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Antes de começarmos a ler Fragmentos sobre fogo… 1. Nós, hodiernos, quando lemos os pré-socráticos, os entendemos a partir da perspectiva do nosso ponto de vista, considerando-os ou como pensadores primitivos da história da nossa civilização ocidental européia científica ou como filhos do grande mundo da experiência ainda imediata e indeterminada do ser (Hegel). Assim, a observação concreta e imediata dos pré-socráticos, ou é tida como uma observação empírica cientificamente ainda insuficiente semi-mítica ou como uma posição ‘ontológica’ ainda não atingida pela contra-posição antitética da subjetividade. Assim, nos fragmentos sobre o sol, tentamos primeiramente suspender a colocação científico- empírica do nosso ponto de vista científico, onde a natureza é entendida como a realidade físico-matemática das ciências naturais. Com isso, tentamos reconduzir o que os pré-socráticos dizem, ao mundo natural das nossas percepções diretas e concretas da vida circundante pré-científica. Mas, ao tentarmos fazer essa redução, percebemos que o mundo natural das nossas percepções diretas e concretas da vida circundante-pré- científica não coincide com o mundo grego natural dos pré-socráticos, pois este é tido sempre de alguma forma como natureza contraposta ao homem, portanto dentro da impostação da metafísica moderna, cuja estrutura básica se expressa no esquema S – O (sujeito – objeto). Assim, tentamos suspender também essa nossa colocação ‘naturalista’, supostamente imediata e concreta para deixar aparecer, embora de maneira muito imperfeita o modo de ser e aperceber da experiência pré-socrática dos fragmentos. Isto nos levou a ver que os fragmentos se referem de modo imediato e simples às questões fundamentais do ser da origem de todo o ser e pensar do Ocidente europeu. O que dissemos está dito de modo muito mais completo no seguinte texto de Martin Heidegger. 2. Martin Heidegger, ao comentar o texto de Anaximandro de Mileto na sua escrita A Sentença de Anaximandro (Der Spruch des Anaximander), em Holzwege (Caminhos perdidos), Frankfunrt am Main, Vittorio Klostermann, 1950, pp. 296-343, diz: “A sentença fala do ente múltiplo em sua totalidade. Mas do ente não fazem parte apenas as coisas. De maneira alguma são as coisas apenas coisas da natureza. Também os homens e as coisas produzidas pelo homem e os estados produzidos pelo agir e não agir humano e as circunstâncias provocadas fazem parte do ente. Também as coisas demoníacas e divinas fazem parte do ente. Tudo isto não apenas é também, mas é mais ente que as simples coisas. O pressuposto aristotélico-teofrástico que tà ónta sejam os phýsei ónta, as coisas da natureza em sentido estrito, carece absolutamente de base. Ele não deve ser tomado em consideração para a tradução. Mas também a tradução de ta ónta por ‘as coisas’ não atinge a questão que chega à palavra na sentença”. “Se deixamos cair o postulado segundo o qual se trata, nesta sentença, de enunciados sobre as coisas da natureza, desaparece toda a base para asserção que ainda quereria sustentar que aqui são interpretados jurídica e moralmente objetos que, em todo rigor, deveriam ser representados segundo os esquemas das ciências físicas. Eliminado o postulado de que a sentença visaria a um conhecimento científico de um setor delimitado – a “natureza” -, a hipótese segundo a qual o domínio dos costumes e do direito teria sido pensado, nesta época, a partir de representações originadas de disciplinas particulares (ética, jurisprudência), torna-se igualmente caduca. Negar tais delimitações não significa absolutamente sustentar que a idade dos primórdios não conheceu nem direito nem costume. Mas se nossa maneira habitual de ver tudo através de disciplinas particulares (física, ética, filosofia do direito, biologia, psicologia) não

Antes de começarmos a ler Fragmentos sobre fogo…

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Nós, hodiernos, quando lemos os pré-socráticos, os entendemos a partir da perspectiva do nosso ponto de vista, considerando-os ou como pensadores primitivos da história da nossa civilização ocidental européia científica ou como filhos do grande mundo da experiência ainda imediata e indeterminada do ser (Hegel).

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  • Antes de comearmos a ler Fragmentos sobre fogo

    1. Ns, hodiernos, quando lemos os pr-socrticos, os entendemos a partir da perspectiva do nosso ponto de vista, considerando-os ou como pensadores primitivos da histria da nossa civilizao ocidental europia cientfica ou como filhos do grande mundo da experincia ainda imediata e indeterminada do ser (Hegel). Assim, a observao concreta e imediata dos pr-socrticos, ou tida como uma observao emprica cientificamente ainda insuficiente semi-mtica ou como uma posio ontolgica ainda no atingida pela contra-posio antittica da subjetividade. Assim, nos fragmentos sobre o sol, tentamos primeiramente suspender a colocao cientfico-emprica do nosso ponto de vista cientfico, onde a natureza entendida como a realidade fsico-matemtica das cincias naturais. Com isso, tentamos reconduzir o que os pr-socrticos dizem, ao mundo natural das nossas percepes diretas e concretas da vida circundante pr-cientfica. Mas, ao tentarmos fazer essa reduo, percebemos que o mundo natural das nossas percepes diretas e concretas da vida circundante-pr-cientfica no coincide com o mundo grego natural dos pr-socrticos, pois este tido sempre de alguma forma como natureza contraposta ao homem, portanto dentro da impostao da metafsica moderna, cuja estrutura bsica se expressa no esquema S O (sujeito objeto). Assim, tentamos suspender tambm essa nossa colocao naturalista, supostamente imediata e concreta para deixar aparecer, embora de maneira muito imperfeita o modo de ser e aperceber da experincia pr-socrtica dos fragmentos. Isto nos levou a ver que os fragmentos se referem de modo imediato e simples s questes fundamentais do ser da origem de todo o ser e pensar do Ocidente europeu. O que dissemos est dito de modo muito mais completo no seguinte texto de Martin Heidegger.

    2. Martin Heidegger, ao comentar o texto de Anaximandro de Mileto na sua escrita A Sentena de Anaximandro (Der Spruch des Anaximander), em Holzwege (Caminhos perdidos), Frankfunrt am Main, Vittorio Klostermann, 1950, pp. 296-343, diz: A sentena fala do ente mltiplo em sua totalidade. Mas do ente no fazem parte apenas as coisas. De maneira alguma so as coisas apenas coisas da natureza. Tambm os homens e as coisas produzidas pelo homem e os estados produzidos pelo agir e no agir humano e as circunstncias provocadas fazem parte do ente. Tambm as coisas demonacas e divinas fazem parte do ente. Tudo isto no apenas tambm, mas mais ente que as simples coisas. O pressuposto aristotlico-teofrstico que t nta sejam os phsei nta, as coisas da natureza em sentido estrito, carece absolutamente de base. Ele no deve ser tomado em considerao para a traduo. Mas tambm a traduo de ta nta por as coisas no atinge a questo que chega palavra na sentena.

    Se deixamos cair o postulado segundo o qual se trata, nesta sentena, de enunciados sobre as coisas da natureza, desaparece toda a base para assero que ainda quereria sustentar que aqui so interpretados jurdica e moralmente objetos que, em todo rigor, deveriam ser representados segundo os esquemas das cincias fsicas. Eliminado o postulado de que a sentena visaria a um conhecimento cientfico de um setor delimitado a natureza -, a hiptese segundo a qual o domnio dos costumes e do direito teria sido pensado, nesta poca, a partir de representaes originadas de disciplinas particulares (tica, jurisprudncia), torna-se igualmente caduca. Negar tais delimitaes no significa absolutamente sustentar que a idade dos primrdios no conheceu nem direito nem costume. Mas se nossa maneira habitual de ver tudo atravs de disciplinas particulares (fsica, tica, filosofia do direito, biologia, psicologia) no

  • tem aqui lugar, ento, onde as delimitaes das cincias especiais esto ausentes, no h mais possibilidades de transgredir um limite ou de transportar, de maneira injustificada, idias prprias de um domnio para outro. L onde as delimitaes de disciplinas no aparecem, no impera necessariamente o ilimitado, o indeterminado e o diludo. Pelo contrrio, a estrutura prpria da questo puramente pensada, mantida longe e fora de toda incorporao numa disciplina, pode manifestar-se na palavra.

    As palavras dke, adika, tsis no possuem um significado circunscrito numa especialidade, mas uma significao ampla. Amplo no significa aqui: ampliado, superficial e diludo, mas de longo alcance, rico e abrigando o que precursoramente fora pensado. Somente por isto e justamente por isto aquelas palavras so apropriadas para mostrar, na linguagem, a mltipla totalidade no acontecer de sua harmoniosa unidade. Para que isto acontea, sem dvida necessrio que a harmoniosa totalidade do mltiplo seja experimentada em seus traos prprios, puramente em si mesma, no pensamento.

    Esta maneira de trazer o ente mltiplo harmoniosamente para diante do olhar essencial tudo, menos o modo de uma representao primitiva e antropomorfa.

    Para que consigamos chegar margem daquilo que emerge na palavra da sentena de Anaximandro, devemos conscientemente eliminar, antes de toda traduo, as opinies pr-concebidas e sua inadequao: primeiro, a opinio de que se trata de uma filosofia da natureza qual vm misturar-se, de maneira no objetiva, consideraes morais e jurdicas; em seguida, a opinio de que representaes claramente limitadas e extradas de esferas separadas (natureza, moral, direito) entram em jogo; e finalmente, a opinio de que se trata de uma vivncia primitiva que interpreta o mundo de maneira acrtica e antropomorfa e que assim se refugia em expresses poticas (metafricas).

    3. O que foi dito da sentena de Anaximandro, podemos dizer tambm de Herclito e seus fragmentos. Mas, antes de continuarmos estudando e comentando os fragmentos de Herclito, agora sobre o fogo, mencionemos mais um texto de Heidegger, onde ele rapidamente fala de outra pressuposio nossa que domina na leitura dos pr-socrticos: Geralmente atribumos impensadamente s palavras n e enai aquilo que ns mesmos pensamos nas palavras correspondentes de nossa lngua materna: ente e Ser. Mais exatamente, ns nem mesmo atribumos significao a estas palavras gregas. Ns as aceitamos imediatamente a partir do mais ou menos entendido, que a maneira corrente de entender da prpria lngua j lhes emprestou. Nada mais atribumos s palavras gregas que a negligente despreocupao de uma fugidia opinio. Isto poder bastar precariamente, quando, por exemplo, lemos enai e stin na obra de histria de Tucdides ou n e estai em Sfocles.

    O que acontece, entretanto, quando se fazem ouvir na linguagem ta nta, n e enai como as palavras fundamentais do pensamento? No apenas de um pensamento qualquer, mas como as palavras fundamentais de todo o pensamento ocidental? Um exame deste uso da lngua na traduo revela pois a seguinte situao: No claro nem fundado o que ns mesmos pensamos com as palavras da prpria lngua, ente e ser. Nem claro nem fundado se o que ns queremos dizer quando empregamos estas palavras atinge aquilo a que os gregos se dirigiam com os nomes de n e enai. Nem sabemos mesmo, de maneira clara e fundada, o que dizem quando os nomes n e enai so pensados pelos gregos.

  • Nestas condies impossvel proceder a um exame para saber se nosso pensamento corresponde quele dos gregos e em que medida o faz.

    Essas simples relaes so constantemente confundidas e so passadas por alto. No seio delas e como que planando acima delas, se espalhou uma conversa fiada sem limites sobre o ser. Esta conversa ilude, junto com a correo da traduo de n e enai por ente e ser, continuada sobre a confusa situao. Mas nesta confuso no apenas erramos ns, os contemporneos. Nesta confuso se enreda toda a representao e apresentao que transmite a filosofia dos gregos, desde milnios. Esta confuso no reside nem numa simples negligncia da filologia, nem numa insuficiente investigao histrica. A confuso, por isso, tambm no se deixa afastar pelo fato de arranjarmos pela via de alguma definio uma significao mais precisa para as palavras n e enai, ente e ser. Provavelmente, pelo contrrio, poderia a tentativa de atentar incansavelmente para a confuso e sua teimosa violncia conduzir a uma soluo, tornar-se algum dia uma ocasio que desencadeia outro destino do ser. J a preparao de tal ocasio seria bastante necessria para inaugurar, em meio confuso crescente, um dilogo com os primrdios do pensamento. Se persistimos em pensar o pensamento dos gregos como os gregos poderiam t-lo pensado, no para dar do mundo grego, enquanto humanidade passada, uma imagem histrica, em alguns pontos mais exata. No procuramos o elemento propriamente grego, nem por amor dos gregos nem para melhorar nossa cincia; nem o procuramos mesmo em vista de um dilogo mais preciso, mas unicamente em vista daquilo que num tal dilogo deveria ter sido trazido linguagem, caso por si possa vir linguagem. Isto o mesmo que por um destino histrico atinge os gregos e ns prprios de diversas maneiras. aquilo que traz os primrdios do pensamento para o destino da hespride. Apenas seguindo este destino, os gregos tornam-se gregos no sentido historial.

    Grego no significa, em nossa maneira de falar, uma propriedade tnica, nacional, cultural ou antropolgica; grego so os primrdios do destino sob cuja figura o ser mesmo se clarifica no seio do ente, apelando para a essncia do homem que, enquanto destinada, tem seu curso histrico nos diferentes modos, segundo os quais ela mantida no ser ou por ele abandonada (dele emanada), sem, entretanto, jamais dele ser separada.

    O grego, o cristo, o moderno, o planetrio e o hesprico, no sentido a que aludimos, ns o pensamos a partir de um trao fundamental do ser, o qual ele antes oculta, como a Altheia na Lthe que desvela. Contudo, este velar de sua essncia e de sua origem essencial o trao no qual o ser primordialmente se clarifica; mas de tal maneira que o pensamento justamente no o segue. O ente mesmo no entra nesta luz do ser. O desvelamento do ente, a claridade que lhe garantida, obscurece a luz do ser.

    O ser se subtrai enquanto se desoculta no ente.

    Desta maneira o ser carrega o ente com a errncia, clarificando-o. O ente transpropriado para o ser da errncia, onde erra em torno do ser, fundando assim o imprio da errncia. Este imprio o espao essencial da histria. Nele erra o que historialmente essencial, errando o que lhe semelhante. Por isto necessariamente mal interpretado o que historialmente advm. atravs de toda esta falsa interpretao que o destino espera para ver o que acontece com sua semeadura. Ela traz aqueles que aborda para o seio da possibilidade de serem ou no serem dceis ao destino. O

  • destino se exercita no destino. O enganar-se do homem corresponde ao ocultar-se da clarificao do ser.

    Sem esta errncia no haveria relao de destino a destino, no haveria a histria. As distncias cronolgicas e as ordenaes fazem, sem dvida, parte da historiografia: no so, porm, a histria. Ns no estamos, se realmente formos historiais, inseridos nem numa grande nem numa pequena distncia do elemento grego. Ns estamos errando em direo a ele.

    4. Os fragmentos sobre o sol esto intimamente ligados com os fragmentos sobre o fogo e sobre o raio. A seguir os fragmentos heraclticos sobre fogo.

    Fragmento 30: ksmon, tn autn apnton, oute tis then

    ote anthrpon epoesen, all n ae ka stin kai estai,

    pr aezoon aptmenon mtra ka aposbennmenon mtra.

    O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez, mas sempre foi, e ser, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.

    Fragmento 31: pyrs tropa: prton thlassa, thalsses d t mn hmisy g, t d hmisy prestr. Thlassa diaxetai ka metretai eis tn autn lgon hokoos prton hn.

    Tropos do fogo: primeiro, mar; do mar, a metade terra, a metade vento ardente. O mar se estica de ponta a ponta e encontra sua medida de acordo com o mesmo Logos que era primeiro.

    Fragmento 76: hti gs thnatos hdor gnesthai ka hdatos thnatos ara gendsthai ka aros pr, ka mpalin.

    A morte da terra tornar-se gua, a morte da gua, tornar-se ar e a do ar tornar-se fogo e vice-versa.

    Fragmento 90: pyrs te antamebetai pnta ka pr hapntom, hkosper xryso xrmata ka xremton xryss.

    Pelo fogo tudo se troca e por tudo, o fogo; como pelo ouro, as mercadorias e pelas mercadorias, o ouro.

  • Fragmento 64: tde pnta oiakzei kerauns.

    O raio conduz todas as coisas que so.

    Fragmento 66: pnta t pr epelthn krine ka katalpsetai

    O fogo, sobrevindo, h de distinguir e reunir todas as coisas.