113
ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA TRANSPASSADA PELOS IDEAIS DO SÉCULO XIX E PELA DOR DE EXISTIR Por Lusia de Fátima Feijó Machado Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós- graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ 109p. Linha de Pesquisa: Literatura Portuguesa e outros campos do saber Orientadora: Prof.ª Dra. Nadiá Paulo Ferreira 2º semestre 2005

ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA

TRANSPASSADA PELOS IDEAIS DO SÉCULO XIX E PELA DOR

DE EXISTIR

Por

Lusia de Fátima Feijó Machado

Dissertação de Mestrado em Literatura

Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro UERJ 109p.

Linha de Pesquisa: Literatura Portuguesa e

outros campos do saber

Orientadora: Prof.ª Dra. Nadiá Paulo Ferreira

2º semestre

2005

Page 2: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Aos meus filhos, Alexandra, Elaine e Marcos, com

todo o amor ao Wladimir companheiro querido,

por sua solidariedade e paciência. A minha avó

materna, pelas histórias que me contava sobre

a Ilha de S. Miguel.

Page 4: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

AGRADECIMENTOS A Maria Balbina Pereira, primeira professora, que me ensinou o amor pelo saber, pelos mestres e pelas

letras, o meu carinhoso reconhecimento;

À Profª. Nadiá Paulo Ferreira, minha orientadora, por sua generosidade, carinho e afeto sem igual, por ter me ensinado que é possível estar no lugar certo na hora certa e com quem pude dividir o amor ao saber e a paixão pela literatura portuguesa e pela psicanálise.

A Rosane Melo, colega querida, pelo apoio intelectual, por sua paciência

cumplicidade, incentivo, amizade e por tudo que aprendi ao longo dos anos de trabalho a seu lado.

A Márcia Cristina pelo carinho e paciência, com que lia meus textos. A Vera Apolo e Clara Inen, pela ajuda, apoio, sugestões e incentivos preciosos no

começo dessa trajetória. A Sonia Alberti, pela indicação da orientadora e a firme confiança com que acreditou

no meu amor ao saber. A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem

par e bom humor. Aos professores Marcos Alexandre Motta, Maria do Amparo Tavares Maleval, Sérgio

Nazar David, Maria Cristina Batalha, pela solidariedade e respeito na transmissão do ensino.

Aos colegas de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro, pelos

ensinamentos e por dividirem comigo o amor à psicanálise. A Patrícia, por sua disponibilidade e dedicação para ler e rever o meu trabalho. Aos colegas do grupo do Mestrado de Literatura Portuguesa, pela convivência e

companheirismo, esperando a continuação do estreitamento desses laços.

Page 5: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

SINOPSE

Estudo da obra de Antero de Quental a partir da psicanálise, visando rastrear o

que sua escrita revela sobre a dor de existir e sobre o fracasso dos ideais, que

sustentaram as lutas políticas e sociais no século XIX, em Portugal e na Europa.

Page 6: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

SUMÁRIO

1- 1- INTRODUÇÃO.........................................................................................06 2- ANTERO DE QUENTAL E OS IMPASSES DE SUA ÉPOCA......................09 2.1- PORTUGAL EM RELAÇÃO À EUROPA NO SÉCULO XIX..............17 3- AS INFLUÊNCIAS DOS AUTORES EUROPEUS.........................................33

3.1- HARTMAM..............................................................................................34 3.2- HEGEL......................................................................................................46 3.3- MICHELET...............................................................................................52 3.4- PROUDHON.............................................................................................57

4- OS MESTRES PORTUGUESES.....................................................................63 4.1- CASTILHO................................................................................................63 4.2- HERCULANO...........................................................................................72

5- ANTERO DE QUENTAL E CHARLES BAUDELAIRE: O ENIGMA DO FEMININO..............................................................................................................76 6- UMA TRAJETÓRIA: DA PARTIDA AO RETORNO TRÁGICO...................85 CONCLUSÃO.....................................................................................................99 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................102 RESUMO............................................................................................................108 ABSTRACT........................................................................................................109

Page 7: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

1 – Introdução

O presente trabalho tem por objetivo investigar a trajetória de Antero de

Quental, visando apreender os efeitos do processo de escrita em sua vida.

Abordaremos a sua atuação política e literária, em Portugal, além de tentar

desvendar o que sua escrita revela sobre a dor de existir. O tormento do ideal, o

Elogio à morte e o Inconsciente são poesias que nos remetem ao seu espírito errante

e à dor lancinante que o acossava no decorrer de sua produção. Tentaremos ainda

percorrer a obra de Antero de Quental para inquirir questões sobre sua história, que,

por vezes, se encontra e entrelaça com a cultura portuguesa do final do século XIX.

Antero de Quental chega a Coimbra em plena juventude e fica inebriado pela

vida universitária, surpreendendo a todos com seu poder de liderança e ousadia,

passando a ser chamado de o Príncipe da Mocidade. Ele mesmo, alguns anos

depois, reconhece que praticou muita irreverência e excessos. Fazia parte de um

grupo de jovens que não queria saber da academia e nem dos acadêmicos, que não

eram católicos, nem monarquistas e que estavam mais interessados em Michelet,

Hegel, Proudhon e Hartmann do que nos ensinamentos tradicionais. O certo é que da

Escola Coimbrã saíram os maiores talentos da literatura nacional.

Nosso trabalho enfoca a obra de Antero e o século XIX em sete divisões. No

segundo capítulo, abordamos o escritor Antero de Quental em relação a Portugal,

tentando entender as influências da cultura portuguesa na sua obra. Também

abordaremos as diferenças culturais de Portugal em relação à Europa, a importância

das Conferências do Cassino e a mobilização de Antero e seu grupo para que em

Portugal fossem criadas formas de despertar o interesse do povo pela ciência, pela

arte e pela política, já que eles consideravam que essa era a forma de renovar e de

revolucionar a nação portuguesa, colocando-a de novo no circuito europeu de

desenvolvimento econômico político e cultural.

Page 8: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

O terceiro capítulo desenvolve a influência de autores europeus no pensamento

e na obra de Antero. Examinamos a obra de Hartmann, filósofo alemão que criou a

Filosofia do Inconsciente e que foi muito estudado e admirado por Antero.

Analisamos inclusive uma poesia intitulada O Inconsciente, entre outras, que nos

possibilitou que apreendêssemos a influência de Hartmann na obra anteriana. Hegel,

que Antero reconhece como a Catedral do pensamento, também foi muito admirado

por ele. Antero tinha algumas dúvidas sobre a obra hegeliana, tal como podemos ver

em uma carta que escreve a seu tradutor alemão Wilhelm Storck: “(...) não sei se o

entendi bem, nem a independência do meu espírito me consenti ser discípulo: mas é

certo que me seduziram as tendências grandiosas daquela estupenda síntese”.1[1]

Tentamos nos aproximar um pouco do que Antero entendeu da obra de Hegel,

utilizando também a leitura da psicanálise através de Jacques Lacan. Antero chega

inclusive a encontrar-se com Michelet por quem fica impressionado, Michelet

através da proposta de desenvolvimento para a sociedade e idéias impregnadas de

esperanças em relação à busca de harmonia para a humanidade, seduzirem o jovem

Antero. O corte que Michelet fez na abordagem histórica é uma inovação para a

época. A história não é mais determinada só pelos heróis, mas também por um povo

e pela forma como se dá a organização da sociedade. Outro autor com o qual Antero

se identificava era Proudhon, que direcionava seu estudo e questionamento para as

reformas sociais e tinha obras com nomes polêmicos e revolucionários como, por

exemplo: A Propriedade é um roubo, Filosofia da Miséria. Estas e outras obras o

influenciaram tanto que chegou a conjurar em beneficio da União Ibérica.

O quarto capítulo nos levou aos dois mestres portugueses de Antero. Tecemos

com nossa pesquisa uma breve análise em torno deles e da influência que tiveram na

obra anteriana, tentando entender o que se mostrou mais relevante para nós. Duas

questões principais nos pareceram interessantes: Quais os destinos dos mestres e

como fica a relação aluno-mestre no momento em que o aluno chega ao mesmo grau

1[1] ANTERO, apud BANDEIRA, 1942, p.3.

Page 9: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

de respeitabilidade na vida intelectual? No caso de Antero, foi o impasse com

Castilho e a generosidade de Herculano que suportou fazer par com o discípulo.

O quinto capítulo aborda as obras de Antero e Baudelaire e as suas posições

diante do enigma do feminino. Recorremos à psicanálise para discutir essas

posições.

O sexto capítulo é consagrado aos fatos biográficos de sua vida e aos

desdobramentos destes para o fim trágico de Antero: o retorno a Ponta Delgada e as

conseqüências dessa volta na tragédia anteriana.

No estudo da obra de qualquer artista, vários trajetos são possíveis. No caso da

obra de Antero não poderia ser diferente. Estamos conscientes de que poderíamos

ter seguido outro caminho, mas esperamos ter contribuído para um aprofundamento

no entendimento da vida e da obra de Antero, mapeada pelo espírito do século XIX

em Portugal e na Europa.

Page 10: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

2 - Antero de Quental e os impasses de sua época

Como acomodava eu este culto pelas doutrinas do apologista do Estado prussiano, com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon? Mistérios e incoerência da mocidade! O que é certo é que, revestido com essa armadura mais brilhante do que sólida, desci confiado para a arena: queria reformar tudo, eu que nem sequer estava ainda a meio do caminho da formação de mim mesmo! (Antero de Quental)2[2]

Acreditamos que para entender o poeta e o filósofo Antero de Quental, depois

de dois séculos, devemos rastrear não só os significantes que marcaram sua vida, sua

história e seus ideais, mas também os enganos e os impasses de sua época.

Tudo o que ele produz e realiza é endereçado aos seus pares, aos grandes

amigos — a amizade é vital para ele —, ao povo português e às idéias que defende.

Ele está sempre se dirigindo aos representantes do Outro: ancestrais (o avô André da

Ponte de Quental3[3]; o tio–bisavô Padre Bartolomeu de Quental4[4]; o pai Fernando

de Quental5[5] e o tio Filipe de Quental6[6]), professores, figuras do governo,

2[2] QUENTAL apud BANDEIRA, 1942, p.31. 3[3] André da Ponte de Quental era poeta e amigo íntimo de Bocage. Este não só dedicou vários poemas a André, mas também fez referências a fatos vividos com ele. Como é o caso dos versos em que alude a prisão dos dois pela polícia de Pina Manique: “Olhou-me com meigo aspecto, / Com branda, amigável fronte, / E fui logo acareado / Com o amável Ponte” (CARREIRO, 1981, p.32) Conta-se que André, Bocage e outro amigo, o Bento Ribeiro, chegaram a correr terras, cantando satíricas de viola em punho, pedindo em troca da exibição, a hospitalidade nos conventos e a pousada aos fidalgos. Quando eram presos por algum exagero de suas sátiras às ordens religiosas e governamentais, os dois tomavam para si a individualidade da respectiva obra, assim se livravam das acusações. André participou da revolução liberal, em 1821, chegando a ser deputado às cortes. Nos últimos anos de sua vida, tornou-se um misantropo, recolhendo-se à ilha natal, onde queimou todos os seus versos. Antero sempre lamentou não ter conhecido a obra do avô. 4[4] Padre Bartolomeu do Quental fundou a Congregação do Oratório em Portugal (1668-1672). Os seus escritos, sobretudo os sermões, lhe valeram um lugar ao lado de Padre António Vieira. Ele teve muita influência como reformador dos costumes e dos estudos na corte e nas províncias. 5[5] Fernando de Quental nasceu em Ponta Delgada, S. Miguel, Açores, em 10 de maio de 1815, e faleceu nessa mesma cidade em 1873. Saiu de S. Miguel com o posto de cadete, na expedição dos Bravos de Mindelo: 7 500 homens implantaram o sistema liberal a favor de D. Maria II. Entusiasta da revolução liberal, mandou picar o brasão de sua casa; ajudando os operários com as próprias mãos.

Page 11: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

escritores, poetas, filósofos, etc. Enfim, Antero se interessa por praticamente todos

aqueles que estão criando novas idéias e novas formas de transformações sociais.

No século XIX, ao contrário da Europa, que está no auge das mudanças

políticas, econômicas e culturais, Portugal se encontra totalmente estagnado e avesso

ao liberalismo. O grupo a que Antero pertence desde a época da faculdade de

Coimbra está inebriado com os ideais que circulam pela Europa. Ele está ávido, tal

como os grandes pensadores do século XIX, por novos conhecimentos e reformas

liberais. Sem dúvida, estamos diante de uma época em que prolifera uma

multiplicidade de sistemas especulativos, que advoga a igualdade social e o fim da

exploração do homem pelo homem. Nesse quadro, alguns homens vivem de acordo

com as idéias que postulam.

Em Rumo à Estação Finlândia, Edmund Wilson exemplifica com Karl Marx a

fidelidade dos grandes homens do século XIX às suas idéias. A família de Marx

chegou a passar fome, tendo inclusive alguns filhos que morreram de desnutrição;

ele viveu na pele a sua menos valia. Sua esposa descreveu o despejo da família por

falta do pagamento na época em que eles moravam em Dean Sreet, uma rua pobre

do Soho na Inglaterra:

No dia seguinte, tivemos que deixar a casa. Estava frio, chovia; foi terrível. Meu marido tentava encontrar um lugar para morarmos, mas ninguém nos queria quando dizíamos que tínhamos quatro filhos. Por fim, um amigo nos acudiu, pagamos e rapidamente vendi todas as minhas camas, para saldar as dívidas com o boticário, o padeiro, o açougueiro e o leiteiro, que haviam ficado assustados com o escândalo da chegada do oficial de justiça e vieram afobados apresentar suas contas. As camas que eu havia vendido foram retiradas da casa e colocadas numa carroça — sabe o que aconteceu? Já passava muito da hora do pôr-do-sol, e na Inglaterra é ilegal transportar mobília tão tarde. O senhorio chamou a polícia, dizendo que podíamos estar fugindo para o estrangeiro. Menos de cinco minutos depois, já havia

6[6] Filipe de Quental foi o herdeiro da enorme biblioteca paterna. Formou-se em Filosofia e Medicina na Faculdade de Coimbra onde foi professor. Também se destacou como ator cômico, representando no Teatro Acadêmico. Segundo testemunhos da época foi um artista cômico admirável. Antero morou com o tio quando estudou direito. Filipe e Antero eram grandes amigos e mantinham uma admiração mútua.

Page 12: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

umas duzentas pessoas em frente à nossa porta, toda a gentalha de Chelsea. As camas tiveram que voltar para dentro de casa – só poderiam ser entregues aos compradores no dia seguinte, após o nascer do sol ” (...) Isso nos mostra um caso curioso. Karl Marx pouco fazia para ajudar a si próprio. Uma das mais notáveis “contradições” de toda a carreira de Marx é o fato de que o homem que, mais do que ninguém, chamou a atenção para a motivação econômica, era incapaz de fazer o que quer que fosse para ganhar dinheiro. Essa resistência à idéia de ganhar a vida talvez, ao menos em parte, se devesse ao impulso de evitar ao máximo a acusação de comercialismo que era sempre dirigida aos judeus. Quando jovem, Marx afirmava “O escritor tem de ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas ele não deve jamais viver e escrever a fim de ganhar dinheiro7[7].

Esses homens viviam fazendo sacrifícios por suas causas: Karl Marx é um

exemplo disso, implicou nesse sacrifício sua própria família.

Diante desse panorama, Antero se junta a um grupo8[8] que valoriza mais o

futuro do que os grandes feitos do passado, apostando no intercâmbio com outros

povos. Em relação a esse grupo, Antero apresenta algumas características peculiares:

exacerbação dos ideais e interesse peculiar pelas questões históricas. Ele não olha

para o passado de forma saudosista, mas para entender as conseqüências dele no

presente. Antero acredita que se deve levar a cultura ao povo, contribuindo assim

para a transformação da nação portuguesa. Afirma que “a Poesia moderna é a voz da

Revolução”9[9], ou seja; a poesia e a filosofia instigam o desejo de mudanças e

revoluções.

Sobre as comemorações do dia de Camões, em junho de 1880, 3º centenário da

morte do poeta, Antero critica a elite portuguesa em carta a Oliveira Martins:

Esquecia-me dizer-lhe que a grande comissão dos literatos, depois de grave meditar, resolveu celebrar o centenário com uma procissão! Isto é curioso, até no ponto de vista biológico, porque mostra o poder do

7[7] WILSON, 1989, p. 200. 8[8] Os principais integrantes desse grupo são: Antero de Quental, Alberto Sampaio, Eça de Queirós, Gomes Leal, João de Deus, Moniz Barreto, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Teófilo Braga, Guerra Junqueiro. 9[9] ANTERO. apud. SARAIVA, 1975, p. 930.

Page 13: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

atavismo. Aos netos dos frades que lhe há de lembrar se não procissões?10[10]

Em outro momento, afirma: “A burguesia portuguesa pode, por ostentação,

levantar uma estátua a Luís de Camões, mas o povo português, esse não sabe

soletrar o título do poema que o poeta consagrou às suas glórias”.11[11]

Antero dá um valor muito especial à história. Há um poema enorme de 1865,

todo dedicado à história, do qual citaremos apenas alguns trechos:

À História Mas o homem, se é certo que o conduz, Por entre as cerrações do seu destino, Não sei na mão direita d‘amor e luz Lá para as bandas dum provir divino... Se, desde Prometeu até Jesus, O fazem ir – estranho peregrino, O Homem, tenteando a grossa treva, Vai... mas ignora sempre quem o leva!

Antero não acredita cegamente no destino do homem como estranho peregrino

nas cerrações da história:

Já que vamos, é bom saber aonde... O grão de pão, que o simoun levanta, E leva pelo ar e envolve e esconde, Também, no turbilhão, se agita e espanta, Também aonde vai e d‘onde O traz a tempestade que o quebranta... E o homem, bago d‘água pequenino, Também tem voz na onda do destino!

10[10] ANTERO. apud. MARTINS, 1986, p.221. 11[11] ANTERO. apud. MARTINS, 1986, p.223.

Page 14: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

E talvez seja bom saber aonde vamos e de onde viemos para que se tenha a

possibilidade de decidir algo sobre nosso destino. Para não nos levar, quem sabe, a

onda de algum mar sombrio.

O! a História! A Penélope sombria Que leva as noites desmanchando a teia Que suas mãos urdiram todo o dia! O alquimista fatal, que toma a Idéia! E, nas combinações da atroz magia, Só extraia Pó! A fúnebre Medêa Que as flores de luz do coração Compõe seu negro filtro – a confusão!12[12]

É a história da velha senhora Penélope que sempre se apresenta; e nesse fazer e

desfazer produz as combinações mais seculares das raças, construindo e

reconstruindo tronos, religiões, impérios e novas idéias e ideais. Para Antero o

passado tem que ser elucidado e analisado a fim de que se possa avançar no

presente. Antero sempre defendeu a tese de que não há acaso, e sim causas e efeitos.

Por exemplo, a razão pela qual Portugal está em descompasso com a Europa deve

ser buscada no passado. Esse retorno ao passado em momento algum deve ser

confundido com o saudosismo. Esta postura, inclusive, faz com que os portugueses

emigrem porque desistiram de criar as condições para a transformação de Portugal.

Antero nunca aceitou ser um desistente, como a grande maioria do povo português.

Sabemos que durante anos e anos os portugueses, sem ensino profissionalizante e

com governos desastrosos, para fugir à rotina rudimentar das lavouras e ao atraso

das indústrias, só viam como saída o mar. O velho mar português que sempre se

apresenta como esperança de terras nunca dantes navegadas e, na maior parte das

vezes, não passa de uma ilusão. Procurar soluções no mar é a repetição desse povo

diante da impotência de organizar o país.

12[12] ANTERO, 1924, p.15.

Page 15: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Mar Português Ó mar salgado, quando o teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães chorem, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosse nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu 13[13]

Como nos revela a poesia de Pessoa: os portugueses vislumbram outro destino

fora de sua terra, presos à crença que passar além do Bojador é ir para além da dor

de existir, só que há um equívoco, pois essa dor irá doer em qualquer mar que o céu

espelhar.

Eduardo Lourenço, em Labirinto da Saudade, exemplifica a imigração

portuguesa na contemporaneidade: “Aventura de pobre é sempre dos que buscam

em longes terras o que em casa lhes falta.(...) Pobres saímos agora de casa para

servir a povos mais ricos e organizados que nós.” 14[14] Criou-se, no imaginário

português, a ilusão de que a falta, a qual desde Lacan faz parte da estrutura do

falante, só pode ser preenchida em outras terras. Então não há como contornar o

vazio a não ser atravessando o mar.

Essa incapacidade de se fixar no seu torrão natal reforça a crença de que a

nação tem um destino escolhido por Deus a ser cumprido, dificultando a

possibilidade de criar alguma coisa que rompesse ou acrescentasse algo diferente do

vaticínio. Na carta de 1887, a Wilhelm Storck, Antero fala de sua angústia frente à

tarefa que ele e sua geração propõem fazer em relação à tradição: “Achei-me sem

direção, estado terrível de espírito, partilhado por quase todos os da minha geração, 13[13] PESSOA, 1977, p.82 14[14] LOURENÇO, 1988, p. 124.

Page 16: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada

da tradição”.15[15]

Só que essa geração não percebeu que o rompimento com o passado e as lutas

por mudanças foram uma operação para substituir a separação, necessária e sempre

dolorosa, dos pais. Talvez a geração de 70 tenha encontrado uma outra maneira de

lidar com a ferocidade de uma educação, fundamentada na religião e na culpa, que

dificultava o rompimento com os valores estabelecidos e deixava poucas saídas para

a construção de novas subjetividades. A geração de 70 abriu outros caminhos além

do mar e do exílio. Aqueles que não acreditaram nem no destino, nem na nação

portuguesa emigraram. Mas Antero, por acreditar em seu país, não suportava o

exílio:

A.M.C. “Pátria pátria!” Garrett Camões Terra do exílio. Aqui também as flores Têm perfume e matiz; também vicejam... Rosas no prado, e pelo prado vicejam Zéfiros brandos suspirando amores!

O poeta não se deixava enganar pela ilusão de que em outras terras haveria

coisas que não se encontrariam em Portugal. Todos os lugares têm flores e

perfumes. E se não os tivesse, o escritor pode criá-las em sua poesia.

Também cá tem a terra os seus primores Pelos vales as fontes rumorejam Tem a noite seus sopros, que bafejam, E o céu tem sua luz e seus odores. Em toda a natureza há amor e cantos, Em toda a natureza Deus se encerra...

15[15] QUENTAL, apud VELOSO, 1950, p. 298.

Page 17: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

E contudo esta é a causa dos meus prantos! Eu sou bem como a flor que não descerra Em clima alheio. Que importam teus encantos? Não és, terra do exílio, a minha terra!16[16]

Algumas plantas só florescem em sua terra natal. Era assim que Antero se

sentia, mesmo reconhecendo que seu exílio era subjetivo. “A terra que nos dá o pão

há de ser sempre uma boa mãe.” Talvez a dificuldade esteja na separação da terra-

mãe. A impossibilidade de elaborá-la se desloca para a sensação de ser um exilado

em sua própria pátria.

Antero sonha com a transformação de Portugal. Muito tempo depois, esse

sonho é sustentado por Fernando Pessoa, quando afirma: “Tudo vale a pena / Se

alma não é pequena”17[17] Justamente por isso, Antero acena com algumas soluções

para a transformação política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa,

podendo ser feita com a abertura de uma tribuna para os trabalhadores exporem

suas idéias. Isso possibilitaria o despertar de novas propostas.Também propõe inserir

Portugal no mundo moderno, e defende uma literatura que se responsabilize pelo

destino do povo.

Desde a época de Coimbra, aqueles que fazem parte do grupo de Antero

acreditam e se deixam seduzir pelo discurso revolucionário. Eça de Queiroz é um

deles. In MEMORIAN, Eça recorda seu encontro com Antero numa noite, na

escadaria de Coimbra, onde ele discursava para um grupo que o escutava

embevecido.

Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo: É o Antero!.. [...] Mas era um devoto (o termo não excessivo) do poeta das “Odes Modernas”. Todos, desde então, esperávamos dele a renovação de um

16[16]ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p. 249. 17[17] PESSOA, 1977, p.82.

Page 18: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

mundo, do nosso pequeno mundo, para nós imenso e imenso na verdade porque uma simples alma é um vasto mundo, e a sua renovação, no sentido da justiça ou da bondade, uma vasta obra. Antero não era só um chefe mas um Messias. Ninguém jamais possuiu um Verbo de tanta solidez, harmonia, finura e brilho.18[18]

Antero, com seu discurso inflado, defendia que as mudanças dependiam do

exercício da vontade e da ação renovadora de cada um. Naturalmente, o abandono

da Pátria não era o caminho. É preciso a conscientização de que uma nação é obra

dos homens. Sem abrir mão dessa aspiração, o Príncipe da Mocidade, como é

chamado em Coimbra, apresentava-se a seus pares e à nação portuguesa de forma

eloqüente, altiva, polêmica e destemida, causando desejos e esperanças.

2-1 Portugal em relação à Europa no séc. XIX.

Tenho uma dor chamada Portugal País defunto talvez tanto para nações vivas Portugal meu país de desistentes [...] Desde o tormento metafísico de Antero Até os dias irae19[19] destes dias Em que mãos desabrocha algum possível Portugal?20[20]

Vamos estabelecer a diferença de Portugal em relação à Europa, partindo da

premissa de Ausguste Stärcke: não existe evolução, mas sim revolução. Starcke,

médico e psicanalista holandês, foi discípulo de Freud. Em 1952, codificou algumas

leis sociais de forma peculiar e original, criando inclusive as leis da retrogênese: “O

18[18]QUEIROZ. 1993, p.483. 19[19]Primeiro verso, de um canto litúrgico da Quaresma, da época medieval, com o significado de dia da ira, no sentido de fim do mundo. 20[20] BELO apud FREIRE, 1996, p.9.

Page 19: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

desenvolvimento não é um produto de evolução, mas da revolução. Tal

desenvolvimento não se efetua no ponto mais alto alcançado, mas reverte para um

estágio anterior e mais primitivo do desenvolvimento.”21[21]

Sem dúvida, concordamos com Stärcke, já que consideramos que as

sociedades são constituídas por possibilidades e impossibilidades. A linearidade não

é uma tônica nem nos indivíduos, nem nos grupos e muito menos nas nações. Desde

a pré-história, a humanidade caminha com avanços e retrocessos, repetindo e

produzindo novas criações e elaborações.

Michel Foucault, no livro O que é um autor?, diz que, ao longo do século XIX,

apareceram autores com grandes singularidades, o que possibilitou a criação de

obras como “instauradoras de discursividade”. Foucault se refere a Freud e a Marx

como “fundadores de discursividade”:

(…) o que os instauradores da discursividade tornaram possível (como, por exemplo, Marx e Freud, porque penso que são simultaneamente os primeiros e os mais importantes) foi uma coisa completamente diferente daquilo que um autor de romance torna possível. (…) Em contrapartida, quando falo de Marx e Freud como “instauradores de discursividade”, quero dizer que eles não só tornaram possível um certo número de analogias como também tornaram possível (e de que maneira) um certo número de diferenças. Eles abriram o espaço para outra coisa diferente deles e que, no entanto, pertence ao que eles fundaram.22[22]

Isso significa que tanto Marx quanto Freud instauraram algo tão original que

marcaram um antes e um depois na história da civilização. Sempre que abordarmos

o marxismo e a psicanálise nos remeteremos aos nomes de Marx e de Freud.

O século XIX teve a honra de abrigar esses dois pioneiros e, junto com eles,

outros que, embora não tivessem realizado atos inaugurais, deram grandes

21[21] STÄRCKE, 1982, p.367. 22[22] FOUCAULT, 1992, p. 59.

Page 20: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

contribuições, apesar dos ideais exacerbados em relação ao amor, à liberdade, à

fraternidade e à igualdade social.

Sem dúvida, o século XIX é considerado por alguns historiadores a época das

grandes ilusões: acreditava-se que as mudanças na organização política, econômica

e social produziriam uma sociedade perfeita e organizada, onde pudesse reinar a paz

e a felicidade. A maior parte dos intelectuais e artistas acreditava que o homem é

bom por natureza e é a sociedade que o corrompe. Ou seja: a castração não estava no

homem. Era o mundo que impedia o homem de atingir sua plenitude. Em O mal-

estar na civilização, (1930 [1929]), Freud afirma:

Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de se experimentar. O sofrimento nos ameaça de três direções: de nosso próprio corpo, condenação à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.23[23]

Freud não acredita na inocência do homem, já que a tendência para a crueldade

faz parte do seu aparelho psíquico:

A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio de [energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres

23[23] FREUD, 1929-1930, p. 95.

Page 21: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. 24[24]

Para Freud nunca abrimos mão da agressividade. Lacan, retomando a obra de

Freud, afirma que a agressividade faz parte da constituição do eu, o qual se funda

antes da aquisição da palavra (verbalização). Lacan trabalhou o conceito de eu, em

artigo de 1949, intitulado O estádio do espelho como formador da função do eu tal

como nos é revelada na experiência psicanalítica. Nesse momento de sua obra, ele

teoriza minuciosamente a relação especular e a matriz imaginária do eu ligadas à

rivalidade. Mais tarde, no Seminário 1: os escritos técnicos de Freud, ele retoma

essas questões vinculando-as com a natureza do desejo, que é desejo do desejo do

Outro.

Antes que o desejo aprenda a se reconhecer — digamos agora a palavra — pelo símbolo, ele só é visto no outro. Quer dizer, não tem outra saída — Hegel no-lo ensina — senão a destruição do outro. O desejo do sujeito só pode, nessa relação, se confirmar através de uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao objeto para o qual tende. E cada vez que nos aproximamos, num sujeito, essa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade — o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.25[25]

Stärcke formula essa questão de outra forma, afirmando que o

desenvolvimento não se efetua até o ponto mais alto, mas reverte sempre para o

estágio mais primitivo. Isto nos leva a concluir que todas as vezes que o eu se

relaciona com o outro, sem mediação simbólica (a palavra), não resta outra saída

senão a destruição do outro. Toda vez que fracassa a função simbólica,

inviabilizando qualquer possibilidade de pacto, entra em cena a agressividade

24[24] FREUD, 1929-1930, p.134. 25 LACAN, 1986, p.1997.

Page 22: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

humana com maior ou menor intensidade, dependendo da posição do sujeito frente à

castração.

Mapeando essas leis estruturais e os fatos históricos, podemos deduzir que os

séculos XIX e XX não foram menos destrutivos do que os anteriores. Apesar das

sofisticações da vida moderna com seus computadores, seus gadjetes, suas potentes

armas “cirúrgicas”, a sociedade humana em relação à agressividade continua

perigosa e ameaçadora para todos.

Caminhamos com o delírio de liberdade, com o capitalismo e seus imperativos

de mais-gozar: consumir e ser consumido. Abandonamos os reagrupamentos

ideológicos do século XIX e no seu lugar se coloca o self-made-man do século XXI.

Enfim, a contemporaneidade nos deixa sem a menor esperança diante dos

“progressos”, como nos ensina Camões:

Busque Amor novas artes, novo engenho para matar-me, e novas esquivanças; Que não pode tirar-me as esperanças, Pois mal me tirará o que eu não tenho.26[26]

Ao contrário da Europa, não havia acontecido nenhuma revolução na

sociedade portuguesa. Desde a época da epopéia marítima de 1500, nenhuma

mudança significativa havia ocorrido e o povo português, frente às dificuldades,

repete a velha tradição de sair de Portugal. No passado, o sucesso dessa saída

dependia da navegação: mapas precisos, homens que acreditassem mais nos

cosmógrafos e nos mapas geográficos do que em fábulas. Sem dúvida os

portugueses foram os desbravadores do mar. Conseguiram superar os antigos nessa

arte. Mas se navegar é preciso, por que viver não é preciso? O verbo precisar não só

significa carência, urgência, necessidade de alguma coisa, mas também exatidão de

cálculos, rigor, funcionamento sem falhas, perfeição. Quando os portugueses

perderam o desejo de navegar, perderam o desejo de investir na precisão. A glória 26[26] CAMÕES, 1970, p.7.

Page 23: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

do grande império se tornou passado a ser recordado de forma nostálgica. Os

portugueses não encontraram novas formas de investimento na precisão. Não

acompanharam, portanto, as grandes revoluções que aconteceram na Europa:

Revolução Francesa, Revolução Industrial na Inglaterra, etc. Em História concisa

de Portugal, José Hermano Saraiva se refere à decadência de Portugal:

No meado do século XIX, Portugal não tinha ainda estradas. A única estrada de tipo moderno, isto é, macadamizada, era a que ligava Lisboa a Coimbra. Foi construída por D. Maria I, antes das invasões francesas; foi com essa estrada que surgiu a primeira carreira comercial, uma diligência de quatro lugares, duas vezes por semana. Mas a carreira acabou em 1804 por falta de passageiros. Passados quarenta anos, a idéia de um comboio entre e o Porto foi considerada quimérica, porque não havia passageiros que a justificassem. Os políticos desde há muito denunciavam a falta de transporte como principal causa da estagnação econômica: “Sem estradas,os frutos e objetos da indústria são quase perdidos, porque o transporte excede muitas vezes o preço das mercadorias” escrevera Fernandes Tomás em 1821. Há muitas outras afirmações desse gênero. As narrativas dos viajantes estrangeiros em Portugal mostram assombro perante o estado dos caminhos.Um deles escreve, em 1860, enquanto, lá fora ninguém se espantava com ver passar um comboio , ainda aqui a passagem da diligência fazia sensação.27[27]

Se as estradas e os transportes eram tão precários, as coisas não eram

diferentes com a educação e a cultura. A educação em Portugal, no século XIX, era

algo catastrófico. A edição de livros e compêndios escolares era praticamente nula.

Quase não havia professores e os que existiam possuíam uma formação deficiente.

Eis o depoimento de D. António da Costa, em seu livro História da Instrução

Pública em Portugal:

Vimos que a verdadeira escola do século XIX é desconhecida entre nós pela carência de livros próprios que são instrumento do método; que as bibliotecas populares estão ainda por nascer. O magistério sem

27[27] SARAIVA, 1978, p. 304.

Page 24: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

habilitações, quase sem vencimentos e absolutamente sem carreira.28[28]

Até 1815, só existia uma escola pública em Portugal, dedicada ao sexo

feminino. Além disso, segundo esse autor, havia um certo medo de que o ensino

prejudicasse a moral e os bons “costumes” portugueses. Em especial, a educação

não podia contrariar os interesses do governo vigente. António da Costa se refere às

forças conservadoras, que assumiram o governo português em 1823 e revogaram

uma lei sobre a educação de 1820, um pouco mais liberal. Para ele:

O medo à liberdade do ensino foi tamanho, que a restauração se deu pressa em aboli-la para que se não ensinasse alguma doutrina contrária aos bons costumes e aos princípios dos governos. Foi um dia de luto aquele dia. Todas as escolas livres fecharam...incluindo-se naquele número as de ensino primário.29[29]

Qual a esperança e a possibilidade de mudanças para um povo que não tem

direito à educação e, portanto, ficou privado de escolha? Sabemos que, desde a

Grécia antiga, a transmissão do saber é de grande valor para a polis. Qual é o futuro

de uma nação que condena a transmissão do ensino e o tem como ameaça aos

valores morais, religiosos, sociais e políticos? Talvez ainda haja em Portugal

pessoas arraigadas aos valores morais e religiosos, que acreditam que a educação

escolar e o saber são os responsáveis pelos “desvios” de conduta do indivíduo ou de

um grupo.

Os portugueses cultuam as tradições e têm orgulho dos valores legados por

seus ancestrais através dos séculos. Talvez tenha sido essas características que os

levaram a ficar, durante anos, hipnotizados pelo mar e sua imensidão e a esperar das

terras além do horizonte o sentido para as suas vidas.

28[28] COSTA, 1871, p.219. 29[29] COSTA, 1871, p. 244.

Page 25: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Assim, Portugal dava as costas para a Europa e para tudo o que poderia

representar um enriquecimento através de trocas culturais com outras nações.

Continuava saudoso do passado glorioso da época das navegações e cultuava o

delírio do rei morto na batalha de Alcácer Quibir, D. Sebastião30[30], o rei que viria

montado em seu cavalo branco, em um dia encoberto de nevoeiro para salvar a

gloriosa nação portuguesa. Esse mito do rei Salvador engendrava um discurso

fazendo com que os portugueses se sentissem mais confortáveis com o passado do

que com o presente.

Em O mal-estar na civilização, Freud nos aponta que os sintomas individuais

se articulam com os mecanismos usados pela civilização. No caso de Portugal, o que

pode ter acontecido, que levou grande parte do povo, em determinada época da

história, a se submeter ao passado, e ao poder religioso e ao poder político, por mais

absurdo que eles fossem?

Sabemos, desde Marx, que a religião é o ópio do povo. Freud também nos

ensina que a religião é um dos agentes mais bem sucedidos para a realização do

recalque. Para ele, todo ser humano nasce no desamparo e este sempre volta, com

menor ou maior intensidade, no decorrer da vida. O que a religião promete não é

pouco: Deus, Pai todo poderoso, ama todos os homens, assegurando-lhes a Sua

proteção. Se Deus é nosso pai, somos todos irmãos. E como tais, devemos amar ao

próximo como a nós mesmos.

Antero era um poeta que ora se impressionava com a idéia de Deus, ora se

interrogava sobre a criação dos deuses: “Mas os deuses, com voz ainda mais triste,/

Dizem: Homens! porque é que nos criastes?”31[31]

30[30] D. Sebastião foi um rei português morto na batalha de Alcacer-Quibir, em 1578. Foi personagem de um movimento místico –secular em Portugal na segunda metade do século XVI. Por não deixar herdeiros, o trono português terminou nas mãos do rei espanhol Filipe II. Apesar do corpo do rei ter sido removido para Belém, o povo nunca aceitou o fato, divulgando a lenda de que o rei encontrava-se ainda vivo, apenas esperando o momento certo para volver ao trono e afastar o domínio estrangeiro. Seu mais popular divulgador foi o poeta Bandarra que produziu incansáveis versos clamando pelo retorno do desejado. Até o Padre Antonio Vieira aderiu ao movimento. Em 1640, pelo golpe restauracionista liderado pelos Braganças, no Porto, Portugal voltou a ser independente. O sebastianismo traduz uma inconformidade com a situação política vigente e uma expectativa de salvação, ainda que miraculosa, através da ressurreição de uma morte ilustre. 31[31] QUENTAL, apud SERGIO, 1962, p. LXXVIII.

Page 26: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Freud, ainda em o Mal-Estar na Civilização, nos chama a atenção para a

religião na vida do homem comum. Ele cita uma poesia de Goethe: “[‘Aquele que

tem ciência e arte, tem também religião: o que não tem nenhuma delas, que tenha a

religião!’] – Goethe, Zahme Xenien IX (Gedichte aus dem Nachlass).32[32] Antero,

quando questiona o afastamento do homem português da ciência e da arte, deduz

que esse afastamento faz com que ele vá procurar conforto para as sua dores na

religião. Com isto acentua-se mais a distância entre Portugal e as nações que

investem na ciência e na arte. Freud afirma que é preciso criar satisfações

substitutas, para suportar a vida como ela se apresenta:

Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz da nossa desgraça; satisfações substitutivas, e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável. Voltaire tinha os derivativos em mente quando terminou Candide com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim, e a atividade científica constitui também um derivativo dessa espécie. As satisfações substitutivas, tal como oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental. As substâncias tóxicas influenciam nosso corpo e alteram a sua química. Não é simples perceber onde a religião encontra o seu lugar nessa série.33[33]

Antero é um homem do século XIX, apesar de ser influenciado pelos ideais

dessa época, em alguns momentos de sua reflexão ele fica dividido entre a tradição e

a revolução: “(...) o último dos homens para combater sou eu. A natureza em mim é

conservadora: só o espírito é que é revolucionário.”34[34] Ele tentava apaziguar seus

conflitos agarrando-se à ciência e à arte. Tal como nos aponta Freud, a ciência e a

arte são recursos que possibilitam um apaziguamento frente ao desamparo. Quando

há empobrecimento desses recursos para lidar com o sofrimento, as religiões

32[32]FREUD, 1929-1930, p.93. 33[33] FREUD,1929-1930, p. 93. 34[34]QUENTAL, apud CARREIRO,1981, p. 294.

Page 27: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

proliferam já que ajudam a recriar o mundo interno de forma mais adequada,

substituindo o que é mais insuportável, ou seja, a morte, pela promessa de vida

eterna.

Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade Conceda-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre esses delírios de massa desse tipo. È desnecessário dizer que todo aquele que partilha de um delírio jamais o reconhece como tal.35[35]

Para Freud, a religião é um delírio compartilhado, que protege o homem do

sofrimento e do desamparo.

Qualquer escolha levada a um extremo condena um indivíduo a se expôr a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como um negociante cauteloso evita empregar todo o seu capital num só negócio, assim também, a sabedoria popular nos aconselha a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração.36[36]

Antero nos aponta isso de forma brilhante em sua conferência do Cassino

Lisboense Causa da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, na

noite de 27 de maio de 1871. Ao esclarecer quais eram as causas da decadência,

35[35] FREUD, 1929-1930, p. 100. 36[36] FREUD, 1929-1930, p. 103.

Page 28: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Antero cita alguns fenômenos que, segundo ele, tinham sido vitais para a alienação

da nação portuguesa no século XIX:

Ora esses fenômenos capitais são três; e de três espécies: um moral, outro político, e outro econômico. O primeiro é a transformação do Catolicismo, pelo conselho de Trento37[37]. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo 38[38] pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas. Estes três fenômenos assim agrupados, compreendem os três aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicando claramente que uma profunda e universal revolução se operou durante o século 16.º, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenômenos eram exatamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram liberdade moral, conquista pela Reforma ou pela Filosofia: a elevação da classe média, instrumento de progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até o dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do Catolicismo do concílio de Trento para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes seu espírito, é o oposto do Absolutismo, esteiado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do Espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.39[39]

37[37] O Concílio de Trento foi estabelecido pela Igreja Católica em 1545 para combater a Reforma religiosa da época. Ela marcou o início da Contra-Reforma, cujo principal intuito era trazer de volta para a igreja o grupo de protestantes influenciados por Lutero e suas teses contra o papado. O Concílio de Trento durou oito anos e leva esse nome por ter sido realizado por questões políticas da Igreja e na cidade de Trento, capital de Trentino, Alemanha. 38[38] Absolutismo: sistema de governo no qual o poder é centralizado na figura do governante, típico da Europa dos séculos XVII e XVIII. A hegenomia está nas mãos dos reis, que realizam a centralização administrativa, constituem exércitos permanentes, criam a burocracia e a padronização monetária e fiscal, procuram estabelecer as fronteiras de seus países, promovem políticas mercantilistas e coloniais.Também institucionalizam a justiça, acima do fragmentado sistema judiciário feudal. 39[39] QUENTAL apud SIMÕES, 1962, p.179-180.

Page 29: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Essa abordagem da história feita por Antero destaca a transformação do

Catolicismo pelo Concílio de Trento, o estabelecimento do Absolutismo, o

desenvolvimento das conquistas longínquas, que se contrapunha aos caminhos que

as nações progressivas estavam seguindo. Na Europa, a filosofia e a ciência

contribuíram para essas mudanças. Em Portugal, acontecia totalmente o contrário:

tínhamos uma sociedade que vivia sob a proteção e a vigilância do Estado e da

Igreja. O Estado diz o que se deve fazer e a Igreja o que se deve crer. Assim a

singularidade subjetiva fica difícil de ser exercida, pois todos devem pensar e agir de

acordo com as imposições do Estado e da Igreja.

Antero, nessa mesma conferência, concorda que outras formas de governo

também sujeitavam o povo. Mas, por outro lado, ajudavam no progresso,

possibilitando o surgimento da burguesia. A burguesia era, para ele, a classe mais

civilizadora, porque incentivava a indústria, a ciência e o comércio. A península

vivia em função da nobreza. Quando o governo deu liberdade para o povo, estava

tão despreparado que não a compreendeu, nem a soube usar. Logo o povo se voltou

para a religião. Dessa forma o povo português continuava adormecido, ignorando as

revoluções que ocorriam à sua volta.

As conferências do Cassino são interrompidas por ordem do Primeiro-Ministro

da defesa, Marquês D’Ávila. Antero, diante da intransigência e da intolerância do

Ministro, escreve uma carta com tamanha determinação, que até hoje nos

impressiona por sua coragem, por seu caráter revolucionário, pela clareza das idéias

e pelo excepcional talento de escritor. Ele a termina com um apelo à prosperidade:

Nem eu nem V. Ex. passaremos à história: e muito menos as ineptas portarias que V. Ex. faz assinar a um rei sonâmbulo. Mas, supondo por um momento que algumas destas coisas possa passar ao século XX, folgo de deixar aos vindouros, com este escrito, a certeza de uma coisa: que em 1871 houve em Portugal um ministro que fez uma ação má e tola, e um homem que teve a franqueza de lho dizer.40[40]

40[40] QUENTAL, apud SIMÕES, 1962, p. 223.

Page 30: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Com esses escritos e poesias, Antero tenta convocar Portugal a acordar do

marasmo em que se encontra. Ele identificava a acentuação da decadência

portuguesa no começo do século XVII. Data dessa época a decadência da

inteligência, da política, do trabalho, da economia social e da indústria. Através de

tratados, Portugal quase virou uma província da Inglaterra.

A dimensão e a seriedade política de Antero são realçadas na obra de Vitorino

Nemésio:

Por seu intermédio os Açores partilharam das mais graves e nobres inquietações da Europa contemporânea. E se pôs sempre em primeiro plano o problema de lata solução, encarando as necessidades da sua pátria em função das necessidades da Península, do Ocidente e até do mundo, nem por isso foi patrioticamente um transviado.41[41]

Vitorino Nemésio reconhece que Antero foi uma voz forte e participativa nas

questões do seu tempo, interagindo com seus contemporâneos, sem esquecer jamais

de procurar soluções para os problemas que Portugal atravessava.

Antero sempre se mostrava incisivo em referência às causas da decadência e

suas conseqüências. Enfatiza as questões da causalidade, já que para ele havia

sempre uma causa determinando um fato. Nesse momento, essas questões não

permeavam o pensamento da nação portuguesa, onde tudo era determinado pelo

Estado, Deus e o Destino. Se os homens não podiam interferir, porque tudo já estava

determinado, então, se repete a máxima: viver não é preciso. O povo português

ainda se via como o povo de Moisés: o povo “escolhido” para levar o cristianismo às

paragens mais distantes do mundo e salvar os “selvagens” do fogo do inferno. Esse

ideal cristão dava força para o povo seguir no caminho da salvação. Claro que este é

41[41] NEMÉSIO. 1932, p.139.

Page 31: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

só depois da morte. Para quê se preocupar em olhar para a terra, se o futuro está no

céu e no mar. E a morte é a única coisa precisa. Viajar, partir, emigrar é uma das

marcas do povo português; assim ele inscreve seu nome na história, com

determinação quase religiosa diante do mar por vezes sombrio, e nem sempre de

amplos horizontes. As províncias ultramarinas estavam lá para confirmar o orgulho

histórico dos valorosos homens do mar. Não havia muito que mudar, nem que

questionar, só reverenciar o canto de Camões:

CANTO IV Aclamado João, de Pedro herdeiro, Convoca Leonor ao Castelhano; Opõe-se Nuno, intrépido guerreiro; Dá-se batalha, vence o Lusitano: Quem a Aurora buscar tentou primeiro Pelas túmidas ondas do Oceano; E como ao Gama coube esta alta empresa, Por afirmar a glória Portuguesa. CANTO VIII Vêm-se da Lusitânia os fundadores, E aqueles que por feitos valorosos, De alta memória são merecedores, Como de Calecu os Regedores Consultam os Arúspices famosos, E corruptos com dádivas possantes, Tratam de destruir os Navegantes.42[42]

42[42] CAMÕES, 1970, p.1453.

Page 32: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Antero propõe uma revolução na estrutura teórica e moral da nação. Mesmo

que essas idéias e as da geração de 7043[43] não promovam mudanças, elas apontam

para um diálogo intelectual que faltou no decorrer da história cultural de Portugal.

Era preciso olhar o passado para entender o presente, sem se deixar seduzir

completamente pelos seus erros e acertos, para que fosse possível fazer novas

escolhas.

Oliveira Martins, em História de Portugal, nos dá um exemplo interessante

dessa ancestralidade atávica dos povos:

Todos reconhecem hoje a indestrutível tenacidade das populações primitivas. Raízes profundas que nenhuma charrua destrói apesar de revolta a leiva pelo ferro das conquistas, depois de esmagadas as folhas e troncos pelo tropear dos cavalos de guerra, depois queimados e reduzidos a cinzas pelos incêndios das invasões; embora se lancem novas sementes à terra e nasçam vegetações novas, essas raízes profundas tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro e lento, mas invencível, as plantas intrusas. A permanência dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje indiscutível, permite fazer – consinta-se-nos a expressão – história ao inverso: julgar de hoje para ontem, inferir do atual para o passado.44[44]

O que é possível fazer com as marcas do que foi vivido na história humana que

fica e insiste sempre em se apresentar em vários registros, mesmo depois de tudo

reduzido a cinzas pelos incêndios, pelas invasões e pelas guerras? Essas marcas

sempre voltam e podem ter vários destinos possíveis: transformam ou exterminam.

Por isso faz sentido, na Conferência das causas da decadência dos povos

peninsulares, Antero procurar entender o presente pelas marcas deixadas na cultura

e na política do passado ibérico. 43[43] A Geração de 70 foi um marco em Portugal, dela saíram alguns dos maiores escritores portugueses do século XIX como, por exemplo: Antero de Quental, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Teófilo Braga (é a esse grupo, somando alguns outros, que se convencionou chamar de Geração de 70). 44[44] MARTINS apud LIMA, 1994, p.20.

Page 33: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Apesar de alguns especialistas atuais e da época afirmarem que tenha faltado

mais embasamento teórico, acerca do assunto da causa da decadência dos povos

peninsulares, eles são unânimes em reconhecer a ousadia das idéias anterianas,

expostas com coragem e, sobretudo com paixão, como era o seu estilo. Até aquele

momento, na sociedade portuguesa, ninguém tinha abordado com tanto desejo de

decifrar e ao mesmo tempo refazer o destino português. Talvez um pouco utópico e

sem muito eco, a não ser entre os integrantes da Geração de 70, Antero tentou

despertar o povo para a cultura, a política e a curiosidade científica. O povo

português dessa época não demonstrava o menor interesse por essas questões, só se

interessando pela religião e por assuntos militares. E não tinha a menor idéia a

respeito do que estava acontecendo à sua volta, como comenta Antero, com ironia,

na já citada carta ao Primeiro-Ministro da defesa Marques D’Ávila:

Portugal, dizia-se há anos, é o país mais liberal da Europa! A Europa, diziam os correspondentes dos jornais provincianos, invejam a nossa sorte, e acha-a única! A Europa, diziam no Grêmio os jogadores de bilhar, estuda com afinco as nossas instituições, e duvida se chegará a imitá-las. A Europa quase que não compreende a nossa fenomenal liberdade de pensamento! Somente, meus senhores, ninguém se lembrava de pensar. Um dia decidiu-se alguém pensar livremente. O Sr. Marquês D’Ávila pôs logo o seu chapéu ensebado em cima da liberdade de pensamento.45[45]

As conferências do cassino são a tentativa de demonstrar o abismo político,

econômico e industrial de Portugal em relação à Europa. Assim a geração de Antero

tentou que Portugal acompanhasse o “desenvolvimento” do mundo moderno e

tivesse maior intercâmbio com as outras nações, para que fosse possível uma

revolução em Portugal. Esses eram os ideais do grupo do cenáculo inebriado pelas

mudanças, que estavam acontecendo na cultura européia. Eça de Queirós confirma

essas influências, In Memoriam, livro dedicado a Antero pelos seus pares e amigos:

45[45] ANTERO, apud SIMOES, 1962, p. 216.

Page 34: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Pelos caminhos de ferro que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo de França e da Alemanha (através da França), torrentes de coisas novas, idéias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários (..) Cada manhã trazia a sua revolução como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, Vigo, e Proudhon, Hugo, tornado profeta e justiceiro de reis; Balzac, com seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como o Universo; e Poe, e Heine, e creio que já Darwin, e quantos outros.46[46]

Essas estéticas novas seduziam esse grupo de doutores dessa inebriante

Coimbra de 1870, pela forma revolucionária com que abordava os problemas

sociais. Assim, essa geração seguia fascinada pelos ideais de renovação das

estruturas de pensamento e de ação da sociedade. E elegem como líder o talentoso e

revolucionário Antero de Quental.

3- A influência dos autores europeus

Antero acreditava na formação política, intelectual, e científica do povo.Para

ele uma revolução implicava sempre uma evolução. Claro que, em algumas

especulações, havia mais curiosidade intelectual do que conhecimentos históricos.

Mas ele tinha sensibilidade para elaborar algumas questões de forma

impressionante. Este é o caso quando afirma que não existe mais instinto no homem

e que isso cria impasses:

Decididamente, a inteligência humana é fraca e acanhada de mais para poder compreender, dominar e governar coisa tão complexa como é o homem. O instinto, afinal, valia muito mais para esse fim. Infelizmente, o período do instinto passou e é nisso justamente que está em crise: substituir, na direção das coisas humanas, o instinto, que era suficiente, pela

46 ANTERO, IN MEMORIAM, 1993, p. 485.

Page 35: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

inteligência, que parece insuficientíssima. Não vejo saída a este beco escuro. (Cartas 258-9)47[47]

Sem dúvidas alguns autores vieram ao encontro do seu espírito questionador e

inquieto: tais como Hartmam (a elaboração sobre o inconsciente) Hegel (fazer com

paixão) Proudhon ( a construção de uma sociedade mais justa) e Michlet (uma nova

história).

3.1- Hartmann

(...) E já prostrado E estúpido à força de fadiga,

Fito inconsciente as sombras visionarias, Enquanto pelas praias solitárias,

Ecoa, ó Mar, a tua voz antiga.48[48]

Eduard Von Hartmann, autor de Philosophia do Inconsciente, tem uma

considerável influência na obra de Antero de Quental. Podemos constatar isso em

uma carta a Oliveira Martins, quando, em 1876, o poeta escreve: “Vou percebendo

que o pessimismo de Hartmann se parece singularmente com o meu optimismo.

Estou morto por ler alguma obra mais extensa deste simpático filósofo. Talvez eu

tenha inventado a Filosofia do inconsciente sem saber!”49[49]

Esse autor, discípulo de Schopenhauer, impressionou-o de tal forma que

Antero escolhe o inconsciente para tema de uma de suas poesias:

O Inconsciente

O espectro familiar que anda comigo Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,

47[47] CIDADE, Hernani, 1988, p.73. 48[48] QUENTAL apud VELOSO, 1950, p.45. 49[49] QUENTAL apud MARTINS, 1985, p.195.

Page 36: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Que umas vezes encaro com desgosto E outras muito ansioso espreito e sigo, É um espectro mudo, grave, antigo, Que parece a conversas mal disposto... Ante esse vulto, ascético e composto, Mil vezes abro a boca... e nada digo. Só uma vez ousei interrogá-lo: -“Quem és (lhe perguntei com grande abalo)”. Fantasma a quem odeio e a quem amo? -“Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos”, Chamam-me Deus, Há mais de dez mil anos... Mas eu por mim não sei como me chamo...50[50]

A filosofia do inconsciente, além de influenciar a obra poética de Antero,

contribui também para sua formação filosófica. A metafísica de Hartmann não

admite um Deus dotado de consciência. Se Deus tivesse consciência, o

desenvolvimento do mundo seria uma inutilidade absurda. Para esse filósofo, Deus é

inconsciente e, como tal, não tem nenhuma maldade.

Será que o “espectro familiar”, que acompanha o poeta, às “conversas mal

disposto”, diante do qual ele fica “mudo”, sem a mínima possibilidade de

dialetização, e o “fantasma a quem odeio” correspondem ao inconsciente de

Hartmann?

O inconsciente de Hartmann é totalmente diferente do inconsciente freudiano.

Roudinesco, no Dicionário da Psicanálise, afirma que “No período romântico na

Alemanha, o termo inconsciente foi definido como um reservatório de imagens

mentais e uma fonte de paixões cujo conteúdo escapa à consciência”.51[51] Em Nota

Sobre o Conceito de Inconsciente em Psicanálise, Freud afirma:

50[50] QUENTAL apud BANDEIRA, 1988, p. 261. 51[51] ROUDINESCO, 1998, p. 375.

Page 37: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Desejo expor em poucas palavras e tão simplesmente quanto possível o que o termo inconsciente veio a significar para a Psicanálise e somente nesta. (...) Adquirimos hoje a convicção de que há algumas idéias latentes que não penetram na consciência, por mais fortes que possam haver-se tornado. Assim chamamos as idéias latentes do primeiro tipo pré-consciente, enquanto reservamos o termo inconsciente (propriamente dito) para o último tipo que viemos a estudar nas neuroses. O termo inconsciente, que foi empregado antes no sentido puramente descritivo, vem agora implicar algo mais. Designa não apenas as idéias latentes em geral, mas especialmente idéias com certo caráter dinâmico, idéias que se mantêm à parte da consciência, apesar de sua intensidade e atividade. (...) ao invés de concordar com a hipótese de idéias inconscientes, das quais nada sabemos, é melhor presumir que a consciência pode ser dividida, de modo que certas idéias ou atos psíquicos possam constituir uma consciência separada, que se tornou desligada e separada da massa de atividade psíquica consciente. 52[52]

Freud refere-se ao filósofo, no capítulo VII de A Interpretação dos sonhos,

1990, com a finalidade de marcar as diferenças em relação ao conceito de

inconsciente, dedicando-lhe uma extensa nota de rodapé, que foi redigida vinte e

quatro anos depois:

Foi somente mais tarde que minha atenção foi atraída para o fato que Eduard Von Hartmann assume o mesmo ponto de vista sobre esta importante questão de psicologia: Ao discutir o papel desempenhado pelo inconsciente na criação artística, Eduard Von Hartmann (1890), 1, Seção B Capítulo V, faz uma clara afirmação da lei segundo a qual a associação de idéias é dirigida por idéias intencionais inconscientes, embora não se dê conta do alcance da lei. Ele dispõe a provar que “toda combinação de apresentações sensoriais, quando deixada puramente ao acaso, mas conduzida a um fim definido exige auxílio do inconsciente” [ibid., I, 245: tradução inglesa, 1984, I, 283] e que o papel desempenhado pelo interesse consciente é estimular o inconsciente e selecionar a idéia mais apropriada entre as incontáveis possíveis. È o inconsciente que faz a escolha apropriada de um propósito para o interesse e isto “é valido para a associação de idéias

52[52] FREUD, 1980, p. 330. V. XII. O grifo é nosso.

Page 38: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

no pensamento abstrato quanto para a imaginação sensorial e a combinação artística” e a produção de chistes [ibid., I, 247: tradução inglesa, I, 285 e seg.]. (Por esta razão, uma limitação de associação de idéias a uma idéia excitante e uma idéia excitada no sentido de uma psicologia de associação pura) não pode ser defendida. Tal limitação poderia ser justificada “apenas se houvesse condições na vida humana em que o homem se achasse livre não somente de todo o propósito consciente, mas também da influência ou cooperação de todo o interesse inconsciente, todo o estado de ânimo passageiro. Contudo, esta é uma condição que dificilmente ocorrerá, porque, mesmo se em aparência abandonarmos completamente nossa seqüência do pensamento ao acaso ou se nos entregarmos inteiramente aos sonhos involuntários da fantasia, sempre outros interesses principais, sentimentos e estados de ânimo dominantes prevalecerão mais numa ocasião do que na outra, e eles exercerão sempre uma influência sobre a associação de idéias”.[ibid., I, 246: tradução inglesa, I, 284.] “Nos sonhos semiconscientes, ocorrem sempre apenas aquelas idéias que correspondem ao principal interesse [inconsciente] do momento.” [loc. Cit.] A ênfase assim colocada na influência dos sentimentos e estados de ânimo sobre a livre seqüência de pensamentos torna possível justificar completamente o procedimento metodológico da psicanálise, do ponto de vista da psicologia de Hartmann. (Pohorilles, 1913.) Du Prel(1885, 107) refere-se ao fato de, após havermos em vão tentado relembrar um nome, ele amiúde vem-nos de novo à cabeça subitamente e sem qualquer aviso. Ele conclui disto que um pensamento inconsciente, mas nem por isso menos intencional se realizou e que seu resultado ingressou subitamente na consciência.53[53]

Neste capítulo dedicado ao esquecimento, Freud discute algumas questões

impostas por autores dos quais ele discordava. Entre elas, o lugar mítico e

inacessível do inconsciente, como se ele fosse uma espécie de instância negra do ser,

invadindo e comandando todas as ações humanas. Freud defendia um inconsciente

dinâmico e com leis próprias, afirmando que ele não é mítico, mas sim uma

instância psíquica submetida às leis da condensação e do deslocamento.

Já Lacan, no Seminário XI, discordando dos autores que adotam essa

concepção mítica do inconsciente, cita Hartmann:

53[53] FREUD, 1900, p. 563, v.5

Page 39: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

O inconsciente de Freud não é de modo algum o inconsciente romântico da criação imaginante. Não é o lugar das divindades da noite. Sem dúvida que isso não deixa totalmente de ter relação com o lugar para onde se volta o olhar de Freud — mas o fato de Jung, relé dos termos do inconsciente romântico, ter sido repudiado por Freud, nos indica bastante que a psicanálise introduz outra coisa. Do mesmo modo, para dizer que o inconsciente tão intrometido, tão heteróclito, que durante toda a sua vida de filósofo solitário Eduard Von Hartmann elaborou, não é o inconsciente de Freud, também não seria preciso ir muito longe, pois Freud, no sétimo capítulo da Ciência dos Sonhos, refere-se, ele próprio, a isto, em nota — quer dizer que é preciso olhar isso mais de perto para designar o que, em Freud, se distingue.54[54]

Ironicamente Lacan afirma que não existe um inconsciente tão intrometido

quanto o do filosofo solitário Eduard Von Hartmann, dando voz aos esclarecimentos

de Freud sobre essas diferenças. Para Hartmann o inconsciente é imaginário e fixo

para Freud e Lacan ele é dinâmico.

Antero, apesar de ser religioso, tinha uma inquietação e um desejo sobre o

saber que iam além de sua fé religiosa. Vimos que Hartmann coloca o inconsciente

como Deus; e, em seu poema, Antero duvida, mas não descarta essa hipótese. Parece

que Deus não é para ele uma questão de fé, todavia apontando para algo ainda não

formalizado e de existência a ser pesquisada:

Virou-se para Deus minha alma triste! Amortalhei na fé o pensamento E achei a paz na inércia e no esquecimento... Só me falta saber se Deus existe!55[55]

No decorrer de sua obra, há dois significantes que sempre comparecem: Deus e

a morte. Significantes que lhe trazem questões e que permeiam toda sua obra lírica, 54[54] LACAN, 1964, p. 29. 55[55]ANTERO, apud CARVALHO, 1981,p. 217.

Page 40: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

retornando sempre com grande intensidade. Outro poema, no rastro da filosofia do

inconsciente de Hartmann, é o soneto Elogio da Morte:

Altas horas da noite, o Inconsciente Sacode-me com força, e acorda em susto.56[56]

Pode-se perceber a diferença da visão de Antero para a de Freud, em A

Interpretação dos Sonhos. Para Freud, o que nos acorda de um sonho não é o

inconsciente, muito pelo contrário, é a consciência. É justamente no momento em

que algo é intolerável pela consciência que o sonhador desperta. O sonho tem duas

funções: a primeira é nos manter dormindo e a segunda é a realização de desejo, que

é sempre edípico e infantil. Sonha-se para continuar dormindo. Se algo nos desperta

não é o Inconsciente, mas a incompatibilidade de nossos desejos inconscientes com

a censura da consciência. No soneto, que acabamos de citar, percebe-se o confronto

do sujeito com um desejo intolerável para o seu eu:

Talvez seja pecado procurar-te, Mas não sonhar contigo e adorar-te, Não-ser, que és o Ser único absoluta...57[57]

Esse “Ser único absoluta” impulsionado para a morte, era incongruente com os

ideais de Antero, o homem que levantou um auditório de mais de trezentas pessoas

nas Conferências do Cassino. Estamos diante de duas coisas que não combinam: a

morte e o homem que lutava com paixão pelos seus ideais, mobilizando as pessoas,

a fim de que tomassem consciência e participassem das mudanças necessárias à

sociedade portuguesa. É a própria ambivalência psíquica em ato que Antero, com

toque de mestre, nos apresenta o tempo inteiro. Um ser dividido e trágico que afirma

em outro momento:

56[56] ANTERO, apud CARVALHO, 1981, p.218. 57[57] Id. ibid.

Page 41: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Só males são reais, só dor existe: que sempre o mal pior é ter nascido!58[58]

Lacan, no Seminário 7, A ética da psicanálise, referindo-se à morte de

Antígona, cita as palavras que Édipo proferiu quando se deparou com sua própria

tragédia: “— Oh, jamais ter nascido...” Antígona, ao não ceder do seu desejo, não

tem outra escolha se não seguir o destino trágico dos LABDÁCIDAS: “Como falar

de conciliação num tal registro”.59[59] Eis aí a difícil tarefa de Antero: de um lado

um homem com os ideais exacerbados sonhando mudar um povo, uma nação, e do

outro lado, um ser seduzido pela morte. Há na história de sua vida uma tragédia

anunciada.

Vamos encontrar nitidamente a influência de Hartmann, no poema “Os

Vencidos”. Segundo Ruy Galvão de Carvalho, esse poema se assenta nas teorias de

Hartmann, aquele que Antero escolheu para Mestre. Aliás, Ruy afirma inclusive que

todos os admiradores de Antero irão identificar as fontes hatmannianas no referido

poema.

Para Hartmann: as formas reais e possíveis da ilusão e da felicidade são três: a felicidade é alcançável no presente, ou na vida trans-terrena, ou na humanidade, como termo do progresso, gerando cada uma destas formas três juízos reais de desilusão: a existência real é má; a vida futura uma quimera; a conquista da ventura pelo progresso e perfectibilidade da humanidade, um sentimento estéril e um valor a que se deve renunciar. Foi esta morfologia que inspirou a poesia Os Vencidos, uma das poesias destruídas por Antero, na qual três cavaleiros, símbolos das respectivas formas de ilusão, confessam em diálogo amargurado e desiludido — a derrota traiçoeira e pavorosa.60[60]

58[58] ANTERO, apud LIMA, 1991, p. 239. 59[59] LACAN. 1959, p.303. 60[60] CARVALHO. 1950, p. 94.

Page 42: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Para Hartmann, além dessas formas de felicidade, o inconsciente podia ainda

ser concebido, sem qualquer insinuação de imperfeição humana, como uma

atividade cósmica, que se apresenta segundo os moldes evolutivos do panteísmo

histórico. Essas formas reais da ilusão e da felicidade e as outras formas de

representação do inconsciente de Hartmann não dialetizam e não se inscrevem no

simbólico, mas sim no imaginário. Essas formas são pessimistas, não há nelas

nenhuma possibilidade de mudanças na subjetividade. Essa filosofia, que lhe deu

tanta inspiração, veio ao encontro da sua opção trágica, que era a forma que

encontrou para falar de sua angústia, do seu horror e de sua verdade.

Antero, em vez de se colocar como agente de sua própria história, se situa no

lugar de vítima do Outro. Logo, seria difícil criar questionamentos sobre a sua

subjetividade. O destino do herói trágico é ultrapassar os limites do humano através

de um ato. Não é em vão que esse ato é nomeado de proeza. Justamente por isto

Antígona não abre mão do seu ato: todos os dias, com suas próprias mãos, cobre

com terra o corpo do irmão morto, mesmo sabendo que esse gesto lhe custaria a

própria vida. Antero poderia ter traçado outro destino, se tivesse elaborado o luto da

queda dos seus ideais. Mas isso não foi possível e ele fracassa. O testemunho desse

fracasso nos é dado em um dos seus mais belos poemas, inspirado na filosofia do

solitário Hartmann,

Os Vencidos:

Três cavaleiros seguem lentamente Por uma estrada erma e pedregosa. Geme o vento na selva rumorosa, Cai a noite do céu, pesadamente. Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas, Tem os corcéis poentes e abatidos, Em desalinho trazem os vestidos, Das feridas lhes cai o sangue, em gotas. A derrota, traiçoeira e pavorosa, As frontes lhes curvou, com mão potente.

Page 43: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

No horizonte escuro do poente Destaca-se uma mancha sanguinosa. E o primeiro dos três, erguendo os braços, Diz num soluço: “ Amei e fui amado. Levou-me uma visão, arrebatado, Como em carro de luz, pelos espaços! Com largo vôo, penetrei na esfera Onde vivem almas que adorem, Livre, contente e bom, como os que moram Entre os astros, na eterna Primavera. Porque irrompe no azul do puro amor O sopro do desejo pestilente Ai do que um dia recebeu de frente O seu hábito rude e queimador! A flor rubra e olorosa da paixão Abre lânguida ao raio matutino, Mas seu profundo cálix purpurin Só ressuma veneno e podridão. Irmãos, amei-amei e fui amado... Por isso vago incerto e fugitivo, Corre lentamente um sangue esquivo, Em gotas, meu peito alanceado”. Responde-lhe o segundo cavaleiro, Como o sorriso de trágica amargura: “Amei os homens e sonhei ventura”, Pela justiça heróica, ao mundo inteiro. Pelo direito, ergui a voz ardente No meio das revoltas homicidas: Caminhando entre raças oprimidas, Fi-las surgir, como um clarim fremente. Quando há-de vir o dia da justiça? Quando há-de vir o dia do resgate? Traiu-me o gládio em meio do combate E semeei na areia movediça! As nações, com sorriso bestial,

Page 44: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Abrem, sem ler, o livro do futuro. O povo dorme em paz no seu monturo, Como em leito de púrpura real. Irmãos, amei os homens e contente Por eles combati, com mente justa... Por isso morro à mingua e a areia adusta Bebe agora sangue, ingloriamente.” Diz então o terceiro cavaleiro: -Amei a Deus e em Deus pus alma em tudo. Fiz do seu nome fortaleza e escudo No combate do mundo traiçoeiro. Invoquei-o nas horas afrontosas Em que o mal e o pecado dão assalto, Procurei-o, com ânsia e sobressalto, Sonhado mil ciências duvidosas. Que vento de ruína bate muros Do tempo eterno, o templo sacrossanto? Rolam, desabam, com fragor e espanto, Os astros pelo Céu, frios e escuros! Vacila o sol e os santos desesperam... Tédio ressuma a luz doa dias vãos... Ai dos que juntam com fervor as mãos! Ai dos que crêem! ai dos que ainda esperam! Irmãos, amei a Deus, com fé profunda... Por isso vago sem conforto e incerto, Arrastando entre as urzes do deserto Um copo exangue e uma alma moribunda. E os três, unindo a voz num ai supremo, E deixando prender as mãos cansadas Sobre as armas inúteis e quebradas, Num gesto inerte de abandono extremo. Sumiram-se na sombra duvidosa Da montanha calada e formidável Sumiram-se na selva impenetrável,

Page 45: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

E no palor da noite silenciosa. 61[61]

Esse poema foi destruído pelo autor e recuperado pelo seu melhor amigo,

Oliveira Martins. Ruy Carvalho mais tarde reproduziu o poema na íntegra em seu

livro Antero Vivo. Vamos abordá-lo como forma de repensar e de criar algum saber

sobre a sublimação: realmente é possível haver algum apaziguamento na dor de

existir através do processo de criação?

Privilegiando essa poesia e interligando seus significantes, temos três

cavaleiros desiludidos ao cair da noite. Eles vacilam e, dessa forma, vão tecendo

“hamletianamente” a tragédia do ser. Desde Freud, sabemos que fazer da vida uma

fatalidade banal é o modo pelo qual podemos suportar a tragédia de nossa frágil

existência humana. Grande parte dos poetas e filósofos do século XIX abraça com

entusiasmo as suas idéias, defendendo-as até as últimas conseqüências. A arte não

imita a vida, mas as duas são vividas com a mesma intensidade e na dimensão

trágica, não há lugar para a banalidade.

Hartmann encontra eco na poesia de Antero através da trajetória dos três

cavaleiros do apocalipse. Na estrada erma e pedregosa, vai deslizando aos nossos

olhos o amor pela mulher, o amor pelos homens e o amor por Deus. O diálogo entre

eles é amargurado e impregnado de desilusão. Nesse percurso apocalíptico, a solidão

é esgarçada ao extremo.

Essa poesia nos faz lembrar uma cantiga de roda:

Terezinha de Jesus deu uma queda foi ao chão Acudiu três cavaleiros todos três de chapéu na mão O primeiro foi seu pai O segundo seu irmão O terceiro foi aquele que Teresa deu a mão.

61[61] ANTERO, apud CARVALHO, 1950, p. 94.

Page 46: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Talvez a dificuldade de Antero em amar as mulheres fosse por associá-las em

demasia à figura materna, nunca erotizando-as. Os seus amores sempre foram

platônicos. A mulher com essa dimensão maternal fica interditada para o desejo

sexual. Não percebemos um deslizamento da mãe para a mulher. Há sempre uma

hesitação do poeta com a mulher, o que não deixa, de certa forma de ser uma

atitude infantil diante do enigma da diferença sexual. Será que o poeta agia assim

porque não suportava o fato de que todo encontro amoroso é sempre faltoso? Não

seria insuportável para ele, tão impregnado de ideais, se deparar com tamanha

falta? Essa falta para a psicanálise constitui a castração.

Em “Os Vencidos”, o primeiro cavaleiro diz:

(…) Irmãos, amei — amei e fui amado...

Por isso vago incerto e fugitivo.

A fuga não dá a mínima possibilidade de conciliação: “só ressuma veneno e

podridão.” Enfim o encontro amoroso foi verdadeiramente devastador. Já o segundo

cavaleiro representa os ideais fraternos, morais e heróicos:

“Amei os homens e sonhei ventura, Pela justiça heróica, ao mundo inteiro”.

Aqui o amor pelos irmãos e o desejo de justiça colocam novamente o poeta

diante de algo totalmente impossível. Esse sintoma de reformador do mundo é uma

constante nos grandes homens do século XIX.

Por isso morro à mingua e a areia adusta. Bebe agora meu sangue, ingloriamente.

Page 47: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

O terceiro cavaleiro também não encontra sentido para sua existência:

Irmãos amei a Deus, com fé profunda... Por isso vago sem conforto incerto,

A desilusão também foi tão profunda, que se tornou insuportável para o poeta:

Que vento de ruína bate os muros Do templo eterno, o templo sacrossanto?

Se até Deus, a quem ele entregou sua alma, está em ruínas, a quem o poeta

pode apelar? Agora, os três cavaleiros mergulharam na “selva impenetrável” e

desapareceram para sempre. Não há, portanto, nenhuma possibilidade que o ideal se

cumpra.

3.2-Hegel

Ai de mim! Ai de mim! E quem sou eu?62[62]

Antero considerava a obra de Hegel a Catedral do pensamento e se interessava

por todas as concepções desse filósofo: “O hegelianismo foi o ponto de partida das

minhas especulações filosóficas, e posso dizer que, foi dentro dele que se deu minha

evolução intelectual.”63[63]

Porém, em alguns momentos, Antero era ambivalente em relação a Hegel.

Classifica o seu pensamento de naturalista, para em seguida afirmar que não há

62[62] ANTERO, apud VELOSO, 1950, p. 87. 63[63] ANTERO,apud BANDEIRA, 1944, p. 31.

Page 48: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

dissociação entre ser e saber. Antero desconfiava da “inteligência” separada das

pulsões e das paixões, incluindo nela os ideais e as necessidades do coração.

O naturalismo ainda o mais elevado e mais harmônico, ainda o de Goethe ou de Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. “No fundo não é mais de que paganismo intelectual e requintado.64[64]

O mesmo homem que colocava Hegel em equivalência com Deus, em outros

momentos discordava dele, considerando-o pagão e naturalista.

Em seu livro Antero Vivo, Ruy Galvão de Carvalho denomina assim a

inquietação singularíssima de Antero pelo saber:

Com efeito, ele se detinha na teia espessa de abstrações, sistemas metafísicos, ora se engolfava no “mar tumultuoso do transcendentalismo búdico, ora, se enamorava da clara Filosofia helênica, ora, finalmente, se sentia como que deslumbrado com a Res cogitans de Descartes, com a Mónada65[65] de Leibniz, com a Substância de Espinosa, com o número de Kant, com a idéia de Hegel, com a vontade em Schopenhauer e com o inconsciente de Hartmann.66[66]

O Poeta-Filósofo defendia a aliança do pensamento com a ação, admirava os

alemães, principalmente, pelo individualismo acentuado, independência de

pensamento e desejo de inquirir a verdade. Para ele, a verdade só pode ser definida

com muito rigor. Os alemães, em especial Hegel, tinham essa inquietude com o

saber. Pode-se até pensar que Antero era um niilista como filósofo e anarquista

como político. Talvez essa diversidade de mestres, levou-o a criar uma obra de

grande singularidade, obra que levou Fernando Pessoa mais tarde a afirmar:

“Portugal como nação independente, adormeceu com Gil Vicente e metade de 64[64] ANTERO, apud VELOSO, p. 229. 65[65] Mónada: Filos segundo Leibniz, cada uma das substâncias simples de um número infinito, de natureza psíquica (dotada de apercepção e apetição), e que não tem qualquer relação umas com as outras, que se agregam harmoniosamente por predeterminação da divindade, constituindo as coisas de que a natureza se compõe; enteléquia. 66[66] CARVALHO.1950, p. 65.

Page 49: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Camões e despertou com Antero... Antero é discípulo da filosofia alemã, porém a

poesia de Antero não é discípulo de coisa alguma.”67[67]

Mas, a minha impaciência, na minha impetuosidade, saltava dali e a linguagem abstrusa, o formalismo, a extraordinária abstração de Hegel não me assustava nem repeliam; pelo contrário: internavam-me com audácia aventureira pelos meandros e sombras daquela floresta formidável de idéias, como um cavaleiro andante por alguma serra encantada à procura do grande segredo do grande fetiche, do Santo Graal, que para mim era a Verdade, a verdade pura, estreme absoluta.68[68]

Antero acredita que existe a verdade absoluta, não percebendo que a verdade

tem estrutura de ficção e de não-toda. Reconhecemos, a partir da psicanálise, que a

crença na verdade absoluta é uma forma de negar a castração. A busca pela verdade

pura acaba se tornando uma obsessão, que se estende para a busca do objeto do

desejo.

Este, com valor de fetiche, vem reforçar a negação da castração na mãe, e com

isso inviabilizar a sua relação com as mulheres, cujo gozo é enigma para o homem.

Será que o poeta buscava um gozo–a–mais? Desde Freud, tornou-se claro que

as singularidades e o caráter parcial do gozo provocam mal–estar na civilização. Em

cada época, os sujeitos criam formas de lidar com o proibido imposto pela

civilização. O proibido diz respeito às leis morais que regulam a vida do homem,

impondo renúncia às exigências das pulsões. Além disso, essas exigências têm a

função de velar a castração, na medida em que encobrem a natureza parcial de todo

gozo. Dessa natureza, nasce a suposição de que haveria um gozo-a-mais. Assim,

tanto o gozo quanto a verdade se caracterizam pela parcialidade e pelo não-todo. A

Mulher, se ela existisse, seria aquilo que completaria o desejo de um homem. Mas o

objeto do desejo é justamente o que falta. E é justamente dessa falta que Antero não

quer saber. Justamente por isto, ele responde ao mal-estar que a falta lhe causa,

67[67]PESSOA, apud LIMA,1983, p.77. 68[68] ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.240.

Page 50: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

acreditando que pode descobrir a Verdade. O caminho que irá seguir para buscar

essa Verdade será trilhado com os ideais do patriotismo exaltado pelos românticos

(Michelet), com os valores originais do cristianismo, com a filosofia idealista, com a

ciência e com o progresso.

Razão, irmã do amor e da justiça, Mais uma vez escuta a minha prece.

É a voz de um coração que te apetece, De uma alma livre, só a ti submissa.69[69]

Assim, como quase todos os escritores do século XIX, Antero tenta negar o

impossível, o que é uma das formas de negar a castração. Para permanecer na

ignorância do seu desejo, abraça os ideais e defende atos que ele considera

revolucionários.

Tudo que é, diz Hegel, é verdadeiro. Mas Hegel fala destas coisas como um filósofo: demonstra. Se a cabeça se convence, no coração, esse é que não pode consolar-se com um silogismo. Eu tenho no peito do infeliz mais bela e clara metafísica. Leio nos olhos da mulher, que chora uma demonstração de lógica eterna. E na lágrima que lhe escorrega das faces pálidas, brilha-me uma luz tamanha que me parece astro mais belo que nenhum visto ainda no céu. É o sol da imortalidade!70[70]

A mulher, como objeto de amor é exaltada ao máximo. O poeta se esquiva do

encontro sexual e amoroso com as mulheres, porque espera o encontro verdadeiro

com A Mulher. Encontro este que deixaria de ser faltoso e lhe daria como prêmio

nada mais nada menos que o gozo-a-mais.

José Hermano Saraiva em se livro História concisa de Portugal questiona a

leitura de Hegel pela Geração de 70: “Ora esses jovens liam as Origens do

Cristianismo, de Renan, a História de França de Michelet, os poemas de Vitor Hugo,

69[69] ANTERO, apud CARVALHO, p. 190. 70[70]ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.299.

Page 51: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

e conheciam, embora confusamente e através de traduções francesas ou

simplesmente de citações, o pensamento do filósofo Hegel”.71[71] É possível que eles

saibam pouco sobre Hegel, mas apontaram de forma contundente para a sua

importância. Lacan retoma Hegel através da leitura de Kojève:

Se Hegel ultrapassou um certo individualismo que fundamenta a existência do indivíduo em sua face a face único com Deus, foi ao nos mostrar que a realidade, se é que se pode dizer isto, de cada ser humano está no ser de outro.(...) O domínio está inteirinho do lado do escravo, porque ele elabora seu domínio contra o senhor. Ora, essa alienação recíproca tem de durar até ao fim. Imaginem quão pouca coisa será o discurso elaborado junto àqueles que se divertem com jazz no bar da esquina. E até que ponto os senhores aspiraram a ir ter com eles. Enquanto que, inversamente, os outros conciderar-se-ão uns miseráveis, umas nulidades, e pensarão – como o senhor é feliz em seu gozo de senhor! – Creio que é justamente aí, no limite derradeiro, que Hegel nos leva. Hegel está nos limites da antropologia, Freud saiu delá. Sua descoberta é que o homem não está exatamente no homem.72[72]

Para Hegel, há um outro sem alteridade, sem mediação simbólica. Esse outro

se constitui, segundo Lacan, no primeiro momento do “estágio do espelho”. Nesse

tempo, trava-se uma luta de vida ou morte, na medida em que o “eu é o outro”. Para

Hegel, não há outra saída senão a morte do outro, na dialética do senhor e do

escravo. Estamos diante de um impasse: o senhor não reconhece o servo com

autoconsciência autônoma, exigindo que ele seja apenas mediador de sua ação no

mundo. O servo não tem uma objetividade. Em Hegel, não há dialetização na

relação entre o senhor e o escravo, porque não há a intervenção da palavra como

mediadora, excluindo, dessa forma, o simbólico. Lacan esclarece que entre Hegel e

Freud há o advento do mundo da máquina e da energia. “Não se encontra nenhuma

utilização de cálculo energético na utilização dos escravos. Nunca se estabeleceu a

mínima equação ao rendimento deles. Catão nunca o fez. Foi preciso que se tivesse

71[71] SARAIVA, 1981, p. 328. 72[72] LACAN, 1985, p. 96.

Page 52: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

máquinas para saber que era preciso alimentá-las”.73[73] Freud partiu da noção de

energia. Acreditava, inclusive, que a máquina representa a tentativa do homem de

reproduzir o funcionamento do seu psiquismo.

Entretanto, por mais interesse que Antero tenha tido pela obra hegeliana,

faltou-lhe recursos para uma melhor compreensão dela. Como nos diz Saraiva, o

entendimento que o grupo da Geração de 70 tinha de Hegel era confuso. Mas Antero

reconheceu na obra do mestre algo que ficará para sempre: “Hegel, ao enquanto

formulou metafisicamente a lei do devenir na Natureza, ou Evolução, fez uma obra

sólida e que há-de, entendo eu, ficar para sempre.”74[74] Antero serviu-se de Hegel

para tentar tornar inteligível o destino da nação portuguesa, foi hegeliano na forma

de apresentar um trajeto essencial na cultura portuguesa, uma lógica, uma

racionalidade e Hegel era para ele uma floresta de idéias, um Graal.

Entre 1865 e 1874, escreve uma poesia intitulada de “Pantheismo”, que é

dedicada a Hegel:

Aspiração ... desejo aberto todo Numa ânsia insofrida e misteriosa... A isto chamo eu vida; e, deste modo, Que mais importa a forma? Silenciosa Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço Em homem igualmente e astro e rosa! A própria fera, cujo incerto passo Lá vaga nos algares da devesa, Por certo entrevê Deus – seu olho baço Foi feito para ver brilho e beleza... E se ruge, é que agita surdamente Tua alma turva, ó grande natureza! (...)Ó profunda visão! Mistério estranho! Há quem habita ali, e mudo e quedo

73[73] LACAN,1985, p. 99. 74[74] ANTERO apud CARREIRO, 1981, p. 258.

Page 53: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Invisível está... sendo tamanho! Espera a hora de surgir sem medo, Quando o deus encoberto se revele Com a palavra do imortal segredo! Surgir! Surgir! – é a ânsia que nos impele A quantos vão na estrada do infinito Erguemos a pasmosíssima Babel! Surgir! Ser astro e flor! onda e granito! Luz e sombra! Atração e pensamento! Um mesmo nome e tudo está escrito – ............................................................ Eis quanto me ensinou a voz do vento.75[75]

O que a voz de Hegel e de Antero nos ensina até hoje não houve vento que

levasse. Hegel ainda ecoa no mais íntimo de nós, quando afirma que o desejo do

homem é o desejo do Outro. Antero, com suas idéias e formas incompletas, mas

com clamor e coragem, afirma que a morte existe em um país que a negava com

veemência, acreditando, inclusive, no retorno de um rei que, depois de muitos

séculos, apareceria, em uma manhã de nevoeiro, montado em seu cavalo branco,

para salvar Portugal. O poeta não se cansou de afirmar: não há salvador, só homens

com determinações e ideais.

3.3- Michelet

Razão irmã do amor e da justiça, mais uma vez a minha prece é a voz de um coração que te apetece, de uma alma livre, só a ti submissa.76[76]

75[75] ANTERO,1924, p.7. 76[76] ANTERO. apud CARREIRO, 1981, p. 237.

Page 54: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Antero se entusiasma sempre que toma conhecimento da obra de algum autor

que acredita na razão e nas revoluções. Assim ele se interessou por Michelet,

historiador e filósofo francês que cria uma nova forma de fazer história.

Michelet é influenciado pelo historiador italiano Vico, o qual promoveu um

corte na abordagem histórica. Para Vico, a história não é mais dos grandes heróis,

mas a história dos povos com sua singularidade, geografia, sociedade e sobretudo,

como cada povo absorve e cria a forma de se organizar, tendo em vistas as

condições geográficas e os recursos naturais das terras que habitam. Com essa nova

concepção a importância dos líderes é diluída e se resgata a história do povo.

Michelet ficou tão impressionado com Vico que até estuda italiano para melhor

o compreender. Após esse estudo, propõe combinar a história com a filosofia e o

questionamento dos mitos que a perpassam.

Nas sombras há menos monstros; heróis e deuses evaporem-se. O que vemos são homens tal como conhecemos. Os mitos que nos fizeram sonhar são projeções de uma imaginação humana como a nossa. Até então, a história sempre fora escrita como uma série de biografias de grandes homens, ou como uma crônica de acontecimentos notáveis, ou como um grande préstito comandado por Deus. Mas agora podemos ver que o desenvolvimento de uma sociedade foi afetado por suas origens, seu contexto; que assim como os seus indivíduos, as sociedades passam por fases regulares de crescimento.77[77]

Michelet vinha de uma família pobre, mas muito culta, de tradicionais

impressores. Seu pai trabalhou até o fim de sua vida com ele na elaboração do livro

sobre a história da França. Para eles o oficio de impressor era como uma religião.

Impregnado pelo espírito da época e pelas crenças que permeavam os discursos

dos seus contemporâneos, Michelet apresenta ao século XIX uma inovadora maneira

de contar e recontar a história.

77[77] MICHELET. apud WILSON, 1989 ,p. 10.

Page 55: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

No livro O que é um pai?, Nadiá de Paulo Ferreira tece alguns comentários

sobre as crenças que predominavam no século XIX:

(...) os volumes escritos sobre a história da França por Jules Michelet 1824-1874), as obras de Kant (1724-1781), principalmente, A Crítica da Razão Prática, temos armado o palco onde serão encenadas as grandes esperanças do século XIX. A França, substituindo o papel que a Itália teve do Renascimento, passa a pregar para o mundo. Michelet, escreve, nas calçadas em chamas, segundo suas próprias palavras, Uma Introdução à História Universal, onde afirma que a história é o registro de um conflito que nasceu com o mundo, de uma guerra que só há de terminar com o mundo: a guerra do homem contra a natureza do espírito contra a matéria, da liberdade contar a felicidade. A permanencia viva do pensamento iluminista e os ideais inflamados recalcam da memória a guilhotina suja de sangue, para reter as promessas de Liberdade, Felicidade e Progresso, que, apesar de tão apregoada passavam longe da vida cotidiana, cujo cenário era a miséria e a injustiça. Se estas chagas sociais ainda existiam, desapareciam num futuro próximo, porque, desde os iluministas até Kant, os homens tinham desenvolvido um método de reflexão que iria sustentar uma nova prática política que mudaria o curso da história, eliminando o sofrimento humano.78[78]

Os ideais de Liberdade, Felicidade e Progresso recalcam todo o passado

sangrento da história, negando que o sofrimento humano é, na maior parte das vezes,

causado por cada um de nós.

Antero, ao tomar conhecimento da obra de Michelet, começa a estudá-la e a

discutir suas idéias com o grupo do Cenáculo. Mais tarde irá a Paris fazer uma

experiência proletária, trabalhando como tipógrafo. Aliás, nessa época ele se

encontra com Michelet em Paris, entregando-lhe uma carta e um exemplar de “Odes

Modernas”. Nesse encontro fica tão emocionado que chega a omitir sua verdadeira

identidade, apresentando-se com um nome falso e se fazendo passar por mensageiro

e amigo dele mesmo. Michelet, mais tarde, responde a essa carta de forma gentil e

coberta de elogios. Antero guardou a carta o resto de sua vida:

78[78] FRERREIRA, 1997, p.49.

Page 56: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Carta de Michelet:

Paris, Rue de L’Ouest. 44. 2 août 67. Nom, Monsiour, le midi n’est pas mort, puisqu’il y reste de tels espirits, jeunes, puissants, féconds. Votre lettre est, certes, la plus belle que j’ài recue depuis long-temps. Quoi! Vous avez douze hommes! Mais c’est beaucoup. Il faut moins pour changer le monde. Votre charmant ami que j’ai vu avec grand plaisir, m’a traduit plusieurs de vos chants qui me semblent admirables. J`apprendrais sur le champ le portugais si je n’étais encore rivé au dernier volume de L`Histoire de France (commencée em 1830). – Elle será, du moins – la plus complete de toutes, elle comprend la révolution, e va jusqu’en 1795. Je suis fort touché des belles choses que vous dites sur l’âlme ailée de la France et sur as puissante (sic) d’interprétation. Le midi ira loin. Il n’est point alcoolisé, narcotisé comme le nord, envahi de ce fatal songe. Puísse le grand espirit de la Perse, lê labeur héroique, lê génie (... ...)1, la puissance de (...) lui revenir. Son avenir est lá. Je vous serre la main três tendrement, ainsi qu’à votre ami. J. Michelet79[79]

Michelet reconhece o valor epistolar de Antero, afirmando que é a carta mais

bela que recebeu nos últimos tempos. Antero tem uma atividade epistolar muito

intensa e é famosa a sua carta “testamento”, endereçada ao seu tradutor e editor

alemão Wilhelm Storch, na qual faz uma análise de sua trajetória política,

revolucionária, poética e filosófica.

Antero escreveu vários artigos sobre a obra de Michelet e se considerava um

de seus discípulos portugueses. Em 1865, escreve um ensaio crítico, que ficou

incompleto, sobre a Bíblia da Humanidade. Esse livro é um estudo sobre a origem

das religiões. Em 1877, escreve outro texto enlevado de admiração e de respeito,

sobre Michelet:

79[79]ANTERO, apud MARTINS,1985, p. 131 O que está pontilhado e entre parênteses são palavras que Oliveira Martins afirma que estão inteligíveis.

Page 57: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

(...) grande e simpática personalidade literária”, dotado de “o espírito de um vidente e a erudição de um sábio”, agitado pelo “Espírito da humanidade”, um humilde, um monge, um santo”—pela sua existência nobre e pura ate à santidade”, pela sua obra – “ uma das mais vastas deste século, uma das mais ricas de originalidade criadora, de intuição e profundeza, ao mesmo tempo de assombrosa erudição renovadora e variadissima.80[80]

Sem dúvida, a paixão de Antero por Michelet produz um texto, cuja eminência

faz parte da estratégia que costuma usar para mobilizar a opinião pública. Por

ocasião da morte de Alexandre Herculano, seu amigo e mestre, Antero foi

convidado pela Revista Dois Mundos (a mesma que publicou o texto do Michelet)

para escrever um artigo sobre Herculano. Não aceitou e comenta o assunto em carta

de 4 de Agosto a Oliveira Martins:

Um artigo sobre o Herculano não é a mesma coisa que um artigo sobre Michelet: neste podia dizer o que quisesse e até onde quisesse; algumas frases bonitas e aqui e ali, um aperçu, uma sugestão, era o que se me podia e o que bastava para o público português. Agora o caso é outro. EU não posso escrever sobre o Herculano senão um artigo sério, um verdadeiro estudo, que envolva um verdadeiro juízo: apreciar o escritor, o homem público e o homem em si e em relação á época, tanto no seu país como na Europa. É um belo programa, mas para realizar de uma maneira digna de EU o subscrever precisava de uma contensão que excede às minhas forças atuais.81[81]

Ele é bastante perspicaz para perceber a responsabilidade e a diferença entre

Michelet e Herculano. O francês era já bastante conhecido, não necessitava do

empenho dele para ser reconhecido na Europa, ao passo que Herculano estava mais

desprovido de reconhecimento na Europa e precisava de um apelo maior; por ser

80[80] ANTERO, apud CARREIRO,1981, p. 71 81[81] ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.71.

Page 58: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

“português” tinha que legitimar seu talento e isso teria que ser apresentado com

muito rigor.

Antero queria criar um estilo:

“A nós que não somos Michelets, convém-nos um estilo impessoal, puramente racional e crítico, que não pode deixar de ser um pouco éffacé, mas que é seguramente preferível a uma meia–distinção ou uma distinção pobre, como pobre e mediana a individualidade que nele se reflete.”82[82]

A escrita para ele é uma necessidade, talvez uma busca para recobrir a

castração ou o indizível de sua “verdade”; para isso recorre aos mestres, aos amigos

e a seus pares, como auxiliares nesse saber que ele interroga ao Outro.

3.4- Proudhon

“Fonction du Poète”. Le poèta en de jours impies Vient prèparer des jours meilleures;

Iles l`homme des utopies, Les pieds ici, lês yeux ailleurs. (Vitor Hugo)83[83]

No artigo “ Proudhon e Antero de Quental e o “mal” do século XX” Jaques

Alibert, acordando com as previsões do mal social do século XX, anunciandas por

Antero e Proudhon, afirma:

A nossa época será salva no dia em que quiser voltar os olhos para aquele que, em França, desprezaram, tratando-o de utopista, e para o homem que em Portugal, desenvolveu a Idéia do seu mestre. Seja

82[82] ANTERO, apud CARREIRO, p. 46 83[83] HUGO apud CARVALHO, 1950, p.126.

Page 59: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

como for, o certo é que os nomes de Proudhon e de Antero de Quental ficarão para sempre ligados na História do Pensamento Humano.84[84]

Por volta de 1850 os livros de Proudhon começam a chegar a Portugal com

seus titulos sugestivos e revolucionários: Sistemas das contradições filosóficas

econômicas: Filosofia da miséria, Toda a Propriedade é um Roubo. Esses livros

fascinaram o jovem Antero, causando nele uma impressão profunda e duradoura. A

frase célebre de Proudhon “Deus era um mal”, era repetida pelo grupo do

Cenáculo85[85]. Proudhon foi o mestre que apostava na possibilidade de justiça na

sociedade civil e eclesiástica. Nada mais tentador para aquele grupo de jovens

ansiosos por mudanças, esse grupo era composto pelas cabeças mais brilhantes de

Portugal dessa época e eles se apropriavam das teses proudianas para questionar

as tradições religiosas e morais. As idéias de Proudhon vinham ao encontro dos

ideais do líder do grupo, o poeta-filósofo Antero de Quental, que, entre os seus

desejos mais ardentes, possuia os de justiça social, tão defendidos pelas palavras de

Proudhon: “eu desejo o fim dos privilégios, a abolição da escravatura, a igualdade

de direitos, o reino da lei. Justiça, nada senão Justiça; tal é o resumo de meu

discurso; deixo a outros o encargo de disciplinar o mundo.”86[86] Impregnado por

esse discurso, Antero queria a fusão do pensamento pela ação. Pertencem a essa fase

os poemas que clamam por um mundo melhor. Exemplo:

Força é pois ir buscar outro caminho! Lançar o arco de outra nova ponte Por onde a alma passe – e um alto monte

84[84]Texto publicado no número 256 (fasc. IV. Abril de 1947) da revista Estudos, de Coimbra, Jacques Alibert recordou as previsões do “mal social” do século XX feitas por Proudhon e Antero. 85[85] Cenáculo: grupo formado por escritores e intelectuais da chamada Geração de 70, que, após terem estudado juntos em Coimbra, passados alguns anos voltam a reunir-se em Lisboa, para discutir assuntos que os mobilizavam..Alguns dos freqüentadores do Cenáculo: Antero de Quental, Eça de Queiroz, Germano Vieira Meireles, Salomão Sáraga, Manuel de Arriga, Ramalho Hortigão, Guerra Junqueiro e João de Deus. O Cenáculo começou na Travessa do Guarda-Mor, onde Batalha Reis tinha um quarto. Antero de Quental também morou lá. Aliás, com a chegada dele é que surgiu a idéia das “Conferências do Cassino”. Esse grupo se formou espontaneamente e ficou conhecido por sua irreverência, fervor revolucionário, e por abrigar os intelectuais mais representativos da época. 86[86] PROUDHON, 1997, p. 23.

Page 60: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Aonde se abra à luz o nosso ninho.87[87]

Proudhon acredita que as idéias podem transformar a sociedade. Filho de

Claude-François Proudhon, tanoeiro cervejeiro, natural de Chasnans, Proudhon tinha

orgulhou de ser filho e neto de agricultores: “Meus avós por parte de pai e mãe,

todos agricultores livres, isentos de corvéias e de mãos-mortas desde um tempo

imemorial”.88[88]

Proudhon durante algum tempo trabalhou como tipógrafo, possuía orgulho de

seus ancestrais e, sobretudo, vivia de acordo com os ideais que postulava: “A

Revolução sou eu”.89[89] E o que Proudhon é? Uma mistura de realismo com utopia,

mas com grande determinação de transformar o mundo num lugar melhor não só

para ele, mas para as gerações presentes e vindouras. Esse filósofo tinha em comum

com Antero o orgulho de sua família e dos seus ideais. Eles são dois exemplos entre

vários desses valorosos “Homens” do século XIX. Antero num dos seus últimos

artigos, “O Socialismo e a Moral de 1889,” diz que “coisa alguma grande e

duradoura se fundou ainda no mundo senão pela moral”; e recorda a frase de

Proudhon: “o mundo só pela moral será libertado e salvo.”90[90]

Em O Mal-Estar na Civilização, Freud nos alerta que tudo que se relaciona

com a submissão da lei moral reforça as exigências mais cruéis do supereu. Essa

agressividade das idéias contra as idéias e as leis estabelecidas contribui para a

criação de novas possibilidades de organização da sociedade. Justamente por isto a

submissão do sujeito ao rigor da lei moral do supereu é sempre desastroso. Antero,

às vezes, entra em crise, com medo de desistir dos seus ideais. Eis o que escreve a

um amigo:

Pensa que renego as nossas grandes verdades, filosóficas e morais? Engana-se. Vejo-as tão bem como nunca. Simplesmente vejo-as: nada

87[87] ANTERO, apud CARVALHO, 1981, p. 229. 88[88] PROUDHON, 1997,p. 10 89[89] PROUDHON, 1848, p. 39. 90[90] ANNTERO, 1962,p.54.

Page 61: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

mais. Ora a gente não é segundo o que vê, somente, mas ao mesmo tempo segundo o que sente, dos fatalistas segundo a direção para que vai por uma tendência que é a expressão, exata do eu de cada qual. Percebe esta trapalhada? Creio que é imoralissima. Em todo o caso moral ou imoral, é isto que se dá em mim: ora, segundo Hegel, tout ce qui est, est raisonnable. Seja como for, o que é certo é que neste momento estou atacado de náusea da realidade. Não sei quanto tempo demorara o ataque. Não é o primeiro: é uma das minhas alternativas, conforme predomina um ou outro dos dois fatores da minha vida moral. Peço-lhe que me diga francamente uma coisa: julga-me incurável? Diga, sem receio de me afligir, o que lhe parecer, porque eu cheguei à impassibilidade interior;91[91]

Reconhece em si mesmo alguma coisa irracional que lhe dá náuseas. O

imperativo da lei moral, sob a forma de supereu, tem para ele um valor mortal. As

poucas ideologias dezenovescas que vingaram — apesar delas terem sido

preciosas para repensar o processo civilizatório — custaram grandes sacrifícios a

seus autores. Alguns inclusive pagaram com a própria vida, como é o caso de

Antero. Para Nadiá Paulo Ferreira, referindo-se aos ideais dezenovescos:

No século XIX, os álibis que velam a Castração têm a função de negá-la (denegação) e, na contemporaneidade, têm a função de excluí-la (foraclusão). Os discursos, que constituem o painel cultural do século XIX, engendram a exaltação moral de um individualismo heróico, que se sustenta na Promessa de Felicidade, quer pela via da Razão, do Amor ou do trabalho. Erige-se um ideal que implica não só a renúncia ao gozo, o que Charles Melman apresenta como uma situação onde um certo masoquismo era apreciado 4: mas também a inscrição do desejo nos conflitos edípicos, onde desejar se torna sinônimo de dizer não a uma ordem que se apresenta na contramão ao caminho que conduziria à felicidade.92[92]

91[91] ANTERO, apud CARREIRO, p.253. 92[92] FERREIRA,1997, p.52-53.

Page 62: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Na verdade: Nadiá Paulo Ferreira nos chama a atenção sobre as promessas de

Felicidade enquanto uma forma de velar a castração, denegando-a, e de fazer com

que o sujeito permanecesse alienado de sua verdade. Eles acreditavam que a fusão

da burguesia com o proletariado produziria a uma nova classe social. Antero era um

socialista, cauteloso em relação às novas teorias. Alertava os seus companheiros:

“cuidado com o Banco do Povo! É o que temos que aproveitar com a experiência de

Proudhon”93[93] O Banco do Povo era uma proposta de Proudhon para reformar as

instituições de crédito e foi uma das idéias que lhe custou muito. Por sua causa foi

motivo de escárnio, de ultrajes, objeto de desprezo, de ódio. Essa, entre outras

idéias, convertera-o na França no que ele mesmo se denomina de “Homem-terror”.

As diretrizes para o Banco do Povo eram as seguintes:

El Banco del Pueblo sería propriedad de todos los los que utilizaran sus servicios, quienes a su vez lo finaciarían co su capital em caso de que lo considerasen necesario; de esta forma los clientes se beneficiarían co créditos baratos y el banco lles quedaria agradecidos. O Banco Del Pueblo trabajaría en beneficio de sus clientes, sin cobrarles intereses o comisiones: solo percibiría una retribucion mínima para pagar los salários y los gastos . Entonces, el crédito sería GRATUITO! Uma vez puesto em prática, el proceso de desarrollaría hasta el infinito. 94[94]

Essas teses custaram a Proudhon desafetos humilhações e até pedidos de seu

afastamento da Assembléia Nacional da França, quando foi deputado. Mais tarde ele

chega inclusive a ser preso e exilado.

As dificuldades passadas por Proudhon levaram Antero a refletir sobre os

efeitos de suas teses filosóficas na política. Passou a ser mais cauteloso em relação

aos efeitos que essas idéias promoveriam no social. É lógico que algumas das idéias,

tanto de Proudhon quanto de Antero, eram utópicas. Entretanto, eles não se

consideravam utópicos, acreditam que um homem revolucionário é sobretudo um

93[93]ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.368. 94[94] PROUDHON, 1983, p. 119.

Page 63: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

homem de ciência e de crítica. Proudhon inclusive afirmava que “as reformas

deviam acontecer sempre, as utopias jamais.”

Antero postulava que é essencial tentar pôr em prática as idéias de liberdade,

igualdade e justiça. O socialismo deveria abrir a porta para um mundo novo. Sem

essa prática não haveria revolucionários. Mas, sempre advertido para a dificuldade

de mobilizar as massas, cita o exemplo de Proudhon na França:

O grande Proudhon, depois de trinta anos de trabalho e martírio, desenganado da política das revoluções, chegava finalmente, numa das ultimas paginas que escreveu, chegou a esta conclusão: ‘O mundo só pela moral será libertado e salvo’. É com estas palavras de oiro que fecharei este pequeno artigo.95[95]

Interessante pensar que as idéias de Proudhon influenciaram tanto Antero que

ele inclusive chega a propor a União Ibérica. Hoje temos a União Européia. Em um

dos manifestos, em que se apresenta como um homem de ação social e política,

Portugal perante a Revolução de Espanha, Antero caminha na direção de uma

União Ibérica. Esse manifesto iberista, analisado por Simões, acaba se diluindo:

A união Ibérica afigura-se-lhe a solução política ideal para a Península. Chega a pensar a instalar-se em Madri onde irá trabalhar num jornal de democratas castelhanos. É então que encontra os antigos companheiros de Coimbra: Lobo de Moura, Faria e Maia, Santos Valente, Manuel de Arriaga, Jaime Batalha Reis, entretanto, na redação da Gazeta de Portugal,travava-se com o autor dos folhetins estapafúrdios publicados nesse jornal que por então abalava a opinião pública de Lisboa. Ia nascer o Cenáculo. (...) Reagrupam-se os membros da “escola de Coimbra”, agora, para todos os efeitos, “escola de Lisboa. 96[96]

Assim Antero abandona a idéia da União Ibérica para se dedicar às discussões

no Cenáculo, que vão culminar nas Conferências no Cassino. 95[95] ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 115. 96[96] ANTERO, apud SIMÕES, 1962, p. 42.

Page 64: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

4 - Os mestres portugueses

Antero teve dois grandes mestres: António Feliciano de Castilho, com quem

estudou desde a infância, e Alexandre Herculano em cuja obra se iniciou com

apenas dez anos de idade. Herculano lhe causou profunda impressão, fazendo com

que ele o admirasse de forma irrestrita por toda a vida. Já com Castilho, teve alguns

conflitos, cujo desfecho culminou com a carta Bom Senso e Bom Gosto que

provocou a polêmica que inaugurou o Realismo em Portugal

4.1-Antonio Feliciano de Castilho

Nenhuma aprendizagem evita a viagem... Parte: sai. Sai do ventre de tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa paterna... lá fora, faltam todos os abrigos. A viagem dos filhos, eis o sentido despido da palavra grega pedagogia. Apreender provocar a errância. Partir em bocados para se lançar num caminho de saída incerta exige um tal heroísmo que, sobretudo a infância não é capaz de oferecer e, portanto, é preciso seduzi-la para a comprometer. Seduzir: conduzir para o outro lado... enveredar-se por um atalho que conduz a um lugar novo...partir, sair... tornar-se em vários, enfrentar o exterior, bifurcar em qualquer direção. Porque não existe aprendizagem sem exposição, muitas vezes perigosa ao outro. Jamais saberei o que sou, onde estou, de onde venho, para onde vou, por onde avança... exponho-me aos outros, às singularidades.97[97]

Michel Serres

Todos partirmos de um ponto de origem; mal nascemos e já o trem da vida

começa a trilhar por nossas heranças familiares, às vezes tão arcaicas, que nem dá

para alcançá-las. Marcas mnêmicas e significantes nos colocam num movimento 97[97] SERRES, Michel,1990, p.23.

Page 65: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

contínuo de sonhos, desejos, amores, ódios e angústias. Essa é a bagagem que

levamos até à última estação. Da viagem pouco sabemos: estações, encontros,

desencontros, projetos realizados e não realizados, etc. Para alguns a viagem é

breve, para outros mais longa. Torná-la mais interessante depende de sabedoria,

capacidade de criar e recriar. Certo é que desde o início estamos avisados sobre qual

é a última estação. Para nos deslocarmos de um ponto ao outro é necessário que

tenhamos sido amados e desejados pelo Outro, lugar em princípio ocupado por

nossos pais e todos aqueles que permearam nosso universo infantil. Mais tarde os

desejos são voltados para os objetos do mundo, tendo como matriz os significantes

que constituíram a subjetividade. Os mestres estão entre os elos mais importantes, à

medida que eles se tornam o suporte dos laços, que atualizam, pela via da

transferência, o que foi apreendido dos pais na infância.

Em 1914, Freud, no artigo Algumas reflexões sobre a psicologia escolar —

texto que foi escrito para o jubileu do liceu, onde ele tinha sido aluno —, destaca a

escola como o primeiro lugar de convívio social depois da família. É nesse ambiente

de socialização que se reeditam as questões e os sintomas infantis.

Caminhando pelas ruas de Viena — já de barbas grisalhas [em 1914, ele ainda não tinha sessenta anos] e vergados por todas as preocupações da vida familiar — podíamos encontrar inesperadamente algum cavaleiro idoso e bem conservado, ao qual saudávamos humildemente, porque o reconheceramos como um de nossos antigos professores. Mas depois parávamos e refletíamos: ‘Seria realmente ele? Ou alguém muito semelhante? Será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos sejam realmente tão pouco mais velhos do que nós?’98[98]

Para Freud os mestres parecem muito mais velhos do que realmente são, como

se nos fossem inacessíveis. Isso acontece porque substituímos o pai pelos mestres.

“De todas as imagens (imagos) de uma infância que, via de regra, não é mais

98[98] FREUD, 1914, V. XIII p.285.

Page 66: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

recordada, nenhuma é mais importante para um jovem ou um homem que a do

pai”.99[99] Nessa transferência, a imago paterna converge para o mestre, colocado-o

no lugar de pai ideal, ora para ser exaltado, ora para ser denegrido pelo próprio

sujeito. Essa, ambivalência faz parte de um processo, no qual serão reeditados, todos

os afetos destinados ao pai: amor, ódio e rivalidade.

Antonio Feliciano de Castilho é o primeiro mestre de Quental. Conheceram-se

quando Castilho, entre 1847 a 1850, se mudou para Ponta Delgada. Antero e

Castilho moravam na mesma rua, que, mais tarde, passou a se chamar Rua do

Castilho. Vizinhos, Quental costumava brincar com os filhos de Castilho. Como o

francês era a língua corrente na casa de Castilho, foi com ele que o poeta aprendeu

essa língua.

Com a chegada de Castilho, a Ilha de S. Miguel nunca mais foi a mesma. Ele,

que era professor, poeta e escritor, leva, do Continente para o silêncio de Ponta

Delgada, a literatura e a música. Promove festas, e saraus poéticos, introduz seu

método de leitura repentista, cria escolas e funda associações, como a de Agricultura

e a de Amigos das Letras, despertando, assim, a juventude para o desejo de saber.

Após esta experiência, Castilho passa a se dedicar cada vez mais à educação,

publicando uma série de trabalhos nessa área. Tendo como lema “todo homem serve

para alguma coisa” 100[100], a casa de Castilho era freqüentada pela elite da ilha e por

aqueles que se interessavam pelas artes e pela pedagogia. Seu filho, Julio de

Castilho, descreveu as mudanças ocorridas na ilha com a estadia do seu pai, em

Memórias de Castilho:

No verão deste ano de 1884, ia a Ponta Delgada desusado alvoroço nas classes altas. Estava de todo conhecido o poeta português...... Freqüentava a casa dele quase toda a gente (Entre os mais íntimos figurava Filipe de Quental, então com 24 anos. Castilho convidou-o para padrinho de uma filha que nasceu em S. Miguel); estimavam-no todos; e insensivelmente ia-se-lhe formando em volta um grupo de

99[99] ibid. p. 287. 100[100] CARREIRO,1981, p.84.

Page 67: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

estudiosos. À sua volta, às suas instâncias e ao seu exemplo, aqueles mancebos, estagnados até então na vida ociosa de uma cidade de província e entregues aos frívolos passatempos da caça, do jogo, da maledicência talvez (que essa habita quase sempre terras pequenas), olharam com certo amor para os livros que tinham em casa e abriram-nos. Todas aquelas famílias vinculares possuíam livrarias. (...) A ortopedia do grande cirurgião métrico ensinou-lhes a corrigir os erros; afoitaram-se; depuseram o medo; e, como a fera perde as iras, “e se estranha de ter coração”, eles perderam a preguiça e estranharam de ter talento!101[101]

Castilho não só movimentou a vida cultural da Ilha, mas também marcou

profundamente a vida de Quental. O livro de Castilho Felicidade pela Agricultura,

editado em Ponta Delgada, em 1849, foi um dos primeiros livros adquirido por

Antero. Mais tarde, nos sete artigos sobre Leituras Populares, recomenda Felicidade

pela Agricultura como obra civilizadora. Em 1852, Quental parte de Ponta Delgada

para Lisboa, onde passa a freqüentar o Colégio do Pórtico, de António Feliciano de

Castilho, retomando, dessa forma, a amizade que começou com a estadia do mestre

em S. Miguel. Parece que a partida dos Açores para Lisboa foi muito dolorosa. Mais

tarde, ele se refere a essa partida, em uma conversa com Artur de Quental:

(...) quando Antero estava para sair da Ilha, ao ir fazer as despedidas, o pai, para lhe experimentar o espírito de obediência, envergou-lhe a sua casaca, metendo-lhe as mangas para dentro, calçando-lhe umas luvas, mandando-o seguir neste lindo traje e vindo para uma das varandas ver a figura que o desgraçado pequeno ia fazendo. Este desceu a rua cheio de vergonha, muito vagarosamente, olhando para ver se o pai se condoia e o chamava; (...) O pai ria à gargalhada quando contava a partida que tinha feito ao pequeno e a atrapalhação deste. Antero ao comentar esse fato ‘Pois eu atrevia-me lá a desobedecer ao Pai! Nunca me passou pela cabeça desobedecer-lhe em coisa alguma’ 102[102]

101[101] CARREIRO, 1981, p. 85. 102[102] CARREIRO, 1981, p. 101

Page 68: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Raras vezes encontramos na obra de Quental comentários sobre seu pai.

Entretanto, esse relato do pai rindo dele, filho humilhado, na hora da partida para o

Continente, deve ter tido conseqüências. Mais tarde, Quental deixa entrever as

marcas de sua relação com o pai, mas, em momento algum, faz referência ao papel

que o pai teve na sua vida e a sua posição de filho obediente e humilhado. Desloca,

então, para os humilhados e os injustiçados a sua revolta contra o pai. Aliás, a sua

identificação com o povo português se dá a partir do significante oprimido.

Quisera, por último, que Portugal como povo pequeno oprimido, mas cônscio e zeloso da sua dignidade, procurasse na – Federação – com os outros povos peninsulares, a força, a importância e a verdadeira independência que lhe faltam na sua escarnecida nacionalidade.103[103]

Da submissão à revolta, Antero se transforma em um rebelde que luta para

mobilizar o povo português. Ele não é mais o filho obediente. Justamente por isto,

reagiu de forma violenta contra Castilho.

Por volta de 1862 ou 1863, Castilho apareceu em Coimbra com seus saraus e

eventos literários. Quental, que na época era estudante de direito, comparecia aos

eventos:

O sarau parecia um chilreio de passarinhos em manhã de maio”. Surge no palco o Antero com sua revolta cabeleira fulva como a juba de um leão, e começou a ler umas estrofes em oitavas hende cassilábicas. A admiração dos ouvintes foi crescendo progressiva até à explosão dos aplausos retumbantes de todo o auditório.104[104]

Castilho se mostrou muito admirado com o talento do seu ex-aluno e não lhe

poupou elogios, porém, quando promoveu outro evento, no Teatro Acadêmico,

103[103] ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 14. 104[104]ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 15

Page 69: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

pediu ao tio de Quental, seu amigo e compadre, Filipe de Quental, que o

convencesse a não comparecer. Antero de Quental concordou com o pedido do tio,

porém não obedeceu e se apresentou. Desde esse dia sua poesia ficou célebre em

toda a Coimbra.

Em 1863, quando terminou Odes Modernas, Quental procurou Castilho para

saber sua opinião. Depois das habituais palavras afetuosas, o mestre considerou o

seu antigo aluno do colégio um revoltado, sem vocação poética. Antero, percebendo

a falta de sinceridade nas observações do mestre, disse que não queria elogios, mas

críticas construtivas para melhorar. Começa a partir daí a querela entre Antero e

Castilho, que irá desembocar na famosa Questão Coimbrã. Depois de Castilho ter

escrito um artigo, criticando os poetas da “escola literária de Coimbra”, Quental

revida com a carta Bom Senso e Bom Gosto. Segundo os meios literários da época,

esse debate causou a maior polêmica na história literária portuguesa. Quental

publicou-a na Imprensa da Universidade, em 2 de Novembro de 1865. Eis alguns

trechos da polêmica carta:

BOM-SEMSO E BOM-GOSTO Carta ao Excelentíssimo Senhor Antonio Feliciano de Castilho. Exmo. Sr. — Acabo de ler um escrito (No livro do Sr. Pinheiro Chagas – Poema) de v. ex.ª, onde, a propósito de faltas de bom-senso e de bom-gosto, se fala com áspera censura da chamada escola literária de Coimbra, e entre dois nomes ilustres (Teófilo Braga e Vieira de Castro) se cita o meu, quase desconhecido e sobretudo desambicioso. (...) Eu tenho para falar mais fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que a minha posição independentíssima de homem sem proteções literárias me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com frieza e com boa-fé. Como não pretendo lugar algum, mesmo infinito na brilhante falange das reputações contemporâneas, é por isso que, estando de fora, posso como ninguém avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão. (...) Porque é uma ação desonesta. O que se ataca na escola de Coimbra – talvez mesmo v. ex.ª o ignore, porque há malévolos inocentes e inconscientes — o que se ataca não é uma opinião

Page 70: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

literária menos aprovada, uma concepção poética mais atrevida, um estilo ou uma idéia. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se à independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si o seu caminho, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. A guerra faz-se ao escândalo inaudito de uma literatura desaforada que cuidou poder correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos grão-mestres oficiais. A guerra faz-se à impiedade destes hereges das letras, que se revoltam contra a autoridade dos papas e pontífices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima não lhe escreveu nas fontes o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e ser só responsável por seus actos e palavras... (...) O ideal quer dizer isto: desprezo das vaidades; amor desinteressado da verdade; preocupação exclusiva do grande e do bom; desdém do fútil, do convencional; boa fé; desinteresse; grandeza de alma; simplicidade; nobreza; soberano bom gosto e soberaníssimo bom senso... tudo isto quer dizer esta palavra de cinco letras— Ideal. Por isso que v.ex.ª faz muito bem em o destruir; a esse pobre diabo do ideal; e o pôr fora de casa aos bufões; de o banir das suas obras, que não há de ver por lá nem a mais leve sombra dele. Agradam a todos assim. O verso de v.ex.ª não tem ideal – mas começam por letra pequena. As sua criticas não tem ideais – mas têm palavras quanto bastem ao dicionário de sinônimos. (...) Por isso Lisboa não cai como caíram Atenas e Roma, por causa das suas idéias, e Jerusalém e outras cidades inferiores, cujos poetas tiveram um amor demasiado ao ideal... Uma só coisa ficou delas: uma memória de grande, honrosa, nobilíssima. Caíram mas deram ao mundo um espetáculo raro – espírito e a consciência humana triunfando da matéria e brilhando no meio das ruínas como a chama que se alimenta da destruição da lenha donde saiu e que a gerou. (...) V. ex.ª aturou-me em tempo no seu colégio do Pórtico, tinha eu dez anos, e confesso que devo à sua muita paciência o pouco de francês que hoje sei. Lembra-se, pois, da minha docilidade e advinha quanto eu desejaria agora podê-lo seguir humildemente nos seus preceitos e nos seus exemplos, em poesia e filosofia como outrora em gramática francesa, na compreensão das verdades eternas como em outro tempo no entendimento das fábulas de La Fontaine. (...) Concluo que a idade não a fazem os cabelos brancos, mas a natureza das idéias, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco anos têm-me as verduras de v. ex.ª convencido valeram pelo menos os seus setenta. Posso, pois falar sem desacato. Levanto-me quando os cabelos brancos de v.ex. ª passam por diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele confesso não merecem nem admiração, nem respeito,

Page 71: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

nem a minha estima. A futilidade de um velho desgosta-me tanto quanto como a gravidade numa criança. V.ex.ª precisa menos cinqüenta anos de idade, ou então mais cinqüenta de reflexão. É por estes motivos que lamento do fundo da alma não poder confessar, como desejava, de v.ex. ª

Nem admirador nem respeitador Antero de Quental 105[105]

João Gaspar Simões, no livro Antero de Quental vida pensamento e obra,

comenta a posição de Quental na questão Coimbrã:

O homem impulsivo que ele era, confundindo, facilmente, atitudes literárias com atitudes morais, explica em parte, a violência desse escrito e até certo ponto a sua jactância injusta. De fato Castilho exercia um pontificado ridículo nas letras portuguesas. Mas quem eram os poetas e os intelectuais sobre que ele exercia esse pontificado? 106[106]

Na verdade, era a primeira vez que alguém ousava criticar publicamente o

talento “literário” de Castilho. Quental abre um precedente, em um momento de

extrema fragilidade do mestre, que está já muito velho e quase cego. As opiniões se

dividem. E, se nos reportamos ao texto de Freud, decerto a questão não era com

Castilho, mas com seu pai. Para sustentar o pai, ao nível do ideal — ou seja: registro

imaginário do pai —, é preciso degradar a imagem do mestre. Portanto, ele se volta

contra o mestre. Antero agora desafia o mestre, já que tinha se submetido ao pai. Na

transferência, ele desloca o ódio, que tinha pelo pai — aquele que o humilha diante

dos outros para mostrar a obediência do filho, para Castilho, tornando possível um

rompimento com o “pai que decepciona”. Freud nos chama a atenção:

O pai é identificado como o perturbador máximo da nossa vida pulsional; torna-se um modelo não apenas a ser imitado, mas também

105[105] SIMÕES, 1962, p. 145 a 162. (grifo nosso) 106[106] SIMÕES, 1962, p. 31.

Page 72: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

a ser eliminado para que possamos tomar o seu lugar. Daí em diante, os impulsos afetuosos e hostis para com ele persistem lado a lado, muitas vezes até ao fim da vida, sem que nenhum deles seja capaz de anular o outro. É nessa existência concomitante de sentimentos contrários que reside o caráter essencial daquilo que chamamos de ambivalência emocional107[107].

No momento em que Castilho representa ao nível imaginário um perigo para

Quental, ele reage com toda a agressividade. Assim os ressentimentos recalcados

contra o pai retornam. Essa bela carta, escrita com tanto Bom Gosto e pouco Bom

Senso, entrou para a história da literatura portuguesa, assinalando o início do

Realismo em Portugal. Essa carta de Quental causou abalo na cidade, que foi palco

dos amores e da tragédia da imortal Inês de Castro. Tudo começou com a leitura de

poemas, que iriam compor o livro Odes Modernas, o qual inaugurou um novo

caminho e novas diretrizes para a literatura nacional.

Quental, na famosa carta-testamento, de 14 de maio de 1887, dirigida ao seu

tradutor e editor alemão Wilhelm Storck, concordando que houve exageros em sua

mocidade, refere-se a dois episódios: a carta para o Ministro Marquês de Ávila, que

fez com que o Marquês perdesse o cargo, e a Questão Coimbrã. Eis um trecho da

referida carta:

O velho Castilho, o Árcade póstumo, como então lhe chamavam, viu a geração nova insurgir-se contra a sua chefatura anacrônica. Houve em tudo isso muita irreverência e muito excesso; mas é certo é que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituído de idéia, não podia preceder, como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e antes de tudo aspirava a uma nova direção, a orientar-se como depois se disse nas correntes do espírito da época.108[108]

107[107] FREUD,1914 V. XIII, p. 287. 108[108] BANDEIRA, 1942, p. 33.

Page 73: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Em verdade, Quental, desde sua chegada a Coimbra, não se cansava de liderar

manifestos e levantamentos estudantis, suscitando amor e ódio com grande

intensidade.

4.2- ALEXANDRE HERCULANO

Eu já vi numa ilha arremessada Às solidões do mar, entre dois mundos, Vestígios de vulcões que hão sido extintos Em não-sabidos séculos109[109]

Alexandre Herculano esteve nos Açores em 1832, para se reunir à expedição

liberal que saiu de S. Miguel para o Mindelo, da qual fazia parte também o pai de

Antero de Quental. Herculano mais tarde faz referência à estadia na ilha, no poema

acima citado Tristezas do Deserto. Nessa época, Antero ainda não era nascido, mas

essa diferença de idade não impediu que mais tarde se estabelecesse uma grande

amizade e admiração entre Quental e Herculano.

Alexandre Herculano tem grande importância para a literatura portuguesa. Seu

romance Eurico, o Presbítero é um dos mais lidos no romantismo português. Além

disso, escreveu Lendas e Narrativas entre outros. António Sergio no livro Breve

interpretação da História de Portugal chama Alexandre e Antero de:

Os Inadaptados.(...) Herculano, como disse Antero de Quental (o seu mais puro continuador nessa atitude de protesto) não é apenas um grande escritor: é um grande homem, na acepção completa desta palavra. Nascido em Lisboa em 1810, estudou no colégio dos Oratorianos, oponentes dos Jesuítas em questões de pedagogia . Adepto do liberalismo em 1835 emigrou para a França. Embarcou em Isle, e combateu no Porto. D. Fernando (marido da rainha D. Maria II) nomeou-o bibliotecário da Biblioteca da Ajuda. Escreveu novelas e contos históricos, a monumental História de Portugal (que passou de

109[109]HERCULANO, apud CARREIRO, 1981, p. 73.

Page 74: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

D. Afonso III), a Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, e uma série de Opúsculos, dos quais muitos consagrados a questões econômicas e políticas. A sua História (1846-1853) e o Verdadeiro Método de Estudar de Verney (1747) são os dois livros capitais da cultura portuguesa depois da Época do Renascimento. Ele próprio caracteriza a obra, quando lhe chama “a primeira tentativa de uma história crítica de Portugal”. (...) A revolta de Antero de Quental e de outros moços de Coimbra (Terceiro Romantismo, 1870-1890) que lhe fizeram companhia na sua polêmica contra Castilho (a chamada “questão Coimbrã”, ou “do bom senso e do bom gosto”, 1865), significa um impulso para o prosseguimento na revolução crítica de Herculano.110[110]

Com dez anos Antero conheceu a poesia de Alexandre Herculano e ficou

impressionado. Aos dezenove anos dedica-lhe uma poesia:

As Campas.

Ao Senhor Alexandre Herculano

Ao Filósofo – Homem de bem Respeito. Ao sábio – Ao Poeta Adesão e amizade. Quando a mão que obedece ao impulso De um afeto, procura outra mão E em silêncio eloqüente se apertam: É que em troca outro afecto responde... É que as almas lá têm seu quinhão!111[111]

Quando Antero conclui em Dezembro de 1863 As Odes Moderna, antes de as

levar ao editor em Lisboa, procurou Herculano em sua casa perto da Ajuda e este ao

contrário de Castilho, ficou encantado com os versos revolucionários. Na questão

Coimbrã, Herculano se manteve sempre do lado de Antero, assim como na época em

110[110] SERGIO, 1978, p.118. (o grifo é nosso). 111[111] CARREIRO, 1981, p. 143.

Page 75: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

que o governo proibiu as Conferências do Cassino, exerceu o seu prestígio para

clamar com sua escrita a liberdade de idéias em Portugal. Em relação ao grupo do

Cenáculo, Herculano sempre defendeu Antero com admiração. Eis a opinião de

Herculano sobre a intervenção da política nas Conferências do Cassino Lisboense:

O que é grave em si, como tendência, e como sintoma, é a intervenção política preventiva nesta questão: é a política violando um direito anterior à lei positiva, o direito da livre manifestação das idéias... O governo parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos está acima e além das prevenções da polícia. Dizer-se que se respeita a liberdade do pensamento, sob a condição de não se manifestar, é pueril. Na manifestação a que reside a liberdade, porque só actos externos são objeto do direito e a liberdade de pensar em voz alta é um direito originário, contra o abuso do qual não pode haver prevenção, mas unicamente castigo.112[112]

Além da defesa de Herculano, Antero e Jaime Batalha Reis entraram com um

requerimento e apelaram para a Câmara dos Deputados. Mesmo assim, As

Conferências do Cassino não voltaram a acontecer e a partir daí o grupo do

Cenáculo começou a se diluir.

Eduardo Lourenço, em Labirinto da Saudade, afirma:

Antero não teve Pátria não consentia soluções lúdicas, por ser a primeira manifestação realmente trágica que um português assumiu. Talvez o ser açoriano o tenha ajudado a distanciar-se do lado idolátrico característico das outras formas de patriotismo do nosso século XIX. Mas é uma mera hipótese, o seu açoreanismo podia ter pedido, como no caso de Teófilo ou outros açorianos ilustres, uma necessidade mais ainda de enraizamento pátrio. Não parece ter sido o caso. Antero não tem pátria, mesmo enquanto passado glorioso – como Garrett ou Herculano – só a tem como Futuro, pois só nele antevê a conciliação e a superação da aparência intolerável do Portugal seu contemporâneo e a sua idéia, que devendo muito à mitificação medievalizante de Herculano mais deve à idéia de uma evolução geral da humanidade para um reino de fins incompatíveis com a marca da

112[112] CARREIRO, 1981, p. 425.

Page 76: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

divisão dos povos que as “pátrias” todas representam. Da sua geração foi o único que em dado momento foi iberista federalista convicto.113[113]

Eduardo Lourenço, tecendo comentários sobre o episodio do Cassino, afirma

que esse acontecimento possibilitou que aparecessem escritores como Herculano,

que reedita o passado por causa do presente, e como Antero, que não se conforma

com o presente e o passado, mas almeja o futuro. Antero, segundo Eduardo

Lourenço, quer ir além do mestre, embora respeitem as suas descobertas. Não se

deixa seduzir por nenhum passado glorioso, quer glórias no presente e esperança no

futuro.

No ensaio sobre Antero e Herculano, Vitorino Nemésio descreve a influência

de Herculano na obra de Antero:

Nenhuma poesia mais própria para harmonizar de súbito as massas incoerentes de sons, fugas, aspirações rolando na sua alma de ilhéu. Herculano cantava a revelação de Deus por um jogo de forças esplêndidas e cegas, magnificadas, no silêncio ferindo com insistência as notas predominantes de um clima anterior de Antero, tão fortemente consoante com o do seu cenário atlântico......Como um novo Vergílio, Herculano guiava este Dante insular através de os abismos do inferno, apurando-lhe o ouvido para o dramático sussurro das esferas: Sobre o invisível eixo range o globo: O vento o bosque ondeia. 114[114]

Herculano foi para Antero o mestre respeitado e admirado, que devia ser

seguido como exemplo: “É um escritor o velho, e há-de ainda ser lido quando já

ninguém nos ler a nós”.115[115] Herculano, ao contrário de Castilho, suportou, além

de ser mestre, ser um dos pares de Quental. Castilho aceitava alunos e admiradores,

mas não parceiros. Antero reagiu à altura. Se nos reportarmos ao texto de Freud

113[113] LOURENÇO, 1991, p. 95. 114[114] CARREIRO, 1981, p. 96. 115[115] CARREIRO, 1981, p. 499.

Page 77: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Algumas Reflexões Sobre a Psicologia Escolar, em que ele afirma que a

ambivalência vivida na infância em relação ao pai pode perdurar durante toda a vida,

afirmaríamos que, no caso de Antero, essa ambivalência se desloca para os seus

mestres, fazendo com que a admiração exaltada por Herculano e por Castilho se

transformasse em amor e ódio, respectivamente.

5-Antero de Quental e Charles Baudelaire: o enigma do

feminino

Em uma carta de 30 de dezembro de 1857, Baudelaire afirma:

(...) o que eu sinto é um imenso desânimo, uma sensação de isolamento insuportável... uma ausência total de desejos, uma impossibilidade de encontrar qualquer distração. O êxito estranho do meu livro e os ódios que provocou, interessaram-me por durante certo tempo. Mas logo a seguir deixei-me trair outra vez .116[116]

Em uma carta a uma amiga, Antero de Quental se queixa:

(...) Estou doentíssimo daquela doença que faz um ano nos atacou; que dilata o cérebro, dissolve as idéias, relaxa a fibra e a vontade; e nos faz ver o mundo através de um fundo de garrafa, Baco e de desusada catadura. Essa doença é a inércia.117[117]

Através dessas passagens observamos que ambos tinham graves crises

depressivas. Baudelaire confessava que durante essas crises sofria de uma ausência

total de desejos e Antero de Quental dizia que era tomado pela inércia.

116[116]BAUDELAIRE, apud SARTE, 1947, p. 31. 117[117] ANTERO, apud. MARTINS, 1988. p. 25.

Page 78: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Antero sempre se esquivou de falar sobre sua vida privada, embora no artigo

Pátria reconheça a importância de suas experiências infantis: “(...) as primeiras

emoções (vividas) quase ainda no berço, dura enquanto dura a vida em todas as

fases dela, e não só no infortúnio mas no meio da prosperidade e da riqueza ; tão

puras e poderosas elas foram”.118[118] Apesar desse reconhecimento jamais

estabeleceu relações entre sua doença “nervosa” e sua história familiar. Anos mais

tarde, em outro texto intitulado “Espontaneidade”, ele indaga: O que há de

voluntário na obra humana? O que há de fatal, de inconsciente?”119[119]

Vale ressaltar que essas interrogações não levaram Antero a reconstruir sua

história. A frustração dos seus ideais e a decepção com o Mundo (Outro) levaram-no

a um intenso sofrimento, alimentado pelo sentimento de culpa:

Se nada há que me aqueça esta frieza, Se estou cheio de fel e de tristeza, É de crê que só eu seja culpado.120[120]

Antero se martiriza, revolta-se contra o Mundo (Outro) e critica as

instituições arcaicas e a atuação da Igreja Católica em Portugal. Baudelaire não se dá

ao luxo de ter “bom gosto e bom senso”; ele torna público seus conflitos com

mulheres e sua conturbada relação com seus pais:

Estou doente, doente. Tenho um temperamento detestável, por culpa de meus pais. Desfaço-me por causa deles. É o resultado de ser filho de uma mãe de 27 e de um pai de 72. União desproporcionada patológica e senil. Vê bem: quarenta e cinco anos de diferença. Dizes-me que estás a estudar fisiologia com Claude Bernard. Pergunta então ao teu professor o que pensa do fruto arriscado de um acasalamento deste gênero.121[121]

118[118]ANTERO, apud SIMÕES, 1962, p. 15. 119[119]ANTERO, apud LIMA, 1994 p. 40. 121[121] SARTRE, 1947, p. 47.

Page 79: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Esse depoimento foi dado durante um julgamento, em que estava sendo

acusado de ter falsificado alguns documentos. Baudelaire não só adultera a idade de

seu pai, aumentando-a em dez anos, mas também se coloca na posição de vítima,

como se permanecesse uma criança que depende do poder e da vontade paternas.

Aliás, durante toda a sua vida, Baudelaire irá sempre culpar os pais, principalmente

sua mãe, por tudo que lhe acontece de ruim, como se ele próprio não tivesse

contribuído para seus infortúnios.

Antero admira Baudelaire e o homenageia em uma de suas poesias:

A Carlos Baudelaire ( Autor das flores do mal ) O’Carlos Baudelaire! Ó poeta impassível! Fino lábio a sorrir, sob um estranho olhar! Tua boca descreve o criminoso, o horrível, Enquanto a tua voz parece só cantar... 122[122]

Mas não deixa de ser ambivalente a sua visão sobre a obra de Baudelaire.

Freud nos ensina que a ambivalência se caracteriza pelo investimento de amor e de

ódio dirigidos ao mesmo objeto.

Sim, descer onde tu desceste – na primavera. Ver só o insecto vil, que roe a bela flor – (Em despeito do estylo e da rima assevera) Não se faz sem soffrer...Tu conheces a dor! 123[123]

Sem dúvida Antero se identifica com o sofrimento de Baudelaire. Em outro

momento do mesmo poema, com o pseudônimo de Carlos Fradique Mendes e com a

122[122] ANTERO, apud MARTINS, 1985, p. 138. 123[123] ANTERO, apud MARTINS,1985, p.138.

Page 80: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

ressalva “Paris dia do enterro de Baudelaire: 7 de Setembro de 1867”, o poeta fala

de sua identificação com Baudelaire a partir de sua tristeza:

Somos todos assim – um triste olhar que chora E encobre, chocarreira, a luneta do tom...

Um esqueleto frio e horrível – mas por fora Irreprochablemant vestido á Benoiton!.124[124]...

Antero escreve um poema do lado de um poema de Baudelaire, escrito na

página 186 do livro As Flores do Mal. O título do poema que Antero escreve é

Versos, e o do poema de Baudelaire é Duellum. Interessante associar que Antero

teve alguns duelos, os mais sérios foram com Castilho e Ramalho Ortigão. Com esse

último, que era amigo e discípulo de Castilho, o duelo podia ter custado a vida de

um dos dois. O episódio deve-se ao fato de que Ramalho Ortigão veio em defesa do

mestre Castilho e publicou A Literatura de Hoje, obra na qual são feitas duras

críticas a Antero. Este, por sua vez, inflado pelos amigos, e num arrebatamento da

juventude, vai ao Porto para um duelo com Ramalho Ortigão.

Felizmente não há maiores conseqüências; apenas um arranhado no braço de

Ramalho Ortigão. Já o Duellum para Baudelaire parece significar um duelo apenas

literário:

(Baudelaire) DUELLUM Dois inimigos se enfrentaram; suas armas O ar tingiram de sangue e de ébrios esplendores. Estes metais em duelo ecoem como alarmas Da juventude exposta a impúberes amores. Foram-se os gládios! Como a nossa juventude, Querida! Mas as unhas e os dentes afiados Logo vingam a espada e a adaga falsa rude. - Ó coração em fúria e pelo amor magoados!

124[124]ANTERO,apud MARTINS, 1985, p. 138.

Page 81: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Na ravina apinhada de onças e leopardos Rolaram os heróis, um ao outro abraçados, E sua pele há de fazer florir os cardos. - Pois este abismo é o inferno por tantos povoado! Nele rolemos sem remorso, cruel parceira, A fim de que o ódio nos aqueça a vida inteira!125[125]

Versos Escrito num exemplar de “Flores do Mal” As flores que nossa alma descuidada Colhe na mocidade com mão casta São belas, sim: basta aspirá-las, basta Uma vez, fica a gente enfeitiçada. Nascem num prado ou riba sossegada, Sob um céu puro e luz serena e vasta; Têm fragrância subtil, mas nunca exausta, Falam D”Amor e Bem à alma enlevada... Mas as flores nascidas sobre o asfalto Dessas ruas, no pó e entre o bulício, Sem ar, sem luz, sem um sorrir do alto, Que têm elas, que assim nos endoidecem?

Têm o que mais as almas apetecem... Têm o aroma irritante e crê do Vício! P.(186).126[126]

Antero toma a poesia de Baudelaire como um desafio, apropriando-se do

significante flor para produzir a sua versão sobre a mulher. No poema de Baudelaire,

as mulheres são desumanas (cruéis), provocando nos homens o ódio; esse afeto que

alimenta a eterna guerra entre homens e mulheres. Já no poema de Antero, as 125[125] BAUDELAIRE, apud JUNQUEIRA, 1985, p.186. 126[126] ANTERO, 1955, p.155.

Page 82: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

mulheres, como objeto-causa de desejo do homem, são apresentadas não só como

enigmáticas, mas também como signos do vício, ou seja, causas de perdição.

Esta diferença nos remete para o modo pelo qual Antero e Baudelaire, a partir

de suas singularidades, lidaram com as mulheres e com o espírito do seu tempo.

Antero vivia em Lisboa e fazia parte da geração de 70, a qual estava muito

preocupada com o atraso cultural e social de Portugal em relação à Europa.

Baudelaire, ao contrário, vivia em Paris, cidade que tinha a mesma importância que

Roma tivera para cultura ocidental na época clássica.

Antero pertencia a uma família conservadora. Quando seu pai morreu, ele já se

encontrava com 31 anos, e sua mãe não voltou a casar de novo. Antero admirava

muito seu avô paterno, um homem de muitas façanhas, amigo e companheiro de

Bocage. Esse avô, que também era escritor, queimou todos os poemas que escreveu.

Antero lamentava não ter conhecido a obra desse avô. Baudelaire perdeu seu pai

com apenas seis anos de idade. Ele viveu algum tempo só com a mãe. Após esta se

casar novamente, Baudelaire é colocado num colégio interno. Essa separação lhe

causou feridas profundas na alma. Como podemos perceber em suas cartas

endereçadas à mãe, parece que essa separação foi vivida de maneira drástica pelo

poeta: “Eu vivi sempre em ti, tu eras exclusivamente minha. Eras ao mesmo tempo

um ídolo e um camarada (...)”.127[127]O casamento de sua mãe e sua ida para o

internato causaram-lhe intensos sofrimentos, que iram repercutir em sua obra e em

sua vida amorosa. No poema Oração de Fusées, Baudelaire reza e evoca seu pai,

Edgar Alan Poe, o qual ele admira muito, e sua criada Mariett. Segundo Baudelaire,

eles são seus intercessores: “Fazer todas as manhãs as minhas orações a Deus –

reserva de toda a força e justiça – a meu pai, a Mariett e a Poe, como

intercessores”128[128]Que proteção ele esperava receber de suas orações? Será que a

intercessão seria para que Deus, seu pai e as pessoas que ele admirava o ajudassem a

127[127] BAUDELAIRE, apud SARTRE, 1947, p. 16. 128[128] BAUDELAIRE, apud SARTRE, 1947, p. 145.

Page 83: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

criar um certo distanciamento da mãe, já que a relação entre eles era muito intensa e

de muito sofrimento?

Antero e Baudelaire sabiam que a ciência não explicava a dor de existir.

Apresentavam uma posição semelhante diante da medicina e do saber médico.

Antero, em 1888, na carta a Oliveira Martins, afirma: “A verdade humana não é a

verdade científica”.129[129] Em Petits Poémes, Baudelaire escreve: (...) “o espírito de

mistificação...conta por muito...neste humor histérico segundo os médicos, satânico

segundo os que pensam um pouco melhor que os médicos, sem resistências, para

uma data de ações perigosas inconvenientes”.130[130] Eles escrevem que os médicos

da época os chamavam de histéricos, e Antero inclusive tratava com tom de

brincadeira o diagnóstico dado por Charcot, afirmando que sempre achou que tinha

útero, enquanto Baudelaire considera que pensa melhor do que os médicos.

Deduzimos que sabiam que a ciência não explicava a dor que a vida impõe,

lançando mão da criação para ironizar e questionar os diagnósticos.

Freud assinala que os poetas produzem de forma antecipada um saber sobre a

existência humana. No final da Conferência sobre a Feminilidade afirma: “Querem

saber mais sobre as mulheres? perguntem aos poetas.”

No texto O tema dos três escrínios, Freud recorre à literatura para desenvolver

as questões ligadas à relação dos homens com a mãe e com a mulher.131[131]Nesse

texto Freud aponta para a dificuldade dos homens de se separar da mãe, o primeiro

objeto de amor e de desejo.

Antero nos previne sobre o que Freud considera uma tarefa difícil: um sujeito é

capaz de dar até o seu orgulho de homem para continuar débil criança a fim de que

possa continuar sob o amparo materno:

129[129] BAUDELAIRE, apud SARTRE, 1947, p. 161. 130[130] BAUDELAIRE, apud SARTRE, 1947, p. 161. 131[131] Freud, usa exemplos da literatura para questionar a relação dos homens com sua mãe e a mulher; como “Mercador de Veneza” da obra de Shakespeare, “Gesta Romanorum”, uma compilação de histórias de autoria desconhecida , e a nona história dos “Contos de Fada de Grimm”, a que tem o nome Os Doze Irmãos, e outra ainda de Grimm Os Sete Cisnes além da mitologia e citações de outras obras. Abordaremos aqui apenas o “Mercador de Veneza”.1913, p. 365.

Page 84: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Mãe ... Mãe – que adormente este viver dolorido, E me vele esta noite de tal frio, E com mãos piedosas ate o fio Do meu pobre existir, meio partido... Que me leve consigo adormecido, Ao passar pelo sítio mais sombrio... Me banhe e lave a alma lá no rio Da clara luz do seu olhar querido... Eu dava o meu orgulho de homem – dava Minha estéril ciência, sem receio, E em débil criancinha me tornava, Descuidada, feliz, dócil também, Se eu pudesse dormir sobre o teu seio Se tu fosses, querida, a minha mãe! 132[132]

Não tem limites o sacrifício que um sujeito possa fazer pelo amor de sua mãe.

Muitas vezes esse amor é usado como modo de evitar a castração e o desejo erótico

pelas mulheres. Diz-nos a propósito Nadiá de Paulo Ferreira:

O herói romântico, enquanto ideal do próprio escritor, é aquele que encontra no sofrimento o seu inferno gozante e na ironia a sua tisana. Em momento algum a desavença entre o sujeito e as leis sociais remete para o mal–estar freudiano. Não se trata da sexualidade humana, traumática, e, muito menos da existência do objeto do desejo. Muito pelo contrário, a concepção de amor romântica se sustenta na promessa de que há um objeto que iria ofertar a tão decantada Felicidade. Trata-se de um discurso que recalca a castração pela via da denegação.133[133]

Antero de Quental se refere ao amor “infantil” como sendo um amor em que

não comparece nenhuma falta, a infância é imaginada como descuidada, feliz, dócil,

e desprovida de sexualidade. A psicanálise, todavia, desde os Três Ensaios Sobre a 132[132] ANTERO, 1955, p. 66. 133[133] FERREIRA, 2003, p. 104.

Page 85: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Teoria da Sexualidade, afirma que a criança tem sexualidade, instigando-nos a

questionar esse ser débil e dócil de que nos fala o poeta. Mas o poeta revela saber

disto, tanto que no final do poema revela o desejo denegado, que é o desejo

incestuoso por sua mãe: “Se eu pudesse dormir sobre o teu seio, / Se tu fosses,

querida, a minha mãe!”.

Por outro lado, nos poemas de Baudelaire as mulheres, ao serem abordadas

como objeto-causa de desejo do homem, são rebaixadas e degradadas.

As duas boas irmãs A orgia e a morte são duas jovens graciosas, Fartas de beijos e de frêmito incontido, Cujo ventre engastado em ancas andrajosas Jamais logrou um fruto em si ter concebido. Ao poeta infausto, hostil às famílias virtuosas, Favorito do inferno e cortesão falido, Caves e tumbas oferecem, generosas, Um leito em que o pesar jamais foi recebido. A sepultura e a cova, em blasfêmias fecundas, Nos dão de quando em vez como duas irmãs, Os prazeres do horror e as carícias malsãs. Hás de enterrar-me, Orgia em tuas covas fundas? Quando virás, ó morte, envolta em negras vestes, Sobre mirtos em flor plantar os teus cipestres. 134[134]

As poesias de Antero têm em excesso o que falta em Baudelaire, ou seja: a

mulher como o objeto de amor nos é apresentada como substituta da mãe. Ao

contrário, nas poesias de Baudelaire as mulheres despertam os desejos frêmitos e

134[134] BAUDELAIRE, apud JUNQUEIRA,1985, p. 400.

Page 86: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

incontidos do homem: “Cujo ventre engastado em ancas andrajosas / Jamais logrou

um fruto em si ter concebido”. Em suas poesias, Baudelaire se refere às mulheres

com um certo horror, o que faz com que associe o gozo sexual à morte: “Hás de

enterrar-me, Orgia, em tuas covas fundas?”.

As mulheres como objeto-causa do desejo provocam medo em Antero. Desse

medo nasce a angústia insuportável, que leva o poeta a desejar a morte: “Quando

virás, ó Morte, envolta em negras vestes, / Sobre os mirtos em flor plantar os seus

ciprestes? Será que o poeta supõe a morte como solução de sua dor? Antero também

é chamado o poeta da morte, porque em várias poesias a morte surge para acabar

definitivamente com o sofrimento.

6 - Uma trajetória: da partida ao retorno trágico

Quanto ao fato de eu escrever, digo (...) que estou desiludida. É que escrever não me trouxe o que eu queria, isto é paz. Minha literatura não sendo de forma alguma uma catarse que me faria bem, não me serve como o meio de libertação. Talvez de agora em diante eu não mais escreva, e apenas aprofunde em mim a vida. Ou talvez esse aprofundamento de vida me leve de novo a escrever.”135[135]

O fragmento, que escolhemos como epígrafe desse capítulo, nos mostra como

Clarice Lispector está desiludida com o que a escrita lhe ofereceu. Escrever não lhe

serviu nem como catarse. Embora ela não descarte a possibilidade de voltar a

135[135]Clarice Lispector questiona isso numa palestra “Literatura de vanguarda no Brasil”, feita por ela em 1963 no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, no Texas. (O Globo Prosa & Verso, 3 de julho de 2005).

Page 87: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

escrever, já que o ato de escrever é para ela um “aprofundamento de vida”, ela sabe

que a escrita não lhe deu e nem lhe dará nunca a paz, ou seja, a completude.

Por que a escrita como sublimação não possibilita o apaziguamento da dor de

existir? Essa foi a questão que permeou o nosso trabalho. Como a relação com a

escrita se faz caso a caso, perguntamo-nos: Por que a escrita não sustentou a vida de

Antero? Ou: A escrita é que permitiu Antero viver até aos cinqüenta anos? Até que

ponto o processo de criação apazigua o tormento ou a dor da alma, já que sabemos

pelo nosso embasamento teórico e clínico que, para alguns, a criação dá sentido, e

para outros tem a função de nome do pai suplência. Será que a desilusão teria

provocado uma ferida narcísica tão profunda e levado o poeta ao suicídio? Será que

os ideais tinham para ele uma função tão vital que, quando caíram, não houve nada

que o amparasse? Isso é o que ele nos diz na já citada poesia Os Vencidos.

Para alguns escritores o processo de criação literária é um recurso para lidar

com a angústia. Na obra de Antero, o sofrimento psíquico se manifesta de forma

explícita. Para esse controvertido poeta, “doente dos nervos” e absorvido pelos

seus ideais, o inconsciente talvez seja o espectro que ele ama, odeia e persegue ‘sem

o saber’, de forma obstinada, desde o manifesto de Coimbra, que provocou a

destituição do Reitor. E mais: Por que essa aproximação do escritor com o “saber

inconsciente” não possibilitou o direcionamento de suas pulsões de forma mais

apaziguadora?

Numa carta a uma amiga o poeta escreve: [...] “Estou doentíssimo daquela

doença que faz um ano nos atacou; que dilata o cérebro, dissolve as idéias, relaxa a

fibra e a vontade; e nos faz ver o mundo através de um fundo de garrafa, Baco e de

desusada catadura. Essa doença é a inércia”.136[136]

Que inércia era essa que, apesar da queixa, ainda permite que continue em

contato com alguns de seus amigos até os últimos momentos do ato final? Chama-

nos atenção o fato de o poeta ter mantido os laços sociais e de trabalho, durante toda

a sua vida. Sua vasta correspondência nos confirma isso. É certo que, no final, já não 136[136] ANTERO, apud MARTINS, 1985, p. 25.

Page 88: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

era mais o jovem que queria mudar Portugal através da filosofia e da poesia. Há um

reconhecimento a respeito de seu engano em relação às utopias defendidas com

afinco. Mas, mesmo assim, ele ainda endereça cartas aos amigos, como no caso de

Oliveira Martins, em 15 de março de 1887:

[...] “Tive um certo prazer em tornar a ver a minha terra, ainda que não sei porque, e talvez só por instinto, pois deve haver uma profunda relação entre o homem e a terra em que nasceu e se criou. Ou será talvez que este isolamento num canto do mundo, que é já uma meia-morte ou uma morte antecipada, convenha muito ao humor em que há tempo me sinto. Como quer que seja, confesso-lhe que gostaria de me fixar aqui definitivamente” · 137[137]

Por quê a ligação entre a morte e a terra na qual nasceu e se criou? Por que

Antero, com o decorrer do tempo, transforma o ideal em um tormento?

O Tormento do Ideal Conheci a Beleza que não morre E fiquei triste. Como que na serra Mais alta que haja, olhando aos pés da terra E O mar, vê tudo, a maior nau ou torre, Minguar, fundir-se sob a luz que jorra; Assim eu vi o mundo e o que ele encerra Perder a cor, bem como a nuvem que erra. Ao por do sol e sobre o mar discorre. Pedindo à forma, em vão, a idéia pura, Tropeço, em sombras, em matéria dura, E encontro a imperfeição de quanto existe. Recebi o batismo dos poetas, E assentado entre as formas incompletas

137[137] ANTERO apud MARTINS, 1985, p. 301.

Page 89: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Para sempre fiquei pálido e triste. 138[138]

Freud, em texto de 1908, Escritores criativos e devaneios, afirma que o

escritor apresenta sua fantasia inconsciente para o mundo. As fantasias de Antero

propõem mudanças significativas no espírito intelectual de sua época e na sociedade

portuguesa. Mais ciência, arte, revolução e menos religião são as máximas

defendidas pelo poeta.

Aos quinze anos, em Lisboa, escreve: “eu por mim nunca me pude conformar

com a idéia de interpor as vastas solidões do Oceano entre mim e a terra que me viu

nascer”.139[139] No começo de sua vida, já se fazia anunciar sua sensibilidade às

separações e seu apego às experiências da infância, nos Açores, que irá chamar,

mais tarde, de emoções, no seu artigo Pátria, “ [...] as primeiras emoções (vividas)

quase ainda no berço, dura enquanto dura a vida em todas as fases dela, e não só no

infortúnio mas no meio da prosperidade e da riqueza ; tão puras e poderosas elas

foram”140[140]. O que da infância e das primeiras impressões vividas nas distantes

ilhas dos Açores teria marcado o espírito de luta e de revolução, do poeta-filósofo?

Que ele passará pelo resto de sua vida perseguindo? Ilhas em que, segundo alguns

autores, em conseqüência do seu isolamento, ainda se falava o português arcaico, do

teatro de Gil Vicente. Freud denomina as primeiras impressões da infância de

marcas mnêmicas. Estas irão influenciar o nosso estar no mundo para sempre. Quais

teriam sido essas marcas que o poeta chama de emoções? Para Lacan seriam os

primeiros significantes, os quais determinam o destino. Se, como nos diz Freud, o

artista precede o psicanalista, podemos supor que Antero ratifica essa premissa,

tanto em grande parte de sua obra, quanto em seu modo de questionar a cultura e a

sociedade. É o que vimos em seu poema já citado O Inconsciente.

Seguindo este raciocínio, podemos deduzir que Antero sabia se movimentar na

direção do inconsciente. Freud, ao ler Gradiva de Jensen, conclui: 138[138] ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p. 175. 139[139]ANTERO, apud SIMÕES, 1962, p. 15. 140[140] ANTERO, apud SIMOES, 1962, p. 15.

Page 90: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

[...] Assim fiquei bastante surpreso ao verificar que o autor de Gradiva publicada em 1903 baseara sua criação justamente naquilo que eu próprio acreditava ter acabado de descobrir a partir das fontes de minha experiência médica. Como pudera o autor alcançar conhecimentos idênticos aos dos médicos – ou pelo menos comportar-se como se os possuísse.141[141]

Assim como o autor de Gradiva, Antero já apontava para o Inconsciente em

1887, com a poesia O Inconsciente. Freud só apresenta o inconsciente ao mundo em

1900 com A interpretação dos sonhos. Antero, para indicar a existência do

Inconsciente, faz poesia. Freud teoriza e cria a psicanálise. Antero sonhava com a

poesia e com a filosofia, com vistas a mudar um povo, uma nação. Freud cria uma

prática clínica que se baseia na cura pela palavra. Só que nossa experiência teórica e

clínica nos ensina que sofrer os efeitos do inconsciente não é a mesma coisa que

uma experiência de análise, que permite uma elaboração do sofrimento, uma

retificação subjetiva para que haja um suporte para as quedas dos ideais. Antero,

mesmo sofrendo os efeitos do “saber” inconsciente, tornou-se vítima dos ideais de

sua juventude.

Freud, na segunda teoria do aparelho psíquico, define o ideal do eu como uma instância do eu, resultante da convergência do narcisismo com as identificações com os pais. Estas, por sua vez, serão substituídas pelos ideais coletivos. Enquanto instância diferenciada, o ideal do ego “constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-se.142[142]

A partir da definição freudiana do ideal, exploramos em vários textos as

identificações do poeta–filósofo com seus antepassados, os quais se destacaram por

seus ideais liberais e pelas lutas de independência. Abordamos seu avô paterno,

André da Ponte de Quental da Câmara e Sousa; seu pai, Fernando de Quental, seus

141[141] FREUD, 1906/1907, p. 60. 142[142] LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 222.

Page 91: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

mestres, optando por aqueles que tiveram uma maior influência em sua obra e vida;

dos alemães Hartmann e Hegel; dos franceses Michelet e Proudhon; dos portugueses

Castilho e Alexandre Herculano, além de permearmos o texto com as opiniões de

seus amigos e pares que acompanharam este estudante açoriano em Coimbra, até

que se tornasse um dos homens mais importantes de sua geração. Para alguns

estudiosos da literatura portuguesa sua obra está à altura das obras de Bocage e de

Camões. Será que, nesse sentido, podemos afirmar que se cumpriu algo do seu

ideal? Freud, no texto Introdução ao Narcisismo, escreve:

(...) uma parte da auto-estima é primária e provém do resíduo do narcisismo infantil; outra parte decorre da onipotência que é corroborada pela experiência (a realização do ideal do eu); uma terceira parte provém da satisfação da libido objetal. O ideal do eu impõe severas condições à satisfação da libido por meio de objetos, pois ele faz com que alguns objetos sejam rejeitados, porque se apresentam incompatíveis com o ideal. Onde não se formou tal ideal, a tendência sexual em questão aparece inalterada na personalidade, sob forma de uma perversão. Tornar a ser seu próprio ideal, como na infância, no que diz respeito `as tendências sexuais não menos do que as outras – isso é o que as pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade. 143[143]

Talvez nesse esforço de seguir na direção dos seus ideais, Antero elegeu a arte

como bandeira. Ele desejava que sua poesia fosse “verdadeira” e conclamava que

“A arte é a única santa da humanidade”, “a arte – a verdade feita vida”.144[144] Que

verdade ele esperava encontrar na vida e na arte? Será que esse esforço na direção

da “verdade” seria o de se tornar seu próprio ideal, como no diz Freud, e atingir a

“felicidade”? Ainda no texto Introdução ao Narcisismo, Freud escreve sobre o ideal

do eu e a sublimação:

143[143] FREUD, 1914, p.118. 144[144] ANTERO, apud COIMBRA, 1952, p,332.

Page 92: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Um homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal do eu, nem por isso foi necessariamente bem sucedido em sublimar seus instintos libidinais. É verdade que o ideal do eu exige tal sublimação, mas não pode fortalecê-la; a sublimação continua a ser um processo especial que pode ser estimulado pelo ideal do eu, mas sua execução é inteiramente independente de tal estímulo. A formação de um ideal aumenta as exigências do eu constituindo o fato mais poderoso do recalque; e a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual as exigências podem ser atendidas sem envolver o recalque145[145].

Sublimar é, segundo o texto de Freud, uma forma de desvio da pulsão sexual,

sem passar pelo recalque. Então a sublimação seria uma forma que o sujeito

encontrou para atender as demandas de suas pulsões.

Antero lutou muito para introduzir uma outra forma de pensar em Portugal. Ele

foi admirado por alguns filósofos e escritores de sua época, mas o “reconhecimento”

de seus pares, como Eça de Queiroz e Oliveira Martins, não o tranqüilizou,

tampouco de mestres como Alexandre Herculano. Antero tentou de forma original

produzir sentido para a sua vida, mas nada era suficiente. Havia algo de onde ele não

conseguia se mover. Havia alguma coisa que não permitia que ele mudasse seu fado.

O poeta do Elogio à Morte deixou marcas num país que negava a tal ponto a

morte que até depois de mais de um século do desaparecimento do rei D. Sebastião

o povo português ainda acreditava que ele voltaria como salvador. Antero, ao

afirmar a morte, conclamava os vivos a não esperar um salvador, mas a despertar

para a conquista. Não vinda do mar, nem de outras terras, mas de suas próprias vidas

e possivelmente com isso tentava sair, sem saber sabendo, do lugar de morto.

Em 1838, sua mãe teve um filho ao qual deu o nome de Antero Traquínio de

Quental, um bebê que morreu três meses depois, e em seguida nasceu a irmã Maria

Hermelinda e quatro anos mais tarde nasce “outro” bebê, Antero Traquínio de

Quental. O lugar do morto estava ocupado; mas não sem conseqüências. Quais? Só

sabemos sobre isso nos rastros deixados na obra de Antero Traquínio de Quental. Os

145[145] FREUD, V.XIV. 1914, p. 112.

Page 93: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

versos de seus poemas nos apontam contundentemente para a divisão entre o desejo

de viver e o de ocupar o lugar do morto. Exemplo:

LOGOS Ao Sr. D. Nicolas Salmeron Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim E, o que mais, dentro em mim – que me rodeias Com um nimbo de afectos e ideais, Que são o meu princípio, meio e fim... Que estranho ser és tu (se és ser) que assim Me arrebatas contigo e me passeias Em regiões inominadas, cheias De encanto e de pavor... de não e sim... És um reflexo apenas da minha alma, E, em vez de te encarar com fronte calma Sobressalto-me ao ver-te e tremo e escoro-te... Falo-te, calas... calo, e vens atento... És um pai, um irmão, e é um tormento Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!146[146]

Esse estranho que passeava com ele calado, pois um morto não fala, era um

tirano. Talvez fosse o pai, só que adorado como irmão. Freud nos alerta que a

mudez no sonho deve ser interpretado como um sinal de estar morto. Seriam esses

desejos que impulsionavam os temas de amor e morte ?

(...) Cavalga a fera estranha sem temor: E o corcel negro diz: “Eu sou a Morte!” Responde o cavaleiro: “ Eu sou o Amor!”147[147]

146[146] ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p. 233 (grifo nosso). 147[147] ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p. 222.

Page 94: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Interessante pensar sobre o que seu mais reverenciado biógrafo, Bruno

Carreiro, nos chama a atenção, considerando um fato curioso, inclusive vindo de

uma ilha em que, naquela época, quase todas as pessoas se conheciam e a

curiosidade pela vida alheia era uma forma de dinamizar o social. O fato é sobre o

pai de Antero, e eis o que causa estranhamento em Carreiro:

Não deixa de ser notado o facto de em toda a sua obra e correspondência de Antero não haver uma única referência ao pai. Ao partir para Paris em 1866, para trabalhar como tipógrafo, foi à mãe que se dirigiu para S. Miguel, a fazer as últimas despedidas à família. Terá essa resolução determinado uma quebra ou tensão de relações entre Antero e seu pai? Nenhuma informação conseguimos recolher em S. Miguel, entre as pessoas que ainda conheciam Fernando de Quental.148[148]

O pai de Antero morreu em 8 de março de 1873. No começo de abril, Antero,

que estava em Lisboa, volta para ver a família em Ponta Delgada. Um amigo, que o

esperava, tem dele a seguinte impressão: “(...) reapareceu aqui em 1873, avergado,

como ao peso de anos sob a inexorável tirania de uma fatal doença já”. 149[149]

Podemos perceber por essa opinião que Antero ficou bastante abatido com a morte

do pai, mas ele não menciona isso em momento algum. Outra carta a Oliveira

Martins de Abril de 1873, em que participa a sua chegada a S. Miguel, comenta

sobre o estado das mulheres da família, mas nem uma palavra sobre a morte do pai.

Aqui estou agora no meio de aflitas mulheres, aflito eu com elas, por ver a pobreza de consolações de escassamente dispõe a fria inteligência em face das reais irrefletidas. Não sei se me explico bem. Quero dizer que a espécie particular de pensamentos, puramente racionais, que a mim me consolam, ainda desconsola mais os corações

148[148] ANTERO, apud CARREIRO,1981, p. 493. 149[149] ANTERO, IN MEMORIA, 1993, p. 77.

Page 95: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

que só sentem e não reflexionam. Triste condição da filosofia! Ou então triste condição dos sentimentos humanos.150[150]

Nenhuma referência objetiva à morte do pai, só aos efeitos na família. Não é à

toa que Antero tem dúvidas se está se explicando bem. O mesmo não aconteceu

anos mais tarde, com a morte da mãe e com a doença e morte do irmão, que morreu

louco e internado em Rilhafoles. Essas mortes são comentadas por Antero que,

inclusive pede aos amigos que o consolem. O fato é que, comentada ou não, a morte

do pai traz consigo um agravamento do seu estado emocional. Antero começa a

procurar médicos para a sua doença nervosa, que passa a ser motivo de grandes

preocupações para ele e para todos o que convivem com ele, pois escreve e fala

sobre ela com a mesma intensidade que produz sua obra.

Antero, depois de consultar vários médicos, em Portugal, no ano de 1877,

vai a Paris consultar o que ele chama de oráculo:

Este sábio – Diz em carta de 20 de julho de 1877 a Lobo de Moura – é “le premier homme de France pour les maladies nervouses”. Depois de competentes interrogatórios e apalpões eis o que saiu do oráculo: - “On s’est trompé; vous n’avez rien à l’epine: vous avez une maladie de femme, transpotée dans um corps d’homme; c’est l’hyst´risme”. E receitou hidroterapia. Diz ele que isso cura fácilmente.(...) Mestre Charcot diz que vou melhorar, e assegura tão terminantemente que me há-de por bom, dando-lhe eu um tempo, que não ouso recusar-lhe essa condição, apesar do medo que me mete o inverno, que já quer começar. 151[151]

Antero vinha sendo diagnosticado pelos médicos portugueses como tendo

várias doenças orgânicas, entre elas, doença na espinha e refluxo. Náuseas e enjôos

também foram uma constante entre as queixas que fazia de sua doença. Charcot faz

o diagnóstico de histeria e promete a cura nas duas vezes que Antero o procurou, só 150[150] ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p.494 (grifo nosso). 151[151] ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 68.

Page 96: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

que não conta com a rebeldia do doente para com o Mestre. Procurar um mestre e

admirá-lo não significa que se vá obedecer. Será que no lugar de Charcot Antero

tivesse encontrado com Freud, o seu destino teria sido outro? Isso é uma resposta

impossível de obter!

A partir daí, Antero muda várias vezes de casa e de lugar, confessando que

não pode voltar para S. Miguel. Ele sabe, sem o saber, que viver fora de sua terra-

mãe, era uma forma de se manter vivo, ainda que reclamando: “Estou cansado

desta vida errante. Mas para onde ir? Não vou para Casa senão em tendo

arrefecido o suficiente para encarar serenamente as misérias de família. A ilha é

por ora um espectro com que não posso encarar”.152[152] Esse espectro e as

misérias da família só podiam estar na vida do poeta se uma certa distância fosse

mantida, ou o poeta só pode viver na errância?

Antero vai parar um pouco com a vida errante quando, em 1879, morre seu

amigo Germano Meireles e Antero adota sua família. Albertina e Beatriz, filhas de

Germano, juntamente com a mãe, vão morar com ele no ano seguinte em Vila do

Conde. Em 1885, morre a mulher de Germano Meireles. Antero fica só, com

Albertina e Beatriz, internando-as no Colégio das Doroteias do Porto e continua

morando em Vila do Conde, sempre visitando as pupilas no internato. Também

recebe seus amigos, por vezes em sua casa e por vezes hospedando-se em suas

casas. Nessa época, escreve alguns trabalhos e poemas e é eleito presidente da Liga

Patriótica do Norte, no Porto.

Em 9 de Setembro de 1890, faz seu testamento, e deixa em 1891 Vila do

Conde, indo se instalar em Lisboa, na casa da irmã, Ana, com as filhas adotivas.

Nesse mesmo ano, decide enfrentar o que ele “sabe” que é fatal para ele: o espectro

da Ilha de S. Miguel. Então vai morar lá com a irmã e as filhas adotivas. Todavia,

Ana não consegue se adaptar aos Açores, pois, também, não está se relacionando

bem com Albertina e Beatriz. Então ela decide retornar a Lisboa. Antero, no entanto,

resolve também retornar ao Continente, no dia 18 de setembro, deixando para trás as 152[152]ANTERO, apud SAMPAIO, p.15

Page 97: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

filhas adotivas por achar melhor para elas a vida nos Açores. Parece que isso se

torna insuportável e Antero fica dividido, extrema divisão, tão forte que ele não

consegue equacionar, quer ficar e quer ir, então se mata em frente ao convento da

Esperança.

Porque Antero não consegue continuar vivo como os companheiros do grupo

de Coimbra e do Cenáculo? O bem humorado grupo dos Vencidos da Vida, como

eles se auto denominavam, reunia-se para questionar a arte, a política a sociedade e

até a si mesmos, mas já suportando a queda dos ideais exarcebados da juventude.

Reuniam-se para jantar e fazer humor. Como por exemplo, quando em 1884 foram

jantar no Palácio de Cristal e escreveram num leque essas bem humoradas citações,

sobre a matilha que formavam:

Os latidos I Quem muito ladra pouco aprende. Antero de Quental II Escritor que ladra não morde. Oliveira Martins III Dentada de crítico cura-se com pêlo do mesmo crítico.Ramalho Ortigão IV Cão lírico ladra à lua; cão filósofo aboca o melhor osso. Eça de Queiroz. V Cão de letras – cachorro! Guerra Junqueiro ENVOI São cinco cães, sentinelas De bronze e papel almaço; De bronze as canelas, De papel o regaço. (assinado) A matilha153[153]

Inclusive houve um jantar de despedida no restaurante Tavares, antes da última

viagem de Antero para os Açores. Talvez se Antero continuasse no Continente, onde 153[153] MAGALHÃES, 1998, p. 115.

Page 98: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

conseguiu tantas glórias e reconhecimento, o destino pudesse ter sido outro. Quem

sabe um destino no qual as angústias pudessem ser mais aplacadas por algumas

satisfações? O que comenta na carta a Wilhelm Storck nos permite entrever outro

destino que não o suicídio:

Morrerei, porém, com a satisfação de ter entrevisto a direção definitiva do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina busca do espírito humano. Morrerei, também, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações da alma humana, e, como dizem os antigos, na paz do Senhor! – Assim o espero.154[154] Porém, o coração feito valente Na escola da tortura repetida, E no uso do penar tornado crente, Respondeu: Desta altura vejo o amor! Viver não foi em vão, se é isto vida, Nem foi de mais o desengano e a dor 155[155]

Interessante pensar que Antero em alguns momentos não estava tão disposto a

levar até as ultimas conseqüências seus ideais, as revoluções etc, mas afirmava, de

forma irônica, que é preciso eleger-se qualquer sistema:

Todos os sistemas são equivalentes – todos os sistemas são bons, porque todos os sistemas são maus . A obra do Ser-coletivo ‘Humanidade’ há-de fazer-se infalivelmente: está-se fazendo nesse momento; estamos nós todos a fazê-la sempre, e, se não somos nós, alguém será. Não nos desesperemos. Todos os sistemas são equivalentes. Mas é preciso ter um sistema, qualquer que seja. 156[156]

154[154] ANTERO, apud BANDEIRA, 1942 p. 40. 155[155] ANTERO, apud CARVALHO, 1983, p.246. 156[156] ANTERO, apud CARRREIRO, 1983, p. 335.

Page 99: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Assim encerramos esse percurso com a convicção de que o poeta muito nos

ensina, com suas formas e sistemas incompletos, sobre a trajetória humana, que

sempre está entre a tragédia anunciada de viver e morrer, sabendo-se que a morte

provocada ou não será nossa última morada, de seres errantes. Nesse universo de

planetas e constelações, um dia a mãe-terra nos acolherá como último exílio.

Evolução A Santos Valente Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,

Tronco ou ramo na incógnita floresta... Onde espumei, quebrando-me na aresta Do granito, antiqüíssimo inimigo... Rugi, fera talvez, buscando abrigo Na caverna que ensombre urze e giesta; Ou, monstro primitivo, ergui a testa No limoso paul, glauco pascigo... Hoje sou homem – e na sombra enorme Vejo, a meus pés, a escada multiforme, Que desce, em espirais, na imensidade... Interrogo o infinito e às vezes choro... Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro

E aspiro unicamente à liberdade”157[157]

157[157] ANTERO, apud CARREIRO,1981, p. 234.

Page 100: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

7- Conclusão

A vida de Antero foi transpassada pelos ideais do século XIX. Podemos dizer

que ele foi mesmo um protótipo dos grandes homens desse século. O seu olhar se

dirige para o liberalismo europeu, e sua pena visa ir além da tradição fundamentada

na religião e na culpa. Abrindo caminhos para além do mar e do exílio, a geração de

setenta vislumbra outras saídas. Mas Antero torna-se um errante na própria terra, um

exilado na própria subjetividade. Portugal, no século XIX, permanece dando costas à

Europa e restringe as trocas culturais com outras nações, permanecendo saudoso do

seu passado glorioso (grandes conquistas na navegação) e cultuando a idéia de que

viria um salvador. Os reis sonâmbulos, a decadência, a religião, a falta de arte e de

ciência na cultura do povo inquietam o espírito revolucionário de Antero. Ousado e

apaixonado, até mesmo utópico, Antero tenta despertar o Portugal adormecido,

assinalado por Pessoa, conclamando o povo à liberdade em suas epístolas, seus

manifestos e, sempre que possível, em suas poesias.

Embora com dificuldades de colocar em prática suas idéias revolucionarias,

Antero encontra seus pares causando neles admiração e poder de liderança. O

Cenáculo foi testemunha desse tempo. Inspirado por autores como Hartmann, Hegel,

Michelet e Proudhon, e mestres como Castilho e Alexandre Herculano, Antero

segue sua trajetória niilista como filósofo e anarquista como político, criando uma

obra de grande singularidade e deixando entrever seu amor à verdade. Constituíram

as trilhas para esse caminho em direção à verdade os ideais do patriotismo exaltado

dos românticos, os valores originais do Cristianismo, com a filosofia idealista, a

ciência e o progresso. Antero esperou mais do que seria possível dos ideais, da

filosofia, da poesia, da política e da verdade. Consideramos que foi um grande

engano acreditar que com esse conjunto de saber seria possível mudar um povo e

uma nação.

Page 101: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Talvez para não encarar o que ele chama de misérias familiares e o espectro

imaginário da Ilha de S. Miguel, o qual ele diz que só pode encarar arrefecido,

tentou fazer semblante com a filosofia, a poesia e outras criações. Será que foi em

vão? Essa é uma pergunta que permanece incógnita no nosso trabalho. A não ser

quando nos reportamos a Fernando Pessoa, quando afirma que “tudo vale a pena se

alma não é pequena”158[158]. Sem dúvida essa alma não foi pequena e entrou para a

história portuguesa através de sua obra.

O processo anteriano de criação não eximiu esse sujeito da angústia, tampouco

de estados conturbados de alma. É plausível supor que a escrita tenha amenizado a

dor de existir, mais suportável para ele do que a divisão subjetiva em relação ao

próprio desejo. Esse processo pode ser apreendido em muitas de suas poesias e

cartas, tal como a carta que endereça ao amigo Oliveira Martins:

(...) A contenção terrível do meu pobre espírito, amarrado, acorrentado, como num proto como numa cruz, à dedução das idéias que o trabalho do meu livro vai erguendo diante de mim (vendo abismos de um lado, vendo muralhas de outro), numa palavra, estado de parto, e está tudo dito, essa contenção chega em momento de produzir em mim (que sou fraco do cérebro) uma coisa semelhante à imbecilidade. Com os olhos num ponto único, arregalados num esforço violento para penetrar a forma de uma idéia que não quer sair do vago, não vejo mais nada, e o que de tudo mais entendo é como que pelo tacto, como que às apalpadas.159[159]

Podemos constatar que, para formular suas idéias, Antero fazia um esforço,

segundo ele, violento, para sair do vácuo do pensamento. Considerando-se até em

estado de parto, que não deixa de ser um índice do desejo de se perpetuar após a sua

morte. A obra não deixa de ser uma forma que o artista encontra para se

imortalizar.E Antero faz parte da história da Literatura Portuguesa..

158[158] PESSOA, 1977,p. 82. 159[159]ANTERO, apud CARREIRO, 1981, p. 498.

Page 102: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par
Page 103: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

8- Referências Bibliográficas Antero de Quental In Memoriam, Lisboa: Editorial Presença e Casa dos Açores,

1993.

BANDEIRA, Manuel. Sonetos Completos e Poemas Escolhidos. Rio de Janeiro:

Livros de Portugal, Ltda, 1942.

BERARDINELLI, Cleonice. Estudos de Literatura portuguesa. Lisboa: Impresa

Nacional Casa da Moeda, 1985.

CARREIRO, José Bruno. Antero de Quental. Subsídios Para a Sua Biografia. I e II

Volume, 2 Edição, Braga: Livraria Editora Pax Limitada, 1981.

CARVALHO, Rui Galvão. Antologia Poética de Antero de Quental. Angra do

Heroísmo: Edição da Secretaria Regional de Educação, 1983.

CARVALHO, Rui Galvão. Antero Vivo. Lisboa: Editorial Império Lda,1950.

COSTA, D. Antonio. História da Instituição Publica em Portugal. Lisboa: Imprensa

Nacional,1871.

CIDADE, Hernani. Antero de Quental. Lisboa: Editorial Presença, 1988.

DAVID, Sergio Nazar.(org.). O que é um pai. Rio de Janeiro: EdUERJ,1997.

DAVID, Sergio Nazar, (org.). Ainda o Amor. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.

Page 104: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Garrido & Lino, 1992.

FRANCA, José Augusto. O Romantismo em Portugal. 2a. ed. Lisboa: Livros

Horizonte,1993.

FRANZ, Alexandre. A História da psicanálise através de seus pioneiros. Rio de

Janeiro: Imago, 1981.

FERREIRA, Alberto e MARINHO, Maria José. Introdução pedagógica à Questão

Coimbrã. In Antologia de textos da Questão Coimbrã. Lisboa: Morais, 1980.

FERREIRA, Nadiá Paula. A Historia do Amor na Literatura; dos trovadores a

Fernando Pessoa. Inéditos, 2003.

FERREIRA, Nadiá Paula. Amor ódio e ignorância: literatura e psicanálise. Rio de

Janeiro: Rios Ambiciosos Livraria e Editora / Contra Capa Livraria / Corpo

Freudiano do Rio de Janeiro, 2005.

FREIRE, Manuel Almeida. Para uma Leitura de Antero de Quental, Teixeira de

Pascoaes, Afonso Duarte. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

FREUD, S. “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen” (1907[1906]. Em: Obras

Completas, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.

FREUD, S. “Escritores criativos e devaneios” (1908). Em: Obras Completas, vol.

IX. Op. Cit.

FREUD, S. “Introdução ao narcisismo”. (1914). Em: Obras Completas, vol. XIV.

Op.Cit.

Page 105: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

FREUD, S. “Psicologia de grupo e analise do ego” (1921). Em: Obras Completas,

vol. XVIII Op. Cit.

FREUD, S. “O problema econômico do masoquismo” (1924). Em: Obras

Completas, vol. XIX Op. Cit.

FREUD, S. “Dostoievski e o parricídio (1928 [1927]). Em: Obras Completas, vol.

XXI Op. Cit.

FREUD, S. “O mal-estar na civilização (1929-1930). Em: Obras Completas, vol.

XXI Op. Cit.

FREUD, S. “Conferências introdutórias sobre psicanálise” Em: Obras Completas,

vol. XV, Op. Cit.

FREUD, S. “Considerações para uma discussão sobre o suicídio” Em: Obras

Completas, vol. XI, Op. Cit.

FREUD, S. “Uma nota sobre o Incosciente na Psicanálise”. Em: Obras Completas,

vol.XII, op. Cit.

FREUD, S. “Algumas reflexoes sobre a psicologia do escolar”. Em Obras

Completas, vol. VIII, Op. Cit.

FREUD, S. “ O tema os três escrinos”.(1913). Em Obras Completas, vol.XII, Op.

Cit.

Page 106: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

JUNQUEIRA, Ivan. As flores do mal / Charles Baudelaire. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1985.

LACAN, Jacques, -1953-1954- O seminário: Livro I Os escritos técnicos de Freud.

Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

LACAN, J. “Função e Campo da Palavra e da Linguagem” ( 1953). In. Escritos. Rio

de Janeiro: Zahar, 1998.

LACAN, J. “O Seminário livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da

psicanálise”. (1953-4) 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1987.

LACAN, J. “O Seminário livro 7: A ética da psicanálise”. (1959-60) Rio de

Janeiro: Zahar Editora, 1997.

LACAN, J. “A instancia da letra ou a razão desde Freud”. (1957). In. Escritos

Zahar Editora, 1998.

LACAN, J. Os nomes do pai (1963). Seminário não publicado (mimeo).

LACAN, J. “O Seminário livro 11: “Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise”. (1964) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

LIMA, Isabel Pires. Antero de Quental e o destino de uma geração.Porto: Edições

Asa, 1993.

LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Publicações D. Quixote,

1988.

Page 107: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

MARTINS, Ana Maria Almeida. Antero de Quental: Fotobiografia. Coleção

Presenças da Imagem. Região Autônoma dos Açores: Impresa Nacional Casa da

Moeda, 1985.

MAGALHÃES, José Calvet. A vida angustiada de um poeta. Lisboa: Editorial

Bizânico, 1998.

MICHELET, Jules. 1798-1874, A Bíblia da Humanidade: Mitologias da Índia,

Pérsia,Grécia e Egito. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S.A.,2001.

NEMÈSIO, Vitorino. Sobre os signos de agora. (Temas Portugueses e Brasileiros).

Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932,

PROUDHON, Pierre Joseph, A propriedade é um roubo e outros escritos

anarquistas. Porte Alegre: L&PM, 1998.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Org. Intr. E notas de Maria Aliete Galhoz. Rio

de Janeiro: Nova Aguiar, 1977.

QUENTAL, Antero Odes Modernas. Coimbra: Impresa da Universidade, 1924.

QUENTAL, Antero de. Sonetos completos e poemas escolhidos. Rio de Janeiro:

Livros de Portugal, LTDA, 1942.

QUENTAL, Antero de. Sonetos completos. Lisboa: Couto Martins, 1955.

ROUDINESCO, E. & PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 1998.

Page 108: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

SARTRE, Jean Paul. Baudelaire. Lisboa: Publicações Europa – América, 1966.

SARAIVA, Antonio José & LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 13a.

ed. Porto: Porto editora, 1985.

SARAIVA, J.H. História concisa de Portugal. (1978).7ª ed. Mira-Sintra-Mem

Martins: Francisco Lyon de Castro,1981.

SERRES, Michel. O terceiro instruido. Portugal: Instituto Piaget,1990.

SERGIO, António. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá

da Costa Editora, 1978.

SERGIO, António. Antero de Quental sonetos. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora,

1962.

SIMÕES, João Gaspar. Antero de Quental. Lisboa: Editorial Presença, 1962.

VELOSO, Agostinho. Antero e os seus Fantasmas. Porto: Imprensa Portuguesa,

1950.

WILSON, Edmund. Rumo à estação Finlândia: (1940) São Paulo: Editora Schwarcz

Ltda, 1989.

Page 109: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Resumo

Esta dissertação tem como objetivo investigar a trajetória política, filosófica e

poética de Antero Quental e a implicação de sua obra no apaziguamento da dor de

existir.

Influenciado pelas obras dos estrangeiros Hartmann, Hegel, Michelet,

Produdhon, e de alguns portugueses, como Castilho e Herculano, Antero não só

defende novas formas de organização político-social, mas também a renovação

artístico-cultural de seu país. Justamente por isto, ele, através de cartas, manifestos e

poesias, conclama o povo para participar das reformas necessárias à modernização

de Portugal. Ele sabia que encontraria pela frente uma forte resistência, já que a

maioria do povo português arraigava-se à religião, à tradição e às saudades de um

passado glorioso.

A luta pelas reformas e a realização de uma obra não foram suficientes para

dar sentido à vida desse homem. Antero suportou a dor de existir até aos cinqüentas

anos. A derrocada dos ideais levou-o ao suicídio, deixando, como rastro de sua

passagem pelo mundo, uma escrita poética, filosófica e revolucionária.

Palavras-chaves: ideal, morte, inconsciente, realismo, dor, existência,

revolução, evolução e fracasso,.

Page 110: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Abstract

This dissertation intends to investigate the life of the poet and philosopher,

Antero de Quental, analysing his work in the political, philosophical and poetical

aspects and the role of these aspects in the placation of his ´suffering of human

existence`.

Under the influence of the works of foreigners such as Hartmann, Hegel,

Michelet, Proudhon, and of some portuguese such as Castilho and Herculano,

Antero not only defends new forms of organization in culture, literature and politics,

but also the cultural and artistical renovation of his country. In this way, it is through

letters, manifests and poetry, that he conclams the people to participate on the

necessary reforms to modernize Portugal. He knew, however, that he would find a

strong resistence to this task, since most of Portuguese people were deeply attached

to religion, to tradition and longing for their glorious past.

His struggle for these reforms and the realization of an important body of work

seemed not to be enough to give sense to this man´s life. Antero only supported the

´sufferering of human existence´ until he was fifty years-old. The fall of his ideals

lead him to commit suicide, however not without leaving, as a testimony for his

passage through this world, an important body of poetical, philosophical and

revolutionary writting.

Key-words: ideal, death, unconscious, realism, pain, existence, revolution,

evolution and failure.

Page 111: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA TRANSPASSADA PELOS IDEAIS DO SECULO XIX E PELA DOR DE EXISTIR.

Por Lusia de Fátima Feijó Machado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, área de concentração em Literatura Portuguesa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre.

Aprovado em: _____________________________________________________ Banca examinadora:

_________________________________________________ Prof.ª Dr ª. Nadiá Paulo Ferreira (Orientador) - UERJ _________________________________________________ Prof.a Dr ª. Denise Maurano - UFJF _________________________________________________ Prof.a Dr ª. Maria do Amparo Tavares Maleval - UERJ

Suplentes:

_________________________________________________ Prof.o Dr º. Marcus Motta - UERJ _________________________________________________

Prof.a Dr ª. Angela Maria Dias Brito Gomes - UFRJ

Page 112: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 113: ANTERO DE QUENTAL: A TRAJETÓRIA DE UMA VIDA …livros01.livrosgratis.com.br/cp133044.pdf · A Laizi Maria de Jesus que me acompanha há anos com sua dedicação, coragem sem par

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo