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“Nos anos em torno de 1960, Habermas se ocupou cada vez mais da questão da relação entre teoria filosófica ou sociológica e práxis política concreta. Ao fazer isso, ele desenvolveu aquele conceito de uma teoria social crítica orientada pelo ideal da emancipação que estará presente nas obras sucessivas. Nesses anos, ele abandonou sua posição inicial fortemente inspirada pelo jovem Marx, que o motivara a tentar desenvolver uma filosofia materialista da história. Aos poucos, porém, ele deixou de lado essa ideia e se dedicou ao desenvolvimento de uma teoria crítica da sociedade, inspirada mais por Horkheimer”. (p. 47) “Marx teria estabelecido uma estreita relação entre teoria e práxis, já que para ele o sentido da história na sua totalidade se desvela teoricamente na medida que a humanidade se dispõe praticamente a fazer sua história, que de resto ela sempre faz, também com vontade e consciência. Essa “factibilidade” da história representa para Marx um pressuposto da filosofia da história, enquanto o outro pressuposto é “a unidade do mundo”. Habermas vê realizados na contemporânea sociedade burguesa industrial, ambos os pressupostos. Nela, a interdependência das relações sociais tem progredido a tal ponto que as histórias particulares se uniram na história de um mundo único – um diagnóstico que se mostra bastante apropriado na era da globalização. Por outro lado, os instrumentos técnicos sobre os quais a humanidade dispõe hoje, principalmente a possibilidade da destruição do mundo por uma guerra atômica (possibilidade não mencionada explicitamente por Habermas, mas que naqueles anos estava

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anotações sobre habermas

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“Nos anos em torno de 1960, Habermas se ocupou cada vez mais da questão da

relação entre teoria filosófica ou sociológica e práxis política concreta. Ao fazer isso, ele

desenvolveu aquele conceito de uma teoria social crítica orientada pelo ideal da emancipação

que estará presente nas obras sucessivas. Nesses anos, ele abandonou sua posição inicial

fortemente inspirada pelo jovem Marx, que o motivara a tentar desenvolver uma filosofia

materialista da história. Aos poucos, porém, ele deixou de lado essa ideia e se dedicou ao

desenvolvimento de uma teoria crítica da sociedade, inspirada mais por Horkheimer”. (p. 47)

“Marx teria estabelecido uma estreita relação entre teoria e práxis, já que para ele o

sentido da história na sua totalidade se desvela teoricamente na medida que a humanidade se

dispõe praticamente a fazer sua história, que de resto ela sempre faz, também com vontade e

consciência. Essa “factibilidade” da história representa para Marx um pressuposto da filosofia

da história, enquanto o outro pressuposto é “a unidade do mundo”. Habermas vê realizados na

contemporânea sociedade burguesa industrial, ambos os pressupostos. Nela, a

interdependência das relações sociais tem progredido a tal ponto que as histórias particulares

se uniram na história de um mundo único – um diagnóstico que se mostra bastante apropriado

na era da globalização. Por outro lado, os instrumentos técnicos sobre os quais a humanidade

dispõe hoje, principalmente a possibilidade da destruição do mundo por uma guerra atômica

(possibilidade não mencionada explicitamente por Habermas, mas que naqueles anos estava

diante dos olhos de todos), apontam de forma clara para esse aspecto da factibilidade da

história. Habermas termina o ensaio com a advertência de que uma filosofia materialista da

história deve compreender seus pressupostos, exclusivamente a partir do contexto da época na

qual ela surgiu historicamente e, portanto, considerar as categorias da unidade do mundo e da

factibilidade da história como categorias temporalmente determinadas. Essa posição,

relativamente à questão do papel de uma filosofia materialista da história, representa uma

restrição em relação à posição defendida na resenha de 1957, mas não significa uma renúncia

a tal projeto”. (p.48)

“Habermas parte, aqui, das teses sobre o método das ciências naturais apresentados

por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento e critica a hipótese de Albert e

Popper, segundo a qual a base empírica das ciências rigorosas seria, independente dos padrões

“que a própria ciência aplica à experiência”. (p.51)

“Nos anos de 1960, houve um ulterior distanciamento de Adorno sem que se chegasse,

contudo, a uma ruptura. Habermas toma, antes, um caminho que, na opinião de Adorno,

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estava definitivamente fechado. Pois Adorno, na sua teoria de uma “dialética negativa”,

parece tomar uma atitude fundamentalmente pessimista que via na realidade presente um

mundo irreparavelmente corrompido pela visão e pelo modo de vida capitalistas e que quase

não deixava esperança para uma possível emancipação humana. Habermas recusa esse

pessimismo e tenta oferecer uma perspectiva a uma teoria social emancipatória. Com base na

ideia já mencionada de um interesse que guia nosso conhecimento, ele distingue entre um

interesse técnico, um prático e um emancipatório. O interesse técnico caracteriza as ciências

empírico-analíticas que visam uma manipulação racional teleológica da natureza. O interesse

prática caracteriza as ciências hermenêuticas que pretendem chegar a uma compreensão do

sentido. O interesse emancipatória é visto por Habermas como estando presente nas ciências

sociais críticas, na crítica da ideologia e na psicanálise – e isso o leva a estabelecer uma

analogia entre o processo terapêutico individual e a atividade das ciências críticas do espírito.

O interesse emancipatório é considerado por Habermas como sendo constitutivo da natureza

humana (nisso há um forte elemento antropológico do pensamento habermasiano) e portanto,

é colocado no mesmo nível transcendental-antropológico das outras duas formas de

conhecimento, a saber, as ciências naturais e as do espírito”. (p.61)

“O livro A crise de legitimação no capitalismo tardio, publicado em 1973, mostra o

caminho que Habermas percorre partindo de uma perspectiva marxista tradicional, passando

pela confrontação com Luhmann e com a teoria da racionalização de Weber, até chegar a uma

teoria do agir comunicativo. Com referência às mencionadas crises de identidade que podem

abalar as sociedades, Habermas fala, aqui, de irresolvidos problemas de condução que surgem

de uma falta de integração. Trata-se, por um lado, de integração social que tem a ver com

sistemas de instituições nos quais os sujeitos falantes e agentes estão socialmente

relacionados. Processos de adaptação à sociedade, ou de socialização, são processos que

tornam os membros do sistema “sociedade” sujeitos capazes de falar e de agir; o indivíduo

entra nesses sistemas já como embrião e permanece neles até a morte. Desse ponto de vista,

uma sociedade aparece como um mundo da vida, estruturado simbolicamente, em primeiro

lugar, por meio da linguagem. Por outro lado, o que está em jogo é integração sistêmica na

qual a sociedade é vista como um sistema autorregulador. Ambos os paradigmas, o do mundo

da vida e o do sistema, podem ser usados com razão; o que é problemático é a sua

interconexão, já que do ponto de vista do mundo da vida tomamos como tema “as estruturas,

valores e instituições normativas de uma sociedade”, enquanto do ponto de vista sistêmico

nos interessam seus mecanismos de gestão e adaptação. Em ambos os casos, algo se perde: no

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primeiro caso o aspecto de gestão ou condução, no segundo o aspecto da validade normativa”.

(p.67)

“Mencionamos várias vezes a influência de Marx, mas também de Lukács, Adorno,

Horkheimer e Marcuse sobre Habermas – influência observável já nos primeiros escritos dos

anos de 1950. Comum a estes últimos autores é a tentativa de renovar o marxismo de maneira

tal que possa ser aplicado também à sociedade tardo-capitalista. Ao fazer isso, todos eles

reagem à teoria weberiana da racionalização, pois, caso Weber tenha razão no seu

diagnóstico, não haveria, praticamente, chances de superar os fenômenos de alienação que

caracterizam a sociedade capitalista e que foram descritos por Marx. Tanto esses autores

quanto Habermas pretendem reformular a posição do marxismo fazendo justiça à tese de

Weber. O primeiro passo, que todos eles cumprem, consiste na crítica do materialismo vulgar

e da atitude cientificista ou positivista que caracterizava o marxismo a partir dos últimos anos

do século XIX. Contra tal posição, eles insistem na necessidade de recuperar a dimensão

genuinamente filosófica do marxismo. Isso é particularmente evidente em História e

consciência de Classe de Lukács antes dele – procuram redescobrir as raízes hegelianas do

pensamento marxista. Contudo, os acontecimentos históricos (a ascensão dos nazistas ao

poder com o apoio de amplas camadas da população, a Segunda Guerra Mundial, os campos

de extermínio) precipitaram os “velhos” (trocar por 1ª geração) frankfurtianos em um

pessimismo mais ou menos acentuado em relação às efetivas chances de uma libertação do

homem da alienação e das relações de dominação ligadas ao sistema capitalista. Eles viram no

processo de racionalização descrito por Weber simplesmente o caminho triunfal da razão

instrumental por meio de todas as formas de vida. Isso leva a uma inversão aparentemente

paradoxal da tese de Weber: Enquanto este último tinha salientado o aumento de

racionalidade ligado à diferenciação interior aos processos de aprendizagem organizados

cientificamente, Horkheimer enfatiza, pelo contrário, “a perda de racionalidade que se produz

na medida em que as ações podem ser julgadas, planificadas e justificadas somente sob

aspectos cognitivos”. (p.76-77) -> introdução “Habermas e o marxismo”

“Ao pessimismo de Adorno e Horkheimer, Habermas contrapõe a ideia retomada por

Lukács, de que há ainda forças capazes de oferecer resistência e até de inverter o processo de

racionalização mencionado ou seus efeitos negativos. É verdade que Habermas não identifica

essas forças com a consciência do proletariado, como ainda fizera Lukács (uma consciência

de classe ainda presente apenas potencialmente); contudo, ele crê firmemente na ideia

iluminista de que a razão pode continuar a ser um instrumento de emancipação. O processo

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descrito por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento, isto é, a transformação da

razão emancipatória em uma razão instrumental e produtora de dominação, é interpretada por

Habermas como um fato patológico, como o processo de uma “realização deformada da razão

da história” e, portanto, como traição do projeto emancipatório da modernidade, projeto

inacabado e que ainda vale a pena realizar. Enquanto os dois antigos frankfurtianos viram as

instituições políticas e sociais, assim como a práxis cotidiana como sendo “completamente

esvaziadas de qualquer vestígio da razão”, Habermas acredita poder mostrar, recorrendo ao

conceito de razão comunicativa, como esta última ainda pode deixar ouvir sua voz naquele

componentes da sociedade (instituições, processos e práticas sociais) que aparentemente,

cederam sem esperança aos imperativos da razão instrumental. Isso se mostra claro

justamente nas instituições políticas e no sistema jurídico burguês que Adorno e Horkheimer

observavam com tanto ceticismo: eles incorporam, pois, princípios que contêm um potencial

emancipatório que, contudo, não é realizado pelas próprias instituições – uma ideia que,

segundo Habermas, se encontraria já em Marx” (p.77-78)

“Portanto, é ainda possível uma emancipação no sentido marxiano, mas não por uma

revolução fundada no surgimento de uma consciência de classe proletária, como Lukács ainda

pensava, mas como liberação do potencial emancipatório que vem à tona em processos

comunicativos que visam o entendimento”. (p.78)

O entrelaçamento de mito e esclarecimento: Horkheimer e Adorno.

“Os escritores sombrios da burguesia como Maquiavel, Hobbes e Mandeville desde

sempre traíram aquele Horkheimer influenciado por Schopenhauer. No entanto, seus

pensamentos ainda eram construtivos; de suas dissonâncias seguiram-se linhas que levavam à

teoria marxista da sociedade. Os escritores "malditos" da burguesia, sobretudo o Marques de

Sade e Nietzsche, romperam esses vínculos. A eles se ligam Horkheimer e Adorno na

Dialética do esclarecimento, o seu livro mais negro, a fim de conceitualizar 0 processo de

autodestruição do esclarecimento. Segundo sua análise, não podiam esperar mais nada da

força libertadora do conceito. Contudo, levados pela noção benjaminiana de esperança dos

desesperados, que então assumira um sentido irônico, não querem abandonar o trabalho do

conceito, tornando-o paradoxal.” (p.153)

“Assim, vou explicar as duas teses centrais (I). da avaliação da modernidade resulta o

problema que me interessa, considerando a situação atual: por que Horkheimer e Adorno

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querem esclarecer radicalmente o esclarecimento sobre si mesmo (II). O grande modelo para

uma auto-suplantação totalizadora da crítica da ideologia era Nietzsche. A comparação de

Horkheimer e Adorno com Nietzsche não instrui apenas sobre as direções contrárias em que

ambos os lados conduzem suas críticas da cultura (III), mas, além disso, desperta dúvidas

sobre essa repetida reflexivação do esclarecimento (IV).” (p.154)

“Na tradição do esclarecimento, o pensamento esclarecedor foi ao mesmo tempo

entendido como antítese e força contrária ao mito. Como antítese, porque opõe à vinculação

autoritária de uma tradição engrenada nas cadeias das gerações a coação não coercitiva do

melhor argumento; como força contrária, porque deve quebrar o feitiço das forças coletivas

por meio dos discernimentos conquistados individualmente e convertidos em fonte de

motivação. O esclarecimento contraria o mito e escapa, com isso, de seu poder. A esse

contraste, do qual o pensamento esclarecido está tão seguro, Adorno e Horkheimer opõem a

tese de cumplicidade secreta: “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por rever à

mitologia”. Essa tese, anunciada no prefácio, é desenvolvida no ensaio sobre o esclarecimento

e comprovada na forma de uma interpretação da Odisseia”. (p.154-155)

““Os mitos se depositaram nas diversas estratificações do texto homérico; mas o seu

relato, a unidade extraída às lendas difusas, é ao mesmo tempo a descrição do trajeto de fuga

do sujeito diante dos poderes míticos”. Nas aventuras de Ulisses, astuto em duplo sentido,

espelha-se a proto-história de uma subjetividade que se desprende da coerção dos poderes

míticos”. (p.155)

“O mito da origem mantém o duplo sentido do “nascer” (Entspringen): o pavor em

face do desenraizamento e o respiro de alívio após a fuga. Desse modo, Horkheimer e Adorno

perseguem a astúcia de Ulisses até o âmago das ações de sacrifício; a estas é inerente um

momento de logro, na medida em que os homens se redimem da maldição das potências

vingativas por meio da apresentação do substituto simbolicamente valorizado (...) Os poderes

originários, simultaneamente sacralizados e ludibriados, ocupam assim na proto-história da

subjetividade a primeira etapa do esclarecimento”. (p.156)

“O esclarecimento seria bem-sucedido se o distanciamento das origens significasse

libertação. A força mítica revela-se, porém, como o momento retardador que detém a

emancipação pretendida e prolonga cada vez mais uma ligação com as origens, experimentada

igualmente como prisão. Daí Horkheimer e Adorno denominarem esclarecimento todo o

processo pendente entre os dois partidos. E esse processo, a submissão das potências míticas,

deve provocar fatalmente, em cada nova etapa, o retorno do mito. O esclarecimento deve

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reverter à mitologia. Também esta tese os autores tentam confirmar na etapa odisseica da

consciência”. (p.157)

“O canto das sereias lembra uma felicidade concedida outrora pela “reação flutuante

com a natureza”; Ulisses entrega-se às seduções como alguém que se sabe já amarrado: “O

domínio do homem sobre si mesmo, em que se funda o seu si, é sempre a destruição virtual

do sujeito a serviço do qual ele ocorre; pois a substância dominada, oprimida e dissolvida pela

autoconservação, nada mais é senão o ser vivo, cujas funções configuram, elas tão-somente,

as atividades da autoconservação, por conseguinte exatamente aquilo que na verdade devia ser

conservado”. Essa figura de pensamento de que os homens formam sua identidade na medida

em que a aprendem a dominar a natureza exterior ao preço da repressão de sua natureza

interior oferece o modelo para uma descrição sob a qual o processo de esclarecimento revela

sua face de Janus: o preço da renúncia, da auto-ocultação, da comunicação rompida do eu

com sua própria natureza, que se tornou anônima na forma do “isso” (Es), é interpretado

como consequência de uma introversão do sacrifício”. (p.157-158)

“No processo histórico-universal do esclarecimento, a espécie humana distanciou-se

cada vez mais das origens e, no entanto, não se livrou da compulsão mítica para a repetição. O

mundo moderno, o mundo completamente racionalizado é desencantado apenas na aparência;

sobre ele paira a maldição da coisificação demoníaca e o isolamento mortal (...) A dominação

sobre a natureza exterior objetivada e uma natureza interior reprimida é o signo permanente

do esclarecimento”. (p.158)

“Com isso, Horkheimer e Adorno variam o conhecido tema de Max Weber que, no

mundo moderno, vê os antigos deuses, desmitificados por um processo de desencantamento,

se levantarem de seus túmulos na forma de poderes anônimos, para renovar a luta

irreconciliável dos demônios”. (p. 158)

“A própria razão destrói a humanidade que tornou possível – como vimos, essa tese de

longo alcance é justificada no primeiro excurso pela ideia de que o processo de

esclarecimento se deve, desde o começo, ao impulso da autoconservação, que mutila a razão,

visto que a reclama apenas nas formas da dominação racional com respeito a fins da natureza

e dos impulsos, justamente como razão instrumental. Resta demonstrar que a razão permanece

submetida ao ditame da racionalidade com respeito a fins até em seus mais recentes produtos,

a saber, na ciência moderna, nas ideias universalistas do direito e da moral e na arte

autônoma. Isso é o que procuram demonstrar o ensaio sobre o conceito de esclarecimento e

moral, assim, como o adendo sobre a indústria cultural”. (p.159)

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Teoria e práxis

“A única vantagem que Marx teria podido assegurar a um proletariado que age

solidariamente resultava do fato de uma classe, ao se constituir na qualidade de classe com a

ajuda de uma verdadeira crítica, geralmente estar em condições de se esclarecer mediante

discursos práticos e de agir politicamente de modo racional – enquanto os membros dos

partidos burgueses, da classe dominante em geral, estão ideologicamente imbuídos e são

incapazes de se esclarecer racionalmente sobre questões práticas, e, desse modo, só podem

agir e reagir sob coerção.” (p. 71)

“Para Habermas, o discurso da Dialética do esclarecimento teria significado, portanto, uma

ruptura no processo de autoclarificação da razão. Tal perda teria, por sua vez, conduzido a

uma infrutífera “estetização” dos problemas teóricos que supunha o “abandono da

cientificidade” como critério que devia ser estabelecido pela teoria crítica, em termos tanto

normativos como práticos. O diagnóstico do impasse é muito claro: limitações inerentes à

filosofia da consciência – incapaz de completar a crítica da razão (subjetiva) instrumental e o

programa de uma teoria crítica da sociedade – teriam impedido Adorno e Horkheimer de

chegarem a um modelo alternativo como aquele oferecido pela teoria da ação comunicativa.”

“O conjunto de razões apresentadas por Habermas em favor de uma mudança de

paradigma continua delimitando as posições que tentam fundamentar uma perspectiva crítica

das ciências sociais. A rigorosa distinção entre os planos da facticidade e da validade social

funciona como requisito indispensável para qualquer perspectiva teórica que pretenda superar

os efeitos da coisificação cultural. Todavia, ao diagnosticar posições românticas (e

estetizantes) em Adorno e desenvolver o paradigma da ação comunicativa, Habermas não

critica apenas a vigência oculta da filosofia da história nas ciências sociais. Com esse

movimento teórico ele também obstrui a reconsideração daquelas teses adornianas que não

entram facilmente no esquema romântico-historicista que sua crítica atribui.

Diferentemente do projeto geral da teoria da ação comunicativa, Adorno e Horkheimer

evitaram uma “superação” da coisificação no plano da pura teoria. Tendo em vista as

contradições e os paradoxos da razão moderna, eles atribuíram ao pensamento crítico a

exigência de sustentar-se no abismo para compreender o desdobramento dialético de cada um

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dos termos. O que estava implícito nesse movimento teórico era a resistência à apressada

identificação entre o desejo de realizar uma liberação ainda pendente (intrínseco a todo

projeto de teoria crítica) e a celebração teórica de uma vitória consumada. Para os autores, a

tarefa da reflexão crítica exigia a “reativação da dialética interna do esclarecimento” por meio

da autocrítica durante o próprio processo de formação de conceitos:

[...] cada progresso da civilização renovou, junto com o domínio, também a

perspectiva para sua mitigação. A realização dessa perspectiva depende do conceito. Pois este

não se limita só a distanciar, enquanto ciência, aos homens da natureza, mas também,

enquanto autorreflexão do pensamento […], permite medir a distância que eterniza a injustiça

(Adorno e Horkheimer, 1997, p. 58).”

“É no contexto dessa crítica conceitual do pensamento conceitual que aparece uma

tese central da Dialética do esclarecimento : “mediante a rememoração [Eindenken] da

natureza no sujeito, em cuja realização se encerra a verdade desconhecida de toda cultura, o

Iluminismo se opõe ao domínio enquanto tal” (Idem, ibidem). Essa observação parece

justificar a crítica habermasiana que descobre nela o ressaibo romântico de uma imagem

metafísica do mundo. Faz-se necessário, então, começar analisando, sumariamente, a

distância e a diferença que separa a perspectiva de Adorno do “redescobrimento” romântico

da natureza.”

“Conforme a reconstrução habermasiana, o processo de “coisificação” da cultura

moderna implica uma “coação que leva a assimilar as relações inter-humanas (e a

subjetividade) ao mundo das coisas, coação que se produz quando as ações sociais já não são

coordenadas através de valores, de normas ou do entendimento linguístico, senão através do

meio valor de troca” (Idem, p. 484). Situando historicamente a coisificação nos marcos das

problemáticas sociais dos séculos xix e xx, Habermas – junto com Lukács – diagnostica

desequilíbrio e unilateralização na implementação das potencialidades abertas pela

modernização cultural. O desequilíbrio e a unilateralização dependem inteira e

exclusivamente dos caminhos seguidos pela racionalização social quando conduzida a partir

da seletividade que o capitalismo impõe ao processo de modernização cultural.

Na direção contrária, Adorno e Horkheimer teriam generalizado o conceito de

coisificação, descontextualizando e introduzindo-o numa filosofia negativa da história. A

generalização implicou tal radicalização da análise das patologias sociais da razão, que tornou

virtualmente impossível a elucidação da nova “norma de verdade” (detrás da qual estava a

teoria crítica desde o começo). O critério que deveria suplantar a racionalidade objetiva em

seu próprio território se perde completamente quando a ideia de verdade permanece associada

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a uma reconciliação universal de teor romântico, posto que essa reconciliação – pelo seu

próprio excesso – estenderia agora a exigência de relações não violentas para a “interação do

homem com a natureza: com os animais, as plantas e os minerais” (Idem, p. 485).”

“O diagnóstico sombrio da modernidade e a perda de um horizonte filosófico que

permitisse fundamentar criticamente uma “nova norma de verdade” conduziram a uma

concepção contraditória da condição humana: presa entre a vigência irrefletida da razão

subjetiva – que postula um princípio de autoconservação incapaz de neutralizar seu caráter

autodestrutivo – e a lembrança impotente da razão objetiva – que postula anacronicamente

uma unidade indiferenciada de espírito e natureza. Partindo dessa contradição objetiva,

Horkheimer criticou tanto as tentativas neopositivistas como as neoontológicas,

respectivamente vinculadas a cada um dos polos unilaterais da contradição. Por isso, foi

procurar junto com Adorno a racionalidade anterior à racionalidade (instrumental) no conceito

de mimesis. Deste dependeria tanto a sua teoria da reconciliação universal – entendida como

conformação de relações não violentas generalizáveis – como o novo horizonte normativo de

verdade (vinculado a uma dimensão socioafetiva que transcende o espaço das relações não

violentas da racionalidade intersubjetiva). Mas justamente por isso seria impossível uma

“teoria” da mimesis que pudesse dar conta racionalmente da unidade entre identidade e não

identidade, entre espírito e natureza.

A Dialética do esclarecimento torna-se, assim, uma perspectiva paradoxal e afastada da

possibilidade de fundamentar criticamente a teoria das ciências sociais, pois “assinala, para a

autocrítica da razão, o caminho que conduz à verdade, questionando simultaneamente a

possibilidade de que nesta etapa de estranhamento consumado a ideia de verdade resulte ainda

acessível” (Idem, p. 488).”

“Ao fundamentar a passagem do paradigma da produção para o da ação comunicativa

no campo da teoria social, Jürgen Habermas realizou um breve e contundente ajuste de contas

com a primeira geração da Escola de Frankfurt. Apoiado numa virada linguística de

orientação pragmático-racionalista, o novo paradigma teórico precisou confrontar algumas

teses relevantes do pensamento de Theodor Adorno para que a teoria crítica pudesse aspirara

um critério de cientificidade válido. Desdobrada com ênfase a partir da década de 1980, a

ruptura com Adorno foi construída a partir de três críticas: em primeiro lugar, a crítica de seu

diagnóstico do capitalismo tardio; em segundo, a crítica de sua teoria das patologias da razão

e, em terceiro, a crítica – derivada das anteriores – da relação negativa que o pensamento de

Adorno mantinha com os fundamentos das ciências sociais”

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