento econômico resultante, como formalmente mensurado, por exemplo, numa mudança para a extração madeireira, pode não apenas ser socialmente injusto, ter um viés de gênero e ser prejudicial para os povos indígenas e as comunidades locais, como também seria uma ilusão, devido à perda de recursos florestais não madeireiros.

Ademais, o valor total de florestas críticas, como a Bacia Amazônica, deve incluir tanto o seu papel crítico como tanques de carbono quanto na formulação do clima, que torna possível a agricultura e outras produções em lugares distantes.

Também precisamos reconhecer e explorar o vasto potencial para o crescimento econômico que resultará da ecoinovação que, ao mesmo tempo, protege o meio ambiente e avança o bem-estar humano.

De acordo com o relatório de 2017 da Comissão de Negócios e Desenvolvimento Sustentável, alcançar os Obje-tivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ODS) pode liberar 12 trilhões de dólares em oportunidades de mercado em quatro setores econômicos de central importância: alimentação e agricultura, cidades, energia e materiais e saúde e bem-estar. Esses setores repre-sentam em torno de 60 por cento da economia real – o que aponta, dessa forma, para as oportunidades econômicas sig-nificativas que se associam ao desenvolvimento de soluções baseadas na natureza.

O caminho à frente não será fácil ou sem custos. Realizar um novo pacto global para a natureza e o Planeta e fazer a transição para uma Economia Verde vão exigir o abandono dos caminhos de desenvolvimento existentes e a criação de alternativas viáveis para a infraestrutura fundamental da sociedade. Isso exigirá uma liderança visionária, a liberação das inovações verdes e a compensação das implicações de curto prazo, especialmente pelos que mais se beneficiaram dos atuais modos de desenvolvimento econômico.

No entanto, esse tipo de transição não é sem precedentes. Assim como a transição da Era Agrícola para a Era Industrial ou da Era Industrial para a Era Digital, o que se exige não é nada menos do que uma reimaginação e uma reconstrução graduais e integrais da sociedade, para satisfazer as necessi-dades de uma nova era.

Que tenhamos a força e a sabedoria para estar à altura desse desafio.

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A redução da perda da biodiversidade e a promoção do uso sustentável de recursos naturais é um compromisso global assumido por 140 nações signatárias da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). O tratado internacional tem relação com o 14º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que visa a adoção de medidas para preservar e usar de forma sustentável oceanos, mares e recursos marinhos até 2020. Contudo, diante da atual crise da biodiversidade, os objetivos são ousados.

Um dos temas mais debatidos recentemente está relacio-nado com a cobertura de Unidades de Conservação Marinhas (UCM). Estabelecer esse tipo de área é uma das melhores estratégias para a con-servação da biodiversidade e susten-tabilidade dos recursos marinhos, pois envolve o manejo em nível de ecossistema. Porém, um dos maiores desafios é criar e manejar UCMs em áreas prioritárias para a conservação, pois normalmente estas são áreas de alta biodiversidade e conflito de usos, onde diversas atividades humanas são praticadas. Ambientes costeiros como mangues, recifes de coral e costões rochosos são os mais vulneráveis.

A melhor estratégia para se reme-diar a perda da biodiversidade marinha seria focar na proteção do máximo de espécies ameaçadas e ecossistemas por área protegida. A conservação da biodiversidade e sustentabilidade dos recursos depende de unidades de conservação conecta-das e que abriguem, de forma homogênea, a diversidade de ecossistemas presentes ao longo da linha costeira.

O manejo pesqueiro e o controle da sobrepesca são vistos como um dos principais objetivos do ODS 14. Uma das estratégias é a valorização da pesca artesanal e o controle de atividades pesqueiras destrutivas, que causam danos aos ecossistemas e que não possuem seletividade nas capturas. Entretanto, muitos países, incluindo o Brasil, caminham em sentido contrário, criando subsídios para pesca industrial e removendo benefícios de pescadores de pequena escala.

Alternativas envolvem o estabelecimento de territórios tradicionais de pesca, onde somente pescadores locais possam pescar, o que tornaria mais fáceis o manejo e o controle do esforço de pesca. O ordenamento e a fiscalização da captura de espécies ameaçadas de extinção e tamanhos mínimos de capturas também são passos importantes para se atingir os objetivos. A poluição dos mares e o aquecimento global são problemas graves que estão chamando bastante a atenção da sociedade.

Hudson Pinheiro | Mestre em Oceanografia, doutor em Ecologia e Evolução, cientista da Academia de Ciências da Califórnia

Esperança e desafios para os ecossistemas marinhos

A ingestão de plásticos tem causado a morte de milhares de animais marinhos anualmente e o aquecimento dos oceanos tem causado o branqueamento e a morte de ecossistemas de coral em todo o mundo. Atividades portuárias desenvolvem dragagens periódicas e despejam toneladas de sedimento sobre os ambientes costeiros, soterrando grandes áreas de habitats naturais.

Em vez de aplicar leis mais restritivas, visando a qualidade de vida humana e saúde ambiental, países em desenvolvimento como o Brasil estão afrouxando as regras para empresas

poluidoras. Como consequência, impactos e desastres ambientais são frequentes, o que acelera a perda da biodiversidade e de oportunidades de desenvolvimento sustentável.

Apesar dos desafios, temos espe-rança. O grande número de nações comprometidas com os objetivos da Convenção sobre Diversidade Biológica é um considerável sinal positivo. Alguns países como Palau e Costa Rica estão dando exemplo de desenvolvimento sustentável e proteção da biodiversidade. Países em desenvolvimento, como Brasil, China e Filipinas, estão comprometidos em financiar iniciativas de proteção e

manejo dos ecossistemas costeiros.A participação de pescadores no manejo e na conservação

dos recursos marinhos tem gerado resultados positivos e o Projeto Tamar, no Brasil, é referência mundial nesse tema. Estados como Califórnia e São Paulo têm criado áreas marinhas protegidas ao longo de suas zonas costeiras com o potencial de desenvolvimento sustentável de atividades pesqueiras e turismo. Países e empresas estão investindo na proteção de ambientes costeiros, visando a diminuição de estragos causados por distúrbios ambientais, como tempestades e enchentes. Essas e outras iniciativas inspiradoras foram apresentadas recentemente no artigo “Hope and doubt for the world’s marine ecosystems”, publicado pelo periódico científico Perspectives in Ecology and Conservation.

Uma vez que grande parte da população vive perto da zona costeira, o investimento em educação ambiental é necessário para engajar a sociedade na luta para a manutenção de sua própria qualidade de vida e dos serviços ecossistêmicos pro-videnciados pelos oceanos. Cientistas, cidadãos e tomadores de decisão precisam trabalhar juntos para multiplicar essas iniciativas positivas e reforçar a esperança para a conservação e sustentabilidade da biodiversidade e ecossistemas marinhos no Brasil e no mundo.

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Uma equipe multidisciplinar do Fapesp Shell Research Centre for Gas Innovation (RCGI) está estudando microal-gas com potencial para a produção de bioprodutos a partir de gás carbônico e metano provenientes do gás natural. Os cientistas coletaram amostras na região da Baixada Santista (Cubatão e Guarujá) e isolaram 24 microalgas diferentes. Destas, quatro produziram tanto lipídios como biopolímeros. Sob a orientação da professora Elen Aquino Perpétuo, bióloga e coordenadora dos projetos 17 e 18 da Instituição, o grupo também está selecionando bactérias para a produção específica de PHB (um biopolímero de alto valor agregado) a partir de metanol.

“A pesquisa com as bactérias está um passo à frente, porque já sabe-mos quais são as mais promissoras na produção de PHB. No caso das microalgas, ainda estamos identifi-cando aquelas com maior potencial produtivo para dar o próximo passo, que é a otimização dessa produção”, resume Bruno Karolski, biólogo e aluno do Pós-doutorado em Enge-nharia Química na Escola Politécnica (POLI) da USP.

Segundo ele, a ideia inicial era usar o gás natural diretamente na cultura de microalgas para que o gás carbônico presente no gás natural fosse captado por elas, mas o grupo agora estuda se vale mais a pena separar o gás natural em CO2 e CH4 e ministrar às microalgas apenas o CO2.

“Das 24 microalgas que isolamos, quatro apresentaram rápido crescimento, alta concentração celular, produção de lipídios e também indícios de produção de PHB. Dessas quatro, identificamos três: duas cepas de Chlamydomonas sp., com características produtivas diferentes, mais a Didymogenes sp. Nossos dados preliminares indicam que para duas delas é possível obter esses bioprodutos concomitantemente, mas ainda não sabemos quais são as condições em que elas pro-duzem mais lipídios ou mais PHB. O que sabemos é que, ao colocar as quatro microalgas selecionadas nas mesmas condições, duas se destacam porque uma produz mais PHB e a outra mais lipídios”, afirma Karolski. Ele lembra também que os lipídios produzidos pelas microalgas, ácidos graxos de cadeia longa e com alto potencial energético, são úteis, por exemplo, para a fabricação de biodiesel.

Segundo Letícia Oliveira Bispo Cardoso, química e doutoranda no Programa de Pós-graduação Interunidades em Biotecnologia da USP, há relatos de produção eficaz de PHB por microalgas, porém apenas quando modificadas geneticamente.

Algas podem transformar os GEE em biomoléculas

Karina Ninni | Jornalista da Acadêmica Agência de Comunicação

“Em nosso caso, estamos explorando a diversidade de microalgas de um ambiente da Baixada Santista, visando encontrar as capazes de produzir PHB e também grandes concentrações de lipídios”, esclarece ela.

Bactérias e plástico

Os cientistas conseguiram extrair PHB produzido a partir de metanol de 5 das 180 cepas de bactérias com que trabalharam: Methylobacterium extorquens, Methylobac-

terium rhodesianum, Methylopila oligotropha, Methylobacterium radio-tolerans e Methylobacterium populi. “A Methylobacterium extorquens foi a que deu melhores resultados até agora: utilizando-se metanol como substrato, as bactérias chegaram a produzir 40% de PHB em 72 horas. A porcentagem de PHB é equivalente à relatada na literatura e agora estamos explorando maiores concentrações de oxigênio, testando agitação e diferentes con-centrações de metanol para ver se conseguimos otimizar essa produção”, diz Letícia. Os pesquisadores também relatam resultados bastante positivos com a Methylopila oligotropha. “Há

poucos relatos na literatura de produção de PHB com essa bactéria e, no entanto, conseguimos uma produção de 25% de PHB. Isso é bastante promissor”, ressalta Karolski.

Letícia salienta que não se produz muito PHB no mundo a partir de metanol, pois a fonte de carbono mais comum do PHB é o açúcar. Segundo ela, a oportunidade que a pesquisa possibilita, neste caso, é baratear a fonte de carbono para pro-dução de PHB. “O açúcar é uma matéria-prima cara para se fazer plástico e acaba afetando o valor final do biopolímero. Esse é um dos fatores economicamente relevantes que pode ajudar a ampliar a participação do PHB no mercado de plásticos, entre outros”, revela.

Karolski lembra que o RCGI tem projetos que visam à produção de metanol a partir de metano e dióxido de carbono. “Estamos tentando usar gases de efeito estufa (GEEs) para formar metanol e, a partir dele, produzir um plástico biodegra-dável. Assim, estaremos mitigando GEEs e, ao mesmo tempo, obtendo bioprodutos de alto valor agregado.” O grupo conta ainda com a bióloga e aluna de pós-doutorado em Engenharia Química na Poli, Louise Hase Gracioso, e com Bruna Bacaro Borrego, que está se graduando em Engenharia Ambiental na Unifesp. O professor Cláudio Augusto Oller do Nascimento também integra as equipes dos 17 e 18 do RCGI.

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Embora a ciência climática tenha avançado muito nos últimos anos – seja em modelagem ou na avaliação de riscos e impactos – parte da sociedade ainda põe em dúvida o conhecimento científico acumulado sobre o assunto. Essa situação sui generis tem sido observada no Brasil e em outros países que lideram as pesquisas na área.

Para piorar a situação, esse ceticismo ocorre no mesmo período em que o Painel Intergovernamental sobre Mudan-ças Climáticas (IPCC) da ONU alerta para a urgência de medidas para reduzir do ritmo das mudanças climáticas. “As mudanças climáticas são um dos maiores exemplos de como a ciência é importante para a sociedade. Porque foi a ciência que descobriu que esse fenômeno estava e está ocorrendo. Isso já há décadas”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, na abertura da reunião anual do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), realizada recentemente.

A reunião, que teve como proposta avaliar os 10 anos do programa, lançado em 2008, e propor novas abordagens, serviu também como reflexão para a importância da divul-gação científica e da alfabetização científica – mais conhecida pelo termo em inglês science literacy, que tem por objetivo disseminar o conhecimento e o método científico para a população em geral, sobretudo nas escolas.

“Precisamos de excelência na ciência e também na comunicação com a sociedade, que sofre os impactos desse fenômeno”, disse Brito Cruz. “Não é questão de opinião, é uma questão comprovada por pesquisa, medição, teste e verificação há muitos anos por cientistas em todo o mundo. O que eu percebo é que nós brasileiros, mas também cientistas americanos, franceses e ingleses, não estamos conquistando os corações e as mentes”, disse.

Reconquistar corações e mentes face às mudanças climáticas

Entre 2008 e 2018, a FAPESP investiu R$ 276 milhões em pesquisa sobre o tema mudanças climáticas globais e R$ 151 milhões em estudos que fazem parte do programa. “Um terço é por meio de colaboração internacional, ou seja, a cada R$ 1 da FAPESP outra agência internacional deposita também o equivalente a pelo menos R$ 1. Isso amplia recursos”, disse Brito Cruz. Mudanças climáticas é a área de pesquisa mais internacionalizada na FAPESP, destacou Brito Cruz. Nesse campo, 80% dos artigos publicados por cientistas paulistas são feitos em colaboração com colegas de outros países. A média do Estado de São Paulo é 40%. “A Amazônia é fundamental para o estudo das mudanças climáticas e a FAPESP é a agência com a maior carteira de pesquisa nesse bioma. Então, não acreditem quando dizem que não existe pesquisa brasileira sobre a Amazônia”, disse.

Descarbonizar a atmosfera

Na reunião do PFPMCG, os participantes destacaram também que, além de fazer ciência eficiente, é preciso conec-tar os resultados com os benefícios econômicos e sociais das pesquisas. Nesse sentido, estudos que integrem as ciências sociais e os temas cidades e saúde ganham relevância, por exemplo. Outra área que precisa ganhar espaço é o estudo das mudanças climáticas nos oceanos.

De acordo com os cientistas que participaram do evento, é preciso também estudar medidas e a modelagem de descar-bonização da atmosfera. “Se somarmos tudo que os países se comprometeram ao adotar no Acordo de Paris, em 2015, não vamos conseguir limitar o aquecimento global em 1,5ºC. Se tudo for feito, deve ficar acima de um aumento médio de 3ºC. Vamos precisar dos cientistas”, disse Thelma Krug, membro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e vice-presidente do IPCC.

Isso quer dizer que, além de reduzir as emissões de dióxido de carbono, será necessário também descarbonizar a atmos-fera. Na reunião, foram apresentadas variáveis que devem ser incluídas nas modelagens climáticas com essa nova realidade. Entre as variáveis está a resposta da natureza frente às mudan-ças climáticas. “Basicamente, descobriu-se que a fotossíntese fica mais eficiente quando tem mais CO2 na atmosfera, assim como o aumento na capacidade de estocagem de carbono nos oceanos. Porém, quanto mais se retira CO2 ativamente [por tecnologias de descarbonização], menos a natureza trabalha. Os processos vão diminuindo e deixam de ficar eficientes”, disse Marcos Heil Costa, professor do Departamento de Engenharia Agrícola da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Segundo Costa, isso torna a modelagem climática mais complexa e os processos de descarbonização ainda mais caros.

Maria Fernanda Ziegler | Jornalista da Agência FAPESPA

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Dados abertos e impactos nas cidades

A maioria dos participantes do encontro destacou a neces-sidade da criação de um programa de dados abertos para os cientistas. “Extraímos dados para produzir conhecimento. Portanto, precisamos já no início do projeto determinar a gestão e os processos de análise de big data. Temos exemplos de boa gestão e análise de big data”, disse Pedro Luiz Pizzi-gatti Corrêa, professor do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

O aspecto urbano foi outro ponto que deve ganhar rele-vância nos estudos de mudanças climáticas. “Os cientistas pensam no futuro, mas as cidades ainda são pensadas como no Século 19, quando começou a urbanização. Ainda enfrentam problemas de saneamento, mobilidade, lixo”, disse José Puppim de Oliveira, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas.

Para Oliveira, os problemas e as soluções estão nas cidades dos países emergentes. “A emissão per capita na China é maior que na Europa enquanto o PIB per capita chinês é mais que a metade do europeu. Isso tem relação com a urbanização”, disse. Ele comentou que a cidade chinesa de Xangai e a capital paulista têm o mesmo PIB, porém Xangai emite 10 vezes mais CO2. “Isso mostra que é possível melhorar e não é preciso rocket science, já temos as soluções. Elas já existem”, disse.

Marta Arretche, professora do Departamento de Ciência Política da USP e coordenadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela FAPESP –, alertou para a agenda ambiciosa. “As ciências sociais brasileiras precisam se adensar sobre o tema. Olhar para a questão urbana das mudanças climáticas exige um novo modelo de cidade e isso implica um novo estilo de vida e a implementação de políticas públicas”, disse.

A pesquisadora sugeriu que os cientistas climáticos tivessem como base outras políticas públicas no Brasil para formular uma agenda. “Problemas urgentes requerem convencimentos urgentes”, disse. Em sua apresentação, ela usou como exemplo de implementação de políticas públicas a ampliação do Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos 30 anos.

“Antes de 1988, o padrão do SUS era atender quem tinha carteira assinada. Isso deixava de fora do sistema cerca de 60% da população. Se olharmos historicamente, o SUS incorporou mais da metade da população brasileira. Tem milhões de pro-blemas, mas incorporou. E só conseguiu isso sensibilizando o poder central”, disse. “A questão das mudanças climáticas exige participação de governos, empresas e cidadãos. Ela requer uma revolução copernicana. Não é trivial, é mais que uma operação de guerra”, disse Arretche.

Problema global com impacto individual

Outro ponto destacado na reunião anual do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais foi a abordagem das mudanças climáticas no nível local e até individual, além de seus impactos em áreas sensíveis da economia, como agricultura, energia, relações internacionais e na saúde do cidadão. Entre as áreas de estudo que ganham relevância estão o cálculo do risco sistêmico desses setores-chave da economia e o desenvolvimento e implementação de tecnologias que garantam maior eficiência.

“O que comove o agricultor não é a redução das emissões. Ele precisa se manter na atividade agrícola, precisa produzir. Portanto, promover a mitigação, aumentando a eficiência, é o que vai funcionar”, disse Giampaolo Pellegrino, coor-denador do Portfólio de Pesquisa em Mudanças Climáticas da Embrapa.

Para Pellegrino, o maior desafio é institucional, não científico. “No caso da agricultura, já temos muitas soluções, mas como tornar isso acessível, fazer com que seja utilizado pela sociedade?”

Ele mencionou como exemplo positivo e institucional a implantação do plano ABC – Agricultura de Baixa Emis-são de Carbono, do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento. “O plano conta com uma linha de crédito para que medidas de mitigação sejam implementadas para a agricultura de baixo carbono”, disse. Segundo Pellegrino, é preciso também municiar o governo federal e os negocia-dores climáticos que participam das conferências do clima e cúpulas internacionais. “Quando não fazemos isso, perdemos dinheiro”, disse.

A maior eficiência também é uma questão importante no campo energético. “Todas as transformações estão acontecendo não por causa de uma aflição com as mudanças climáticas, mas porque elas são mais eficientes, gastam menos energia e, portanto, são mais interessantes”, disse José Goldemberg, professor da USP e ex-presidente da FAPESP. Para Goldemberg, a competição entre os países industrializados é importante para aumentar a eficiência energética e, com isso, reduzir as emissões de Gases de Efeito Estufa.

Na saúde não é muito diferente. “Análises do número de mortes por variação de temperatura, mostram que vamos morrer de acordo com o nosso CEP [Código de Endereça-mento Postal]. As cidades precisam estar preparadas para as mudanças climáticas. Há muita vulnerabilidade e nós cientistas precisamos mostrar que as mudanças de hábito são para benefício próprio”, disse Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina e diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP.

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Herbívoros, onívoros, car-nívoros, insetívoros, frugívoros, carniceiros e decompositores. Os ecossistemas da Terra fun-cionam em uma formidável teia de interações entre plan-tas, animais, insetos, fungos e microrganismos. Uma parte fundamental dessas interações reside no equilíbrio da cadeia alimentar entre predadores e herbívoros, que regula a produ-ção vegetal do planeta.

Esse equilíbrio entre preda-dores e presas que se alimentam de plantas pode ser alterado em decorrência das futuras mudan-ças climáticas. A conclusão é de uma pesquisa apoiada pela FAPESP e publicada na revista Nature Climate Change (O artigo Global predation pressure redistribution under future climate change pode ser lido em www.nature.com/articles/s41558-018-0347-y.)

“No estudo, traçamos as causas dessas mudanças e demons-tramos que elas são explicadas por componentes do clima, especialmente da temperatura, que serão alterados no futuro”, disse Gustavo Quevedo Romero, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e autor principal do artigo.

Segundo o pesquisador, as mudanças climáticas podem redistribuir a força das interações ecológicas entre as espécies de presas e predadores. Os resultados mostram que temperaturas mais altas e um clima mais estável e menos sazonal levam a uma maior pressão de predação. Porém, a maior instabilidade no clima que acompanha as mudanças climáticas em curso, especialmente nas regiões tropicais, levará a uma diminuição geral na pressão de predação nos trópicos. Em contraste, algumas regiões de zonas temperadas sofrerão aumento da pressão de predação.

“Essa reorganização das forças de interação entre espécies poderá ter consequências desastrosas para o funcionamento dos ecossistemas terrestres e afetar os serviços ecossistêmicos que eles oferecem, como o controle biológico e o ciclo de nutrientes”, disse Romero.

Os agricultores orgânicos nos trópicos, por exemplo, dependem do controle biológico exercido pelos inimigos naturais das pragas de lavoura. No entanto, as mudanças climáticas previstas poderão diminuir a efetividade desses predadores no controle de pragas.

Mudança climática pode alterar a interação entre espécies

Peter Moon | Jornalista da Agência Fapesp

O novo estudo se baseou em dados previamente coletados em uma pesquisa publicada na revista Science em 2017, sob a coordenação de Tomas Roslin, da Universidade Sueca de Ciências da Agricultura, de Uppsala, na Suécia, e também da Universidade de Helsinque, na Finlândia. Nesse trabalho anterior, os pesquisadores avaliaram a impressão de mordidas em lagartas artificiais para mostrar que, quanto mais aumenta o gradiente latitudinal dos ecossistemas (em direção às regiões temperadas e polares), a probabilidade de um herbívoro ser comido por um predador é apenas uma fração do que ocorre nas regiões equatoriais.

O estudo foi feito a partir da mensuração do risco de predação de 2.879 lagartas artificiais moldadas com massa de modelar verde. Elas foram monitoradas em 31 locais do planeta ao longo de um gradiente latitudinal que se estendeu desde o paralelo 30,4° Sul, na altura do Rio Grande do Sul, da África do Sul e do centro da Austrália, até o paralelo 74,3° Norte, na altura do Ártico canadense, da Groenlândia e do extremo norte da Sibéria. Os 31 locais estavam distribuídos em um gradiente de elevação que ia desde o nível do mar até 2.100 metros de altitude, ou seja, pouco abaixo da altitude da Cidade do México (2.240 metros). As lagartas artificiais foram coladas na parte superior de folhas inteiras em plântulas ou arbustos com no máximo 1 metro de altura. Com base na análise das marcas de dentadas e bicadas preservadas na massa de modelar, os pesquisadores avaliaram que seis grupos de predadores foram afetados: aves, lagartos, mamíferos, artrópodes e gastrópodes (caracóis ou lesmas).

Ajuste climático

No artigo da Science, os autores confirmaram a hipótese de que a pressão de interação biótica aumenta em direção ao Equador e diminui em direção aos polos. No trabalho agora publicado na Nature Climate Change, o que se fez foi con-frontar os dados de predação das lagartas e suas localizações com dados bioclimáticos do presente e do futuro, com base em diversos modelos climáticos que preveem as alterações no clima a partir das emissões de dióxido de carbono.

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“Utilizamos modelagem de nicho para estudar interações bióticas, método originalmente desenvolvido para prever a distribuição espacial de espécies”, disse.

Para o novo estudo, os autores usaram a WorldClim 2, uma base de dados de 19 variáveis bioclimáticas aplicadas globalmente em uma grade com resolução espacial de 1 quilômetro quadrado.

Em seguida, foi aplicado o método de modelagem de equações estruturais para determinar a importância relativa dos efeitos diretos e indiretos da latitude absoluta, elevação e do clima local subjacente (incluindo componentes climáticos da precipitação e temperatura) na pressão de predação. Segundo Romero, esses modelos revelaram que os dados de predação foram mais explicados pelas variações nos componentes da temperatura.

Projeções futuras

Os cientistas puderam prever a redistribuição da pressão de predação em todo o globo, projetada para o cenário climático de 2070. “De maneira geral, o que pudemos constatar foi que, para 2070, a pressão de predação poderá ser sensivelmente afetada pela variação de temperatura, mas possivelmente não será afetada pelas mudanças na precipitação”, disse o professor do Instituto de Biologia da Unicamp. Segundo ele, a pressão de predação será afetada tanto pelo aumento quanto pela instabilidade da temperatura (elevações e reduções bruscas) em determinados ecossistemas.

“A instabilidade de temperatura, mais do que o seu aumento, diminuirá a pressão de predação. E esse impacto será exacerbado em regiões tropicais, onde se prevê que o clima se tornará mais instável”, disse Romero.

Os dados sugerem que, com a elevação das temperaturas, o nível de pressão de predação se elevará moderadamente nas regiões temperadas, que se espalham por América do Norte e Ásia. Nos países escandinavos, no Reino Unido e no Alasca, o aumento da pressão de predação entre artrópodes será maior.

A pressão de predação será reduzida justamente nas regiões equatoriais, que concentram os ecossistemas mais biodiversos do planeta, ou seja, a África equatorial, o Sudeste Asiático, a Indonésia e as regiões tropicais da América do Sul, América Central e Caribe. Os dados sugerem que, juntamente com a Colômbia, o Brasil será particularmente afetado. Talvez o Brasil seja o país mais afetado, devido à sua posição nos trópicos e à grande extensão da Floresta Amazônica.

“A mudança climática não se reflete apenas nas mudanças de distribuição das espécies, mas também nas mudanças de interação entre elas”, disse Romero. “Nos trópicos poderá surtir efeitos sobre o rendimento da agricultura tropical, com o consequente aumento das ameaças à segurança alimentar, devido a uma diminuição na eficiência do controle biológico em áreas mais vulneráveis às mudanças climáticas”, disse.

Além de Romero e de Roslin, também participaram do trabalho o biólogo Thadeu Sobral-Souza, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Rio Claro; Thiago Gonçalves-Souza, da Universidade Federal Rural de Pernambuco; Nicholas Marino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pavel Kratina, da Queen Mary University of London, no Reino Unido, e William Petry, do Institute of Integrative Biology, na Suíça.

O estudo também contou com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Financiadora de Inovação e Pesquisa (FINEP).

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Um novo estudo indica que América Latina e Caribe apresentam maior queda de espécies de alimentos silvestres; região é seguida pela Ásia e Pacifico e África; Brasil identificou 1.173 espécies da fauna ameaçadas de extinção.

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, FAO, alerta que uma vez perdidas, todas as espécies que apoiam o sistema alimentar e sustentam as pessoas que plantam e fornecem os alimentos, não poderão ser recuperadas.

O relatório “Estado da Biodiversidade Mundial para Ali-mentação e Agricultura” é o primeiro publicado no mundo que se concentra nesse tema. O documento apresenta evidências preocupantes sobre o desaparecimento da biodiversidade que sustenta o sistema alimentar no Planeta, ameaçando severamente o futuro dos alimentos, da subsistência, da saúde e do ambiente.

Segundo a FAO, a biodiversidade para os alimentos e agricultura são todas as plantas e animais, silvestres e domes-ticados, que fornecem alimentação, combustível e fibras.

É também a abundância de organismos que apoiam a produção de alimentos através de serviços ecossistêmicos, chamados de “biodiversidade associada”.

Esse grupo inclui todas as plantas, animais e micro-organismos como insetos, morcegos, pássaros, manguezais, corais, ervas marinhas, minhocas, fungos e bactérias que mantêm os solos férteis, polinizam as plantas, purificam a água e o ar, mantêm peixes e árvores saudáveis e combatem pragas e doenças de colheitas e do gado.

Desaparece a biodiversidade que sustenta o sistema alimentar

Adel Sarkozi | Jornalista da FAO

Espécies e regiões

O diretor-geral assistente do departamento da FAO para Clima, Biodiversidade, Terra e Água, René Castro, disse que o “relatório é muito claro e vigoroso que estamos tendo um empobrecimento da biodiversidade em todos os âmbitos, a agricultura, na pecuária, na pesca, nas florestas.”

O relatório preparado pela FAO explora todos estes elementos e foi baseado em informações fornecidas por 91 países e a análises dos últimos dados globais.

O estudo aponta uma queda na diversidade de plantas nos campos dos agricultores, um aumento nos números de espécies de animais em risco de extinção e crescimento na proporção da pesca em excesso.

Das mais de 6 mil espécies de plantas cultivadas para a alimentação, menos de 200 delas contribuem substancial-mente à produção global de alimentos. Somente nove delas representam 66% da produção total de culturas.

A produção animal no mundo é baseada em cerca de 40 espécies animais, sendo que apenas algumas delas fornecem a maior parte da carne, do leite e dos ovos.

Informações fornecidas pelos 91 países revelam que espécies de alimentos silvestres e muitas espécies que contribuem para os serviços de ecossistemas vitais para a alimentação e agricul-tura, incluindo polinizadores, organismos do solo, e inimigos naturais das pragas estão desaparecendo rapidamente.

A região da América Latina e Caribe apresenta a maior queda no número de espécies de alimentos silvestres, seguida pela Ásia e Pacifico e pela África.

Em termos da importância dos alimentos silvestres, Angola relatou, por exemplo, os nômades Khoisan, que coletam aproximadamente 30% do que consomem da natureza em condições normais.

Muitas espécies de biodiversidade associada também estão sofrendo ameaça severa. Estas incluem aves, morcegos e insetos que ajudam a controlar pestes e doenças, a biodiversidade do solo e polinizadores silvestres como abelhas, borboletas, morcegos e pássaros.

Florestas, pastagens, manguezais, pradarias de ervas mari-nhas, recifes de corais e zonas húmidas em geral, ecossistemas-chave que fornecem inúmeros serviços essenciais à alimentação e agricultura e são o lar de várias espécies, também estão em declínio rápido.

O Brasil, por exemplo, relatou que tem 1.173 espécies da fauna classificadas como estando ameaçadas de extinção no país. Ao todo são 85 tipos de pássaros, 63 classes de lepidóp-teros como borboletas e mariposas, 29 gêneros de besouros, 7 espécies de morcegos e 4 tipos de abelhas que podem ser consideradas polinizadoras.

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Biodiversidade

Atualmente, as florestas designadas principalmente para a conservação da biodiversidade representam 13% das florestas do mundo, com 524 milhões de hectares. A maior parte destas áreas foram relatadas pelos Estados Unidos e pelo Brasil.

Estas regiões tiveram um aumento de 150 milhões de hectares desde 1990, mas o índice de crescimento diminuiu entre os anos de 2010 e 2015.

Já as áreas de florestas localizadas em áreas protegidas legalmente representam 70% das florestas do planeta, com 651 milhões de hectares. A América do Sul tem a maior proporção, com 34% das florestas protegidas, principalmente por causa da contribuição do Brasil. No país, 42% das áreas de florestas estão localizadas dentro de áreas protegidas.

Para o Diretor-Geral da FAO, José Graziano da Silva, a “biodiversidade é crítica para proteger a segurança alimen-tar global, sustentar dietas saudáveis e nutritivas, melhorar os meios de subsistência rurais e melhorar a resiliência das pessoas e comunidades.”

O chefe da agência acredita que é preciso “usar a biodiver-sidade de maneira sustentável” para que se possa “responder melhor aos crescentes desafios das mudanças climáticas e produzir alimentos de uma maneira que não prejudique o meio ambiente.”

Entre causas da perda da biodiversidade citadas pela maior parte dos países do estudo estão mudanças no uso e gerenciamento da terra e da água, seguido por poluição, superexploração e colheitas em excesso, mudança climática e crescimento populacional e urbanização.

Nos últimos 10 anos, os desastres naturais também tiveram um efeito significante na biodiversidade para alimentação e agricultura. Trinte e dois países, por exemplo, mencionaram, ter tido dificuldades com secas e ondas de calor, entre eles estão Angola, Argentina, Nicarágua e Peru. Angola também mencionou dificuldades causadas por enchentes e incêndios florestais.

O relatório também destaca o interesse crescente em práticas e abordagens que respeitam a biodiversidade. Entre os 91 países, 8% indicaram o uso de uma ou mais práticas como a agricultura orgânica, gerenciamento de pestes inte-grado, agricultura de conservação, manejo sustentável do solo, agroecologia, manejo florestal sustentável, práticas de diversificação na aquicultura, abordagem ecossistêmica para a pesca e restauração de ecossistemas.

Para a FAO, ao mesmo tempo em que estas iniciativas são bem vistas, é preciso fazer mais para travar a perda da biodi-versidade para a alimentação e a agricultura. A maioria dos países implementou estruturas legais, políticas e institucionais para o uso sustentável e a conservação da biodiversidade, mas estas são muitas vezes inadequadas ou insuficientes.

O relatório pede que governos e a comunidade interna-cional façam mais para fortalecer estruturas favoráveis, criar incentivos e medidas de distribuição de benefícios, promover iniciativas pró-biodiversidade e abordar os principais impul-sionadores da perda de biodiversidade.

Os consumidores também podem fazer a sua parte, optando por produtos cultivados de forma sustentável, comprando de feiras de agricultores ou boicotando alimentos vistos como insustentáveis. Em vários países, “cidadãos cientistas” têm um papel importantes no monitoramento da biodiversidade para alimentos e agricultura.

Em países africanos como a Gâmbia, grandes perdas de alimentos selvagens forçaram as comunidades a buscar fontes alternativas para suplementar suas dietas. Frequen-temente, estas alternativas envolvem alimentos produzidos industrialmente.

No Egito, o aumento das temperaturas gerará uma mudança em direção ao norte em gamas de espécies de peixes, com impactos na produção pesqueira.

No Nepal, a falta de mão de obra, as remessas monetárias e o crescimento da disponibilidade de alternativas de produtos baratos nos mercados locais contribuíram para o aumento do abandono das plantações locais.

Os agricultores californianos, nos EUA, permitem que seus campos de arroz inundem no inverno, em vez de queimá-los após o período de crescimento. Isso proporciona 111.000 hectares de terras úmidas e espaço aberto para 230 espécies de aves, muitas delas em risco de extinção. Como resultado disso, muitas espécies começaram a aumentar em número e o número de patos duplicou.

Na Argentina, o programa nacional Prohuerta levou ao desenvolvimento de jardins residenciais no país. O objetivo é aumentar o acesso de alimentos frescos e nutritivos, assim como as fontes de renda, principalmente para os segmentos mais desfavorecidos da população. O programa também inclui esforços de cooperação Sul-Sul envolvendo a troca de informações e experiências com outros países, incluindo Angola, Gana, Haiti e Moçambique.

Brasil, Quênia, Sri Lanka e Turquia abrigam uma vasta gama de espécies comestíveis nativas tradicionais e, ou negligenciadas, tanto silvestres como cultivadas, que são de enorme valor nutricional, mas que também estão ameaçados por pressões ambientais ou falta de uso.

O Projeto Biodiversidade para Alimentação e Nutrição ajuda na conservação dessa diversidade apoiando a capacidade nacional para gerar dados nutricionais para 189 espécies subutilizadas, principalmente plantas, nos quatro países. A iniciativa também apoia a coleta de informações sobre o significado sociocultural e o valor de mercado destas espécies. As ações incluem a promoção de alimentos nativos variados e saudáveis em diretrizes alimentares.

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Em poucas semanas, as decisões políticas sobre o que chega ao nosso prato já deixam claro: vamos comer ainda mais veneno, além de perder direitos no que diz respeito à qualidade e acesso à alimentação.

Uma lei natural que acompanha a humanidade é que sem alimento não há vida. Mesmo assim, aqui no Brasil, isso só se traduziu em direito em 2010. Fruto de uma campanha encabeçada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimen-tar e Nutricional (CONSEA), em fevereiro daquele ano, a alimentação foi incluída como um direito social no artigo 6º da nossa Constituição.

O Conselho, estabelecido como um órgão de assesso-ramento e diálogo entre a sociedade civil e a Presidência da República, teve grande relevância na promoção dos debates que tornaram possível que o país saísse do Mapa da Fome. Mas, no Brasil de 2019, o CONSEA não existe mais. A notícia da sua extinção no primeiro dia do Governo Jair Bolsonaro é bastante preocupante, especialmente porque a fome já voltou a crescer por aqui.

O que se seguiu desse descuido inaugural é igualmente alarmante. Em pouco mais de um mês e com sede de veneno, o Ministério da Agricultura (Mapa) pisou fundo no acelerador para demonstrar que a liberação de agrotóxicos deve ganhar destaque na nova gestão. Em quatro atos publicados no Diário Oficial (nº 01, 04, 07 e 10), o Mapa concedeu regis-tro a 86 substâncias, o que significa, em média, 1,75 novos agrotóxicos por dia. O Ministério ainda acatou o pedido de registro de mais 241 novos produtos (atos 02, 05 e 08), que agora devem seguir para análise. Na prática, estamos vendo parte do Pacote do Veneno sendo empurrado goela abaixo dos brasileiros dia após dia.

Camila Rossi | Jornalista do Greenpeace Brasil

Um governo com mais fome de veneno

Entre as novas aprovações está um ingrediente ativo que é novo no país: o Sulfoxaflor, que já teve seu registro caçado nos Estados Unidos por ser potencialmente danoso às abelhas. De resto, são produtos já utilizados por aqui, que passam a ser mais amplamente empregados por novas empresas e em outros tipos de alimento. Não é só a quantidade de agrotóxicos liberados que assusta, mas a capacidade destrutiva dos ativos: 43% das novas aprovações são de ingredientes considerados altamente ou extremamente tóxicos.

Dois exemplos disso são o Mancozebe, utilizado em cultu-ras de arroz, feijão, banana, milho e tomate, e o Piriproxifem, empregado em lavouras de café, melancia, melão e soja. Os dois ingredientes são considerados extremamente tóxicos e seu uso segue autorizado em alimentos que fazem parte do nosso cotidiano. Novamente, a ganância dos ruralistas e da indústria de veneno se sobrepõe à saúde. Para além do Con-gresso, a onda de retrocessos na área de segurança alimentar vai ganhando força também no poder executivo.

Ao invés de seguir carimbando tanta aprovação de novos agrotóxicos, precisamos urgentemente de medidas e políticas que assegurem à população o acesso a alimentos saudáveis. É isso que a sociedade deixou claro que quer e espera. Vale lembrar que, para isso, o país não precisaria reinventar a roda, já que existe uma proposta na mesa que pode nos ajudar a trilhar esse caminho: a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA), já aprovada em Comissão Especial na Câmara e que visa diminuir a quantidade de veneno no campo de forma gradual e responsável. Ela é fundamental para garantir que no futuro todos os brasileiros tenham acesso não só a alimentos, mas a alimentos mais saudáveis.

Concentrar esforços e injetar vontade política nesse sentido é que seria uma demonstração de respeito e cuidado com a população brasileira. Na arena da alimentação teremos muita luta em 2019 – dentro e fora do Congresso e do governo. Estaremos atentos para exigir o direito de todos de ter acesso a uma alimentação de qualidade e sem veneno. Fique de olho e entre nessa batalha.

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Um dia, no verão do ano passado, aos 15 anos de idade, ela deixou a escola, sentou-se diante do Parlamento sueco e, inadvertidamente, deu

início a um movimento global.

Greta Thunberg era uma figura frágil e solitária quando, em Agosto passado, começou uma greve “escolar” protestando contra as mudanças climáticas fora do prédio do Parlamento sueco. Seus pais tentaram dissuadi-la. Colegas de classe se recusaram a participar. Os transeuntes expressaram pena e divertimento diante da visão da então desconhecida garota de 15 anos sentada sobre os paralelepípedos da calçada com um cartaz pintado à mão. Oito meses depois, a imagem não poderia ser mais diferente. A adolescente de trancinhas é reconhecida no mundo todo como um modelo de determi-nação, inspiração e ação positiva. Presidentes e executivos se alinham para serem criticados por ela, cara a cara. Seu cartaz skolstrejk för klimatet (greve da escola pelo clima) foi traduzido para dezenas de idiomas. E, o mais impressionante de tudo, a garotinha solitária agora está tudo, menos sozinha.

Em 15 de Março, quando ela voltar à calçada (como faz todas as sextas-feiras com chuva, sol, gelo ou neve), será uma figura de proa para um vasto e crescente movimento: o da crise climática global. Os jovens estão preparando uma marcha para ser um dos maiores protestos ambientais que o mundo já viu. Thunberg está claramente animada.

Greta Thunberg, estudante, guerreira da mudança climática

Jonathan Watts | Editor de meio ambiente do The Guardian

“É incrível”, diz ela. “São mais de 71 países e mais de 700 cidades. Agora está aumentando muito e isso é muito, muito divertido”. Um ano atrás, isso era inimaginável. Naquela época, Thunberg era uma pessoa dolorosamente introvertida, levemente construída, acordando às 6h para se preparar para a escola e voltando para casa às 3 da tarde. “Nada realmente estava acontecendo na minha vida”, lembra. “Sempre fui aquela garota simples que não diz nada. Eu pensei que não poderia fazer a diferença porque era pequena demais”.

Ela nunca foi como as outras crianças. Sua mãe, Malena Ernman, é uma das mais célebres cantoras de ópera da Suécia. Seu pai, Svante Thunberg, é ator (batizado em homenagem a Svante Arrhenius, cientista Prêmio Nobel, que em 1896 calculou pela primeira vez como as emissões de CO2 poderiam levar ao Efeito Estufa). Greta é uma jovem brilhante. Há 4 anos foi diagnosticada com a Síndrome de Asperger.

“Eu penso demais. Algumas pessoas podem simplesmente deixar as coisas acontecerem, mas eu não posso, especialmente se há algo que me preocupa ou me deixa triste. Lembro de quando era mais jovem e nossos professores nos mostraram filmes sobre o plástico nos oceanos, ursos polares famintos e assim por diante. Eu chorei em todos os filmes. Meus colegas de classe ficavam preocupados quando assistiam, mas depois, passavam a pensar em outra coisa. Eu não pude fazer isso. Essas fotos estavam presas na minha cabeça”. Ela aceitou isso como parte de quem ela é. Fez disso uma força motivadora, em vez de uma fonte de depressão paralisante, que já foi.

Com cerca de 8 anos de idade, quando conheceu a mudança climática, ficou chocada porque os adultos não pareciam levar a questão a sério. Não foi a única razão pela qual ela ficou deprimida alguns anos depois, mas foi um fator significativo.

“Fiquei pensando sobre isso e me perguntei se teria futuro. E eu mantive isso para mim, porque não sou muito falante, e isso não era saudável. Fiquei muito deprimida e parei de ir à escola. Quando eu estava em casa, meus pais cuidaram de mim e começamos a conversar porque não tínhamos mais nada a fazer. E então eu contei a eles sobre minhas preocupações, sobre a crise climática e sobre o meio ambiente. E foi bom apenas tirar isso do meu peito. Eles acabaram por me dizer que tudo ficaria bem. Isso não ajudou, é claro; mas foi bom conversar. E então continuei falando sobre isso o tempo todo e mostrando aos meus pais fotos, gráficos, filmes, artigos e relatórios. E, depois de um tempo, eles começaram a ouvir o que eu realmente disse. Foi quando percebi que podia fazer a diferença. E como saí dessa depressão? O que pensei foi: é apenas uma perda de tempo me sentir assim porque posso fazer muito bem com a minha vida. Eu estou tentando fazer isso ainda agora”.

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Greta Thunberg, estudante, guerreira da mudança climática

Seus pais eram as cobaias. Ela descobriu que tinha poderes notáveis de persuasão, e sua mãe desistiu de viajar de avião, o que teve um grande impacto na sua carreira. Seu pai se tornou vegetariano. Além de se sentirem aliviados com a transformação de sua filha, antes calma e soturna, eles dizem que foram persuadidos por seu raciocínio. “Ao longo dos anos, fiquei sem argumentos”, diz o pai dela. “Ela continuou nos mostrando documentários e lemos livros juntos. Antes disso, eu realmente não fazia ideia. Eu pensei que tivéssemos resolvido o problema climático”, disse ele. “Ela nos mudou e agora está mudando muitas outras pessoas. Não havia indícios desse na sua infância. É inacreditável. Se isso pode acontecer, tudo pode acontecer”.

A greve climática foi inspirada por alunos da escola Parkland, na Flórida, que abandonaram as aulas em protesto contra a Leis das armas nos EUA que permitiram o massacre em seu campus. Greta fazia parte de um grupo que queria fazer algo semelhante para aumentar a conscientização sobre a mudança climática, mas eles não sabiam o que fazer. No verão passado, após uma onda de calor recorde no Norte da Europa e incêndios florestais que devastaram terras suecas até o Ártico, Thunberg decidiu fazer a greve sozinha. O pri-meiro dia foi o 20 de Agosto.

“Eu pintei o cartaz num pedaço de madeira e, para os panfletos, anotei alguns fatos que achei que todos deveriam saber. E então, peguei minha bicicleta e fui até o Parlamento e fiquei sentada lá”, lembra ela. “No primeiro dia, fiquei sentada sozinha das 8h30 às 15 horas – horário regular da escola. No segundo dia, algumas pessoas se juntaram a mim. Depois disso, havia pessoas lá o tempo todo”.

Ela manteve sua promessa de atacar todos os dias até as eleições nacionais suecas. Depois, ela concordou em fazer um discurso na frente de milhares de pessoas numa manifestação da People’s Climate March. Seus pais estavam relutantes. Sabendo que Thunberg tinha sido tão reticente que ela já havia sido diagnosticada com mutismo seletivo, eles tentaram convencê-la a desistir. Mas a adolescente estava determinada. “Em alguns casos em que sou realmente apaixonada, não vou mudar de ideia”, diz ela. Apesar das preocupações de sua família, ela deu o seu recado num inglês quase impecável, e convidou a multidão para filmá-la com seus telefones celulares e espalhar a mensagem através das mídias sociais. “Eu chorei”, diz seu pai orgulhoso.

Pessoas com mutismo seletivo tendem a se preocupar mais do que outras. Thunberg já fez isso em reuniões com líderes políticos e com empresários bilionários em Davos. “Eu não quero que você seja esperançoso. Eu quero que você entre em pânico. Eu quero que você sinta o medo que sinto todos os dias. E então eu quero que você aja”, disse ela aos participantes em Davos. Esses ataques verbais caíram muito bem. Muitos políticos elogiaram sua sinceridade.

Em troca, ela ouviu alegações de que políticas climáticas mais fortes não são realistas, a menos que o público torne a questão prioritária, mas ela não está convencida disso.

“Eles ainda não estão fazendo nada. Então eu não sei realmente porque eles estão nos apoiando porque estamos criticando-os. É meio estranho ”. Ela também está denun-ciando líderes dos EUA, do Reino Unido e da Austrália, que ignoraram os grevistas ou os advertiram por faltar às aulas. “Eles estão tentando desesperadamente mudar de assunto sempre que surgem os ataques da escola. Eles sabem que não podem vencer essa luta porque não fizeram nada”.

Tal conversa contundente encontrou uma ampla plateia entre pessoas cansadas de promessas vazias e ansiosas para encontrar um líder climático disposto a ampliar as ações. A ascensão de Thunberg coincide com a crescente preocupa-ção científica. Uma série de relatórios recentes revelou que os oceanos estão aquecendo e que os polos estão derretendo mais rápido do que o esperado. O Painel Intergovernamental

sobre Mudanças Climáticas, da ONU, no ano passado, expôs o perigo de superar os 1.5°C no aquecimento global. Para ter alguma chance de evitar esse final catastrófico, as emissões devem cair rapidamente até 2030. Isso exigirá muito mais pressão sobre os políticos. Nesse sentido ninguém se mos-trou mais eficiente nos últimos 8 meses do que Thunberg.

A garota que uma vez caiu em desespero agora é um farol de esperança. Um após outro, ativistas veteranos e cientistas de cabelos grisalhos a descre-veram como a melhor notícia para o movimento climático em décadas. Ela foi elogiada na ONU, conheceu o Presidente francês, Emmanuel Macron, dividiu um pódio com o Pre-

sidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e foi endossada pela Chanceler alemã, Angela Merkel.

“Não, não estou mais esperançosa do que quando comecei. As emissões estão aumentando”, disse ela.

Você pode pensar que isso colocaria o peso do mundo nos ombros da jovem de 16 anos, mas ela afirma não sentir nenhuma pressão. Se “as pessoas estão tão desesperadas por encontrar a rota da esperança”, diz, essa não é responsabilidade dela nem dos outros grevistas.

“Eu não me importo se o que estou fazendo - o que estamos fazendo - é esperançoso. Precisamos fazer isso de qualquer maneira. Mesmo que não haja mais esperança e que tudo esteja perdido, devemos fazer o que pudermos”.

A esse respeito, sua família a vê como uma bênção para os portadores da Síndrome de Asperger. Ela é alguém que se afasta das distrações sociais e se concentra com uma clareza preta e branca sobre os problemas. “Não é nada que eu queira mudar em mim”, diz ela. “É só quem sou. Se eu fosse como todo mundo e fosse social, teria tentado começar uma orga-nização. Mas eu não pude fazer isso. Eu não sou muito boa com as pessoas, então eu fiz algo em vez disso”.

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Enquanto ela tem pouco tempo para bate-papo, ela fica satisfeita por falar para o público sobre a mudança climática. Independentemente do tamanho da multidão, ela diz que não se sente nem um pouco nervosa.

Ela parece incapaz da dissonância cognitiva que permite que outras pessoas lamentem o que está acontecendo com o clima em um minuto, depois faz um bife, compra um carro ou voam no fim de semana seguinte. Embora Thunberg acredite que a ação política supera em muito as mudanças individuais nos hábitos de consumo, ela vive seus valores. Ela é vegana e só viaja para o exterior de trem.

Na melhor das hipóteses, essa nitidez pode atravessar o nó górdio do debate climático. Também pode chamar a atenção. Não há garantias confortáveis no seu discurso, apenas uma franqueza persistente. Questionada se ela se tornou mais otimista porque a questão climática aumentou na agenda política e os políticos nos EUA e na Europa estão considerando os novos negócios verdes que aumentariam a transição para a energia renovável, sua resposta é brutalmente honesta: “não, eu não estou mais esperançosa do que quando comecei. As emissões estão aumentando e essa é a única coisa que importa. Eu acho que isso precisa ser nosso foco. Não podemos falar sobre mais nada”.

Algumas pessoas consideram isso uma ameaça. Um punhado de lobistas dos combustíveis fósseis, políticos e jor-nalistas argumentam que Thunberg não é o que parece; que ela foi impulsionada para a proeminência por grupos ambien-talistas e interesses comerciais sustentáveis. Eles dizem que o empreendedor que primeiro twittou sobre a greve climática, Ingmar Rentzhog, usou o nome de Thunberg para levantar investimentos para sua empresa, mas o pai dela diz que a conexão foi exagerada. Greta, ele diz, iniciou a greve antes que alguém da família tivesse ouvido falar de Rentzhog. Assim que descobriu que ele usou o nome dela sem sua permissão, cortou todos os vínculos com a empresa e, desde então, jurou nunca estar associada a interesses comerciais. Sua família diz que nunca foi paga por suas atividades.

Numa entrevista recente, Rentzhog defendeu suas ações nas redes sociais, houve outros ataques grosseiros à reputação e aparência de Thunberg. Já familiarizada com o bullying da escola, ela parece imperturbável. “Esperava que quando eu começasse, isso ia se tornaria maior, então haverá muito ódio”, diz ela. “É um sinal positivo. Eu acho que deve ser porque eles nos veem como uma ameaça. Isso significa que algo mudou no debate e que estamos fazendo a diferença”.

Ela pretende atacar o Parlamento toda sexta-feira até que as políticas do governo sueco estejam de acordo com o Acordo de Paris. Isso levou ao que ela chama de “contrastes estranhos”: equilibrar seus trabalhos de matemática com sua luta para salvar o Planeta; escutar atentamente os professores e condenar a imaturidade dos líderes mundiais; ponderar a ameaça existencial da mudança climática ao lado da escolha angustiante dos temas do currículo do ensino médio.

Pode ser cansativo. Ela ainda se levanta às 6 da manhã para ir à escola. Entrevistas e discursos escritos podem deixá-la trabalhando de 12 a 15 horas por dia. “É claro que é preciso muita energia. Eu não tenho muito tempo livre. Mas con-tinuo lembrando porque estou fazendo isso, e então apenas tento fazer o máximo que posso”. Até agora, isso não parece ter afetado seu desempenho acadêmico. Ela continua com o dever de casa e está entre as 5 melhores da turma.

E agora que ela é ativa no clima, ela não é mais solitária, não é mais silenciosa, não está tão deprimida. Ela está muito ocupada tentando fazer a diferença. E se divertindo.

Na sexta-feira 15 de Março, quando ela tomar seu lugar de costume fora do Parlamento sueco, terá a companhia de colegas e alunos de outras escolas. “Vai ser muito, muito grande internacionalmente, com centenas de milhares de crianças indo para a greve da escola para dizer que não vamos aceitar mais isso”, diz ela. “Acho que estamos apenas vendo o começo. Eu acho que a mudança está no horizonte e as pessoas vão defender seu futuro”. E então a ativista volta a ser uma adolescente. “Estou ansiosa por isso e para ver todas as fotos no dia seguinte. Vai ser divertido.”

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Versão ligeiramente editada do pronunciamento

feito por greta thunberg aos líderes políticos e

empresários presentes no fórum econômico mundial

em daVos, suíça, na sexta-feira, 25 de Janeiro de 2019.

“Ou escolhemos continuar como uma civilização ou não. Isso é tão preto ou branco quanto possível. Não há áreas cinzentas quando se trata de sobrevivência.” - Greta Thunberg

Nossa casa está pegando fogo. Eu estou aqui para dizer que a nossa casa está pegando fogo.

De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas - IPCC, estamos a menos de 12 anos de não conseguir nos desfazer dos nossos erros. Nesse tempo, mudanças sem precedentes em todos os aspectos da sociedade precisam ter ocorrido, incluindo uma redução das nossas emissões de CO2 em pelo menos 50%.

E, por favor, note que esses números não incluem o tema da equidade, o que é absolutamente necessário para fazer funcionar o Acordo de Paris em escala global. Nem inclui pontos de inflexão ou ciclos de realimentação como o extre-mamente poderoso gás metano liberado pelo derretimento permanente do Ártico.

Em lugares como Davos, as pessoas gostam de contar histórias de sucesso. Mas seu sucesso financeiro veio com um preço impensável. E temos que reconhecer que fracassamos no tema sobre a mudança climática. Todos os movimentos políticos em sua forma atual o fizeram, e a mídia não conse-guiu criar uma ampla conscientização pública.

Mas o Homo sapiens ainda não fracassou.Sim, estamos falhando, mas ainda há tempo para mudar

tudo. Ainda podemos consertar isso. Nós ainda temos tudo em nossas próprias mãos. Mas, a menos que reconheçamos as falhas gerais dos nossos sistemas atuais, provavelmente não teremos chance.

Estamos enfrentando um desastre de sofrimentos não falados por enormes quantidades de pessoas. E agora não é hora de falar educadamente ou se limitar ao que podemos ou não podemos dizer. Agora é a hora de falar claramente.

Resolver a crise climática é, sem dúvida, o maior e mais complexo desafio que o Homo sapiens já enfrentou. A prin-cipal solução, no entanto, é tão simples que até uma criança pequena pode entendê-la. Temos que parar as nossas emissões de Gases de Efeito Estufa.

Greta Thunberg | Estudante e ativista climática sueca de 16 anos

Minha mensagem para as elites de Davos

Ou fazemos isso ou não.Você diz que nada na vida é preto ou branco. Mas isso é

mentira. Uma mentira muito perigosa. Ou evitamos 1,5 grau centígrado de aquecimento, ou não. Ou evitamos desencadear essa reação em cadeia irreversível além do controle humano, ou não o fazemos.

Ou escolhemos continuar como uma civilização, ou não. Isso é tão preto ou branco quanto possível. Não há áreas cinzentas quando se trata de sobrevivência.

Todos nós temos uma escolha. Podemos criar ações transformadoras que salvaguardem as condições de vida das gerações futuras. Ou podemos continuar com nossos negócios como de costume e falhar.

Isso é com você e eu.Alguns dizem que não devemos nos engajar em ativismo.

Em vez disso, devemos deixar tudo para os nossos políticos e apenas votar numa mudança. Nada disso.

Mas o que fazemos quando não há vontade política? O que fazemos quando as políticas necessárias não estão

à nossa vista?Aqui em Davos – como em qualquer outro lugar – todos

estão falando de dinheiro. Parece que dinheiro e crescimento são as nossas principais preocupações.

E como a crise climática nunca foi tratada como uma crise, as pessoas simplesmente não estão conscientes das consequências totais em nossa vida cotidiana. As pessoas não estão conscientes de que existe algo como um orçamento de carbono e quão incrivelmente pequeno é o orçamento de carbono restante. Isso precisa mudar hoje.

Nenhum outro desafio atual pode coincidir com a impor-tância de estabelecer uma ampla conscientização pública e compreensão do nosso desaparecimento rápido do orçamento de carbono, que deve e deve se tornar nossa nova moeda global e o cerne de nossa economia futura e atual.

Estamos em um momento na história em que todos os que têm uma visão da crise climática que ameaça nossa civilização – e toda a Biosfera – devem falar com uma linguagem clara, não importa o quão desconfortável e inútil ela possa ser.

Precisamos mudar quase tudo em nossas sociedades atuais. Quanto maior a sua pegada de carbono, maior o seu dever moral. Quanto maior sua plataforma, maior sua responsabilidade.

Os adultos continuam dizendo: “Devemos dar-lhes esperança aos jovens”. Mas não quero sua esperança. Eu não quero que você seja esperançoso. Eu quero que você entre em pânico. Eu quero que você sinta o medo que sinto todos os dias. E então eu quero que você aja.

Eu quero que você aja como se estivesse em uma crise. Eu quero que você aja como se a nossa casa estivesse em

chamas. Porque está.

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Greta Thunberg

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| empoderamento jovem |

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