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ANTÍGONA E A ÉTICA I. A TRAGÉDIA “Após a morte de Édipo em Colono, Antígona retornou com Ismene a Tebas, onde seus irmãos Etéocles e Polinices disputavam a sucessão do pai no trono da cidade. Os dois haviam chegado a um acordo segundo o qual se revezariam por períodos de um ano, a começar por Etéocles. Este, porém, transcorrido o primeiro período combinado, não quis ceder o lugar a Polinices, que se retirou dominado pelo rancor para a cidade de Argos – rival de Tebas; lá, após casar-se com a filha do rei Adrasto (Àdrastos), pleiteou e obteve apoio deste à sua idéia de obrigar Etéocles, pela força das armas, a entregar-lhe o trono de conformidade com o pactuado. Adrasto pôs à disposição de Polinices um forte exército. Etéocles, conhecendo os preparativos do irmão, aprontou a cidade para enfrentar os inimigos e incumbiu sete chefes tebanos de defender as sete portas da cidade em oposição aos sete chefes argivos, reservando para si mesmo o encargo de enfrentar Polinices. Após renhida luta os sete chefes tebanos e os outros tantos argivos entremataram-se; Etéocles e Polinices tombaram mortos um pela mão do outro. Creonte, irmão de Jocasta e tio de Antígona, assumiu então o poder, e seu primeiro ato após subir ao trono foi proibir o sepultamento de Polinices, sob pena de morte para quem o tentasse, enquanto ordenava funerais para Etéocles, morto em defesa da cidade pelo irmão que o atacava. A peça inicia-se ao amanhecer do dia seguinte à noite em que os invasores argivos haviam sido finalmente derrotados”. 1

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ANTÍGONA E A ÉTICA

I. A TRAGÉDIA

“Após a morte de Édipo em Colono, Antígona retornou com Ismene a Tebas, onde seus irmãos Etéocles e Polinices disputavam a sucessão do pai no trono da cidade. Os dois haviam chegado a um acordo segundo o qual se revezariam por períodos de um ano, a começar por Etéocles. Este, porém, transcorrido o primeiro período combinado, não quis ceder o lugar a Polinices, que se retirou dominado pelo rancor para a cidade de Argos – rival de Tebas; lá, após casar-se com a filha do rei Adrasto (Àdrastos), pleiteou e obteve apoio deste à sua idéia de obrigar Etéocles, pela força das armas, a entregar-lhe o trono de conformidade com o pactuado. Adrasto pôs à disposição de Polinices um forte exército. Etéocles, conhecendo os preparativos do irmão, aprontou a cidade para enfrentar os inimigos e incumbiu sete chefes tebanos de defender as sete portas da cidade em oposição aos sete chefes argivos, reservando para si mesmo o encargo de enfrentar Polinices. Após renhida luta os sete chefes tebanos e os outros tantos argivos entremataram-se; Etéocles e Polinices tombaram mortos um pela mão do outro. Creonte, irmão de Jocasta e tio de Antígona, assumiu então o poder, e seu primeiro ato após subir ao trono foi proibir o sepultamento de Polinices, sob pena de morte para quem o tentasse, enquanto ordenava funerais para Etéocles, morto em defesa da cidade pelo irmão que o atacava.

A peça inicia-se ao amanhecer do dia seguinte à noite em que os invasores argivos haviam sido finalmente derrotados”.

Antígona toma, então, uma resolução: apesar do edito proibitório de Creonte, resolve, embora sabendo que vai morrer, dar sepultura a seu irmão Polinices. Ela procura o apoio de sua Irmã Ismene:

“Antígona – Pois não manda Creonte dar à sepultura um de nossos dois irmãos, negando-a a outro? A Etéocles, sim, segundo ordena o rito, fez cobrir de terra a fim de ter repouso e honra entre os que estão no mundo subterrâneo. Quanto a Polinices, pobre morto, nem sepultura, nem sequer lamentações: ficará seu corpo ao sol apodrecendo, insepulto, até que as aves nele encontrem um tesouro doce para sua fome. É o que a nós ordena o nobre Creonte: sim, a nós duas, vês? Até a mim também! E, o que é mais, vai vir a proclamar aqui, ele mesmo, o edito: e é tão sério, que a pena implacavelmente imposta ao transgressor é a lapidação em plena praça

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pública. Eis o que há: se és digna, prova sem demora não ter sangue nobre em coração ignóbil”

Ismene, porém, perplexa, não tem a coragem de se unir a Antígona no seu intento. Em resposta a ela, Antígona diz:

“Nada mais te peço; e mesmo que quisesse ajudar-me, um dia, eu não o aceitaria. Faze o que quiseres! Eu o enterrarei sem ninguém. Será belo morrer por isso: repousar, amada, ao dado de quem amo, por tão santo crime. E se é mais longo o tempo em que hei de agradar aos mortos, do que aos vivos, lá descansarei...”

Surpreendida pelos guardas, que vigiavam o cadáver insepulto de Polinices, Antígona é presa e levada à presença de Creonte. Segue-se, então, o diálogo entre Creonte e Antígona:

“Creonte – Dize, tu que aí estás, tu, de cabeça baixa: negas ou confessas teres feito aquilo?

Antígona – Eu confesso tudo; nada negarei.

Creonte – E tu, dize logo, sem quaisquer rodeios: conhecias a ordem que vedava aquilo?

Antígona – Sim. Como ignorá-la? Era público o edito.

Creonte – Não obstante, ousaste infringir minha lei?

Antígona – Porque não foi Zeus quem a ditou, nem foi a que vive com os deuses subterrâneos – a Justiça – que aos homens deu tais normas. Nem nas tuas ordens reconheço força que a um mortal permita violar as leis não escritas e intangíveis dos deuses. Estas não são de hoje, ou de ontem: são de sempre; ninguém sabe quando foram promulgadas. A elas não há quem por temor, me fizesse transgredir, e então prestar contas aos Numes”

Num certo momento, Creonte acusa Antígona de ousadia, arrogância, desrespeito:

Creonte – Sim, mas não te esqueças de que os mais tenazes são às vezes os primeiros a ceder. O mais duro ferro temperado ao fogo é o que mais depressa estala e se estilhaça. Sei de débeis freios que domaram, prontos, indomáveis potros. Não é permitido ser soberbo assim a quem depende de outrem. Ela já mostrou toda a sua insolência ao violar a lei previamente estatuída; e a essa vem juntar agora outra arrogância: a de se gabar e exultar do que fez. Homem seria ela e não eu, neste instante, se ousadia tal permanecesse impune. Seja, embora, filha de uma irmã, ou seja a que o lar

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a mim mais próxima ligou, nem por isso as duas, ela e a irmã, escapam à mais vil das mortes.”

Antígona, porém, não retrocede:

Antígona – Presa, que mais queres tu que a minha morte?

Creonte – Nada mais. Tendo isso, tenho o que desejo.

Antígona – O que esperas, pois? Não há palavra tua que me agrade ou possa vir a agradar-me: como tudo o que eu disser te desagrada. Que mais nobre glória poderia eu ter que a de dar à terra o corpo de um irmão? Esses, que aí estão, todos me aplaudiriam, se não lhes travasse a língua a covardia. Esta, entre outras, é a vantagem dos tiranos: dizer e fazer tudo o que bem entendem.

Creonte – E o outro, que o matou, não era teu irmão?

Antígona – Sim, de um mesmo pai e de uma mesma mãe.

Creonte – Por que o ofendes pois, honrando ao outro impiamente?

Antígona – Não é o que diria o que está sepultado.

Creonte – Sim, se ao ímpio rendes honra igual à dele.

Antígona – Não era um escravo: era igual, era irmão.

Creonte – Vinha contra a terra que o outro defendia.

Antígona – Pouco importa:: a lei da morte iguala a todos.

Creonte – Mas não diz que o mau tenha o prêmio do justo.

Antígona – Não será talvez piedade isso entre os mortos?

Creonte – Mesmo morto, nunca é amigo um inimigo.

Antígona – Não nasci para o ódio: apenas para o amor.

Creonte – Se amar é o que queres, vai amar os mortos! Enquanto eu viver, mulheres não governam”.

Em meio ao diálogo entre Creonte e Antígona, apresenta-se Ismene, tentando incriminar-se a si mesma como cúmplice, para morrer com Antígona... Antígona reluta em aceitar o sacrifício da irmã:

“A tua escolha foi a vida; a minha, a morte”.

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Em todo o caso, Creonte manda os guardas levarem ambas para a prisão. Entra em cena, então, o filho de Creonte, Hêmon, que também era noivo de Antígona. Hêmon recorda a seu pai que os deuses implantaram no homem a razão, o maior bem de todos. Adverte-lhe que outros também podem ter boas idéias. E traz a opinião da população da cidade, que não chega até Creonte, por medo que os cidadãos têm de expressar o que pensam diante do tirano.

“Eu, porém, na sombra, ouço o murmúrio, escuto as queixas da cidade por causa dessa moça: ‘nenhuma mulher’, comentam, ‘mereceu jamais menos que ela essa condenação’ – nenhuma, em tempo algum, terá por feitos tão gloriosos quanto os dela sofrido morte mais ignóbil...”

Hêmon tenta, ainda, chamar à razão o seu pai, conclamando-o a deixar a sua presunção e a voltar atrás na sua decisão de condenar Antígona à morte. Creonte, no entanto, despreza a fala de Hêmon, por julgá-lo jovem e insensato. Hêmon, por sua vez, adverte seu pai para olhar não para a sua jovem idade, mas a dar ouvidos à razão e a considerar os seus atos. Creonte sente a crítica de Hêmon como uma intromissão no seu governo, que ele detém como um tirano, um ditador.

“Creonte – Dita a cidade as ordens que me cabe dar?

“Hêmon – falaste como se fosses jovem demais!

Creonte – Devo mandar em Tebas com a vontade alheia?

Hêmon – Não há cidade que pertença a um homem só.

Creonte – Não devem as cidades ser de quem as rege?

Hêmon – Só, mandarias bem apenas num deserto”

Creonte, porém, não dá ouvidos a Hêmon, acusando-o de ser um “escravo de mulher”. Hêmon ameaça, então, morrer junto com Antígona. Mas Creonte não dá peso à sua palavra. Manda, então, poupar Ismene e condena à morte Antígona. Manda que ela fosse sepultada viva numa caverna pedregosa, para não derramar o seu sangue em sacrilégio sobre a cidade de Tebas.

Aparece, então, Antígona, sendo levada, viva, a caminho de sua sepultura. Ela lamenta sua morte prematura e se compara a Níobe, a deusa frigia, que tendo se gloriado da beleza e do número de seus filhos e se considerado superior a Leto, a mão de Apolo e Ártemis, teve os seus filhos quase todos mortos e, de tanta dor, fora petrificada. O coro, no entanto, recorda a Antígona que ela não era nenhuma deusa, mas apenas uma mortal:

“Ela era deusa, nascida de deuses, e nós, mortais, nascidos de mortais...”

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E recorda que o seu sofrimento cumpre o destino de seu pai, Édipo:

“Tu te lançastes aos últimos extremos de atrevimento e te precipitaste de encontro ao trono onde a justiça excelsa tem sede; pode ser que na presente provação expies pecados cometidos por teu pai”.

Antígona, então, vê-se cumprindo esse mesmo destino:

“Trouxeste-me à memória o mais pungente dos fatos – o destino de meu pai, três vezes manifesto, o de nós todos, labdácidas famosos. Ah! Horrores do tálamo materno! Ah! Teus abraços incestuosos, minha mãe, com o pai de quem nasci! Como sou infeliz! E para eles vou assim, maldita, sem ter chegado às bodas! Meu irmão infortunado! Que união a nossa! Transformas-me, morrendo, em morta viva!”

Em breve, Antígona é levada para morrer pelos guardas. Entrementes, chega o profeta Tirésias, que mostra a Creonte a fuga dos deuses da cidade de Tebas e o incita a remediar o seu erro, voltando atrás na sua sentença.

“... E é por tua causa, por tuas decisões, que está enferma Tebas. Nossos altares todos e o fogo sagrado estão poluídos por carniça do cadáver do desditoso filho de Édipo, espalhada pelas aves e pelos cães; por isso os deuses já não escutam nossas preces nem aceitam os nossos sacrifícios (...). Pensa, então, em tudo isso, filho. Os homens todos erram mas quem comete um erro não é insensato, nem sofre pelo mal que fez, se o remedia em vez de preferir mostrar-se inabalável; de fato, a intransigência leva à estupidez”.

Creonte, porém, se endurece ainda mais na sua intransigência e arrogância. E Tirésias prenuncia-lhe desgraças em sua família:

“Então fica sabendo, e bem, que não verás o rápido carro do sol dar muitas voltas antes de ofereceres um parente morto como resgate certo de mais gente morta, pois tu lançaste às profundezas um ser vivo e ignobilmente o sepultaste, enquanto aqui reténs um morto sem exéquias, insepulto, negado aos deuses ínferos. Não tens nem tu, nem mesmo os deuses das alturas, tal direito; isso é violência tua ousada contra os céus!”

E adverte-lhe que as Fúrias estão prontas para a vingança. Tirésias se retira e Creonte se põe a refletir. Decide voltar atrás e mandar salvar Antígona:

“Agora penso que é melhor chegar ao fim da vida obedecendo às leis inabaláveis”.

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Mas já era tarde. Creonte vai até a caverna. Lá já estava Hêmon, que lamenta a morte de Antígona, que havia se suicidado. Hêmon luta, então, com Creonte. Não conseguindo atingir o pai, mata-se também a si mesmo. Por sua vez, quando a esposa de Creonte, Eurídice, fica sabendo da morte do filho, ela também se mata, apunhalando-se o fígado. Creonte deseja a morte, mas não é capaz de dá-la a si mesmo. Ele se retira, então, de seu palácio, mergulhando nas sombras.

O coro, então, conclui:

“Destaca-se a prudência sobremodo como a primeira condição para a felicidade. Não se deve ofender os deuses em nada. A desmedida empáfia nas palavras reverte em desmedidos golpes contra os soberbos que, já na velhice, aprendem afinal prudência”.

II. O ETHOS DO HERÓI TRÁGICO EM GERAL

Aristóteles disse que a arte (téchne) imita a natureza (physis). Nós podemos dizer, livremente: a arte, de um modo especial a arte do teatro e, de modo ainda mais especial a arte trágica, torna visível a vida (Bios), o seu acontecer (Práxis), não meramente reproduzindo-lhe a realidade (fato), mas evidenciando-a como possibilidade (poder-ser).

Ora, à dinâmica que preside à gênese das possibilidades da vida (Bios), os gregos chamavam de Physis (Natureza). A Natureza é, para eles, o fundo, melhor, o abismo, a partir do qual a vida humana se ergue, se configura, criando para si mesmo um mundo. O mundo o homem cria a partir da arte (téchne), ou seja, a partir da sua inventividade (do seu saber produzir). Tudo aquilo que ele produz a partir dessa inventividade é chamado de cultura. Para os gregos, a vida humana se constituiria a partir da oposição entre natureza e arte, natureza e cultura. A arte se contrapõe à natureza, entretanto, não para destruí-la, mas para, decerto, fazê-la vir à luz, através da obra. A natureza, com todo o seu vigor, tem necessidade da fraqueza da arte, para poder vir à luz, vir à linguagem, como obra da inventividade humana. A arte é tradução e ressonância da natureza.

A tragédia é uma obra de arte que traz à luz a própria oposição, a tensão dos contrários, de natureza e arte, natureza e cultura, tensão essa que Heráclito disse ser a mais bela harmonia. Na tragédia grega, a natureza do povo grego, marcada pelo “ardor celeste” e pelo “sentimento do sagrado”, encontra a “clareza da apresentação” e a “sobriedade do limite” (Hölderlin). A tragédia grega é uma composição de rigor e ternura.

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Na tragédia, o que vem à fala, através do poeta, é o sentimento do Todo. A ode trágica traz à luz conjunção de indivíduo e universo: o universo incidindo na biografia do indivíduo como destino e o indivíduo atuando criativamente na dinâmica do universo através da liberdade.

A tragédia é, portanto, a composição de duas teses opostas: tudo é como tem de ser (destino); e tudo é como o homem decide que vai ser (liberdade). Essas Duas teses são, na verdade, como a apresentação de um tom e do seu harmônico. Ambos ressoam conjuntamente, numa tensão que é oposição e união, harmônica dissonância, como numa contenda amorosa.

Nas palavras de Heráclito:

“O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia” (frag. 8).

A tragédia recorda: Tudo é Um. Necessidade e liberdade são o mesmo. Existe uma misteriosa intimidade entre ambas. Trata-se de uma intimidade que nos escapa, que a custo conseguimos intuir, e só bem pouco conseguimos sondar. A tragédia é a revelação dessa intimidade. Ela traz à tona esse mistério. De novo, dando a palavra a Heráclito:

“A harmonia invisível é mais forte do que a visível” (frag. 54)

Na tragédia, o que revela essa intimidade, essa harmonia invisível, é o tempo. O tempo se consuma como história. A consumação desse tempo, o ápice dessa história, é o sacrifício do herói. No perecer do herói aparece o devir do Todo, como conjunção de liberdade e destino.

O herói trágico é o homem que aprende a aceitar, acolher, amar a finitude, que marca sua condição de mortal.

A tragédia recorda ao homem o que se explicitou nas palavras de Heráclito:

“De todas as coisas a guerra é o pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres” (frag. 53).

O herói trágico é o homem que se coloca no seu lugar, que instala a sua morada na finitude. A dor e o amor o fazem descer das alturas de sua presunção (hybris) e instalar a sua morada (ethos) na terra dos mortais.

A guinada ética da vida do herói trágico consiste nisso: “cair na real”, retornar à Terra, entrar na própria finitude, assumir a condição de mortal. Essa queda é elevação verdadeira. Quando o homem se distancia do divino, o divino dele se aproxima. A união entre o humano e o divino se dá pela separação e não pela confusão. Quando o

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homem se arroga o poder de ser divino, ele excede os limites da vida e se condena ao infortúnio.

Por isso diz Heráclito:

“É a presunção que deve ser apagada, mais do que incêndio” (frag. 43)

Quando o homem assume e ama a sua condição de ser mortal, ele passa a ser próximo ao divino, pois:

“A morada do homem não tem controle, a divina tem” (frag. 78).

III. O ETHOS DA ANTÍGONA

O conflito entre Creonte e Antígona apresenta-se como a tensão grega entre natureza e cultura, melhor, entre a lei não-escrita dos deuses e a lei promulgada pelos homens na cidade.

Antígona apresenta-se a si mesma como representante do ethos e do direito, que vigora desde sempre, na natureza, na dinâmica da vida, do nascer, crescer e consumar do ser.

Creonte apresenta-se a si mesmo como representante do ethos e do direito, que vigora historicamente na cultura, na dinâmica de convivência entre os seres humanos na comunidade e na sociedade, ou seja, na cidade (Pólis).

A auto-compreensão que ambos têm de si mesmos, porém, arrisca-se a ser presunçosa, pois, não guarda a medida justa da mortalidade, da finitude. É por isso que ambos se arruínam. Ambos têm razão, a partir de seu lugar e ponto de vista. Ambos estão enganados, a partir daquela totalidade, que assume e supera a oposição de natureza e cultura, a totalidade da Vida, que é totalidade em devir: tempo, destino.

Antígona mostra que o ethos do homem, a sua morada, se encontra na estranheza do seu próprio mundo, do que lhe é mais familiar.

“ethos anthropou daimon”

“a morada do homem: o extraordinário”

O extraordinário é, aqui, não somente o fascinante e maravilhoso, mas também o estranho e inquietante. É o divino, como Mysterium Tremens e Mysterium Fascinans. O numinoso, que é o destino.

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Num dos momentos em que o coro se pronuncia na Antígona, vem à tona esse modo como o homem instala a sua morada na Terra, em meio ao vigor imponente da Natureza, como ele ultrapassa a Natureza e a si mesmo, esbarrando, entretanto, nos limites, na finitude de sua mortalidade.

“Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que o homem.

Parte sobre as espumas da préia-mar no meio da tempestade do inverno sulino e cruza as montanhas de vagas, que abrem abismos de raiva Extenua a infatigabilidade indestrutível da mais sublime das deusas, a Terra, revolvendo-a ano após ano arrastando-se com cavalos para lá e para cá os arados. Sempre astuto, o homem enreda o bando de pássaros em revoada e caça os animais da selva e os agitados moradores do mar. Com astúcia domina o animal, que pernoita e anda pelos montes, subjuga o dorso de ásperas crinas do corsel e põe o jugo das cangas de madeira ao touro não domesticado.

A si mesmo encontrou tanto no soar da palavra e na compreensão, que, com a rapidez do vento, tudo abarca, como no denodo, com que domina as cidades.

Igualmente pensou como escapar aos dardos do clima, bem como às inclemências do frio.

Pondo-se a caminho por toda a parte, desprovido de experiência, e em aporia, chega ele ao nada. A morte é a única agressão, de que ele não pode se defender por nenhuma fuga, embora consiga esquivar-se habilmente às penas da enfermidade.

Garboso muito embora, porque domina, mais do que o esperado, a habilidade inventiva, cai muitas vezes até na perversidade, outras vezes saem-lhe bem nobres empresas.

Por entre as leis da terra e a conjuntura exconjurada pelos deuses anda ele.

Ao sobrepujar o lugar, o perde, a audácia o faz favorecer o não-ser contra o ser. Aquele que põe isso em obras, não se torne familiar de minha lareira nem tão pouco o meu saber compartilhe comigo o seu desvairar-se”.

O poema começa dizendo algo de inusitado para o senso comum:

“Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que o homem”.

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O homem é a coisa mais estranha que existe: tó deinótaton. O homem se ergue sobre a Terra, elevando-se para as alturas de sua capacidade inventiva, de sua habilidade produtiva, de sua genialidade criativa (téchne). Ele não se aloja simplesmente na natureza. Ele abre espaço dentro dela, cria mundo, gera cultura, institui um reino de produções, de arte, de conhecimento. Aparece, assim, como senhor e dominador do real. Em meio ao vigor da natureza, ele instaura o vigor da arte, da cultura. O auge e a consumação desse vigor criativo humano se encontram, por sua vez, na linguagem e no pensamento. É pela linguagem e pensamento que o homem, então, institui a Pólis: a comunidade de convivência histórica, baseada na idéia da livre soberania do homem racional, da cor-responsabilidade de homens livres.

Esse seu mundo familiar, entretanto, repousa sobre a estranheza de um abismo:

Pondo-se a caminho por toda a parte, desprovido de experiência, e em aporia, chega ele ao nada. A morte é a única agressão, de que ele não pode se defender por nenhuma fuga, embora consiga esquivar-se habilmente às penas da enfermidade.

O homem, que por toda a parte abre caminhos, encontra, então, o beco sem saída da morte. A morte é, porém, o véu do nada. Ele, que vive continuamente em comunidade, na Pólis, se torna só: ápolis. Se olharmos o homem nas alturas de sua vitalidade e de seu poder inventivo, encontramo-lo dominando a Pólis. Se olharmos o homem nas profundezas, nos abismos, de sua mortalidade e finitude, encontramo-lo “ápolis”: sem cidade, sem abrigo, sem morada, sem-terra e sem-teto, apátrida.

A audácia do homem encontra o seu limite na Justiça. Traduzimos por “Justiça” o nome Dike. Aqui, porém, não se há de entender a Justiça como virtude moral, muito menos no sentido jurídico. A Justiça é aqui a justeza do Todo, a justeza da Natureza, da Vida. Dike significa a articulação íntima de todas as coisas, a ordem do universo, a harmonia invisível do cosmos. Existindo no meio do espaço aberto da liberdade, o homem precisa, no entanto, sempre de novo encontrar a justeza na articulação íntima de todas as coisas no universo. Dike é a que mostra a justeza: a existência “nos eixos”, ajustada, integrada em si mesma e bem encadeada com o real. O nome “Dike” vem de “dikéin”: lançar; ou de deiknymi: mostrar, indicar. Dike é o lance que mostra ao homem o seu lugar no mundo, o que lhe está disposto, isto é, destinado, e a que o homem deve dispor-se, para poder viver uma existência histórica bem encaixada, bem concatenada, bem integrada, bem articulada. A injustiça (adikía) é desajuste, desatino, desarmonia, desintegração.

Na tragédia, o tempo tem a função de revelar os ditames da Justiça (Dike). Esses ditames são também os desígnios do Universo, representados na figura mítica de Themis.

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Themis era filha de Urano (o Céu) e de Gaia (a Terra). Era irmã das titânides (daimones do fundo abissal e obscuro da Terra). Deusa das leis eternas. Com Zeus (o deus do dia, do raio) gerou as Horas (deusas graciosas dos tempos, protetoras do florescer, do crescer e amadurecer).

Themis é a que rege os oráculos e as leis, a conselheira de Zeus e a que reúne e dissolve as assembléias dos deuses e dos homens.

Themis e Dike são, ambas, a Justiça. Themis como a que rege o destino humano a partir da sabedoria das leis eternas e Dike como a que dá à existência do homem uma boa disposição, articulação e integração (justeza).

Themis e Dike são Moiras. Themis, aliás, é a mãe das Moiras.

As moiras são filhas de Zeus e Themis. Na concepção mítica grega, são espíritos que vigoram no nascimento dos mortais e que distribuem entre eles a porção da vida de que vêm a participar e que determinam o nascimento, a vida e a morte dos mortais1.

O nome “moira” se refere ao verbo medial meiromai.Ou seja: dividir, repartir, obter a própria parte, ter em sorte, receber como o que foi assinalado, reservado e destinado. “Moira” significa, portanto, a parte que me toca, a porção que me foi assinalada, reservada e destinada, o quinhão que me está confiado, o meu lugar no mundo, a justa parte, isto é, o que me convém. Daí: destino.

A tragédia mostra nas vicissitudes e peripécias da biografia de um herói o desafio que atinge todo o homem em todos os tempos e em toda a parte: o desafio de encontrar o seu justo lugar no Todo, o desafio de encontrar a sua morada, o seu quinhão, na Terra, no chão da finitude.

Para a tragédia grega, nenhuma força é maior do que a força do destino. A essa força o homem só experimenta, no entanto, quando ele se mede com ela através da audácia de sua liberdade. Só o homem livre tem destino. Aquele que não experimenta a liberdade também não experimenta o destino. Vive a esmo. Sem sentido. Aos poucos, porém, a audácia deixa lugar à sabedoria, que consiste em assumir, na finitude, a própria condição de mortal e em respeitar a estranha e maravilhosa Justiça do Universo, ao Direito ao qual até os deuses obedecem. Como recorda o Coro a Antígona, antes de ela sair de cena na tragédia que leva o seu nome:

“A força do destino, todavia, é formidável: as riquezas, guerras, muralhas, negras naus, não lhe resistem”.

1 Entre os romanos eram chamadas de Parcas (Parcae – de Parere: parir). Aos poucos, foram se tornando três: Clotó segurava a roca em que se fiava e tecia os fios da vida; Láquesis desviava o fio e Atropos cortava-o (a morte).

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