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301 Cap. 27 Distœrbios da origem, ou da conduçªo dos potenciais de açªo cardíacos, sªo freqüentes e devidos a causas variadas. As arritmias causa- das por estes distœrbios podem ser sintomÆticas ou nªo. Nos dois casos hÆ a possibilidade preo- cupante dos batimentos irregulares virem a de- senvolver uma insuficiŒncia cardíaca, ou de haver uma progressªo para arritmias mais sØrias, com morte sœbita. A cardioversªo produzida com cho- ques elØtricos DC aplicados no precórdio e a abla- çªo de focos ectópicos por radiofreqüŒncia aplicada durante cateterismo cardíaco sªo os mØtodos físicos utilizados no tratamento de arrit- mias, sempre que necessÆrio, no primeiro caso, ou quando possível, no segundo. O tratamento farmacológico das disritmias cardíacas recorren- tes usa medicamentos de vÆrias classes terapŒu- ticas: bloqueadores de canais de sódio, bloqueadores de receptores β1-adrenØrgicos, blo- queadores de canais de potÆssio e bloqueadores de canais de cÆlcio, alØm de estimulantes vagais, como a digoxina, e ativadores de canais de po- tÆssio sensíveis à acetilcolina, como a adenosi- na. É intuitivo depreender que drogas capazes de interferir com a origem e a propagaçªo do estímulo elØtrico cardíaco sªo tambØm potenci- almente tóxicas. De fato, a experiŒncia terapŒu- tica mostrou que todas as drogas utilizadas para corrigir anomalias do impulso cardíaco tŒm efi- Antiarrítmicos cÆcia limitada e sªo arritmogŒnicas, isto Ø, in- terferem diretamente com a excitabilidade car- díaca, podendo originar arritmias tªo preocupantes quanto aquelas a serem tratadas. Apesar do mecanismo de açªo da maioria dos antiarrítmicos ter sólida explicaçªo experimen- tal, o mais das vezes, frente à variaçªo dos qua- dros clínicos humanos, a terapia antiarrítmica Ø empírica. Por outro lado, evidŒncias obtidas de testes clínicos específicos mostraram que o tra- tamento com antiarrítmicos aumenta a letalida- de em pacientes assintomÆticos com arritmia pós-infarte. Por esta razªo, o uso de uma droga antiarrítmica deve ser bem documentado e limi- tado às taquiarritmias supraventriculares sinto- mÆticas e às arritmias ventriculares com risco de vida. De acordo com o mecanismo de açªo mole- cular, as drogas antiarrítmicas sªo divididas nas quatro classes terapŒuticas jÆ mencionadas: Classe I compostos com a característica farmacológica comum de bloquear canais de sódio (anestØsicos locais) e inibir a excitabilida- de cardíaca. Estes medicamentos sªo subdividi- dos em trŒs subgrupos com efeitos diferentes no potencial de açªo das fibras de Purkinje: as dro- gas da subclasse IA, representadas pela quinidi- na, procainamida e diisopiramida, diminuem a Antonio JosØ Lapa

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Distúrbios da origem, ou da condução dospotenciais de ação cardíacos, são freqüentes edevidos a causas variadas. As arritmias causa-das por estes distúrbios podem ser sintomáticasou não. Nos dois casos há a possibilidade preo-cupante dos batimentos irregulares virem a de-senvolver uma insuficiência cardíaca, ou de haveruma progressão para arritmias mais sérias, commorte súbita. A cardioversão produzida com cho-ques elétricos DC aplicados no precórdio e a abla-ção de focos ectópicos por radiofreqüênciaaplicada durante cateterismo cardíaco são osmétodos físicos utilizados no tratamento de arrit-mias, sempre que necessário, no primeiro caso,ou quando possível, no segundo. O tratamentofarmacológico das disritmias cardíacas recorren-tes usa medicamentos de várias classes terapêu-ticas: bloqueadores de canais de sódio,bloqueadores de receptores β1-adrenérgicos, blo-queadores de canais de potássio e bloqueadoresde canais de cálcio, além de estimulantes vagais,como a digoxina, e ativadores de canais de po-tássio sensíveis à acetilcolina, como a adenosi-na. É intuitivo depreender que drogas capazesde interferir com a origem e a propagação doestímulo elétrico cardíaco são também potenci-almente tóxicas. De fato, a experiência terapêu-tica mostrou que todas as drogas utilizadas paracorrigir anomalias do impulso cardíaco têm efi-

Antiarrítmicos

cácia limitada e são arritmogênicas, isto é, in-terferem diretamente com a excitabilidade car-díaca, podendo originar arritmias tãopreocupantes quanto aquelas a serem tratadas.Apesar do mecanismo de ação da maioria dosantiarrítmicos ter sólida explicação experimen-tal, o mais das vezes, frente à variação dos qua-dros clínicos humanos, a terapia antiarrítmica éempírica. Por outro lado, evidências obtidas detestes clínicos específicos mostraram que o tra-tamento com antiarrítmicos aumenta a letalida-de em pacientes assintomáticos com arritmiapós-infarte. Por esta razão, o uso de uma drogaantiarrítmica deve ser bem documentado e limi-tado às taquiarritmias supraventriculares sinto-máticas e às arritmias ventriculares com riscode vida.

De acordo com o mecanismo de ação mole-cular, as drogas antiarrítmicas são divididas nasquatro classes terapêuticas já mencionadas:

Classe I � compostos com a característicafarmacológica comum de bloquear canais desódio (anestésicos locais) e inibir a excitabilida-de cardíaca. Estes medicamentos são subdividi-dos em três subgrupos com efeitos diferentes nopotencial de ação das fibras de Purkinje: as dro-gas da subclasse IA, representadas pela quinidi-na, procainamida e diisopiramida, diminuem a

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VOL. 1 � BASES MOLECULARES DA BIOLOGIA, DA GENÉTICA E DA FARMACOLOGIA

velocidade de propagação e também aumentamo período refratário efetivo da fibra cardíaca. Oscompostos da Subclasse IB, representados pelalidocaína e fenitoína, reduzem a excitabilidade car-díaca, mas diminuem o período refratário do po-tencial de ação. Os da Subclasse IC representadospela flecainida e encainida são compostos seme-lhantes, porém mais potentes, que inibem a exci-tabilidade e prolongam o período refratário.

Classe II � Agentes β-bloqueadores comoo propranolol, metoprolol, atenolol, sotalol e ou-tros, que, inibindo as influências da estimulaçãosimpática, diminuem o automatismo e a veloci-dade de propagação atrioventricular.

Classe III � Drogas que bloqueiam os ca-nais de potássio ativados durante a repolariza-ção do potencial de ação, como a amiodarona eo sotalol, que prolongam o período refratário ediminuem o automatismo da fibra cardíaca.

Classe IV � Bloqueadores de canais de cál-cio, como o verapamil, o diltiazen e outros, quediminuem o automatismo e a condução atrio-ventricular.

Os compostos das classes I, III e IV bloque-iam diretamente os canais iônicos de sódio, po-tássio e cálcio, inibindo a excitabilidade,aumentando o período refratário e reduzindo oautomatismo do miocárdio, respectivamente. Oscompostos da classe II (bloqueadores β) foramapresentados no capítulo correspondente. A açãodesses medicamentos é explicada por bloqueiodos receptores β1-adrenérgicos acoplados, viaproteína Gs, à produção de AMPc. Os medica-mentos antiarrítmicos das classes II e V tambémtêm o mecanismo de ação molecular explicadoexperimentalmente. Os alvos da interação des-ses antiarrítmicos são os canais iônicos, proteí-nas integrais da membrana celular com váriosdomínios transmembranas ligados através decadeias de aminoácidos extra e intracelulares. Nasua distribuição alostérica, as cadeias protéicasdo canal delimitam um poro cuja abertura é con-trolada pela disposição das proteínas transmem-brana. Como estas são moléculas carregadaseletricamente, os canais iônicos adquirem con-formação diferente conforme o campo elétricoque se estabelece dos dois lados da membrana.Na célula em repouso, com potencial de mem-brana ao redor daquele estabelecido pelo equilí-brio eletroquímico do potássio, a disposição dasproteínas é tal que a maioria dos poros está fe-

chada. Os canais de sódio e os canais de cálciotipo L têm a característica comum de serem ati-vados e inativados por voltagem, isto é, uma vezdespolarizada a membrana celular a valores li-miares ou de ativação, as proteínas que consti-tuem os canais sofrem uma mudança na suaconformação alostérica, abrindo-se à passagemdos íons a favor do gradiente de concentração edo gradiente elétrico, isto é, para o interior dacélula (canais ativados ou abertos). Com a des-polarização superposta na célula pelo influxo des-sas cargas positivas, os canais sofrem novadisposição espacial, fechando a passagem dosíons apesar da membrana continuar despolari-zada (canais inativados). Algumas diferençasentre os canais de sódio e cálcio tipo L merecematenção: 1) Os potenciais de ativação dos canaissão diferentes. Os canais de sódio são ativadosem potenciais de repouso (-85 a -95 mV) e ina-tivados em sua quase totalidade de �75 a -55mV. Os canais de cálcio do tipo L são ativadosem potenciais de membrana mais despolariza-dos, de -60 mV a -50 mV, sendo inativados empotenciais positivos, isto é, já durante o platô dopotencial de ação. 2) Como o gradiente de só-dio transmembrana (~135 mM) é bem maior queo de cálcio (~5 mM), a velocidade de influxo deíons sódio, uma vez abertos os canais, é muitomaior que a do cálcio. As correntes que se insta-lam são, portanto, rápidas para o sódio e lentaspara o cálcio. 3) A reorganização dos canais desódio de volta à sua conformação de repouso édependente do tempo para restabelecimento dopotencial de membrana, enquanto os canais decálcio são mais influenciados pelo tempo umavez que se abrem em potenciais de membranadespolarizados. Assim, células com maior fre-qüência de potenciais de ação, ou células quesofreram um processo de anóxia e despolariza-ram, apresentam maior número de canais desódio abertos ou inativados. A utilidade terapêu-tica das drogas antiarrítmicas está baseada naelevada afinidade que apresentam para canais ati-vados ou inativados e relativamente pequena afi-nidade para canais em repouso. Assim, aautomaticidade de focos ectópicos é suprimidamais do que a ritmicidade dos marca-passos, e aexcitabilidade e a velocidade de condução nascélulas despolarizadas são mais inibidas que nascélulas normais. Este efeito, conhecido comobloqueio dependente do uso, ou da ativação, oudo estado de transição do canal, não é o mesmo

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para todos os agentes conhecidos. A lidocaína,por exemplo, tem alta afinidade para canais ati-vos e inativados; a amiodarona tem alta afinida-de para canais inativados e a quinidina afinidadepor canais ativados. Além disso, é importanteconsiderar no mecanismo de ação moleculardestes compostos, a velocidade de dissociaçãoda droga do seu sítio de interação no canal. Demodo geral, porque a velocidade de recupera-ção é inversa ao grau de despolarização da célu-la, a reversão do bloqueio do canal é muito rápida(0,1 a 0,4s) com os compostos do grupo IB,intermediária (1,8 a 3s) com os compostos dogrupo IA e III, mas muito prolongada (>10s)para as drogas do grupo IC. Finalmente, a con-siderar na seleção de um antiarrítmico, são asinterações com outros canais, com receptoresautonômicos ou enzimas. O aumento do perío-do refratário produzido pelos compostos do gru-po IA é explicado por bloqueio simultâneo doscanais de potássio e prolongamento do tempode repolarização celular, efeito este talvez maisimportante que a inibição dos canais de sódiona prevenção dos ritmos de reentrada. Atividadeinversa teriam os compostos do grupo III, prio-ritariamente bloqueadores de canais de potássiocom ação também em canais de sódio. A consi-derar nos efeitos colaterais seriam os efeitos pro-duzidos por bloqueio de receptores muscarínicos(quinidina), receptores adrenérgicos (quinidinae amiodarona) e efeitos indesejáveis não relaci-

onados diretamente aos efeitos cardíacos, comoa hipersensibilidade induzida pela quinidina, oquadro de lúpus induzido pela procainamida, asações no SNC produzidas pela lidocaína, a toxi-cidade pulmonar e múltiplos outros efeitos pro-duzidos pela amiodarona. Conclui-se dessasconsiderações que o fato de drogas de um mes-mo grupo de antiarrítmicos terem mecanismosmoleculares e efeitos eletrofisiológicos seme-lhantes, não é garantia da mesma ação clínicae indicação terapêutica. A seleção deverá sem-pre ser indicada pelo quadro clínico e pelocomprometimento cardíaco, considerando-seas características farmacocinéticas da droga e apossibilidade de interação com outros medica-mentos, inclusive outros antiarrítmicos, que pre-cipitem uma arritmia fatal.

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