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Ano XXVIII • Nº 255 • Fevereiro 2018 • R$ 15,00 • www.eco21.com.br facebook.com/revista.eco21 ECO 21 Washington Novaes • Chico Whitaker • Silvia Ribeiro • Roberto Malvezzi Álvaro R. dos Santos • Lúcio Flávio Pinto • Cecília Leal • Adam Welz ISSN 0104-0030

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Diretora Lúcia Chayb

Editor

René Capriles

Redação Regina Bezerra, Rudá Capriles

Colaboradores

André Trigueiro, José Mon serrat Filho Leonardo Boff, Samyra Crespo

Evaristo Eduardo de Mi randa Sergio Trindade

Fotografia Ana Huara

Correspondentes no Brasil

São Paulo: Lea Chaib Belém: Edson Gillet Brasil

Correspondentes no Exterior

Bolívia: Carlos Capriles Farfán México: Carlos Véjar Pérez-Rubio

Itália: Mario Salomone e Bianca La Placa França: Aurore Capriles

Representante Comercial em Brasília

Minas de Ideias

Serviços Infor mativos Argentina: Ecosistema

Brasil: Envolverde, ADITAL, EcoAgência, EcoTerra, O ECO, Ambiente Brasil

França: Valeurs Vertes, La Recherche Itália: ECO (Educazione Sostenibile)

México: Archipiélago

Direção de Arte ARTE ECO 21

CTP e impressão Gráfica Cruzado

Jornalista Responsável

Lúcia Chayb - Mtb: 15342/69/108

Assinaturas Anual: R$ 130,00

[email protected]

Uma publicação mensal de Tricontinental Editora

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Tel.: (21)2275-1490 [email protected]

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A n o 28 • Feve r e i r o 2018 • N º 255

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Capa: Crise da água: a caminho do Dia Zero Foto: Halden Krog

Gaia viverá! Lúcia Chayb e René Capriles

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Mad Max na Cidade do Cabo a caminho do Dia Zero “A severa seca que sofre a região do Cabo Ocidental é uma amostra do que virá. As empresas e as pessoas devem se preparar para uma nova realidade; as previsões climáticas de longo prazo indicam que a região se tornará cada vez mais seca nos próximos anos”. Essa foi a mensagem de Christine Colvin, Diretora do Programa de Água do WWF África do Sul, pronunciada num dia dedicado à poupança de água fora de casa. Hoje, os cidadãos da Cidade do Cabo, a segunda cidade mais populosa da África do Sul, estão lutando contra a pior seca em décadas. Os níveis dos reservatórios estão abaixo do ponto morto levando as autoridades a emitir o pior alerta: o fornecimento de água será totalmente desligado no chamado “Dia Zero”, fato que acontecerá em Maio próximo forçando a mais de 4 milhões de habitantes ao racionamento. De acordo com a ONU, a escassez de água potável já atinge mais de 40% da população mundial e deverá se agravar ainda mais devido ao aquecimento global. Segundo as previsões uma em cada 4 pessoas enfrentará uma escassez crônica de água até 2050. Na Cidade do Cabo, isso agora é uma realidade. As barragens e os aquedutos de Cape Town começaram a ser construídos já em 1600. No início de 1900 parecia que a cidade dispunha de mais água que o necessário. Restrições foram tomadas eventualmente à medida que alguma seca atingia a região. A partir de 2012, geólogos, engenheiros e ambientalistas alertaram que a cidade enfrentaria uma grave crise de água. As autoridades não levaram as advertências a sério. As agências hídricas da ONU aconselharam a se preparar implantando um sistema de reciclagem e dessalinização da água do mar. No entanto, isso também não foi atendido. O “Dia Zero” entrará em vigor quando o nível das barragens atingir 13,5%. Ao chegar esse dia, o município tomará o controle do fornecimento de água por etapas para tentar adiar o corte total. As torneiras domésticas ficarão completamente secas; bicas públicas serão habilitadas com forte proteção policial e militar lembrando a apocalíptica previsão do filme Mad Max. A água ficará mais cara, o que significa que haverá dois mundos: um dos ricos e outro dos pobres. Num recente artigo do Washington Post intitulado “Dividida pela seca”, o jornalista Kevin Sieff, escreveu: “O que você faz quando sua cidade está ficando sem água? A resposta, pelo menos num dos países mais desiguais do mundo, depende da quantidade de dinheiro que você tem”. A desigualdade da água também crescerá substancialmente à medida em que a cidade planeja deixar as pessoas ricas continuar recebendo água normalmente nas suas casas pagando custos muito elevados. As pessoas comuns também pagarão uma tarifa mensal mais alta, mas terão que lutar pela água em longas filas. Mais de 400 anos de planejamento e construção de barragens não ajudaram a cidade a evitar um cenário assustador. No Dia Mundial do Meio Ambiente de 1998, Nelson Mandela criou o Parque Nacional da Península do Cabo, o menor e mais rico dos 6 reinos florais do mundo, hoje Patrimônio Mundial da UNESCO. Nessa ocasião ele disse: “Durante séculos a Table Mountain foi um símbolo da nossa cidade-mãe, a Cidade do Cabo. Para o povo da África do Sul, a Table Mountain representa muito mais do que os restos rochosos de milênios de sedimentos. Possui um significado inestimável em relação à sua importância ecológica, cultural, religiosa e econômica, não apenas para a região do Cabo Ocidental, mas também para o resto do país”. A sabedoria de Mandela remonta, poeticamente, aos primórdios do ser humano, ao seu surgimento na África Austral à sombra da Table Mountain, onde o Homo erectus, o Australopitecos aprendeu a caminhar e se socializar há 3 milhões de anos. É também dessa região uma das mais antigas flores do mundo, a King Protea, que segundo os xamãs zulus guarda na sua memória genética informações capazes de reconhecer os estados de alma dos humanos. Todo esse patrimônio se encontra à beira da falência. Agora, as autoridades da cidade buscam desesperadamente que os cidadãos reduzam seu consumo abaixo dos 50 litros por pessoa ao dia. Somando pessoas, indústrias, comércio e agricultura serão necessários 450 milhões de litros/dia. O Rio de Janeiro, maior consumidor de água do país, consome 250 litros per capita/dia. O futuro chegou à Cidade do Cabo na forma de uma seca feroz e assustadora. Mad Max tornou-se realidade.

4 Lúcio Flávio Pinto - A Noruega não é aqui 5 Catarina Barbosa - Mineradora Hydro provoca desastre em Barcarena 8 Oswaldo B. de Souza - STF considera constitucional parte do Código Florestal10 Luis Fernando Guedes Pinto - Código Florestal: agora é aplicar a Lei12 Sílvia Mugnatto - R. Maia quer pautar nova Lei do Licenciamento Ambiental14 Elton Alisson - Desmatamento na Amazônia: prestes a atingir limite irreversível16 Karina Toledo - Desmatamento pode piorar o aquecimento global18 Claudio Angelo - Venezuela segue barrando candidatura brasileira à COP-2520 Tara Ayuk - ONU propõe soluções naturais para os problemas hídricos21 Adam Welz - Carta de uma vítima da seca na Cidade do Cabo24 Washington Novaes - Pouca água, muita gente25 Maurício Dziedzic - A corda arrebenta para todos28 Elmano Augusto - O MMA quer tornar a região do Rio Negro um Sítio Ramsar30 Cecília Gontijo Leal - Por que os pequenos rios da Amazônia são fundamentais32 Álvaro R. dos Santos - Áreas de risco: sistemas de alerta escondem omissão33 Roberto Malvezzi (Gogó) - A volta da chuva aos sertões34 Sucena Shkrada Resk - Lixões e aterros: uma dura realidade no Brasil36 Fabio Barros - Piraquê reduz lixo com ações sustentáveis38 Cristina Amorim - Árvores de florestas tropicais úmidas morrem mais cedo40 José T. Arantes - Uma vez degradado, Cerrado não se regenera naturalmente42 Damian Carrington - Zonas mortas nos oceanos quadruplicam desde 195044 Erik Von Farfan - Itaipu amplia programa que incentiva agricultura orgânica46 Silvia Ribeiro - Governo do Brasil quer liberar, sem controle, novos OGMs50 Chico Whitaker - Angra 3: o que virá em 2018?

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A multinacional norueguesa Norsk Hydro, uma das maiores empresas do setor de alumínio no mundo, é dona da maior de todas as fábricas de alumina, instalada em Barcarena, a 40 km em linha reta de Belém.

Ao divulgar seu laudo sobre a operação da fábrica na quinta-feira (22/2/2018), Marcelo de Oliveira Lima, pesquisador em saúde pública do Instituto Evandro Chagas, disse que comprovou o vazamento das bacias de rejeito da Alunorte. Essas piscinas contêm a lama vermelha, resultante da lavagem química de bauxita para a produção de alumina, insumo usado para criar o alumínio metálico. Assim, desmentiu frontalmente a nota da empresa, que negou esse vazamento.

Marcelo Lima foi além ao descrever a gravidade da situa-ção. Disse que uma ligação clandestina libera esses produtos, muito tóxicos, por conterem metais pesados, que se acumulam internamente, para a área externa da fábrica.

Os efeitos se estendem às comunidades vizinhas e con-taminam rios, igarapés e poços artesianos das comunidades com os rejeitos da lavagem do minério. A contaminação por esses efluentes representa extremo risco à saúde das pessoas.

O laudo afirma que o acidente registrado no dia 17/2 foi produto realmente do vazamento, que caracteriza uma situação extremamente grave.

Lúcio Flávio Pinto | Jornalista. Editor do Jornal Pessoal, Herói da Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras

A Noruega não é aquiÉ que a Hydro não dispõe de um plano de alarme emer-

gencial para a comunidade, “caso haja algum rompimento ou desastre”, garantiu o técnico do instituto. É uma informação alarmante.

Ele se declarou convencido de que a empresa não tem capacidade de tratar os seus efluentes. Recomenda que, neste momento de chuvas fortes, a produção de alumina (com a aparência de um pó branco semelhante ao açúcar) seja reduzida ou mesmo suspensa porque as bacias de acumulação de rejeito não suportarão o grande acúmulo de material.

“Se a empresa continuar com a elevada produção de material, novos vazamentos ocorrerão sem dúvida alguma, principalmente neste período de chuvas intensas”, declarou o técnico. O cume dessas barragens já equivale a um prédio de 10 andares.

Se transbordarem, lançarão sobre uma vasta área um líquido com índices de sódio, nitrato e alumínio acima do permitido. O nível do pH (potencial hidrogeniônico) é extremamente abrasivo e nocivo aos seres vivos. As amostras atestaram ainda um nível alto de chumbo, que, pode levar ao câncer se houver consumo excessivo. “Essa contaminação é nociva e prejudicial às comunidades que utilizam os igarapés e rios como forma na busca do alimento, com a pesca, e também o lazer. Além disso, há a contaminação do meio ambiente como os seres vivos e plantas”, alertou o pesquisador.

As autoridades têm que agir de imediato, com rigor e seriedade. Comprovado o laudo, à parte as penalidades e multas previstas na lei ambiental, não há alternativa: a redu-ção drástica da produção da fábrica neste período de chuvas intensas, ou até a sua paralisação.

E um novo plano de gestão para que a Hydro, que se diz conscienciosa nas suas atividades na Noruega, sua terra natal, adote padrões iguais ou superiores em Barcarena, uma permanente vítima do abuso das empresas que se acotovelam no município.

A Hydro Alunorte produz 6,3 milhões de toneladas de alumina, 7% da produção mundial, a partir de mais de 12 milhões de toneladas de bauxita. Logo, todos os anos precisa dar destino a 6 milhões de toneladas de rejeito.

A rocha que entra na lavagem como elemento da natureza sai do refino sem os elementos químicos, retirados como impurezas na passagem para a alumina (sílica, óxido de ferro e dióxido de titânio), passa a conter os produtos químicos necessários para realizar essa separação (solução aquecida de soda cáustica e de cal). É essa bomba que vazou para as águas, o solo, as ruas e as casas da população do entorno da fábrica e pode atingir maiores profundidades no solo e extensões nas drenagens, até chegar ao maltratado estuário do Rio Pará.

Flagrada numa mentira gravíssima e revelando um desa-preço pelo universo ao qual passou a se integrar, a Norsk Hydro tem que receber as penalidades devidas pelo cometi-mento de vários crimes. As autoridades públicas responsáveis, também.

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Passados onze dias do mais grave desastre ambiental envolvendo o setor de mineração na Amazônia, a Justiça do Pará e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) decidiram punir no dia 28 deste mês (Fevereiro) a refinaria norueguesa Hydro Alunorte pelo vazamento de resíduos químicos da produção de bauxita no município de Barcarena, a 40 km de distância de Belém.

A pedido do Ministério Público do Estado (MPPA), o Juiz Iran Ferreira Sampaio, da Comarca de Barcarena, proibiu a refinaria de usar o Depósito de Resíduos Sólidos (DRS-2) por irregularidades na licença de operação e mandou a empresa reduzir a produção da planta industrial em 50% para evitar um novo vazamento de rejeitos químicos. A multa estipulada é R$ 1 milhão por dia por descumprimento da medida cautelar.

Já o IBAMA embargou o depósito DRS-2 e a tubulação de drenagem de efluentes da área industrial da refinaria. A empresa Hydro Alunorte foi multada em R$ 20 milhões.

Empreendimento licenciado pelo governo do Pará, entre os dias entre os dias 16 e 17 de Fevereiro, uma lama vermelha, resultante da lavagem química de bauxita para a produção de alumina da refinaria Hydro Alunorte, inundou comunida-des ribeirinhas e quilombolas, contaminando rios, igarapés e poços artesianos. A saúde de 400 famílias ficou afetada. Segundo laudo do Instituto Evandro Chagas (IEC), a água dos mananciais ficou poluída e imprópria para o consumo humano. Chovia forte. O risco de novo vazamento da bacia de rejeitos continuava. No entanto, a refinaria continuou operando normalmente.

Mineradora Hydro provoca desastre em Barcarena

Catarina Barbosa | Jornalista da Agência Amazônia Real

“Com este quadro, em que se observa a persistente ocor-rência de danos ambientais, já constatados e os potencialmente produzidos em razão da temporada de chuva que ainda está em curso, fica evidente que não se pode manter a operação plena da atividade da empresa, por conta da insegurança decorrente do seu sistema de armazenamento e tratamento de efluentes, em situação que potencializa o risco de dano ambiental”, disseram na ação os promotores de Justiça, Daniel Barros e Laércio Abreu no pedido da medida cautelar. Íntegra do pedido de medida cautelar.

Na decisão que multou a refinaria, o IBAMA explicou que aplicou dois autos de infração contra a Hydro Alunorte: R$ 10 milhões por realizar atividade potencialmente poluidora sem licença válida da autoridade ambiental competente e R$ 10 milhões por operar tubulação de drenagem também sem licença. Em nota à imprensa, o IBAMA disse que foram realizadas vistorias no local do desastre ambiental (27e 28/2) em conjunto com pesquisadores do IEC, que é vinculado ao Ministério da Saúde.

Um laudo do IEC apontou “indícios de transbordamen-tos e lançamentos de efluentes não tratados” na região de Barcarena, onde vivem 121.190 habitantes. “Os resultados físico-químicos e níveis de metais pesados mostraram que ocorreram alterações nas águas superficiais que comprometeram sua qualidade, segundo a Resolução do Conama n° 357/2011, e impactaram diretamente na comunidade Bom Futuro,” diz o IBAMA. De acordo com o documento do IEC, “as águas apresentaram níveis elevados de alumínio e outras variáveis associadas aos efluentes gerados pela Hydro Alunorte”.

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Procurada pela reportagem, a refinaria Hydro Alunorte disse que está analisando a decisão da Justiça do Pará. “As medidas necessárias para implementá-la e seus possíveis impactos na operação. A empresa divulgará novas informações o mais breve possível”.

Sobre o desastre ambiental em Barcarena, a Hydro Alu-norte continua negando que houve o vazamento de rejeitos do depósito DRS-2 da refinaria. No dia 26, a empresa foi notificada pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabi-lidade (SEMAS) do Pará para reduzir em 50% a produção da mineradora devido ao não cumprimento de uma deter-minação de alcançar um metro de borda livre no depósito de resíduos de bauxita da barragem DRS1. A multa prevista era de R$ 1 milhão por dia no caso de descumprimento. Na mesma ocasião, o Ministro Sarney Filho pediu o embargo das atividades da Hydro Alunorte. A Agência Nacional de Mineração (ANM) solicitou informações sobre a segurança das barragens DRS-1 e DRS-2.

A Amazônia Real procurou a empresa para ela informar os níveis em que operavam as bacias de resíduos nos dias 16 e 17/2, durante o desastre. A Hydro não respondeu às perguntas enviadas. Mas publicou uma nota em que diz que “todas as bacias dos depósitos de resíduos sólidos de sua planta em Barcarena atingiram, hoje (27/2), nível de borda livre superior a um metro. A empresa segue colaborando com as autoridades para que todas as medidas necessárias sejam tomadas para garantir a segurança da operação”.

Em relação à contaminação dos rios e igarapés, empresa afirmou que “está comprometida a fazer uma análise abran-gente nas comunidades próximas à sua refinaria para entender em toda sua complexidade as condições da água nesta área de Barcarena. Neste momento, a empresa está colaborando na distribuição de água potável na região, mas já começou a dialogar com as comunidades e está comprometida a colaborar na busca por soluções que proporcionem o acesso permanente à água potável”, afirmou a assessoria de imprensa da Hydro Alunorte.

População enfrenta doenças

Nos primeiros dias do vazamento de rejeitos químicos, enquanto a empresa de capital norueguês mantinha as ati-vidades normais da refinaria Hydro Alunorte, famílias de ribeirinhos e quilombolas de Barcarena estavam usando água contaminada por chumbo, nitrato, sódio e alumínio.

Sandra Amorim, da comunidade quilombola sítio São João – que fica a 1 km da bacia de rejeitos DRS-2 – conta que para a Hydro Alunorte todos ali são invisíveis. A casa dela cujo chão é argiloso ficou desnivelada com a força das águas na inundação dos rejeitos químicos da refinaria.

A moradora diz ainda que depois da chuva que levou além de água, rejeitos de bauxita para dentro da sua casa, todos ficaram com coceira no corpo, dor de cabeça e problemas respiratórios. “Não temos para onde ir, então, a gente ficou por aqui mesmo dividindo espaço com aquela água que vinha de dois lados. E onde a água encostou, a gente ficou com coceira. A minha perna só parou de coçar depois que eu passei vinagre”, afirma.

Sandra, que é membro do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e do Barcarena Livre, disse que em 2009 viveu o mesmo drama ambiental. Na ocasião, transbordou rejeitos químicos no meio ambiente. O IBAMA multou a refinaria em R$ 17,1 milhões, mas a empresa não pagou indenização a nenhuma família até hoje, diz.

“Eu quero que resolvam essa situação, porque tá virando costume. Em 2009 veio jornal de todo o tipo, Semas, Defesa Civil, Ibama, Dema e sabe no que deu tudo aquilo? Em nada. Essa poluição não vem de agora. A Hydro tem 35 acidentes ambientais aqui em Barcarena e não pagou por nenhum deles”, lembra indignada.

O quilombo Sítio São João, assim como toda comunidade quilombola, é protegido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina que qualquer atividade desenvolvida dentro da comunidade deve passar por consulta desses povos.

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Areia escondeu lama

O vazamento de rejeitos químicos no meio ambiente é desastre ambiental, mas a empresa Hydro Alunorte não garantiu no primeiro momento o apoio às populações afeta-das. A moradora Midiã Ribeiro, da Comunidade do Tauá, disse que a empresa usou carros-pipa e também caçambas com areia para esconder a lama tóxica que inundou as casas, lagos e igarapé.

Na pista que fica ao lado da bacia de rejeitos DRS-2, chamada Villa Nova, Midiã disse que era possível ver areia branca contrastando com chão de coloração avermelhada.

Além da limpeza da pista, Midiã afirma que operários da refinaria estavam jogando água no rio. “Eu não sei onde eles conseguiram tanta água, mas não adiantou. A equipe conseguiu coletar as amostras antes deles”, afirma se referindo a equipe da pesquisadora Simone Pereira, da Universidade Federal do Pará (UFPA), que estuda os impactos que a água contaminada causa na população de Barcarena.

Simone Pereira tem doutorado em Química pela Univer-sidade Federal da Bahia (UFBA) e atualmente é professora associada II da UFPA. Ela desenvolve uma pesquisa intitulada “exposição humana a metais tóxicos através da água de con-sumo: um estudo de caso no município de Barcarena (PA)” e por meio desse estudo detectou a presença de metais na água e no cabelo das pessoas que moram no município. “O estudo do cabelo ainda será publicado, mas já foi confirmado que as pessoas possuem metais no corpo e as consequências para isso são coceira, gastrite, anemia, dor de cabeça e irri-tabilidade”, explica.

Na avaliação da professora, o mais urgente a se fazer nesse momento seria providenciar tratamentos para que a população tivesse água de qualidade. “Aqui todo mundo consome água contaminada há anos”, disse Simone.

Apesar da poluição do Rio Murucupi não ser algo de agora, os dados são alarmantes.

O laudo divulgado pelo Instituto Evandro Chagas (IEC) aponta além da alta concentração de alumínio, chumbo, sódio e nitrato, um aumento no pH da água que chegou a 10, ou seja, extremamente alcalino, em decorrência do derrame de soda cáustica, usada no processo de beneficiamento da bauxita, matéria-prima do alumínio.

MP investiga crime

O promotor de Justiça Daniel Barros disse que, com base nas denúncias das populações tradicionais, foi aberto um Procedimento Investigativo Criminal (PIC) para apurar as irregularidades da empresa norueguesa Hydro Alunorte.

Sobre a denúncia dos carro-pipa e das caçambas com areia, o promotor disse que já iniciou as investigações. “Eu mesmo pedi que um policial fosse apurar o caso e ele tem filmagens da situação. Eu mesmo liguei para a empresa Mar-ques (empreiteira) e já falei com chefe de segurança da Hydro. Eles disseram que tinham levado o caminhão para lavar e por isso ele estava circulando na cidade. Mas tudo isso será investigando com muito rigor”, promete Barros.

Com relação ao vazamento da bacia de rejeitos DRS-2, o promotor explica que novas perícias serão solicitadas. “Esse tipo de poluição não some da água da noite para o dia. Vamos pedir novamente as perícias, porque elas devem ser solicitadas pelo Ministério Público. Se não, cada um pede uma perícia e no tribunal, o advogado pede o descarte dessa prova. Pre-ciso de uma coisa mais aprofundada do comprometimento do meio ambiente e com isso em mãos tomarei as medidas cabíveis”, afirma.

Daniel Barros disse que no PIC a SEMAS será investigada. “Eu quero saber onde estão as perícias que a secretaria diz ter feito. Já solicitamos para eles”, afirma. O prazo para finaliza-ção do PIC é de 30 a 60 dias, dependendo do resultado das perícias. A SEMAS disse que ainda não tem conhecimento sobre o procedimento.

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O mais importante julgamento sobre meio ambiente da história do país chegou ao fim, na tarde da quarta-feira 28 deste mês (Fevereiro). O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional a maior parte dos pontos questio-nados judicialmente da Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012), que revogou o Código Florestal de 1965.

Dos 23 tópicos que estavam sendo analisados, o tribu-nal considerou 18 constitucionais. Em alguns desses casos, estabeleceu interpretações que pouco alteraram o sentido da legislação.

Os Ministros acataram apenas cinco pontos listados nas quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) apresentadas pelo a Procuradoria-Geral da República e PSOL contra a Lei, em 2013. Ou seja, os magistrados corrigiram apenas pontualmente os retrocessos ambientais por ela consolidados.

Foi referendada pela corte a anistia à obrigação de reflores-tar, a multas e outras sanções para quem desmatou ilegalmente antes de 22 de Julho de 2008. O STF também considerou constitucional a redução das Áreas de Preservação Permanente (APP), fundamentais para a manutenção do abastecimento de água e energia e para prevenir desastres climáticos, como inundações e deslizamentos.

O caso terminou com uma única manifestação, a do decano da Corte, o Ministro Celso de Mello. Na semana anterior, votaram nove ministros. O julgamento começou em Setembro, quando o Ministro Luiz Fux leu seu relatório. Em Novembro, ele deu seu voto.

“As correções feitas pelo STF não serão suficientes para reverter a retomada do desmatamento decorrente do enfra-quecimento da Lei”, analisa o sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA) Márcio Santilli. Pesquisadores e organizações ambientalistas argumentam que a mudança da legislação foi um dos fatores responsáveis pela retomada das taxas de devastação da floresta na Amazônia, após 2012, depois de quase 10 anos de quedas sucessivas nos índices.

O ISA fez parte do processo na qualidade de “amicus curiae”, o que permitiu apresentar petições e memoriais aos ministros e fazer uma sustentação oral no plenário do STF, em Setembro. A organização (ISA) defendeu a inconstitucio-nalidade do novo Código Florestal.

Votação apertada

Apesar do placar desfavorável ao meio ambiente, a votação foi apertada em vários temas importantes. Muitos foram decididos por um voto. Depois da sessão da semana passada, sete tópicos ainda estavam em disputa e foram dirimidos, pelo voto de Mello.

Oswaldo Braga de Souza | Jornalista do Instituto Socioambiental - ISA

STF considera constitucional parte do Código Florestal

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Na sessão final, acabaram sendo considerados constitucio-nais, entre outros pontos: a anistia da obrigação de recuperar a Reserva Legal (RL) desmatada ilegalmente antes de 22 de Julho de 2008 em pequenos imóveis rurais; a possibilidade de que produtores rurais que desmataram ilegalmente suas Áreas de Preservação Permanente antes daquela data possam ter novas autorizações para desmatamento; a possibilidade de redução da RL na Amazônia Legal nos municípios ou Estados ocupados por Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs) em certa extensão do território; a permissão para atividades agrícolas em encostas com mais de 45º e topos de morros.

“A Corte mostrou-se dividida. Ficou claro que muitos Ministros acabaram chancelando dispositivos da Lei não porque não causem danos ambientais, mas pela complexi-dade técnica dos temas em jogo e pelo respeito à separação de poderes”, analisa o advogado do ISA Maurício Guetta. “Alguns Ministros inclusive reconheceram que as escolhas dos congressistas não foram adequadas à proteção ambiental, mas isso não resultou em declaração de inconstitucionalidade”, completa.

Expectativa

Havia expectativa pelo voto de Celso de Mello, mas ele acabou decepcionando os ambientalistas. Como já fez em outros processos, defendeu o direito ao meio ambiente, repetindo que ele é fundamental, das gerações presentes e futuras e que deve prevalecer sobre interesses empresariais e econômicos. Também reconheceu o princípio da proibição de retrocesso em direitos socioambientais.

“A Constituição instituiu entre nós um verdadeiro estado de Direito Ambiental”, chegou a afirmar. “Nada mais perigoso do que se fazer a Constituição, sem cumpri-la”, continuou. E lembrou que o desmatamento tem assumido “proporções gravíssimas” no país, com consequências graves, como a perda de biodiversidade, o comprometimento de mananciais de água, a desertificação e agravamento do Efeito Estufa. Ao final de sua manifestação, no entanto, o Ministro Celso de Mello acabou acompanhando grande parte do Relatório do Ministro Luiz Fux e as poucas divergências listadas pelo Ministro Dias Toffoli. Os dois Ministros rejeitaram boa parte dos argumentos apresentados nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade.

“Apesar do Ministro Celso de Mello ter rejeitado grande parte das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, seu voto reforça que o princípio da proibição de retrocessos em maté-ria socioambiental serve como referência ao Legislativo e ao Executivo”, analisa Guetta.

“O julgamento respeitou o processo democrático, a posição do Congresso. O Código Florestal foi o assunto mais discu-tido desde a Constituição de 1988”, avaliou Rodrigo Justus, assessor de Meio Ambiente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Rodrigo Justus elogiou o voto de Celso de Mello. “Acho que agora podemos partir para a aplicação da Lei, que estava praticamente paralisada nos últimos quatro anos. Com essa decisão do Supremo, esperamos que os Estados façam a análise dos Cadastros Ambientais Rurais (CAR), chamem os produtores que têm passivos ambientais e deem as certidões de regularidade para aqueles que completem o processo de regularização”, finaliza.

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| política ambiental |

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O julgamento das Ações de Inconstitucionalidade do Código Florestal (ADINs) pelo Supremo Tribunal Federal encerra a fase de insegurança jurídica de uma Lei publicada em Maio de 2012 e que até agora não foi devidamente cum-prida e implementada no campo devido às incertezas sobre a sua validade. Vale lembrar que esta Lei é um dos principais instrumentos que trata da conservação da vegetação nativa em nosso país, uma vez que regula a manutenção, o uso e o corte da vegetação em imóveis privados. Isto significa por volta de 280 milhões de hectares, ou quase metade das florestas do país. Em geral, o julgamento manteve a constitucionalidade da maior parte dos artigos em questão. Isto na prática representa a manutenção da anistia de algo em torno de 41 milhões de hectares que desrespeitaram a Lei vigente antes 2008 e tiveram esta enorme dúvida perdoada pela Lei aprovada em 2012. A leitura é de uma derrota do meio ambiente e uma vitória dos ruralistas. O que isto de fato significa?

Uma parte da anistia implica na perda de serviços am-bientais essenciais para a manutenção da biodiversidade, da água, da economia, da qualidade de vida nas cidades e para a própria agricultura. Por exemplo, a manutenção da regra da escadinha e da medida dos leitos dos rios a partir da vazão média ao invés da máxima resulta na desproteção de mais de 4,5 milhões de hectares de matas ciliares que foram cortados ilegal e indevidamente no passado e que deveriam estar pro-tegidos e não precisarão mais ser recuperados. Se as nascentes intermitentes passaram a ser protegidas pelo julgamento do STF, segue a redução da área florestal necessária para a sua proteção, que foi reduzida de 50 para somente 15 metros. As funções ecológicas destas matas ciliares e de nascentes para a proteção do solo e da água são insubstituíveis e a falta destes 4,5 milhões de hectares implica em ameaça para o suprimento de água para as cidades, para as indústrias e para a irrigação.

O julgamento também manteve a possibilidade da com-pensação de Reservas Legais em distâncias muito grandes de onde a floresta deveria estar presente e a restauração de áreas anistiadas combinando-se espécies nativas com exóticas. Novamente, isto restringe em grande medida a provisão de serviços ambientais e deve resultar na proteção de florestas que não estão ameaçadas e a ausência de matas em regiões que possuem pequena cobertura com vegetação a nativa e o plantio de árvores é essencial. Podemos ter o código cumprido no país e continuar a ter regiões com menos de 5% de cobertura florestal, como ocorre no Estado de São Paulo, que já esteve no epicentro da crise hídrica e onde a agricultura exige cada vez mais agrotóxicos devido à falta de biodiversidade para controlar as pragas e doenças, e as safras podem ser menores pela ausência de polinizadores nas lavouras.

Luis Fernando Guedes Pinto | Pesquisador do Imaflora e membro do Observatório do Código Florestal

Código Florestal: agora é aplicar a Lei

Por fim, manteve-se a regra de que a dívida do proprietário de terra deve ser contada em função da regra vigente na data do desmatamento. Isto precisa ser definido nos Programas de Regularização Ambiental e a regra de cada Estado pode aumentar ainda mais a anistia. No Estado de São Paulo a interpretação desta regra para o Cerrado pode implicar na diminuição da exigência de restauração de dezenas de milhares de hectares de vegetação nativa.

E a decisão do STF é uma boa notícia para a agricultura brasileira?

Depende... Para a visão de curto prazo, pode ser uma ótima notícia. “Não segui a Lei e estou dispensado de reparar o que deveria ter feito. Ótimo!”. Para o produtor sério e responsável que sempre cumpriu a Lei, fica a sensação de ter sido o trouxa e que cumprir a Lei não vale a pena. No longo prazo, há razoá-veis evidências científicas de que manter e recuperar florestas interessa para a sustentabilidade da produção, com atenuação das mudanças climáticas, das crises hídrica, etc.

Para a sociedade brasileira e global também parece que ter uma Lei que protege florestas, um dos maiores ativos da Humanidade para o presente e para o futuro, interessaria. Ué, e por que não temos uma Lei que combina os interesses dos produtores e da sociedade? Na minha opinião, porque o Brasil não tem uma visão de longo prazo e muito menos do interesse público em primeiro lugar.

Se ter florestas interessa a todos, mas pode ter impactos para os produtores, precisamos de instrumentos que garantam a sua renda, mas não que isto aconteça necessariamente ao custo do meio ambiente e do interesse coletivo. A energia dos produtores poderia ter sido canalizada para a regula-mentação dos incentivos econômicos para o cumprimento do Código Florestal ao invés de se preocupar com a garantia da anistia.

De todos modos, agora temos a Lei julgada e definida. Com toda a sua controvérsia, agora ela deve ser cumprida. E para isto ainda resta um longo caminho. O Cadastro Ambiental Rural I(CAR) somente agora está encerrando a sua fase autodeclaratória e precisa ser validado. Os PRAs (Programas de Regularização Ambiental) de alguns Estados já foram publicados, mas muitos ainda não foram. A boa notícia é que um número razoável de estudos tem sido realizados e apontado os caminhos para o cumprimento da Lei. Um deles aponta um atalho, pois identificou que a maior parte da dívida atual da Lei está concentrada na mão de poucos grandes produtores. Estimamos que 94% da dívida está concentrada em 362 mil grandes e médios imóveis rurais do Brasil e este público deveria ser o alvo para a implementação das regras do Código no campo.

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O Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, quer colocar em pauta a chamada Lei do Licenciamento Ambiental (PL 3729/2004) para oferecer mais segurança jurídica aos empresários que buscam fazer novas obras no país. Segundo ele, existe possibilidade de acordo em torno da proposta.

“Tem um acordo da bancada do meio ambiente com a bancada do agronegócio e esse acordo certamente é uma boa sinalização para mostrar que quer se criar um novo licenciamento que garanta segurança jurídica para quem vai investir, mas também garanta os limites da preservação do meio ambiente. Esse acordo está construído e é só a gente dialogar com os líderes para que nas próximas semanas possa-mos começar o debate desta matéria”, informou o Presidente da Câmara dos Deputados.

A coordenadora da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputada Tereza Cristina (DEM-MS), afirma que o parecer proposto pelo Deputado Mauro Pereira (PMDB-RS) na Comissão de Finanças e Tributação evitaria que o agricultor tivesse que pedir uma nova licença para plantio todos os anos. Quanto às obras, a ideia é fixar um prazo de 10 meses para a emissão ou não da licença.

R. Maia quer pautar nova Lei do Licenciamento Ambiental

Sílvia Mugnatto | Jornalista da Agência Câmara

“O empresário não vai ficar esperando 3, 4 anos para fazer uma rodovia por falta de licenciamento. É uma facilitação, vai dar segurança e agilidade a todos os processos de licenciamento. É claro que aqueles complicados, por exemplo, se vamos fazer uma usina nuclear, aí não é assim. Temos que saber o grau de risco de cada empreendimento e fazer a liberação de acordo com isso”, avaliou a Deputada. Segundo ela, poucos são os pontos de desacordo com a bancada ambientalista.

O coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, Deputado Ricardo Tripoli (PSDB-SP), defende o texto aprovado na Comissão de Meio Ambiente que, segundo ele, desburocratiza, mas não retrocede em relação ao meio ambiente. “As emendas que se pretende levar ao Plenário, eu acho que esse é o grande problema que nós temos hoje. Porque aí, além de flexibilizar, vai descaracterizar completamente o licenciamento ambiental. Eu espero que haja bom senso por parte dos parlamentares no sentido de aprovarem uma medida que seja entendida pela sociedade como algo importante para a questão ambiental”, ponderou Tripoli.

A proposta da Lei do Licenciamento Ambiental tem 20 projetos tramitando em conjunto. A ideia é consolidar a legislação sobre o tema em um só dispositivo.

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| legislação ambiental |

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O desmatamento da Amazônia está prestes a atingir um determinado limite a partir do qual regiões da floresta tropical podem passar por mudanças irreversíveis, em que suas paisagens podem se tornar semelhantes as do Cerrado, mas degradadas, com vegetação rala e esparsa e baixa biodiversidade.

O alerta foi feito em um editorial publicado no dia 21 de Fevereiro deste ano (2018) na revista Science Advances. O artigo é assinado pelo ambientalista e biólogo Thomas Lovejoy, professor da George Mason University, nos Estados Unidos, e pelo climatologista Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas – um dos INCTs apoiados pela FAPESP no Estado de São Paulo em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – e pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

“O sistema amazônico está prestes a atingir um ponto de inflexão”, disse Thomas Lovejoy à Agência FAPESP.

Desmatamento na Amazônia: prestes a atingir limite irreversível

Elton Alisson | Jornalista da Agência FAPESP

Segundo os autores, desde a década de 1970, quando estudos realizados por Eneas Salati demonstraram que a Amazônia gera aproximadamente metade de suas próprias chuvas, levantou-se a questão de qual seria o nível de des-matamento a partir do qual o ciclo hidrológico amazônico se degradaria ao ponto de não poder apoiar mais a existência dos ecossistemas da floresta tropical. Os primeiros modelos feitos para responder a essa questão mostraram que esse ponto de inflexão seria atingido se o desmatamento da floresta atingisse 40%. Nesse cenário, as regiões Central, Sul e Leste da Amazônia registrariam menos chuvas, uma estação seca mais longa e a vegetação das regiões Sul e Leste poderiam se tornar semelhantes às savanas. Nas últimas décadas, outros fatores além do desmatamento começaram a impactar o ciclo hidrológico amazônico, como as mudanças climáticas e o uso indiscriminado do fogo por agropecuaristas durante períodos secos – com o objetivo de eliminar árvores derrubadas e limpar áreas para transformá-las em lavouras ou pastagens.

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A combinação desses três fatores indica que o novo ponto de inflexão a partir do qual ecossistemas na Amazônia oriental, Sul e Central podem deixar de ser floresta seria atingido se o desmatamento alcançar entre 20% e 25% da floresta original, ressaltam os pesquisadores.

O cálculo é derivado de um estudo realizado por Nobre e outros pesquisadores do Inpe, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e da Universidade de Brasília (UnB), publicado em 2016 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

“Apesar de não sabermos o ponto de inflexão exato, esti-mamos que a Amazônia está muito próxima de atingir esse limite irreversível. A Amazônia já tem 20% de área desmatada, equivalente a 1 milhão de quilômetros quadrados, ainda que 15% dessa área [150 mil km2] esteja em recuperação”, ressaltou Nobre.

Segundo os pesquisadores, as megassecas registradas na Amazônia em 2005, 2010 e entre 2015 e 2016, podem ser os primeiros indícios de que esse ponto de inflexão está próximo de ser atingido. Esses eventos, juntamente com as inundações severas na região em 2009, 2012 e 2014, sugerem que todo o sistema amazônico está oscilando. “A ação humana potencializa essas perturbações que temos observado no ciclo hidrológico da Amazônia”, disse Nobre.

“Se não tivesse atividade humana na Amazônia, uma megasseca causaria a perda de um determinado número de árvores, que voltariam a crescer em um ano que chove muito e, dessa forma, a floresta atingiria o equilíbrio. Mas quando se tem uma megasseca combinada com o uso generalizado do fogo, a capacidade de regeneração da floresta diminui”, explicou o pesquisador.

A fim de evitar que a Amazônia atinja um limite irrever-sível, os pesquisadores sugerem a necessidade de não apenas controlar o desmatamento da região, mas também construir uma margem de segurança ao reduzir a área desmatada para menos de 20%.

Para isso, na avaliação do cientista Carlos Nobre, será preciso zerar o desmatamento na Amazônia e o Brasil cumprir o compromisso assumido no Acordo Climático de Paris, em 2015, de reflorestar 12 milhões de hectares de áreas desma-tadas no país, das quais 50 mil quilômetros quadrados são da Amazônia.

“Se for zerado o desmatamento na Amazônia e o Brasil cumprir seu compromisso de reflorestamento, em 2030 as áreas totalmente desmatadas na Amazônia estariam em torno de 16% a 17%”, calculou Nobre. “Dessa forma, estaríamos no limite, mas ainda seguro, para que o desmatamento, por si só, não faça com que o bioma atinja um ponto irreversí-vel”, disse.

O editorial Amazon tipping point assinado por Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, pode ser lido na revista Science Advances em http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaat2340. (doi: 10.1126/sciadv.aat2340)

O artigo Land-use and climate change risks in the Amazon and the need of a novel sustainable development paradigma de Carlos Nobre, Gilvan Sampaio, Laura Borma, Juan Carlos Castilla-Rubio, José Silva e Manoel Cardoso, pode ser lido na revista PNAS em http://www.pnas.org/content/113/39/10759. (doi: 10.1073/pnas.1605516113)

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O processo de aquecimento global pode ocorrer de forma ainda mais intensa do que o previsto originalmente caso não se consiga frear o desmatamento, particularmente nas regiões tropicais do Planeta.

O alerta foi publicado na Nature Communications por um grupo internacional de cientistas. Entre os autores do texto estão os brasileiros Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), e Luciana Varanda Rizzo, professora do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Unifesp.

“Se continuarmos destruindo as florestas no ritmo atual – cerca de 7 mil km2 por ano no caso da Amazônia –, daqui a três ou quatro décadas teremos uma grande perda acumulada. E isso vai intensificar o processo de aquecimento do planeta independentemente do esforço feito para reduzir as emissões de gases de efeito estufa”, disse Artaxo à Agência FAPESP.

Desmatamento pode pioraro aquecimento global

Karina Toledo | Jornalista da Agência FAPESP

As conclusões do estudo se baseiam em trabalhos de modelagem computacional e medidas coletadas em flores-tas sob a coordenação de Catherine Scott, pesquisadora na Universidade de Leeds, no Reino Unido.

Após anos coletando informações sobre o funcionamento das florestas tropicais e temperadas, os gases emitidos pela vegetação e seus impactos na regulação do clima, o grupo foi capaz de reproduzir matematicamente as condições atmosfé-ricas atuais do Planeta, incluindo concentrações de aerossóis, Compostos Orgânicos Voláteis (VOCs, na sigla em inglês) antropogênicos e biogênicos, ozônio, dióxido de carbono, metano e também os demais fatores que influenciam na tem-peratura global – entre eles o chamado albedo de superfície (a fração da radiação solar refletida de volta para o espaço em comparação à fração absorvida, que muda de acordo com o tipo de cobertura da superfície).

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Foi usado no estudo um modelo numérico da atmosfera desenvolvido no Met Office, agência nacional de meteorologia do Reino Unido.

“Depois que conseguimos regular o modelo para repro-duzir as condições atuais da atmosfera terrestre e o aumento da temperatura do Planeta ocorrido desde 1850, fizemos uma simulação em que o mesmo cenário era mantido, mas todas as florestas eram eliminadas. O resultado foi uma elevação significativa de 0,8°C na temperatura média. Ou seja, hoje o Planeta estaria em média quase 1°C mais quente se não houvesse mais florestas”, comentou Artaxo.

Os estudos revelaram ainda que a diferença observada nas simulações se deve principalmente às emissões de BVOCs (Compostos Orgânicos Voláteis Biogênicos) pelas florestas tropicais. “Ao serem oxidados, os BVOCs dão origem a partículas de aerossol que esfriam o clima refletindo parte da radiação solar de volta ao espaço. Uma vez que a floresta é derrubada, ela deixa de emitir BVOCs e este resfriamento deixa de existir, levando a um aquecimento futuro. Este efeito não estava sendo levado em conta em modelagens anteriores”, comentou Artaxo. Segundo o pesquisador, as florestas tem-peradas produzem VOCs diferentes e com menor capacidade de dar origem a essas partículas esfriadoras.

Coleta de dados

Como destacado no artigo, atualmente a vegetação cobre um terço da área continental do planeta – fração bem menor do que a existente antes da intervenção humana. Grandes áreas florestais na Europa, Ásia, África e América já foram derru-badas. As informações sobre o funcionamento das florestas tropicais começaram a ser coletadas em 2009 na Amazônia, sob a coordenação de Artaxo, no âmbito de dois Projetos Temáticos apoiados pela FAPESP: “GoAmazon: interação da pluma urbana de Manaus com emissões biogênicas da Floresta Amazônica” e “Aeroclima: efeitos diretos e indiretos de aerossóis no clima da Amazônia e Pantanal”.

Os dados sobre as florestas temperadas foram obtidos na Suécia, na Finlândia e na Rússia, sob a coordenação de Erik Swietlicki, da Universidade de Lund (Suécia).

“Vale ressaltar que não tratamos neste artigo do impacto direto e imediato das queimadas, como a emissão do carbono negro [considerada um fator importante no aquecimento global devido à alta capacidade dessa partícula de absorver a radiação solar]. Ele existe, mas dura somente algumas semanas. Estamos olhando para efeitos de longo prazo na variação da temperatura”, afirmou Artaxo.

Segundo o professor do IFUSP, o desmatamento altera em definitivo a quantidade de aerossóis e de ozônio na atmosfera do planeta, o que muda todo o balanço radiativo da atmosfera. “A partir deste estudo aumentou a importân-cia relativa de se manter a floresta em pé. Não só é urgente parar a destruição, como também pensar em políticas de reflorestamento em larga escala, principalmente em regiões tropicais. Caso contrário, pouco vai adiantar o esforço para reduzir as emissões de gases estufa provenientes da queima de combustíveis fósseis”, disse Artaxo.

O artigo Impact on short-lived climate forcers increases projected warming due to deforestation, de C. E. Scott, S. A. Monks, D. V. Spracklen, S. R. Arnold, P. M. Forster, A. Rap, M. Äijälä, P. Artaxo, K. S. Carslaw, M. P. Chipperfield, M. Ehn, S. Gilardoni, L. Heikkinen, M. Kulmala, T. Petäjä, C. L. S. Reddington, L. V. Rizzo, E. Swietlicki, E. Vignati e C. Wilson, pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41467-017-02412-4.

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O impasse entre o governo da Venezuela e outros países americanos mantém em suspensão criogênica a candidatura do Brasil a sede da COP-25, a Conferência sobre o Clima de 2019. O assunto não se resolveu nas primeiras semanas de 2018, e deve ser um dos temas de conversa na reunião da Convenção do Clima de Bonn, em maio.

No final da COP-23, a Conferência de Fiji, que também aconteceu em Bonn, em Novembro passado, o Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, ofereceu o Brasil como sede da COP-25. A oferta chegou a ser registrada num documento que foi ao ar no site da Convenção (UNFCCC) logo antes da plenária final da COP. O texto havia sido encaminhado pela presidência paraguaia do GRULAC (Grupo da América Latina e Caribe), um dos grupos regionais da ONU, que reúne 33 países da região. O papel foi retirado logo em seguida, porque o consenso não estava maduro — ou melhor, Maduro não estava no consenso: os venezuelanos não queriam.

Venezuela segue barrando candidatura brasileira à COP-25

Claudio Angelo | Coordenador de Comunicação do Observatório do Clima (OC)

A Venezuela vem barrando todas as nomeações e indicações no âmbito da ONU que procedam do chamado Grupo de Lima. Esse grupo político foi formado por 11 países das três Américas (incluindo Canadá e México) no ano passado, após o Presidente Nicolás Maduro ter empossado a Assembleia Cons-tituinte chavista, que driblou o Congresso eleito venezuelano e transformou o país, efetivamente, numa ditadura. O Grupo de Lima não reconhece a Constituinte venezuelana e tem se manifestado contra a “ruptura da ordem democrática” na Venezuela. Segundo apurou o Observatório do Clima (OC), seus membros, entre eles o Brasil, também vem atuando para tesourar o regime de Maduro na ONU. Há dúvidas internas sobre a continuidade dessa estratégia.

A consequência da briga é que nenhuma candidatura do GRULAC vem sendo aprovada, já que o grupo, como o restante das Nações Unidas, decide por consenso. Entre os danos colaterais está a COP-25, que segue de molho.

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Lembrado anualmente pela ONU em 22 de Março, o Dia Mundial da Água de 2018 terá como tema o uso de soluções baseadas no meio ambiente para resolver problemas de gestão dos recursos hídricos. Essas estratégias focam a gestão de vegetações, solos, mangues, pântanos, rios e lagos, que podem ser utilizados por suas capacidades naturais para o arma-zenamento e limpeza da água.

Com a campanha “A resposta está na natureza”, as Nações Uni-das abordarão como estratégias de preservação e restauração ambiental podem proteger o ciclo da água e melhorar a qualidade de vida da população.

Atualmente, 1,8 bilhão de pessoas consomem água de fontes que não são protegidas contra a contaminação por fezes humanas. Mais de 80% das águas residuais geradas por atividades do homem – incluindo o esgoto caseiro – são despejadas no meio ambiente sem ser tratadas ou reutilizadas. Até 2050, a população global terá aumentado em 2 bilhões de indivíduos, e a demanda por água poderá crescer até 30%.

A agricultura é responsável por 70% do consumo de recursos hídricos – a maior parte vai para a irrigação das plantações. A participação do setor agrícola aumenta em áreas com maior densidade populacional e falta d’água. O campo é seguido pela indústria, que responde por 20% da água utilizada em atividades humanas. O uso doméstico representa apenas 10% do consumo total, e a proporção de água potável que é bebida pela população equivale a menos de 1%.

Com as transformações do clima e a manutenção de padrões insustentáveis de produção, a poluição e a desigual-dade na distribuição vão se agravar, bem como os desastres associados à gestão da água.

Hoje, 1,9 bilhão de indivíduos vivem em áreas que poderão ter escassez severa de água. Até 2050, o número pode chegar a cerca de 3 bilhões. A quantidade de pessoas em zonas de risco para enchentes também aumentará, passando do atual 1,2 bilhão para 1,6 bilhão, o que representará 20% da população mundial em 2050. Aproximadamente 1,8 bilhão de pessoas já são afetadas pela degradação da terra e pelo fenômeno conhecido como desertificação.

Tara Ayuk | Jornalista (com informações do PNUMA)

ONU propõe soluções naturaispara os problemas hídricos

Anualmente, a erosão do solo desloca de 25 bilhões a 40 bilhões de toneladas de camadas vegetais – o que reduz de forma significativa a produção das safras e a capacidade da terra de regular quantidades de água, carbono e nutrientes. Os rejeitos escoados do solo erodido, contendo nitrogênio e fósforo, são um dos principais poluentes dos recursos hídricos.

Para reverter esse cenário, a Organização das Nações Unidas celebra o Dia Mundial da Água com o tema “A natureza pela água”, um chamado em prol de soluções para questões hídricas baseadas na natureza.

Mas o que são essas estraté-gias? São iniciativas que focam na gestão de recursos ambientais, como vegetações, solos, mangues, pântanos, rios e lagos, utilizados por suas capacidades naturais para

o armazenamento e limpeza da água.A proteção e expansão de zonas pantanosas, bem como

a reposição de reservatórios hídricos subterrâneos são duas possibilidades para garantir estoques de água limpa, que são mantidos pelo próprio meio ambiente, com custo menor do que represas construídas pelo homem.

A poluição gerada pela agricultura pode ser reduzida com metodologias de conservação que evitam a erosão do solo por meio da diversificação das culturas. Outra medida é a criação de corredores de proteção vegetal ao longo de cursos d’água, com o replantio de árvores e arbustos nativos nas margens de rios — o que também pode amortecer o impacto de enchentes em comunidades ribeirinhas. Para contornar cheias, a ONU também recomenda reconectar rios a planícies de inundação, a fim de facilitar o escoamento natural da água.

Essas soluções baseadas na natureza criam a chamada “infraestrutura verde”, que são sistemas naturais ou semi-naturais capazes de oferecer os mesmos benefícios que a “infraestrutura cinza”, fabricada pelo ser humano.

Programas hídricos inspirados no meio ambiente podem trazer outras vantagens, além de melhorias na gestão da água. Mangues e pântanos criados para a filtragem de águas residuais fornecem biomassa para a produção de energia, ampliam a biodiversidade das comunidades e criam espaços de lazer, gerando mais empregos.

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| dia mundial da água |

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Um mês atrás, meu médico me disse para ficar na cama. Minha súbita e forte dor nas costas era uma hérnia na medula espinhal, disse ele, gerada durante meses por minhas inúmeras viagens carregando garrafões de 25 litros cheios de água cinzenta pesando 25 quilos, a quantidade de água autorizada para cada moradia para lavar os sanitários. Se eu quisesse caminhar novamente sem cirurgia, eu deveria ficar deitado até melhorar.

Minha espinha é outra vítima da seca, agora famosa, da Cidade do Cabo. Após 3 anos de precipitação excepcional-mente baixa, a vida em muitas famílias agora gira em torno da coleta e reutilização de água, porque esta cidade de mais de 4 milhões de pessoas está à beira de acabar. Se as projeções atuais estiverem certas, chegaremos ao melodramaticamente chamado Dia Zero, quando as torneiras secarão em algum momento no início de Maio.

Já passei por algo assim antes. Uma seca severa aconteceu em minha adolescência na Pretória de 1980. Lembro-me dos jardins tornando-se tijolos vermelhos, água da torneira saindo com cor de café fraco, banhos compartilhados com meus irmãos usando apenas 2 cm de profundidade de água no balde, e a crescente sensação de medo nos dias sem nuvens e céu azul implacavelmente claro que se seguiam. Fomos salvos por grandes tempestades quase no momento em que as barragens da cidade estavam prestes a secar.

Adam Welz | Escritor, fotógrafo, cineasta ambientalista sul-africano. Mora na Cidade do Cabo

Carta de uma vítima da seca na Cidade do Cabo

Foi-nos dito que a Cidade do Cabo se tornará a primeira grande cidade nos tempos modernos a ficar quase completa-mente sem água corrente, o que é realmente muito especial. Isso é apropriado: os capetonianos – pelo menos os tipos brancos de classe média e alta – são conhecidos por serem presunçosos quanto à especialidade de sua cidade. Até recen-temente, os visitantes da Cidade do Cabo foram regalados com declarações auto-satisfeitas sobre sua extraordinária beleza natural, ótimas praias, melhores restaurantes, vinhas impressionantes, propriedades de investimento, governo local eficiente, pinguins bonitos, e assim por diante.

Agora, nosso encontro iminente com a desidratação está furando a delicada bolha onde vivem muitos dos mais ricos cidadãos desta cidade e novas regras de comportamento estão sendo elaboradas.

Um conhecido meu observou recentemente que uma ida ao banheiro feminino de um restaurante chique criou um dilema: ela deveria dar descarga depois de fazer xixi e se expor como uma pessoa que desperdiça água sem considerações? Ou estava tudo bem em não dar descarga e forçar outros clientes a encarar uma mistura âmbar repugnante de urina de múltiplos estranhos depois que eles jantaram sensuais pratos de peixe fresco delicadamente temperado, guarnecido com micro-greens orgânicos e acompanhado pelo melhor sauvignon blanc da Cidade do Cabo?

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Como quase todo o resto na África do Sul, as discussões sobre a seca estão dominadas por preconceitos e racismos. Os capetonianos mais ricos (basicamente brancos) se queixam de que os residentes mais pobres (na maioria negros) dos assentamentos irregulares urbanos da cidade não pagam pela água e, portanto, estão desperdiçando-a. (A Constituição da África do Sul garante o direito à água, para que os cidadãos pobres recebam uma quantidade pequena e gratuita.) O feed do meu Facebook está cheio de posts escritos por brancos que contam histórias de que o sistema de fornecimento de água de seus trabalhadores domésticos pretos funcionam 24 horas por dia sem vigilância e que há também lavagem ilegal de carros praticada por empresas que usam água roubada nas favelas; muito poucos brancos se aventuram nessas periferias então essas histórias são fofoca.

“A crise da água não é minha culpa. Eu pago meus impostos, então o governo [pós-apartheid, preto] deveria nos fornecer água!” É um refrão comum no Facebook branco, cujo subtexto é que o supremacista branco, o governo da era do apartheid nunca teria deixado isso acontecer. Os capetonianos mais pobres atacam os moradores das “áreas nobres” apontando com precisão que as famílias ricas, com suas piscinas, gramados de estilo americano e banheiros usam quantidades de água de grande magnitude por pessoa e são, portanto, a causa da crise. Os rumores do imenso desperdício de água nas bou-tiques dos shopping centers de luxo são apresentadas como “evidências” de que os brancos ricos também desperdiçam água longe de suas casas.

Por um lado alguns cidadãos da Cidade do Cabo, no Facebook, acreditam que o governo está escondendo infor-mações sobre as fontes subterrâneas secretas que, se usadas, poderiam nos salvar do desastre (as fontes não são secretas e seu rendimento é pequeno demais para fazer uma diferença significativa). Já outros usuários do Facebook dizem que a crise da água faz parte de uma conspiração governamental para nos forçar a aceitar controles draconianos sobre o uso da água, para derrubar um ou outro partido político ou para acabar com a classe média mediante novos e onerosos impos-tos. Vídeos obscuros de barragens transbordantes circulam de forma selvagem: “prova” de que a seca não é real.

Muitos moradores da Cidade do Cabo acreditam que têm direito a grandes volumes de água barata e que as restrições ambientais devem ser ignoradas. As pessoas perguntam por que o governo não pode “simplesmente” colocar um aqueduto de Johanesburgo, onde há água (que está a uma distância de quase 1600 quilômetros da Cidade do Cabo), ou rebocar icebergs da Antártida (só um pouco mais longe!), ou imple-mentar as fantásticas máquinas israelenses para produzir água do ar para as pessoas.

A menor menção de Israel, em seguida, desencadeia outros posts de conspiração irritados que ligam o partido político da Prefeita Patricia de Lille a uma aquisição judaica das nos-sas reservas de água, que, por sua vez, provocam acusações desagradáveis de antissemitismo, e então tudo degenera em um golpe virtual sobre a Palestina.

O Facebook e o Twitter estão manchados de culpa, ignorância e analfabetismo ecológico em que ocasionais boas ideias e fragmentos de informações precisas tentam desespe-radamente impedir o afogamento. As teorias da conspiração, bêbadas e nuas, uivam através das ruas digitais desta cidade da África do Sul quase sem obstáculos, impulsionadas por ondas de pânico apavoradas.

Não apenas os cidadãos criticam. O governo municipal culpa o nacional por não ter construído a infraestrutura neces-sária para o fornecimento de água em quantidade suficiente, como, por exemplo, barragens e usinas de dessalinização (o que é verdade, não fez) e o governo nacional culpa o municipal por demorar em impor restrições ao uso da água (também é verdade). O Governo Estadual culpa os governos nacional e municipal por incompetência, e eles, por sua vez, acusam o Estado de se intrometer em assuntos fora do mandato.

A Primeira Ministra Estadual (Governadora), Helen Zille, está num emaranhado no Twitter, porque segundo ela, o ser-viço meteorológico não conseguiu prever a seca. Os cientistas observam que os modelos de mudanças climáticas preveem a queda das chuvas em torno da Cidade do Cabo, e deveríamos estar nos preparando há muito tempo. Os jornalistas que não sabem diferenciar um quilolitro de um megalitro ou de uma área úmida de um aquífero assumiram desavergonhadamente um conhecimento hidrológico da noite para o dia.

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Essa culpa desenfreada e a falta de informações credíveis parecem ter cultivado o fatalismo e o pensamento mágico em uma grande porcentagem da população da cidade. No início de Dezembro, a Prefeita da Cidade do Cabo anunciou que, apesar da grande publicidade em torno da crise, 64% dos residentes usavam mais do que o subsídio de 87 litros de água por pessoa por dia. A precisão dessa porcentagem foi contestada porque os meios de cálculo da Cidade da Cidade do Cabo não foram revelados, mas observadores sérios concordam que uma grande parte dos moradores da cidade não estava economizando água suficiente. O subsídio foi reduzido para 50 litros por pessoa por dia em 1º de Fevereiro, e a porcentagem de moradores atingindos no novo alvo é desconhecida.

Poucos planos dirigidos por cidadãos, em toda a comuni-dade para Dia Zero, se materializaram. Em vez disso, muitos grupos da mídia social incluem grandes grupos de pessoas organizando orações para a chuva, incluindo o Departamento Nacional de Águas e Saneamento da África do Sul. (A versão da nossa família de rezar pela chuva está deixando a roupa no varal quando o aplicativo do clima prevê algo mais do que céus nebulosos. Não é muito eficaz.) Versões aquosas de pregadores no estilo gospel-estadunidense de “prosperidade do evangelho” estão surgindo sob a forma de empresários vendedores de sistemas de dessalinização ambulante, que nos convidam a não ver a água como escassez, mas a “imaginar um novo paradigma de abundância de água”.

Claro, se 64% dos capetonianos não estão economizando água suficiente, isso significa que 36% estão. Não somos todos loucos nem niilistas, “graças a Deus”. A última moda na Internet é onde encontrar garrafões para transportar água, pequenos ou grandes, que são tão raros quanto os dentes das galinhas. Os empresários locais desembarcam de Johanesburgo com caminhões cheios de galões de plástico, estacionam nas esquinas das ruas, anunciam seus locais nas mídias sociais e vendem em poucas horas. As lojas de ferragens possuem listas de espera de três meses para tanques de chuva que triplicaram seus preços há um ano. O meu feed do Facebook está cheio de proprietários desesperados à procura de lojas que realmente possuam galões em estoque. (Eu imagino que os proprietários das fábricas de garrafões de água de Johanesburgo ficaram satisfeitos com as pilhas de dinheiro que se estendiam lenta-mente, enquanto os comboios de caminhões se enchiam até o talo desses produtos rumo à Cidade do Cabo).

Nossa família conseguiu reduzir o consumo de água abaixo dos 50 litros por pessoa por dia por alguns meses, usando água cinza para lavar os sanitários, fazendo o reuso da água da máquina de lavar para lavar a próxima carga de roupas e dando banho nas crianças apenas a cada três ou quatro dias (eles não parecem se importar). Não regamos o jardim há muito tempo e as plantas estão morrendo, principalmente as espécies não nativas, as quais não gostamos mesmo. A faixa de gramado da frente está quase morta, o que também é bom. Podemos substituí-la por margaridas nativas quando (se?) chover novamente.

Nós temos grandes tanques de armazenamento de água da chuva no nosso quintal, que foram instalados pelos proprietários anteriores da casa. Eles são feios e ocupam espaço, mas essas cisternas devem nos manter durante algum tempo se o Dia Zero chegar. Se esses reservatórios secarem ou a situação de segurança ficar fora de controle, planejamos nos mudar para Johanesburgo; estamos desenvolvendo um plano de saída e colocamos uma garrafa de combustível extra para o carro.

Sarah, que cresceu nos subúrbios com água abundante de Chicago, agora entende por que fiquei ansioso quando nossos amigos estadunidenses lavaram alegremente pratos nas tor-neiras sem fechar a água. Eu, de minha parte, a valorizo mais do que nunca. Ela tem carregado água extra e implementado estratégias para sua economia enquanto eu convaleci.

Minha lesão nas costas me levou a uma nova compreensão do milagre vital e salvador da civilização, que é água cana-lizada e limpa. Ganhei involuntariamente um respeito mais profundo pelo vivido por milhões de mulheres (porque são principalmente as mulheres) que em toda a África, todos os dias, carregam cada gota de água que buscam em poços e rios para suas casas. Alguns políticos estão começando a dizer que a seca deve inspirar os capetonianos a desenvolver um “novo relacionamento com a água”. Eles estão certos.

Se os modelos das mudanças climáticas acertarem, a parte ocidental da África do Sul está fadada à seca geral nos próximos anos. Em longo prazo, teremos que fazer mais com menos água e pagaremos muito mais por isso, também.

Mas primeiro, temos que lidar com o Dia Zero e avançar até Junho ou Julho, quando as chuvas de Inverno geralmente vem. Se as torneiras estiverem secas na maior parte da cidade, centenas de milhares ou milhões estarão entrando na fila para encher recipientes com água potável em 150 pontos de distribuição de água de emergência que serão instalados em escolas e quadras de esportes. Alguns preveem conflitos nos pontos de distribuição, pessoas desesperadas percorrendo as ruas em busca de água e a cidade descendo para uma guerra mortal da água. (Eu digo a Sarah que estou secretamente aliviado porque nossos tanques de água não são visíveis da rua. “Você acha que as pessoas vão entrar aqui para roubar?”, Ela pergunta. “Eu não quero ter que comprar uma arma”.)

Outros pensam que vamos sair dessa ilesos. Em 1994, os sul-africanos surpreenderam o mundo e nós mesmos quando, depois do Apartheid e conflitos raciais violentos, um número impressionante de nós se alinhou pacífica e pacientemente para votar em nossas primeiras eleições democráticas e escolhe-mos Nelson Mandela para a Presidência. Se os capetonianos podem convocar o Espírito de 94 – o que não é garantido que ocorra – é possível que tudo termine bem.

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Helen Zille, Primeira Ministra do Cabo Ocidental, pegando água

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Promete discussões acalora-das – e certamente interessantes – o Fórum Mundial da Água, que começa no próximo dia 18 em Brasília e é organizado a cada três anos pelo Conselho Mundial da Água e pelo país anfitrião. Desse órgão mundial participam 400 instituições em 70 países, reunindo governos, universidades, sociedade civil, empresas e ONGs. Para esta pró-xima, discussões já se preveem temas complexos e polêmicos como transposição de bacias, reúso da água na indústria e na agricultura, regras para divisão entre países, financiamento, legislação e muitos outros.

Este ano, por exemplo, um dos temas mais polêmicos será apresentado pelo Brasil, com a proposta, nascida no Conselho Nacional do MP e na Procuradoria-Geral do MP, de inscrever o acesso à água na legislação como direito humano – incluindo a proteção contra a poluição, as condições de consumo. E ainda não ficará inscrita a inclusão da água como direito humano (CNMP, dezembro 2017) – embora em muitos lugares a água defina as relações de poder em determinado território.

No Fórum será discutida a Carta dos Bispos do Velho Chico, em que os prelados dessa região, representando 11 das 16 dioceses – “diante do processo de morte em que esse rio se encontra e das consequências que isso representa para a população que dele depende” –, assumem de forma colegiada a defesa do Rio São Francisco, “de seus afluentes e do povo que habita sua bacia”. Nesse documento, denunciam o sumiço de “inúmeras nascentes e pequenos afluentes”; o aumento da água para irrigação, indústria, consumo humano e outros usos econômicos”; a destruição de matas ciliares; o aumento dos conflitos na disputa pela água; “empresas que sempre fazem prevalecer seus interesses e o Estado que acaba por ser o legi-timador de um modelo predatório de desenvolvimento”.

O documento propõe, por isso, convocar a população para reforçar as iniciativas populares de recomposição florestal, recuperação de nascentes, revitalização de afluentes, reforçar a ética da responsabilidade ambiental e o modo sustentável de convivência com a Caatinga, o Cerrado e a Mata Atlântica, assim como defender políticas públicas para implementação do saneamento básico e apoio à agricultura familiar, entre vários outros objetivos. Por isso tudo, propõem “uma mora-tória para o Cerrado por dez anos, para a Caatinga e a Mata Atlântico, biomas que alimentam o Rio São Francisco e dele também se alimentam”.

A prioridade absoluta para a defesa dos recursos hídricos não é pauta prioritária só em discursos no Brasil. Na Índia e na África do Sul, autores que tratam do tema ressaltam que não se trata apenas dos temas habituais de mudanças extremas do clima, colheitas perdidas, vidas abortadas.

Pouca água, muita genteWashington Novaes | Jornalista

Trata-se também de gravíssimos problemas para a vida urbana, o desenvolvimento industrial e o enfrentamento da pobreza.

Mais de 80% da eletricidade na Índia vem de geradoras térmicas, queima de carvão, gás e combustível nuclear, 90% das usinas de energia térmica são resfriadas por água corrente e 40% dessa água já enfrenta situação muito preocupante. E os governos continuam prometendo que todas as casas terão eletricidade em 2019. O consumo de água deverá multiplicar-se por sete até 2030.

Para esse ano, são apocalípticas as previsões para a Cidade do Cabo, na África do Sul, uma das maiores cidades do mundo. Na Província de Western, a escassez quase total de energia obrigará a limitar a 87 litros por dia por pessoa o consumo de água bombeada. Mas poderá baixar para 25 litros. E os dramas do clima continuam a crescer assustadoramente, numa estiagem que já dura três anos (Folha de S. Paulo, 3/2) - a pior em um século. A cidade corre para pôr em funcionamento estações dessalinizadoras de água do mar.

Enquanto isso, a cidade de Paris anunciou que, seguindo o exemplo de Nova York e outras cidades norte-americanas, estuda a possibilidade de processar empresas de combustíveis fósseis, por causarem danos ao clima (350 org., 6/2). Também fazem parte do lobby no Grupo de Liderança Climática das Cidades para que Paris, Londres e outras cidades assumam o compromisso de retirar investimentos de empresas de combustíveis fósseis. Sydney e a Cidade do Cabo, além de Berlim, Oslo, Copenhague e Estocolmo já se comprometeram a proibir investimentos públicos em combustíveis fósseis. O Chile anunciou compromissos de eliminar a energia a car-vão no país. No Brasil, na cidade de Peruíbe (SP), a pressão popular barrou a construção de uma megausina termoelé-trica. Iniciada em 2012, a campanha para reduzir a licença a empresas consideradas mais responsáveis pela crise climática tem levado a baixar rapidamente esses empreendimentos. Em Nova York o Prefeito Bill de Blasio anunciou que retirará seus fundos de pensão de US$ 191 bilhões de projetos ligados a combustíveis fósseis.

Pode parecer a muitas pessoas que as campanhas nessas áreas são descabidas. Mas basta lembrar que 1 bilhão de pessoas no mundo não têm acesso á água potável, segundo relatório do Conselho Mundial da Água (IHU, 23/1/18): na Ásia são 554 milhões; na África Subsaariana, 319 milhões; na América do Sul, 50 milhões. O consumo de água por pessoa nos países ricos é de 425 litros por dia; nos países pobres, 10 litros. São necessárias de uma a três toneladas de água para produzir um quilo de cereal; até 15 toneladas para um quilo de carne; para produzir as refeições necessárias em um dia para uma pessoa são necessários entre 2 mil e 5 mil litros de água.

Com a população mundial em crescimento e com as questões climáticas se agravando, todos esses números con-tinuarão crescendo rapidamente. É preciso ter pressa para enfrentar essas questões.

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Ao pensar na África, geralmente formamos imagens com exuberância de recursos naturais. Falta de água nos remeteria aos desertos daquele continente, especialmente o Saara, no Norte. No Sul, ficam os desertos do Kalahari e da Namíbia. De resto, não se imaginaria escassez hídrica. Todavia, no extremo Sul, a Cidade do Cabo, capital legislativa da África do Sul, está vivendo uma das piores crises hídricas urbanas que se tem notícia nos tempos modernos. A cidade de mais de 3,5 milhões de habitantes foi apontada pelo New York Times em 2014 o melhor lugar do mundo para visitar. Hoje, sua população vive em contagem regressiva para o “Dia Zero”: o dia em que a água da cidade vai acabar. Esta data já foi estimada em Abril, passou para Maio, e atualmente é 4 de Junho de 2018! Em Curitiba, se parasse de chover, considerando cheios os quatro principais reservatórios de abastecimento, teríamos água suficiente para abastecer a população por cerca de dois anos. Isso sem considerar outros usos da água.

Na região da Cidade do Cabo, choveu muito pouco nos últimos três anos e seus habitantes vivem a realidade do racionamento: 50 litros por dia por pessoa, desde o início de Fevereiro, e volumes pouco maiores há alguns meses. Esse valor é muito próximo ao considerado mínimo necessário para não aumentar riscos de doenças de veiculação hídrica. Inclui 3 litros para beber, 20 l para descarga sanitária, 15 l para banho e 10 litros para cozinhar. Seria possível diminuir esse volume implementando, por exemplo, tecnologias que economizam água na descarga. Entretanto, não estão instaladas na cidade toda, não sendo alternativa viável no presente.

Além das alterações climáticas, responsáveis pela falta de chuva, outros fatores contribuíram para a crise atual. Os técni-cos responsáveis pelo planejamento da cidade vêm advertindo os governantes há quase três décadas que a infraestrutura existente não seria suficiente para manter o abastecimento de água da Cidade do Cabo em caso de secas prolongadas. O principal reservatório de abastecimento da cidade fica em uma área em processo crescente de desertificação, claro indicador de mudanças no clima da região. Os governantes optaram por ignorar o aviso, não promover melhorias na infraestrutura, e continuar fomentando o desenvolvimento econômico não sustentável. Em meados de 2017, a crise teve que ser admitida, e em Janeiro de 2018 foi determinado que residências que utilizassem mais que 350 litros de água por dia seriam multadas. Além disso, a água para abastecimento da cidade não será compartilhada com os agricultores da região, o que provavelmente vai causar um grande aumento nos preços de alimentos nos próximos meses. Ou seja, a crise hídrica vai desencadear outras crises, como a de abastecimento, a econômica e a sanitária.

Ironicamente, a Cidade do Cabo vai sediar, em Maio próximo, a Conferência Internacional sobre Perdas de Água. Essas perdas, principalmente devido a vazamentos nas tubulações de redes de abastecimento, se constituem em um grande vilão hídrico.

Maurício Dziedzic | Dr em Engenharia Hidráulica. Coordenador de Pós-Graduação em Gestão Ambiental da Universidade Positivo

A corda arrebenta para todosO percentual de perdas varia bastante entre as cidades e

países. Na África do Sul, é da ordem de 30%; em Curitiba, de 40%. A crise hídrica de São Paulo, por exemplo, seria bastante aliviada, com a diminuição das perdas de mais de 30%. No Brasil, a variação é grande, chegando a cerca de 70% em algumas cidades. É muito desperdício que, se evi-tado, pode descartar a necessidade de exploração de outros mananciais. Tanto aqui, quanto na África do Sul, uma gestão pública séria e preocupada com o bem-estar da população, o que inclui a sustentabilidade, é fundamental para evitar vários tipos de crise.

Infelizmente, o que se vê é pouca ou nenhuma preocupa-ção com a questão pública. Os governantes e seus burocratas associados se colocam em luta constante pelo poder e vantagens pessoais – e desdém pela situação alheia. Esquecem que estão forçosamente inseridos na realidade coletiva, e que um dia a corda arrebenta para todos. Aqui, ainda há tempo para agir. Na Cidade do Cabo, vão ter que colar os cacos.

E por onde começar? Pela educação de qualidade e acessível a todos. Além disso, é fundamental mudar o para-digma educacional do Brasil. Precisamos educar visando ao desenvolvimento de capacidade de análise crítica, ao contrário do que se pratica hoje, que é a cultura da memorização e da resposta a perguntas prontas. Os egressos de nossas escolas precisam ser capazes de questionar a pergunta, de investigar os motivos para que ela seja feita. Dessa forma, teremos cidadãos mais conscientes e menos fáceis de manipular. Ao mesmo tempo, é essencial desenvolver no aluno/cidadão os princípios éticos, principalmente pelo exemplo, na escola, em casa e na sociedade.

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Caso aprovado, será a maior área úmida do mundo reconhecida pela Convenção de Ramsar. São 11,2 milhões de hectares na Amazônia.

No Dia Mundial das Áreas Úmidas (2 de Fevereiro) deste ano, o governo brasileiro, por meio do Ministério do Meio Ambiente (MMA), encaminhou ao Secretariado da Convenção das Zonas Úmidas de Importância Internacional, na Suíça, proposta de reconhecimento do Rio Negro, no Amazonas, e áreas adjacentes, como Sítio Ramsar. Caso aprovado, será o maior sítio Ramsar do mundo.

Além das Áreas de Preservação Permanente (APPs) às margens do rio, a proposta inclui 16 Unidades de Conservação (UCs) federais, estaduais e municipais e oito Terras Indíge-nas (TIs) já existentes na região, somando 11,2 milhões de hectares de áreas protegidas no Norte da Amazônia. Trata-se de uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta, repleta de áreas úmidas.

O MMA quer tornar a região do Rio Negro um Sítio Ramsar

Elmano Augusto | Jornalista do MMA

A expectativa é receber a confirmação até o 8º Fórum Mundial das Águas, que será realizado em Brasília, de 18 a 23 de Março. Atualmente, o Brasil tem 22 Unidades de Conservação federais reconhecidas como Sítio Ramsar.

Sob o status de Sítio Ramsar, a região do Rio Negro poderá usufruir de benefícios financeiros e assessoria técnica para o desenvolvimento de ações de conservação. Terá ainda prioridade na implementação de políticas governamentais e ganhará reconhecimento público, tanto por parte da sociedade nacional como por parte da comunidade internacional, o que contribui para fortalecer a sua proteção.

“O reconhecimento da região como uma área úmida de importância internacional é uma oportunidade para uma melhor gestão integrada dos territórios, a fim de preservar a conectividade dos processos ecológicos nas áreas úmidas da Amazônia”, defendeu o secretário de Biodiversidade do MMA, José Pedro de Oliveira Costa.

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Estudos

De acordo com os estudos anexados à proposta brasileira, entre os principais rios da Bacia Amazônica, o Rio Negro é o maior afluente da margem esquerda do Rio Amazonas. Com mais de 1,5 mil km de extensão, é o rio de água preta mais longo do mundo.

A região de influência do Rio Negro, ainda segundo os estudos, compreende uma das maiores áreas de florestas tropicais preservadas do planeta. O rio mantém alta diver-sidade, associado à dinâmica do ecossistema do “pulmão de inundações”. Essa complexidade espacial e temporal faz com que a bacia negra inclua um alto nível de endemismo (espécies só existentes no local) de peixes, pássaros e plantas.

As Unidades de Conservação implantadas no local têm como objetivo principal proteger e gerenciar uma variedade de áreas úmidas peculiares à região, como as florestas de igapó (matas de igapó), savanas edáficas (campinas e campinaranas) e arquipélagos fluviais, juntamente com a enorme diversidade etnocultural compreendida dentro da bacia.

Além disso, na Bacia do Rio Negro há áreas naturais declaradas como patrimônio mundial, reservas de biosfera e Sítios Ramsar, como o Parque Nacional de Anavilhanas. O sistema agrícola tradicional do Rio Negro é tido como Patrimônio Cultural Brasileiro, assim como vários sítios arqueológicos ao longo do rio.

As áreas propostas incluem Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), áreas naturais que abrigam populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais.

UCs e TIs da proposta do Sítio Ramsar do Rio Negro

Parque Nacional do Jaú (federal)Parque Estadual Rio NegroParque Estadual Rio Negro Setor SulReserva Extrativista do Rio Unini (federal)Reserva Particular do Patrimônio Natural Ilhas Alexandre Rodrigues FerreiraRDS Amanã (federal)RDS Puranga Conquista (estadual)RDS do Rio Negro (estadual)RDS do Tupé (municipal)Área de Proteção Ambiental Jufari (municipal)Área de Proteção Ambiental Margem Direita do Rio Negro-Setor Paduari-Solimões (estadual)Área de Proteção Ambiental Margem Esequerda do Rio Negro-Setor Tarumã Açu-Tarumã Mirima (estadual)Área de Proteção Ambiental Margem Esquerda do Rio Negro-Setor Aturiá-Apuauzinho (estadual)Área de Proteção Ambiental Mariuá (municipal)Área de Proteção Ambiental Tarumã/Ponta Negra (mun.)Área de Relevante Interesse Ecológico Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (federal)Terra Indígena Alto Rio NegroTerra indígena Cuiu-CuiuTerra indígena Jurubaxi-TéaTerra indígena de Maraã UrubaxiTerra indígena Médio Rio Negro ITerra indígena Parana do Boa BoaTerra indígena Rio TéaTerra indígena de Uneiuxi

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A colossal Amazônia é megadiversa até mesmo em suas minúcias. Os igara-pés, como são chamados os pequenos cursos d’água da região, comprovam: alguns deles podem ter mais espécies de peixes de água doce do que países inteiros, como a Noruega ou a Dinamarca. E se alguém imagina esses redutos da biodiversidade como ambientes remotos no coração da floresta virgem é melhor pensar de novo, pois bastam poucas horas de carro entre a capital Belém e o município de Paragominas, com mais de 100 mil habitantes e intensa atividade agropecuária, para encontrar um igarapé capaz de causar inveja aos nórdicos. Nessa mesma rota, é bastante provável que, algumas poucas dezenas de quilômetros adiante, haja outro igarapé com um conjunto de espécies de peixes diferente do anterior e, não raro, não encontradas em nenhuma outra parte da própria Amazônia. É que os igarapés são altamente diversos em sua fauna aquática e muito distintos entre si.

Há ainda outras razões que justificam sua conservação. Enquanto, em Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga a constitucionalidade do novo Código Florestal, alterado em 2012, pesquisas recentes demonstram que a importância dos pequenos corpos d’água amazônicos é muito maior do que supunham os cientistas. Se a flexibilização da lei já era preocupante diante das informações disponíveis à época, sabemos agora que há muito mais em jogo.

Em algumas bacias hidrográficas, igarapés representam 90% de toda a extensão dos cursos d’água, além de serem as cabeceiras dessas intrincadas redes hídricas. Interligados em um sistema único, os impactos sofridos por eles em função da degradação florestal ecoam nos rios maiores, que, por sua vez, já estão impactados por grandes obras de infraestrutura, como as usinas hidrelétricas.

A relevância dos igarapés e seu alto nível de exposição às atividades humanas, em especial à agropecuária, foi tema de artigo que publicamos no periódico científico Journal of Applied Ecology. Vitais para as populações da Amazônia, os igarapés fornecem água potável para o consumo humano e para o gado; irrigação de cultivos de alto valor, como frutas e verduras; peixes para consumo e comércio ornamental; áreas de recreação e vias para deslocamentos.

Por serem biodiversos e singulares, a salvaguarda de alguns poucos igarapés no interior de UCs criadas pelo Estado, ainda que fundamental, não é representativa da sua fauna como um todo. Por outro lado, seria inviável ter 100% dos igarapés dentro de áreas protegidas. Assim, a solução é garantir sua proteção também nas propriedades privadas.

Cecília Gontijo Leal | Bióloga do Museu Paraense Emílio Goeldi e integrante da Rede Amazônia Sustentável (RAS)

Por que os pequenos rios da Amazônia são fundamentais

A grosso modo, a Amazô-nia brasileira está igualmente dividida entre unidades de conservação e propriedades privadas. Nas áreas particu-lares, o que vale é o Código Florestal. A legislação prevê maior proteção às matas cilia-res (vegetação nas margens

de rios, lagos e riachos), consideradas Áreas de Preservação Permanente (APPs). Só que esta é praticamente a única con-sideração voltada à proteção dos cursos d’água em geral.

Tampouco o fato de existir uma legislação específica para as APPs significa que estejamos quites com sua conservação. Estudos recentes apontam que, nas últimas décadas, no Pará, as matas ciliares foram comparativamente mais desmatadas do que as reservas legais (vegetação nativa mais distante das margens), o que evidencia falha no cumprimento da lei.

A versão atual do Código Florestal, que reduziu as reser-vas legais e as APPs e anistiou desmatadores, abriu ainda outras brechas. A primeira é permitir que as áreas de Áreas de Preservação Permanente sejam contabilizadas também como reserva legal, quando, na verdade, a presença de mata ciliar não substitui a necessidade das florestas mais distantes dos corpos d’água na propriedade – os igarapés precisam das duas.

A segunda lacuna é que reservas legais desmatadas podem ser compensadas por outras áreas no mesmo bioma, preferencialmente no mesmo estado. Acontece que os estados amazônicos são maiores do que boa parte dos países europeus e, para ser efetiva, a compensação precisa ser local.

Por fim, ainda restam as estradas de terra. Ao recortarem a paisagem sem planejamento e muitas vezes de forma clandes-tina, elas atropelam os igarapés com pontes mal construídas, manilhas improvisadas e desniveladas com o leito dos rios, causando a interrupção do fluxo natural da água, além de erosão e assoreamento. Enquanto a travessia de uma estrada em um igarapé possa parecer um impacto pontual, os efeitos negativos acumulados são relevantes. Nossas estimativas apontam mais de 3000 travessias de estradas de terra sobre igarapés apenas em Paragominas. Imagine o número em toda a Amazônia.

Não temos dúvidas de que os igarapés alterados podem gerar efeitos locais e acumulados de enorme proporção. E não se trata de atravancar o desenvolvimento do agronegócio brasileiro, mas sim de impulsionar o debate sobre estratégias adequadas de conservação e uso da terra. Em última análise, a legislação ambiental brasileira precisa ser fortalecida e cum-prida. Este é o único caminho viável para assegurar o futuro dos rios da Amazônia.Jo

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| biomas |

Page 32: Ano XXVIII • Nº 255 • Fevereiro 2018 • R$ 15,00 • … baixa.pdfWashington Novaes • Chico Whitaker • Silvia Ribeiro • Roberto Malvezzi Álvaro R. dos Santos • Lúcio

Diferentemente de países com vulcanismo ativo, terremo-tos, furacões, tempestades tropicais cíclicas e outros pode-rosos agentes da Natureza, no Brasil as áreas de risco estão inequivocamente associadas a erros humanos na ocupação de terrenos geológica, geotécnica ou hidrologicamente mais sensíveis e instáveis. Por exemplo, no caso de deslizamentos são ocupados terrenos que por sua enorme suscetibilidade natural a esse tipo de fenômeno não poderiam de forma alguma ser ocupados, ou são ocupados terrenos de média e alta declividades perfeitamente passíveis de receber uma ocupação urbana, mas com o uso de técnicas construtivas e arranjos urbanísticos a eles tão inadequados que, mesmo nessa condição mais favorável, são transformados em um canteiro de áreas de risco. Aliás, as áreas de risco a deslizamentos no país são em sua grande maioria dessa natureza.

Destaque-se que nessas duas condições, como também no caso de margens de córregos e várzeas sujeitas à inundação, a criação de áreas de risco está intimamente associada à busca de terrenos mais baratos por parte da população de baixa renda, que somente dessa forma consegue fugir de aluguéis e ter sua própria moradia.

Dessa constatação, ou seja, a responsabilidade humana na instalação de áreas de risco, deduz-se que, diferentemente dos países com terremotos e vulcanismo ativo, por exemplo, no Brasil a eliminação do problema áreas de risco depende, na esmagadora maioria dos casos, apenas da decisão humana em não mais cometer os erros que estão na origem causal do problema.

Álvaro Rodrigues dos Santos | Geólogo. Consultor de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente

Áreas de risco: sistemas de alerta escondem omissão

Daí a importância em se distinguir o diferente papel dos sistemas de alerta naqueles países onde os fatores de risco são realmente naturais e incontroláveis e em nosso país, onde os fatores de risco são antrópicos, e, portanto, controláveis. No Brasil, o papel de um sistema de alerta deveria cumprir uma função nitidamente emergencial e provisória. Ou seja, é indispensável sua adoção enquanto ainda estejam sendo efetivadas as medidas verdadeiramente estruturais que podem e vão eliminar o risco detectado.

E quais seriam essas medidas estruturais voltadas à elimi-nação de riscos? Podemos assim elenca-las concisamente:

• criterioso planejamento do crescimento urbano, impedindo-se a ocupação de terrenos com condições natu-rais de muito alto risco e adotando-se planos urbanísticos e técnicas construtivas corretas na ocupação de terrenos de alto e médio riscos;

• implementação de programas de habitação popular que atendam a demanda da população de baixa renda por casa própria, reduzindo assim a pressão pela ocupação de terrenos impróprios à urbanização;

• desocupação de áreas de muito alto risco já instaladas, com realocação dos moradores em novas habitações dignas e seguras;

• consolidação urbanística e geotécnica de áreas de alto, médio e baixo riscos já instaladas.

Desgraçadamente, por incúria, desvios éticos e total des-caso com o ser humano, essas medidas estruturais destinadas à eliminação dos riscos não recebem a mínima atenção dos três níveis de governo, o federal, o estadual e o municipal. À exceção do crescimento do número de mapeamentos de risco, com a produção de cartas de suscetibilidade, cartas de risco e cartas geotécnicas, ferramentas imprescindíveis para a gestão do risco urbano, mas apenas ferramentas, pode-se dizer que muito perto do absolutamente nada está sendo feito em matéria de implementação de medidas estruturais de real combate aos riscos.

E é nesse cenário que se apresenta como um expediente oportunista de extrema crueldade humana a decisão de dotar sistemas de alerta ao risco de caráter permanente e como única medida de gestão de riscos que, pelos seus baixos custos financeiros e sua descomplexidade política, é de fato imple-mentada. Seria muito interessante ver como as autoridades públicas responsáveis por esse crime de omissão reagiriam fossem moradores em áreas de risco e vendo-se submetidas à brutalidade de, ao som de uma alucinante sirene, ou de um torpedo no celular, sob chuva torrencial deixar suas casas às 3 horas da manhã carregando morro abaixo seus idosos, suas crianças, seus doentes e seus parentes com necessidades especiais para fugir da possibilidade de serem tragados pelo barro e pelas pedras de um deslizamento.

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| política ambiental |

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Depois de longos anos com chuvas abaixo da média, agora chove por todo sertão do Semiárido brasileiro. Como cantava Gonzaga: “rios correndo, as cachoeiras tão zoando, terra molhada, mato verde que riqueza e a asa branca à tarde canta, ai que beleza, ai, ai o povo alegre, mais alegre a natureza”.

Os grandes reservatórios ainda estão secos ou muito bai-xos, mas os reservatórios médios, pequenos e micros, como as cisternas, já estão todos cheios. São eles que importam realmente no cotidiano de nosso povo. As grandes obras têm pouca serventia à população difusa do Semiárido. Por isso, o problema da água hoje é mais grave no meio urbano do que no meio rural nordestino.

O ciclo das águas é fundamental para todos os mananciais de superfície e subterrâneos. São as chuvas que repõem os rios, lagos e aquíferos. Sem a renovação constante do ciclo a vida se interrompe. É esse alerta dramático que pessoas sábias, cientistas e movimentos sociais fazem ao mundo predador do capitalismo, particularmente ao agro e hidronegócios. Sem Amazônia e sem Cerrado o ciclo de nossas águas estará interrompido, com a extinção dos grandes aquíferos que se localizam no Cerrado e abastecem perenemente rios como o São Francisco, Araguaia e Tocantins.

A volta da chuva aos sertõesRoberto Malvezzi (Gogó) | Agente pastoral na região do Semiárido

A Oligarquia Internacional da Água, rótulo que lhe atribui Ricardo Petrella, vai se reunir em Brasília no mês de Março. São as grandes transnacionais da água, que querem sua pri-vatização geral, sua mercantilização e sua transformação em um produto comercial qualquer. Essas empresas elaboraram o novo discurso da água, com sua teoria de escassez, valor econômico, privatização e mercantilização como soluções para os problemas hídricos do mundo inteiro.

Ao mesmo tempo se reunirá o Fórum Mundial Alterna-tivo da Água (FAMA) para contrapor ao discurso do capital os valores da água como o biológico, social, ambiental, paisagísticos etc., recusando a sua privatização e garantindo a água como direito fundamental de toda pessoa humana e de todos os seres vivos.

Essa é uma das guerras mais insanas da humanidade. Num país caoticamente político como o nosso, Temer está realizando a entrega de nossos aquíferos, particularmente o Guarani, para grandes empresas como a Coca-Cola, Nestlé e outras transnacionais da água. Uma tragédia cruel e anunciada.

O golpe chegou também na água. OBS: Viva a politizada Tuiuti! Nem toda consciência

dorme.

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O Ano era 2010, e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) trouxe a esperança de que a gestão pública brasileira, de uma forma geral, iria se redimir dos sucessivos erros no quesito infraestrutura, ao longo de décadas. Mas do papel à realidade, chegamos em 2018, e constatamos que existe uma cultura de inope-rância resistente que fragiliza a efetivação dessas mudanças em boa parte dos municípios. A prova está na permanência de cerca de 3 mil lixões ou aterros controlados espalhados pelo território nacional em 3.331 municípios, que recebem cerca de 30 milhões de toneladas de resíduos urbanos anualmente (41,6%). Os dados de projeção fazem parte do documento “Panorama de Resíduos Sólidos 2016”, da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe). Chorume, gases tóxicos e trabalhadores em condições insalubres compõem este cenário obsoleto ainda em vigor.

O maior número de lixões se encontra respectivamente nas regiões Nordeste, seguida da Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Já os aterros controlados, no Sudeste, no Sul, Nordeste, Centro-Oeste e Norte, de acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), no Diagnóstico de Manejo de Resíduos Sólidos – 2015, divulgado pelo Ministério das Cidades. O prazo oficial para encerramento dos lixões era 2014 e foi postergado, no Congresso, pelo Senado, para acontecer de forma escalonada até 2021 e encontra-se em tramitação na Câmara. Este é o quadro atual hoje.

Coberturas no país

Ao consultar especificamente os registros no SNIS, o levantamento expõe que existem 98,6% de cobertura de coleta domiciliar urbana e isso representa que 2,6 milhões de habitantes principalmente do Nordeste, Sudeste e Norte sem atendimento, além de 15 milhões na área rural. A esti-mativa de destinação a lixões e aterros controlados difere da projeção feita pela Abrelpe (metodologias de amostragem diferentes). Neste caso, o percentual exposto pelo SNIS é de 33,2% contra 41,6% (Panorama Abrelpe). Independente disso, o fato é que existe um problema de alta complexidade e sério a ser resolvido, que não pode ser colocado “embaixo do tapete”. O diagnóstico sobre os resíduos sólidos urbanos, do Governo Federal, tem o recorte de informações de 3.520 dos 5.570 municípios, que correspondem a 82,8% da população urbana (143 milhões de pessoas).

Lixões e aterros controlados: uma dura realidade no Brasil

Sucena Shkrada Resk | Jornalista. Criadora do Blog Cidadãos do Mundo

Passivo ambiental

Existe, entretanto, um passivo ambiental que praticamente é descartado nessas discussões, são os lixões e aterros contro-lados que são “encerrados”, mas que devem ser fiscalizados e monitorados e passar por processo de mitigação (redução de danos) por tempo indeterminado, por causa de suas emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e possíveis comprometi-mentos de lençóis freáticos. Este é o caso do recém-fechado “Estrutural”, no Distrito Federal, considerado o maior da América Latina e que figura entre os 50 maiores do mundo, que fica a 15 km do Palácio do Planalto. Junto com os lixões de Carpina (PE), Camacan (BA), Divinópolis (MG) e Jaú (SP), ainda em funcionamento, entre os maiores do país.

Mais um aspecto a ser considerado é o aumento gra-dativo da “exportação de lixo” de seu lugar de origem à destinação constatado nestes dados. Trocando em miúdos, são observados percursos cada vez mais distantes (inclusive a outros municípios) e que acarretam também o agravo da emissão de GEEs, entre outras. Este cenário descreve que o saneamento ambiental (que incorpora também coleta e tratamento de esgoto, drenagem...) continua a ser o entrave ao desenvolvimento efetivo do país. A implementação de Planos Municipais e Intermunicipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos ainda são ínfimos diante de um Brasil com 5.570 municípios. O Plano Nacional de Resíduos Sólidos começou a ser revisado em 2017.

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Sucena Shkrada Resk

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Investimento ou gasto?

Como as prefeituras, os governos estaduais e o governo federal incorporam no exercício da política pública, a coleta e a destinação adequada dos resíduos sólidos a aterros sani-tários? Esta é uma questão que exige reflexão da sociedade na contribuição cidadão em um regime democrático. Hoje o valor médio anual da despesa com manejo de resíduos sólidos no país é de R$ 117 por habitante e R$ 82 para municípios de 30 a 100 mil habitantes e R$ 207, nas duas principais metrópoles brasileiras, conforme informações do SNIS.

Iniciativas pontuais revelam algumas mobilizações da sociedade civil organizada para ter uma participação mais ativa, neste sentido, como a criação, em 2014, do Observatório da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Outro movimento é a Aliança Resíduo Zero.

Externalidades prioritárias

O que está em questão são as externalidades desta agenda, que incorporam o “bem-estar” da população, o reflexo em atendimentos e internações no Sistema Único de Saúde, incluindo, inclusive, óbitos em decorrência de doenças asso-ciadas ao ciclo dos resíduos, como também, na contribuição para a contaminação de corpos hídricos, para as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEEs) e os efeitos nas Mudanças Climáticas, entre outros componentes.

Ao mesmo tempo, reflete nossos hábitos de consumo e a responsabilidade sobre os mesmos. Quanto produzimos de resíduo?

A média nacional de resíduos domiciliares é de 0,90 kg/hab/dia per capita, segundo dados do SNIS. A coleta seletiva no Brasil também é inexpressiva, sendo 22,5% dos municí-pios têm algum tipo de coleta, 40,6% não têm e o restante sequer apresenta algum tipo de informação a respeito. A cada 10 quilos, 470 gramas seguem para a coleta seletiva, o que é avaliado como um volume muito baixo. Ao se analisar este conjunto de informações, nos defrontamos com uma questão de saúde pública e de justiça socioambiental.

Os vetores – moscas, baratas, ratos, pulgas e mosquitos – associados ao que descartamos estão relacionados a diferentes doenças (cólera, dengue, diarreia, cheguelose, endoparasitose, febre tifoide, giardíase, leptospirose, parasitose, peste bubônica, tétano, tracoma). Neste contexto, também está o compro-metimento do descarte inadequado de resíduos de serviço de saúde associados ao HIV, hepatites C e B, como também de componentes químicos potencialmente cancerígenos. O gás metano que poderia abastecer usinas de biogás, como meio de energia, também segue para a atmosfera, nestes locais inadequados de descarte. Estima-se que o governo brasileiro gaste cerca de R$ 1,5 bi anualmente com doenças relacionadas à destinação incorreta de resíduos, segundo a International Solid Waste Association (ISWA).

Catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis ainda ficam à mercê deste sistema insalubre, expostos a substâncias tóxicas e resíduos orgânicos. Uma outra parcela consegue estabelecer a dignidade do trabalho, mas às custas de muito empenho e mobilizações com a formação de cooperativas, utilização de tecnologias sociais, como do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

Já a logística reversa é insuficiente na cobertura nos princi-pais segmentos da economia. Alguns dos melhores resultados acontecem com o setor de latinhas de alumínio, PETs e pneus, entre outros segmentos, que têm estabelecido estratégias mais contínuas de desempenho. O setor empresarial tem um importante papel nesta cadeia. O investimento em usinas de compostagem (no caso do resíduo orgânico) é praticamente descartada, com o argumento de alto custo.

Tudo isso parece óbvio, mas por que não é assimilado e as soluções não são efetivadas na prática? O que há de errado no sistema político em vigor no país? O que se prioriza nos Planos Plurianuais de Ações (PPAs), nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs) e Leis de Orçamentos Anuais (LOAs), nos orçamentos com gestão participativa? São perguntas que exigem uma participação mais ativa na condução das políticas públicas por parte de cada um de nós, como cidadãos, que somos responsáveis por nossos votos, nas urnas, aos gestores e legisladores, e gestão participativa.

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| resíduos sólidos |

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Nos últimos dois anos, a Piraquê – uma das mais conheci-das fabricantes de biscoitos, massas e refrescos do país – vem reunindo esforços para reduzir os resíduos destinados aos Aterros Sanitários da região da Baixada Fluminense. Ao longo deste período foram planejados e desenvolvidos projetos cujos resultados a Piraquê contabiliza que deixa de enviar de 350 toneladas de resíduos, por mês, para o aterro sanitário.

Porém, o mais positivo das ações é que os programas encontraram finalidades sustentáveis para a destinação, como por exemplo, o aproveitamento de resíduos das massas de biscoitos e de macarrão e as sobras e os retalhos de biscoitos e massas fora do padrão de qualidade Piraquê, onde aproxi-madamente 320 toneladas por mês, se transformam em ração animal. Agindo assim, o que antes era descartado no aterro atualmente é destinado a várias fazendas do interior do Rio de Janeiro. Uma das empresas que recebe o retalho de biscoito é a Mantiqueira, granja produtora de ovos.

Outro projeto que foi desenvolvido é o aproveitamento dos resíduos gerados na preparação dos alimentos e a sobra de comida provenientes das refeições dos próprios colaborado-res, 10 toneladas por mês, que são realizadas em restaurante próprio da empresa, vão para compostagem na empresa Vide Verde, na Cidade de Cachoeiro de Macacu. Por meio de um processo simples, os resíduos de alimentos são transformados em adubo utilizado para o cultivo de alimentos orgânicos. Com este insumo, a Vide Verde produz coco totalmente orgânico. Os paletes de madeira, as caixas e os caixotes utilizados na fábrica, cerca de 18 toneladas por mês, são encaminhados a uma empresa de manufatura que reutiliza toda esta madeira. Com isso, a companhia contribui para o uso consciente de recursos naturais.

Piraquê reduz lixo com ações sustentáveis

Fabio Barros | Jornalista

A empresa também destina para reciclagem papelão, embalagens plásticas e sucatas metálicas, de forma a reduzir a produção de embalagens com novos produtos. As estopas com solvente passam por uma blendagem – processo que mistura resíduos compatíveis, gerando um produto completamente alternativo que serve de matéria-prima para abastecer fornos de cimenteiras. Estas estopas são totalmente descaracterizadas e geram um produto de alto poder calorífico.

Segundo Carlos Roberto Coutinho – Engenheiro e Gerente de Segurança do Trabalho, Meio Ambiente e Saúde da Piraquê – a empresa tem tratado seus resíduos com foco na política dos 3 Rs – reduzir, reutilizar e reciclar – com efetivo controle dos processos produtivos, mitigando os riscos, controlando as perdas de formar a garantir uma produção segura e susten-tável. Neste contexto, outro projeto no controle de resíduos relacionado com a borra mista da sua produção de gordura, a partir do óleo vegetal – cerca de 100 toneladas /mês – se transformam em insumo para produtos de limpeza. Já o óleo lubrificante dos caminhões e os solventes contaminados na limpeza de peças da sua oficina mecânica são vendidos para uma empresa especializada que direciona para purificação, transformando-os em novos produtos de 2ª linha.

Em relação ao consumo de energia elétrica, para reduzir seu consumo, a energia consumida na empresa vem do sistema de cogeração a partir de gás natural, cuja tecnologia de geração e distribuição é desenvolvida por uma empresa especializada dentro do seu parque industrial. Com este processo, além de não impactar o consumo da energia da população, a Piraquê garante uma produção mais estável sem quedas de energia, o que significa menos perdas no processo. Neste mesmo conceito, a nova fábrica de Queimados tem implantado um processo de sistema de água de reuso, utilizada para jardi-nagem e banheiros.

“A Piraquê realiza de forma estruturada diversas iniciativas sustentáveis, incluindo as de energia, água e reciclagem de resíduos. Desta forma, cerca de 400 toneladas de resíduos deixam de ser descartados para os Aterros Sanitários de Nova Iguaçu e Seropédica. Queremos desenvolver para o nosso segmento, o conceito que é possível produzir e garantir o desenvolvimento sustentável, preservando o meio ambiente. Ainda temos planos, projetos e ações para a comunidade, coletando produtos da população do nosso entorno, que possam ser reciclados ou destinados de forma ecologicamente correta”, explica o engenheiro Carlos Roberto Coutinho.

“Como empresa nós trabalhamos para garantir que nossa produção siga rigorosamente a legislação ambiental e as boas técnicas e práticas de produção, com foco nos processos e mitigação dos possíveis impactos ambientais decorrentes desta atividade”, comenta Alexandre Colombo.

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Como se o desmatamento já não fosse suficientemente ruim, uma série de outras ameaças mata num ritmo cada vez mais intenso as árvores da Amazônia e de outras florestas tropicais úmidas da Terra.

Uma revisão de artigos científicos feita por especialistas no tema, incluindo o pesquisador brasileiro Paulo Brando, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), indica que a taxa de mortalidade dessas árvores mostra sinais de aceleração nos últimos anos. Os motivos são o aumento da temperatura, secas longas e piores, ventos mais fortes, incêndios mais extensos, mais cipós e até a abundância de gás carbônico na atmosfera – uma das causas do Efeito Estufa e elemento fundamental da fotossíntese.

As mudanças climáticas estão relacionadas a todos os problemas apontados. “O trabalho mostra que há indícios fortes que relacionam a mortalidade das árvores de florestas tropicais úmidas às alterações esperadas para essas regiões, em escalas global e regional”, afirma Brando.

O foco do estudo foram as florestas intactas, primárias ou antigas, na América do Sul, África e Sudeste Asiático. Porém, ele tende a focar na Amazônia brasileira, pois é o local mais estudado de todos, com mais volume de dados.

“Na Amazônia, todas essas causas de mortalidade de árvores estão presentes”, diz Brando. “Mas é difícil dizer que uma é mais relevante do que outra, porque todas têm um papel. Secas causam picos de mortalidade, enquanto o aumento de CO2 provoca mudanças de fundo. Já eventos de tempestades de vento impactam mais áreas fragmentadas, e o fogo causa muitos danos no sudeste da Amazônia”.

É impossível estabelecer qual desses ataques é pior. As secas, por exemplo, elas têm se tornado cada vez mais longas e severas; na Amazônia, episódios anômalos ocorreram em 1997, 2005, 2010 e 2015. Como defesa imediata, as árvores tomam atitudes extremas, como fechar os estômatos (células por onde ocorre a respiração das plantas) e perder mais folhas.

Árvores de florestas tropicais úmidas morrem mais cedo

Cristina Amorim | Jornalista do IPAM

Essas folhas, por sua vez, se acumulam em abundância no solo e servem de combustível para incêndios florestais, que se alastram facilmente e por mais tempo.

Secas e temperaturas mais altas ainda podem levar as árvores a definharem de fome, também num mecanismo de defesa que acaba se tornando um algoz. Ao fechar os estô-matos para salvar água em seu interior, ela deixa de capturar o gás carbônico do ar, sua fonte de alimentação, enquanto consome o que tem dentro.

O regime forçado as deixa mais suscetíveis a ataques de pestes, como insetos, ou à competição por comida com os cipós – que por sua vez têm se proliferado ainda nesses ambientes. E, mesmo que a dieta não aconteça, o excesso de gás carbônico no ar também não significa que as florestas crescerão abundantemente.

“Quando há muito gás carbônico, algumas árvores podem dominar o pedaço e roubar os recursos dos vizinhos. Assim, há um aumento esperado na mortalidade de árvores, mas não necessariamente mudanças drásticas nos estoques de carbono”, explica o pesquisador do IPAM. “Outra explicação é que a floresta se torna mais dinâmica com mais CO2; cresce mais rapidamente e morre mais rapidamente, tanto pelo metabo-lismo quanto por mudanças na estrutura da floresta”.

Tampouco o fato de estarem próximas à linha do Equador traz vantagem para as florestas tropicais úmidas num planeta mais quente: um novo regime de temperatura, esperado para os próximos anos devido às mudanças climáticas, pode mudar o metabolismo das árvores.

Os autores do estudo abrem uma discussão sobre cenários que possam reverter o quadro, como um aumento da pre-cipitação anual, mas não entram na discussão sobre como a ação humana pode reverter o quadro.

Segundo Brando, reduzir a taxa de mudança no clima e estabilizar o processo o quanto antes, que envolve derrubar os níveis de emissão de CO2, mas também do desmatamento, são fatores essenciais para manter as florestas tropicais do mundo. “Quanto menor a área de borda de floresta, comum em paisagens fragmentadas, menor o impacto da seca, fogo e ventos.”

Ele também destaca a importância de se aprofundar as análises. “As redes de observação são extremamente impor-tantes para entendermos se as nossas florestas estão saudáveis, e o Brasil tem feitos avanços importantes”, diz. “Precisamos saber o que realmente está acontecendo, para fechar buracos nas observações que ainda existem e nos preparar para os efeitos das mudanças climáticas.”

A revisão foi liderada por Nate McDowell, do Laboratório Nacional do Noroeste Pacífico (EUA), e publicada na revista científica especializada “New Phytologist” (www.newphyto-logist.org) neste mês (Fevereiro).

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| pesquisas |

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Alguns dos mais importantes rios do Brasil – Xingu, Tocantins, Araguaia, São Francisco, Parnaíba, Gurupi, Jequitinhonha, Paraná e Paraguai, entre outros – nascem no Cerrado. Trata-se da única savana do planeta dotada de rios perenes. A rápida conversão do Cerrado em pastagens e lavouras e o manejo inadequado das áreas preservadas colo-cam em risco esse formidável recurso natural, em um país com o terceiro maior potencial hidrelétrico tecnicamente aproveitável do mundo, e em que 77,2% da matriz elétrica é suprida pela hidroeletricidade.

Além disso, a destruição do Cerrado constitui uma perda inestimável em termos de biodiversidade, pois, na microes-cala, esse bioma, que pode apresentar 35 espécies diferentes de plantas por metro quadrado, é mais rico em flora e fauna do que a floresta tropical.

Uma vez degradado, Cerrado não se regenera naturalmente

José Tadeu Arantes | Jornalista da Agência FAPESP

Sabe-se que o Cerrado tem um potencial de regeneração natural muito alto.

Mas até que ponto vai sua resiliência? O que é necessário para que, uma vez convertido em

pastagens, o Cerrado recupere sua configuração natural? Quanto tempo seria necessário para isso?Um novo estudo, feito na Universidade Estadual Paulista

(UNESP) e com resultados publicados no Journal of Applied Ecology, procurou responder a essas perguntas.

“Nosso esforço inicial foi localizar, no Estado de São Paulo, as áreas de antigas pastagens que agora se encontram em regeneração natural na condição de ‘reserva legal’”, disse a coordenadora do estudo Giselda Durigan, professora da pós-graduação em Ciência Florestal da UNESP e pesquisadora do Instituto Florestal do Estado de São Paulo.

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O trabalho foi realizado no âmbito do doutorado de Mário Guilherme de Biagi Cava, com Bolsa da FAPESP e orientação de Durigan, e também apoiado por meio de um Auxílio à Pesquisa concedido ao professor Milton Cezar Ribeiro e de uma Bolsa de Doutorado a Natashi Aparecida Lima Pilon.

“Foram encontradas mais de 80 áreas, o que pareceu de saída um dado bastante promissor. Mas o entusiasmo inicial de meu orientando foi arrefecido pela resistência dos proprietários em permitir o acesso às áreas para amostra-gem. E isso nos levou a uma primeira constatação: a de que o rigor das leis de preservação não tem sido acompanhado da necessária assistência que deveria ser prestada pelo poder público aos particulares para a restauração da vegetação”, disse a pesquisadora.

Apesar do interesse social de uma pesquisa como essa, a oposição dos proprietários fez com que a amostragem fosse reduzida para 29 áreas, que haviam sido convertidas de Cerrado em pastagens, e foram posteriormente incorporadas como Unidades de Conservação ou reservas legais de empresas de reflorestamento, usinas e propriedades agropecuárias.

Nelas, foi feito o levantamento da vegetação, tanto das árvores quanto das plantas pequenas que compõem o estrato herbáceo-arbustivo e que constituem a maior riqueza da flora do Cerrado. Apesar de estarem localizadas em regiões diferentes, essas 29 áreas, com idades variando de quatro a 25 anos, puderam ser ordenadas em uma sequência cronológica no que se refere ao estágio de regeneração.

“Para resumir nossos resultados, de maneira bastante simplificada, descobrimos que o estrato arbóreo se recupera, até mesmo com muita facilidade. Mas, uma vez eliminada, a vegetação rasteira ou de pequeno porte, que compõe o estrato herbáceo-arbustivo e que contém a maior parte das espécies endêmicas, não se regenera. Então, quando a pastagem é simplesmente abandonada, ela se transforma, depois de algum tempo, em um cerradão, que é uma formação caracterizada por vegetação muito adensada, com grande predomínio de árvores e pobre em biodiversidade”, afirmou Durigan.

As árvores se recuperam por possuírem raízes muito profundas e terem evoluído, ao longo de milhões de anos, desenvolvendo a capacidade de rebrotar inúmeras vezes.

“Quem tenta implantar pastagens no Cerrado sabe que o custo maior de manutenção é a roçada. Sem que seja roçada pelo menos de dois em dois anos, a vegetação arbórea volta a se impor. Não é possível eliminá-la nem aplicando herbicida”, disse Giselda Durigan.

Porém o estrato herbáceo-arbustivo, que é removido para a implantação das pastagens, não se recompõe, devido à invasão dos terrenos por gramíneas exóticas muito resistentes e agressivas: as braquiárias.

“Essas só desaparecem com o sombreamento, causado pelo adensamento das árvores. Mas, quando desaparecem as gramíneas exóticas, as plantas originais de pequeno porte, que foram completamente erradicadas pelos herbicidas, pelas roça-das e pela competição com as braquiárias e que não toleram a sombra, também não voltam mais”, continuou a pesquisadora do Instituto Florestal do Estado de São Paulo.

Para fazer com que a área voltasse a abrigar um cerrado típico, seria necessário eliminar as gramíneas exóticas, com manejo por meio de fogo associado a herbicida, e, depois, reintroduzir as espécies nativas. Mas isso constitui uma operação difícil e cara, que, com os recursos atuais, não pode ser realizada em larga escala.

“Temos pesquisado diferentes técnicas para promover a recuperação. Com sementes, é necessária uma quantidade gigantesca, que não há nem de onde tirar. O que deu muito certo, em escala experimental, foi o transplante do estrato herbáceo-arbustivo: a camada superficial do solo, acompa-nhada das touceiras de capim e das pequenas plantas”, disse a coordenadora do estudo.

“O grande problema é que, no Estado de São Paulo, já não há mais áreas-fonte para isso. O que sobrou de Cerrado aberto está invadido por gramíneas exóticas. Então, quando se transplanta a camada superficial do solo, a braquiária vai junto. Isso acontece inclusive nas áreas protegidas”, acrescentou Giselda Durigan.

Floresta degradada

O estudo feito na UNESP permitiu fechar um diagnóstico e fazer predições. Espontaneamente, uma vez degradado, o cerrado típico não se recompõe totalmente. Para que uma área de pastagem volte a ser um cerrado típico, com riqueza de biodiversidade, com a flora característica, com habitats para fauna especializada em savana, é necessário manejo humano: não se pode deixar que o adensamento das árvores passe do limiar de 15 metros quadrados por hectare; é preciso erradicar o capim exótico; e deve-se reintroduzir o estrato herbáceo-arbustivo nativo.

Evoluindo espontaneamente, sem manejo, em 49 anos a vegetação arbórea nas antigas áreas de pastagem irá se trans-formar em cerradão. A cobertura esparsa de solo característica do cerradão é alcançada em quatro anos e a biodiversidade pobre do estrato herbáceo é obtida em 19 anos. “O processo é rápido, mas os resultados não são os que procuramos. O cerradão não se distingue de uma floresta degradada”, disse Giselda Durigan.

Agora, dois anos depois do levantamento, já na segunda fase do doutorado de Mário Guilherme de Biagi Cava, os pesquisadores irão voltar às mesmas áreas em Fevereiro e Março deste ano (2018), e medir tudo novamente, para obter a taxa precisa de aumento de cobertura, densidade e biodiversidade.

“Esses valores precisos nos permitirão saber com exatidão qual é o potencial de regeneração das diferentes áreas e quais são os fatores favoráveis. É o tipo de solo? É a distância a uma fonte de sementes? É a proximidade de recursos hídricos? Todos esses parâmetros serão considerados”, disse Durigan.

Conforme afirmou, o artigo publicado por seu grupo é muito inovador porque não há ninguém em outros países tratando de recuperação de savanas.

“Isto porque ainda não ocorreu na África nem na Aus-trália um processo similar ao que estamos vivendo aqui, de conversão da savana em pastagens extensivas e em grandes lavouras de soja, cana ou milho. Na África, as savanas estão bem degradadas, mas devido ao sobrepastoreio, à exploração de lenha e a outras ações cujos impactos são menos visíveis no curto prazo. No Brasil, estamos presenciando transfor-mações que ocorrem de um dia para o outro”, comentou a pesquisadora.

O artigo Abandoned pastures cannot spontaneously reco-ver the attributes of old-growth savanas, de Mário G. B. Cava, Natashi A. L. Pilon, Milton Cezar Ribeiro e Giselda Durigan, está publicado em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1365-2664.13046/full.

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Estudo abrangente dos mares revela: em 60 anos, zonas costeiras sem oxigênio se multiplicaram por dez. Além da vida marinha, fenômeno ameaça meio bilhão de pessoas. Há soluções bloqueadas pelo poder econômico.

As zonas mortas no oceano, com zero oxigênio, quadrupli-caram em tamanho desde 1950, enquanto o número de locais com muito pouco oxigênio perto das costas cresceram dez vezes, alertou um novo estudo científico publicado no início de fevereiro. A maioria das espécies marítimas não consegue sobreviver nessas zonas e a tendência atual levaria à extinção em massa no longo prazo, arriscando causar consequências terríveis para centenas de milhões de pessoas que dependem dos mares para viver.

As mudanças climáticas causadas pela queima de com-bustível fóssil são a causa da desoxigenação em larga escala, pois águas mais quentes retêm menos oxigênio. As zonas mortas costeiras são consequência de fertilizantes e esgoto que correm da terra para o mar.

O estudo, publicado na revista Science, é a primeira análise abrangente dessas áreas e afirma: “Grandes eventos de extinção na história da Terra foram associados a climas quentes e oceanos deficientes em oxigênio.” Denise Breitburg, do Centro de Pesquisa Ambiental Smithsonian (Smithsonian Environmental Research Center), nos Estados Unidos, res-ponsável pela análise, disse: “Na trajetória atual, é para esta situação que nos dirigimos. Mas as consequências, para os seres humanos, de manter essa trajetória são tão medonhas que é difícil imaginar que possamos ir tão longe”.

“Esse problema pode ser resolvido”, disse Breitburg. “Deter as mudanças climáticas requer um esforço global, mas mesmo ações locais podem ajudar a evitar a redução de oxigênio.” Ela apontou a recuperação da Baia Chesapeake, nos EUA, e do rio Tâmisa, no Reino Unido, onde melhores práticas agrícolas e de saneamento levaram ao desaparecimento de zonas mortas.

Contudo, o professor Robert Diaz, do Instituto Virginia de Ciência Marinha (Virginia Institute of Marine Science), revisor do novo estudo, disse: “Neste momento, a crescente expansão de zonas mortas costeiras e o declínio de oxigênio no mar aberto não são problemas prioritários para governos em todo o mundo. Infelizmente, será necessário ocorrer severa e persistente mortalidade de peixes para que tomem consciência da falta de oxigênio”.

Os oceanos alimentam mais de 500 milhões de pessoas, especialmente em países mais pobres, e proporcionam trabalho para 350 milhões. Mas no mínimo 500 zonas mortas foram localizadas até agora perto das costas, contra menos de 50 em 1950. A falta de monitoramento em várias regiões significa que o verdadeiro número pode ser muito maior.

Damian Carrington | Editor de Meio Ambiente do The Guardian

Zonas mortas nos oceanos quadruplicam desde 1950

O mar aberto tem naturalmente áreas de baixo oxigênio, em geral na costa oeste dos continentes devido à forma como a rotação da Terra afeta as correntes oceânicas. Mas essas zonas mortas expandiram-se dramaticamente, aumentando milhões de quilômetros quadrados desde 1950, em área praticamente equivalente à da União Europeia.

Além disso, está caindo o nível de oxigênio em todas as águas oceânicas, com 2% – 77 bilhões de toneladas – sendo perdidos desde 1950. Isso pode reduzir o crescimento, preju-dicar a reprodução e aumentar as doenças, alertam cientistas. Ironicamente, águas mais quentes não apenas retêm menos oxigênio como também levam organismos marinhos a respirar mais rápido, usando mais oxigênio.

Há também perigosos mecanismos de feedback. Micróbios que proliferam em níveis muito baixos de oxigênio produzem muito óxido nítrico, um gás de efeito estufa que é 300 vezes mais potente que o dióxido de carbono.

Em regiões costeiras, a poluição por fertilizantes, excre-mentos animais e água de esgoto causa a floração de algas, e quando elas se decompõem o oxigênio é sugado para fora d’água. Em alguns lugares, contudo, as algas podem gerar mais alimento para os peixes e aumentar a captura perto das zonas mortas. Isso pode não ser sustentável, disse Breitburg: “Preocupa muito que estejamos mudando o modo como esses sistemas funcionam, o que pode levar à redução de sua resiliência global”.

O novo estudo foi produzido por um grupo de trabalho internacional criado em 2016 pela Comissão Oceanográfica Intergovernamental da UNESCO. Kirsten Isensee, membro da Comissão, disse: “A desoxigenação do oceano está aconte-cendo em todo o mundo como resultado da pegada humana; é necessário, portanto, que a enfrentemos globalmente”.

Lucia von Reusner, diretora de campanha do grupo Mighty Earth (Terra Forte), que recentemente estabeleceu uma ligação entre a zona morta do Golfo do México e a produção de carne em larga escala, disse: “Essas zonas mortas continuarão a se expandir, a menos que as grandes indústrias de carne que dominam o sistema agrícola global comecem a limpar sua cadeia de fornecedores, de modo a manter a poluição fora de nossas águas”.

Diaz observou que a velocidade da asfixia dos oceanos é de tirar o fôlego: “Nenhuma outra variável de tal importância ecológica para os ecossistemas costeiros mudou tão drasti-camente, em período tão curto, pela ação humana, como a dissolução do oxigênio”.

A necessidade de ação urgente, disse, é bem resumida pelo lema da Associação Americana do Pulmão (American Lung Association): “Se você não consegue respirar, nada mais importa”. (Tradução: Inêsz Castlho)

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A Itaipu Binacional quer dobrar, nos próximos 3 anos, o seu programa de apoio à agri-cultura orgânica e sustentável da Região Oeste do Paraná. Isso beneficiará também as propriedades que praticam a Agricultura Biodinâmica.

Hoje, o Programa de Desen-volvimento Rural Sustentável da Itaipu, atende cerca de 1.600 produtores conveniados e incen-tiva os agricultores a optarem pela conversão de suas propriedades, migrando do sistema convencional para o manejo orgânico, sem o uso de adubos químicos e agrotóxicos. O objetivo é estender o programa para mais de 3 mil famílias. O engenheiro agrônomo Newton Luiz Kaminski, Diretor de Coordenação da Itaipu, anunciou a nova meta, durante o lançamento do livro “Sistema de Produção Orgânica da Soja”.

Itaipu amplia programa que incentiva agricultura orgânica

Erik Von Farfan | Jornalista

O evento ocorreu na Vitrine Tecnológica de Agroecolo-gia, instalada no Show Rural Coopavel 2018, em Cascavel. A publicação tem o apoio da binacional e foi desenvolvida em parceria com a Embrapa e outras instituições públicas e privadas.

“Desde 2011, a Itaipu mantém convênios com institutos de pesquisa para fortalecer a agricultura orgânica”, afirmou Newton Luiz Kaminski. “Agora, queremos consolidar as pesquisas e o desenvolvimento de instituições voltadas à produção orgânica.”

Segundo o Diretor de Coordenação, a Itaipu tem uma forte preocupação com a agricultura orgânica e levou ao Show Rural a sua experiência no assunto. Há 15 anos, a empresa tem participação atuante na Vitrine Tecnológica de Agroecologia e, agora, ela foi a financiadora do livro sobre a produção da soja orgânica. A primeira tiragem do livro, foi de mil impressões. O lote inicial será destinado aos agricultores e profissionais de campo da região. O objetivo é manter a publicação constan-temente atualizada com as novas pesquisas sobre a produção da soja orgânica no Oeste do Paraná.

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O livro é coordenado pelo pesquisador Sérgio Mazaro, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e pelos agrônomos Marcio Challiol, Aljian Alban e Ivan Zorzzi. A publicação se baseia nos levantamentos de pesquisadores e extensionistas de diferentes instituições públicas e privadas. “Atualmente, as pesquisas se voltam todas para a produção convencional da soja, por isso, este livro é de grande valia, porque ele foi escrito com uma linguagem acessível e de grande aplicação no campo”, resumiu o gerente agrícola da Gebana Brasil, Márcio Challiol, um dos autores do livro.

Preocupação com a agricultura orgânica

A preocupação da Itaipu Binacional em promover a agri-cultura sustentável tem uma história antiga. Em 2003, em parceria com o Instituto Elo de Botucatu, a estatal patrocinou o Curso Fundamental de Agricultura Biodinâmica para um grupo de 48 alunos. Foram 4 módulos presenciais ofereci-dos entre agosto e dezembro de 2003 e as aulas foram todas ministradas na cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná.

Produção de soja orgânica em larga escala

De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope-cuária (Embrapa), atualmente, o Brasil conta com cerca de 32 milhões de hectares de soja convencional, restando pouco espaço para a produção orgânica. Para Challiol, apesar deste cenário, é perfeitamente possível fazer a produção em larga escala de forma orgânica. “Nós já trabalhamos com produtores de dois a 600 hectares. As propriedades maiores demandam maior planejamento e um manejo da lavoura para que se consiga fazer a produção de forma orgânica. Mas a produção não fica atrás do que é produzido no modo convencional.”

Ele informou ainda que, durante as pesquisas, as proprie-dades rurais conseguiram atingir uma produção de 70 sacos por hectare, considerada bastante elevada. Se essa tendência continuar se consolidando no Brasil, isso pode ser o início de um crescimento do manejo orgânico e possivelmente Biodi-nâmico na agricultura de larga escala no país, não somente de soja, mas também de milho, café e feijão, por exemplo.

O manejo biodinâmico vale à pena

Os produtores de soja e milho, acostumados com o cultivo convencional em enormes áreas rurais, têm plena consciência do desafio que uma transição para o manejo orgânico ou bio-dinâmico, pode representar. Apesar disso já existem diversos agricultores brasileiros buscando as soluções e iniciando esse processo de conversão.

Conforme matéria publicada online, e atualizada em 2014 pelo Canal rural, o cultivo da soja biodinâmica comprovou ser viável no município de São Pedro do Ivaí, no estado do Paraná. O agricultor Valdir Bolognini adotou o modelo biodinâmico em 2007 e afirmou que a soja biodinâmica chegou a alcançar um preço 60% maior do que a cultura convencional no mercado de Ponta Grossa. Ainda segundo a matéria, o estado do Paraná possuía em 2014, mais de quatro mil hectares plantados com a soja biodinâmica e toda a produção foi exportada. Lembrando que essa área total, embora extensa, não representa uma única propriedade, mas sim a soma das áreas de diferentes tamanhos, de diversos produtores paranaenses.

Num contexto similar, de acordo com artigo publicado pelo portal DBO online (www.portaldbo.com.br), as fazen-das agrícolas do Grupo Agropecuária 3G iniciaram uma mudança radical na forma de utilizar os agroquímicos. A partir de técnicas sustentáveis e o manejo orgânico de uma determinada área plantada com soja em Jaboticabal, interior de São Paulo, a empresa fez a comparação com o plantio convencional da cultura e constatou uma economia de 30% a 40% nos custos de produção da soja orgânica. Além de diminuir os custos iniciais da produção, deixando de gastar com adubação química e inseticidas, na hora da venda, os ganhos chegaram a ser de 50% a mais por saca do produto. Ao fazer a comparação no final da safra de 2016 a empresa chegou ao número de 60 sacas de soja colhidas por hectare no plantio convencional e 50 sacas por hectare colhidas na área do produto orgânico. Mesmo com a produtividade menor da soja orgânica, os ganhos finais em faturamento chegaram a superar em 25% os resultados obtidos com o plantio da soja convencional.

No caso da soja e do milho biodinâmico, existe uma enorme demanda no mercado internacional por esses produtos. Com o crescente consumo de carne, leite, ovos e seus derivados orgânicos e/ou biodinâmicos, os mercados europeu e norte americano, estão tendo dificuldade de suprir os fabricantes com as principais matérias primas para a produção das rações. Esses alimentos dados aos animais precisa ser certificado, pois, para que um produto orgânico ou biodinâmico, como um queijo ou a carne de frango, por exemplo, possa ser dis-tribuído nas prateleiras, os fabricantes precisam comprovar a rastreabilidade desde o início da cadeia produtiva. Sem milho e soja certificados, não tem ração, nem Demeter (normas de produção para a certificação Biodinâmica) e nem orgânica, e isso compromete todo o processo.

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A Comissão Técnica Nacio-nal de Biossegurança (CTNBio), instância que faz parte do Minis-tério da Ciência e Tecnologia, aprovou, no último dia 15 de janeiro, uma resolução norma-tiva, número 16/2018, por meio da qual passa a considerar uma série de novas biotecnologias que usam engenharia genética, mas que têm formatos diferentes dos transgênicos que já conhecemos (como milho e soja resistentes a agrotóxicos). Estas novas estratégias para manipular gene-ticamente plantas e animais podem inserir novo material genético nas sementes e em seus descendentes.

Com esta normativa, a CTNBio pode decidir que os organismos produzidos com essas biotecnologias não são considerados transgênicos ou organismos geneticamente modificados (OGM) e, portanto, não precisam cumprir com a regulamentação de biossegurança. A normativa tam-bém estabelece um canal legal para permitir a liberação no ambiente dos chamados “impulsionadores genéticos”, uma tecnologia altamente arriscada, que pode gerar a extinção de espécies inteiras, inclusive silvestres.

A nova normativa é muito grave, por que:- É a porta de entrada legal para que sementes, insetos

e outros organismos e produtos modificados geneticamente por meio de novas biotecnologias não sejam considerados como organismos geneticamente modificados. Assim, a CTNBio poderia decidir que eles podem ser utilizados nos campos ou enviados para os mercados sem regulamentação e sem certificação;

- Isso faz do Brasil o primeiro país do mundo a estabelecer canais legais para a liberação dos “impulsionadores genéticos” ou sistemas de redirecionamento genético (genes drives em inglês), que além de serem extremamente perigosos, podem ser usados em cultivos e modificar geneticamente plantas e animais silvestres. Este tipo de técnica utiliza organismos manipulados geneticamente para enganar as leis naturais da herança genética e conseguir que um caráter transgênico seja herdado forçadamente. Estes organismos poderiam ser utilizados para extinguir uma espécie inteira, animal ou vegetal.

As empresas de agronegócios e as empresas transnacionais de transgênicos serão favorecidas pela decisão da CTNBio, pois poderão invadir os campos e os mercados com os seus novos produtos manipulados geneticamente, sem ter que passar pelos mecanismos de avaliação, regulamentação e certificação, ganhando tempo e aumentando os lucros.

Governo do Brasil quer liberar, sem controle, novos OGMs

Essas empresas poderão, inclusive, enganar os consu-midores dizendo que os seus produtos são “naturais”, como fizeram nos Estados Unidos com as substâncias derivadas de micróbios criadas por meio da engenharia com algumas dessas tecnologias.

Além disso, através da técnica de CRISPR e dos impulsio-nadores genéticos, empresas como a Monsanto e a DuPont, que já possuem licença para essa tecnologia, esperam fazer com que as plantas invasoras (silvestres) sejam mais susceptí-veis aos seus agrotóxicos. Já existem muitas invasoras que são resistentes ao glifosato, por exemplo. Com essa tecnologia, elas esperam seguir vendendo este veneno.

Essas empresas também esperam poder manipular novas espécies de sementes e plantas, para ampliar seus mercados transgênicos. Tudo isso às custas da biossegurança e da saúde do meio ambiente, das pessoas e dos animais.

Os transgênicos são organismos nos quais são inseridos genes que não estão presentes nos organismos vivos naturais, seja da mesma espécie ou de uma espécie diferente. As cha-madas novas biotecnologias, como, por exemplo, a CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, sigla em inglês), ou técnicas que usam RNA para ativar ou desativar genes, como a mutagênese sítio-dirigida e outras, podem manipular o genoma por meio da inserção ou da não inserção de novos genes, mas sempre produzindo alterações nas funções naturais do organismo.

Silvia Ribeiro | Pesquisadora do Grupo ETC (Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração)

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A CTNBio chama essas biotecnologias de “Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão” (TIMP), que englobam as chamadas Novas Tecnologias de Melhoramento. Essas técnicas não são aplicadas somente a plantas, também podem modificar microrganismos, insetos e animais.

As empresas também chamas essas técnicas de “edição de genoma” para dar a impressão de que se trata apenas de uma pequena mudança em um texto, tentando separar estes novos organismos geneticamente modificados da ampla resistência que camponeses e consumidores de todo o mundo desenvolveram contra os transgênicos.

Com estas técnicas de manipulação de genomas pode-se, por exemplo, criar plantas que sejam tolerantes a agrotóxicos (igual aos transgênicos anteriores, mas a partir de outra técnica) ou que ervas invasoras que se tornaram resistentes voltem a ser afetadas por agrotóxicos (para continuar vendendo mais agrotóxicos), mudar os períodos de maduração ou floração (para facilitar a colheita industrial), fazer com que micróbios e plantas produzam substâncias que normalmente não pro-duziriam e que são valiosas para as empresas.

Eles afirmam que estas técnicas são mais precisas que os transgênicos anteriores, no entanto, ainda que as técnicas possam ser mais precisas em relação ao lugar que modificam no genoma, continua existindo uma incerteza sobre como estas mudanças afetam o restante do genoma, o que pode levar a novos efeitos imprevistos e indesejáveis. Vários casos nos quais estas técnicas têm efeitos fora do alvo (off-target) são conhecidos e isso faz com que as plantas e/ou produtos que são derivados dos organismos manipulados possam ter efeitos alérgenos e outros que afetam o crescimento das plantas e também a saúde humana e a animal.

Isso sem contar outros efeitos já conhecidos dos transgê-nicos, como viabilizar o aumento de agrotóxicos, o paten-teamento de sementes pelas grandes empresas e afetar as sementes crioulas.

Pela primeira vez, estão criando OGMs para liberar em meios silvestres, para modificar não só as espécies cultivadas, mas para que elas se reproduzam agressivamente na natu-reza. É uma forma de engenha genética que usa a tecnologia CRISPR-Cas9 para conseguir que as características transgê-nicas inseridas em um organismo passe, de modo forçado, a toda a próxima geração e não somente em 50% de cada progenitor, como seria normal. Se a manipulação é para que sejam produzidos somente machos (os testes são feitos com plantas, mosquitos e ratos), toda a população – ou inclusive toda a espécie), poderia ser extinta rapidamente. Alguns poucos organismos modificados lançados em um campo ou em um ecossistema podem modificar gradualmente todos aqueles com os quais cruzar, até atingir toda a população. Por isso, eles são considerados pela ONU como uma arma biológica. Os principais financiadores das pesquisas em impulsionadores genéticos são o Exército dos EUA, e, em segundo lugar, a Fundação Bill e Melinda Gates.

Aqueles que promovem essa tecnologia dizem que ela serve para eliminar pragas como, por exemplo, o mosquito que transmite a malária ou plantas invasoras. Mas quem define o que é daninho ou praga? Para a agricultura industrial e os agronegócios tudo que esteja vivo em um campo e não seja o cultivo que eles querem vender é considerado daninho.

Quais consequências teria a eliminação de uma população inteira de um ecossistema que co-evolucionou com ela ou que a favoreceu como reação a outros desequilíbrios? O que acontece com os outros organismos que se alimentam dessa espécie? Quem pode decidir eliminar uma espécie inteira? Ainda que a técnica possa funcionar ou não – é experimen-tal – ela poderia causar grandes desequilíbrios. Por isso, 160 organizações de todo o mundo, incluindo a Via Campesina Internacional exigiram que a Convenção sobre Biodiversidade aplicasse uma moratória a esta tecnologia. Nem sequer os EUA autorizaram liberar um organismo desse tipo, pois, uma vez que ele esteja no ambiente, não se sabe como detê-lo.

Com a resolução da CTNBio, o Brasil se tornaria o primeiro país a permitir a liberação dessa perigosa tecnologia. E através de uma normativa simplificada. O Brasil é também o único país no qual, graças à CTNBio, permitiu-se experimentos com mosquitos transgênicos. Ainda que esses experimentos não tenham nenhuma validação de que sirvam para combater doenças, o país é visto como um lugar que poderiam ser libera-dos mosquitos com impulsionadores genéticos, pela facilidade em conseguir a aprovação das autoridades. Mas o principal interesse comercial nos impulsionadores genéticos vem do agronegócio, porque seu uso poderia eliminar as espécies de plantas que sejam resistentes aos agrotóxicos ou fazer com que essas plantas voltem a ser susceptíveis aos agrotóxicos e, assim, seguir aumentando seu uso. Várias das transnacionais de OGMs já tem licença de tecnologia CRISPR-Cas9.

As organizações camponesas, movimentos sociais, orga-nizações da sociedade civil e de consumidores rechaçam energicamente a norma 16/2018 da CNTBio, que pretende legalizar e liberar sem regulamentação, sem análise ou certifi-cação, novos transgênicos que impactarão as e os campesinos, a soberania alimentar, a saúde e o meio ambiente. Elas denun-ciam que a CTNBio pretende legalizar também a liberação de “impulsionadores genéticos”: transgênicos que poderiam ser utilizados para extinguir espécies e como armas biológicas que não estão permitidos em nenhum outro país pela sua alta periculosidade. (Tradução: Luiza Mançano)

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Cresce a pressão pela retomada da obra de Angra 3. Con-tratada em 1983, ela parou poucos anos depois. Reiniciada em 2010, foi novamente interrompida em 2016, por dificul-dades financeiras e pela corrupção. Este problema deve ter sido considerado superado com a condenação, na Lavajato, do então Presidente da Eletronuclear. E para seu financia-mento há ofertas do lobby nuclear que corteja, via russos e chineses, os países desavisados dos riscos dessa tecnologia. A Eletronuclear multiplica gestões em Brasília e promove Seminários para obter apoios: em 4 de Dezembro em Angra dos Reis, em 18 de Dezembro em Resende.

Mais uma vez a obra se reinicia ignorando-se que o seu projeto é obsoleto quanto à segurança, como ocorreu em 2010? Nem o Ministério Público vai intervir, como o fez, sem sucesso, em 2010?

Elaborado nos anos 1970, durante a ditadura, eviden-temente não podia levar em conta o acidente de tipo novo, até então considerado impossível, ocorrido no final dessa década, em 1979, em Three Miles Island, nos Estados Unidos. “Falhas múltiplas” levaram ao descontrole da temperatura e o reator fundiu.

Tais acidentes podem provocar uma catástrofe, como se verificou em 1986 na União Soviética. A usina de Chernobyl explodiu, espalhando partículas radioativas, com grandes territórios interditados por centenas de anos para a presença humana e milhares de pessoas evacuadas sem levar nada. A radioatividade provocou grande número de mortes, muitas gerações serão ainda afetadas. Uma nuvem radioativa cobriu toda a Europa e o Brasil importou leite radioativo da Irlanda... A Agência Internacional de Energia Atômica - AIEA editou normas para evitar tais acidentes ou pelo menos mitigar seus efeitos.

Angra 3: o que virá em 2018?Chico Whitaker | Arquiteto, político e ativista social

O que se exigiria de nossas autoridades? Adequar o pro-jeto de Angra 3 a essas normas. Foi o parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN, que deveria licenciar a obra. Mas esse parecer foi simplesmente engavetado e o licenciamento concedido.

Um terceiro acidente desse tipo ocorreu em 2011, no Japão, em Fukushima, com a fusão de três reatores e consequências como as de Chernobyl. Nem assim aqui no Brasil foi revista a decisão de reiniciar a obra sem readequar o projeto.

Em Seminário Internacional em 2016, no Senado Federal, um assessor ministerial em segurança nuclear, da Alemanha, disse que a usina de referencia de Angra 3 é a similar de Grafenrheinfeld, em seu país, que foi uma das primeiras desativadas quando seu governo abandonou a opção nuclear. Segundo ele, hoje, na Alemanha, uma usina como Angra 3 nunca seria licenciada, por uma questão de segurança.

Há relação entre a grave irresponsabilidade da CNEN e a corrupção? A Andrade Gutierrez, construtora contratada, dava propinas ao Presidente da Eletronuclear para obter aditivos ao contrato de 1983. Revisto o projeto ela perderia esse contrato. O esforço de reconstrução da imagem desse Presidente – um herói nacional vítima de interesses estrangeiros! - seria uma cortina de fumaça?

Longíssimo de Chernobyl e Fukushima, no Brasil não podemos avaliar as consequências desses acidentes. Não surpreenderá que no Plano Nacional do setor nuclear, em elaboração, Angra 3 ganhe prioridade, com o mesmo pro-jeto. Na infelicidade de algo ocorrer em Angra 3, as vítimas serão os moradores da região e também os do Rio ou de São Paulo, segundo queiram os ventos... Que em 2018 não permaneçamos silenciosos! É uma exigência de cuidado com a vida humana.

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