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A biografia definitiva e apaixonante do autor de , o livro que inspira gerações ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY Vida e Morte do Principezinho BIOGRAFIA PAUL WEBSTER A O Principezinho

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A biografia definitiva e apaixonante do autor de , o livro que inspira gerações

ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRYVida e Morte do Principezinho

BIOGRAFIA

PAUL WEBSTER

PAUL W

EBSTER

ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRYV

ida e Mo

rte do Principezinho

A«Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.»

Antoine de Saint-Exupéry, in O Principezinho

Em julho de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, um avião de reconhecimento da Força Aérea Francesa desapareceu no Mar Mediterrâneo. O corpo do piloto nunca foi encontrado. A aeronave era um dos aparelhos mais rápidos e modernos da aviação aliada, um P-38 Lightning americano. Aos comandos ia Antoine de Saint-Exupéry. A sua morte, aos 44 anos, ficou assim envolta para sempre em mistério e romantismo.

Todo o percurso de Saint-Exupéry é recheado de aventuras e episódios fascinantes, até porque a sua vida abrange os mais controversos anos da história francesa. E se por um lado era um aristocrata, com o título de Conde, que repre-sentava toda uma classe em extinção, por outro lado foi um corajoso pioneiro da aviação e um aclamado romancista, que privou com as personalidades mais importantes do século XX.

Baseada numa investigação meticulosa, esta biografia relata todos esses detalhes. Com uma escrita empolgante, revela também novas informações que irão fascinar quer os leitores mais aventureiros quer os mais apaixonados. E surpreender os fãs de O Principezinho!

Poucas personalidades do século XX inspiraram tanto a investigação por parte de historiadores e biógrafos. Esta biografia traz de volta à vida um

herói, um homem apaixonado que combinou a carreira perigosa de aviador com a de autor de clássicos como O Principezinho.

A biografia que revela os acontecimentos que deram origem às personagens e histórias de O Principezinho

«Esta é uma biografia que possui todas as qualidades: uma investigação meticulosa, bem escrita e repleta

de revelações psicológicas perspicazes. O livro é tão bom que nos deixa a ansiar por mais.»

Sunday Telegraph

«Paul Webster escreveu uma biografia fascinante, ao incluir uma nova investigação sobre a vida e uma análise cuidada sobre os extraordinários livros que

com ela se enredaram.»Literary Review

«A biografia de Webster está escrita de forma encantadora e revela uma investigação impressionante.»

International Herald Tribune

«Esta biografia está recheada de revelações.»Le Figaro

«Uma biografia enérgica, simpática e vigorosa.»Scotsman

«Webster percorre habilmente toda a carreira de Saint-Exupéry, mas mantendo sempre

os seus próprios pés bem assentes na terra.»Financial Times

PAUL WEBSTER (1937–2004), jornalista conceituado, foi, durante mais de 30 anos, o correspondente do jornal The Guardian em Paris.

Embora fosse um jornalista talentoso e altamente reconhecido, ele era muito mais do que isso. Por detrás de uma grande modéstia, a sua capacidade de desbravar novos caminhos, na última década da sua vida, fez dele um autor de grande reputação, por trazer a lume uma nova e importante visão sobre os conturbados tempos da guerra em França, país que o acolheu desde 1974.

Autor de várias biografias de personalidades de renome — como é o caso de Mitterrand, L'autre histoire —, foi a biografia do autor de O Principezinho que lhe valeu a projeção internacional ao ser traduzida e publicada em diversas línguas.

.

e vos

O Principezinho

www.vogais.pt

Veja o vídeo de apresentação deste livro.

Biografias/Memórias

ISBN 978-989-668-258-3

9 789896 682583

21 mm

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Edição originalTítulo: Antoine de Saint-Exupéry:

The Life and Death of the Little PrinceTexto: © 1994 Paul Webster

Publicado por Papermac,uma chancela de Macmillan General Books, Londres.

Todos os direitos reservados.

Edição em portuguêsTítulo: Antoine de Saint-Exupéry:

Vida e Morte do PrincipezinhoTradução: Maria do Carmo Figueira,

da tradução francesa por Claudine RichetinRevisão: Booktailors — Consultores Editoriais

Capa: Ideias com PesoFotografia da capa: © Herdeiros de Saint-Exupéry/Morgan/

/Splash/Splash News/Corbis/VMIPaginação: RPVP Designers

ISBN: 978-989-668-258-3Depósito legal: 381 272/14

1.ª edição (Editorial Bizâncio): julho de 20002.ª edição: outubro de 2014Impressão: Agir, Camarate

2500 exemplares

© 2014 Vogais, uma chancela da 20|20 Editora.Todos os direitos reservados.

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização da editora.

Rua Alfredo da Silva, 12 • 2610-016 Amadora • PortugalTel. +351 218936000 • GPS 38.7414, -9.2303

[email protected] • www.vogais.pt • vogais

Garantia incondicional de satisfação e qualidade: se não ficar satisfeito com a qualidade deste livro, poderá devolvê-lo diretamente à Vogais,

juntando a fatura, e será reembolsado sem mais perguntas. Esta garantia é adicional aos seus direitos de consumidor e em nada os limita.

ÍNDICE

Agradecimentos 7

Prólogo

O último voo 9

PRIMEIRA PARTE1900–1930 15

Capítulo I Cinco crianças num jardim 17

Capítulo II Olhar a morte de frente 35

Capítulo III O céu é nosso 57

Capítulo IV Uma batalha perdida 75

Capítulo V Uma namorada entre outras 89

Capítulo VI Uma ideia precisa do nada 111

Capítulo VII O navegador perdido 133

SEGUNDA PARTE1931–1939 153

Capítulo VIII A viúva de Gomez Carrillo 155

Capítulo IX Felicidade, liberdade e dever 169

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AGRADECIMENTOS

Esta biografia não teria sido possível sem a ajuda e os conse-lhos dos familiares e amigos de Antoine de Saint-Exupéry e da sua esposa, Consuelo. Frédéric d’Agay, seu executor literário,

autorizou-me amavelmente a reproduzir excertos de cartas e outros documentos, incluindo o livro inédito de Simone de Saint-Exupéry, Cinq enfants dans un parc, e o de Marie de Saint-Exupéry, J’écoute chanter mon arbre. Frédéric d’Agay aceitou fazer a árvore genealógica da famí-lia e pôs à minha disposição as inestimáveis fotografias do álbum familiar. Jean d’Agay, sobrinho de Antoine, deu-me uma ajuda pre-ciosa, e André de Fonscolombe, primo de Antoine, forneceu-me inú-meras histórias e fotografias.

A minha mulher, Marcelle, cresceu em Bugey, perto da casa de infância de Antoine, e deu com muitas das histórias originais sobre Ambérieu e Saint-Maurice-de-Rémens, descobrindo também nos Arquivos Nacionais informações até agora inexploradas e memórias pessoais. De modo geral, as fontes utilizadas são citadas no texto, mas não posso deixar de agradecer especialmente a Claude Werth, Henri Claudel, Edmond Petit e respetivas esposas, a Jean Israël, Andrée de Vilmorin, Bernard Dupérier, Daniel Decot, Manuel Sorto, à Câmara de Saint-Maurice-de-Rémens, ao pessoal e antigos alunos dos colé- gios de Notre-Dame-de-Saint-Croix, em Le Mans, e Bossuet, em Paris, e aos conservadores dos museus da Air France e da Força Aérea.

Capítulo X Wadi Natroun 195

Capítulo XI Terra dos Homens 213

TERCEIRA PARTE1939–1944 233

Capítulo XII Voo para Arras 235

Capítulo XIII O homem que não acreditava 257

Capítulo XIV O Principezinho 283

Capítulo XV O peregrino do céu 295

Epílogo

As buscas 311

Bibliografia 315

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As Éditions Gallimard permitiram a publicação de excertos da bio-grafia escrita por Pierre Chevrier em 1949, enquanto Jean Lasserre, redator-chefe da revista Icare, me autorizou a reprodução das citações do relatório de Jean Dutertre acerca do voo até Arras. A série de oito álbuns sobre Antoine de Saint-Exupéry editada pela Icare foi um guia indispensável na identificação das fontes originais, graças às suas foto-grafias raras e aos testemunhos de pioneiros da aviação.

Esta obra deve muito ao trabalho de investigação e revisão e às entrevistas feitas por Patricia Dawson-Boccadoro, cuja ajuda e enco-rajamento, bem como a sua admiração pela escrita de Saint-Exupéry, o autor agradece reconhecidamente.

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PRÓLOGO

O último voo

Por volta do meio-dia do último dia de julho de 1944, a Riviera fervilhava em pleno verão com um céu sem nuvens que se estendia sobre um mar também azul até às ravinas da

Córsega. Viviam-se os últimos dias de uma paz enganadora; as tro-pas aliadas preparavam-se para atravessar o Mediterrâneo e liber-tar a Provença da ocupação alemã. Este tempo magnífico era como uma bênção antes do início da batalha, uma última prenda para todos, exceto para um aviador solitário de regresso à Córsega após um longínquo voo de reconhecimento ao longo do vale do Ródano. Os meteorologistas da Força Aérea tinham previsto uma cobertura nebulosa junto à costa suscetível de o ocultar dos caças alemães. Ao contrário das previsões, o céu limpo prestava-se perfeitamente a uma emboscada aérea.

O aviador solitário era Antoine de Saint-Exupéry, que, ao longo de mais de 20 anos de voo, tinha sido vítima de vários acidentes, cujas marcas podiam dar uma vantagem inesperada a um eventual atacante. Devido à sua corpulência, apertado num fato volumoso, ele acomodava--se como podia no reduzido espaço da cabina de pilotagem. Era-lhe impossível voltar-se para observar o aparecimento do inimigo sem sus-citar a dor das suas feridas antigas. Pela mesma razão, era-lhe impos-sível utilizar o para-quedas numa emergência. Debaixo de ataque, Saint-Exupéry não tinha outra alternativa senão tirar o máximo partido

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das excecionais capacidades de velocidade e elevada altitude do seu P-38 Lightning, ou despenhar-se-ia com ele.

Alguns minutos após o meio-dia, a silhueta caraterística do Lightning com a sua asa dupla surgiu rugindo a baixa altitude a oeste de Nice, virou na direção do Mediterrâneo e desapareceu entre Nice e Toulon. Na peugada do Lightning, os caças alemães abdicaram de um mergulho no mar e regressaram à base para relatarem o sucedido.

Saint-Exupéry podia ter escapado à emboscada se não tivesse cedido à sua nostalgia irresistível, um tema caraterístico dos seus principais livros. A missão de reconhecimento fotográfico do vale do Ródano tinha começado em Bastia, no Norte da Córsega, às 8h45 de 31 de julho, e levara-o para leste de Lyon, a somente 60 quilómetros do castelo familiar de Saint-Maurice-des-Rémens, onde ele passara o período mais feliz da sua infância. Tinha percorrido tantas vezes esta região antes da guerra, de carro, comboio ou avião, que cada palmo da linha costeira do Sul de França lhe era familiar. Após um voo de observação idêntico efetuado a 29 de junho, Saint-Exupéry foi chamado à ordem por se ter desviado da sua rota para sobrevoar regiões que lhe recordavam os tempos de infância. Talvez a sua ten- tação em dar mais uma vista de olhos a locais que amava se tenha revelado igualmente irresistível a 31 de julho.

Pouco antes de cair no mar, Saint-Exupéry encontrava-se ligeira- mente desviado do plano de voo e abaixo da altitude de segurança de 6 mil metros. Três lugares poderão tê-lo incitado a afastar-se do seu itinerário de regresso um a dois minutos para oeste depois de ter atingido a Provença, região que ele preferia a todas as outras em França. A sua mãe residia em Cabris, depois de Grasse, e ele tinha- -a visitado pela última vez em dezembro de 1940, antes de um exí- lio nos Estados Unidos que tinha durado mais de dois anos. Mais a oeste, encontrava-se o castelo de La Môle, junto a Saint-Tropez, para onde o pai havia sido levado na noite da sua morte, tinha então Antoine apenas 3 anos. E, entre estes dois lugares, ficava a igreja de Agay, onde em 1931 ele havia desposado a sul-americana Consuelo Suncin.

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O Ú L T I M O V O O

Em termos da duração do voo, o desvio tinha pouca importância. Além disso, com um pequeno gancho para leste, Saint-Exupéry teria igualmente podido observar a moradia em que passou alguns dos momentos mais idílicos da sua vida com Consuelo. Tinha sido na época em que estava a escrever Voo Noturno, a narrativa dos seus tempos como aviador pioneiro na Argentina. A 31 de julho de 1944, o terraço da moradia, abrigado por uma latada, teria sido o posto ideal de observação dos instantes finais da última missão de Saint-Exupéry.

***

ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY TINHA 44 anos quando o seu avião se des-penhou no mar. A sua reputação de escritor estava perfeitamente consolidada, apesar de não ter publicado mais do que cinco peque-nas obras cujo texto total não excedia as mil páginas. Porém, a cele- bridade que conheceu enquanto vivo não teve nada de comparável com a sua imensa popularidade a título póstumo. Nunca chegou a saber que a sua história mais conhecida, O Principezinho, surgida um ano antes da sua morte, iria tornar-se a obra francesa mais traduzida (em mais de 80 línguas). Esta fábula para crianças figura ainda a par de dois outros livros, Voo Noturno e Terra dos Homens, na lista das dez obras francesas mais lidas do século XX. Todos os livros editados em vida, entre eles Correio do Sul e Piloto de Guerra, inspiraram-se na sua experiência de piloto, quer na aviação civil quer na Batalha de França. Quando foi publicada uma antologia das suas obras, o êxito de vendas ultrapassou todas as outras antologias similares de autores franceses, clássicos ou contemporâneos.

O conjunto da sua obra testemunha uma versatilidade surpreen-dente. Somente as duas primeiras obras de Saint-Exupéry, Correio do Sul e Voo Noturno, são romances, enquanto as três restantes não se encaixam em nenhuma categoria identificável. É demasiado sim-plista qualificar Terra dos Homens como narrativa de viagens, Piloto de Guerra como recordações de combate, ou considerar O Principezinho um conto infantil. Todas estão repletas de temas filosóficos e morais

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das excecionais capacidades de velocidade e elevada altitude do seu P-38 Lightning, ou despenhar-se-ia com ele.

Alguns minutos após o meio-dia, a silhueta caraterística do Lightning com a sua asa dupla surgiu rugindo a baixa altitude a oeste de Nice, virou na direção do Mediterrâneo e desapareceu entre Nice e Toulon. Na peugada do Lightning, os caças alemães abdicaram de um mergulho no mar e regressaram à base para relatarem o sucedido.

Saint-Exupéry podia ter escapado à emboscada se não tivesse cedido à sua nostalgia irresistível, um tema caraterístico dos seus principais livros. A missão de reconhecimento fotográfico do vale do Ródano tinha começado em Bastia, no Norte da Córsega, às 8h45 de 31 de julho, e levara-o para leste de Lyon, a somente 60 quilómetros do castelo familiar de Saint-Maurice-des-Rémens, onde ele passara o período mais feliz da sua infância. Tinha percorrido tantas vezes esta região antes da guerra, de carro, comboio ou avião, que cada palmo da linha costeira do Sul de França lhe era familiar. Após um voo de observação idêntico efetuado a 29 de junho, Saint-Exupéry foi chamado à ordem por se ter desviado da sua rota para sobrevoar regiões que lhe recordavam os tempos de infância. Talvez a sua ten- tação em dar mais uma vista de olhos a locais que amava se tenha revelado igualmente irresistível a 31 de julho.

Pouco antes de cair no mar, Saint-Exupéry encontrava-se ligeira- mente desviado do plano de voo e abaixo da altitude de segurança de 6 mil metros. Três lugares poderão tê-lo incitado a afastar-se do seu itinerário de regresso um a dois minutos para oeste depois de ter atingido a Provença, região que ele preferia a todas as outras em França. A sua mãe residia em Cabris, depois de Grasse, e ele tinha- -a visitado pela última vez em dezembro de 1940, antes de um exí- lio nos Estados Unidos que tinha durado mais de dois anos. Mais a oeste, encontrava-se o castelo de La Môle, junto a Saint-Tropez, para onde o pai havia sido levado na noite da sua morte, tinha então Antoine apenas 3 anos. E, entre estes dois lugares, ficava a igreja de Agay, onde em 1931 ele havia desposado a sul-americana Consuelo Suncin.

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Em termos da duração do voo, o desvio tinha pouca importância. Além disso, com um pequeno gancho para leste, Saint-Exupéry teria igualmente podido observar a moradia em que passou alguns dos momentos mais idílicos da sua vida com Consuelo. Tinha sido na época em que estava a escrever Voo Noturno, a narrativa dos seus tempos como aviador pioneiro na Argentina. A 31 de julho de 1944, o terraço da moradia, abrigado por uma latada, teria sido o posto ideal de observação dos instantes finais da última missão de Saint-Exupéry.

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ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY TINHA 44 anos quando o seu avião se des-penhou no mar. A sua reputação de escritor estava perfeitamente consolidada, apesar de não ter publicado mais do que cinco peque-nas obras cujo texto total não excedia as mil páginas. Porém, a cele- bridade que conheceu enquanto vivo não teve nada de comparável com a sua imensa popularidade a título póstumo. Nunca chegou a saber que a sua história mais conhecida, O Principezinho, surgida um ano antes da sua morte, iria tornar-se a obra francesa mais traduzida (em mais de 80 línguas). Esta fábula para crianças figura ainda a par de dois outros livros, Voo Noturno e Terra dos Homens, na lista das dez obras francesas mais lidas do século XX. Todos os livros editados em vida, entre eles Correio do Sul e Piloto de Guerra, inspiraram-se na sua experiência de piloto, quer na aviação civil quer na Batalha de França. Quando foi publicada uma antologia das suas obras, o êxito de vendas ultrapassou todas as outras antologias similares de autores franceses, clássicos ou contemporâneos.

O conjunto da sua obra testemunha uma versatilidade surpreen-dente. Somente as duas primeiras obras de Saint-Exupéry, Correio do Sul e Voo Noturno, são romances, enquanto as três restantes não se encaixam em nenhuma categoria identificável. É demasiado sim-plista qualificar Terra dos Homens como narrativa de viagens, Piloto de Guerra como recordações de combate, ou considerar O Principezinho um conto infantil. Todas estão repletas de temas filosóficos e morais

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que ele tencionava desenvolver no seu último livro, Cidadela, uma antologia inacabada de parábolas, publicada após a sua morte a par-tir de várias notas.

A vida aventurosa de Saint-Exupéry e as suas observações éticas ou místicas assumem uma tal importância nos seus livros que uma das principais qualidades da sua obra é muitas vezes minimizada ou con-siderada como um facto consumado. Muito simplesmente, ele era um escritor de exceção, fascinado no plano profissional e estético pelo uso e impacto da língua escrita. A concisão dos seus livros, exceção feita a Cidadela, reflete uma precisão na escolha das palavras, realçando assim a sua beleza e a emoção produzida. Na procura da perfeição, Saint--Exupéry utilizava um processo laborioso de revisão e de correção que reduzia em dois terços os manuscritos originais.

Esta paciência de artesão na elaboração literária, comparável na sua opinião à extração de uma pedra preciosa da sua ganga, pô-lo-ia a par das maiores figuras da idade de ouro da literatura francesa. Mesmo os críticos incomodados com a ênfase dada por Saint-Exupéry ao dever e ao sacrifício em Voo Noturno e Piloto de Guerra, ou ressen-tidos pelo doce idealismo d’O Principezinho, acabaram por se render perante uma das prosas mais evocadoras em língua francesa.

Saint-Exupéry esforçava-se normalmente por ser discreto quanto aos seus problemas pessoais, mas os que o conheciam na intimidade conseguiam decifrar nas entrelinhas as mensagens mal disfarçadas das suas deceções, alegrias e dúvidas morais. Será abordada a maioria dos episódios enigmáticos da sua vida nesta biografia, na qual se ten-tará igualmente descodificar os temas d’O Principezinho, história em que Saint-Exupéry se assume como modelo tanto da criança como do piloto perdido, lastimando-se de que a idade o afastou das verdades absolutas da sua infância passada no seio da aristocracia católica.

Nenhum livro revela melhor os dilemas interiores de Saint-Exupéry do que O Principezinho, escrito num período de profunda melancolia e autocrítica em que o autor duvidava das suas capacidades de condu-zir a bom porto a empresa mais difícil da sua vida: o seu casamento. Esta fábula mística sobre a perda da inocência era, em grande parte,

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uma carta de amor à esposa, Consuelo, numa altura em que a união de ambos quase colapsou devido a uma excessiva exigência afetiva e infidelidade de parte a parte.

Não há nada de misterioso nas razões que levaram Saint-Exupéry a descrever, sob a forma de conto para crianças, a sua relação com Consuelo. Ela é a rosa d’O Principezinho, e o livro é uma confis-são de que os seus destinos estavam irrevogavelmente ligados pelas dores e alegrias partilhadas. Em todas as suas obras, Saint-Exupéry inspira-se fortemente em sensações experimentadas na infância para se proteger do seu próprio desespero e dos acontecimentos que não conseguia explicar. N’O Principezinho, foi ainda mais longe e deixou que a voz da inocência falasse por ele.

O livro foi publicado em 1942, no decurso de uma fase depres-siva, quando do seu exílio nos Estados Unidos, entre dois períodos de serviço na Força Aérea francesa. Nesse momento, sentia-se dividido entre as obrigações para com a mulher e o desejo de regressar ao combate, num espírito de sacrifício patriótico. As cartas escritas nos meses que se seguiram atraiçoavam o seu fascínio por uma morte purificadora, assim como um imenso desejo de renascimento espi-ritual. Mais tarde, o desaparecimento do principezinho e a fórmula segundo a qual ele «parecerá morto, mas isso não será verdade» soa-riam como uma espécie de profecia cumprida, pois o corpo de Saint--Exupéry nunca seria encontrado.

Talvez esta morte mítica tenha sido o fim que ele ambicionava. Não admitira ele, n’O Principezinho, que a desordem provocada pelo desaparecimento das certezas da infância fora o preço a pagar para entrar no mundo das pessoas crescidas, onde «tudo era um grande mistério»?

Este tom desesperado de ressentimento e perplexidade lembra a sua confissão, em Terra dos Homens, da incapacidade de reencon-trar os seus sonhos de infância e as aventuras românticas dos dias de verão passados em Saint-Maurice-de-Rémens, perto de Lyon, não muito longe do campo de aviação onde recebeu aos 12 anos o batismo aéreo. O castelo foi vendido quando Antoine tinha 32 anos,

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que ele tencionava desenvolver no seu último livro, Cidadela, uma antologia inacabada de parábolas, publicada após a sua morte a par-tir de várias notas.

A vida aventurosa de Saint-Exupéry e as suas observações éticas ou místicas assumem uma tal importância nos seus livros que uma das principais qualidades da sua obra é muitas vezes minimizada ou con-siderada como um facto consumado. Muito simplesmente, ele era um escritor de exceção, fascinado no plano profissional e estético pelo uso e impacto da língua escrita. A concisão dos seus livros, exceção feita a Cidadela, reflete uma precisão na escolha das palavras, realçando assim a sua beleza e a emoção produzida. Na procura da perfeição, Saint--Exupéry utilizava um processo laborioso de revisão e de correção que reduzia em dois terços os manuscritos originais.

Esta paciência de artesão na elaboração literária, comparável na sua opinião à extração de uma pedra preciosa da sua ganga, pô-lo-ia a par das maiores figuras da idade de ouro da literatura francesa. Mesmo os críticos incomodados com a ênfase dada por Saint-Exupéry ao dever e ao sacrifício em Voo Noturno e Piloto de Guerra, ou ressen-tidos pelo doce idealismo d’O Principezinho, acabaram por se render perante uma das prosas mais evocadoras em língua francesa.

Saint-Exupéry esforçava-se normalmente por ser discreto quanto aos seus problemas pessoais, mas os que o conheciam na intimidade conseguiam decifrar nas entrelinhas as mensagens mal disfarçadas das suas deceções, alegrias e dúvidas morais. Será abordada a maioria dos episódios enigmáticos da sua vida nesta biografia, na qual se ten-tará igualmente descodificar os temas d’O Principezinho, história em que Saint-Exupéry se assume como modelo tanto da criança como do piloto perdido, lastimando-se de que a idade o afastou das verdades absolutas da sua infância passada no seio da aristocracia católica.

Nenhum livro revela melhor os dilemas interiores de Saint-Exupéry do que O Principezinho, escrito num período de profunda melancolia e autocrítica em que o autor duvidava das suas capacidades de condu-zir a bom porto a empresa mais difícil da sua vida: o seu casamento. Esta fábula mística sobre a perda da inocência era, em grande parte,

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uma carta de amor à esposa, Consuelo, numa altura em que a união de ambos quase colapsou devido a uma excessiva exigência afetiva e infidelidade de parte a parte.

Não há nada de misterioso nas razões que levaram Saint-Exupéry a descrever, sob a forma de conto para crianças, a sua relação com Consuelo. Ela é a rosa d’O Principezinho, e o livro é uma confis-são de que os seus destinos estavam irrevogavelmente ligados pelas dores e alegrias partilhadas. Em todas as suas obras, Saint-Exupéry inspira-se fortemente em sensações experimentadas na infância para se proteger do seu próprio desespero e dos acontecimentos que não conseguia explicar. N’O Principezinho, foi ainda mais longe e deixou que a voz da inocência falasse por ele.

O livro foi publicado em 1942, no decurso de uma fase depres-siva, quando do seu exílio nos Estados Unidos, entre dois períodos de serviço na Força Aérea francesa. Nesse momento, sentia-se dividido entre as obrigações para com a mulher e o desejo de regressar ao combate, num espírito de sacrifício patriótico. As cartas escritas nos meses que se seguiram atraiçoavam o seu fascínio por uma morte purificadora, assim como um imenso desejo de renascimento espi-ritual. Mais tarde, o desaparecimento do principezinho e a fórmula segundo a qual ele «parecerá morto, mas isso não será verdade» soa-riam como uma espécie de profecia cumprida, pois o corpo de Saint--Exupéry nunca seria encontrado.

Talvez esta morte mítica tenha sido o fim que ele ambicionava. Não admitira ele, n’O Principezinho, que a desordem provocada pelo desaparecimento das certezas da infância fora o preço a pagar para entrar no mundo das pessoas crescidas, onde «tudo era um grande mistério»?

Este tom desesperado de ressentimento e perplexidade lembra a sua confissão, em Terra dos Homens, da incapacidade de reencon-trar os seus sonhos de infância e as aventuras românticas dos dias de verão passados em Saint-Maurice-de-Rémens, perto de Lyon, não muito longe do campo de aviação onde recebeu aos 12 anos o batismo aéreo. O castelo foi vendido quando Antoine tinha 32 anos,

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e as «provisões de doçura» que tinham mimado a sua infância escapavam-lhe assim para sempre.

Saint-Exupéry nunca escondeu a dor provocada por esta venda e pela profanação do seu passado perdido. Pouco antes da guerra, regressou a Saint-Maurice e caminhou ao longo do muro de pedra cinzenta que delimitava o jardim do castelo, «cheio de sombras da infância». E evocou esta tristeza em Terra dos Homens, num punhado de palavras que revelam, melhor do que fariam vários volumes de filo-sofia, uma consciência profunda da solidão inerente à idade adulta.

Ferido por uma «forma de desespero», constatou, estupefacto, que as perspetivas infinitas da infância se tinham reduzido. O seu pátio de recreio paradisíaco tinha desaparecido, apagado pelo seu olhar adulto, e entristecia-o nunca mais poder voltar a «entrar nesse infinito». A idade não só o banira daquele jardim encantado com as suas alame-das de tílias e bosques de pinheiros como o excluíra para sempre dos jogos inocentes.

«Não estou muito certo de ter vivido depois da minha infância», escreveu ele à mãe, muito tempo depois de ter descoberto a aparente recompensa que sentia ao pilotar. Para Saint-Exupéry, tornar-se adulto era o mais imperdoável dos pecados.

PRIMEIRA PARTE1900–1930

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e as «provisões de doçura» que tinham mimado a sua infância escapavam-lhe assim para sempre.

Saint-Exupéry nunca escondeu a dor provocada por esta venda e pela profanação do seu passado perdido. Pouco antes da guerra, regressou a Saint-Maurice e caminhou ao longo do muro de pedra cinzenta que delimitava o jardim do castelo, «cheio de sombras da infância». E evocou esta tristeza em Terra dos Homens, num punhado de palavras que revelam, melhor do que fariam vários volumes de filo-sofia, uma consciência profunda da solidão inerente à idade adulta.

Ferido por uma «forma de desespero», constatou, estupefacto, que as perspetivas infinitas da infância se tinham reduzido. O seu pátio de recreio paradisíaco tinha desaparecido, apagado pelo seu olhar adulto, e entristecia-o nunca mais poder voltar a «entrar nesse infinito». A idade não só o banira daquele jardim encantado com as suas alame-das de tílias e bosques de pinheiros como o excluíra para sempre dos jogos inocentes.

«Não estou muito certo de ter vivido depois da minha infância», escreveu ele à mãe, muito tempo depois de ter descoberto a aparente recompensa que sentia ao pilotar. Para Saint-Exupéry, tornar-se adulto era o mais imperdoável dos pecados.

PRIMEIRA PARTE1900–1930

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CAPÍTULO I

Cinco crianças num jardim

O quarto que Antoine partilhava com o irmão mais novo, François, em Saint-Maurice-de-Rémens, virado a leste, dava para o imenso jardim do castelo, e, da janela, distinguiam-

-se ao longe os cumes arborizados dos montes de Bugey a despontar das faldas da cordilheira do Jura. É uma paisagem impregnada de uma magia natural, em que as florestas densas se encontram sem-pre meio escondidas pelo nevoeiro do outono ou pelas neblinas do verão, e por vezes cobertas de neve. Na pureza cristalina do início da primavera, o vale granítico onde corre o estreito e tumultuoso rio Albarine parece ao alcance da mão.

Aos olhos de uma criança, as colinas escuras eram uma terra estranha com os seus próprios mistérios e segredos. Da sua janela, Antoine observava, mais além das vinhas e das pastagens suaves que principiavam nos limites do jardim do castelo da família, os distantes cerros escarpados onde o Homem, desde há dois mil anos, se tinha entregado a combater a natureza ou as invasões inimigas. Quase em frente do castelo, Antoine podia contemplar a imponente torre de Saint-Denis, erguida como sentinela à entrada do estreito vale, e a antiga estrada romana que ia de Lyon a Genebra. Mais oculta dos olhares, mas mais impressionante, erguia-se uma enorme fortaleza quadrangular conhecida como Les Allymes, cuja silhueta amarelada se destacava na floresta circundante.

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A partir desta praça-forte, os senhores da Idade Média tinham outrora controlado o acesso ao curso do Ain, o mais pitoresco dos rios deste recanto do Sul de França. Impuseram em seu redor a ordem e códigos cerimoniais e religiosos que se desmoronaram muito antes de as mura-lhas começarem a ficar em ruínas. As imagens deste mundo cavalhei-resco, cuja força resultava tanto da sabedoria como das armas, iriam acompanhar Saint-Exupéry ao longo de toda a vida — a ponto de lhe inspirar o último livro, Cidadela, publicado após a sua morte. Nesta nar-rativa de aventuras bíblicas, onde os ideais muçulmano e cristão coa-bitam num palácio mítico nos confins do deserto, ele medita sobre os ensinamentos da longa viagem que, muito além dos limites do seu jar-dim de Saint-Maurice, o levou a descobrir um mundo desconcertante.

Saint-Exupéry chamou ao jardim do castelo «o país da minha infância». Entrou ali pela primeira vez pelo largo portão de ferro e ao longo da alameda bordejada por quatro fileiras de tílias no dia do seu batismo na capela familiar, com 6 semanas de idade. Tinha nas-cido a 29 de junho de 1900 no apartamento dos seus pais em Lyon, no n.º 8 da rue Alphonse-Fochier, próxima da place de Bellecour e que na altura se chamava rue Dr. Peyrat.

Tendo em conta as profundas convicções religiosas da família, o arcebispo de Lyon acedeu em adiar o batismo, de modo a terem tempo de convidar os familiares para uma cerimónia solene em honra do her-deiro do título nobiliárquico de Saint-Exupéry, cuja origem remontava ao século XIII. Os parentes do lado paterno teriam de fazer uma viagem de um dia inteiro desde Le Mans, a oeste, e a família da mãe viria da Provença; era preciso tempo para preparar a receção dada nos jardins, onde as três centenas de aldeãos estariam na sua maioria presentes como convidados ou criados. É a 15 de agosto de 1900, no Dia da Assunção, que o padre da paróquia, François Montessuy, dá ao recém-nascido os cinco nomes Antoine Jean-Baptiste Marie Roger Pierre. O certificado de nascimento foi assinado por vários amigos e parentes, entre eles o seu tio e padrinho Roger de Saint-Exupéry, então capitão de infantaria.

A madrinha, Alice Boyer de Fonscolombe, que era também avó materna de Antoine, não pôde deixar o seu castelo de La Môle, perto de

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Saint-Tropez, e foi representada pela tia solteira de Antoine, Madeleine de Fonscolombe, irmã mais nova da sua mãe. A primeira assinatura é do pai, Jean, visconde de Saint-Exupéry, que faleceu menos de qua-tro anos depois, deixando a cargo da viúva, Marie, cinco crianças com menos de 8 anos. Os dois mais velhos, Marie-Madeleine e Simone, então com 3 e 2 anos, estiveram presentes no batismo. François nasceu dois anos mais tarde, e Gabrielle, a mais nova, em 1904. Com Antoine, eram as Cinco Crianças Num Jardim, título do livro inédito de memó-rias de Simone, a mais autêntica fonte de dados sobre a infância de Saint-Exupéry.

***

AS PRIMEIRAS NOTAS DESTA biografia foram tomadas na mesa oval de madeira maciça da grande sala de jantar do castelo do século XVIII de Saint-Maurice-de-Rémens, a única sala ainda mobilada tal como na época do batismo de Antoine. Apesar de o castelo ter sido ven-dido em 1932 ao município de Lyon e transformado numa colónia de férias para as crianças, a sala de jantar ficou para sempre como uma marca do mundo aristocrata, muito ciente dos seus privilégios. Sobre um chão de lajes de mármore preto e branco, mantêm-se uma impo-nente cómoda de inspiração italiana, com cachos de uvas e medas de trigo esculpidos, e as cadeiras originais, forradas a couro vermelho. Um candeeiro de teto de linhas sóbrias reflete-se no enorme espelho que ornamenta a lareira de mármore.

Não abunda muita elegância nesta sala, mas subsiste um sentimento de permanência neste templo de tradição onde a castelã Gabrielle, condessa viúva de Tricaud, filha de Lestrange, presidia na hierarquia tacitamente estabelecida de uma família nobre, assim como dos seus convidados e criados.

Durante os primeiros anos, esta era uma área interdita às crianças, que eram mantidas sob a vigilância de uma governanta e tomavam as refeições perto da cozinha. Saint-Exupéry deixou a impressão de que grande parte do piso térreo do castelo era uma área proibida, povoada

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A partir desta praça-forte, os senhores da Idade Média tinham outrora controlado o acesso ao curso do Ain, o mais pitoresco dos rios deste recanto do Sul de França. Impuseram em seu redor a ordem e códigos cerimoniais e religiosos que se desmoronaram muito antes de as mura-lhas começarem a ficar em ruínas. As imagens deste mundo cavalhei-resco, cuja força resultava tanto da sabedoria como das armas, iriam acompanhar Saint-Exupéry ao longo de toda a vida — a ponto de lhe inspirar o último livro, Cidadela, publicado após a sua morte. Nesta nar-rativa de aventuras bíblicas, onde os ideais muçulmano e cristão coa-bitam num palácio mítico nos confins do deserto, ele medita sobre os ensinamentos da longa viagem que, muito além dos limites do seu jar-dim de Saint-Maurice, o levou a descobrir um mundo desconcertante.

Saint-Exupéry chamou ao jardim do castelo «o país da minha infância». Entrou ali pela primeira vez pelo largo portão de ferro e ao longo da alameda bordejada por quatro fileiras de tílias no dia do seu batismo na capela familiar, com 6 semanas de idade. Tinha nas-cido a 29 de junho de 1900 no apartamento dos seus pais em Lyon, no n.º 8 da rue Alphonse-Fochier, próxima da place de Bellecour e que na altura se chamava rue Dr. Peyrat.

Tendo em conta as profundas convicções religiosas da família, o arcebispo de Lyon acedeu em adiar o batismo, de modo a terem tempo de convidar os familiares para uma cerimónia solene em honra do her-deiro do título nobiliárquico de Saint-Exupéry, cuja origem remontava ao século XIII. Os parentes do lado paterno teriam de fazer uma viagem de um dia inteiro desde Le Mans, a oeste, e a família da mãe viria da Provença; era preciso tempo para preparar a receção dada nos jardins, onde as três centenas de aldeãos estariam na sua maioria presentes como convidados ou criados. É a 15 de agosto de 1900, no Dia da Assunção, que o padre da paróquia, François Montessuy, dá ao recém-nascido os cinco nomes Antoine Jean-Baptiste Marie Roger Pierre. O certificado de nascimento foi assinado por vários amigos e parentes, entre eles o seu tio e padrinho Roger de Saint-Exupéry, então capitão de infantaria.

A madrinha, Alice Boyer de Fonscolombe, que era também avó materna de Antoine, não pôde deixar o seu castelo de La Môle, perto de

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Saint-Tropez, e foi representada pela tia solteira de Antoine, Madeleine de Fonscolombe, irmã mais nova da sua mãe. A primeira assinatura é do pai, Jean, visconde de Saint-Exupéry, que faleceu menos de qua-tro anos depois, deixando a cargo da viúva, Marie, cinco crianças com menos de 8 anos. Os dois mais velhos, Marie-Madeleine e Simone, então com 3 e 2 anos, estiveram presentes no batismo. François nasceu dois anos mais tarde, e Gabrielle, a mais nova, em 1904. Com Antoine, eram as Cinco Crianças Num Jardim, título do livro inédito de memó-rias de Simone, a mais autêntica fonte de dados sobre a infância de Saint-Exupéry.

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AS PRIMEIRAS NOTAS DESTA biografia foram tomadas na mesa oval de madeira maciça da grande sala de jantar do castelo do século XVIII de Saint-Maurice-de-Rémens, a única sala ainda mobilada tal como na época do batismo de Antoine. Apesar de o castelo ter sido ven-dido em 1932 ao município de Lyon e transformado numa colónia de férias para as crianças, a sala de jantar ficou para sempre como uma marca do mundo aristocrata, muito ciente dos seus privilégios. Sobre um chão de lajes de mármore preto e branco, mantêm-se uma impo-nente cómoda de inspiração italiana, com cachos de uvas e medas de trigo esculpidos, e as cadeiras originais, forradas a couro vermelho. Um candeeiro de teto de linhas sóbrias reflete-se no enorme espelho que ornamenta a lareira de mármore.

Não abunda muita elegância nesta sala, mas subsiste um sentimento de permanência neste templo de tradição onde a castelã Gabrielle, condessa viúva de Tricaud, filha de Lestrange, presidia na hierarquia tacitamente estabelecida de uma família nobre, assim como dos seus convidados e criados.

Durante os primeiros anos, esta era uma área interdita às crianças, que eram mantidas sob a vigilância de uma governanta e tomavam as refeições perto da cozinha. Saint-Exupéry deixou a impressão de que grande parte do piso térreo do castelo era uma área proibida, povoada

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por uma raça pouco indulgente de adultos que possuía toda a auto-ridade sobre os mais pequenos para os admoestarem, julgarem e puni-rem. Em Piloto de Guerra, no qual evoca as recordações deste período no decurso de uma missão na frente em 1940, Saint-Exupéry volta a refe-rir este medo dos adultos, descrevendo como aos 5 anos, escondido no corredor à porta da sala de jantar, ouvira trechos de uma conversa entre dois dos tios. Um deles, Hubert de Fonscolombe, «a própria imagem da severidade», ameaçara-o de mandar vir dos Estados Unidos uma máquina de chicotear.

Nesse mesmo corredor forrado a lambris, onde os brinquedos eram guardados em quatro longas caixas de madeira, as cinco crian-ças ouviam por vezes as conversas que se travavam à mesa de jantar, enquanto iam imaginando intrigas entre sussurros. Nas recordações de Antoine, esta atmosfera era ainda sobrecarregada ao cair da noite pela fraca luz dos candeeiros a petróleo, que projetavam sombras inquietantes na direção de uma passagem secreta para a capela e até à longa escada que dava para os quartos.

Esta incompreensão entre miúdos e graúdos tornar-se-ia uma fonte de impaciência futura para Saint-Exupéry perante a falta de clarividên-cia dos adultos. As crianças criavam refúgios à sua medida, que embe-lezavam com uma imaginação desenfreada e uma atmosfera de alegria conspiradora. No seu primeiro romance, Correio do Sul, Saint-Exupéry recorda como observavam as estrelas entre os intervalos das telhas dos sótãos do castelo, ouvindo o barulho abafado das conversas nas pro-fundezas da casa. Os sótãos eram o terreno ideal para os jogos povoa- dos de sonhos e pesadelos. As crianças estavam convencidas de que tinha sido ali escondido um tesouro entre as relíquias da família, mas a mais extraordinária das riquezas era um armário cheio de fatos e uni-formes militares que tinham pertencido ao pai. Foi provavelmente nele que Antoine, com apenas 4 anos, encontrou o primeiro livro que leu de uma ponta à outra. Tratava-se de um manual de fabrico de vinho que ele descobrira numa velha mala cheia de revistas. Quarenta anos mais tarde, recordava-se de ter decifrado cada uma das palavras, sem com- preender, todavia, o seu sentido.

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Enquanto as vastas salas excessivamente mobiladas eram sobre-tudo domínio dos mais crescidos, o reino das crianças era o jardim. Saint-Maurice só era habitado da primavera ao início do outono, pelo que as lembranças de Antoine evocam uma infância antes da Primeira Guerra Mundial que parece perpetuamente banhada de sol. Os três mais velhos, Marie-Madeleine, Simone e Antoine, descrevem minu-ciosamente esse seu reino: uma extensão tão vasta de relvados, hortas e pinhais que abrigavam inúmeros esconderijos que eles nunca che-gavam a explorá-lo por completo.

Para Antoine, este imenso território tornou-se o seu primeiro labo-ratório de experiências mecânicas, no qual tentou construir um avião e inventar um sistema de irrigação com uma bomba motorizada para as hortas. Era também um terreno propício a aventuras heroicas ins-piradas em livros de histórias. Em Piloto de Guerra, Saint-Exupéry compara a sensação de se desviar do fogo das antiaéreas alemãs a um dos seus primeiros jogos, que consistia em esquivarem-se às gotas da chuva das trovoadas de verão; quem o conseguisse, era distinguido com o título de Cavaleiro Aklin até à próxima chuvada.

Este jardim paradisíaco era povoado por animais de estimação, pertencentes na sua maioria à irmã mais velha de Antoine, Marie--Madeleine, conhecida pela alcunha Biche (Corça). Ela era tão sensível que se recusava a colher flores com receio de as magoar. Simone, bas-tante mais fria e determinada, recorda-se das longas horas passadas a bordar ao ar livre, perfumado das ervilhas-de-cheiro, dos loureiros em flor e dos gerânios. Era frequente a mãe ler para eles ou assistir aos seus jogos enquanto pintava aguarelas. As flores das tílias, que entre-tanto foram cortadas pela raiz, provocavam a Antoine alergia dos fenos, obrigando-o a fechar-se em casa e a ler na biblioteca.

O prazer de reencontrar este imenso país das maravilhas onde se podia fugir à autoridade dos adultos começava por uma viagem de 50 quilómetros num pequeno comboio a vapor que partia de Lyon até à gare de Leyment, a 3 quilómetros do castelo. Era aí que uma tipoia esperava a família para a conduzir, por um estreito e sinuoso caminho pedregoso através de vinhedos e vacarias, até ao grande

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por uma raça pouco indulgente de adultos que possuía toda a auto-ridade sobre os mais pequenos para os admoestarem, julgarem e puni-rem. Em Piloto de Guerra, no qual evoca as recordações deste período no decurso de uma missão na frente em 1940, Saint-Exupéry volta a refe-rir este medo dos adultos, descrevendo como aos 5 anos, escondido no corredor à porta da sala de jantar, ouvira trechos de uma conversa entre dois dos tios. Um deles, Hubert de Fonscolombe, «a própria imagem da severidade», ameaçara-o de mandar vir dos Estados Unidos uma máquina de chicotear.

Nesse mesmo corredor forrado a lambris, onde os brinquedos eram guardados em quatro longas caixas de madeira, as cinco crian-ças ouviam por vezes as conversas que se travavam à mesa de jantar, enquanto iam imaginando intrigas entre sussurros. Nas recordações de Antoine, esta atmosfera era ainda sobrecarregada ao cair da noite pela fraca luz dos candeeiros a petróleo, que projetavam sombras inquietantes na direção de uma passagem secreta para a capela e até à longa escada que dava para os quartos.

Esta incompreensão entre miúdos e graúdos tornar-se-ia uma fonte de impaciência futura para Saint-Exupéry perante a falta de clarividên-cia dos adultos. As crianças criavam refúgios à sua medida, que embe-lezavam com uma imaginação desenfreada e uma atmosfera de alegria conspiradora. No seu primeiro romance, Correio do Sul, Saint-Exupéry recorda como observavam as estrelas entre os intervalos das telhas dos sótãos do castelo, ouvindo o barulho abafado das conversas nas pro-fundezas da casa. Os sótãos eram o terreno ideal para os jogos povoa- dos de sonhos e pesadelos. As crianças estavam convencidas de que tinha sido ali escondido um tesouro entre as relíquias da família, mas a mais extraordinária das riquezas era um armário cheio de fatos e uni-formes militares que tinham pertencido ao pai. Foi provavelmente nele que Antoine, com apenas 4 anos, encontrou o primeiro livro que leu de uma ponta à outra. Tratava-se de um manual de fabrico de vinho que ele descobrira numa velha mala cheia de revistas. Quarenta anos mais tarde, recordava-se de ter decifrado cada uma das palavras, sem com- preender, todavia, o seu sentido.

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Enquanto as vastas salas excessivamente mobiladas eram sobre-tudo domínio dos mais crescidos, o reino das crianças era o jardim. Saint-Maurice só era habitado da primavera ao início do outono, pelo que as lembranças de Antoine evocam uma infância antes da Primeira Guerra Mundial que parece perpetuamente banhada de sol. Os três mais velhos, Marie-Madeleine, Simone e Antoine, descrevem minu-ciosamente esse seu reino: uma extensão tão vasta de relvados, hortas e pinhais que abrigavam inúmeros esconderijos que eles nunca che-gavam a explorá-lo por completo.

Para Antoine, este imenso território tornou-se o seu primeiro labo-ratório de experiências mecânicas, no qual tentou construir um avião e inventar um sistema de irrigação com uma bomba motorizada para as hortas. Era também um terreno propício a aventuras heroicas ins-piradas em livros de histórias. Em Piloto de Guerra, Saint-Exupéry compara a sensação de se desviar do fogo das antiaéreas alemãs a um dos seus primeiros jogos, que consistia em esquivarem-se às gotas da chuva das trovoadas de verão; quem o conseguisse, era distinguido com o título de Cavaleiro Aklin até à próxima chuvada.

Este jardim paradisíaco era povoado por animais de estimação, pertencentes na sua maioria à irmã mais velha de Antoine, Marie--Madeleine, conhecida pela alcunha Biche (Corça). Ela era tão sensível que se recusava a colher flores com receio de as magoar. Simone, bas-tante mais fria e determinada, recorda-se das longas horas passadas a bordar ao ar livre, perfumado das ervilhas-de-cheiro, dos loureiros em flor e dos gerânios. Era frequente a mãe ler para eles ou assistir aos seus jogos enquanto pintava aguarelas. As flores das tílias, que entre-tanto foram cortadas pela raiz, provocavam a Antoine alergia dos fenos, obrigando-o a fechar-se em casa e a ler na biblioteca.

O prazer de reencontrar este imenso país das maravilhas onde se podia fugir à autoridade dos adultos começava por uma viagem de 50 quilómetros num pequeno comboio a vapor que partia de Lyon até à gare de Leyment, a 3 quilómetros do castelo. Era aí que uma tipoia esperava a família para a conduzir, por um estreito e sinuoso caminho pedregoso através de vinhedos e vacarias, até ao grande

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portão de ferro forjado que se abria para a alameda bordejada de tílias. Entrava-se no jardim pela grande alameda que conduzia diretamente às habitações principais, evitando assim a aldeia e criando a ilusão de se estar a penetrar num enclave isolado do resto do mundo.

As janelas da sala de jantar davam para um pátio nas traseiras, onde a presença de um poço recorda que só houve água corrente ou casa de banho já o século ia adiantado. Hoje em dia, este pátio constitui o acesso principal ao castelo e à sua capela do século XIX. Um portão de ferro dá para as ruas de Saint-Maurice-de-Rémens, aldeia que mudou apenas superficialmente nestes últimos cem anos.

Uma das novidades mais evidentes é o monumento aos mortos na guerra, no qual figura o nome de Saint-Exupéry. A cruz de pedra domina a praça principal rebatizada como place de Saint-Exupéry em 1991, onde vários plátanos proporcionam uma sombra hospitaleira à esplanada de um café. As estreitas e poeirentas ruelas em redor foram entretanto asfaltadas, mas muitas das casas são ainda as habitações caraterísticas de telhados inclinados cinzento-escuros do vale do Jura, onde a neve pode ser abundante e contínua.

As verdadeiras alterações em Saint-Maurice são invisíveis. O pequeno burgo já não vive ao ritmo dos antigos castelões, e o sentimento de comunidade testemunhado por Saint-Exupéry desapareceu com o êxodo rural e a chegada dos citadinos que aí adquiriram uma segunda habitação.

Durante a infância de Antoine, a raridade dos meios de transporte transformava qualquer visita a Ambérieu-en-Bugey, a vila mercan-til mais próxima, numa verdadeira expedição. Os aldeões viviam do mesmo modo século após século, fechados em si mesmos. Castelões e jornaleiros agrícolas partilhavam recordações comuns que remon-tavam a gerações passadas, e cada um assumia o papel que Deus lhe tinha destinado. As referências de Antoine à infância parecem-nos ainda mais pungentes, porque sabemos agora que este mundo imutá-vel já estava condenado ao desaparecimento e que os privilégios de uma aristocracia confiante na sua perenidade se encontravam prestes a ser abolidos pela Primeira Guerra Mundial.

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A sua irmã Simone mantinha nessa época um diário, do qual extraiu os principais incidentes para escrever Cinco Crianças Num Jardim. A sua narrativa era dominada por uma das personalidades mais mar-cantes da infância de Antoine, a condessa de Tricaud, conhecida por Tante (Tia). A castelã, viúva há já 15 anos, tinha 67 anos quando do batismo de Antoine. A sua vida matrimonial ficara marcada pelo fale-cimento da filha única, vítima de difteria com 3 anos, o que lhe dei-xara como única missão reinar sobre uma complicada rede de parentes depois de ter herdado do marido, um diplomata, o castelo e o aparta-mento de Lyon.

O eixo da sua família de adoção era a mãe de Antoine, Marie, sua sobrinha-neta, tendo sido Gabrielle de Tricaud quem presidiu aos planos que aceleraram o casamento de Marie com o pai de Antoine em 1896.

O meio aristocrático proporcionava mais do que uma ascensão social. Trazia por acréscimo uma rede benevolente de benfeitorias assentes na lealdade e na propriedade, e toda a família de Saint-Exupéry foi adotada pela tia Gabrielle após a morte do pai de Antoine, em 1904. Viviam principalmente dos proventos das suas quintas, incluindo os 250 hecta-res em redor do castelo. A família aceitou a condessa como autoridade incontestada de toda a casa, dominada por mulheres e criadas.

Gabrielle de Tricaud possuía a dimensão de uma personagem de romance. Vestida de negro e caminhando com a ajuda de uma ben-gala, tanto se mostrava generosa como tirânica. Nascida numa época em que as filhas de boas famílias eram auxiliadas por uma criada até para escovar o cabelo, tinha uma criada de quarto, também ela viúva. Os convidados eram recebidos em Saint-Maurice em dias certos para as suas partidas de dominó ou de bridge à luz de candeeiros a petróleo, ou para assistirem a concertos musicais que ela dava às quartas-feiras no apartamento de Lyon quando a família passava ali o inverno.

O pároco de Saint-Maurice, o padre Montessuy, era tratado como seu confessor pessoal, chamado frequentemente para abençoar o método perentório que ela tinha de conduzir as orações em latim na capela pri-vada, depois do jantar. Era obrigado a ouvir os seus sermões acerca da

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portão de ferro forjado que se abria para a alameda bordejada de tílias. Entrava-se no jardim pela grande alameda que conduzia diretamente às habitações principais, evitando assim a aldeia e criando a ilusão de se estar a penetrar num enclave isolado do resto do mundo.

As janelas da sala de jantar davam para um pátio nas traseiras, onde a presença de um poço recorda que só houve água corrente ou casa de banho já o século ia adiantado. Hoje em dia, este pátio constitui o acesso principal ao castelo e à sua capela do século XIX. Um portão de ferro dá para as ruas de Saint-Maurice-de-Rémens, aldeia que mudou apenas superficialmente nestes últimos cem anos.

Uma das novidades mais evidentes é o monumento aos mortos na guerra, no qual figura o nome de Saint-Exupéry. A cruz de pedra domina a praça principal rebatizada como place de Saint-Exupéry em 1991, onde vários plátanos proporcionam uma sombra hospitaleira à esplanada de um café. As estreitas e poeirentas ruelas em redor foram entretanto asfaltadas, mas muitas das casas são ainda as habitações caraterísticas de telhados inclinados cinzento-escuros do vale do Jura, onde a neve pode ser abundante e contínua.

As verdadeiras alterações em Saint-Maurice são invisíveis. O pequeno burgo já não vive ao ritmo dos antigos castelões, e o sentimento de comunidade testemunhado por Saint-Exupéry desapareceu com o êxodo rural e a chegada dos citadinos que aí adquiriram uma segunda habitação.

Durante a infância de Antoine, a raridade dos meios de transporte transformava qualquer visita a Ambérieu-en-Bugey, a vila mercan-til mais próxima, numa verdadeira expedição. Os aldeões viviam do mesmo modo século após século, fechados em si mesmos. Castelões e jornaleiros agrícolas partilhavam recordações comuns que remon-tavam a gerações passadas, e cada um assumia o papel que Deus lhe tinha destinado. As referências de Antoine à infância parecem-nos ainda mais pungentes, porque sabemos agora que este mundo imutá-vel já estava condenado ao desaparecimento e que os privilégios de uma aristocracia confiante na sua perenidade se encontravam prestes a ser abolidos pela Primeira Guerra Mundial.

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A sua irmã Simone mantinha nessa época um diário, do qual extraiu os principais incidentes para escrever Cinco Crianças Num Jardim. A sua narrativa era dominada por uma das personalidades mais mar-cantes da infância de Antoine, a condessa de Tricaud, conhecida por Tante (Tia). A castelã, viúva há já 15 anos, tinha 67 anos quando do batismo de Antoine. A sua vida matrimonial ficara marcada pelo fale-cimento da filha única, vítima de difteria com 3 anos, o que lhe dei-xara como única missão reinar sobre uma complicada rede de parentes depois de ter herdado do marido, um diplomata, o castelo e o aparta-mento de Lyon.

O eixo da sua família de adoção era a mãe de Antoine, Marie, sua sobrinha-neta, tendo sido Gabrielle de Tricaud quem presidiu aos planos que aceleraram o casamento de Marie com o pai de Antoine em 1896.

O meio aristocrático proporcionava mais do que uma ascensão social. Trazia por acréscimo uma rede benevolente de benfeitorias assentes na lealdade e na propriedade, e toda a família de Saint-Exupéry foi adotada pela tia Gabrielle após a morte do pai de Antoine, em 1904. Viviam principalmente dos proventos das suas quintas, incluindo os 250 hecta-res em redor do castelo. A família aceitou a condessa como autoridade incontestada de toda a casa, dominada por mulheres e criadas.

Gabrielle de Tricaud possuía a dimensão de uma personagem de romance. Vestida de negro e caminhando com a ajuda de uma ben-gala, tanto se mostrava generosa como tirânica. Nascida numa época em que as filhas de boas famílias eram auxiliadas por uma criada até para escovar o cabelo, tinha uma criada de quarto, também ela viúva. Os convidados eram recebidos em Saint-Maurice em dias certos para as suas partidas de dominó ou de bridge à luz de candeeiros a petróleo, ou para assistirem a concertos musicais que ela dava às quartas-feiras no apartamento de Lyon quando a família passava ali o inverno.

O pároco de Saint-Maurice, o padre Montessuy, era tratado como seu confessor pessoal, chamado frequentemente para abençoar o método perentório que ela tinha de conduzir as orações em latim na capela pri-vada, depois do jantar. Era obrigado a ouvir os seus sermões acerca da

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maneira como devia tratar os aldeões, uma comunidade que ela regia por direito divino, conhecendo todas as pessoas pelo nome.

Embora adorasse Marie-Madeleine, a irmã mais velha de Antoine, Gabrielle de Tricaud não perdia tempo com os rapazes ou com os ani-mais. Antoine e François tinham o direito de estarem presentes mas não de serem ouvidos, e os inúmeros animais de companhia não eram tolerados em casa, com a exceção das aves domesticadas de Madeleine.

Quando Simone fala desta tia dominadora, fá-lo com bastante afeto pela sua originalidade, que por vezes escondia um grande coração. Admirava também a sua capacidade de escolha dos criados tão excên-tricos como ela. Nunca tinha menos de oito criadas permanentemente ao seu serviço em Saint-Maurice. Muitas vezes tratadas como crianças, as criadas desempenhavam o papel de intermediárias entre irmãos e irmãs e os adultos mais condescendentes. Por vezes, eram as crianças quem tinham de consolar as criadas, nomeadamente quando a cozi-nheira era repreendida em público pela tia Gabrielle, sob o pretexto de que a refeição tinha sido servida com alguns minutos de atraso ou que não possuía a qualidade requerida para o vaivém constante de convidados.

De todas as estranhas personagens que povoavam as sombras do castelo, a mais comovente era, sem dúvida, o mordomo, Cyprien, um suíço de ar lúgubre, vestido com um uniforme preto. As suas investi-das casamenteiras tinham sido repelidas pela criada de quarto da tia, Noémi, e acabara por procurar consolo no álcool. Era tão sensível que, por vezes, servia à mesa com a face banhada de lágrimas devido ao des-gosto de amor.

Mas foi sobre Marguerite Chapays, mais conhecida como Moisy, diminutivo de mademoiselle, que Antoine e Simone mais escreveram. Ela surge «saltitante como um rato» nas memórias de Saint-Exupéry em Terra dos Homens. «Oh, meu Deus, que desgraça!», exclama ela, deses-perada, ao observar a roupa branca da família já muito usada. Ao fim de muitos anos, fora promovida de criada a governanta. Os quatro armários de roupa a que ela passava revista com um olhar meti- culoso, reajustando a disposição dos lençóis e das toalhas de mesa para se assegurar do seu uso harmonioso, eram para ela o seu reino dos

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segredos, tal como para Antoine eram os locais de brincadeiras que ele descobria nos jardins e no celeiro. O conteúdo destes quatro armá-rios tornou-se um tema recorrente na obra literária de Saint-Exupéry. A partir de Correio do Sul, são abundantes as referências às virtudes calmantes dos lençóis brancos e as evocações metafóricas das toalhas de mesa.

Moisy era a aliada dos rapazes na sua luta contra os incompreensí-veis adultos, escondendo por vezes Antoine na sua cama para o salvar de uma tareia. No fundo, era mais ama das crianças do que governanta. À noite, Antoine costumava entrar sorrateiramente no quarto dela para um canard, um torrão de açúcar embebido em vinho; quando as outras crianças descobriram isto, ela aumentou a reserva de açúcar para agra-dar a todos, mas a reserva de álcool teve de ser muitas vezes reforçada com o vinho de missa do padre Montessuy.

Era uma eterna filha do campo, de faces rosadas como maçãs, que tinha procurado refúgio em Saint-Maurice como criada após a expe-riência desgastante de um trabalho diário de dez horas numa fiação em Lyon. Enquanto os tios e as tias não falavam senão em finanças, propriedades e religião, Moisy ensinava às crianças o nome das flores campestres e levava-as a colher fruta para fazer compotas.

Com o passar dos anos, foi promovida de criada a governanta. Os armários da roupa branca que ela vigiava possessivamente, arru-mando e voltando a arrumar os lençóis e toalhas de mesa para que não ficassem vincados, eram o seu reino secreto, tal como o jardim e os sótãos o eram para as crianças. Era uma mulher frágil e atarracada, e Antoine depressa ficou mais alto do que ela, levantando-a facilmente do chão, balançando-a nos braços e mimando-a para a convencer a preparar-lhe os seus pratos favoritos. Foi ele que, já adulto, se tornou o seu anjo da guarda quando ela conseguiu finalmente realizar o sonho da sua vida, a aquisição de uma pequena habitação na sua aldeia natal, no département de Drôme. Enviou-lhe dinheiro para os arranjos da casa e visitava-a sempre que possível, até à sua mobilização em 1939, parti-lhando com ela a nostalgia despertada por uma pequena caixa de foto-grafias de Saint-Maurice que ela guardava no quarto.

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maneira como devia tratar os aldeões, uma comunidade que ela regia por direito divino, conhecendo todas as pessoas pelo nome.

Embora adorasse Marie-Madeleine, a irmã mais velha de Antoine, Gabrielle de Tricaud não perdia tempo com os rapazes ou com os ani-mais. Antoine e François tinham o direito de estarem presentes mas não de serem ouvidos, e os inúmeros animais de companhia não eram tolerados em casa, com a exceção das aves domesticadas de Madeleine.

Quando Simone fala desta tia dominadora, fá-lo com bastante afeto pela sua originalidade, que por vezes escondia um grande coração. Admirava também a sua capacidade de escolha dos criados tão excên-tricos como ela. Nunca tinha menos de oito criadas permanentemente ao seu serviço em Saint-Maurice. Muitas vezes tratadas como crianças, as criadas desempenhavam o papel de intermediárias entre irmãos e irmãs e os adultos mais condescendentes. Por vezes, eram as crianças quem tinham de consolar as criadas, nomeadamente quando a cozi-nheira era repreendida em público pela tia Gabrielle, sob o pretexto de que a refeição tinha sido servida com alguns minutos de atraso ou que não possuía a qualidade requerida para o vaivém constante de convidados.

De todas as estranhas personagens que povoavam as sombras do castelo, a mais comovente era, sem dúvida, o mordomo, Cyprien, um suíço de ar lúgubre, vestido com um uniforme preto. As suas investi-das casamenteiras tinham sido repelidas pela criada de quarto da tia, Noémi, e acabara por procurar consolo no álcool. Era tão sensível que, por vezes, servia à mesa com a face banhada de lágrimas devido ao des-gosto de amor.

Mas foi sobre Marguerite Chapays, mais conhecida como Moisy, diminutivo de mademoiselle, que Antoine e Simone mais escreveram. Ela surge «saltitante como um rato» nas memórias de Saint-Exupéry em Terra dos Homens. «Oh, meu Deus, que desgraça!», exclama ela, deses-perada, ao observar a roupa branca da família já muito usada. Ao fim de muitos anos, fora promovida de criada a governanta. Os quatro armários de roupa a que ela passava revista com um olhar meti- culoso, reajustando a disposição dos lençóis e das toalhas de mesa para se assegurar do seu uso harmonioso, eram para ela o seu reino dos

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segredos, tal como para Antoine eram os locais de brincadeiras que ele descobria nos jardins e no celeiro. O conteúdo destes quatro armá-rios tornou-se um tema recorrente na obra literária de Saint-Exupéry. A partir de Correio do Sul, são abundantes as referências às virtudes calmantes dos lençóis brancos e as evocações metafóricas das toalhas de mesa.

Moisy era a aliada dos rapazes na sua luta contra os incompreensí-veis adultos, escondendo por vezes Antoine na sua cama para o salvar de uma tareia. No fundo, era mais ama das crianças do que governanta. À noite, Antoine costumava entrar sorrateiramente no quarto dela para um canard, um torrão de açúcar embebido em vinho; quando as outras crianças descobriram isto, ela aumentou a reserva de açúcar para agra-dar a todos, mas a reserva de álcool teve de ser muitas vezes reforçada com o vinho de missa do padre Montessuy.

Era uma eterna filha do campo, de faces rosadas como maçãs, que tinha procurado refúgio em Saint-Maurice como criada após a expe-riência desgastante de um trabalho diário de dez horas numa fiação em Lyon. Enquanto os tios e as tias não falavam senão em finanças, propriedades e religião, Moisy ensinava às crianças o nome das flores campestres e levava-as a colher fruta para fazer compotas.

Com o passar dos anos, foi promovida de criada a governanta. Os armários da roupa branca que ela vigiava possessivamente, arru-mando e voltando a arrumar os lençóis e toalhas de mesa para que não ficassem vincados, eram o seu reino secreto, tal como o jardim e os sótãos o eram para as crianças. Era uma mulher frágil e atarracada, e Antoine depressa ficou mais alto do que ela, levantando-a facilmente do chão, balançando-a nos braços e mimando-a para a convencer a preparar-lhe os seus pratos favoritos. Foi ele que, já adulto, se tornou o seu anjo da guarda quando ela conseguiu finalmente realizar o sonho da sua vida, a aquisição de uma pequena habitação na sua aldeia natal, no département de Drôme. Enviou-lhe dinheiro para os arranjos da casa e visitava-a sempre que possível, até à sua mobilização em 1939, parti-lhando com ela a nostalgia despertada por uma pequena caixa de foto-grafias de Saint-Maurice que ela guardava no quarto.

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As relações que Gabrielle de Tricaud estabelecia com naturalidade entre patrões e criados denotavam inegavelmente a segurança de uma aristo-crata, mas ela estava a tornar-se a caricatura de um passado morto. Apesar de a Revolução ter ocorrido um século antes, ela considerava a República mais como uma moda passageira do que como uma mudança radical.

Os casamentos de conveniência, com a proteção implícita de bens e títulos, tinham reforçado as famílias nobres quase arruinadas pelo período do Terror. As suas fortunas foram restauradas graças aos novos--ricos da burguesia industrial que dispunham de dinheiro suficiente para uma aliança com a aristocracia. A seguir à Revolução, a França viveu períodos como o regresso da realeza dos Bourbons e dos Orleães ou o império bonapartista, cada um contribuindo com a sua quota-parte de famílias recentemente feitas nobres.

Quando o pretendente ao trono, o conde de Chambord, pôs fim ao vazio criado entre as fações legitimista e orleanista, para a nobreza da província, o regresso da monarquia era apenas uma questão de tempo. Na altura do nascimento de Antoine, a República autodestruía-se no seguimento da polémica aparentemente irrelevante que envolveu um capitão judeu chamado Alfred Dreyfus. Sustentada pela Igreja Católica, a aristocracia, cuja autoridade hereditária fora abalada, viu neste escân-dalo a prova de que uma assembleia popular não podia senão destruir--se a si própria, considerando também que a emancipação dos judeus em 1791 fazia já parte do lento veneno do liberalismo. Já tinham pas-sado bastantes anos para que os excessos do Antigo Regime tivessem sido esquecidos e só as suas glórias fossem recordadas.

A castelã de Saint-Maurice era reacionária por instinto, orgulhosa da sua ligação à casa real deposta, rodeando-se de amigos com as mesmas opiniões. Recusava-se a ler o jornal local, Le Progrès de Lyon, que con-siderava demasiado vanguardista, preferindo Le Nouvelliste, jornal pró--monárquico, suscitando assim indiretamente, entre os seus sobrinhos e sobrinhas em segundo grau, um gosto pela monarquia que Simone e Gabrielle guardaram durante toda a vida.

Estava completamente convencida de que detinha o direito here-ditário de comandar, opinião partilhada pela maioria dos aldeões que

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dependia do castelo para os seus trabalhos jornaleiros, pelos empre-gados domésticos e pelos rendeiros. Poucos se recusavam a tirar o chapéu ou a fazer uma vénia quando a castelã percorria os seus domí-nios. Ela considerava como seguro o apoio da Igreja Católica, confor-tada pelo padre Montessuy, tornado membro honorário da família. Os ideais conjuntos da fé católica e da monarquia entrelaçavam-se na sua capela pessoal, cujas lajes de mármore ostentavam a flor de lis, o emblema da realeza.

Se Antoine teve poucas razões para voltar costas à religião até às vicissitudes por que passou na idade adulta, isso deve-se sobretudo a François Montessuy, o primeiro dos sacerdotes que influenciaram as suas escolhas. O padre pode ser tomado erradamente por um servidor da família, tal era o tempo que passava no castelo, mas, na realidade, era o responsável pela igreja paroquial de Saint-Maurice, onde os ban-cos da primeira fila estavam reservados à família Saint-Exupéry e onde a mãe de Antoine tocava órgão e dirigia o coro das meninas da aldeia.

Como a família mantinha relações de amizade com o bispo de Belley, teve muito possivelmente uma palavra a dizer sobre a nomeação do padre Montessuy, que pouco se parecia com o habitual curé rústico. Tinha sido professor de matemática numa família burguesa, antes de ser obrigado a abandonar a maior cidade do distrito de Ain, Bourg--en-Bresse, por razões de saúde. Possuía uma cultura vasta, adquirida durante os anos em que estudara em Paris, onde foi apanhado pelos dis- túrbios de 1870, e entendia-se às mil maravilhas com as crianças, desem- penhando o papel de um tio indulgente. Tal como Antoine e François, sofria por vezes com a autoridade despótica da tia e certa vez ficou terrivelmente ofendido quando a castelã insinuou que ele só frequen-tava o castelo por causa da abundante comida caseira ou para beber a sua aguardente especial. Ele recusou-se a lá regressar, até que a tia teve de enviar um emissário ao presbitério.

O padre Montessuy sabia conquistar a amizade dos rapazes graças aos seus talentos inesgotáveis no bilhar, de que fazia demonstrações sobre a grande mesa da biblioteca, frente às grandes estantes envidra-çadas repletas de livros. Acompanhava-os igualmente nos seus passeios

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As relações que Gabrielle de Tricaud estabelecia com naturalidade entre patrões e criados denotavam inegavelmente a segurança de uma aristo-crata, mas ela estava a tornar-se a caricatura de um passado morto. Apesar de a Revolução ter ocorrido um século antes, ela considerava a República mais como uma moda passageira do que como uma mudança radical.

Os casamentos de conveniência, com a proteção implícita de bens e títulos, tinham reforçado as famílias nobres quase arruinadas pelo período do Terror. As suas fortunas foram restauradas graças aos novos--ricos da burguesia industrial que dispunham de dinheiro suficiente para uma aliança com a aristocracia. A seguir à Revolução, a França viveu períodos como o regresso da realeza dos Bourbons e dos Orleães ou o império bonapartista, cada um contribuindo com a sua quota-parte de famílias recentemente feitas nobres.

Quando o pretendente ao trono, o conde de Chambord, pôs fim ao vazio criado entre as fações legitimista e orleanista, para a nobreza da província, o regresso da monarquia era apenas uma questão de tempo. Na altura do nascimento de Antoine, a República autodestruía-se no seguimento da polémica aparentemente irrelevante que envolveu um capitão judeu chamado Alfred Dreyfus. Sustentada pela Igreja Católica, a aristocracia, cuja autoridade hereditária fora abalada, viu neste escân-dalo a prova de que uma assembleia popular não podia senão destruir--se a si própria, considerando também que a emancipação dos judeus em 1791 fazia já parte do lento veneno do liberalismo. Já tinham pas-sado bastantes anos para que os excessos do Antigo Regime tivessem sido esquecidos e só as suas glórias fossem recordadas.

A castelã de Saint-Maurice era reacionária por instinto, orgulhosa da sua ligação à casa real deposta, rodeando-se de amigos com as mesmas opiniões. Recusava-se a ler o jornal local, Le Progrès de Lyon, que con-siderava demasiado vanguardista, preferindo Le Nouvelliste, jornal pró--monárquico, suscitando assim indiretamente, entre os seus sobrinhos e sobrinhas em segundo grau, um gosto pela monarquia que Simone e Gabrielle guardaram durante toda a vida.

Estava completamente convencida de que detinha o direito here-ditário de comandar, opinião partilhada pela maioria dos aldeões que

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dependia do castelo para os seus trabalhos jornaleiros, pelos empre-gados domésticos e pelos rendeiros. Poucos se recusavam a tirar o chapéu ou a fazer uma vénia quando a castelã percorria os seus domí-nios. Ela considerava como seguro o apoio da Igreja Católica, confor-tada pelo padre Montessuy, tornado membro honorário da família. Os ideais conjuntos da fé católica e da monarquia entrelaçavam-se na sua capela pessoal, cujas lajes de mármore ostentavam a flor de lis, o emblema da realeza.

Se Antoine teve poucas razões para voltar costas à religião até às vicissitudes por que passou na idade adulta, isso deve-se sobretudo a François Montessuy, o primeiro dos sacerdotes que influenciaram as suas escolhas. O padre pode ser tomado erradamente por um servidor da família, tal era o tempo que passava no castelo, mas, na realidade, era o responsável pela igreja paroquial de Saint-Maurice, onde os ban-cos da primeira fila estavam reservados à família Saint-Exupéry e onde a mãe de Antoine tocava órgão e dirigia o coro das meninas da aldeia.

Como a família mantinha relações de amizade com o bispo de Belley, teve muito possivelmente uma palavra a dizer sobre a nomeação do padre Montessuy, que pouco se parecia com o habitual curé rústico. Tinha sido professor de matemática numa família burguesa, antes de ser obrigado a abandonar a maior cidade do distrito de Ain, Bourg--en-Bresse, por razões de saúde. Possuía uma cultura vasta, adquirida durante os anos em que estudara em Paris, onde foi apanhado pelos dis- túrbios de 1870, e entendia-se às mil maravilhas com as crianças, desem- penhando o papel de um tio indulgente. Tal como Antoine e François, sofria por vezes com a autoridade despótica da tia e certa vez ficou terrivelmente ofendido quando a castelã insinuou que ele só frequen-tava o castelo por causa da abundante comida caseira ou para beber a sua aguardente especial. Ele recusou-se a lá regressar, até que a tia teve de enviar um emissário ao presbitério.

O padre Montessuy sabia conquistar a amizade dos rapazes graças aos seus talentos inesgotáveis no bilhar, de que fazia demonstrações sobre a grande mesa da biblioteca, frente às grandes estantes envidra-çadas repletas de livros. Acompanhava-os igualmente nos seus passeios

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a cavalo, ou em tipoia, até aos lagos dos Dombes ou a qualquer sítio pitoresco. Suportava com bom humor as suas brincadeiras e partidas, chegando ao ponto de um dia comer um corvo assado que Antoine quis fazer passar por uma galinha, ignorando sem pestanejar os risos desa-bridos das crianças.

Em 1911, no decurso de uma seca que viria a marcar o início de uma série de verões tórridos que precederam a Primeira Guerra Mundial, o padre serviu de modelo à imaginação fértil de Antoine. As crianças tinham ido até às margens lamacentas do Ain acompa-nhadas por duas criadas, usando a lama para recriar a cara de vários convidados que desfilavam por Saint-Maurice durante os três meses de férias de verão. Simone recorda-se de que, na sua maioria, as caras eram identificáveis, à exceção da do cura, moldada por Antoine e dis-farçada com uma barba fictícia.

Ele explicou à irmã que não se tratava de um erro de observação: a boca do padre Montessuy possuía uma forma demasiado difícil de reproduzir.

Ouço cantar a minha árvore

SE OS SERMÕES DO padre Montessuy, normalmente intermináveis e num estilo floreado, constituíam uma espécie de tortura dominical para as crianças Saint-Exupéry, eram, por outro lado, a substância vital para a sua mãe viúva, para quem a fé católica foi uma fonte constante de ins-piração até à sua morte em 1972, com 97 anos. A profunda devoção de Marie tornava-a aos olhos do padre uma espécie de monja laica, e existia entre eles uma cumplicidade de casal votado ao celibato; por escolha no caso do cura, por força das circunstâncias no caso de Marie.

A tia Gabrielle, convencida de que o curé tinha mais influência do que ela sobre a sobrinha-neta, confessou um dia ao padre a sua inquie-tude em vê-la pôr a saúde em perigo devido à sua infatigável abnegação. As crianças da aldeia eram convidadas pelo menos uma vez por semana para ir ao castelo, para uma merenda acompanhada de jogos, mas a tia

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considerava que Marie ia longe de mais ao convidar para o piquenique as meninas do coro. O que faltava na propriedade era um homem, disse ela ao padre Montessuy.

O interesse que Marie manifestava em relação à música e à pin-tura contemporâneas funcionava junto do padre como uma atração suplementar, ele que, tendo sido instruído num meio citadino culto, se via exposto às superstições, preconceitos e rivalidades mesquinhas de uma remota comunidade aldeã. Era através do conforto espiritual a uma viúva corajosa, determinada em transmitir aos filhos as suas con-vicções religiosas, que ele dava um sentido à sua missão sacerdotal, pelo menos de abril a outubro, quando o castelo estava ocupado.

O marido de Marie de Saint-Exupéry morreu apenas oito anos após o casamento. Ela esperava na altura o quinto filho, e o desapareci-mento do marido foi para ela uma das primeiras provas pessoais de toda uma série que só reforçaram a sua fé católica, fundamentada na aceitação total da autoridade espiritual do Novo Testamento e numa convicção enraizada no amor a Deus. Exercendo uma influência deter-minante na vida de Antoine, Marie deve ter sofrido ainda mais ao vê-lo abandonar a religião do que sabê-lo exposto aos perigos da sua profis-são de piloto.

É impossível compreender as hesitações de Saint-Exupéry ou as suas escolhas, por vezes desastradas, sem ter em conta as influências da mãe, que ele se esforçava por contornar sem, contudo, nunca rom-per com elas. Reconhecia nelas, sem dúvida, as qualidades humanas que ele não possuía e uma capacidade de contacto com uma divindade benevolente que ele nunca conseguiu atingir.

Se bem que nunca se tivesse preocupado com a compreensível oposição à sua perigosa carreira, rejeitasse os projetos de casamento que ela tentava criar-lhe e lhe pedisse constantemente dinheiro, mesmo quando a fortuna dela começou a definhar, a afeição entre mãe e filho nunca sofreu com isso. A única censura que se pode fazer a Marie foi a de, involuntariamente, ter sido para o filho um modelo de perfeição feminina, de compaixão e devoção que ele nunca encon-traria noutra mulher.

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a cavalo, ou em tipoia, até aos lagos dos Dombes ou a qualquer sítio pitoresco. Suportava com bom humor as suas brincadeiras e partidas, chegando ao ponto de um dia comer um corvo assado que Antoine quis fazer passar por uma galinha, ignorando sem pestanejar os risos desa-bridos das crianças.

Em 1911, no decurso de uma seca que viria a marcar o início de uma série de verões tórridos que precederam a Primeira Guerra Mundial, o padre serviu de modelo à imaginação fértil de Antoine. As crianças tinham ido até às margens lamacentas do Ain acompa-nhadas por duas criadas, usando a lama para recriar a cara de vários convidados que desfilavam por Saint-Maurice durante os três meses de férias de verão. Simone recorda-se de que, na sua maioria, as caras eram identificáveis, à exceção da do cura, moldada por Antoine e dis-farçada com uma barba fictícia.

Ele explicou à irmã que não se tratava de um erro de observação: a boca do padre Montessuy possuía uma forma demasiado difícil de reproduzir.

Ouço cantar a minha árvore

SE OS SERMÕES DO padre Montessuy, normalmente intermináveis e num estilo floreado, constituíam uma espécie de tortura dominical para as crianças Saint-Exupéry, eram, por outro lado, a substância vital para a sua mãe viúva, para quem a fé católica foi uma fonte constante de ins-piração até à sua morte em 1972, com 97 anos. A profunda devoção de Marie tornava-a aos olhos do padre uma espécie de monja laica, e existia entre eles uma cumplicidade de casal votado ao celibato; por escolha no caso do cura, por força das circunstâncias no caso de Marie.

A tia Gabrielle, convencida de que o curé tinha mais influência do que ela sobre a sobrinha-neta, confessou um dia ao padre a sua inquie-tude em vê-la pôr a saúde em perigo devido à sua infatigável abnegação. As crianças da aldeia eram convidadas pelo menos uma vez por semana para ir ao castelo, para uma merenda acompanhada de jogos, mas a tia

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considerava que Marie ia longe de mais ao convidar para o piquenique as meninas do coro. O que faltava na propriedade era um homem, disse ela ao padre Montessuy.

O interesse que Marie manifestava em relação à música e à pin-tura contemporâneas funcionava junto do padre como uma atração suplementar, ele que, tendo sido instruído num meio citadino culto, se via exposto às superstições, preconceitos e rivalidades mesquinhas de uma remota comunidade aldeã. Era através do conforto espiritual a uma viúva corajosa, determinada em transmitir aos filhos as suas con-vicções religiosas, que ele dava um sentido à sua missão sacerdotal, pelo menos de abril a outubro, quando o castelo estava ocupado.

O marido de Marie de Saint-Exupéry morreu apenas oito anos após o casamento. Ela esperava na altura o quinto filho, e o desapareci-mento do marido foi para ela uma das primeiras provas pessoais de toda uma série que só reforçaram a sua fé católica, fundamentada na aceitação total da autoridade espiritual do Novo Testamento e numa convicção enraizada no amor a Deus. Exercendo uma influência deter-minante na vida de Antoine, Marie deve ter sofrido ainda mais ao vê-lo abandonar a religião do que sabê-lo exposto aos perigos da sua profis-são de piloto.

É impossível compreender as hesitações de Saint-Exupéry ou as suas escolhas, por vezes desastradas, sem ter em conta as influências da mãe, que ele se esforçava por contornar sem, contudo, nunca rom-per com elas. Reconhecia nelas, sem dúvida, as qualidades humanas que ele não possuía e uma capacidade de contacto com uma divindade benevolente que ele nunca conseguiu atingir.

Se bem que nunca se tivesse preocupado com a compreensível oposição à sua perigosa carreira, rejeitasse os projetos de casamento que ela tentava criar-lhe e lhe pedisse constantemente dinheiro, mesmo quando a fortuna dela começou a definhar, a afeição entre mãe e filho nunca sofreu com isso. A única censura que se pode fazer a Marie foi a de, involuntariamente, ter sido para o filho um modelo de perfeição feminina, de compaixão e devoção que ele nunca encon-traria noutra mulher.

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Até o seu caráter tendencialmente autocrático e o seu sarcasmo esporádico eram apreciados. Nem ela nem Antoine se reviam nas famí-lias mais preocupadas com gerar dinheiro e juntar uma fortuna para os seus descendentes do que com satisfazer os anseios presentes. Sempre que tinha algum dinheiro extra, gastava-o em vestidos novos, prefe-rindo a admiração dos filhos à expressão de desaprovação dos parentes mais avaros.

O amor maternal era complementado pelo orgulho que sentia pelo filho. Antoine levou a vida independente que lhe havia sido negada enquanto mulher nobre nascida no século XIX, numa época em que os interesses da família se sobrepunham a tudo o resto. O destino de uma mulher era o inevitável casamento por conveniência em nome da pro-priedade, do prestígio e da posteridade.

As cartas publicadas que Antoine escreveu à mãe testemunham cla-ramente a sua sede constante de afeição e encorajamento até ao dia da sua morte, particularmente por causa das recordações de férias em Saint-Maurice e das visitas ao castelo de La Môle, nas colinas per-fumadas por trás de Saint-Tropez, onde Marie passara a infância. A última mensagem de Antoine, redigida alguns dias antes de mor-rer, e que ela recebeu um ano mais tarde, terminava com uma súplica: «Maman, embrassez-moi comme je vous embrasse du fond de mon coeur» («Mamã, beije-me como eu a beijo do fundo do coração»).

Esta carta espelhava a dor de 40 anos que Antoine sentia então como a pior das punições pela sua indisciplina: ir para a cama sem um beijo de boas-noites da mãe. Os seus apelos desesperados e enternecedores para a reconciliação nunca ficavam sem resposta.

A necessidade de afeição da sua «petite maman», que ele sentiu durante toda a vida, deve-se muito ao sentimento mútuo de felicidade vivida durante a infância e ao talento de ambos para partilharem um passado sagrado em termos simples. Em 1964, perto de completar 90 anos, Marie de Saint-Exupéry publicou as suas próprias memórias de infância no castelo da família Fonscolombe, em La Môle, numa recolha de ensaios e poemas intitulada Ouço Cantar a Minha Árvore. O seu amor pela música, pela natureza e pela literatura, evidente

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na evocação que faz de uma infância idílica na companhia dos três irmãos e da irmã mais nova, foi, sem dúvida, transmitido ao filho.

***

ENTRE AS INÚMERAS FOTOGRAFIAS existentes da família mais próxima de Antoine, as que evocam uma maior nostalgia são as tiradas nos rel-vados de Saint-Maurice. Marie, alta, elegante e coquete, está cercada pelos cinco filhos, cada um com o seu caráter singular. O grupo fami-liar nunca fora tão unido como quando a mãe lhes contava, à sombra das tílias, histórias inspiradas na Bíblia ou em qualquer outra obra edificante. Na maioria das vezes, as crianças uniam-se em alianças efé-meras, determinadas pelos temperamentos e interesses do momento. A mais velha, Marie-Madeleine, conhecida como Biche, fugia da com-panhia dos outros, sobretudo dos adultos, e refugiava-se num canto do sótão a que ela chamava «o quarto chinês», onde lia, fazia paciên-cias ou classificava a sua coleção de postais de flores e animais.

Simone, a irmã mais nova, era a contadora de histórias da família, talento que lhe provocou durante toda a vida um sentimento de frustra-ção, pois grande parte dos seus romances e contos foi sendo rejeitada pelos editores, apesar da celebridade do irmão. Assim como a irmã mais velha, também ela foi educada em casa, tanto no apartamento de Madame de Tricaud em Lyon como em Saint-Maurice. Possuía um caráter jovial, embora prepotente, e acompanhava Antoine nas suas expedições à volta de Saint-Maurice para escapar à tortuosa tutora alemã, lembrada apenas como Fraülein.

O segundo filho, François, tinha um temperamento doce muito pare-cido com o da sua irmã Marie-Madeleine e vivia na sombra de Antoine, aceitando a sua autoridade exigente e dominadora até ao momento em que uma discussão era resolvida à pancada. Por fim, havia Gabrielle, uma linda menina, por vezes vítima do suplício dos irmãos e noutras ocasiões heroína dos seus jogos românticos. Gabrielle seria a única dos cinco a ter filhos e a recriar à volta deles a atmosfera indulgente de Saint-Maurice no seu castelo de Agay, na costa mediterrânica, que se

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Até o seu caráter tendencialmente autocrático e o seu sarcasmo esporádico eram apreciados. Nem ela nem Antoine se reviam nas famí-lias mais preocupadas com gerar dinheiro e juntar uma fortuna para os seus descendentes do que com satisfazer os anseios presentes. Sempre que tinha algum dinheiro extra, gastava-o em vestidos novos, prefe-rindo a admiração dos filhos à expressão de desaprovação dos parentes mais avaros.

O amor maternal era complementado pelo orgulho que sentia pelo filho. Antoine levou a vida independente que lhe havia sido negada enquanto mulher nobre nascida no século XIX, numa época em que os interesses da família se sobrepunham a tudo o resto. O destino de uma mulher era o inevitável casamento por conveniência em nome da pro-priedade, do prestígio e da posteridade.

As cartas publicadas que Antoine escreveu à mãe testemunham cla-ramente a sua sede constante de afeição e encorajamento até ao dia da sua morte, particularmente por causa das recordações de férias em Saint-Maurice e das visitas ao castelo de La Môle, nas colinas per-fumadas por trás de Saint-Tropez, onde Marie passara a infância. A última mensagem de Antoine, redigida alguns dias antes de mor-rer, e que ela recebeu um ano mais tarde, terminava com uma súplica: «Maman, embrassez-moi comme je vous embrasse du fond de mon coeur» («Mamã, beije-me como eu a beijo do fundo do coração»).

Esta carta espelhava a dor de 40 anos que Antoine sentia então como a pior das punições pela sua indisciplina: ir para a cama sem um beijo de boas-noites da mãe. Os seus apelos desesperados e enternecedores para a reconciliação nunca ficavam sem resposta.

A necessidade de afeição da sua «petite maman», que ele sentiu durante toda a vida, deve-se muito ao sentimento mútuo de felicidade vivida durante a infância e ao talento de ambos para partilharem um passado sagrado em termos simples. Em 1964, perto de completar 90 anos, Marie de Saint-Exupéry publicou as suas próprias memórias de infância no castelo da família Fonscolombe, em La Môle, numa recolha de ensaios e poemas intitulada Ouço Cantar a Minha Árvore. O seu amor pela música, pela natureza e pela literatura, evidente

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na evocação que faz de uma infância idílica na companhia dos três irmãos e da irmã mais nova, foi, sem dúvida, transmitido ao filho.

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ENTRE AS INÚMERAS FOTOGRAFIAS existentes da família mais próxima de Antoine, as que evocam uma maior nostalgia são as tiradas nos rel-vados de Saint-Maurice. Marie, alta, elegante e coquete, está cercada pelos cinco filhos, cada um com o seu caráter singular. O grupo fami-liar nunca fora tão unido como quando a mãe lhes contava, à sombra das tílias, histórias inspiradas na Bíblia ou em qualquer outra obra edificante. Na maioria das vezes, as crianças uniam-se em alianças efé-meras, determinadas pelos temperamentos e interesses do momento. A mais velha, Marie-Madeleine, conhecida como Biche, fugia da com-panhia dos outros, sobretudo dos adultos, e refugiava-se num canto do sótão a que ela chamava «o quarto chinês», onde lia, fazia paciên-cias ou classificava a sua coleção de postais de flores e animais.

Simone, a irmã mais nova, era a contadora de histórias da família, talento que lhe provocou durante toda a vida um sentimento de frustra-ção, pois grande parte dos seus romances e contos foi sendo rejeitada pelos editores, apesar da celebridade do irmão. Assim como a irmã mais velha, também ela foi educada em casa, tanto no apartamento de Madame de Tricaud em Lyon como em Saint-Maurice. Possuía um caráter jovial, embora prepotente, e acompanhava Antoine nas suas expedições à volta de Saint-Maurice para escapar à tortuosa tutora alemã, lembrada apenas como Fraülein.

O segundo filho, François, tinha um temperamento doce muito pare-cido com o da sua irmã Marie-Madeleine e vivia na sombra de Antoine, aceitando a sua autoridade exigente e dominadora até ao momento em que uma discussão era resolvida à pancada. Por fim, havia Gabrielle, uma linda menina, por vezes vítima do suplício dos irmãos e noutras ocasiões heroína dos seus jogos românticos. Gabrielle seria a única dos cinco a ter filhos e a recriar à volta deles a atmosfera indulgente de Saint-Maurice no seu castelo de Agay, na costa mediterrânica, que se

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transformou no refúgio preferido de Antoine quando adulto. Os filhos de Gabrielle foram os últimos a usufruir da sensibilidade de Marie para os prazeres mais inocentes. Esperavam com tal impaciência as visitas da avó que se debatiam por lhe levar a mala — até que ela teve a ideia de levar sacos vazios, de modo a satisfazer toda a gente.

Mas o retrato mais notável de todas as fotografias da família era o de Antoine. Reconhecia-se, desde menino, o seu olhar malicioso numa fisio-nomia que denotava já uma forte personalidade, ainda que emoldurado por uma abundante cabeleira dourada que lhe valeu a alcunha Rei-Sol. Quarenta anos mais tarde, ver-se-ia uma representação romântica da sua coroa de cabelo louro nos desenhos infantis que fez do Principezinho, numa altura em que já podia refletir na ironia de ser progressivamente despojado de tanta beleza como castigo por se tornar adulto.

Todos os traços de caráter que fizeram de Antoine um companheiro tão sedutor e tão exigente anos mais tarde eram já visíveis desde tenra idade. Ele achava natural ser sempre o centro de todas as atenções como se fosse lógico ser o preferido. Não dava tréguas à mãe. Seguia-a por todo o lado com a sua pequena poltrona, onde se instalava para a ver pintar ou bordar, reclamando incessantemente que ela lhe contasse vezes sem conta as mesmas histórias bíblicas.

Já adulto, os amigos tinham de atender os seus telefonemas a qual-quer hora do dia ou da noite sempre que ele se lembrava de lhes pedir uma opinião sobre os seus escritos ou quando queria contar-lhes qual-quer aventura. Ganhou esse hábito ainda muito novo, quando acordava os irmãos de madrugada e os obrigava a acompanhá-lo ao quarto da mãe para lhes ler um conto ou um poema que acabara de compor. Era impossível resistir às suas exigências; a teimosia era outra das cara-terísticas que Antoine conservaria durante toda a vida.

Uma gentileza natural compensava a sua faceta altiva. Enquanto criança — contava a mãe —, desviava-se do caminho para evitar pisar as lagartas e subia aos pinheiros que rodeavam o castelo para tentar tra-var amizade com as rolas.

Desde que fez uso da razão, fizeram-no tomar consciência do facto de que ser herdeiro do título da família o tornava igualmente chefe de

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família, papel que iria complicar ainda mais a sua noção exagerada de responsabilidade. Simone contou que, durante o verão tórrido de 1912, tinha perdido o relógio oferecido na sua comunhão durante um longo passeio pelas colinas vizinhas na companhia de Antoine. Com a determinação obstinada que marcaria muitas vezes o seu compor-tamento adulto, o irmão voltou para trás sozinho à procura do objeto, percorrendo quilómetros em vão. Regressou ao cair da noite, esgotado e enlameado, furioso e envergonhado por desiludir a irmã.

***

COMO SE VERÁ ADIANTE, o fascínio de Saint-Exupéry pela mecânica e pela aviação começou aos 9 anos, mas a sua paixão pela escrita foi ainda mais precoce. Todos se lembram de que, desde muito pequeno, ele escrevia à menor oportunidade que lhe surgia, guardando as notas numa pequena caixa, um hábito que era o prelúdio da sua obsessão futura de anotar os pensamentos em cadernos de capas de couro.

Esta rotina constante de tomar notas contribuiu para outra caraterís-tica de Antoine: a desordem. Há recordações das suas secretárias desar-rumadas desde que era adolescente. Em Saint-Maurice, só Gabrielle estava autorizada a imprimir alguma ordem ao seu território sagrado quando a confusão se instalava.

Os seus primeiros poemas e contos de aventuras, inspirados na lite-ratura heroica ou em narrativas populares, deram lugar a projetos sem-pre mais ambiciosos, chegando a escrever o libreto para uma opereta no início da adolescência. Estas criações escondiam um desejo imediato de obter a admiração do círculo familiar, necessidade que mais tarde teria de ser colmatada pelos amigos mais próximos, os quais aprenderam que teriam de formular as suas críticas com prudência se queriam con-tinuar a merecer a estima de Saint-Exupéry.

Esta sede de adulação instantânea nunca foi preenchida de modo satisfatório pela lealdade do público anónimo, mesmo quando os seus livros receberam prémios literários. A obra publicada representa somente uma ínfima parte da imensa correspondência enviada aos amigos ou

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transformou no refúgio preferido de Antoine quando adulto. Os filhos de Gabrielle foram os últimos a usufruir da sensibilidade de Marie para os prazeres mais inocentes. Esperavam com tal impaciência as visitas da avó que se debatiam por lhe levar a mala — até que ela teve a ideia de levar sacos vazios, de modo a satisfazer toda a gente.

Mas o retrato mais notável de todas as fotografias da família era o de Antoine. Reconhecia-se, desde menino, o seu olhar malicioso numa fisio-nomia que denotava já uma forte personalidade, ainda que emoldurado por uma abundante cabeleira dourada que lhe valeu a alcunha Rei-Sol. Quarenta anos mais tarde, ver-se-ia uma representação romântica da sua coroa de cabelo louro nos desenhos infantis que fez do Principezinho, numa altura em que já podia refletir na ironia de ser progressivamente despojado de tanta beleza como castigo por se tornar adulto.

Todos os traços de caráter que fizeram de Antoine um companheiro tão sedutor e tão exigente anos mais tarde eram já visíveis desde tenra idade. Ele achava natural ser sempre o centro de todas as atenções como se fosse lógico ser o preferido. Não dava tréguas à mãe. Seguia-a por todo o lado com a sua pequena poltrona, onde se instalava para a ver pintar ou bordar, reclamando incessantemente que ela lhe contasse vezes sem conta as mesmas histórias bíblicas.

Já adulto, os amigos tinham de atender os seus telefonemas a qual-quer hora do dia ou da noite sempre que ele se lembrava de lhes pedir uma opinião sobre os seus escritos ou quando queria contar-lhes qual-quer aventura. Ganhou esse hábito ainda muito novo, quando acordava os irmãos de madrugada e os obrigava a acompanhá-lo ao quarto da mãe para lhes ler um conto ou um poema que acabara de compor. Era impossível resistir às suas exigências; a teimosia era outra das cara-terísticas que Antoine conservaria durante toda a vida.

Uma gentileza natural compensava a sua faceta altiva. Enquanto criança — contava a mãe —, desviava-se do caminho para evitar pisar as lagartas e subia aos pinheiros que rodeavam o castelo para tentar tra-var amizade com as rolas.

Desde que fez uso da razão, fizeram-no tomar consciência do facto de que ser herdeiro do título da família o tornava igualmente chefe de

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família, papel que iria complicar ainda mais a sua noção exagerada de responsabilidade. Simone contou que, durante o verão tórrido de 1912, tinha perdido o relógio oferecido na sua comunhão durante um longo passeio pelas colinas vizinhas na companhia de Antoine. Com a determinação obstinada que marcaria muitas vezes o seu compor-tamento adulto, o irmão voltou para trás sozinho à procura do objeto, percorrendo quilómetros em vão. Regressou ao cair da noite, esgotado e enlameado, furioso e envergonhado por desiludir a irmã.

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COMO SE VERÁ ADIANTE, o fascínio de Saint-Exupéry pela mecânica e pela aviação começou aos 9 anos, mas a sua paixão pela escrita foi ainda mais precoce. Todos se lembram de que, desde muito pequeno, ele escrevia à menor oportunidade que lhe surgia, guardando as notas numa pequena caixa, um hábito que era o prelúdio da sua obsessão futura de anotar os pensamentos em cadernos de capas de couro.

Esta rotina constante de tomar notas contribuiu para outra caraterís-tica de Antoine: a desordem. Há recordações das suas secretárias desar-rumadas desde que era adolescente. Em Saint-Maurice, só Gabrielle estava autorizada a imprimir alguma ordem ao seu território sagrado quando a confusão se instalava.

Os seus primeiros poemas e contos de aventuras, inspirados na lite-ratura heroica ou em narrativas populares, deram lugar a projetos sem-pre mais ambiciosos, chegando a escrever o libreto para uma opereta no início da adolescência. Estas criações escondiam um desejo imediato de obter a admiração do círculo familiar, necessidade que mais tarde teria de ser colmatada pelos amigos mais próximos, os quais aprenderam que teriam de formular as suas críticas com prudência se queriam con-tinuar a merecer a estima de Saint-Exupéry.

Esta sede de adulação instantânea nunca foi preenchida de modo satisfatório pela lealdade do público anónimo, mesmo quando os seus livros receberam prémios literários. A obra publicada representa somente uma ínfima parte da imensa correspondência enviada aos amigos ou

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à família, cartas muitas vezes acompanhadas por desenhos humoris-tas ou sentimentais. Não havia nada que pudesse igualar o puro prazer de apresentar a sua obra aos amigos ou à família, quando a noite caía sobre o castelo. Houve um conto que ficou famoso, Le Téléphone, um melodrama extravagante no qual um marido ausente telefona para casa e é testemunha auditiva do assassínio de toda a família por assaltantes.

Existiam também momentos mais espontâneos de pura invenção, como as charadas que as crianças representavam. Estas pantomi- mas como que eram um terreno neutro onde as crianças eram autori-zadas a fazer pouco dos adultos sem serem consideradas descaradas. Uma das mais célebres foi quando Antoine se vestiu com um roupão ao contrário para exibir o forro vermelho e se pôs a ressonar no seu cadeirão. A alusão ao bispo de Belley e aos seus sermões maçadores foi rapidamente reconhecida.

Outra representação abordou a guerra turco-búlgara de 1912, o pri-meiro combate em que se utilizaram aviões como armas de guerra, prova de que os filhos mais velhos estavam ao corrente da atualidade nacional e internacional.

***

O PRIMEIRO E O mais leal dos mentores e admiradores de Antoine na sua procura de expressão pessoal e individualidade foi, sem dúvida, a própria mãe. Marie de Saint-Exupéry recusava-se a aceitar as pres-sões familiares no sentido de levar os filhos a encararem a sua existên-cia de um modo menos fantasioso, encorajando-os a quebrar algumas das regras mais constrangedoras da rigidez aristocrática, que Antoine acabará por rejeitar, apostando no «inconformismo».

Nenhum dos escritos de Marie de Saint-Exupéry exprime amargura em relação aos vários dramas que a vida lhe reservou. O seu maior choque foi a morte do marido, numa estação de caminho de ferro na Provença, quando de uma visita ao castelo familiar de La Môle, em março de 1904. A tragédia levou-lhe o companheiro e o sustento, deixando Antoine, então com 3 anos, órfão de um modelo masculino.

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CAPÍTULO II

Olhar a morte de frente

Acidente na Estação de La Foux

Segunda-feira à tarde, o genro do Sr. Fonscolombe, em viagem com a sua jovem esposa, sucumbiu subitamente na estação de La Foux devido a uma congestão cerebral. Foram-lhe prestados os cuidados adequados o mais depressa possível na sala de espera. O médico, chamado à pressa, chegou de imediato, mas infelizmente em vão. O infeliz doente expirou nos braços da sua esposa desolada, depois de ter recebido de um padre a bênção e os últimos sacramentos. O corpo foi transportado para La Môle, onde teve lugar o funeral.

Este acidente emocionou visivelmente os passageiros que chegavam nesse momento à estação de La Foux de diversos pontos: Saint-Raphaël, Hyères, Saint-Tropez e Cogolin.

As cruéis surpresas da morte! As nossas respeitosas condolências às famílias que este acidente enluta.

in La Croix du Littoral, 20 de março de 1904

O La Croix, um diário nacional, católico e monárquico, que publi-cava edições locais para a região mediterrânica, foi o único jor-nal a relatar a morte do pai de Antoine, a 14 de março de 1904.

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à família, cartas muitas vezes acompanhadas por desenhos humoris-tas ou sentimentais. Não havia nada que pudesse igualar o puro prazer de apresentar a sua obra aos amigos ou à família, quando a noite caía sobre o castelo. Houve um conto que ficou famoso, Le Téléphone, um melodrama extravagante no qual um marido ausente telefona para casa e é testemunha auditiva do assassínio de toda a família por assaltantes.

Existiam também momentos mais espontâneos de pura invenção, como as charadas que as crianças representavam. Estas pantomi- mas como que eram um terreno neutro onde as crianças eram autori-zadas a fazer pouco dos adultos sem serem consideradas descaradas. Uma das mais célebres foi quando Antoine se vestiu com um roupão ao contrário para exibir o forro vermelho e se pôs a ressonar no seu cadeirão. A alusão ao bispo de Belley e aos seus sermões maçadores foi rapidamente reconhecida.

Outra representação abordou a guerra turco-búlgara de 1912, o pri-meiro combate em que se utilizaram aviões como armas de guerra, prova de que os filhos mais velhos estavam ao corrente da atualidade nacional e internacional.

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O PRIMEIRO E O mais leal dos mentores e admiradores de Antoine na sua procura de expressão pessoal e individualidade foi, sem dúvida, a própria mãe. Marie de Saint-Exupéry recusava-se a aceitar as pres-sões familiares no sentido de levar os filhos a encararem a sua existên-cia de um modo menos fantasioso, encorajando-os a quebrar algumas das regras mais constrangedoras da rigidez aristocrática, que Antoine acabará por rejeitar, apostando no «inconformismo».

Nenhum dos escritos de Marie de Saint-Exupéry exprime amargura em relação aos vários dramas que a vida lhe reservou. O seu maior choque foi a morte do marido, numa estação de caminho de ferro na Provença, quando de uma visita ao castelo familiar de La Môle, em março de 1904. A tragédia levou-lhe o companheiro e o sustento, deixando Antoine, então com 3 anos, órfão de um modelo masculino.

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CAPÍTULO II

Olhar a morte de frente

Acidente na Estação de La Foux

Segunda-feira à tarde, o genro do Sr. Fonscolombe, em viagem com a sua jovem esposa, sucumbiu subitamente na estação de La Foux devido a uma congestão cerebral. Foram-lhe prestados os cuidados adequados o mais depressa possível na sala de espera. O médico, chamado à pressa, chegou de imediato, mas infelizmente em vão. O infeliz doente expirou nos braços da sua esposa desolada, depois de ter recebido de um padre a bênção e os últimos sacramentos. O corpo foi transportado para La Môle, onde teve lugar o funeral.

Este acidente emocionou visivelmente os passageiros que chegavam nesse momento à estação de La Foux de diversos pontos: Saint-Raphaël, Hyères, Saint-Tropez e Cogolin.

As cruéis surpresas da morte! As nossas respeitosas condolências às famílias que este acidente enluta.

in La Croix du Littoral, 20 de março de 1904

O La Croix, um diário nacional, católico e monárquico, que publi-cava edições locais para a região mediterrânica, foi o único jor-nal a relatar a morte do pai de Antoine, a 14 de março de 1904.

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O mais irónico é que o nome do defunto não foi mencionado, se bem que o jornalista tivesse presumido que o sogro, Charles de Fonscolombe, um dos proprietários mais influentes das áridas colinas provençais de Maures, fosse conhecido dos leitores.

Apesar de o repórter anónimo ajudar à confusão ao dar o título de «acidente» à tragédia de La Foux, a intenção do artigo era bastante clara. Calava todos os rumores ao insistir no facto de Jean de Saint-Exupéry ter recebido os últimos sacramentos e ter falecido na presença da esposa. A morte súbita em circunstâncias tão pouco dignas de um homem com apenas 41 anos, cuja mulher esperava o quinto filho, iria necessaria-mente alimentar numerosas especulações.

Antoine e as outras crianças estavam à espera em La Môle quando Jean de Saint-Exupéry morreu às 7 da tarde. Visitavam frequentemente o castelo com os pais, e as primeiras recordações de Antoine em criança, relatadas depois em Piloto de Guerra, são acerca das sombras assusta-doras do castelo e dos silvos angustiantes do mistral. Estivesse ele pre-sente ou não na estação de La Foux ou nas exéquias que ocorreram em Saint-Maurice quatro dias mais tarde, conduzidas pelo padre Montessuy, o súbito ritual do velório e o desaparecimento da principal personagem masculina na família perturbaram obviamente Antoine.

A descrição que ele faz mais tarde de certos aspetos da sua vida pes-soal priva-nos de qualquer revelação sobre o pai, e somente na sua obra filosófica, Cidadela, isso foi em parte compensado. Encontram-se aí refe-rências enigmáticas à morte do pai do chefe berbere, o qual conclui: «Foi ele quem me iniciou na morte e me obrigou quando jovem a olhá-la bem de frente, porque ele nunca fechou os olhos.»

Ao omitir a identidade de Jean de Saint-Exupéry no seu artigo, o jornalista de La Croix fazia involuntariamente eco da opinião geral sobre a família, segundo a qual ele não estava destinado a distinguir-se. Não havia nada de relevante no seu passado celibatário até se casar aos 33 anos, provavelmente sob pressão familiar, para dar sentido a uma vida sem objetivos.

Jean de Saint-Exupéry tinha sido oficial num regimento de cavalaria, tal como o irmão mais novo, Roger, até aceitar um emprego de agente

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O L H A R A M O R T E D E F R E N T E

de seguros na companhia detida pelo pai. Ele próprio escreveu, na sua certidão de casamento, «sem profissão». Antes de se casar, Jean desfru-tou das vantagens de ser um oficial solteiro, e ainda por cima nobre, em cidades com guarnição da província, e deve ter sido necessária uma certa força de caráter para abandonar de ânimo leve essa vida fácil e adaptar-se a uma existência doméstica e rural, dominada pela autoridade feminina e por um número crescente de nascimentos, que transformou a casa em maternidade. Participava muito pouco ou nada na administra-ção da propriedade Tricaud e parece ter sido uma figura pouco influente. À data da sua morte, o legado mais importante que deixou foi o título nobiliárquico. «Tenho um nome distinto», dirá Antoine a um amigo, Jean Escot, durante o serviço militar na aviação, em 1921. Nessa altura, não tinha ainda decidido se seria melhor impressionar os amigos com o seu título ou, pelo contrário, não atrair as atenções sobre as suas origens.

A morte precoce do pai teve certos efeitos no subconsciente de Saint-Exupéry que só se revelariam mais tarde, quando vai ficando cada vez mais hipocondríaco à medida que se aproxima da idade em que o pai morreu. Mas, na época, Antoine partilhava o destino de mui-tas crianças de tenra idade que eram órfãs de pai. O nome de Saint--Exupéry é frequentemente associado aos de outros três escritores do século xx, cujos escritos se debruçaram sobre o comportamento ético na sociedade moderna. Dois destes humanistas, Jean-Paul Sartre e Albert Camus, também perderam os pais muito jovens, antes de com-pletarem 1 ano. André Malraux ainda não tinha 3 anos quando o pai o abandonou. Embora todos tivessem sido educados em famílias domi-nadas por mulheres, cada um deles viria a ter uma visão muito pessoal das questões morais, sociais e emocionais.

***

SAINT-EXUPÉRY NÃO EXAGERAVA AO vangloriar-se de ter um «nome dis-tinto». Em 1991, o seu sobrinho-neto, Frédéric d’Agay, fez um resumo das árvores genealógicas dos quatro avós de Antoine, que se orgulha-vam de ter antepassados de prestígio. Os aspetos contraditórios do

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O mais irónico é que o nome do defunto não foi mencionado, se bem que o jornalista tivesse presumido que o sogro, Charles de Fonscolombe, um dos proprietários mais influentes das áridas colinas provençais de Maures, fosse conhecido dos leitores.

Apesar de o repórter anónimo ajudar à confusão ao dar o título de «acidente» à tragédia de La Foux, a intenção do artigo era bastante clara. Calava todos os rumores ao insistir no facto de Jean de Saint-Exupéry ter recebido os últimos sacramentos e ter falecido na presença da esposa. A morte súbita em circunstâncias tão pouco dignas de um homem com apenas 41 anos, cuja mulher esperava o quinto filho, iria necessaria-mente alimentar numerosas especulações.

Antoine e as outras crianças estavam à espera em La Môle quando Jean de Saint-Exupéry morreu às 7 da tarde. Visitavam frequentemente o castelo com os pais, e as primeiras recordações de Antoine em criança, relatadas depois em Piloto de Guerra, são acerca das sombras assusta-doras do castelo e dos silvos angustiantes do mistral. Estivesse ele pre-sente ou não na estação de La Foux ou nas exéquias que ocorreram em Saint-Maurice quatro dias mais tarde, conduzidas pelo padre Montessuy, o súbito ritual do velório e o desaparecimento da principal personagem masculina na família perturbaram obviamente Antoine.

A descrição que ele faz mais tarde de certos aspetos da sua vida pes-soal priva-nos de qualquer revelação sobre o pai, e somente na sua obra filosófica, Cidadela, isso foi em parte compensado. Encontram-se aí refe-rências enigmáticas à morte do pai do chefe berbere, o qual conclui: «Foi ele quem me iniciou na morte e me obrigou quando jovem a olhá-la bem de frente, porque ele nunca fechou os olhos.»

Ao omitir a identidade de Jean de Saint-Exupéry no seu artigo, o jornalista de La Croix fazia involuntariamente eco da opinião geral sobre a família, segundo a qual ele não estava destinado a distinguir-se. Não havia nada de relevante no seu passado celibatário até se casar aos 33 anos, provavelmente sob pressão familiar, para dar sentido a uma vida sem objetivos.

Jean de Saint-Exupéry tinha sido oficial num regimento de cavalaria, tal como o irmão mais novo, Roger, até aceitar um emprego de agente

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de seguros na companhia detida pelo pai. Ele próprio escreveu, na sua certidão de casamento, «sem profissão». Antes de se casar, Jean desfru-tou das vantagens de ser um oficial solteiro, e ainda por cima nobre, em cidades com guarnição da província, e deve ter sido necessária uma certa força de caráter para abandonar de ânimo leve essa vida fácil e adaptar-se a uma existência doméstica e rural, dominada pela autoridade feminina e por um número crescente de nascimentos, que transformou a casa em maternidade. Participava muito pouco ou nada na administra-ção da propriedade Tricaud e parece ter sido uma figura pouco influente. À data da sua morte, o legado mais importante que deixou foi o título nobiliárquico. «Tenho um nome distinto», dirá Antoine a um amigo, Jean Escot, durante o serviço militar na aviação, em 1921. Nessa altura, não tinha ainda decidido se seria melhor impressionar os amigos com o seu título ou, pelo contrário, não atrair as atenções sobre as suas origens.

A morte precoce do pai teve certos efeitos no subconsciente de Saint-Exupéry que só se revelariam mais tarde, quando vai ficando cada vez mais hipocondríaco à medida que se aproxima da idade em que o pai morreu. Mas, na época, Antoine partilhava o destino de mui-tas crianças de tenra idade que eram órfãs de pai. O nome de Saint--Exupéry é frequentemente associado aos de outros três escritores do século xx, cujos escritos se debruçaram sobre o comportamento ético na sociedade moderna. Dois destes humanistas, Jean-Paul Sartre e Albert Camus, também perderam os pais muito jovens, antes de com-pletarem 1 ano. André Malraux ainda não tinha 3 anos quando o pai o abandonou. Embora todos tivessem sido educados em famílias domi-nadas por mulheres, cada um deles viria a ter uma visão muito pessoal das questões morais, sociais e emocionais.

***

SAINT-EXUPÉRY NÃO EXAGERAVA AO vangloriar-se de ter um «nome dis-tinto». Em 1991, o seu sobrinho-neto, Frédéric d’Agay, fez um resumo das árvores genealógicas dos quatro avós de Antoine, que se orgulha-vam de ter antepassados de prestígio. Os aspetos contraditórios do

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caráter de Saint-Exupéry, umas vezes homem de ação, outras de letras, refletem a fusão das influências culturais e militares do passado.

As quatro linhas genealógicas tinham em comum a mesma deter-minação em manter a linha aristocrática graças a casamentos sob a fé católica cuidadosamente planeados, quer em função da linhagem social quer da fortuna. Quando Antoine rompeu com esta tradição, casando-se com Consuelo Suncin, oriunda de uma obscura família sul-americana, a sua decisão foi considerada tão herética como se ele tivesse abando-nado a religião. Era necessária uma certa coragem para rejeitar as vanta-gens de um «nome distinto», com tudo o que ele acarretava em matéria de privilégios e de promessas de apoio familiar. Até ao momento em que o valor financeiro da obra de Saint-Exupéry se manifestou, após a sua morte, a maioria dos parentes considerava-o uma perda de tempo e um exemplo deplorável.

Um dos documentos que Frédéric d’Agay trará à luz do dia será Notice sur la famille Saint-Exupéry, escrito por Fernand de Saint-Exupéry, avô de Antoine, que recua nas suas origens até ao tempo das cruzadas. O livro do avô deve ter-lhe inflamado a imaginação quando estudava em Le Mans, se bem que fosse demasiado jovem para compreender por que se contentava o descendente de uma tão nobre linhagem com viver numa modesta casa em vez de num imponente solar. O avô, apesar de ser diretor da Compagnie du Soleil, uma companhia de seguros, não tinha manifestado grande talento como homem de negócios e viu-se censurado pelos maus investimentos que abalaram a fortuna familiar.

A verdadeira riqueza era constituída pela árvore genealógica que remontava ao primeiro Saint-Exupéry, Raymond, à cabeça do seu feudo na região do Limousin em 1235. O nome da família teve origem numa aldeia do distrito de Corrèze, perto de Ussel, chamada Saint-Exupéry--des-Roches. A ligação à realeza acontece no século XVI, quando uma tal Madeleine de Saint-Exupéry desposou um Bourbon, nascido ilegítimo e que era camareiro do rei. No século XVII, a lealdade à coroa valeu a Jean--Antoine de Saint-Exupéry, capitão do Exército, a consideração pessoal de Luís XIV, e todas as gerações a partir daí tiveram os seus heróis militares. Na sua maioria, eram soldados, e alguns tomaram parte na Guerra da

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Independência dos Estados Unidos, enquanto outros engrossaram as fileiras dos émigrés monárquicos contra Napoleão após a Revolução.

Os laços militares com a realeza foram reforçados durante a Restauração e o Segundo Império, cuja queda em 1870 pôs fim à car-reira administrativa de Fernand de Saint-Exupéry enquanto sous-préfet, o representante do governo nacional. A sua lealdade aos Bourbons impedia-o de servir uma república.

***

O AVÔ DE ANTOINE nasceu em 1833 perto de Bordéus, no castelo de Malescot, na região vinícola do Margaux. A mãe de Fernand era filha de um negociante de vinhos, e foi devido a alguns investimentos malsuce-didos na vitivinicultura e ao ataque de filoxera que a fortuna familiar se desmoronou. O casamento de Fernand com Alix Blouquier de Trélan, cuja família era originária de Tours, trouxe uma certa saúde financeira.

Mais uma vez, a ascendência de Antoine encontra-se estreita-mente ligada às causas militares que opuseram a família de Trélan e o exército revolucionário de Napoleão em Vendée. Não é de estra-nhar que as duas famílias dos avós de Antoine tenham sido defenso-ras ardentes da monarquia legitimista dos Boubons e feito inimigos no seio dos republicanos ao defenderem uma nova restauração. Este envolvimento na causa monárquica viria a influenciar fortemente a adolescência de Saint-Exupéry.

A amante do rei Francisco e outras histórias

SE SAINT-EXUPÉRY DESCOBRIU A maioria dos seus antepassados paternos graças às investigações do avô, o contacto com a família materna era mais pessoal e embelezado pelo talento da mãe como contadora de histórias. A caraterística militar dominante do lado paterno foi assim compensada pela veia artística presente na ascendência de Marie Boyer de Fonscolombe.

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caráter de Saint-Exupéry, umas vezes homem de ação, outras de letras, refletem a fusão das influências culturais e militares do passado.

As quatro linhas genealógicas tinham em comum a mesma deter-minação em manter a linha aristocrática graças a casamentos sob a fé católica cuidadosamente planeados, quer em função da linhagem social quer da fortuna. Quando Antoine rompeu com esta tradição, casando-se com Consuelo Suncin, oriunda de uma obscura família sul-americana, a sua decisão foi considerada tão herética como se ele tivesse abando-nado a religião. Era necessária uma certa coragem para rejeitar as vanta-gens de um «nome distinto», com tudo o que ele acarretava em matéria de privilégios e de promessas de apoio familiar. Até ao momento em que o valor financeiro da obra de Saint-Exupéry se manifestou, após a sua morte, a maioria dos parentes considerava-o uma perda de tempo e um exemplo deplorável.

Um dos documentos que Frédéric d’Agay trará à luz do dia será Notice sur la famille Saint-Exupéry, escrito por Fernand de Saint-Exupéry, avô de Antoine, que recua nas suas origens até ao tempo das cruzadas. O livro do avô deve ter-lhe inflamado a imaginação quando estudava em Le Mans, se bem que fosse demasiado jovem para compreender por que se contentava o descendente de uma tão nobre linhagem com viver numa modesta casa em vez de num imponente solar. O avô, apesar de ser diretor da Compagnie du Soleil, uma companhia de seguros, não tinha manifestado grande talento como homem de negócios e viu-se censurado pelos maus investimentos que abalaram a fortuna familiar.

A verdadeira riqueza era constituída pela árvore genealógica que remontava ao primeiro Saint-Exupéry, Raymond, à cabeça do seu feudo na região do Limousin em 1235. O nome da família teve origem numa aldeia do distrito de Corrèze, perto de Ussel, chamada Saint-Exupéry--des-Roches. A ligação à realeza acontece no século XVI, quando uma tal Madeleine de Saint-Exupéry desposou um Bourbon, nascido ilegítimo e que era camareiro do rei. No século XVII, a lealdade à coroa valeu a Jean--Antoine de Saint-Exupéry, capitão do Exército, a consideração pessoal de Luís XIV, e todas as gerações a partir daí tiveram os seus heróis militares. Na sua maioria, eram soldados, e alguns tomaram parte na Guerra da

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Independência dos Estados Unidos, enquanto outros engrossaram as fileiras dos émigrés monárquicos contra Napoleão após a Revolução.

Os laços militares com a realeza foram reforçados durante a Restauração e o Segundo Império, cuja queda em 1870 pôs fim à car-reira administrativa de Fernand de Saint-Exupéry enquanto sous-préfet, o representante do governo nacional. A sua lealdade aos Bourbons impedia-o de servir uma república.

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O AVÔ DE ANTOINE nasceu em 1833 perto de Bordéus, no castelo de Malescot, na região vinícola do Margaux. A mãe de Fernand era filha de um negociante de vinhos, e foi devido a alguns investimentos malsuce-didos na vitivinicultura e ao ataque de filoxera que a fortuna familiar se desmoronou. O casamento de Fernand com Alix Blouquier de Trélan, cuja família era originária de Tours, trouxe uma certa saúde financeira.

Mais uma vez, a ascendência de Antoine encontra-se estreita-mente ligada às causas militares que opuseram a família de Trélan e o exército revolucionário de Napoleão em Vendée. Não é de estra-nhar que as duas famílias dos avós de Antoine tenham sido defenso-ras ardentes da monarquia legitimista dos Boubons e feito inimigos no seio dos republicanos ao defenderem uma nova restauração. Este envolvimento na causa monárquica viria a influenciar fortemente a adolescência de Saint-Exupéry.

A amante do rei Francisco e outras histórias

SE SAINT-EXUPÉRY DESCOBRIU A maioria dos seus antepassados paternos graças às investigações do avô, o contacto com a família materna era mais pessoal e embelezado pelo talento da mãe como contadora de histórias. A caraterística militar dominante do lado paterno foi assim compensada pela veia artística presente na ascendência de Marie Boyer de Fonscolombe.

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Originária da nobreza do século XVIII, a família deixou em Aix-en--Provence uma herança cultural secular. Contam-se entre os seus des-cendentes numerosos pintores, músicos, escritores, colecionadores de arte e cientistas. Marie sentiu-se desde criança encorajada a pintar e a escrever, e os seus filhos cresceram num universo do qual guardaram uma recordação particular: a mãe a contar-lhes histórias enquanto lhes pintava os retratos.

Por outro lado, os laços que uniam Saint-Exupéry a Le Mans, no dis-trito do Sarthe, a ocidente, nunca tiveram o encanto criado pela atmos-fera mais calorosa e soalheira das terras do Sul. Depois de enviuvar, Marie refugiou-se primeiro no castelo de um familiar em Aix com os seus filhos. Quarenta anos mais tarde, a Provença seria a última imagem que Antoine levaria consigo da França antes de o seu avião desaparecer no Mediterrâneo.

O castelo provençal de La Môle, perto de Saint-Tropez, onde Marie cresceu, tinha sido adquirido em 1770. Praticamente cem anos mais tarde, o avô, Emmanuel de Fonscolombe, ganhou o título de barão de La Môle sob o reinado de Napoleão III. Desposou depois a filha de um armador marselhês e tornou-se presidente da câmara da vila, passando parte do tempo a compor música.

As opiniões monárquicas da família Fonscolombe eram ainda mais impressionantes do que as dos Saint-Exupérys. O tio de Marie, o barão Fernand, que tinha desposado a herdeira de um banqueiro marselhês, foi ajudante de campo do conde de Paris, pretendente ao trono de França. O castelo do tio Fernand, em Aix, foi um dos numerosos lares aristocra-tas onde Antoine passou parte das suas férias.

A mãe de Marie pertencia à família feudal Romanet de Lestrange, com múltiplas ramificações. Uma das suas antepassadas tinha a fama de ter sido amante de Francisco I, no século XVI, enquanto outro era superior da ordem dos trapistas durante o Primeiro Império e teria con-vencido Napoleão a adotar uma atitude mais moderada em relação às ordens religiosas.

A mudança da futura Marie de Saint-Exupéry para Saint-Maurice--de-Rémens deveu-se aos dotes casamenteiros de Gabrielle de Tricaud,

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unida por casamento a uma família que possuía outros castelos nas redondezas. Uma vez que o dote de Marie era relativamente pequeno, a tia Gabrielle teve de se empenhar numa busca exaustiva de um pos- sível marido no seio dos seus próprios parentes. Entre os seus ascen- dentes, havia um marquês, Joseph de Lestrange, que tinha sido feito barão por Napoleão em 1814. O marquês casou-se com uma jovem nobre chamada Adelaïde Green de Saint-Marsault. Em 1790, a prima de Adelaïde, Victoire Green de Saint-Marsault, desposou um fidalgo de província, Georges de Saint-Exupéry, conde de Saint-Amans. Este lon-gínquo enlace foi o suficiente para desencadear uma eventual aliança com a família Saint-Exupéry. O potencial esposo, Jean de Saint-Exupéry, foi enviado a Lyon como agente de seguros para representar a Compagnie du Soleil. Marie, na altura apenas com 17 anos, foi apresentada nos jantares e nas soirées musicais de quarta-feira organizados pela tia no apartamento da praça de Bellencour.

Um século após o seu casamento, considera-se ainda que Marie teve sorte em desposar um «nome distinto», apesar da posição social da sua família e da fortuna exígua de Jean de Saint-Exupéry. Todavia, os talen-tos casamenteiros da tia Gabrielle não chegaram para encontrar marido para a irmã de Marie, Madeleine de Fonscolombe, que sacrificou as suas hipóteses de se casar para cuidar da mãe viúva.

Madeleine tornou-se parte do círculo feminino protetor de Saint--Maurice. Uma fotografia dela de perfil, olhando o sobrinho, revela uma parte dos traços hereditários dos Fonscolombes. O nariz arrebitado de Antoine, que lhe valeria gracejos públicos até à idade adulta, vinha-lhe da família materna.

***

OBSCURAS FORÇAS POLÍTICAS TIVERAM igualmente um papel preponderante nos primeiros anos de Saint-Exupéry. Observada do interior, a identi-dade de opinião dos aristocratas não era tão evidente como se poderia supor. O clã legitimista de Fernand de Saint-Exupéry nutria algumas suspeitas em relação à família dos Fonscolombes, afetos ao pretendente

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Originária da nobreza do século XVIII, a família deixou em Aix-en--Provence uma herança cultural secular. Contam-se entre os seus des-cendentes numerosos pintores, músicos, escritores, colecionadores de arte e cientistas. Marie sentiu-se desde criança encorajada a pintar e a escrever, e os seus filhos cresceram num universo do qual guardaram uma recordação particular: a mãe a contar-lhes histórias enquanto lhes pintava os retratos.

Por outro lado, os laços que uniam Saint-Exupéry a Le Mans, no dis-trito do Sarthe, a ocidente, nunca tiveram o encanto criado pela atmos-fera mais calorosa e soalheira das terras do Sul. Depois de enviuvar, Marie refugiou-se primeiro no castelo de um familiar em Aix com os seus filhos. Quarenta anos mais tarde, a Provença seria a última imagem que Antoine levaria consigo da França antes de o seu avião desaparecer no Mediterrâneo.

O castelo provençal de La Môle, perto de Saint-Tropez, onde Marie cresceu, tinha sido adquirido em 1770. Praticamente cem anos mais tarde, o avô, Emmanuel de Fonscolombe, ganhou o título de barão de La Môle sob o reinado de Napoleão III. Desposou depois a filha de um armador marselhês e tornou-se presidente da câmara da vila, passando parte do tempo a compor música.

As opiniões monárquicas da família Fonscolombe eram ainda mais impressionantes do que as dos Saint-Exupérys. O tio de Marie, o barão Fernand, que tinha desposado a herdeira de um banqueiro marselhês, foi ajudante de campo do conde de Paris, pretendente ao trono de França. O castelo do tio Fernand, em Aix, foi um dos numerosos lares aristocra-tas onde Antoine passou parte das suas férias.

A mãe de Marie pertencia à família feudal Romanet de Lestrange, com múltiplas ramificações. Uma das suas antepassadas tinha a fama de ter sido amante de Francisco I, no século XVI, enquanto outro era superior da ordem dos trapistas durante o Primeiro Império e teria con-vencido Napoleão a adotar uma atitude mais moderada em relação às ordens religiosas.

A mudança da futura Marie de Saint-Exupéry para Saint-Maurice--de-Rémens deveu-se aos dotes casamenteiros de Gabrielle de Tricaud,

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unida por casamento a uma família que possuía outros castelos nas redondezas. Uma vez que o dote de Marie era relativamente pequeno, a tia Gabrielle teve de se empenhar numa busca exaustiva de um pos- sível marido no seio dos seus próprios parentes. Entre os seus ascen- dentes, havia um marquês, Joseph de Lestrange, que tinha sido feito barão por Napoleão em 1814. O marquês casou-se com uma jovem nobre chamada Adelaïde Green de Saint-Marsault. Em 1790, a prima de Adelaïde, Victoire Green de Saint-Marsault, desposou um fidalgo de província, Georges de Saint-Exupéry, conde de Saint-Amans. Este lon-gínquo enlace foi o suficiente para desencadear uma eventual aliança com a família Saint-Exupéry. O potencial esposo, Jean de Saint-Exupéry, foi enviado a Lyon como agente de seguros para representar a Compagnie du Soleil. Marie, na altura apenas com 17 anos, foi apresentada nos jantares e nas soirées musicais de quarta-feira organizados pela tia no apartamento da praça de Bellencour.

Um século após o seu casamento, considera-se ainda que Marie teve sorte em desposar um «nome distinto», apesar da posição social da sua família e da fortuna exígua de Jean de Saint-Exupéry. Todavia, os talen-tos casamenteiros da tia Gabrielle não chegaram para encontrar marido para a irmã de Marie, Madeleine de Fonscolombe, que sacrificou as suas hipóteses de se casar para cuidar da mãe viúva.

Madeleine tornou-se parte do círculo feminino protetor de Saint--Maurice. Uma fotografia dela de perfil, olhando o sobrinho, revela uma parte dos traços hereditários dos Fonscolombes. O nariz arrebitado de Antoine, que lhe valeria gracejos públicos até à idade adulta, vinha-lhe da família materna.

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OBSCURAS FORÇAS POLÍTICAS TIVERAM igualmente um papel preponderante nos primeiros anos de Saint-Exupéry. Observada do interior, a identi-dade de opinião dos aristocratas não era tão evidente como se poderia supor. O clã legitimista de Fernand de Saint-Exupéry nutria algumas suspeitas em relação à família dos Fonscolombes, afetos ao pretendente

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de Orleães. Segundo André de Fonscolombe, um diplomata na reforma que era o primo preferido de Antoine, a sua família era suspeita de ter sido contaminada pelas perigosas ideias socialistas desde o século XVIII, com o compositor Emmanuel de Fonscolombe.

Na época, os aristocratas esclarecidos ficaram sob a influência do conde Claude de Saint-Simon, um precursor das campanhas a favor da igualdade do Homem e da partilha da propriedade. Emmanuel era amigo do compositor Félicien David, também ele discípulo de Saint--Simon. Quando as famílias Saint-Exupéry e Fonscolombe se uniram em 1896, os ideais de Saint-Simon eram ainda considerados pela maio-ria dos monárquicos como uma traição.

Aos olhos da linha militar de Ferdinand de Saint-Exupéry, o com-positor Emmanuel de Fonscolombe, avô de Antoine, era uma pessoa de pouco valor. Era membro da Academia de Santa Cecília, em Roma, e maestro de capela, em Aix-en-Provence, onde compôs missas e mote-tes e redigiu um estudo sobre o músico veneziano Carissimi. O pai de Marie, Charles de Fonscolombe, era também compositor e insistiu que as suas duas filhas tivessem lições de piano, que continuaram em Saint--Maurice. Todos os filhos de Marie aprenderam a tocar um instrumento, enquanto ela própria acrescentava aos seus múltiplos talentos a compo-sição de música sacra sobre textos em provençal.

André de Fonscolombe ia amiúde a Saint-Maurice, onde se recorda de ter ouvido tocar, sob a direção de diversos professores de música pro-fissionais, trechos de Hahn, Fauré, Schumann, Schubert e Massenet. Antoine aprendeu violino, mas o seu principal dom era um repertório de cantos folclóricos que fazia as delícias dos companheiros de escola e mais tarde dos amigos pilotos. Nem sempre respeitava o interesse que a mãe nutria pela música contemporânea, em particular a de Debussy. Já adulto, repetia frequentemente a sua brincadeira musical preferida: fazer rolar laranjas sobre o teclado do piano, desafiando os amigos a negarem que o resultado era tão divertido quanto uma par-titura de Debussy.

A abertura de espírito de Marie de Saint-Exupéry relativamente à cul-tura moderna manifestava-se também na pintura, como testemunham

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O L H A R A M O R T E D E F R E N T E

os seus excelentes trabalhos em pastel. Um dos seus antepassados, Jean-Baptiste de Fonscolombe, tinha sido membro da Academia de Belas-Artes de Marselha e da Academia das Artes do Desenho em Itália, embora a inspiração dela fosse mais contemporânea, como atestam os seus últimos retratos, que lembram as obras de Marie Laurencin.

Tendo em conta a influência filosófica de Saint-Simon que se agitava em segundo plano, é pouco verosímil que Fernand de Saint-Exupéry tenha acolhido de modo favorável a incitação da nora ao individualismo e à tolerância e a sua pretensão de querer pôr a cultura quase ao nível da religião. Contudo, no plano familiar, a sua autoridade sobre a educação das crianças era limitada.

A lei francesa sustentava a ideia de que as mulheres eram incapa-zes de tomar decisões com independência, devendo, por conseguinte, submeter-se aos homens. As necessidades afetivas não eram tidas em conta. Antoine e o seu irmão François viveram sob a tutela de facto de um conselho familiar encabeçado pelo avô paterno, Fernand. Nas ques-tões espirituais, Antoine estava sob a alçada do seu tio e padrinho Roger, a quem a honra obrigava, na ausência de um pai, a alimentar no sobri-nho uma forte vocação religiosa.

Quando Antoine fez 9 anos, foi decidido que ele devia preparar-se para desempenhar as funções de chefe de família e para uma carreira militar. De um dia para o outro, arrancaram-no à indulgência do uni-verso feminino de Saint-Maurice para o lançarem na atmosfera austera e viril de um colégio de jesuítas, em Le Mans, onde em tempos o pai e o tio tinham sido alunos internos.

Um lugar de doutrinação

O COLÉGIO DE NOTRE-DAME-DE-SAINTE-CROIX dá hoje para a rue Antoine de Saint-Exupéry, uma ruela situada no centro de Le Mans, antiga-mente chamada rue des Vignes. Da passagem do escritor por esta escola, onde entrou a 7 de outubro de 1909, existem apenas ténues referências. A escola mudou de sítio duas vezes antes de Antoine a

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de Orleães. Segundo André de Fonscolombe, um diplomata na reforma que era o primo preferido de Antoine, a sua família era suspeita de ter sido contaminada pelas perigosas ideias socialistas desde o século XVIII, com o compositor Emmanuel de Fonscolombe.

Na época, os aristocratas esclarecidos ficaram sob a influência do conde Claude de Saint-Simon, um precursor das campanhas a favor da igualdade do Homem e da partilha da propriedade. Emmanuel era amigo do compositor Félicien David, também ele discípulo de Saint--Simon. Quando as famílias Saint-Exupéry e Fonscolombe se uniram em 1896, os ideais de Saint-Simon eram ainda considerados pela maio-ria dos monárquicos como uma traição.

Aos olhos da linha militar de Ferdinand de Saint-Exupéry, o com-positor Emmanuel de Fonscolombe, avô de Antoine, era uma pessoa de pouco valor. Era membro da Academia de Santa Cecília, em Roma, e maestro de capela, em Aix-en-Provence, onde compôs missas e mote-tes e redigiu um estudo sobre o músico veneziano Carissimi. O pai de Marie, Charles de Fonscolombe, era também compositor e insistiu que as suas duas filhas tivessem lições de piano, que continuaram em Saint--Maurice. Todos os filhos de Marie aprenderam a tocar um instrumento, enquanto ela própria acrescentava aos seus múltiplos talentos a compo-sição de música sacra sobre textos em provençal.

André de Fonscolombe ia amiúde a Saint-Maurice, onde se recorda de ter ouvido tocar, sob a direção de diversos professores de música pro-fissionais, trechos de Hahn, Fauré, Schumann, Schubert e Massenet. Antoine aprendeu violino, mas o seu principal dom era um repertório de cantos folclóricos que fazia as delícias dos companheiros de escola e mais tarde dos amigos pilotos. Nem sempre respeitava o interesse que a mãe nutria pela música contemporânea, em particular a de Debussy. Já adulto, repetia frequentemente a sua brincadeira musical preferida: fazer rolar laranjas sobre o teclado do piano, desafiando os amigos a negarem que o resultado era tão divertido quanto uma par-titura de Debussy.

A abertura de espírito de Marie de Saint-Exupéry relativamente à cul-tura moderna manifestava-se também na pintura, como testemunham

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os seus excelentes trabalhos em pastel. Um dos seus antepassados, Jean-Baptiste de Fonscolombe, tinha sido membro da Academia de Belas-Artes de Marselha e da Academia das Artes do Desenho em Itália, embora a inspiração dela fosse mais contemporânea, como atestam os seus últimos retratos, que lembram as obras de Marie Laurencin.

Tendo em conta a influência filosófica de Saint-Simon que se agitava em segundo plano, é pouco verosímil que Fernand de Saint-Exupéry tenha acolhido de modo favorável a incitação da nora ao individualismo e à tolerância e a sua pretensão de querer pôr a cultura quase ao nível da religião. Contudo, no plano familiar, a sua autoridade sobre a educação das crianças era limitada.

A lei francesa sustentava a ideia de que as mulheres eram incapa-zes de tomar decisões com independência, devendo, por conseguinte, submeter-se aos homens. As necessidades afetivas não eram tidas em conta. Antoine e o seu irmão François viveram sob a tutela de facto de um conselho familiar encabeçado pelo avô paterno, Fernand. Nas ques-tões espirituais, Antoine estava sob a alçada do seu tio e padrinho Roger, a quem a honra obrigava, na ausência de um pai, a alimentar no sobri-nho uma forte vocação religiosa.

Quando Antoine fez 9 anos, foi decidido que ele devia preparar-se para desempenhar as funções de chefe de família e para uma carreira militar. De um dia para o outro, arrancaram-no à indulgência do uni-verso feminino de Saint-Maurice para o lançarem na atmosfera austera e viril de um colégio de jesuítas, em Le Mans, onde em tempos o pai e o tio tinham sido alunos internos.

Um lugar de doutrinação

O COLÉGIO DE NOTRE-DAME-DE-SAINTE-CROIX dá hoje para a rue Antoine de Saint-Exupéry, uma ruela situada no centro de Le Mans, antiga-mente chamada rue des Vignes. Da passagem do escritor por esta escola, onde entrou a 7 de outubro de 1909, existem apenas ténues referências. A escola mudou de sítio duas vezes antes de Antoine a

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ter deixado definitivamente em junho de 1915, e a construção gótica original foi confiscada pelo Estado em 1911 para ser transformada em caserna. A ligação mais tangível a Saint-Exupéry é o atual edifí-cio central na rue Prémartine, onde Antoine estudou e que serviu durante algum tempo como sala de aulas.

Os padres que o rodeavam eram missionários devotados a um cato-licismo tradicional e inflexível, que administravam um regime diário de sacrifício religioso e disciplina militar. Hoje, essas regras severas foram abolidas. Notre-Dame-de-Sainte-Croix mantém-se uma instituição cató-lica particular associada à Companhia de Jesus, mas o reitor é laico e as aulas são mistas. Rapazes e raparigas seguem um programa de estudos tolerante, no qual a religião é encarada mais como tema académico do que como uma cruzada.

O uniforme azul-marinho ao estilo dos cadetes que Saint-Exupéry também usou desapareceu há muito. Os estudantes vestem-se como qualquer adolescente francês e mostram pouco respeito por autoridades intolerantes. O interior do edifício central transformou-se de tal maneira que já não resta sequer um vislumbre da rígida rotina dos anos que ante-cederam a Primeira Guerra Mundial, embora no exterior o monumento aos mortos em combate sirva de lembrete. Muitos dos rapazes frequen-tavam o colégio como fase de preparação para a academia militar. Mais de 50 nomes de oficiais mortos nas curtas batalhas de 1940 e após a Libertação estão gravados no monumento; de todas as escolas de França, um dos que revelam um maior número de ex-alunos mortos.

Apesar de os jesuítas de Notre-Dame-de-Sainte-Croix ainda se encontrarem presentemente na primeira linha da batalha pela defesa da educação religiosa contra a indiferença de uma república laica, não há qualquer comparação com a luta da Igreja Católica contra o Estado republicano laico que foi implantado após a derrota frente à Prússia de Bismarck. O colégio tinha então a vocação nacional de recrutar acólitos para uma verdadeira cruzada pela defesa da fé dos antepassados, posta em perigo pela interdição governamental do ensino religioso nos esta-belecimentos públicos. As escolas jesuítas encarregaram-se de preparar deliberadamente os jovens para concorrerem às academias, de matriz

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militar ou civil, conhecidas como as grandes écoles, que se tinham tornado bastiões anticlericais após a Revolução. As famílias nobres e burgue-sas apoiaram vigorosamente a iniciativa e financiaram-na, e, em 1939, os estudantes das academias eram, na sua maioria, conservadores.

Quando Antoine chegou a Le Mans, o seu tio, Roger de Saint-Exupéry, era uma importante fonte de informações sobre o que significava fazer uma guerra santa contra um Estado pagão. Tinha iniciado os seus estu-dos em 1876, quatro anos depois de Jean, o pai de Antoine. Os Saint--Exupérys estavam diretamente implicados, com outros nobres da região, no financiamento do colégio que tinha sido, em 1870, um dos centros de resistência à invasão alemã. Situada, na época, num imponente edifício construído como uma abadia, a escola foi transformada em quartel para os soldados franceses, muitos dos quais foram depois ali medicamente assistidos, quando o sítio se tornou um hospital militar. Antes de o edifí-cio ser devolvido ao seu uso original, os regimentos de Bismarck ocupa- ram as salas de aulas, que transformaram em cavalariças. A ocupação deixou amargas recordações que, mais tarde, convenceriam a família a enviar Saint-Exupéry para um colégio na Suíça para o proteger durante a Primeira Guerra Mundial.

Após a guerra contra os prussianos, os jesuítas assumiram o con-trolo dos destinos da escola, até então dirigida por outra ordem religiosa. A partir dessa época, foi mais um lugar de doutrinação do que uma ins-tituição educativa, com os padres a combaterem os republicanos com a mesma veemência que utilizariam mais tarde na luta contra o comu-nismo. As sangrentas reminiscências da Comuna de 1871, no decurso da qual foram executadas personalidades religiosas pelo governo revo-lucionário, eram constantemente lembradas, tal como os communards nunca esqueceriam os massacres perpetrados pelo Exército, apoiado pela realeza e pelo clero.

Até à sua chegada a Le Mans, a educação formal de Antoine limitara--se a dois anos numa escola preparatória católica em Lyon. Ao mesmo tempo que tentava seduzi-lo com o sectarismo religioso, o colégio serviu também para a sua iniciação, tão cruel como prematura, à condição de adulto. Em 1909, as aulas ainda decorriam no edifício gótico original,

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ter deixado definitivamente em junho de 1915, e a construção gótica original foi confiscada pelo Estado em 1911 para ser transformada em caserna. A ligação mais tangível a Saint-Exupéry é o atual edifí-cio central na rue Prémartine, onde Antoine estudou e que serviu durante algum tempo como sala de aulas.

Os padres que o rodeavam eram missionários devotados a um cato-licismo tradicional e inflexível, que administravam um regime diário de sacrifício religioso e disciplina militar. Hoje, essas regras severas foram abolidas. Notre-Dame-de-Sainte-Croix mantém-se uma instituição cató-lica particular associada à Companhia de Jesus, mas o reitor é laico e as aulas são mistas. Rapazes e raparigas seguem um programa de estudos tolerante, no qual a religião é encarada mais como tema académico do que como uma cruzada.

O uniforme azul-marinho ao estilo dos cadetes que Saint-Exupéry também usou desapareceu há muito. Os estudantes vestem-se como qualquer adolescente francês e mostram pouco respeito por autoridades intolerantes. O interior do edifício central transformou-se de tal maneira que já não resta sequer um vislumbre da rígida rotina dos anos que ante-cederam a Primeira Guerra Mundial, embora no exterior o monumento aos mortos em combate sirva de lembrete. Muitos dos rapazes frequen-tavam o colégio como fase de preparação para a academia militar. Mais de 50 nomes de oficiais mortos nas curtas batalhas de 1940 e após a Libertação estão gravados no monumento; de todas as escolas de França, um dos que revelam um maior número de ex-alunos mortos.

Apesar de os jesuítas de Notre-Dame-de-Sainte-Croix ainda se encontrarem presentemente na primeira linha da batalha pela defesa da educação religiosa contra a indiferença de uma república laica, não há qualquer comparação com a luta da Igreja Católica contra o Estado republicano laico que foi implantado após a derrota frente à Prússia de Bismarck. O colégio tinha então a vocação nacional de recrutar acólitos para uma verdadeira cruzada pela defesa da fé dos antepassados, posta em perigo pela interdição governamental do ensino religioso nos esta-belecimentos públicos. As escolas jesuítas encarregaram-se de preparar deliberadamente os jovens para concorrerem às academias, de matriz

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militar ou civil, conhecidas como as grandes écoles, que se tinham tornado bastiões anticlericais após a Revolução. As famílias nobres e burgue-sas apoiaram vigorosamente a iniciativa e financiaram-na, e, em 1939, os estudantes das academias eram, na sua maioria, conservadores.

Quando Antoine chegou a Le Mans, o seu tio, Roger de Saint-Exupéry, era uma importante fonte de informações sobre o que significava fazer uma guerra santa contra um Estado pagão. Tinha iniciado os seus estu-dos em 1876, quatro anos depois de Jean, o pai de Antoine. Os Saint--Exupérys estavam diretamente implicados, com outros nobres da região, no financiamento do colégio que tinha sido, em 1870, um dos centros de resistência à invasão alemã. Situada, na época, num imponente edifício construído como uma abadia, a escola foi transformada em quartel para os soldados franceses, muitos dos quais foram depois ali medicamente assistidos, quando o sítio se tornou um hospital militar. Antes de o edifí-cio ser devolvido ao seu uso original, os regimentos de Bismarck ocupa- ram as salas de aulas, que transformaram em cavalariças. A ocupação deixou amargas recordações que, mais tarde, convenceriam a família a enviar Saint-Exupéry para um colégio na Suíça para o proteger durante a Primeira Guerra Mundial.

Após a guerra contra os prussianos, os jesuítas assumiram o con-trolo dos destinos da escola, até então dirigida por outra ordem religiosa. A partir dessa época, foi mais um lugar de doutrinação do que uma ins-tituição educativa, com os padres a combaterem os republicanos com a mesma veemência que utilizariam mais tarde na luta contra o comu-nismo. As sangrentas reminiscências da Comuna de 1871, no decurso da qual foram executadas personalidades religiosas pelo governo revo-lucionário, eram constantemente lembradas, tal como os communards nunca esqueceriam os massacres perpetrados pelo Exército, apoiado pela realeza e pelo clero.

Até à sua chegada a Le Mans, a educação formal de Antoine limitara--se a dois anos numa escola preparatória católica em Lyon. Ao mesmo tempo que tentava seduzi-lo com o sectarismo religioso, o colégio serviu também para a sua iniciação, tão cruel como prematura, à condição de adulto. Em 1909, as aulas ainda decorriam no edifício gótico original,

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mas o conflito entre os jesuítas e o Estado ia aumentando. A querela sobre o ensino religioso privado provocou o surgimento de fações mais radicais no seguimento do caso Dreyfus, altura em que a escola se tor- nou, através da Ação Francesa dirigida por Charles Maurras, um campo de recrutamento para o movimento antissemita e monárquico.

O ambiente em Notre-Dame-de-Sainte-Croix era espartano. O finan- ciamento privado era tão limitado que não existia aquecimento no refei- tório, onde 250 rapazes comiam a sua magra ração de caldo tépido sem tirarem os sobretudos. As refeições decorriam em silêncio, tendo apenas como fundo leituras litúrgicas.

Os colegas de Antoine eram, na sua maioria, originários de famí- lias numerosas com fortes tradições monárquicas. Era frequente 10 ou 12 irmãos serem distribuídos por classes diferentes, com o recorde das famílias De Romanet e De Maury, cada uma com 19 filhos. A única alteração pedagógica notável desde os tempos de escolaridade do pai de Antoine era que o latim deixara de ser a língua principal no ensino. O único senão era o horário carregado, digno da Idade Média, se bem que Antoine, como externo, beneficiasse de um regime ligeiramente menos rigoroso do que os internos, que tinham de se levantar às 5h30 da manhã. Foi a mãe que o inscreveu na escola, vivendo uma parte do ano com Antoine e François, que ficaram primeiro em casa do avô Fernand, uma casa burguesa, cinzenta e triste, no número 39 da rue Pierre-Bellon, a meia-hora de caminho do colégio.

A residência de Fernand era espaçosa, comparada com a que Marie de Saint-Exupéry arrendaria no número 21 da rue Clos-Margot, para aí viver com os filhos quando vinha a Le Mans. Tanto o interior como o jardim eram exíguos. No resto do ano, ficava com as filhas em Lyon ou em Saint-Maurice, enquanto Antoine e François ficavam a cargo de uma tia, Anaïs de Saint-Exupéry, dama de honor da duquesa de Vendôme, pertencente à família real francesa.

O impacto de ser transferido à força para tão longe da atmosfera alegre de Saint-Maurine está bem patente numa foto da escola, com Antoine de pé e expressão estoica, no meio de alunos que parecem em estado de choque perante os sacrifícios esperados de crianças de 9 anos.

O L H A R A M O R T E D E F R E N T E

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Outro aluno externo, Paul Gaultier, colega de turma de Antoine e futuro jornalista, recordará estes rigores na revista que assinalou o centenário da escola, em 1971. Todos os rapazes tinham de assistir à missa das 7h30, seis dias por semana, e à grande missa das 8h30 ao domingo. As aulas acabavam às 19 horas, e os alunos só tinham autorização para passar a tarde de domingo em sua casa. Tinham de lutar a todo o momento com o frio, com a água a gelar nas garrafas de mesa, e muitos deles sofriam de frieiras, mas o pior era o temor dos castigos.

O mais intolerável deles era la colle, ou detenção, geralmente aplicado nos períodos de repouso da quinta-feira e do domingo à tarde. Nos dias do Senhor, a manhã era prolongada por mais uma hora de instrução religiosa depois da grande missa, mas o tempo de lazer era muitas vezes substituído por estudos suplementares para punir a turbulência, a falta de atenção nas aulas ou a falta de entusiasmo pela instrução religiosa.

Também as brincadeiras no pátio eram fortemente vigiadas, e a menor falta era reprimida de imediato pelos padres. Os alunos eram obrigados, por exemplo, a fazer uma corrida de cinco ou seis voltas em torno do grande campo de jogos, ou a ficar de castigo junto a uma árvore durante todo o recreio. As faltas mais graves eram passíveis de açoites com o chicote.

A individualidade não era encorajada. As saídas efetuavam-se sempre em grupo, e a maioria das excursões limitava-se a peregrina-ções religiosas. Antoine descreve, numa carta à mãe datada de 1910, um destes passeios no início do verão, quando foi à abadia beneditina de Notre-Dame-du-Chêne, em Solesmes, num carro puxado por cavalos apinhado de estudantes. O tom era humorístico e sem qualquer recrimi-nação, ao contrário do que acontecerá anos mais tarde quando Antoine evoca o sofrimento por que passou em Le Mans durante a ausência da mãe, quando esta estava em Lyon e não podia protegê-lo.

«Lembro-me de quando a mãe ia ao colégio e pedia ao padre- -perfeito que acabasse com as colles», escreveu. «Eu costumava regres- sar a casa com a minha grande mochila às costas, soluçando por ter sido punido — era Le Mans, lembra-se? —, e só os seus beijos e abraços me faziam esquecer tudo. A mãe era o apoio todo-poderoso

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mas o conflito entre os jesuítas e o Estado ia aumentando. A querela sobre o ensino religioso privado provocou o surgimento de fações mais radicais no seguimento do caso Dreyfus, altura em que a escola se tor- nou, através da Ação Francesa dirigida por Charles Maurras, um campo de recrutamento para o movimento antissemita e monárquico.

O ambiente em Notre-Dame-de-Sainte-Croix era espartano. O finan- ciamento privado era tão limitado que não existia aquecimento no refei- tório, onde 250 rapazes comiam a sua magra ração de caldo tépido sem tirarem os sobretudos. As refeições decorriam em silêncio, tendo apenas como fundo leituras litúrgicas.

Os colegas de Antoine eram, na sua maioria, originários de famí- lias numerosas com fortes tradições monárquicas. Era frequente 10 ou 12 irmãos serem distribuídos por classes diferentes, com o recorde das famílias De Romanet e De Maury, cada uma com 19 filhos. A única alteração pedagógica notável desde os tempos de escolaridade do pai de Antoine era que o latim deixara de ser a língua principal no ensino. O único senão era o horário carregado, digno da Idade Média, se bem que Antoine, como externo, beneficiasse de um regime ligeiramente menos rigoroso do que os internos, que tinham de se levantar às 5h30 da manhã. Foi a mãe que o inscreveu na escola, vivendo uma parte do ano com Antoine e François, que ficaram primeiro em casa do avô Fernand, uma casa burguesa, cinzenta e triste, no número 39 da rue Pierre-Bellon, a meia-hora de caminho do colégio.

A residência de Fernand era espaçosa, comparada com a que Marie de Saint-Exupéry arrendaria no número 21 da rue Clos-Margot, para aí viver com os filhos quando vinha a Le Mans. Tanto o interior como o jardim eram exíguos. No resto do ano, ficava com as filhas em Lyon ou em Saint-Maurice, enquanto Antoine e François ficavam a cargo de uma tia, Anaïs de Saint-Exupéry, dama de honor da duquesa de Vendôme, pertencente à família real francesa.

O impacto de ser transferido à força para tão longe da atmosfera alegre de Saint-Maurine está bem patente numa foto da escola, com Antoine de pé e expressão estoica, no meio de alunos que parecem em estado de choque perante os sacrifícios esperados de crianças de 9 anos.

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Outro aluno externo, Paul Gaultier, colega de turma de Antoine e futuro jornalista, recordará estes rigores na revista que assinalou o centenário da escola, em 1971. Todos os rapazes tinham de assistir à missa das 7h30, seis dias por semana, e à grande missa das 8h30 ao domingo. As aulas acabavam às 19 horas, e os alunos só tinham autorização para passar a tarde de domingo em sua casa. Tinham de lutar a todo o momento com o frio, com a água a gelar nas garrafas de mesa, e muitos deles sofriam de frieiras, mas o pior era o temor dos castigos.

O mais intolerável deles era la colle, ou detenção, geralmente aplicado nos períodos de repouso da quinta-feira e do domingo à tarde. Nos dias do Senhor, a manhã era prolongada por mais uma hora de instrução religiosa depois da grande missa, mas o tempo de lazer era muitas vezes substituído por estudos suplementares para punir a turbulência, a falta de atenção nas aulas ou a falta de entusiasmo pela instrução religiosa.

Também as brincadeiras no pátio eram fortemente vigiadas, e a menor falta era reprimida de imediato pelos padres. Os alunos eram obrigados, por exemplo, a fazer uma corrida de cinco ou seis voltas em torno do grande campo de jogos, ou a ficar de castigo junto a uma árvore durante todo o recreio. As faltas mais graves eram passíveis de açoites com o chicote.

A individualidade não era encorajada. As saídas efetuavam-se sempre em grupo, e a maioria das excursões limitava-se a peregrina-ções religiosas. Antoine descreve, numa carta à mãe datada de 1910, um destes passeios no início do verão, quando foi à abadia beneditina de Notre-Dame-du-Chêne, em Solesmes, num carro puxado por cavalos apinhado de estudantes. O tom era humorístico e sem qualquer recrimi-nação, ao contrário do que acontecerá anos mais tarde quando Antoine evoca o sofrimento por que passou em Le Mans durante a ausência da mãe, quando esta estava em Lyon e não podia protegê-lo.

«Lembro-me de quando a mãe ia ao colégio e pedia ao padre- -perfeito que acabasse com as colles», escreveu. «Eu costumava regres- sar a casa com a minha grande mochila às costas, soluçando por ter sido punido — era Le Mans, lembra-se? —, e só os seus beijos e abraços me faziam esquecer tudo. A mãe era o apoio todo-poderoso

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contra os vigilantes e os padres-perfeitos. Sentíamo-nos em segu-rança em sua casa; éramos só seus. Era bom.»

Nos últimos dias que precediam as férias grandes, a disciplina afrouxava, e os alunos tinham permissão para tomar banho na ribeira vizinha. Caso contrário, o desporto era encarado como um trabalho de equipa vigoroso e violento. André Dunant, outro antigo aluno, recorda--se de que os jogos eram geralmente «muito viris». Os jogos de fute-bol opunham equipas de 50 rapazes, jogava-se com duas bolas e não existiam muitas regras.

A maioria dos jogos recuperava elementos tático-militares, parti-cularmente le jeu des boucliers, o jogo dos escudos. As turmas eram divididas em dois campos que se batiam com a ajuda de bolas, tendo por finalidade capturar a bandeira do adversário.

«Não havia rancor por causa da disciplina, pois muitos dos rapazes estavam destinados a ingressar nas grandes écoles, como a Politechnique e a Centrale, que preparavam engenheiros civis e militares», recorda André Dunant. «Mais tarde, fui cadete da academia militar de Saint-Cyr, e não havia nenhuma diferença entre a disciplina militar e a educação dada em Notre-Dame-de-Saint-Croix.»

Este regime rigoroso, acompanhado de intensos estudos religiosos, preparou ainda muitos alunos para a vida de renúncia do sacerdócio; um dos colegas de Saint-Exupéry das turmas mais avançadas tornou-se bispo de Le Mans.

***

À EXCEÇÃO DAS CARTAS para a mãe, existem poucas referências a Le Mans nos escritos de Saint-Exupéry, se bem que ele confesse mais tarde aos amigos que raramente se sentira feliz lá. Para uma natureza tão sensível como a sua, a atmosfera de intolerância, sobretudo quando estava sepa-rado da mãe, devia ser uma verdadeira tortura, à qual ele se limitava a reagir com uma passividade melancólica.

As suas notas de comportamento, postura e assiduidade eram geral-mente medíocres. Os primeiros meses foram decerto os mais penosos,

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O L H A R A M O R T E D E F R E N T E

mas os anos escolares mais desastrosos foram os de 1913 e 1914. Até então, ele sofreu resignadamente em silêncio, e os seus primeiros boletins escolares revelavam uma civilidade sem mácula. Entre 1913 e 1914, a avaliação da sua civilidade caiu para «E», numa escala alfa-bética descendente, ao mesmo tempo que a sua conduta em geral recebia a menção de «EI», consideradas como «muito más notas». Esta rebelião foi mais grave do que a habitual insolência da adoles- cência porque Antoine arriscou-se a ser expulso.

Cada «E» era punido com duas horas de castigo. Como Antoine obteve sete «EI» e seis «I», o que ainda era pior, nos três meses que precederam as férias de verão de 1914 teve de sacrificar a maior parte do seu tempo livre. Não se apresentou no primeiro trimestre do outono de 1914, e quando regressou para os dois últimos trimestres do ano letivo de 1914−15, a sua conduta pouco melhorou, mas pelo menos não foi castigado por impertinência.

A origem do problema residia num desentendimento com o avô, Fernand. Desde muito jovem que Antoine tinha aceitado a autoridade incontestada desta figura patriarcal de barbas brancas. Podemos adivi-nhar o deslumbramento juvenil suscitado pelo imponente patriarca por trás de uma enorme secretária n’O Principezinho, onde se pode reco-nhecer no geógrafo uma caricatura do avô. A sua casa na rue Pierre--Bellon era, sem dúvida, mais enfadonha do que a de Saint-Maurice, mas possuía uma biblioteca extraordinária, dotada de uma coleção de livros raros iniciada pelo pai de Fernand. Antoine pôde consultar alguns volumes preciosos, em particular uma obra de astronomia encadernada a couro que o impressionou o suficiente para figurar à cabeça das infor-mações que levou para Saint-Maurice no seu regresso para as férias do verão de 1911.

À medida que Antoine foi crescendo, a relação com o avô foi-se tor-nando mais tensa. A autoridade deste como chefe do conselho familiar estava em contradição com as atitudes liberais de Marie de Saint-Exupéry. Existia um conflito de personalidades e prioridades, no qual Antoine tomava firmemente o lado materno. Charlotte Churchill, uma das pri-mas de Antoine, contou à intelectual americana Helen Crane que ele

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contra os vigilantes e os padres-perfeitos. Sentíamo-nos em segu-rança em sua casa; éramos só seus. Era bom.»

Nos últimos dias que precediam as férias grandes, a disciplina afrouxava, e os alunos tinham permissão para tomar banho na ribeira vizinha. Caso contrário, o desporto era encarado como um trabalho de equipa vigoroso e violento. André Dunant, outro antigo aluno, recorda--se de que os jogos eram geralmente «muito viris». Os jogos de fute-bol opunham equipas de 50 rapazes, jogava-se com duas bolas e não existiam muitas regras.

A maioria dos jogos recuperava elementos tático-militares, parti-cularmente le jeu des boucliers, o jogo dos escudos. As turmas eram divididas em dois campos que se batiam com a ajuda de bolas, tendo por finalidade capturar a bandeira do adversário.

«Não havia rancor por causa da disciplina, pois muitos dos rapazes estavam destinados a ingressar nas grandes écoles, como a Politechnique e a Centrale, que preparavam engenheiros civis e militares», recorda André Dunant. «Mais tarde, fui cadete da academia militar de Saint-Cyr, e não havia nenhuma diferença entre a disciplina militar e a educação dada em Notre-Dame-de-Saint-Croix.»

Este regime rigoroso, acompanhado de intensos estudos religiosos, preparou ainda muitos alunos para a vida de renúncia do sacerdócio; um dos colegas de Saint-Exupéry das turmas mais avançadas tornou-se bispo de Le Mans.

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À EXCEÇÃO DAS CARTAS para a mãe, existem poucas referências a Le Mans nos escritos de Saint-Exupéry, se bem que ele confesse mais tarde aos amigos que raramente se sentira feliz lá. Para uma natureza tão sensível como a sua, a atmosfera de intolerância, sobretudo quando estava sepa-rado da mãe, devia ser uma verdadeira tortura, à qual ele se limitava a reagir com uma passividade melancólica.

As suas notas de comportamento, postura e assiduidade eram geral-mente medíocres. Os primeiros meses foram decerto os mais penosos,

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mas os anos escolares mais desastrosos foram os de 1913 e 1914. Até então, ele sofreu resignadamente em silêncio, e os seus primeiros boletins escolares revelavam uma civilidade sem mácula. Entre 1913 e 1914, a avaliação da sua civilidade caiu para «E», numa escala alfa-bética descendente, ao mesmo tempo que a sua conduta em geral recebia a menção de «EI», consideradas como «muito más notas». Esta rebelião foi mais grave do que a habitual insolência da adoles- cência porque Antoine arriscou-se a ser expulso.

Cada «E» era punido com duas horas de castigo. Como Antoine obteve sete «EI» e seis «I», o que ainda era pior, nos três meses que precederam as férias de verão de 1914 teve de sacrificar a maior parte do seu tempo livre. Não se apresentou no primeiro trimestre do outono de 1914, e quando regressou para os dois últimos trimestres do ano letivo de 1914−15, a sua conduta pouco melhorou, mas pelo menos não foi castigado por impertinência.

A origem do problema residia num desentendimento com o avô, Fernand. Desde muito jovem que Antoine tinha aceitado a autoridade incontestada desta figura patriarcal de barbas brancas. Podemos adivi-nhar o deslumbramento juvenil suscitado pelo imponente patriarca por trás de uma enorme secretária n’O Principezinho, onde se pode reco-nhecer no geógrafo uma caricatura do avô. A sua casa na rue Pierre--Bellon era, sem dúvida, mais enfadonha do que a de Saint-Maurice, mas possuía uma biblioteca extraordinária, dotada de uma coleção de livros raros iniciada pelo pai de Fernand. Antoine pôde consultar alguns volumes preciosos, em particular uma obra de astronomia encadernada a couro que o impressionou o suficiente para figurar à cabeça das infor-mações que levou para Saint-Maurice no seu regresso para as férias do verão de 1911.

À medida que Antoine foi crescendo, a relação com o avô foi-se tor-nando mais tensa. A autoridade deste como chefe do conselho familiar estava em contradição com as atitudes liberais de Marie de Saint-Exupéry. Existia um conflito de personalidades e prioridades, no qual Antoine tomava firmemente o lado materno. Charlotte Churchill, uma das pri-mas de Antoine, contou à intelectual americana Helen Crane que ele

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estava muitas vezes em desacordo com o avô, e vice-versa. Atribuía isso aos seus temperamentos meridionais expansivos, explicando assim o facto de serem os dois grandes faladores. Antoine tinha sido encorajado a tomar parte das conversas, enquanto Fernand de Saint-Exupéry acredi-tava que as crianças deviam limitar-se a escutar.

Segundo a sua maneira rígida de ver as coisas, o neto não passava de uma criança superprotegida que tinha de ser domada através de uma rigorosa disciplina física. No decurso de uma conversa com Simone, em 1912, Antoine revelou que até a sua tia Anaïs lhe batia quando ele se mostrava insolente.

A lição mais importante que Saint-Exupéry aprendeu em Le Mans foi, sem dúvida, descobrir quão reconfortante a camaradagem pode ser na adversidade. Ao mesmo tempo, ele teve de aceitar as piadas dos colegas a propósito da sua aparência. Em casa, era tratado por Tonio. Em Le Mans, foi presenteado com duas alcunhas que o inco-modaram até à idade adulta.

A primeira, Tatane, tinha que ver com o tamanho dos pés, que iriam ser uma fonte permanente de divertimento, a ponto de se tornarem a recordação mais nítida de uma jovem de 16 anos que dançou com ele num bar na véspera da sua morte em 1944. Tatane seria depois substi- tuído por outra alcunha que o aborrecia ainda mais, a de Pique-la-lune, uma alusão ao nariz arrebitado e também ao ar distraído, que acaba- ria um dia por interferir com a sua carreira na aviação.

No plano académico, Saint-Exupéry raramente deixava uma boa impressão nos professores, embora muitas das suas más notas possam ser atribuídas a uma resistência passiva perante a autoridade. O número de alunos da turma de Antoine variou entre os 19 e os 11, mas ele nunca passou dos últimos lugares quanto ao seu aproveitamento. Obtinha as piores notas em história, geografia, alemão, latim e ortografia. Os melho-res resultados eram a francês, se bem que fosse considerado fraco na gramática.

O seu interesse pela matemática e a geografia, matérias em que tivera dificuldades em Le Mans, só se manifestou quando as pôs ao seu ser-viço como aviador e inventor. Na idade adulta, o aborrecimento que lhe

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O L H A R A M O R T E D E F R E N T E

provocava a matemática em Le Mans deu lugar a uma verdadeira paixão pela geometria. A única matéria que dominou com alguma consistência durante a escolaridade foi a escrita, que lhe servia de avaliação pessoal e de refúgio em períodos de angústia. As melhores notas que Antoine teve foram em composições, entre os 12 e os 14 anos, o período que coincidiu com a fase de maior indisciplina e impertinência.

Não foi um jesuíta intelectual que encorajou o talento literário de Antoine. Em 1900, a ordem tinha sido expulsa de França e proibida de ensinar. Em Le Mans, assim como noutros colégios, os jesuítas desafiaram o governo ao deixarem para trás alguns padres jesuítas nos bastidores e confiando o ensino a padres recrutados fora das ordens reli- giosas oficiais.

Estes padres diocesanos das pequenas cidades e vilas dos arredo-res de Le Mans prometeram seguir à letra as orientações dos jesuítas, e fizeram-no tão bem que Notre-Dame-de-Sainte-Croix continuou como um santuário do conservadorismo e da realeza até à Segunda Guerra Mundial. Se a sua coragem em defender a fé contra as ingerências gover-namentais é de admirar, a verdade é que teve também o triste resultado de encorajar muitos antigos alunos a fazerem escolhas contestáveis após a derrota da França e a associarem-se ao extremismo do regime de Vichy de Philippe Pétain e à ideologia divisionista da Ação Francesa.

Felizmente, os padres não eram desprovidos de consciência e não podiam deixar de reconhecer um talento natural. O abade Auguste Launay teve o mérito de ser o primeiro a aperceber-se das excecionais qualidades de contista que Antoine manifestava. O padre é a figura cen-tral na mais notável das fotos de grupo feitas em Le Mans: 17 rapazes de 13 anos com um olhar solene, uns de pé, outros sentados, rodeiam um padre de cara grande e severa e de cabelo à escovinha. Com a sua apa- rência austera, Auguste Launay, inevitavelmente alcunhado César, era um crítico literário nato. Já antes de Antoine chegar ao 3.º ano as suas qualidades de escritor tinham sido notadas por outros professores, mas o abade Launay foi o único a vislumbrar o seu talento criativo, uti-lizando as redações de Saint-Exupéry como modelo pedagógico muito antes de este se tornar um autor reconhecido e publicado.

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estava muitas vezes em desacordo com o avô, e vice-versa. Atribuía isso aos seus temperamentos meridionais expansivos, explicando assim o facto de serem os dois grandes faladores. Antoine tinha sido encorajado a tomar parte das conversas, enquanto Fernand de Saint-Exupéry acredi-tava que as crianças deviam limitar-se a escutar.

Segundo a sua maneira rígida de ver as coisas, o neto não passava de uma criança superprotegida que tinha de ser domada através de uma rigorosa disciplina física. No decurso de uma conversa com Simone, em 1912, Antoine revelou que até a sua tia Anaïs lhe batia quando ele se mostrava insolente.

A lição mais importante que Saint-Exupéry aprendeu em Le Mans foi, sem dúvida, descobrir quão reconfortante a camaradagem pode ser na adversidade. Ao mesmo tempo, ele teve de aceitar as piadas dos colegas a propósito da sua aparência. Em casa, era tratado por Tonio. Em Le Mans, foi presenteado com duas alcunhas que o inco-modaram até à idade adulta.

A primeira, Tatane, tinha que ver com o tamanho dos pés, que iriam ser uma fonte permanente de divertimento, a ponto de se tornarem a recordação mais nítida de uma jovem de 16 anos que dançou com ele num bar na véspera da sua morte em 1944. Tatane seria depois substi- tuído por outra alcunha que o aborrecia ainda mais, a de Pique-la-lune, uma alusão ao nariz arrebitado e também ao ar distraído, que acaba- ria um dia por interferir com a sua carreira na aviação.

No plano académico, Saint-Exupéry raramente deixava uma boa impressão nos professores, embora muitas das suas más notas possam ser atribuídas a uma resistência passiva perante a autoridade. O número de alunos da turma de Antoine variou entre os 19 e os 11, mas ele nunca passou dos últimos lugares quanto ao seu aproveitamento. Obtinha as piores notas em história, geografia, alemão, latim e ortografia. Os melho-res resultados eram a francês, se bem que fosse considerado fraco na gramática.

O seu interesse pela matemática e a geografia, matérias em que tivera dificuldades em Le Mans, só se manifestou quando as pôs ao seu ser-viço como aviador e inventor. Na idade adulta, o aborrecimento que lhe

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provocava a matemática em Le Mans deu lugar a uma verdadeira paixão pela geometria. A única matéria que dominou com alguma consistência durante a escolaridade foi a escrita, que lhe servia de avaliação pessoal e de refúgio em períodos de angústia. As melhores notas que Antoine teve foram em composições, entre os 12 e os 14 anos, o período que coincidiu com a fase de maior indisciplina e impertinência.

Não foi um jesuíta intelectual que encorajou o talento literário de Antoine. Em 1900, a ordem tinha sido expulsa de França e proibida de ensinar. Em Le Mans, assim como noutros colégios, os jesuítas desafiaram o governo ao deixarem para trás alguns padres jesuítas nos bastidores e confiando o ensino a padres recrutados fora das ordens reli- giosas oficiais.

Estes padres diocesanos das pequenas cidades e vilas dos arredo-res de Le Mans prometeram seguir à letra as orientações dos jesuítas, e fizeram-no tão bem que Notre-Dame-de-Sainte-Croix continuou como um santuário do conservadorismo e da realeza até à Segunda Guerra Mundial. Se a sua coragem em defender a fé contra as ingerências gover-namentais é de admirar, a verdade é que teve também o triste resultado de encorajar muitos antigos alunos a fazerem escolhas contestáveis após a derrota da França e a associarem-se ao extremismo do regime de Vichy de Philippe Pétain e à ideologia divisionista da Ação Francesa.

Felizmente, os padres não eram desprovidos de consciência e não podiam deixar de reconhecer um talento natural. O abade Auguste Launay teve o mérito de ser o primeiro a aperceber-se das excecionais qualidades de contista que Antoine manifestava. O padre é a figura cen-tral na mais notável das fotos de grupo feitas em Le Mans: 17 rapazes de 13 anos com um olhar solene, uns de pé, outros sentados, rodeiam um padre de cara grande e severa e de cabelo à escovinha. Com a sua apa- rência austera, Auguste Launay, inevitavelmente alcunhado César, era um crítico literário nato. Já antes de Antoine chegar ao 3.º ano as suas qualidades de escritor tinham sido notadas por outros professores, mas o abade Launay foi o único a vislumbrar o seu talento criativo, uti-lizando as redações de Saint-Exupéry como modelo pedagógico muito antes de este se tornar um autor reconhecido e publicado.

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Auguste Launay nasceu e morreu na vila vizinha de Sillé-le-Guillaume, onde o pai era marceneiro. Na sua infância, não existia ali nenhuma escola pública, pelo que a sua educação foi assegurada graças a uma vocação religiosa que ele seguiu à risca durante os seus 34 anos de ensino em Le Mans. O aspeto severo da fotografia foi confirmado por antigos alu-nos, que se recordam de uma pessoa distante, vestida sempre com uma sotaina impecável e que, durante as aulas, raramente deixava a sua secre-tária, posta sobre um estrado. Recusava-se a tocar no giz, obrigando os alunos a escreverem por ele no quadro negro enquanto os atormentava com perguntas sobre a gramática do latim.

Além do latim, ensinava grego e religião, matérias contra as quais Antoine se insurgiria quando fez 14 anos. O ambiente nas aulas de fran-cês era bastante mais ameno, apesar das más notas de Saint-Exupéry a gramática. O abade ficou tão impressionado com o que ele escrevia que utilizou duas das suas composições como modelos de narrativa até à sua saída do colégio no início da Segunda Guerra Mundial.

A mais conhecida é a «Odisseia de Um Chapéu», que conta o declí-nio de um chapéu alto que acaba como barrete de um chefe de uma longínqua tribo africana. No começo do conto, que se prolonga por mais de mil palavras, o chapéu conta como nasceu numa fábrica de chapéus, onde «suportei toda a espécie de torturas».

Depois de cortado, esticado e lustrado, o chapéu é enviado para uma loja parisiense, onde é um dos mais elegantes em exposição. «Eu era tão brilhante que as senhoras que passavam não resistiam a admirar o seu reflexo no meu lustro. Era tão elegante que nenhum cavalheiro distinto podia olhar para mim sem sentir cobiça.» Adquirido por um milionário, o chapéu é objeto de admiração dos amigos do senhor no clube, sendo depois conservado e limpo com enorme cuidado durante vários meses de «prazenteira existência».

«Um fiel criado a quem havia sido especialmente confiada a tarefa de zelar pelo guarda-roupa do senhor cuidou de mim com lisonjeira genti-leza. Polia-me todas as noites e voltava a polir-me todas as manhãs.»

O chapéu data o declínio da sua sorte no dia em que é dado como pre-sente a um cocheiro prestes a casar-se. No primeiro dia, passa três vezes

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O L H A R A M O R T E D E F R E N T E

por lama e pó sem ser limpo, e depois, «cheio de um desejo fervoroso de vingança», encolhe e é vendido a um antiquário por 30 cêntimos.

«Este homem era um temível judeu, o nariz ligeiramente em gancho que anunciava um rosto desonesto e mal-humorado. Depois de limpo, fui novamente posto na montra, mas dessa vez exposto à zombaria pública, pendurado de um cordão sujo.»

Segue-se um breve período de felicidade quando o chapéu é com-prado por um jovem casal. «Mas um dia, quando Caroline e Mathieu caminhavam pelo Sena, um violento golpe de vento transformou-me num pássaro. Depois de vários segundos de terrível angústia, caí ao rio e fui suavemente levado na companhia dos peixes, que olhavam, temen-tes, para este novo tipo de embarcação.»

Um homem andrajoso salva o chapéu, e, depois de ser sujeito a novas torturas para reparar os estragos, é encaixotado e enviado para África.

Certa manhã, abri os olhos com a luz e fiquei horrorizado por ver

diante de mim pessoas pretas, a maioria de rostos tomados pelos

lábios e vestidas somente com um par de calções de banho fora de

moda e anéis nos narizes e nas orelhas. Sentado à parte num cai-

xote de biscoitos, um daqueles estranhos homens segurava na mão

um cetro feito de um espanador de penas, mas que as perdera,

e vestia a pele de um leão morto com uma coragem equivalente à do

seu tamanho.

Agarraram-me duas mãos pretas, com admiração. Sobressaltei-

-me, amedrontado, e só sosseguei quando percebi que a tinta não saía.

Fui posto em cima da massa preta que era o rei. Ainda ali estou,

a passar dias felizes. Por vezes o meu lustro derrete-se à luz do sol escal-

dante, noutras o sentido prático do meu soberano fez-me ser usado

como frigideira. […]. Mas vivo em paz que chegue, a adornar a cabeça

do terrível Bam-Bum, o mais poderoso príncipe à face da Terra.

Escrevo estas linhas durante os dias da minha decadência, na espe-

rança de que cheguem aos Franceses, contando-lhes que vivo num país

em que os chapéus estão sempre na moda e que, na verdade, quando

estiver gasto, espero mesmo ser venerado como relíquia por em tempos

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Auguste Launay nasceu e morreu na vila vizinha de Sillé-le-Guillaume, onde o pai era marceneiro. Na sua infância, não existia ali nenhuma escola pública, pelo que a sua educação foi assegurada graças a uma vocação religiosa que ele seguiu à risca durante os seus 34 anos de ensino em Le Mans. O aspeto severo da fotografia foi confirmado por antigos alu-nos, que se recordam de uma pessoa distante, vestida sempre com uma sotaina impecável e que, durante as aulas, raramente deixava a sua secre-tária, posta sobre um estrado. Recusava-se a tocar no giz, obrigando os alunos a escreverem por ele no quadro negro enquanto os atormentava com perguntas sobre a gramática do latim.

Além do latim, ensinava grego e religião, matérias contra as quais Antoine se insurgiria quando fez 14 anos. O ambiente nas aulas de fran-cês era bastante mais ameno, apesar das más notas de Saint-Exupéry a gramática. O abade ficou tão impressionado com o que ele escrevia que utilizou duas das suas composições como modelos de narrativa até à sua saída do colégio no início da Segunda Guerra Mundial.

A mais conhecida é a «Odisseia de Um Chapéu», que conta o declí-nio de um chapéu alto que acaba como barrete de um chefe de uma longínqua tribo africana. No começo do conto, que se prolonga por mais de mil palavras, o chapéu conta como nasceu numa fábrica de chapéus, onde «suportei toda a espécie de torturas».

Depois de cortado, esticado e lustrado, o chapéu é enviado para uma loja parisiense, onde é um dos mais elegantes em exposição. «Eu era tão brilhante que as senhoras que passavam não resistiam a admirar o seu reflexo no meu lustro. Era tão elegante que nenhum cavalheiro distinto podia olhar para mim sem sentir cobiça.» Adquirido por um milionário, o chapéu é objeto de admiração dos amigos do senhor no clube, sendo depois conservado e limpo com enorme cuidado durante vários meses de «prazenteira existência».

«Um fiel criado a quem havia sido especialmente confiada a tarefa de zelar pelo guarda-roupa do senhor cuidou de mim com lisonjeira genti-leza. Polia-me todas as noites e voltava a polir-me todas as manhãs.»

O chapéu data o declínio da sua sorte no dia em que é dado como pre-sente a um cocheiro prestes a casar-se. No primeiro dia, passa três vezes

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O L H A R A M O R T E D E F R E N T E

por lama e pó sem ser limpo, e depois, «cheio de um desejo fervoroso de vingança», encolhe e é vendido a um antiquário por 30 cêntimos.

«Este homem era um temível judeu, o nariz ligeiramente em gancho que anunciava um rosto desonesto e mal-humorado. Depois de limpo, fui novamente posto na montra, mas dessa vez exposto à zombaria pública, pendurado de um cordão sujo.»

Segue-se um breve período de felicidade quando o chapéu é com-prado por um jovem casal. «Mas um dia, quando Caroline e Mathieu caminhavam pelo Sena, um violento golpe de vento transformou-me num pássaro. Depois de vários segundos de terrível angústia, caí ao rio e fui suavemente levado na companhia dos peixes, que olhavam, temen-tes, para este novo tipo de embarcação.»

Um homem andrajoso salva o chapéu, e, depois de ser sujeito a novas torturas para reparar os estragos, é encaixotado e enviado para África.

Certa manhã, abri os olhos com a luz e fiquei horrorizado por ver

diante de mim pessoas pretas, a maioria de rostos tomados pelos

lábios e vestidas somente com um par de calções de banho fora de

moda e anéis nos narizes e nas orelhas. Sentado à parte num cai-

xote de biscoitos, um daqueles estranhos homens segurava na mão

um cetro feito de um espanador de penas, mas que as perdera,

e vestia a pele de um leão morto com uma coragem equivalente à do

seu tamanho.

Agarraram-me duas mãos pretas, com admiração. Sobressaltei-

-me, amedrontado, e só sosseguei quando percebi que a tinta não saía.

Fui posto em cima da massa preta que era o rei. Ainda ali estou,

a passar dias felizes. Por vezes o meu lustro derrete-se à luz do sol escal-

dante, noutras o sentido prático do meu soberano fez-me ser usado

como frigideira. […]. Mas vivo em paz que chegue, a adornar a cabeça

do terrível Bam-Bum, o mais poderoso príncipe à face da Terra.

Escrevo estas linhas durante os dias da minha decadência, na espe-

rança de que cheguem aos Franceses, contando-lhes que vivo num país

em que os chapéus estão sempre na moda e que, na verdade, quando

estiver gasto, espero mesmo ser venerado como relíquia por em tempos

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ter agraciado a cabeça do meu ilustre proprietário, Bam-Bum II,

rei do Níger.

Antoine de Saint-Exupéry, aos 13 anos

O manuscrito original desmentia o testemunho de colegas de Saint--Exupéry, que o descreviam como um aluno pouco cuidadoso, cujas cópias estavam sempre cheias de nódoas. Talvez isto fosse verdade quando o assunto não lhe interessava, mas a «Odisseia de Um Chapéu», que lhe valeu um prémio especial no fim do ano letivo, foi redigida com uma segurança e uma maturidade bem patentes na escrita clara e quase adulta.

Infelizmente, o outro texto modelar usado pelo abade Launay, que relata o enterro de uma formiga, perdeu-se, embora o enredo tenha ficado gravado na memória de vários alunos. Supostamente, o cortejo fúnebre fora testemunhado pelo escritor Jean de la Fontaine, que o con-tava a um amigo. O ponto alto da redação de Antoine refletia o seu inte-resse pela mecânica. O cortejo era interrompido por um fio de água, e ele descrevia o modo como as formigas construíam uma ponte de ervinhas com a ajuda das mandíbulas.

Seria porventura agradável imaginar Antoine a regressar a Le Mans depois de ter obtido o seu primeiro prémio com Voo Noturno, em 1931, a fim de agradecer ao antigo professor pela sua perspicácia e encoraja-mento, mas ele guardava recordações demasiado amargas do colégio, e tudo indica que não voltou lá depois de o ter deixado em 1915. Auguste Launay não viveu o suficiente para ver a sua intuição confirmada, quando os livros de Saint-Exupéry, principalmente Voo Noturno e Terra dos Homens, se tornaram referências nacionais e modelos pedagógicos em todas as escolas primárias e secundárias de França.

***

O ABADE LAUNAY ATRIBUIU 12 valores, numa escala de 0 a 20, a Saint--Exupéry pela sua história do chapéu. Tirara-lhe um ponto pelos erros ortográficos, mas não houve nenhum comentário sobre a descrição

5 7

O L H A R A M O R T E D E F R E N T E

severa e racista de um dos proprietários do chapéu, um comerciante de roupa em segunda mão, o horrível judeu de rosto hipócrita e amargo. Não se pode atribuir a esta frase somente um simples erro de julgamento feito por um jovem com quase 14 anos que, se calhar, nunca tinha visto um judeu. A imagem refletia as ideias do meio em que ele vivia, onde a maioria dos membros da família se sentia incomodada com a comuni-dade judaica, a que chamavam israelitas.

A ligação de Saint-Exupéry em jovem aos valores monárquicos e antissemitas da Ação Francesa, partilhada pelos seus colegas de escola, pusera-o em contacto com as caricaturas maldosas e caluniosas que, mais tarde, seriam utilizadas pelo regime de Vichy como um pretexto para a perseguição movida contra esta minoria étnica. Durante as férias de verão que precederam a redação da sua «Odisseia», Antoine tinha confessado a Simone que simpatizava com o movimento monár-quico antissemita e que iria fundar uma sociedade monárquica secreta, presidida por ele, para distribuir propaganda. No trimestre seguinte, os seus colegas de turma editaram um jornal intitulado O Eco do Terceiro, em que o humor obscurecia a pouca ambição política. Passado de mão em mão, provocou uma hilaridade tal que atraiu a atenção de um dos padres, que o confiscou e destruiu. É, pois, impossível saber se O Eco do Terceiro apoiava ou não a Ação Francesa.

A passagem antissemita da sua redação de infância é menos inte-ressante enquanto testemunho de um juízo imprudente da juventude do que os exemplos marcantes do seu distanciamento em relação à influência perniciosa recebida em Le Mans. Ninguém pode acusar Saint--Exupéry de ter sido antissemita na idade adulta. A sua tolerância ia bem mais longe do que uma mera relação de confiança com os judeus, e em Cidadela escreve uma enérgica parábola em defesa das minorias perse-guidas, numa época em que Vichy tinha instaurado a caça aos judeus.

As opiniões e a escrita de Saint-Exupéry foram influenciadas muito mais pela sua própria experiência do que pelas teorias sociais e religio-sas que fascinaram muitos dos seus colegas ao longo das suas vidas. Da estadia em Le Mans, reteve apenas algumas lições, como o valor de uma amizade leal e a capacidade de enfrentar o sofrimento sem

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ter agraciado a cabeça do meu ilustre proprietário, Bam-Bum II,

rei do Níger.

Antoine de Saint-Exupéry, aos 13 anos

O manuscrito original desmentia o testemunho de colegas de Saint--Exupéry, que o descreviam como um aluno pouco cuidadoso, cujas cópias estavam sempre cheias de nódoas. Talvez isto fosse verdade quando o assunto não lhe interessava, mas a «Odisseia de Um Chapéu», que lhe valeu um prémio especial no fim do ano letivo, foi redigida com uma segurança e uma maturidade bem patentes na escrita clara e quase adulta.

Infelizmente, o outro texto modelar usado pelo abade Launay, que relata o enterro de uma formiga, perdeu-se, embora o enredo tenha ficado gravado na memória de vários alunos. Supostamente, o cortejo fúnebre fora testemunhado pelo escritor Jean de la Fontaine, que o con-tava a um amigo. O ponto alto da redação de Antoine refletia o seu inte-resse pela mecânica. O cortejo era interrompido por um fio de água, e ele descrevia o modo como as formigas construíam uma ponte de ervinhas com a ajuda das mandíbulas.

Seria porventura agradável imaginar Antoine a regressar a Le Mans depois de ter obtido o seu primeiro prémio com Voo Noturno, em 1931, a fim de agradecer ao antigo professor pela sua perspicácia e encoraja-mento, mas ele guardava recordações demasiado amargas do colégio, e tudo indica que não voltou lá depois de o ter deixado em 1915. Auguste Launay não viveu o suficiente para ver a sua intuição confirmada, quando os livros de Saint-Exupéry, principalmente Voo Noturno e Terra dos Homens, se tornaram referências nacionais e modelos pedagógicos em todas as escolas primárias e secundárias de França.

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O ABADE LAUNAY ATRIBUIU 12 valores, numa escala de 0 a 20, a Saint--Exupéry pela sua história do chapéu. Tirara-lhe um ponto pelos erros ortográficos, mas não houve nenhum comentário sobre a descrição

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severa e racista de um dos proprietários do chapéu, um comerciante de roupa em segunda mão, o horrível judeu de rosto hipócrita e amargo. Não se pode atribuir a esta frase somente um simples erro de julgamento feito por um jovem com quase 14 anos que, se calhar, nunca tinha visto um judeu. A imagem refletia as ideias do meio em que ele vivia, onde a maioria dos membros da família se sentia incomodada com a comuni-dade judaica, a que chamavam israelitas.

A ligação de Saint-Exupéry em jovem aos valores monárquicos e antissemitas da Ação Francesa, partilhada pelos seus colegas de escola, pusera-o em contacto com as caricaturas maldosas e caluniosas que, mais tarde, seriam utilizadas pelo regime de Vichy como um pretexto para a perseguição movida contra esta minoria étnica. Durante as férias de verão que precederam a redação da sua «Odisseia», Antoine tinha confessado a Simone que simpatizava com o movimento monár-quico antissemita e que iria fundar uma sociedade monárquica secreta, presidida por ele, para distribuir propaganda. No trimestre seguinte, os seus colegas de turma editaram um jornal intitulado O Eco do Terceiro, em que o humor obscurecia a pouca ambição política. Passado de mão em mão, provocou uma hilaridade tal que atraiu a atenção de um dos padres, que o confiscou e destruiu. É, pois, impossível saber se O Eco do Terceiro apoiava ou não a Ação Francesa.

A passagem antissemita da sua redação de infância é menos inte-ressante enquanto testemunho de um juízo imprudente da juventude do que os exemplos marcantes do seu distanciamento em relação à influência perniciosa recebida em Le Mans. Ninguém pode acusar Saint--Exupéry de ter sido antissemita na idade adulta. A sua tolerância ia bem mais longe do que uma mera relação de confiança com os judeus, e em Cidadela escreve uma enérgica parábola em defesa das minorias perse-guidas, numa época em que Vichy tinha instaurado a caça aos judeus.

As opiniões e a escrita de Saint-Exupéry foram influenciadas muito mais pela sua própria experiência do que pelas teorias sociais e religio-sas que fascinaram muitos dos seus colegas ao longo das suas vidas. Da estadia em Le Mans, reteve apenas algumas lições, como o valor de uma amizade leal e a capacidade de enfrentar o sofrimento sem

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qualquer queixume. Por outro lado, a imagem rígida de Deus e dos dog-mas católicos foram progressivamente modificados ou mesmo rejei- tados no contacto com as realidades da vida. A intolerância, fosse ela religiosa, social ou racial, desapareceu na idade adulta, quando se convenceu de que a Humanidade tinha uma causa comum que trans-cendia as divisões e as verdades absolutas que os padres de Le Mans persistiam em manter vivas.

***

AO MESMO TEMPO QUE anunciava a criação da sua sociedade secreta em 1912, Antoine confiou também aos irmãos, no seu regresso a Saint--Maurice-de-Rémens para as férias de verão, que um dia poderia tornar--se padre. Mas nenhuma destas duas confidências ofuscou o sucesso provocado pelo seu novo amigo, um rato branco.

Segundo Paul Gaultier, seu colega de turma, o rato era o único sobrevivente de um casal que lhe tinha sido oferecido pela tia Anaïs de Saint-Exupéry. Como constava que os ratos tinham pertencido originalmente à duquesa de Vendôme, talvez houvessem servido de conforto às opiniões monárquicas de Antoine, que o tinham levado a juntar a frase «pelo meu Deus, pelo meu rei e pela minha dama» aos autógrafos que dava aos colegas.

O rato teve direito a uma gaiola perto das dos coelhos domesticados das crianças, e a primeira noite foi passada, na sua maior parte, a pla-near o que ele comeria no dia seguinte. De manhã, encontraram a gaiola aberta, e o rato tinha desaparecido. Nunca se soube se teria sido a tia Gabrielle que dera ordem aos criados para se livrarem dele.

Passados alguns dias, o misterioso desaparecimento do rato e a efé-mera vocação sacerdotal de Antoine foram relegados para segundo plano pelo acontecimento mais importante da sua vida desde a morte do pai. Foi através do seu batismo de ar, num campo de aviação próximo do castelo, que nasceu a paixão pelo voo, a primeira etapa de um percurso perigoso que acabaria na sua morte violenta e solitária.

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CAPÍTULO III

O céu é nosso

No início do verão de 1909, antes de Saint-Exupéry ser enviado para Le Mans, os pioneiros da aviação efetuaram os primei-ros ensaios de voo experimental na planície de Bellièvre, em

Ambérieu-en-Bugey. Cortando caminho pela aldeia de Château-Gaillard, o campo de aviação ficava a escassos 3 quilómetros do castelo de Saint--Maurice-de-Rémens. A novidade provocou uma excitação febril. Nessa época, não se falava de outra coisa por todo o lado senão na travessia da Mancha conseguida por Louis Blériot em julho de 1909, acontecimento que teve um impacto maior na imaginação dos Franceses do que o pri-meiro voo de Orville Wright nos Estados Unidos, seis anos antes.

Um dos colegas de Saint-Exupéry do 1.º ano da escola de Notre--Dame-de-Sainte-Croix, Jean-Marie Lelièvre, morava perto do aeró-dromo de Auvours au Mans e tivera a oportunidade de aí ver Wilbur Wright e outros pioneiros da aeronáutica fazerem demonstrações de voo que tinham atraído milhares de espectadores. Apesar de Antoine só ter visitado este aeródromo muito mais tarde, os relatos do seu colega haviam contribuído para lhe inculcar uma paixão profunda já antes do seu regresso a Saint-Maurice para as férias da Páscoa de 1910.

Antoine não era exceção como jovem fanático da aviação. Se o iní-cio do século produzira poucos heróis desportivos, esta deficiência seria plenamente colmatada pelo número de aviadores e corredores de auto-móveis. A mais pequena façanha aeronáutica era primeira página nos

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A biografia definitiva e apaixonante do autor de , o livro que inspira gerações

ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRYVida e Morte do Principezinho

BIOGRAFIA

PAUL WEBSTER

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ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRYV

ida e Mo

rte do Principezinho

A«Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.»

Antoine de Saint-Exupéry, in O Principezinho

Em julho de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, um avião de reconhecimento da Força Aérea Francesa desapareceu no Mar Mediterrâneo. O corpo do piloto nunca foi encontrado. A aeronave era um dos aparelhos mais rápidos e modernos da aviação aliada, um P-38 Lightning americano. Aos comandos ia Antoine de Saint-Exupéry. A sua morte, aos 44 anos, ficou assim envolta para sempre em mistério e romantismo.

Todo o percurso de Saint-Exupéry é recheado de aventuras e episódios fascinantes, até porque a sua vida abrange os mais controversos anos da história francesa. E se por um lado era um aristocrata, com o título de Conde, que repre-sentava toda uma classe em extinção, por outro lado foi um corajoso pioneiro da aviação e um aclamado romancista, que privou com as personalidades mais importantes do século XX.

Baseada numa investigação meticulosa, esta biografia relata todos esses detalhes. Com uma escrita empolgante, revela também novas informações que irão fascinar quer os leitores mais aventureiros quer os mais apaixonados. E surpreender os fãs de O Principezinho!

Poucas personalidades do século XX inspiraram tanto a investigação por parte de historiadores e biógrafos. Esta biografia traz de volta à vida um

herói, um homem apaixonado que combinou a carreira perigosa de aviador com a de autor de clássicos como O Principezinho.

A biografia que revela os acontecimentos que deram origem às personagens e histórias de O Principezinho

«Esta é uma biografia que possui todas as qualidades: uma investigação meticulosa, bem escrita e repleta

de revelações psicológicas perspicazes. O livro é tão bom que nos deixa a ansiar por mais.»

Sunday Telegraph

«Paul Webster escreveu uma biografia fascinante, ao incluir uma nova investigação sobre a vida e uma análise cuidada sobre os extraordinários livros que

com ela se enredaram.»Literary Review

«A biografia de Webster está escrita de forma encantadora e revela uma investigação impressionante.»

International Herald Tribune

«Esta biografia está recheada de revelações.»Le Figaro

«Uma biografia enérgica, simpática e vigorosa.»Scotsman

«Webster percorre habilmente toda a carreira de Saint-Exupéry, mas mantendo sempre

os seus próprios pés bem assentes na terra.»Financial Times

PAUL WEBSTER (1937–2004), jornalista conceituado, foi, durante mais de 30 anos, o correspondente do jornal The Guardian em Paris.

Embora fosse um jornalista talentoso e altamente reconhecido, ele era muito mais do que isso. Por detrás de uma grande modéstia, a sua capacidade de desbravar novos caminhos, na última década da sua vida, fez dele um autor de grande reputação, por trazer a lume uma nova e importante visão sobre os conturbados tempos da guerra em França, país que o acolheu desde 1974.

Autor de várias biografias de personalidades de renome — como é o caso de Mitterrand, L'autre histoire —, foi a biografia do autor de O Principezinho que lhe valeu a projeção internacional ao ser traduzida e publicada em diversas línguas.

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e vos

O Principezinho

www.vogais.pt

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Biografias/Memórias

ISBN 978-989-668-258-3

9 789896 682583

21 mm