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Anotações de Acácio Tadeu de C. Piedade. MÚSICA YEPÂ-MASA: POR UMA ANTROPOLOGIA DA MÚSICA NO ALTO RIO NEGRO Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal d e Santa Catarina. Florianópolis, 1997 dominância do simbólico sobre a esfera da organização social (Seeger et alli,1987) SEEGER, Anthony et alli. (1987) A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasil eiras, In: Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil, João Pacheco de Oliveira Fi lho, org., Rio de Janeiro: Marco Zero, pp.11-29. Política surge como domínio fundamental para a compreensão das sociedades amazônicas. Ne ste campo, autores como McCallum (1990) enfatizam a importância do discurso e da o ratória na política indígena. Observou-se que nestas sociedades há uma ausência de poder c oercitivo centralizado: o que existe é uma coerção simbólica e sem uso de força física. Na v isão de Clastres (1982), as sociedades da selva amazônica não têm economia política, sendo  que a força do princípio de reciprocidade impossibilita o surgimento de um poder ce ntralizado na figura de um líder. Isto é o que Blacking vai enfatizar em seus estudos sobre a música dos Venda e outro s grupos africanos (1967). Herdeiro intelectual de Merriam, Blacking é o primeiro que retoma a idéia de senso tonal entre não-ocidentais. Este autor tenta romper a di cotomia música/cultura, enfocando o contexto cultural como base fundante dos estil os musicais, cujos termos são aqueles da sociedade e da cultura, e dos corpos dos s eres humanos que os escutam, criam e executam(1973:25). Assim, a música não pode ser analisada somente no seu nível de expressão, ou sonic order. Combinações motívicas se arti culam e interagem com elementos de outros domínios culturais, formando um sistema completo: esta abordagem da música como sistema cultural é uma contribuição essencial de  Blacking para muitos autores contemporâneos, como Feld, Menezes Bastos e Seeger, estando na base daquilo que se pode chamar de Teoria Musical nativa. Para Blacki ng, a música não somente reflete a realidade social, mas é generativa, tanto como siste ma cultural quanto como habilidade humana (1995:223). Desta forma, a música integra o pensamento do homem de forma modeladora, sendo um sistema criativo e co-criado r da infra-estrutura da vida humana. Blackinginvestiga desta forma a mudança na músi ca como indicadora de outras possíveis mudanças na sociedade, expressando estágios de sentimentos de uma nova ordem das coisas (1986), visão antecipadora das idéias de At tali (1992). Além disso, é o primeiro etnomusicólogo que investiga a habilidade musica l nativa e os processos de composição sem utilizar critérios etnocêntricos, ao contrário, buscando categorias nativas e ressaltando o papel criativo do ouvinte, a creativ e listening (1990), desta forma reafirmando a centralidade da questão da cognição musi cal nos interesses da disciplina (1995:231-242). Aluno de Merriam, Feld (1982) dá sua contribuição para a compreensão do éthos da sociedade  Kaluli da Nova Guiné através do estudo do som como sistema de símbolos que se relacio nam com uma idéia essencial do universo nativo: tornar-se pássaro. Pela análise do mit o do pássaro Muni, no qual há a transformação de homens em pássaros e a transferência de pal avras Kaluli para o canto deles, Feld descobre que a metáfora da canção do pássaro const rói a musicalidade nativa, pois as melodias Kaluli apontam para o canto dos pássaros . O autor observa que na Teoria nativa, o som é tomado como materialização de sentimen tos profundos, encontrando-se epistemologicamente situado entre o sentimento e o s pássaros, e mantendo uma relação metonímica com o primeiro e metafórica com o segundo. T rata-se de uma interface entre cultura e natura que se dá nas canções, no choro ritual  e nas formas poéticas. A importância das metáforas para a compreensão da música e da cult ura o leva a formular uma sociomusicologia do som (1984). A abordagem teórica de Fel d é inovadora, pois mescla três linhas normalmente consideradas incompatíveis, a herme nêutica de Geertz, o estruturalismo de Lévi-Strauss e a etnografia da comunicação de Del l Hymes, o resultado desta mistura sendo bastante positivo e o autor criticando a necessidade de filiar-se a uma única corrente. A música é portadora de uma verdade originada na cultura, e que se encontra codificada  em seu aspecto sonoro. Isto contraria a visão de Merriam, que cinde a música e a cu ltura: há em sua definição (supra) um absurdo epistemológico, a música aparecendo como um

Anotações de Acácio Tadeu de C. Piedade. MÚSICA YE’PÂ-MASA

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Anotaes de Accio Tadeu de C. Piedade. MSICA YE P-MASA: POR UMA ANTROPOLOGIA DA MSICA NO ALTO RIO NEGRO Dissertao (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal d e Santa Catarina. Florianpolis, 1997 dominncia do simblico sobre a esfera da organizao social (Seeger et alli,1987) SEEGER, Anthony et alli. (1987) A construo da pessoa nas sociedades indgenas brasil eiras, In: Sociedades Indgenas e Indigenismo no Brasil, Joo Pacheco de Oliveira Fi lho, org., Rio de Janeiro: Marco Zero, pp.11-29. Poltica surge como domnio fundamental para a compreenso das sociedades amaznicas. Ne ste campo, autores como McCallum (1990) enfatizam a importncia do discurso e da o ratria na poltica indgena. Observou-se que nestas sociedades h uma ausncia de poder c oercitivo centralizado: o que existe uma coero simblica e sem uso de fora fsica. Na v iso de Clastres (1982), as sociedades da selva amaznica no tm economia poltica, sendo que a fora do princpio de reciprocidade impossibilita o surgimento de um poder ce ntralizado na figura de um lder. Isto o que Blacking vai enfatizar em seus estudos sobre a msica dos Venda e outro s grupos africanos (1967). Herdeiro intelectual de Merriam, Blacking o primeiro que retoma a idia de senso tonal entre no-ocidentais. Este autor tenta romper a di cotomia msica/cultura, enfocando o contexto cultural como base fundante dos estil os musicais, cujos termos so aqueles da sociedade e da cultura, e dos corpos dos s eres humanos que os escutam, criam e executam (1973:25). Assim, a msica no pode ser analisada somente no seu nvel de expresso, ou sonic order. Combinaes motvicas se arti culam e interagem com elementos de outros domnios culturais, formando um sistema completo: esta abordagem da msica como sistema cultural uma contribuio essencial de Blacking para muitos autores contemporneos, como Feld, Menezes Bastos e Seeger, estando na base daquilo que se pode chamar de Teoria Musical nativa. Para Blacki ng, a msica no somente reflete a realidade social, mas generativa, tanto como siste ma cultural quanto como habilidade humana (1995:223). Desta forma, a msica integra o pensamento do homem de forma modeladora, sendo um sistema criativo e co-criado r da infra-estrutura da vida humana. Blackinginvestiga desta forma a mudana na msi ca como indicadora de outras possveis mudanas na sociedade, expressando estgios de sentimentos de uma nova ordem das coisas (1986), viso antecipadora das idias de At tali (1992). Alm disso, o primeiro etnomusiclogo que investiga a habilidade musica l nativa e os processos de composio sem utilizar critrios etnocntricos, ao contrrio, buscando categorias nativas e ressaltando o papel criativo do ouvinte, a creativ e listening (1990), desta forma reafirmando a centralidade da questo da cognio musi cal nos interesses da disciplina (1995:231-242). Aluno de Merriam, Feld (1982) d sua contribuio para a compreenso do thos da sociedade Kaluli da Nova Guin atravs do estudo do som como sistema de smbolos que se relacio nam com uma idia essencial do universo nativo: tornar-se pssaro. Pela anlise do mit o do pssaro Muni, no qual h a transformao de homens em pssaros e a transferncia de pal avras Kaluli para o canto deles, Feld descobre que a metfora da cano do pssaro const ri a musicalidade nativa, pois as melodias Kaluli apontam para o canto dos pssaros . O autor observa que na Teoria nativa, o som tomado como materializao de sentimen tos profundos, encontrando-se epistemologicamente situado entre o sentimento e o s pssaros, e mantendo uma relao metonmica com o primeiro e metafrica com o segundo. T rata-se de uma interface entre cultura e natura que se d nas canes, no choro ritual e nas formas poticas. A importncia das metforas para a compreenso da msica e da cult ura o leva a formular uma sociomusicologia do som (1984). A abordagem terica de Fel d inovadora, pois mescla trs linhas normalmente consideradas incompatveis, a herme nutica de Geertz, o estruturalismo de Lvi-Strauss e a etnografia da comunicao de Del l Hymes, o resultado desta mistura sendo bastante positivo e o autor criticando a necessidade de filiar-se a uma nica corrente. A msica portadora de uma verdade originada na cultura, e que se encontra codificada em seu aspecto sonoro. Isto contraria a viso de Merriam, que cinde a msica e a cu ltura: h em sua definio (supra) um absurdo epistemolgico, a msica aparecendo como um

subconjunto limitado que se encontra dentro do conjunto total da cultura, desvin culando-se assim de outros possveis subconjuntos como dana ou narrativas mticas. Me parece que tal subdiviso no ocorre, a no ser que se reduza a msica dimenso dos sons. O contedo da msica no apenas remete cultura: fazendo aqui uma analogia com os holo gramas -onde as noes de parte e todo se confundem-, a msica de certa forma a cultur a. Isto no sentido de que na totalidade da msica esto traduzidos simbolicamente os elementos da totalidade da cultura. O prprio Merriam (p. 199) parece ter se dado conta que sua definio na verdade acentuava o dilema etnomusicolgico e, anos mais t arde, a substituiu por o estudo da msica como cultura (Merriam,1977). Esta nova per spectiva aponta para a viabilidade de um projeto de Semntica da Msica e do prprio p rojeto de uma Antropologia da Msica, onde a cultura pode ser compreendida atravs d a janela da msica. Uma Semntica da Msica pretenderia restituir msica seu sentido, tr atando-a como sistema de signos e smbolos. Esta perspectiva abre a possibilidade de colar anlises semiticas da gramtica da msica (ver Nattiez, 1975 e Tarasti, 1994) co m anlises da cultura, como fazem Feld (1982) e Menezes Bastos (1989). Fora do mbit o da msica de sociedades tradicionais , no cerne da nossa prpria tradio ocidental, isto tambm possvel, como mostram Agawu (1991), que desvenda a lngua falada por Haydn, Moz art e Beethoven, e McClary(1987), que investiga a msica barroca e revela a social idade da msica de Bach.

a msica se constitui de dois planos distintos, o dos sons e o dos comportamentos (ver Menezes Bastos,1989:3-4,1995:10-11). A prpria Etnomusicologia nasce no meio destes dois plos, o primeiro sendo objeto de estudo da Musicologia e o segundo da Antropologia. Buscando compreender seu campo epistemolgico, Merriam posiciona a Etnomusicologia como uma ponte entre as Cincias Humanas e as Humanidades, definin do-a como o estudo da msica na cultura (Merriam,1964:6). A parte msica remete totalid de cultura por que se apresenta aqui como um subconjunto desta. Ora, h nesta definio um absurdo epistemolgico, a msica aparecendo como um subconjunto limitado que se e ncontra dentro do conjunto total da cultura, desvinculando-se assim de outros po ssveis subconjuntos como dana, grafismo, narrativas mticas, formas de parentesco, e tc. Tal subdiviso no ocorre, a no ser que se reduza a msica dimenso dos sons, negando assim sua semanticidade (Menezes Bastos:1995:12-14). O contedo da msica no apenas remete cultura: fazendo uma analogia com os hologramas, nos quais a parte contm o r eflexo do todo, a msica a cultura, no sentido que na totalidade da msica esto tradu zidos simbolicamente (ou seja, codificados) os elementos da totalidade da cultur a. Merriam parece ter se dado conta que sua definio na verdade acentuava o dilema etnomusicolgico e, anos mais tarde, substitui-a por o estudo da msica como cultura ( Merriam,1977). (p. 45)