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CONSELHOS AOS GOVERNANTES !sócrates P!atiio Kautilya Maquiavel Erasmo de Roterdã Miguel de Cervantes Ml1Zdrino Maurício de NtISSI1u Sebastião César de Menes D. Luís da Cunha Marquês de Pombal Frederico da Prússia D. Pedro II Volume 15

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CONSELHOS AOSGOVERNANTES!scrates P!atiio

Kautilya Maquiavel Erasmo de Roterd Miguel de Cervantes Ml1Zdrino Maurcio de NtISSI1u Sebastio Csar de Menes D. Lus da Cunha Marqus de Pombal Frederico da Prssia D. Pedro II

Volume 15

Sesso do Conselho de Estado, leo sobre tela de Georgina de Albuquerque - 1922 (Museu Histrico Nacional - MHN)

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CONSELHOS AOS GOVERNANTES

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Coleo Clssicos da Poltica

CONSELHOS AOS GOVERNANTESIscrates Plato Kautilya Maquiavel asmo de Roterd Miguel de Cervantes Mazarino ErM rcio de Nassau Sebastio Csar de Meneses auD us da Cunha Marqus de Pombal .L F r ederico da Prssia D. Pedro II

Braslia 1998

CLSSICOS DA POLTICAO Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997 -composto pelo Senador Lcio Alcntara, presidente, Joaquim Campelo Marques, vice-presidente, e Carlos Henrique Cardim, Carlyle Coutinho Madruga e Raimundo Pontes Cunha Neto, como membros -- buscar editar, sempre, obras de valor histrico e cultural e de importncia relevante para a compreenso da histria poltica, econmica e social do Brasil e reflexo sobre os destinos do pas.

COLEO CLSSICOS DA POLTICA Conselhos aos Governantes, de Iscrates, Plato, Kautilya, Maquiavel, Erasmo, Cervantes, Mazarino, Maurcio de Nassau, Sebastio Csar de Meneses, D. Lus da Cunha, Marqus de Pombal, Frederico II, D. Pedro II. Escritos Polticos, de Immanuel Kant Sobre a Autoridade Secular , de Lutero e Calvino Direito da Paz e da Guerra, de Hugo Grotius Escritos Polticos, de Max Weber A Constituio Britnica, de Walter Begehot

Projeto Grfico: Achiles Milan Neto Senado Federal, 1998 Congresso Nacional Praa dos Trs Poderes s/n. CEP 70168-970 Braslia -- DF

.................................................................Conselhos aos governantes / Iscrates ... et al. -- Braslia : Senado Federal, 1998. 841 p. -- (Coleo clssicos da poltica) 1. Filosofia poltica. 2. Histria poltica. I. Iscrates, 436-338 a. C. II. Srie. CDD 320.01

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SUMRIO GERAL

APRESENTAO, por Walter Costa Porto pg. 7

Iscrates / Nicoclspg. 27

Plato / Aos amigos e parentes de Diopg. 47

Kautilya /Arthashastrapg. 77

Nicolau Maquiavel -- O Prncipepg. 121

Erasmo de Roterd -- A Educao de um Prncipe Cristopg. 267

Miguel de Cervantes -- Conselhos de D. Quixote a Sancho Panapg. 427

Cardeal Mazarino -- Brevirio dos Polticospg. 443

Maurcio de Nassau -- Testamento Polticopg. 507

Sebastio Csar de Meneses -- Suma Polticapg. 515

D. Lus da Cunha -- Testamento Polticopg. 599

Marqus de Pombal -- Carta ao Sobrinho, Governador do Maranho, Joaquim de Melo e Pvoas pg. 649 Frederico da Prssia -- Anti-Maquiavelpg. 657

D. Pedro II -- Regente D. Isabelpg. 809 ndice Onomstico pg. 833

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Apresentao

Walter Costa Porto

governantes e governados Mas h, tambm, os que, sob o poder do prncipe, tentam orient-lo, moldar-lhe a conduta. A referncia ao prncipe logo lembra Maquiavel e seu texto to famoso, padro que identifica e delimita essa tarefa, por vezes no exitosa, de aconselhar os dirigentes. Renem-se, aqui, alguns desses exemplos, de textos que se escreveram para a educao de chefes de governos. rica a seara: h quem tenha contado cerca de mil livros da espcie, vindos luz entre os sculos nono e o sculo dezoito. Comea-se com um vitorioso, Iscrates. Em Fedro, Plato fala dele, pela voz de Scrates: "- Iscrates jovem ainda, meu querido Fedro, sem embargo direi o que espero dele." E depois: "- Parece-me que possui demasiado gnio para comparar sua eloqncia com a de Lsias e que sua natureza mais generosa. No me admiraria que, com o avanar dos anos, brilhe o

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gnero que cultiva at o ponto em que seus predecessores paream crianas a seu lado e que, pouco satisfeito de seus xitos, se veja impulsionado at ocupaes mais elevadas devido a divina inspirao."1 Iscrates, que, muito mais tarde, Milton, em um de seus sonetos, ver como "o velho eloqente", escreveu, ao que se cr em 376 a. C., ao seu exdiscpulo Nicols, que assumira o trono em Salamina, na ilha de Chipre, recomendaes. Grato, o novo rei lhe enviou sessenta talentos em ouro. Sete das cartas de Plato, entre as treze que nos ficaram dele, tratam de suas frustradas intervenes na poltica de Siracusa. O filsofo fora, pela primeira vez, Siclia, em 387 a. C., durante o reinado do Dionsio, o Velho. Deste Dionsio, restou-nos um retrato dramtico, por Ccero, no livro V de suas Tusculanes , onde se relata o to clebre caso de Dmocles. Dmocles era um dos aduladores do tirano, que submetera Siracusa ao peso de um jugo intolervel. Felicitou ele, certa vez, Dionsio, pelo seu poder, por suas tropas, pelo brilho de sua corte, e a magnificncia de seu palcio, dizendo que nenhum outro prncipe havia to feliz. Dionsio, ento, lhe perguntou se no queria provar um pouco daquele fausto, colocando-se em seu lugar. E o fez reclinar-se, coroado, em um leito de ouro, sobre tapetes riqussimos, com perfumes e incensos, junto a uma mesa com as mais finas iguarias, rodeado por um semnmero de escravas solcitas. Segundo Ccero, Dmocles estava se imaginando o mais afortunado dos homens quando, em meio ao festim, percebeu, por sobre a cabea, uma espada nua que Dionsio fizera pendurar ao teto, sustentada por uma simples crina de cavalo.

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In Fedro, Dilogos Socrticos, Madri, 1927.

Apresentao

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Os olhos do felizardo se turvaram, a coroa lhe caiu da cabea, suas mos nem ousaram tocar nos pratos. Pediu ao tirano a graa de sair logo dali, no desejando a felicidade quele preo. O breve incidente de Dmocles permite uma reflexo sobre a natureza do poder poltico, de certo poder poltico. O que Dionsio pretendeu, com xito, foi indicar, ao adulador ingnuo, que sua dominao estava exposta a muitos riscos. A espada suspensa ao teto, de maneira to frgil, um smbolo que resiste aos tempos, se bem que poucas vezes explicitado, em toda sua circunstncia. Sempre expresso de mera retrica, a compor discursos e frases de efeito, nunca enfatiza, verdadeiramente, os perigos do mando sem legitimidade, que dos dirigentes que no so amados, s temidos. E mais que temidos, odiados. Pois no mesmo texto das Tusculanes , Ccero mostra como Dionsio, pelo temor de perder seu domnio injusto, havia se convertido em quase um prisioneiro em seu palcio. Confiando somente em alguns escravos, formando sua guarda de estrangeiros, ferozes e brbaros. Levando to longe sua desconfiana a ponto de fazer ensinar, s prprias filhas, ainda pequenas, o ofcio de barbear, indigno, ao tempo, a pessoas livres. E no permitindo, quando cresceram, que nem mesmo elas se aproximassem dele com lminas, passando, ento, para barbear-se, a chamuscar os plos do rosto com nozes incandescentes. Quando se desvestia para o jogo da pela, que apreciava muito, Dionsio no entregava sua espada seno a um jovem, seu favorito. Um de seus amigos, comentou, um dia, sorrindo: "Eis, afinal, uma pessoa a quem confias a vida". Como o jovem sorriu, o tirano fez morrer os dois. Um, por haver indicado um meio de assassin-lo. O outro, por parecer aprovar a sugesto com o sorriso. 2 Foi m, para Plato, em 387 a. C., a impresso que teve da Siclia e do reinado de Dionsio. "Embriagar-se duas vezes ao dia, nunca se deitar sozinho noite", comentou. Tais estados, para ele, no ces-

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sariam jamais de caminhar sem sobressaltos, da tirania oligarquia e democracia. Plato se entendeu, no entanto, admiravelmente, com o irmo de uma das mulheres do tirano, Dio, que o compreendeu melhor "do que todos os jovens com quem havia, at ento, convivido". Depois da morte de Dionsio, o Velho, em 367 a. C., Dio convenceu o jovem Dionsio, que assumira o trono, a convocar Plato: que o filsofo viesse com urgncia, antes que outras influncias se exercessem sobre o novo tirano, "conduzindo-o a uma existncia diferente da vida perfeita". Dionsio, o Jovem, terminou por acusar Dio de conspirar contra o regime e o expulsou de Siracusa. Plato regressaria ainda uma ltima vez Siclia, por insistncia e clara chantagem de Dionsio: "Se eu te convencer a vires agora Siclia, em primeiro lugar os negcios de Dio sero regularizados como queres. Sei bem que s me fars pedidos razoveis e eu me prestarei a eles. Se no, nada relativo a Dio, a seus negcios ou a sua pessoa, se arranjar a teu modo." Com o apoio de alguns gregos, Dio toma Siracusa mas morto em 354 a. C., pelo ateniense Calipo. Aos amigos de Dio, Plato dirige pelo menos duas cartas, aconselhando-os a que formassem um governo de coalizo, com representantes das famlias em choque e, at mesmo, com Dionsio. Admiram-se, at hoje, os platnicos, pelo fato de que o filsofo tenha teimado em esforos para converter, em um bom rei, um tirano irrecupervel. Mas Plato conta, em uma das cartas, como, desde jovem, tinha o projeto de, no dia em que pudesse dispor de si prprio, "intervir na poltica". A Ditadura dos Trinta, em Atenas, porm, que ele pensara pudesse desviar a cidade "dos caminhos da injustia para os da justia", logo fez com que lamentasse "os tempos da antiga ordem como uma idade de ouro".

Apresentao

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Ele viu, juntamente com a morte de Scrates, a corrupo da legislao e o malogro da moralidade, a tal ponto que, quanto mais avanava na idade, mais lhe parecia difcil bem administrar os negcios do estado. A chave da motivao e da conduta de Plato, com respeito ao jovem Dionsio, est em uma das frases da carta aos amigos e parentes de Dio. J que nunca haviam podido se realizar os seus planos legislativos e polticos, seria agora o momento de experimentar: "No tinha seno que persuadir suficientemente um nico homem e tudo estaria resolvido." Bem caberia falar de "os vrios Maquiavis", tantas as interpretaes, tantas as deformaes, as acusaes que vieram sendo acrescidas aos poucos livros do florentino, a ponto de se poder indagar se se discutem, afinal, os mesmos textos, a ponto de se duvidar que Maquiavel tenha, em estilo simples e di2 reto, escrito uma obra no complexa. Permito-me uma recordao pessoal. Menino da Zona da Mata de Pernambuco, ouvi muitas vezes, com que alegria e encantamento, a Cano do Vilela. Eu a escutava recitada por violeiros, lidas nos cordis, em feiras. E a 3 reli, num desses dias, transcrita por Leonardo Mota.

Vilela era um celerado, "que morava em um lugar e at o prprio governo tinha medo de o cercar".Ele cometera o primeiro crime com a idade de dez anos. Aos doze, matou o prprio irmo, por causa de um cachimbo. Matou, depois, o cu(2) O estilo de Maquiavel, dir Isaiah Berlin, "singularmente lcido, sucinto e pungente -- modelo de uma clara prosa renascentista". Berlin, Isaiah, O Problema de Maquiavel, Textos de Aula, Centro de Documentao Poltica e Relaes Internacionais, Braslia, s/d. Mota, Leonardo, Cantadores, Rio, Liv. Editora Ctedra/Inst. Nacional do Livro, 1976. Leonardo conta: "Essa conhecida lenda sertaneja inspirou inmeras cantigas. Jac Passarinho e Serrador, por exemplo, cantam variantes. O cego Aderaldo garante que a primeira Cantiga do Vilela foi composta pelo cantador Manuel da Luz, de Bebedouro. Sinfrnio assegurou-me que a sua que a verdadeira, "a boa e legtima do Braga" e acrescentou que "a havia aprendido de Jaqueira".

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nhado, depois o filho de um padrinho. Em quase oitenta estrofes, a cantiga fala de seus crimes , dos fracassos da polcia para cont-lo, dos batalhes enviados para captur-lo. At que um alferes, que chama Negreiros, se disps a enfrent-lo. Quando, depois de muitas peripcias, o alferes chega frente da casa do criminoso, diz: "Vilela me abra a porta deixe de machavelia conhea que t cercado pela tropa da pulia no batalo me acompanha Oficial de Justia." S muito mais tarde, eu iria perceber, relendo a cantiga, que machavelia -- ou macavelia, como muitas vezes tambm ouvi -- era maquiavelismo, procedimento astucioso, to bem recebido em heris como os das peas de Ariano Suassuna. Os dicionrios so mais rigorosos: falam do exerccio de m-f nos assuntos polticos. Veja-se, por exemplo, o Aurlio: "M AQUIAVELISMO s. m. 1. Sistema poltico exposto por Nicoll Machiavelli, escritor e estadista florentino, em sua obra O Prncipe e caracterizado pelo princpio amoralista de que os fins justificam os meios. 2. Poltica desprovida de boa-f. 3. Procedimento astucioso, velhaco, traioeiro, velhacaria, perfdia." Na linguagem comum, ficou, tambm, a expresso "florentino", com uma carga pejorativa: a "intriga florentina", a "estocada florentina", essas mais eficazes, mais letais. Com Florena, rivalizavam, ao tempo de Maquiavel, entre outros, o Ducado de Milo, a Repblica de Veneza, o reino de Npoles. E muitos estados menores, como a Repblica de Gnova, o Ducado de Ferrara, o Marquesado de Mntua, o Ducado de Urbino, as Repblicas de Siena e de Luca. Mas s as intrigas de Florena ganharam, em razo de seu to ilustre filho, essa marca insidiosa. Mas deveriam ser iguais s venezianas, s napolitanas, s milanesas. Toma-se, ento, a cidade pelo seu

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habitante, o todo pela parte, lembrando aquela figura de gramtica que aprendemos -- e logo esquecemos -- no ginsio. Quanto aos eruditos, h uma tragdia maquiavelana, que faz lembrar uma frase de Malraux a De Gaulle, transccrita em livro genial, com as conversaes do estadista, j afastado do governo, com seu ex-ministro da Cultura. Malraux diz que "pertencer Histria pertencer ao dio".4 frase que cabe, na medida certa, a Maquiavel. No Henrique IV, de Shakespeare, representado em 1690, ele j tido por "mortfero".5 Para Chevalier, ele teria escrito "um brevirio da tirania".6 Para Titone, ele tinha uma preferncia mrbida pelos meios "mais cruis e mais mpios".7 Se depender de Dante, ele est agora no Inferno, condenado s chamas que devem envolver os herticos. Seu escrito, especialmente O Prncipe, seria, para Prezolijn e Haidn, "anticristo." Sua obra, para Renzo Sereni, a de homem amargamente frustrado. Para os jesutas, ele "um scio do Diabo em crimes". Segundo o cardeal ingls Pole, O Prncipe teria sido escrito "pela mo do Diabo".8 Para Bertrand Russell, ele seria o autor de "um compndio para gngsters" para Bodin, seria "um corruptor do Estado", muito em voga entre "os bajuladores de tiranos" e para quem "a astcia tirnica era o centro da cincia poltica."9 E, para completar, chegaram a cham-lo de "docteur de la scleratesse". Quer dizer, Maquiavel seria mais que um celerado, um PHD do crime.(4) (5) (6) (7) (8) (9) Malraux, Andr. Quando os Robles se Abatem, Lisboa, Edies Livros do Brasil, 1971, p. 94. Shakespeare, Henrique IV, parte III, ato III, cena 2. Chevalier, Jean-Jacques, Histria do Pensamento Poltico, Rio, Zahar Editores, 1982, p. 262. Cit. por Baktine, Lonide, Maquiavel, Leituras Universitrias, Fund. Rondon/MEC, s/d, p. 38. Cit. por Gautier Vignal, Louis, Maquiavelo, Mxico, Fondo de Cultura, 1978, p. 102. In Berlin, Isaiah, O Problema de Maquiavel , Textos de Aula, Centro de Documentao Poltica e Relaes Internacionais, Universidade de Braslia.

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Isso em razo de suas gestes Igreja e a seus princpios, por sua defesa de uma poltica cruel, a da eficcia, e por seu tecnicismo frio, por sua integrao, na verdade, ao mundo srdido que o cercava.10 Todas as incriminaes a Maquiavel formam sua lenda de dio, que Cassirer contrape a uma lenda de venerao11. Pois h os que o veneram. Sobre ele, Fichte publicou, em 1807, um artigo com observaes que, segundo dizia, se destinavam "a salvar a reputao de um homem justo". E o via "com profundo discernimento das verdadeiras foras histricas que moldam os homens e transformam sua moralidade"12. Aldersio o considera "um catlico apaixonado e sincero."13 Isaiah Berlin indica a obra de um compilador annimo do sculo XIX: Mximas Religiosas Verdadeiramente Extradas das Obras de Nicoll Machiavelli. Bacon reconhecia uma grande dvida para com ele, "um insigne realista recusando fantasias utpicas" e "que descreveu o que os homens fazem e no o que deveriam fazer."14 Para Rousseau, ele, "fingindo dar lies aos reis, deu-as, grandes, aos povos". 15 Para Herder, ele um "maravilhoso espelho de seu tempo". Para Hegel, ele era "um gnio que viu a necessidade de unir uma srie de(10) E por falar em Igreja, lembro um incidente curioso, na Universidade de Braslia, quando, professor do Departamento de Cincia Poltica e Relaes Internacionais, eu colaborava com o programa editorial da instituio. Depois de publicar obras de Maquiavel, at ento inditas no pas -- como os Comentrios sobre a Dcada de Tito Lvio, A Arte da Guerra, Belfagor -- o ento decano de extenso mandou imprimir cartazes que diziam "Neste Natal, Maquiavel", sugerindo que, nos presentes de fim de ano, as pessoas inclussem os livros, recm-editados. Um religioso, que integrava a direo da Universidade, se rebelou: "Como ligar Maquiavel, to anticatlico, festa magna da cristandade?" Os cartazes foram incinerados. (11) Cassirer, Ernst, O Mito do Estado, Rio, Zahar Editores, 1976, p. 135. (12) In Cassirer, Ernst, ob. cit., p. 141. (13) In Cassirer, Ernst, ob. cit., p. 135. (14) Bacon, Francis, Advancement of Learning, 1929, II, XXI. (15) Rousseau, J-J, Ouvres Compltes, Paris, Pliade, t. III, p. 409.

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caticos principados fracos e pequenos num todo coerente". Para Koening, "um esteta tentando evadir-se do mundo catico e srdido da Itlia decadente de seu tempo, para um sonho de arte pura". Para Gramsci, ele era, acima de tudo, um inovador revolucionrio, dirigindo suas setas contra a obsoleta aristocracia feudal, o papado e seus mercenrios. O Prncipe seria um mito representando a ditadura das foras novas e progressistas, prevendo o papel vindouro das massas e a necessidade da emergncia de novos lderes imbudos do realismo poltico. Engels o v como "um dos gigantes do iluminismo, um liberto do enfoque do pequeno burgus". Para Marx, os Discursos seriam "verdadeiras obras-primas". Vitrio Alfieri fala, afinal, de um "divino Maquiavel."16 Que escreveu Maquiavel, que fez Maquiavel, para dar motivo a entendimentos to desencontrados? Redigiu o que sempre chamou de "opsculo", O Prncipe, no qual, como disse em carta a seu amigo Vettori, "sondo, at onde posso, os problemas de tal matria, discutindo o que um principado, quantas classes existem, como so adquiridos, como se pode mant-los, e porque no perdidos... A um Prncipe, sobretudo se um Prncipe novo, deve resultar aceitvel."17 Comparou, nos Discorsi, traduzidos no Brasil, sob o ttulo de Comentrios Primeira Dcada de Tito Lvio18, as instituies polticas da repblica romana com as de seu prprio tempo. Entendendo, como disse no prefcio da obra, que "Para fundar uma repblica, manter estados, para governar um reino, organizar um exrcito, conduzir uma guerra, distribuir justia, expandir o imprio, no se acha nem prncipe,(16) V. Berlin, Isaiah, ob. cit. (17) Carta a Francesco Vettori, in Arocena, Luis A., Cartas Privadas de Nicolas Maquiavelo, Argentina, Editorial Universitrio de Buenos Aires, 1979, p. 118. (18) Maquiavel, Comentrios sobre a Primeira Dcada de Tito Lvio, Braslia, Editora da Universidade de Braslia, 1979.

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nem repblica, nem capito, nem cidado que recorra aos exemplos da Antiguidade. Essa negligncia devida ainda menos ao estado de fraqueza a que nos reduziram os vcios de nossa educao atual, do que aos males causados por essa preguio orgulhosa que reina na maior parte dos estados cristos, do que a falta de um verdadeiro conhecimento da matria.19" Escreveu uma Arte da Guerra20, com a justificativa de que "todas as artes praticadas na sociedade em funo do bem comum, todas as instituies nela fundadas mediante o respeito s leis e o temor de Deus seriam vs se no se preparasse igualmente sua defesa, a qual, se eficaz, permite mant-las mesmo quando imperfeitamente estruturada. ...................... Porque sem o apoio militar as boas instituies no podem subsistir em boa ordem." E a obra com que ele figurasse "entre os mais importantes pensadores no terreno da administrao militar". Comps o que seria "um misto de biografia, romance e tratado poltico", a Vida de Castrucio Castracani21, sobre um tipo de condottieri da cidade de Luca. E uma Histria de Florena, tida por Quentin Skinner como "sua obra mais larga e sossegada"22 -- que escreveu em 1525, por encomenda do Cardeal de Mdici. Uma srie de relatrios resultou de suas misses diplomticas, algumas de grande importncia, como as viagens corte do Duque Csar Brgia e a do Papa Jlio II, Frana, corte do Imperador Maximiliano I, relatrios o mais das vezes assinado pelos embaixadores. Segundo um deles, Nicoll(19) In Comentrios..., ob. cit. (20) Maquiavel, A Arte da Guerra, A Vida de Castruccio Castracani, Belfagor, o Arquidiabo, Braslia, Editora da Universidade de Braslia, 1980. (21) In A Arte da Guerra..., ob. cit. (22) Skinner, Quentin, Maquiavel, Madri, Alianza Editorial, 1984, p. 100. Istorie Florentine, publicada em 1532.

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Valori, era fcil formar um juzo claro e certo com base naqueles textos. Teatro e poesia completam sua obra. O poeta Maquiavel, que o Brasil ainda no viu traduzido, tanto se considera que se queixa em carta a um amigo, que Ariosto, em Orlando Furioso, no o tivesse mencionado na enumerao dos poetas italianos. Cr, por isso, que o tratavam "como um cachorro23". Eu no faria, como muitos, a distino entre O Prncipe e os Discorsi, apontando este ltimo como obra de maior madureza. Mas indicaria, antes, os propsitos, os endereamentos diversos, a explicar, assim, antinomias e oposies agudas entre os dois textos. O primeiro era obra dirigida a um homem e com um objetivo claro -- como se acompanhasse um currculo -- de obter, de volta, o emprego. Era o prprio currculo. Como se dissesse: quem capaz de aconselhar, com tanto brilho, o Prncipe deve ficar ao seu lado. Inicialmente, Maquiavel quis dedicar O Prncipe ao Cardeal Giuliano de Mdici. Segundo alguns bigrafos, constava que Giuliano deveria receber, de Leo X, Npoles ou um novo estado, compreendendo Parma, Piacenza e Mdena. Mas quando Vettori recebe o manuscrito, conta Oskar von Wergheimer, "Giuliano no precisava mais de conselhos polticos e, sim, de auxlio dos mdicos. Adoeceu, para morrer em 1516". 24 Maquiavel muda a dedicatria, transferindo-a para Lorenzo, no o Lorenzo Magnfico, mas o Lorenzo de Piero, no to magnfico. O manuscrito, que no chegou a ser entregue a Giuliano, quase certo que no foi lido por Lorenzo. Esse mais um ngulo da tragdia de Maquiavel, dirigindo conselhos a um prncipe que no os pediu e que os ignorou.(23) Carta a Ludovico Alamanni, in Cartas... ob, cit. , p. 187. (24) Von Wergheimer, Oskar, Maquiavel, Porto Alegre, Livraria do Globo, 1942, p. 183.

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Cassirer chega a comentar: Maquiavel no era um ingnuo to grande que pudesse acreditar que os governantes dos principados novos, homens como Csar Brgia, se constitussem material educvel. Como vimos, Plato foi um ingnuo desse tipo. Porque sua idia era a de unir, em uma s cabea, a sabedoria e o poder. Para mostrar o quanto se afasta O Prncipe dos demais textos que pretendem moldar o carter dos soberanos, dos chefes de governo, basta compar-lo com o exemplo, mais perto do Brasil, de um desses manuais -- a carta que o Conde de Oeiras e Marqus de Pombal, dirige a seu sobrinho, Joaquim de Melo Pvoas, governador do Maranho, no final do sculo XVIII. Os conselhos, com exemplos tirados da histria antiga, so para que o governador, nefito, seja, a um s tempo, "prudente e perspicaz, afvel e rigorosamente justo e benevolente, modesto e perseverante, pio e valoroso, virtuoso, moderado e honesto". Maquiavel no desejaria que a maior parte desses rtulos fosse etiquetada no Prncipe, que ele, mais do que constri, descreve. Engana-se, diz Pombal, "quem entende que o temor com que se faz obedecer mais conveniente do que a benignidade com que se faz amar, pois a razo natural ensina que a obedincia forada violenta e a voluntria segura". Maquiavel defender o contrrio: "Quem quiser fazer profisso de bondade no pode evitar sua runa entre tantos que so maus. Assim, necessrio ao Prncipe, que se queira manter, que aprenda a poder ser mau, e que use ou no sua maldade segundo a necessidade." No altere coisa alguma com coisa e nem violncia, insiste Pombal, "porque preciso muito tempo, e muito jeito, para emendar costumes inveterados. H muitos casos que, merecendo castigo, primeiro h de haver uma prudente admoestao repreensiva". O conselho de Maquiavel ser bem outro:

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"Os homens se devem afagar ou exterminar, porque eles se vingam das injrias leves e, quanto s grandes, no podem faz-lo, de sorte que o mal que se faz ao homem deve ser tal que no tema vingana dele." .................................................... "Apoderando-se de um pas, aquele que o ocupar deve imaginar todas as crueldades que precise cometer, para no ter que renov-las e poder, no as renovando, tranqilizar os homens e ganh-los com benefcios." "Quem governa de outro modo, por temor ou por maus conselhos, ser obrigado a manter sempre a faca na mo, e no poder jamais confiar nos sditos. "Porque preciso fazer todo o mal de uma s vez a fim de que, provado menos tempo, parea menos amargo, e o bem pouco a pouco, a fim de que seja mais bem saboreado." O Prncipe, como creio, difere dos Discursos, porque esta obra dirigida aos muitos, a rigor, aos sditos. Nesta, com generalizaes ousadas, Maquiavel pde "respirar o amor liberdade, maneira antiga, e o dio tirania". Na primeira obra, aconselhando o Prncipe, h de se contradizer o Maquiavel historiador e terico da Poltica. Um exemplo notvel disso quando ele valora, nos Discorsi, a separao de poderes, da qual se apercebe em Polbio. Polbio, esse grego romanizado, no sculo I antes de Cristo, em sua Histria25, procurara descrever os acontecimentos em Roma, desde o princpio da segunda guerra pnica (221 a. C.), at a tomada de Corinto (146 a. C.). Numa introduo obra, leva sua narrao at a primeira guerra pnica (264 a. C.). E, no livro VI, que, lamentavelmente, no nos chegou por inteiro, ele detm o relato e passa a discutir as

(25) Polbio, Histria , Paris, Gallimard, 1970.

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formas de governo, a elogiar o modelo de Licurgo em sua repblica, a indicar os diferentes poderes que compunham o governo de Roma. Segundo ele, o governo da repblica romana estava dividido em trs corpos. E, "em todos trs to equilibrados e bem distribudos os direitos que ningum, anda que seja romano, poder dizer com certeza se o governo aristocrtico, democrtico ou monrquico, e com razo, pois se atendermos ao poder dos Cnsules, se dir que absolutamente monrquico e real; se autoridade do Senado, parecer aristocrtico; e, se ao poder do povo, se julgar que este estado popular."26 Calcando sua exposio em Polbio, copiando-a, ao que parece, por vezes, literalmente, Maquiavel, que parece ter obtido o texto integral do livro VI, chega, ento, nos Discursos, quela passagem que, para Norberto Bobbio seria uma antecipao da noo moderna da sociedade civil: "Os que criticam as contnuas dissenses entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando mais ateno aos gritos e rumores provocados por tais dissenses do que aos seus efeitos salutares. No querem perceber que em todos os governos h duas fontes de oposio: os interesses do povo e os da classe aristocrtica. Todas as leis para proteger a liberdade nascem de sua desunio, como prova o que aconteceu em Roma." E conclui: "Tais desordens ... fizeram nascer leis e regulamentos favorveis liberdade de todos." A defesa to firme -- e to antecipadora -- da separao dos poderes nos Discursos cede lugar, em O Prncipe, a uma nica(26) Polbio, ob. cit., p. 481.

Apresentao

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referncia, no elogio ao Parlamento na Frana, que era, para Maquiavel, "a melhor causa da segurana do Rei e do R eino". A respeito daquele Parlamento, dir Maquiavel: "Pode-se, a, tirar notvel instituio: os prncipes devem encarregar a outrem da imposio das penas. Os atos de graa, pelo contrrio, s a eles mesmos, em pessoa, devem estar afetos." Endereando seu "opsculo" a Lorenzo de Piero, Maquiavel diz: "Tome, pois, Vossa Magnificncia este pequeno presente com a inteno com que eu o mando. Se esta obra for diligentemente considerada e lida, Vossa Magnificncia considerar o meu extremo desejo que alcance aquela grandeza que a Fortuna e outras qualidades lhe prometem. E se Vossa Magnificncia, no pice de sua altura, alguma vez volver os olhos para baixo, saber quo sem razo suporto uma grande e contnua m sorte." Em uma carta ao sempre amigo Vettori, ele almeja que Mdici o empregue outra vez, "ao menos para rolar uma pedra".27 As queixas a Vettori se sucedem: "Ficarei aqui, pois, entre meus piolhos, sem encontrar um homem que se lembre de meus servios ou que acredite que eu ainda possa ser til para alguma coisa."28 A outro amigo, Vernacci, diz: "A sorte no me deixou seno parentes e amigos dos quais fao agora meu capital."29 Maquiavel servira, com dedicao, repblica florentina desde 1498, secretrio da segunda chancelaria e, logo, secretrio do Conselho(27) Carta a Francesco Vettori, de 10-12-1512, in Cartas ..., p. 119. (28) Carta a Francesco Vettori, de 10-6-1514, in Cartas ..., p. 174. (29) Carga a Giovanni Vernacci, de 19-11-1515, in Cartas ..., p. 178.

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dos Dez, rgo encarregado da defesa do pas e das questes diplomticas. Com o retorno dos Mdicis, foi dispensado, em novembro de 1512. O documento de sua demisso cruel: "Cassaverunt, privaverunt e totaliter amoverunt." As trs palavras, em latim, tm o mesmo sentido. Segundo os bigrafos de Maquiavel, os novos donos do poder pretenderam, assim, dar toda nfase a seu alijamento. E como se as trs palavras no bastassem, se acrescentou mais uma, "totaliter", totalmente. Suspeito em um processo de conspirao, Maquiavel chegou a ser encarcerado e foi, numa ocasio, aoitado com uma corda. Os anos seguintes viram sua insistncia -- que a tantos, nos sculos seguintes, pareceu abjeta -- de voltar a servir ao Governo, desta vez ao autoritarismo reinante. Abjeta, tambm, pareceu, a muitos, a dedicatria -- ou o pedido de emprego -- de O Prncipe. Mas, como se trata de Maquiavel, houve quem visse o final da dedicatria como: "cheio de respeito mas, ao mesmo tempo, de altivez". 30 constrangedor como um homem da estatura do florentino, com sua perspiccia, com sua lgica feroz, veja estreitados seus caminhos profissionais. H um lado redimidor: o fato de que ele obedea a uma vocao, a uma destinao irresistvel. Nasci, diz em carta, "para a palestra nas cortes dos prncipes."31 E noutra carta, "O que posso fazer falar sobre o estado e me vejo forado ou a fazer voto de silncio ou discutir sobre ele."32(30) In Von Vertheimer, Oscar, ob. cit. , p. 161. (31) In Von Vertheimer, Oscar, ob. cit. , p. 142. (32) Carta a Francesco Vettori, de 9-4-1513, in Cartas ..., p. 72.

Apresentao

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Mas h, tambm, a perspectiva amarga, que atravessou os sculos: a do adulador de tiranos, a do intelectual sempre disposto a servir, seja a repblicas, seja a principados, seja a organizaes democrticas, seja a oligarquias despudoradas. Poderia ser um problema do mercado de trabalho. Noutros tempos, os Plates, os Aristteles, os Protgoras, instruiriam toda a sociedade nas academias, nos ensinos sofsticos. Na Florena de Maquiavel, o historiador, o cientista social somente poderia se abrigar sob a proteo do prncipe, tanto quanto os pintores -- os Boticellis, os Jacopos de Ponterno; tanto quanto os arquitetos -- os Brunelleschis, os Michelozzis. Somente ocorreu a Maquiavel, que no tem vocao para os bancos, para o comrcio, e quer resistir como intelectual, uma outra alternativa: "Procurarei abrigo numa regio pobre qualquer, onde ensinarei as crianas a ler."33 Durante quase dez anos, a mesma sua cantilena a Vettori, nas cartas que nos ficaram e, provavelmente, em tantas outras que se extraviaram: quer retornar a seu emprego. Volta Florena a ser, mais uma vez, repblica. E Maquiavel , mais uma vez, suspeito nova situao. Morre amargurado. Em seu tmulo, puderam escrever: "Tanto Nomini Nullum par Elogium ." (Nenhum elogio corresponde grandeza deste nome.) Mas o levantamento e a comparao entre os vrios Maquiavis bem permitiram a retificao: "Nenhum elogio e nenhuma infmia correspondem grandeza e execrao deste nome."

(33) Carta a Francesco Vettori, de 10-6-1514, in Cartas ..., p. 147.

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CONSELHOS AOS GOVERNANTES

ISCRATES A NicoclsTraduo do francs de

Jean-Franois Cleaver

Iscrates Iscrates -- nascido em 436 a.C. e falecido em 338 a.C. -- fora amigo de Eugoras, rei de Salamina, na ilha de Chipre. Com a morte deste, subiu ao trono seu filho, Nicocls. Iscrates enviou, ento, ao novo soberano, que havia sido seu aluno, recomendaes, e o fez, anotam os analistas, sem antes formular as lisonjas autorizadas ou, at, impostas pelo costume a quem se dirigia a governantes. Agiu assim por sua independncia de carter, por uma grande estima a Nicocls ou por se julgar com permisso dada sua condio de antigo mestre. O aluno, agradecido, enviou-lhe sessenta talentos de ouro.

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SUMRIOArgumento pg. 31 Introduo pg. 33

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Argumento

I(1) (2)

scrates tivera relaes de amizade com Euagoras, 1 Rei de Salamis, reino da ilha de Chipre.2 Nicocls, filho de Euagoras, fora discpulo de Iscrates. Ao alcanar a realeza com a morte do pai, Nococls recebeu de Euagoras um discurso sobre os deveres dos reis. Nesse, Iscrates ministrava-lhe conselhos diretamente, sem antes formular essas lisonjas autorizadas ou, at, impostas pela praxe a quem se dirige a figura de alta dignidade. Assim fazia, quer fosse por independncia de carter, pela sua grande estima por Nicocls ou, ainda, por julgar-se autorizado a manter a atitude de mestre. E Nicocls, muito longe de melindrar-se, manifestou sua gratido mandando-lhe sessenta talentos de outro, em agradecimento.O tradutor adotou, em todos os nomes prprios do texto, a grafia empregada pelo Dicionrio Oxford de Literatura Clssica. Em outras obras, encontram-se as formas Eugoras e Nicocls. (N.T.) Existe certo risco de confuso entre duas regies distintas e distantes, cujos nomes so muito parecidos, talvez at semelhantes em grego. Salamina [em gredo Salamis, em francs Salamine] uma ilha situada perto da tica, perto da qual se desenrolou em 480 a.C. a batalha naval, em que os gregos arrasaram a frota persa. Muito distante, pois situada em Chipre, fica Salamis, cujo nome portugus igual ao de Salamina em grego, e designada no texto-fonte francs por Salamine (N.T.)

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O discurso remetido a Nicocls admirvel pela sabedoria dos preceitos e, sobretudo, por revelar o alto conceito em que Iscrates, cidado de uma repblica, tinha da realeza e os grandes deveres que impe. Iscrates pensa que um rei deve ser sbio, em atos, pensamentos e palavras. Deve ser culto, laborioso, pautado. Deve ser nobre e generoso, rodeado de homens virtuosos e capazes, que ele deve procurar e chamar junto a si. Deve repudiar o vcio, afastar a mediocridade e sempre dar empregos e autoridade aos mais dignos. Deve ser leal em todos os atos, ser grande em tudo quanto diga respeito sua pessoa e ao seu poder. Deve tirar a sua fora da ordem e regularidade da sua administrao e da prosperidade crescente dos particulares, no de impostos excessivos. Deve, por fim, amar o seu povo, proteg-lo, fazer-se amar dele, sem deixar de mostrar-se severo quando o exige a justia; pois a bondade, quando aliada fraqueza, suscita a ingratido e leva ao desprezo. Este discurso parece ter sido escrito em 376 a.C., algum tempo depois de Nicocls ascender ao trono de Salamis. Iscrates tinha, ento, cerca de sessenta e trs anos. O discurso honra tanto Iscrates quanto Nicocls: aquele, pela sabedoria e nobre liberdade com que se expressa; este, ao provar que Iscrates continuava nutrindo estima pelo seu antigo discpulo. Assim como ocorreu em relao ao Demonicus,3 houve quem afirmasse que o discurso dirigido a Nicocls no obra de Iscrates. Mas, como poderamos duvidar de tal, se o prprio Iscrates menciona este discurso na fala de Nicocls sobre os deveres dos reis, como tambm o faz no seu discurso Sobre a permuta, no qual chega a citar um trecho de A Nicocls?

(3)

O tradutor no conseguiu identificar a forma portuguesa deste ttulo e o deixou na forma encontrada no texto francs. (N.T.)

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Introduo

1

. Carter deste discurso, que se destina a ministrar preceitos sobre os deveres dos reis, e vantagem de tal presente em relao queles que se costuma oferecer. Os homens de condio privada tm numerosas oportunidades de aprender sobre os seus deveres. Os reis, que exercem a mais difcil misso na terra, no tm praticamente nenhuma oportunidade de fazer o mesmo. Por isso, os reis, que poderiam ser os homens mais felizes, levam vida extremamente atribulada, sendo completamente errneo o juzo da multido sobre as suas condies de vida. 2. tarefa louvvel ensinar o que devem procurar ou repudiar os reis em geral, ainda quando a execuo seja plido reflexo do escopo. 3. Preceitos, primeiro objeto a que devem aspirar os reis, que como a fonte dos seus deveres. 4. Para alcanar esse objeto, o rei deve tornar-se superior aos outros, cultivando o seu esprito e convivendo com homens destacados pela sabedoria. 5. Os reis devem amar o seu povo, proteg-lo, mant-lo no dever, honrar os homens virtuosos, defender os cidados de qualquer ofensa. 6. Regulamentos, institutos, leis, negociaes, processos, juzos; regras de administrao do Estado. Objetos nos quais devem manifestar-se a magnificncia dos reis. Maneiras pelas quais se deve honrar os deuses.

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7. Os homens que convm prestigiar. A guarda mais segura para os reis. As riquezas dos particulares devem ser protegidas. O zelo pela verdade. A conduta para com os estrangeiros. A clemncia com os cidados. Quando, e de que maneira, convm fazer guerra; moderao e iseno. 8. Escolha dos amigos e dos homens que privam com os prncipes, escolha dos magistrados e ministros. H que ouvir o que os homens dizem uns dos outros, punir os caluniadores e saber mandar em si mesmo. 9. As ocupaes de que devem gostar os reis. Coisas nas quais devem esforar-se por chegar superioridade. Honras que devem ser buscadas. Tendncias que devem ser dissimuladas. Inclinaes que devem ser reveladas. A moderao dos reis exemplo para os cidados. Caracteres pelos quais se reconhece um bom governante. H que deixar de herana, para os filhos, glria antes que riquezas. Magnificncia no vestir. Severidade nos hbitos de vida. Continncia no falar e nos atos. Moderao que deve ser observada em todas as coisas. 10. Urbanidade com gravidade. Tipo de estudo que os reis devem preferir. Maneiras mais convenientes de ilustrar-se. 11. A superioridade do esprito sobrepe-se beleza do corpo. Os reis devem praticar o que aprovam, o que consideram digno de emulao, o que prescrevem aos seus filhos. Quem so aqueles que podem ser considerados sbios. 12. Eplogo. Em preceitos desta natureza, o que se procura no tanto apresentar ensinamentos novos como reunir, de toda parte, o maior nmero possvel de ensinamentos, para oferec-los sob forma capaz de agradar. H conselhos que so teis, mas no agradam a quem os recebe. 13. Esse fato decorre da perversidade dos homens, que desejam o que lhes traz prejuzo e tm averso ao que lhes til. Disso resulta que aquele que deseja agradar multido deve, como Homero, oferece-lhe fbulas e convert-las em ao, como fizeram os poetas trgicos. 14. Um rei deve saber julgar de maneira original, no medindo o valor dos homens e das coisas pela comodidade que lhe oferecem, mas pela sua utilidade. Os homens devem ser estimados, antes de tudo, pela

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prudncia e oportunidade dos seus conselhos. Um conselheiro sbio deve ser preferido a qualquer outro bem. 15. Este presente diferente dos outros, na medida em que ganha mais valor com o uso, em vez de desgastar-se. [Lange] II 1. Nicocls, aqueles que soem tazer-lhe, bem como aos outros reis, ricos tecidos, bronze, ouro lavrado com arte e outros objetos da mesma natureza, raros em sua casa e abundantes na sua, esto evidentemente traficando, e no presenteando-o, pois na realidade esto vendendo aquilo que lhe oferecem com muito mais habilidade que os homens abertamente dedicados ao comrcio. Quanto a mim, pensei que, se eu pudesse definir corretamente os deveres de que deve cuidar e os atos de que deve abster-se para governar sabiamente Salamis e seu reino, estaria dando-lhe a prenda mais bela, mais til, a que mais convm eu oferecer e voc aceitar. Muitas coisas contribuem para a educao dos simples particulares, em primeiro lugar, uma vida isenta de moleza e sensualidade e a obrigao de prover s necessidades cotidianas; em segundo lugar, as leis que a todos nos governam, a liberdade que tm os amigos de dirigir-se reparos e os inimigos de acusar-se pelas suas respectivas faltas; por fim, os preceitos relativos conduo da vida, deixados por alguns dos antigos poetas: coisas essas em que os particulares encontram naturalmente meios de aprimorar-se. J os reis no contam com os mesmos recursos, eles que, mais do que os outros homens, precisariam de aviso, vem-se privados desses to logo sentam no trono. A maioria dos homens fica distantes deles; os que deles privam s se aproximam para lisonje-los; e, transformados em donos das mais fartas riquezas e rbitros dos maiores interesses, fazem to mau uso desses meios de poder que muitos se perguntam se no se deve preferir, existncia dos reis, uma condio vulgar e uma vida ilibada. Sem dvida, atentando somente para as honras, as riquezas, a autoridade, todos os homens julgam iguais a deuses aqueles que foram investidos da potncia soberana; quando, entretanto, considerarmos os seus receios, os perigos que correm e, lembrando o passado, os vemos ora sendo atacados por quem menos deveria ameaar a sua vida, ora obrigados a punir os seus entes mais amados,

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ora condenados a ambas as desgraas, somos levados a pensar que a mais modesta existncia prefervel ao domnio de toda a sia, acompanhado de tamanhas calamidades. A causa dessa desordem, dessa confuso, reside na opinio, muito comum, que a realeza igual s funes sagradas, 4 que qualquer homem capaz de exercer, quando na verdade a realeza a mais alta de todas as funes, a que requer mais sabedoria humana. 2. Apresentar-lhe conselhos sobre a conduo de cada negcio, para que o leve adiante com prudncia, garanta o seu xito e previna as suas conseqncias nefastas, dever dos homens que soem estar ao seu lado. Quanto a mim, tentarei indicar-lhe no geral as virtudes para as quais dever tender ao longo de sua vida e os cuidados que devem ocup-lo. Ser o trabalho que quero oferecer-lhe digno da grandeza do tema, uma vez concludo? Eis algo difcil de enxergar desde o incio. Muitas obras, em versos ou em prosa, que tinham suscitado altas esperanas quando s existiam no pensamento do seu autor, s obtiveram, uma vez acabadas e dadas luz, fama muito inferior esperada. Mas, de qualquer maneira, empresa honrosa procurar lanar luz sobre verdades pouco lembradas e estabelecer princpios teis para o governo das monarquias. Os homens que instruem os simples particulares so teis apenas aos que recebem os seus conselhos; o homem que pudesse levar os chefes das naes virtude seria til aos prncipes, que comandam, e aos povos que obedecem, tornando assim o poder mais seguro, para uns, e mais ameno o governo, para outros. 3. preciso considerarmos, inicialmente, o que o dever dos reis, pois se assentarmos bem, em poucas palavras, aquilo em que reside a potncia da realeza, sem perdermos de vista este ponto, desenvolveremos melhor as diversas partes do nosso tema. Todos concordaro, creio eu, em que o primeiro dever dos reis, quando a sua ptria infeliz, remediar os seus males; quando prspera, mant-la na prosperidade; quando fraca, torn-la potente. A ao cotidiana do governo deveria ter esses escopos; evidente que os que receberam tamanha potncia e devem decidir de tamanhos interesses no devem abandonar-se moleza e ao cio, mas sim zelar por que(4) Nota do texto francs: Por exemplo, as funes que eram sorteadas.

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ningum os supere em sabedoria; com efeito, inegvel que a prosperidade de seu reino ter a mesma medida que a sua habilidade. Por isso, os atletas tm menos interesse em fortificar o corpo do que tm os reis em desenvolver as faculdades da alma, e os prmios oferecidos em nossas solenidades no so nada, quando comparados com os que voc procurar conquistar diariamente. 4. Compenetrado dessas verdades, dedique a sua fora de esprito a colocar-se, pelas suas virtudes, acima dos outros homens, tanto quanto os supera pela posio; e no creia que o cuidado e a aplicao, to valiosos em todas as outras situaes da vida, nada possam para tornarnos melhores e mais sbios. No condene a humanidade a desgraa tal que, havendo j encontrado meios de amansar os instintos dos animais e ampliar a sua inteligncia, no tenhamos influncia suficiente sobre ns mesmos para aprender a virtude. Ao contrrio, convena-se de que os cuidados e a educao tm grande poder para aprimorar a nossa natureza. Chegue-se aos homens mais sbios entre os que o rodeiam; convide a entrar os que voc puder atrair e no tolere desconhecer qualquer um dos poetas clebres ou dos filsofos estimados. Seja ouvinte daqueles, seja discpulo destes; prepare-se para ser o juiz dos menos habilidosos e o rival dos mais esclarecidos. Com a ajuda de tais exerccios, logo se tornar tudo o que deve ser, em nossa opinio, um rei destinado a reinar com justia e governar com sabedoria. Encontrar em si poderoso motivo de emulao, se julgar contrrio razo o fato de o mau reinar sobre o homem de bem e o insensato mandar no sbio; e voc ter tanto mais zelo em exercer a sua inteligncia quanto mais desprezo sentir pela incapacidade dos outros. 5. Por a devem comear os que se destinam a governar bem; alm disso, devem ser amigos da humanidade e amigos da sua ptria. Os homens, os cavalos, os ces, os seres de toda natureza no podem ser dirigidos a contento se a afeio no preside aos cuidados de que so objeto. Por isso, dedique-se ao povo e, sobretudo, a faz-lo gostar da sua autoridade, convicto de que, entre todos os governos, sejam eles oligrquicos ou de outra natureza, os mais duradouros so os que melhor sabem resguardar os interesses do povo. Voc exercer ao povo nobre e til influncia se no permitir que insulte qualquer pessoa, nem que seja insultado; e se, reservando sempre as honras aos mais dignos, cuidar de proteger os outros cidados contra a injustia. Esses so os primeiros

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princpios, os princpios mais essenciais do bom governo. Elimine e modifique as leis e costumes viciosos; empenhe-se, sobretudo, em descobrir as leis mais convenientes para o seu pas ou, pelo menos, imite as de outros povos que sejam reconhecidamente boas. 6. Procure leis que sejam globalmente justas e teis, leis que se acordem entre si, leis tais que os processos escasseiem e sejam prontamente decididos. As leis, para serem boas, devem satisfazer todas essas condies. Faa com que as transaes sejam vantajosas e prejudiciais os processos, de sorte que os cidados evitem estes e corram para aquelas. Nos diferendos surgidos entre particulares, d sentenas que no sejam ditadas pelo favorecimento, nem contraditrias entre si, e decida sempre da mesma maneira em casos semelhantes. Interessa tanto utilidade pblica quanto dignidade real serem imutveis as sentenas do rei e sabiamente feitas as leis. Administre o seu reino como se administrasse a herana recebida do seu pai. Seja magnfico e rgio em todas as suas disposies e tenha cuidado e rigor em arrecadar impostos, para brilhar sobremaneira e poder arcar com todas as suas despesas. Nunca exteriorize a sua magnificncia em profuses efmeras, mas sim nas coisas que lhe apontamos, na suntuosidade dos seus palcios e nos favores que dispensa aos seus amigos. Usando das suas riquezas dessa maneira, conservar-lhes- os frutos e deixar queles que lhe sucederem vantagens mais valiosas que os tesouros despendidos com nobreza. Cultue devidamente os deuses, seguindo os exemplos deixados pelos seus ancestrais; creia, no entanto, que o mais belo sacrifcio, a homenagem maior, ser mostrar-se justo e virtuoso. O homem animado desses nobres sentimentos pode contar com o favor divino, mais do que aquele que imola muitas vtimas. 7. Honre os seus parentes mais prximos com funes de prestgio e entregue os empregos que conferem poder de fato aos seus amigos mais dedicados. Considere que a sua melhor garantia de segurana a virtude dos seus amigos, a boa vontade dos seus concidados e a sua prpria sabedoria: com a ajuda desses recursos que se pode adquirir o poder e conserv-lo.

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Zele pela maneira segundo a qual os cidados administram a prpria fortuna; veja aqueles que esbanjam como homens prdigos da fortuna real e creia que aqueles que se enriquecem pelo prprio trabalho esto acrescendo os tesouros do rei. A fortuna dos cidados faz a riqueza dos reis que governam sabiamente. Demonstre, por todos os aspectos da sua vida, tal respeito pela verdade que as suas palavras inspirem mais confiana que as juras dos outros homens. Oferea a todos os estrangeiros asilo em sua cidade e faa com que eles encontrem, em todas as transaes, respeito s leis. Prefira, queles que lhe trazem presentes, os que desejam receb-los de voc. Os favores que voc fizer aumentaro a sua fama. Expulse o terror do seio do seu povo e no permita que o inocente seja levado a temer, pois os sentimentos que voc inspirar aos seus concidados, voc tambm h de senti-los em relao a eles. No faa nada com clera, mas mostre-se irritado quando a ocasio o exigir. Seja temvel por exercer implacvel vigilncia; seja indulgente, impondo sempre castigos que ficam aqum das faltas. Faa respeitar a sua autoridade, no pela dureza no comando ou pelo rigor dos suplcios, mas sobrepondo-se aos outros homens pela sabedoria e deixando-os convictos de que voc lhes d mais segurana do que teriam por meios prprios. Prove ser um rei belicoso, pela cincia da guerra e pelo aparato blico, demonstre ser um prncipe amigo da paz, pela sua averso a qualquer expanso injusta. Comporte-se com os Estados mais fracos como gostaria de ser tratado pelos Estados mais poderosos. No suscite contestaes sobre toda espcie de assunto; atenha-se quelas que, se ganhas, podem trazer-lhe alguma vantagem. No olhe com desprezo os que sucumbem atingindo um resultado til, mas sim aqueles que obtm uma vitria prejudicial aos prprios interesses.

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Creia que a grandeza de alma no est nos homens que empreendem mais do que podem executar, mas naqueles que, perseguindo com ardor o que nobre e grande, podem executar o que empreendem. No entre em rivalidade com os homens que estenderam sua potncia aos confins, mas com os que melhor a usam; creia que ser feliz, no mandando a todos os homens em meio a terrores, perigos e sofrimentos, mas, sendo o que deve ser e atuando como atua hoje, tendo apenas desejos moderados, sempre coroados de sucesso. 8. No admita como amigos seus todos aqueles que desejarem a sua afeio, mas apenas os que so dignos de obt-la; no aqueles cuja companhia lhe seja mais agradvel, mas sim os que melhor podero ajud-lo a governar o seu pas com sabedoria. Mantenha-se sempre informado sobre o valor das pessoas que o odeiam, sabendo que os que no podem aproximar-se de voc o julgaro igual aos homens que privam da sua intimidade. Ao escolher quem deva encarregar-se de negcios que no administra pessoalmente, nunca perca de vista que voc quem arcar com a responsabilidade dos seus atos. Considere os mais fiis amigos, no aqueles que aprovam todas as suas palavras e elogiam todas as suas aes, mas sim os que censuram os seus erros. Permita que as pessoas sbias expressem a sua opinio, para ter, nas questes delicadas, conselheiros que possam proficuamente examin-las com voc. Saiba distinguir os cortesos, que adulam com arte, dos amigos, que servem por devoo, para no dar mais crdito aos maus do que aos homens virtuosos. Oua o que os homens dizem uns dos outros e procure ter luzes tanto sobre os que falam quanto sobre aqueles de quem se fala. Castigue os caluniadores com as penas em que incorreriam os culpados. No tenham menos domnio sobre voc mesmo do que sobre os outros homens; creia que no h nada mais rgio do que libertar-se do jugo das suas paixes e seja ainda mais senhor dos seus desejos do que dos seus concidados.

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No crie vnculos com qualquer pessoa ao acaso e sem reflexo, mas acostume-se a ter prazer nas conversas que aumentam a sua sabedoria e reputao. 9. No procure destacar-se nos atos que homens viciosos podem realizar como voc; tenha orgulho da virtude, na qual no podem ter parte os maus. Medite que as verdadeiras honras no residem nas homenagens prestadas publicamente e inspiradas pelo receio, mas nos sentimentos daqueles que, na intimidade da famlia, admiram mais a sua sabedoria do que a sua fortuna. Caso voc goste de algo frvolo, oculte essa franqueza ao pblico, mostre-lhe apenas o seu zelo por aquilo que nobre e grande. No creia que ter uma vida decente e honesta equivalha a participar de algo vulgar e que viver na desordem seja privilgio dos reis. Oferea a regularidade da sua vida como modelo para os seus concidados e no esquea que os costumes dos povos se formam a partir dos costumes dos homens que os governam. Voc ter uma prova da sabedoria do seu governo se vir que as suas diligncias garantiram mais riqueza e costumes mais honestos aos povos sobre os quais reinou. Prefira deixar aos seus filhos um nome glorioso do que grandes riquezas. As riquezas so perecveis, a glria imortal. As riquezas podem ser adquiridas pela glria, a glria no se compra com riquezas. As riquezas so, s vezes, compartilhadas pelos maus, mas a glria s pode ser adquirida por homens de virtude superior. Tenha magnificncia no vestir e em tudo o que possa contribuir para o brilho da sua personalidade, mas seja simples e austero no resto dos seus costumes, como convm aos que governam, para que os que vem a magnificncia sua volta o creiam digno de reinar, e que os que se aproximam de voc, vendo a fora da sua alma, formem a mesma opinio. Esteja sempre disciplinando as suas palavras e atos, para cometer o menor nmero possvel de faltas. O mais importante, nos negcios, perceber qual o ponto de que depende o xito; como esse ponto difcil de identificar, melhor no atingi-lo do que passar dele. A verdadeira sabedoria fica aqum do objetivo, em vez de passar alm.

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10. Procure unir a polidez gravidade. A gravidade convm potncia soberana; a polidez o ornamento da sociedade. Este duplo preceito , de todos, o mais difcil de observar; quase sempre, os que afetam gravidade incorrem em frieza, e quem procura ser educado pode parecer humilde e rasteiro. preciso, reunindo as duas qualidades que indicamos, evitar a desvantagem inerente a cada uma delas. Se quiser aprofundar os conhecimentos que convm aos reis, junte a experincia teoria; a teoria lhe mostrar o caminho e a experincia lhe permitir andar com passos firmes nesse caminho. Pense nas vicissitudes e desgraas que afetam os particulares e os reis, as lembranas do passado reforaro a sabedoria dos seus conselhos para o futuro. Fique convicto que, quando simples particulares aceitam sacrificar a sua vida para serem louvados aps a sua morte, uma vergonha, para os reis, no terem a coragem de destacar-se por atos que lhes dem, em vida, fama honrosa. Faa com que as suas esttuas permaneam como monumentos sua virtude, mais do que como lembrana da sua pessoa. Antes de tudo, esforce-se por garantir a sua segurana e a do seu reino; mas, se houver que enfrentar perigos, prefira morrer com glria a viver na vergonha. Em todas as suas aes, lembre que voc rei e tenha todo o cuidado para no fazer nada que seja indigno dessa posio suprema. 11. Receie morrer por inteiro e, j que recebeu da natureza um corpo perecvel e uma alma imortal, empenhe-se em deixar da sua alma uma lembrana que no morra. Habitue-se a falar de costumes e aes honrosas, para nutrir, no seu corao, sentimentos condizentes com o objeto das suas conversas. Aquelas coisas que lhe parecem melhores quando est refletindo s, realize-as nas suas aes. Imite os homens cuja glria excita a sua emulao. Os conselhos que voc daria aos seus filhos, creia que digno voc tambm segui-los. Faa uso dos preceitos que lhe ofereo, ou procure achar outros, melhores.

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Considere sbios, no os homens que empreendem discusses minuciosas sobre temas frvolos, mas os que tratam com habilidade das questes importantes; no os que prometem a felicidade aos outros, vivendo na misria, mas os que, falando com reserva do que lhes diz respeito, so capazes de tratar utilmente homens e negcios e, sem nunca serem afetados pelas vicissitudes da vida, sabem passar pela boa e m fortuna com a mesma nobreza e moderao. 12. E no estranhe haver, nas coisas que eu lhe disse, muitas j conhecidas de voc; este ponto no me escapou. No estava eu sem saber que grande nmero de particulares e prncipes j tinham formulado parte destas verdades, que outros as tinham ouvido proclamar, outros as tinham visto sendo aplicadas e outros, ainda, j as estavam aplicando por conta prpria. Mas no nos discursos destinados a expor regras de conduta que se dever procurar idias novas. Nesses discursos, no h lugar para qualquer coisa paradoxal, ousada, contrria s idias estabelecidas, e quem capaz de reunir o maior nmero de verdades espassas nos pensamentos dos homens para apresent-las da forma mais eloqente deve ser visto, entre todos os escritores, como o mais digno de agradar. Tampouco ignorava eu que, entre todos os discursos e escritos, em prosa e em verso, os que tm por objeto oferecer conselhos so universalmente considerados os mais teis, por quem os escuta, porm no os mais agradveis. Tem-se para com eles o mesmo sentimento reservado aos homens que se prezam de dar conselhos: todos os louvam, mas ningum os procura, e preferimos a companhia dos que compartilham os nossos erros dos que nos demovem de comet-los. Poder-seia, em apoio do que digo, citar as poesias de Hesodo, de Tegnis e de Focilides. Esses grandes homens so proclamados os melhores conselheiros da vida humana, mas aqueles mesmos que o declaram preferem gastar o tempo em conversas frvolas a nutrir-se com as suas sbias doutrinas. Ainda mais, se algum escolhesse, nas obras dos maiores poetas, os trechos trabalhados com mais esmero, e que so chamados de mximas, essas mximas seriam acolhidas com a mesma disposio, sendo sempre a comdia mais ftil ouvida com mais prazer do que o so preceitos elaborados com arte to perfeita. 13. Alis, haver necessidade de deter-nos em cada objeto? Se quisermos examinar no geral a natureza dos homens, veremos que, em sua

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maioria, no se sentem atrados pelos alimentos mais sadios, nem pelas ocupaes mais nobres, nem pelas melhores aes, nem pelos preceitos mais teis; veremos que procuram os prazeres mais contrrios aos seus interesses e consideram modelos de constncia e energia homens que s cumprem com alguma parte dos seus deveres. Como se poderia agradar a semelhantes ouvintes, dando-lhes conselhos, instrues ou avisos teis, se, alm de tudo o que dissemos, atormentam os homens sbios com a sua inveja e julgam que os insensatos so apenas homens simples e abertos? To longe da verdade esto eles que ignoram at os assuntos que lhes dizem respeito; irritam-se quando tm de tratar dos seus prprios interesses; s gostam de discutir os interesses de outrem e submeteriam o prprio corpo a torturas de todo tipo antes que exercer o esprito no trabalho e dedicar ateno a alguma coisa necessria. Reunidos, trocam escrnios e insultos. Se esto ss, voc no os encontrar refletindo, mas afagando desejos quimricos. No digo isso de todos os homens: digo-o daqueles que tm os defeitos que apontamos. Destarte, evidente que os que desejarem escrever, seja em verso ou em prosa, de forma a agradar multido, no devem prender-se s verdades mais teis mas, antes, s fices mais maravilhosas. A multido aprecia tais relatos, comove-se vendo lutas e combates. Por isso, devemos admirar o gnio potico de Homero e dos primeiros inventores da tragdia; tendo avaliado a natureza humana, deram aos seus relatos as duas formas que acabamos de citar. Homero representou, nas suas fices, os combates e as guerras dos semideuses; os poetas trgicos leram essas mesmas fices ao cenrio, em relatos e aes, de maneira a tornar-nos ao mesmo tempo ouvintes e espectadores. Em face de semelhantes exemplos, fica evidente, para aqueles que desejam encantar os seus ouvintes, que devem cuidadosamente abster-se de dar avisos ou conselhos, empenhando-se em dizer ou escrever o que acharem mais prprio para agradar multido. 14. Apresentei-lhe este quadro pensando que voc, que no homem da multido, mas a governa, no deve ter os mesmos sentimentos que o vulgo e deve avaliar a relevncia das coisas e o valor dos homens pela sua utilidade, no pelo prazer que posam oferecer. Cheguei a tal opinio, sobretudo, aps reconhecer que os mestres de sabedoria divergiam quanto aos meios de desenvolver as faculdades da alma, anunciando que tornariam seus discpulos mais sbios e habilidosos usando ora as discusses da dialtica, ora os discursos polticos, ora outros

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meios, mas ficando todos de acordo num ponto: o homem formado por nobre educao deveria ser capaz de tirar, de cada uma dessas fontes, elementos de sabedoria. Assim que preciso, para julgar com certeza, abandonando as coisas controversas, estear-se no que admitido por todos e, sobretudo, avaliar os homens pelos conselhos que do em determinadas circunstncias ou, pelo menos, pelo que dizem em relao a todos os negcios. Por fim, voc deve rechaar aqueles que, em relao aos assuntos que lhes dizem respeito, no sabem nada do que preciso saber: evidente que aquele que no pode ser til a si mesmo nunca ensinar sabedoria a ningum. Ao contrrio, outorgue a sua estima e apoio aos homens esclarecidos, aos homens cuja viso alcana alm da dos espritos vulgares, convicto que um sbio conselheiro o mais til, o mais rgio de todos os tesouros; por fim, creia que os homens que lhe oferecerem mais recursos para cultivar a sua inteligncia so os que mais contribuiro para a grandeza do seu reino. 15. Digirindo-lhe estes conselhos, proporcionados pelas minhas luzes, honro-o com os meios dos quais disponho. Quanto a voc, como disse no incio deste discurso, no permita mais que lhe tragam esses presentes consagrados pelos hbitos, que voc, assim como os outros reis, compra daqueles que os oferecem muito mais caro do que o faria de quem os vende, e prefira ddivas que, muito longe de desgastarem-se com o uso que delas faa, adquiram a cada dia novo valor.

PLATO Aos parentes e amigos de Dio

Plato, escultura romana baseada em original grego do sc. III a.C. (Museu do Vaticano, Roma)

Plato Plato nasceu em 427 a.C. e faleceu em 348 a.C. Seu nome era Arstocles, mas o apelido, que o celebrizou, veio em razo do fato de possuir ombros largos. Dada a fortuna de sua famlia, recebeu educao esmerada. Suas obras mais conhecidas so A Repblica e As Leis. Ligando-se a Dio, cunhado do tirano Dionsio, o Velho, de Siracusa, Plato tentou converter em um bom rei Dionsio, o Jovem, que substitura o pai. A carta aos amigos de Dio, d conta de seus esforos.

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De Plato aos amigos e parentes de Dio

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screveis-me convictos da conformidade das vossas idias com as de Dio, e pedeis-me instantemente para vos ajudar na medida do possvel pelos meus atos e palavras. Seguramente, consinto em colaborar, se na verdade a vossa maneira que seus, de contrrio teria necessidade de refletir melhor. Das suas concepes e projetos posso falar com segurana. Com efeito, quando pela primeira vez fui a Siracusa, tinha cerca de quarenta anos; Dio tinha a idade que tem hoje Hiparinos e via ento as coisas como nunca deixou de as ver ento: os siracusanos, na sua opinio, deveriam ser livres e reger-se pelas melhores leis. No seria, pois, surpreendente que as idias polticas de Hiparinos, graas a uma interveno divina, surgissem conformes s de Dio. Quanto sua gnese, vale a pena ser conhecida, tanto dos jovens como dos mais velhos. Vou tentar fazer-vos a narrao desde a origem: as presentes circunstncias a tanto do ensejo. Outrora na minha juventude experimentei o que tantos jovens experimentaram. Tinha o projeto de, no dia em que pudesse dispor de mim prprio, imediatamente intervir na poltica. Ora vejamos, como ento se me apresentara a situao dos negcios da cidade: a forma de governo existente, sujeita a crticas diversas, conduziu a uma evoluo. cabea da nova ordem cinqenta e um cidados foram eleitos chefes,

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onze na cidade, dez no Pireu (estes dois grupos foram encarregados da "gora" e de tudo o que concernia administrao das cidades) -- mas trinta constituam a autoridade superior com poder absoluto. Vrios de entre eles sendo ou meus parentes, ou conhecidos, logo me atraram a si, para tarefas que me convinham. Alimentei iluses que no tinham nada de espantoso devido minha juventude. Imaginava, de fato, que eles governariam a cidade, desviando-a dos caminhos da injustia para os da justia. Observava tambm com ansiedade o que iriam fazer. Ora, vi aqueles homens em pouco tempo fazerem lamentar os tempos da antiga ordem como uma idade de ouro. Entre outros, ao meu querido e velho amigo Scrates, que no me canso de proclamar como o homem mais justo do seu tempo, quiseram associ-lo tentativa de levar pela fora um cidado a ser condenado morte, isto com o objetivo de por alguma forma o comprometerem na sua poltica. Scrates no obedeceu, e preferiu expor-se aos maiores perigos a tornar-se cmplice de aes criminosas. Em face de todas estas coisas e a outras do mesmo gnero, e de no menos importncia, fiquei indignado e afastei-me das misrias dessa poca. Depressa os trinta caram e, com eles, todo o seu regime. De novo, e ainda que com maior prudncia, estava desejoso de ocupar das tarefas do estado. Ocorriam ento, j que era um perodo conturbado, muitos fatos revoltantes e no de admirar que as revolues tenham servido para multiplicar os atos de vingana pessoal. Entretanto, os que regressaram usaram de bastante mais moderao. Mas, sem que eu desse conta de como acontecia, cidados poderosos conduzem aos tribunais este mesmo Scrates, nosso amigo, e fizeram-lhe uma acusao das mais graves, que de forma alguma ele merecia: por impiedade que uns o acusam diante do tribunal e outros o condenam e fazem morrer o homem que, quando eles prprios afastados do poder e cados em desgraa, no quis participar na criminosa priso de um dos seus amigos, ento banido. Assistindo a isto e vendo os homens que conduziam a poltica, mais me debruava sobre as leis e os costumes, e quanto mais avanava na idade, mais me parecia difcil bem administrar os negcios do estado. Por um lado, sem amigos e sem colaboradores fiis, isso no me parecia possvel. Ora, entre os cidados atuais no era cmodo encontr-los, pois j no era segundo os usos e

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costumes dos nossos antepassados que a nossa cidade era governada; quanto a adquirir novos, no seria fcil faz-lo. Alm disso, a legislao e a moralidade estavam corrompidas a tal ponto que eu, inicialmente pleno de ardor para trabalhar a favor do bem pblico, considerando esta situao e vendo como tudo caminhava deriva, acabei por ficar confuso. No deixei, entretanto, de procurar nos acontecimentos e especialmente no regime poltico os possveis indcios de melhoras, mas esperei sempre o bom momento para agir. Acabei por compreender que todos os estados atuais so malgovernados, pois a sua legislao praticamente incurvel sem enrgicos preparativos coincidindo com felizes circunstncias. Fui ento irresistivelmente conduzido a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que, somente sua luz se pode reconhecer onde est a justia na vida pblica e privada. Portanto, os males no cessaro para os humanos antes que a raa dos puros e autnticos filsofos chegue ao poder, ou antes que os chefes das cidades, por uma divina graa, se no ponham a filosofar verdadeiramente. Tal era o estado das minhas reflexes quando cheguei Itlia e Siclia pela primeira vez. Ento, essa vida, a considerada feliz, preenchida por perptuos festins italianos e siracusanos, enjoava-me de todo: emborrachar-se duas vezes por dia, nunca se deitar sozinho de noite... e tudo o que completa este gnero de existncia. Com semelhantes hbitos no existe homem algum sob o cu que, levando essa vida desde a infncia, possa tornar-se sensato (que natureza seria to maravilhosamente equilibrada?), nem jamais adquirir sabedoria; outro tanto diria de todas as outras virtudes. Da mesma forma no existe cidade que possa tornar-se tranqila sob as suas leis, por boas que sejam, se os cidados crem dever entregar-se a loucas polticas, e alm disso, abandonar-se completa ociosidade, salvo os banquetes ou libaes --, e quando dispendem os seus esforos a consumar os seus amores. Necessariamente, tais estados no cessaro jamais de caminhar em sobressaltos de tirania em oligarquia e em democracia, e os que governam no suportaro mesmo ouvir falar no nome de um governo de justia e de igualdade. Fazia, ento, estas reflexes e as precedentes durante a minha viagem a Siracusa. Seria por acaso? Creio antes que um deus se esforava

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por pr em marcha todos os fatos que se desenrolam presentemente relativos a Dio e aos siracusanos. E preciso ainda temer piores males, se no seguirdes os conselhos que vos dou pela segunda vez. Mas ento como posso sustentar que a minha chegada Siclia estivesse na origem de todos estes acontecimentos? Nas minhas relaes com Dio, que era ainda jovem, desenvolvendo-lhe as minhas opinies sobre o que me parecia o melhor para os homens e, exortando-o a realiz-las, arrisqueime a no me ter apercebido de que, de certa maneira, trabalhava inconscientemente para a queda da tirania. Pois Dio, muito aberto a todas as coisas, especialmente aos discursos que lhe fazia, compreendia-me admiravelmente, melhor que todos os jovens com quem jamais convivi. Decidiu enveredar por uma vida diferente da que levava a maior parte dos italianos e sicilianos, dando muito mais importncia virtude que a uma existncia de prazer e sensualidade. Desde ento, a sua atitude tornou-se cada vez mais odiosa aos partidrios do regime tirnico, e isto a morte de Dionsio. Depois deste acontecimento, projetou no reservar apenas para si estes sentimentos, que a verdadeira filosofia lhe havia feito adquirir. Verificou, de resto, que outros espritos tinham sido conquistados, poucos sem dvida, mas alguns, no entanto, e entre eles julgou com a ajuda dos deuses, poder em breve contar [o jovem] Dionsio. Ora, se assim fosse, que vida de inimaginvel felicidade no seria a dele, Dionsio, e de todos os siracusanos! Alm disso, julgou que eu devia, de qualquer forma, voltar o mais rapidamente possvel a Siracusa para cooperar nos seus projetos; no esquecia facilmente que a nossa ligao lhe tinha inspirado uma vida bela e feliz. Se agora ele inspirasse esse mesmo desejo em Dionsio, como tentava, tinha a maior esperana de estabelecer em todo o pas, sem massacres, sem mortes, sem todos esses males que atualmente se produzem, uma vida feliz e verdadeira. Dominado por estes justos pensamentos, Dio persuadiu Dionsio a chamar-me e ele mesmo me rogou que fosse o mais depressa possvel, no importava como, antes que outras influncias se exercessem sobre Dionsio, conduzindo-o a uma existncia diferente da vida perfeita. Devo ser um pouco longo, mas eram estas as suas palavras: "Que melhor ocasio esperaramos, dizia, que aquela que atualmente nos oferece o favor divino?" Depois, descrevia-me esse imprio da Itlia e da Siclia, o poder que tinha, a juventude de Dionsio e o seu gosto muito vivo pela filosofia e pela

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cincia, seus sobrinhos e parentes, to fceis de captar para a doutrina e para a vida que eu no cessava de enaltecer, e prontos tambm eles, a influenciar Dionsio. Em suma, nunca como agora, se podia esperar realizar a unio, nos mesmos homens, da filosofia e do governo das grandes cidades. Tais eram, estas e outras, as suas exortaes. Mas eu, por um lado, no deixava de estar inquieto a respeito dos jovens, sobre o que aconteceria um dia -- porque os seus desejos so impetuosos e mudamse muitas vezes em sentido contrrio -- sabia, por outro lado, que Dio possua um carter naturalmente grave e que tinha uma idade j madura. Como eu refletisse e me interrogasse se valeria ou no a pena pr-me a caminho e ceder s solicitaes, o que, no entanto, fez pender a balana foi o pensamento de que se nunca puderam ser realizados os meus planos legislativos e polticos, seria agora o momento de experimentar: no tinha seno que persuadir suficientemente um nico homem e tudo estaria resolvido. Neste estado de esprito, aventurei-me a partir. No me impeliam os motivos que alguns imaginam, mas antes o receio de, aos meus prprios olhos, passar por fala-barato que no quer jamais deitar mos obra e de me arriscar a trair a hospitalidade e a amizade de Dio numa altura em que ele corria srios riscos. Ora, se lhe acontecesse qualquer coisa, se, expulso por Dionsio e pelos seus outros adversrios, aparecesse diante de mim e me dissesse: "Plato, sou um proscrito; e no foram os hoplitas ou os cavaleiros que me fizeram falta para me defenderem dos meus inimigos, mas sim aqueles persuasivos discursos por meio dos quais podes, bem o sei, levar os jovens ao caminho do bem e da justia e estabelecer ao mesmo tempo entre eles, em qualquer circunstncia, laos de amizade e camaradagem. Isto faltou-me por tua culpa, razo por que deixei Siracusa e me encontro aqui. Mas o meu destino no ainda a tua maior vergonha: filosofia, de que falas a todo o momento e que dizes desprezada pelos homens, como no a ters trado tanto como a mim, pois tambm ela dependia de ti? Se ns habitssemos Mgara e eu te chamasse, certamente terias corrido em meu auxlio ou ento considerar-te-ias o pior dos homens. E agora agarras-te ao pretexto da distncia, da importncia da travessia, da fadiga e acreditas que podes escapar a que no futuro te chamem fraco? Estou convencido de que ainda no chegaste a tanto." Pois bem, que poderia

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eu responder de vlido a estas palavras? Nada. Parti, portanto, por motivos justos e razoveis, tanto quanto o podem ser os motivos humanos, deixando por sua causa as minhas ocupaes habituais que estavam longe de ser medocres, para ir viver sob a alada de uma tirania que em nada parecia convir nem aos meus ensinamentos nem minha pessoa. Apresentando-me em vossa casa, saldava a minha dvida para com Zeus hospitaleiro e livrava de qualquer censura o filsofo que, em mim, teria sido difamado, se, por comodismo e timidez, me tivesse desonrado. Quando cheguei -- no necessrio que nos alonguemos mais -- apenas encontrei perturbaes volta de Dionsio: caluniava-se Dio junto do tirano. Defendi-o com todas as minhas foras, mas o meu poder era fraco e ao cabo de cerca de trs meses Dionsio acusou Dio de conspirar contra o regime tirnico, f-lo embarcar num pequeno barco e expulsou-o vergonhosamente. Depois disto, ns, os amigos de Dio, temamos ver um ou outro inculpado e punido como cmplice das intrigas de Dio. A meu respeito, corria j em Siracusa o boato de que eu tinha sido condenado morte por Dionsio, como sendo a causa de tudo quanto acontecera. No entanto, este ltimo, vendo-nos assim alarmados e receando que o medo nos conduzisse a atos mais graves, tratava-nos com benevolncia, e a mim especialmente encorajava-me, levava-me a ter confiana e pedia-me instantemente que ficasse, porque, se o deixasse, nada de bom adviria para ele, ao contrrio do que aconteceria se eu permanecesse. Eram estas as razes por que ele fingia suplicar-me com insistncia. Ora, ns sabemos at que ponto os pedidos dos tiranos se confundem com verdadeiras ordens. Assim, tomou medidas para impedir a minha partida: ordenou que me conduzissem e instalassem na Acrpole. Nenhum capito de navio me poderia trazer dali contra a vontade de Dionsio, a menos que ele desse uma ordem expressa de embarque. Mercadores ou guardas de fronteira, no existia ningum que, surpreendendo-me a tentar deixar sozinho o pas, me no tivesse mandado parar e conduzido imediatamente junto de Dionsio; a tal ponto que um novo boato se espalhava, completamente contrrio ao primeiro: Dionsio, dizia-se, havia-se ligado a Plato por uma fortssima amizade. De que se tratava, na realidade? necessrio dizer a verdade. Com o tempo, ele ia, sem dvida, afeioando-se mais a mim, medida

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que se familiarizava com os meus modos e o meu carter, mas, por outro lado, queria que eu demonstrasse mais estima por ele do que por Dio e que acreditasse ser a sua amizade muito maior que a deste ltimo. extraordinrio como ele fazia disso o seu ponto de honra. Hesitava, no entanto, em enveredar pelo caminho que lhe teria sido mais seguro, supondo que alguma vez tal fosse possvel, isto , em familiarizar-se como discpulo e auditor das minhas doutrinas filosficas: ele receava, seguindo os propsitos dos caluniadores, que isso diminusse de qualquer maneira a sua liberdade, sendo Dio o maquinador de tudo. Por meu lado, eu sujeitava-me a tudo, fiel primeira inteno que me havia trazido, no caso de que o desejo da vida filosfica viesse a seduzi-lo. Mas as suas resistncias dominaram-no. Foram estas, portanto, as vicissitudes que preencheram o primeiro perodo da minha estada na Siclia. Em seguida, parti, mas regressei uma vez mais devido aos pedidos incessantes de Dionsio. At que ponto foram razoveis e justos os meus motivos e todas as minhas aes? Mas, antes de os contar, dar-vos-ei os meus conselhos e dir-vos-ei o que se deve fazer na situao presente, deixando para mais tarde a resposta aos que me interrogam sobre quais seriam as minhas intenes ao regressar uma segunda vez, para que o acessrio da minha narrao no se torne o assunto principal. , portanto, isto o que tenho a dizer. O conselheiro de um homem doente, se esse doente segue um mau regime, no tem como primeira obrigao obrig-lo a modificar o seu gnero de vida? Se o doente quiser obedecer, nesse caso dar-lhe- novas prescries. Se recusa, acho eu que dever de um homem reto e de um verdadeiro mdico no se prestar mais a novas consultas. Aquele que se resigna, considero-o, ao contrrio, como um fraco e um curandeiro. O mesmo se passa com um estado que tenha cabea um ou vrios chefes. Se governado normalmente, bem guiado e necessita de um conselho sobre qualquer ponto til, ser razovel que se lho d. Se, pelo contrrio, se trata de estados que se afastam completamente de uma justa legislao e se recusam mesmo a segui-la, mas ordenam ao seu conselheiro poltico que ponha de lado a Constituio e nada mude, sob ameaa de pena de morte, tornando-se pelas suas instrues o servidor de vontades e caprichos, ao mostrar-lhes os caminhos mais cmodos e mais fceis, o homem que a tal se presta, considero-o eu um fraco; em contrapartida,

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aquele que a isso se recusa , para mim, um homem corajoso. So estes os meus sentimentos, e quando algum me consulta sobre um ponto importante da sua vida, seja assunto de dinheiro, seja da higiene do corpo ou da alma, se a sua conduta habitual se me afigura responder a certas exigncias, ou se, pelo menos, parece querer conformar-se com as minhas prescries nos casos que submete minha opinio, de bom grado eu me torno seu conselheiro e no me afasto dele, agindo por dever de conscincia. Mas, se ningum me pergunta nada ou se evidente que no escutaro a mnima das minhas opinies, eu no vou, por minha prpria iniciativa, oferec-las a tais pessoas, e no obrigarei ningum, nem que seja o meu prprio filho. Ao meu escravo, sim, a esse eu daria conselhos e, se ele recusasse, eu impor-los-ia. Mas a um pai ou a uma me considero mpio constrang-los, salvo em caso de loucura. Levem um gnero de vida que lhes agrade, a eles, e no a mim, que no me parece conveniente irrit-los em vo com censuras, nem tampouco lisonje-los com condescendncia, proporcionando-lhes o modo de satisfazer vontade que eu rejeitaria na minha prpria vida. So estas as disposies com que deve viver o sbio relativamente ao seu pas. No caso de lhe parecer que no bem governado que o diga, mas unicamente se est seguro de o no fazer em vo, ou de no se arriscar a morrer, mas que no use de violncia para derrubar a Constituio da sua ptria, quando no puder ser bem sucedido seno custa de exlios e massacres; ento que fique tranqilo e que implore o favor dos deuses para si e para a cidade. , portanto, deste modo que eu vos poderei aconselhar, e assim que, de acordo com Dio, eu induzia Dionsio logo do incio a viver cada dia de maneira a tornar-se cada vez mais senhor de si prprio e a conquistar partidrios e amigos fiis, para que no lhe acontecesse o mesmo que a seu pai. Este ltimo tinha conquistado na Siclia um grande nmero de cidades importantes desvastadas pelos brbaros. Mas, depois de as ter reconstrudo, no conseguiu instalar em cada uma delas um governo seguro, confiado a amigos escolhidos por ele, quer entre estrangeiros de diversas origens, quer entre os seus irmos que ele prprio havia educado, porque eram mais novos, e a quem de simples particulares, fez chefes, e, de pobres, homens prodigiosamente ricos. De nenhum deles pde tornar, apesar dos seus esforos, um associado do seu

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poder, nem pela persuaso, nem pela instruo, nem pelos seus favores ou pela afeio de famlia. Nisso mostrou-se sete vezes inferior a Dario, que, confiando em pessoas que no eram nem seus irmos, nem educados por ele, mas unicamente aliados na sua vitria sobre o eunuco medo, dividiu o seu reino em sete partes, cada uma delas maior que toda a Siclia, e encontrou neles colaboradores fiis que nem lhe criaram nenhuma dificuldades, nem as suscitaram entre si. Deu assim o exemplo do que devia ser o bom legislador e o bom rei, porque, graas s leis que proclamou, conservou at hoje o Imprio persa. Vede ainda os atenienses. Eles prprios no colonizaram as numerosas cidades gregas invadidas pelos brbaros, mas anexaram-nas j povoadas. No entanto, conservaram o poder durante setenta anos, porque em todas as cidades possuam partidrios. Mas Dionsio, que tinha reunido toda a Siclia numa s cidade, tomando como sabedoria o no se fiar em ningum, manteve-se com dificuldades, porque tinha escassos amigos e poucos partidrios fiis. Ora, nada mais significativo do vcio ou da virtude que a falta ou a abundncia de tais homens. Eram estes os conselhos que Dio e eu dvamos a Dionsio, j que a situao em que se achava por culpa de seu pai o privava tanto da sociedade que resulta da educao como daquela que as boas relaes proporcionam. Exortamo-lo a que se preocupasse, antes de tudo, em procurar junto dos parentes e companheiros da sua idade outros amigos cujo ideal comum fosse atingir a virtude, e que acima de tudo conseguissem o seu acordo para o mesmo objetivo, do que tinha extraordinria necessidade. No falvamos, bem entendido, to abertamente -- isso teria sido perigoso --, mas, por meias palavras, insistamos em que era esse o meio de todo o homem se proteger a si e aqueles a quem governava, e que agir de outro modo seria chegar a resultados completamente opostos. Se, enveredando pelo caminho que lhe indicvamos, tornando-se sensato e prudente, ele reconstrusse as cidades devastadas na Siclia, as interligasse por meio de leis e constituies que solidificassem a sua unio mtua e os seus pactos com ele, visando defesa contra os brbaros, Dionsio no duplicaria apenas o reino de seu pai, mas na verdade o multiplicaria. Ficaria ento muito mais apto a submeter os cartagineses do que o havia ficado Glon, enquanto o seu pai, pelo contrrio, se tinha visto obrigado, no seu tempo, a pagar um tributo aos brbaros. Tais eram as nossas conversas e conselhos

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que lhe dvamos ns, que conspirvamos, contra ele, como se insinuava de diversos lados -- rumores esses em que Dionsio acreditou, que fizeram exilar Dio e me causaram a mim um enorme receio. Mas, para acabar a narrativa dos muitos acontecimentos que se desenrolaram em to pouco tempo, Dio voltou de Atenas e do Peloponeso e deu na verdade uma lio a Dionsio. Quando, por duas vezes, Dio libertou a cidade e a restituiu aos siracusanos, estes recompensaram-no como o havia feito Dionsio quando, educando-o e preparando-o como um rei digno do poder, se esforava por estabelecer entre si uma total familiaridade de existncia. No entanto, Dionsio preferia ainda a familiaridade dos caluniadores que acusavam Dio de aspirar tirania e de culminar com este fim todos os seus empreendimentos de ento. Esperava-se, dizia-se, que Dionsio, deixando-se prender pelos encantos do estudo, se desinteressasse do governo e lhe confiasse, de tal modo que ele o aambarcaria por astcia, expulsando desta maneira Dionsio. Na poca, estas calnias triunfaram, como triunfaram quando espalhadas uma segunda vez em Siracusa: vitria de resto, absurda e vergonhosa para os que eram seus autores. Que aconteceu ento? necessrio que o saibam aqueles que reclamam o meu auxlio nas dificuldades atuais. Eu, ateniense, amigo e aliado de Dio, dirijo-me ao tirano com o propsito de fazer ceder a discrdia perante a amizade. Mas nada consegui a minha luta contra os caluniadores. Quando Dionsio, usando honras e riquezas, me quis atrair e fazer de mim uma testemunha e um amigo pronto a justificar o exlio de Dio, todos os seus esforos fracassaram. Mais tarde, regressando ptria, Dio levou consigo de Atenas dois irmos, aos quais o ligava uma amizade que no tinha nascido da filosofia, mas sim da vulgar camaradagem que as relaes de hospitalidade ou os laos que unem os iniciados dos diferentes mistrios que fazem nascer. Tais foram, portanto, os seus companheiros de regresso, ligados a ele pelos motivos indicados e ainda pela ajuda que lhe prestaram na viagem. Assim chegaram Siclia. Ali, apercebendo-se de que Dio era suspeito de cobiar a tirania junto destes mesmos sicilianos que ele havia libertado, no contentes de trarem o seu amigo e anfitrio, tornaram-se os seus prprios carrascos, correndo, de armas na mo, a ajudar os assassinos. No escondo esta ao vergonhosa e sacrlega, mas tambm no quero tornar a cont-la,

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porque muitos outros se encarregam ou se ho de encarregar ainda de contar tais acontecimentos! Mas, quando, falando dos atenienses, se diz que aqueles dois homens desonraram a nossa cidade e lhe infligiram a marca da infmia, essa uma acusao que eu rejeito! tambm um ateniense, proclamo-o, aquele homem que, tendo ao alcance fortuna e honras, no traiu Dio. Com efeito, no era uma amizade vulgar a que os unia, mas, sim, uma comum educao liberal; unicamente nela deve confiar o homem sensato, muito mais do que em afinidades de corpo e alma. Portanto, no justo que aqueles dois homens, autores da morte de Dio, tenham sido para Atenas motivo de afronta, como se nunca tivessem existido dois homens fazendo uma ao escandalosa! Disse tudo isto, para que sirva de advertncia aos parentes e amigos de Dio. Pela terceira vez repito o mesmo conselho para vs, os terceiros. Que a Siclia no seja mais que qualquer outra cidade, subjugada por dspotas, mas por leis. Porque isso nem bom para os que escravizam nem para os que so escravizados, para eles, ou para os filhos, ou para os filhos dos seus filhos. mesmo uma empresa absolutamente nefasta. S os caracteres mesquinhos e servis gostam de se lanar sobre tais lucros, s aqueles que ignoram tudo que de divino e humano justo e bom para o futuro e para as circunstncias atuais. Assim, tomei a meu cargo convencer Dio em primeiro lugar, depois Dionsio e agora vs. Escutem-me, pelo amor de Zeus, terceiro Salvador. Vede Dionisio e Dio: o primeiro no me acreditou e vive ainda mais miseravelmente; o segundo, que seguiu os meus conselhos, morreu, mas morreu com honra, porque aquele que aspira ao bem supremo, para si e para a cidade, por mais que sofra, nada lhe pode acontecer que no seja justo e belo. Nenhum de ns imortal por natureza e o que viesse a s-lo no seria feliz, ao contrrio do que imagina muita gente. Com efeito, o autntico bem e o autntico moral no existem no que no tem alma, mas unicamente na alma separada ou unida ao corpo. preciso acreditar verdadeiramente em to antigas e venerandas tradies, que nos revelam a imortalidade da alma, a existncia de julgamentos e penas terrveis que se ho de sofrer quando a alma se libertar do corpo. esta a razo por que devemos considerar menor mal o fato de sermos ns as vtimas de grandes crimes ou de grande