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Antologia de Contos Catarinenses

Antologia de Contos Catarinenses

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Antologia de Contos Catarinenses.

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Page 1: Antologia de Contos Catarinenses

Antologia de Contos

Catarinenses

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Antologia de Contos produzidos pelos alunos da Disciplina Optativa Literatura em Santa

Catarina.

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Bruna Heloísa da Silva

Sentada, observando o movimento lá fora, ela olhava pela janela do ônibus. Achou que

tinha visto alguém conhecido. Aquele a quem amava. Desceu correndo. Enganou-se. Tomou o

próximo ônibus e ficou com suas próprias memórias, sensações e desejos. Tudo lhe lembrava

outros tempos. Trabalhou com o pensamento longe. Sensações e sabores lhe acompanharam

durante aquele dia. Era um dia especial. Saiu correndo do trabalho. Queria tomar um banho e

esquecer-se de si mesma. Tomou mais alguns ônibus. Observou o vai e vem das pessoas. Seus

rostos sisudos, seus ombros caídos. A vida passava, e eles permaneciam infelizes. Pensou se

não era parte deste mundo de insatisfação e cansaço. Lembrou novamente do que era a sua

felicidade. Achou que tinha visto alguém conhecido. Desceu depressa do ônibus e não

acreditou no que viu.

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A Hora Derradeira

Erika da S. Costa Agnellino

Depois de dez meses lutando contra uma doença em sua bexiga, D. Maria encontrava-

se no seu leito de morte, parcialmente inconsciente. Uma pessoa tão lúcida e aos oitenta e

quatro anos começava a se despedir de sua família, que mesmo com o anunciado dos médicos

aguardavam um milagre. E foi mais ou menos nessa ordem que chegaram para a despedida,

primeiro foram os filhos, uma filha e um filho, depois vieram os netos, quatro netas e um neto

e então seus bisnetos, cinco meninos e uma menina. Tiveram para vê-la no leito daquele

hospital pessoas que gostavam muito daquela senhora, que sempre levou uma vida com alto

astral e de bem com a vida, suas ex-noras, sua nora, seu genro também estiveram lá para as

últimas palavras.

Os médicos anunciaram que tudo era questão de horas, a qualquer momento D. Maria

poderia fazer a passagem, e agora? Quem, naquele momento, estaria ao lado dela? Filhos,

netas, noras se revezavam nos cuidados com a doce senhora, era grande o receio de que essa

hora fatídica não caísse na sua vez. Ver alguém partir não é desejo de ninguém, e com o perdão

da palavra, o povo está acostumado a ver um ser humano chegar, mas nunca partir, mesmo

que seja uma hora difícil pra quem se vai, mas é um tanto traumatizante para quem fica.

Eis que chegou a hora tão temida e D. Maria partiu na manhã de um lindo domingo

ensolarado, nem bem o sol tinha dado sua cara e sua nora a tudo assistiu, e no velório era

quem mais chorava. Só o que me faz pensar é que não era só pela senhora que se foi, mas pelo

trauma de ver alguém partir. A morte assusta mesmo quem fica ou quem assiste, porque

estamos acostumados a enfrentar a morte diariamente, mas não estamos preparados para

morrer e tão pouco ver a morte de perto. Foices ou carapuças? Nada disso, ela vem sem avisar

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e leva mesmo sem dó ou piedade, apenas prepara o bote. Foi dessa forma que levou aquela

senhora, mãe, avó, bisavó e uma mulher extraordinária. Como cobra traiçoeira que chega sem

pedir licença e prepara o derradeiro suspiro na chegada hora da partida. Dessa não adianta

fugir, pois é a hora mais certa que chega para toda a gente.

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A terceira margem da estrada

Gabriella Ligocki Pedro

Em um final de tarde de outubro, Joaquim viajava de volta para casa depois de dez dias

fora, fazendo entregas de material de construção pelo país afora. Assim como tantos outros

caminhoneiros, o cansaço e a saudade da família batiam forte. Nesse dia, ele estava ainda mais

ansioso por voltar, pois era aniversário de sua esposa e queria logo reencontrá-la e poder dar

um beijo e um abraço fortes, em uma data tão especial. Saudoso e escutando sua canção

preferida na rádio, Joaquim leva um grande susto e tem que freiar bruscamente o caminhão,

quase atropelando um ser na estrada, que pelo clima ruim do cair da noite não conseguia

identificar o que era. Parou o caminhão e viu se tratar de uma menina de uns oito anos de

idade toda queimada. Naquele instante, o caminhoneiro não sabia o que fazer se socorria a

menina ou se fugia, já que parecia ser uma criatura suspeita. Decidiu socorrer, afinal, era

apenas uma criança.

Joaquim desceu do caminhão e se dirigiu até a criança, mas surpreendentemente ela já

estava mais a frente lhe indicando um caminho. Quando chegou ao local sinalizado, o

caminhoneiro não acreditou no que viu, se ajoelhou e se debulhou em lágrimas. Um pouco

mais calmo, percebeu que a criança desaparecera e que ela só podia ter sido um anjo enviado

pelos céus, pois havia salvado a vida da pessoa que mais ama na vida. Sua esposa estava salva

de trágico acidente de carro, quando o veículo que estava dirigindo havia caído uma ribanceira.

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Quando chegou ao local, sua esposa já estava sendo socorrida pelos bombeiros e já estava sem

perigo de morte. O que Joaquim pôde compreender é que aquele ser, materializado em forma

de uma criança, havia sido enviado para salvar sua amada e levá-lo ao local do acidente para

reencontrar o mais rapidamente sua esposa, como ansiava. Essa história é verídica? Talvez tão

verídica quanto a veridicidade de uma terceira margem da estrada...

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A Bruxa do Sítio

Gilmarina Signorini Subutzki

Todos os finais de semana a história se repetia. Augusto saía para encontrar as meninas

da ilha e no outro dia, sua mãe lhe enchia de xingamentos – Não é certo ficar andando nessa

escuridão, pode lhe acontecer algum mal. Augusto não entendia como sua mãe sempre sabia

por onde ele andava e o que ele fazia, isso o incomodava, mas menos que o pássaro que lhe

seguia todas as noites, grunhindo e seguindo seus passos, parece até bruxa...

Seu Manuel lhe disse que para desmascarar a bruxa, tem que machucar e dar uma flor a

ela, enquanto está transformada, assim no outro dia, ela levará para a mãe da gente um

presente, e o machucado ainda vai estar lá, e só quando desmascarar ela na frente das pessoas,

deixa de ser bruxa.

Poucas casas cercam a rua do Sítio de Baixo no norte da ilha, a escuridão causava

arrepios, e sua companhia sombria ia grunhindo a cada ponto do caminho, Augusto deixou o

bicho chegar bem perto, e com a camisa que estava sobre seus ombros, lhe chicoteou. Uma

das assas do pássaro estranho, sangrou, no mesmo instante ele arrancou uma flor silvestre e

jogou sobre o bicho.

No outro dia, sua madrinha Alzira, veio trazer um peixe para sua mãe, e seu braço

estava com hematomas e cortes profundos, Augusto aos berros denunciou a madrinha,

chamando-a de bruxa. Seus passeios noturnos nunca mais foram revelados e passaram a ser

solitários.

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Joriane S. Desessards

Jader e Luiza caminhavam de volta para casa. Ela era de família rica e tradicional e

trabalhava como secretária em um escritório local. O marido era de família simples e

batalhadora e trabalhava em uma indústria, como supervisor. Luiza caminhava ao mesmo

tempo que reclamava da bagunça e da estrutura da casa. Jader ouvia pacientemente, mas na

verdade pensava em outras coisas, como o encontro com os amigos ou a nova mesa de sinuca

que gostaria de comprar. Luiza gesticulava freneticamente ressaltando cada detalhe e fazendo

comparações com a casa das vizinhas. Enfim, chegaram em casa. Jader tentou reparar nos

detalhes que a mulher falava, mas não lembrou-se de nenhum com certeza. Na secretária

eletrônica um recado da mãe de Luiza: viria passar as férias com eles. Há anos que a mãe de

Luiza não os visitava. A chegada foi calorosa e as expectativas eram muito boas, afinal, seria

uma companhia para Luiza na rotina da casa. Os dias foram passando e Jader começou a ficar

mais sossegado, conseguia ler seu jornal em paz e refletia constantemente sobre seus planos.

Luiza foi ficando mais calada enquanto a mãe falava de tudo e de todos, ressaltando cada

detalhe da vida da filha com o marido e da casa dos dois. Luiza ouvia pacientemente, mas na

verdade pensava em outras coisas, como o dia em que sua mãe voltaria pra casa e ela poderia,

enfim, ficar em paz para desabafar com Jader.

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Último suspiro Juliana Regina da Silva

Caiado de Castro chefiava o gabinete militar da Presidência da República. Ele chegara ao

ápice de sua vida profissional, orgulhava-se do passado de serventia à nação como general e

nos jantares promovidos aos colegas de profissão, falava de suas experiências na repressão a

Coluna Prestes e na ascensão com o governo de Getúlio Vargas.

O general organizava o salão principal do Catete para a reunião com o presidente

quando um tiro abafado ecoou nos corredores do Palácio. Caiado subiu desesperado a procura

de Vargas e o encontrou agonizante. O general ordenou a chegada de ajuda médica, mas já era

tarde. Getúlio deu seu último suspiro nos braços do chefe de gabinete e amigo.

Os anos que sucederam, a morte de Getúlio foi para Caiado um martírio. Ele perdera

todo o sucesso profissional que havia alcançado no governo Vargas. Como um general que

perde a guerra, Aguinaldo Caiado de Castro perdera o ânimo de viver e se entregou à

depressão até seu corpo sucumbir à inevitável morte. Caiado foi um personagem conhecido

apenas no governo Vargas e fora dele não suportaria viver.

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Pulsação

Karine Schmidt Seu peito doía insistentemente, uma dor que nenhum remédio conseguia curar, uma angústia.

Assim, Diego prosseguia sua vida, trabalhando, estudando, sobrevivendo. À noite a dor ficava

mais intensa, quase insuportável. Foi então, que Diego resolveu dar um fim naquele

sofrimento, passou a mão no telefone e ligou para o Brasil, mais precisamente, para a cidade

de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Uma voz feminina atendeu a ligação:

- Alô!

- Oi, preciso falar com a Dona Nair, por favor!

- Só um minuto.

- Alô!

Diego engasgou, sentiu muita vontade de chorar, mas ao mesmo tempo, veio um sentimento

de arrependimento, pois não deveria ser tão fraco, tinha que resistir àquela dor, ser forte. Mas

percebeu que não conseguiria mais aguentar mais tanto sofrimento e disse:

Page 12: Antologia de Contos Catarinenses

- Mãe, mãezinha, não aguento mais ficar longe de vocês, preciso voltar para o Brasil, estou

sofrendo muito aqui em Portugal. Pede para o pai me mandar algum dinheiro para que eu

possa voltar para casa?

A mãe simplesmente desligou o telefone. Diego entendeu o recado. Os representantes

masculinos da família Guedes nunca são “perdedores”, são advogados renomados, pessoas

nobres, fortes e jamais desistem de algo. Ele não poderia desistir. A mãe com certeza não

contou o acontecido ao pai, não quer decepcioná-lo. E Diego? Continua com dores crônicas de

uma doença chamada SAUDADE!

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O GARÇOM

Lodir

Jorge sempre fora um homem trabalhador. Nos últimos tempos, além de “bicos” como

carpinteiro, eletricista, pedreiro e outros afazeres, vinha trabalhando regularmente como

garçom. Era num bar dançante situado embaixo da Ponte Hercílio Luz, que exercia sua

atividade. Nosso protagonista vivia no Bairro da Costeira do Pirajubaé, sul da ilha, onde tinha

uma pequena casa na qual morava com a esposa e seus dois filhos. Numa das noites de

trabalho, Jorge conheceu um casal muito simpático que estava no bar consumindo petiscos e

bebendo cerveja alegremente. Ao término do trabalho, Jorge saiu em companhia do casal que

conhecera, eram quatro horas da madrugada. Andaram em direção ao Terminal Rodoviário Rita

Maria. Quando chegaram ao Clube de Regatas Aldo Luz, onde durante o dia encontram-se

atletas e à noite encontram-se usuários de drogas, bandidos de toda a espécie e casais hetero e

homosexuais para fazer “programa”, decidiram dar uma “paradinha” e sentaram-se num

daqueles bancos próximos à praia. Nosso “herói” tira do bolso um maço de notas de dinheiro e

juntamente com as notas, um pacotinho contendo certa quantidade de maconha. Guarda o

dinheiro e enrola um “baseado”. Fumam, fumam e fumam.

No dia seguinte, nos principais jornais e pasquins da capital catarinense, a manchete era:

“Garçom morto à pauladas na baía-sul”.

Page 14: Antologia de Contos Catarinenses

Alternativas em um clic

Luiza Mazera

Assustada com tantas máquinas, robôs e controles ao seu redor, a menina Clarice abria e

fechava os olhos para tentar entender em que local estava. Seu corpo e sua fala eram frágeis

diante daqueles seres robustos, extremamente inteligentes e metódicos. Em todos os lugares

essas “coisas estranhas” estavam presentes, e o que faria Clarice ali?

Logo após um suspiro fundo e com palavras trêmulas, ela ousou sussurrar:

- Quero voltar para o meu mundo, preciso da minha “gente”!

Nesse momento então, um ser de lata e com sensibilidade maior do que a humana, aproxima-

se e oferece ajuda. Entrega um controle para a menina e diz:

- Seu destino está em suas mãos, basta um clic.

Page 15: Antologia de Contos Catarinenses

A Velha

Luiza Andrade Wiggers

A velha, com um berro surdo, acordou-se. Na mesinha de cabeceira havia um abajur

tosco, um rádio azul, desses antigos e uma pilha de cd's que comprara na véspera. Estava

fatigada. Sentiu que seus olhos estavam colados por uma secreção que lembrava a textura das

ramelas, mas que não eram propriamente ramelas. Lembrou das mãos, que estavam debaixo

do cobertor, para tentar descolar os olhos e conseguir enxergar o que suas mãos indicavam,

tateando. Quando abriu os olhos e mirou-os para o chão através das fendas de seu rosto,

percebeu que vários farelos de suspiro estavam espalhados pelo chão. Esforçou-se, esforçou-

se, mas não recordava de onde tinha vindo a idéia de comer suspiros na véspera. Não importa.

Apontou o polegar pra um farelo, grudou-o no dedo, levou-o à boca e saboreou. Gosto de terra

e depois suspiros. Cansou daquela merda nojenta que era sua vida e pôs um dos CD's pra tocar.

Bossa, jazz e uma mistura descontraída de harmonia com o indizível. É bom se dissolver... meus

netos não me procuram há séculos porque aquela puta desgraçada da mãe deles os obriga a

manterem-se afastados de mim. Eu devo cheirar a cigarro de domingo, só pode ser isso. Ela, no

fundo, não se importa com as ausências e distâncias; quer é saber de fumar seu cigarro, tirar

suas ramelas imaginárias, ouvir a aleatoriedade musical de seus discos e, ainda deitada, virar

para o lado e esquecer que ainda está viva.

Page 16: Antologia de Contos Catarinenses

Faetonte desde Criancinha

Lygia Barbachan de Albuquerque Schmitz

Quando eu era pequena, vi uma estrela caindo do céu:

- Papai, papai! Veja! Uma estrela está caindo do céu e muito rápido!

- Vamos! Faça um pedido!

- Quero uma bicicleta bem grande para pedalar até o céu! E...e... (baixei os olhos, receosa) Ela

se foi, papai...

- Mas você fez o pedido! O que foi? Não era o que você queria?

- Era... mas... mas... e se eu cair igual aquela estrela?

O papai me olhou, riu e disse:

- Amanhã iremos à praia!

- Mas, papai! E se eu cair igual aquela estrela? Ela parecia pegar fogo!!!

- Vamos... hora de dormir, amanhã acordaremos cedo para irmos à praia!

- Mas, papai!

- Vamos!

Page 17: Antologia de Contos Catarinenses

Papai escovou meus dentes, colocou meu pijama, rezamos a Papai do céu e ganhei um beijo na

testa de boa noite.

Pela manhã, fomos, como prometido, à praia. Papai me levou até a beirinha do mar e disse que

eu não saísse dali. Deu alguns passos, pareceu sentir algo com os pés, mergulhou e tirou lá do

fundo uma...

- Olha, minha filha!

- O que é isso, papai?

- É uma estrela! Viu? Ela caiu no mar e nem se machucou! Papai do céu que a mandou pra cá

para não queimar a Terra e para ela não se machucar

- Noooossa! Que legal, papai! Então, eu não vou pegar fogo e nem vou me machucar??

Ele riu, me abraçou e disse:

- Não, você vai até achar que está pegando fogo, quando você começar a pedalar, pedalar e

sentir o vento no rosto, nos cabelos. É só a felicidade!... E, se você se machucar... aí o papai dá

um beijinho e sara!

Meses se passaram e ganhei a tão sonhada bicicleta do papai Noel.

Tenho certeza que pedalei até o céu...

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Leitura do conto Homens e Algas – Gama d’Eça

Manuela Quadra de Medeiros

Vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=F2w8ORtC4rk

Referências:

Othon Gama d’Eça – Homens e algas. Edição do Governo do Estado de Santa Catarina: 2. ed.

Florianópolis: 1978

Imagens de André Paiva. Disponíveis em http://www.andrepaiva.com.br

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ARRAIÁ

Maria Pérola Cardoso Figueiredo

Era mês de junho. A escola e a comunidade, ambas de diminuta proporção, se

preparavam para a tão esperada festança junina. O acontecimento do ano; a ansiedade e a

felicidade eram de todas transbordantes.

Ao raiar o sol iniciou-se o frenesi, a função nos engenhos da redondeza da escola. Os

fornos de barro começaram a fumegação. Neles foram feitos o assamento dos bolos, roscas e

batatas doces; o cheiro se sentia de longe, longe; a boca salivava gulosamente. Na escola

cozinhava-se o pinhão, preparavam-se os cartuchos, pipoca, cachorro-quente dentre outros

quitutes que seriam oferecidos aos honoráveis participantes. Bandeirinhas tremulantes,

fogueiras sendo erguida.

Professora Perolina era encarregada de preparar a principal bebida da festa, o quentão.

Conhecedora de tão importante fórmula alquímica iniciou seu ritual de preparamento. Foi

neste momento que transpassada por uma alvidez mortal, um gelado suor lhe brotava sobre a

fronte, viu que lhe faltavam os ingredientes para temperar a tão importante bebida.

Velocíssimamente Perolina montou em sua antiquíssima magrela e de pronto pôs-se a caminho

da venda do seu Bento. Estava muito brusco, a estrada arenosa cheia de curvas qual uma cobra

a se arrastar. O medo... Uma volteada de quatro quilômetros. Voltou. Avistou uma luz tal qual

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um farol a orientá-la; era a fogueira com suas labaredas crepitantes. Tudo quentinho.

Confraternização. Música. Muita alegria. E quentão.

Page 21: Antologia de Contos Catarinenses

Eles

Marina Siqueira Drey

Então se separaram; os dez anos se foram. Foram mentindo, foram brigando, foram se

odiando. Terminaram assim: Ele, trinta e seis, funcionário público, irônico. Ela, trinta e sete,

funcionária pública, sarcástica. Conheceram-se em uma festa, o casamento veio depois de dez

meses. Descobriram dez coisas em comum, dez músicas preferidas e dez cicatrizes feitas,

espontaneamente, juntas. Recebiam no dia dez. E, faltando dez dias para o final do mês,

acabava o dinheiro. Ele quis mudar... jogou na loteria, não ganhou; abriu um negócio, faliu;

comprou um carro novo, bateu; conseguiu emagrecer, ficou anêmico. Ela quis mudar...

preencheu um cupom de sorteio, ganhou; foi pegar o prêmio, perdeu o bilhete; virou sócia de

uma confecção, recebeu calote; aprendeu andar de moto, caiu; ficou coxa, engordou. Um dia

Ela acordou, arrumou a mala e viajou dez mil km pra longe dele. Ele ficou. Casou com uma

mulher mais velha, começou a correr e tocar teclado. Ontem, dia dez, quando foi pegar o filho

na esquina da dez de Novembro, encontrou com Ela, a dez metros de distância...

Page 22: Antologia de Contos Catarinenses

Mayara

http://www.youtube.com/watch?v=u-0ulHXcdLs

Page 23: Antologia de Contos Catarinenses

História escrita a mão Priscila Santos e Silva

Deu em mim de observar a minha mão. Enquanto escrevia, aqueles cinco dedos me

fizeram com que eu reparasse e escrevesse ao mesmo tempo neles e sobre eles. Minhas mãos

são pequenas e a caneta sobra para fora dela, porém, tenho uma pegada firme e prenso com

tensão a esferográfica. Mas os traços são leves e gosto de ver os 111 que rabisco pela folha que

agora recebe a autobiografia pela própria mão. As unhas roídas mostram sinais de nervosismo

por que venho passando, aquele romance vai atrasar e o editor não vai gostar nadinha disso.

Poder escrever assim agora, observando minha mão a escrever esse próprio ato. Para relaxar

pego um cigarro, o indicador e o dedo médio já amarelados pela nicotina. As pontas dos dedos

sujas pelo jornal de domingo que está ao meu lado; MADONNA ADOTA MAIS UMA CRIANÇA

AFRICANA. Reparo, seduzido, as costas de minha mão. Vejo os ossinhos em movimento rígido

para segurar a caneta, e enquanto miro viajando por ela uma mancha me para. Uma cicatriz

que ganhei quando criança, eu fugia de um cachorro; tropecei; caí. O pior é que o cachorro era

um poodle pequeninho, desses...: chatos! Lembrei da rua e dos amigos. Quero ver a palma da

mão, viro e a espalmo. Os ciganos devem ser felizes, podem ler a própria mão e saber do seu

próprio futuro. Dizem que essa é a linha da vida, essa que passa próxima ao polegar: NÃO VOU

LONGE! Mas não me importo, dou de ombros, pra mim essa vida já se foi. Agora, sou eu e

minha mão. Olho de novo as unhas; todas esfoladas e mal tratadas. Mas gosto assim! Tento

Page 24: Antologia de Contos Catarinenses

sentir seu peso, ela não é uma mão pesada, uma mão que segura enxada; ela é mão de

escritor, mão que trabalha sinergicamente com minha cabeça e por muitas vezes ganha e

escreve as histórias por si só. As suas histórias de mão.

Page 25: Antologia de Contos Catarinenses

O Causo

Rafael Reginato

Quando ele entrava todos davam um bom dia qualquer. Ele sentava na cadeira, no mesmo

lado da sala, e começava a assobiar o canto dos bem-te-vis que contava ter visto lá fora,

sempre se lembrava de lá fora. Eu sequer podia virar o pescoço para ver a rua, ela ficava às

minhas costas, e mesmo que quisesse reconhecê-la havia sempre aquela espécie de grande

persiana externa ao prédio, brânquia descarnada que envolvia todo ele e não deixava

passarinho nenhum entrar, às vezes aberta, outras fechada, permitindo somente ver uma rua

listrada, rua sim, rua não, espedaçada, obra da arquitetura moderna como alguns justificavam.

E eu pensava que arquitetura moderna é como o mundo moderno.

Depois ele se levantava, dava uma volta pela sala estendendo a mão de mesa em mesa

até tornar intermitente o ruído incessante dos teclados. Voltava para sua cadeira e recomeçava

o causo iniciado no dia anterior, às vezes repetia todo o começo, às vezes todo o causo.

Terminada a história, o gran finalle nada tinha a ver com a rua ou ali dentro, ele estrondava

uma gargalhada no eco dos armários, arquivos e pilhas de papéis. O riso incontido

seguidamente era acompanhado pelo entusiasmo de uma pancada que ele desferia contra a

tela de um computador próximo. O susto da pancada silenciava o trabalho dos teclados e então

eu percebia como o computador era útil para ele.

Às vezes, enquanto discorria seus causos, o chefe atravessava a sala, mas era como se

um teclado novo passasse a trabalhar ou como se um arquivo metálico fosse instalado diante

dele. Sentado na sua cadeira, ele seguia contando sua história sem dar-se ao trabalho de

Page 26: Antologia de Contos Catarinenses

inverter uma palavra para disfarçar o sentido da fala ou sequer inserir um advérbio maior para

alongar ao vazio a passagem do chefe. Ele não tinha chefe.

Com o tempo passei a lidar melhor com sua presença e as incursões que fazia até

minha mesa. Por garantia deixei que os processos se acumulassem numa grande pilha à minha

frente. Algumas vezes ele ainda venceu a resistência da muralha de celulose que nos separava

para, como mensageiro, me trazer um novo causo, uma foto de família ou o assobio de um

pássaro que eu nunca havia escutado, mas com o aumento do número de processos e a total

cercadura de minha mesa não foi difícil para ele perceber que aquela gaiola não abrigava

passarinhos.

Estivemos por tanto tempo acostumados à presença dele, aos seus apertos de mão,

seus causos e lembranças da rua que nem notamos, um mês após seu desaparecimento, que

sua cadeira ainda permanecia ali, no mesmo canto da sala. Só o computador que ficava

próximo daquele local tinha sido retirado para manutenção, único resquício dos anos de

causos. Contudo, nunca soube quem ele era, se aposentado ou vendedor de mel. Apenas

presumi a sua idade pela lentidão com que contava os seus causos, pela lembrança do canto

dos passarinhos e pelo estranho hábito de entrar em nossa sala como se entrasse numa

repartição.

Page 27: Antologia de Contos Catarinenses

A BONECA E O HOMEM PÁSSARO

Stèphanie Kreibich Pinheiro

Seria um romance? Velhos tempos revelam belas histórias. Este, que já levara onze anos

e o sopro de alguns dias foi surpreendente. A menina, como uma boneca. O menino, que

embora com mais idade, escondiam-se nas madeixas angelicais. No tempo das fantasias, os

sonhos eram divergentes. O platonicismo, para ela, fulgurava. Noites eram inflamadas por

gotejo de um dia poder sorrir sem medo para o ser amado. Enquanto, para ele, a admiração

era pelo universo menos peregrino e mais ousado. Noites eram inflamadas por gotejo de um

dia ser herói e conquistar a dama da vizinhança.

Tomaram rumos diferentes. Estados diferentes, cidades, bairros, círculo de amizades,

religião, estudos e trabalhos. É certo que em muitos momentos, enquanto um sorria, o outro

chorava. Enquanto um dançava até cair na pista, o outro lamentava ter que dormir cedo para o

dia seguinte. Enquanto um tomava Sol nas praias do Norte, o outro passava frio nas terras

gélidas do Sul.

Nos lábios, a cor nada discreta do batom. Nos olhos, a marca que os delineava. Na pele

morena, cheiro do campo, ondas, sincronia, amplitude, destreza e vida. Na face, o traço da

desajeitada menina que se tornara uma mulher, meio moleca (é certo), mas não menos

fascinante.

Page 28: Antologia de Contos Catarinenses

No porte, um cavalheiro. Na luz, seus olhos que ganhavam mais maturidade para onde

os conduzia. Na voz, a bravura. Nos braços, nas pernas, nas mãos, nas costas e nos ombros a

força da bela sinuosidade. Na face, o traço do menino-anjo que se tornara num homem-

pássaro.

Dias. Chuva. Sol. Vento. Muita ventania. Flores que brotaram. Noites caladas.

Calendários deixados. Experiências. Até o encontro. Naquela noite, ela o esperava. Ansiosa.

Mas, com pudores, ela não sabia o que encontraria tampouco o que sentiria. Um amigo era

certo que seria. Não estava só, a irmã e avó também o aguardavam.

Enfim, passos que vinham em sua direção. Os olhos arregalados apenas denunciavam a

alegria de vê-lo depois de tantos anos. Sem cerimônia. Conversaram sobre o passado. Coisas

em comum. Amigos em comum. Lembranças das quais nem todas compactuavam. Mas, riam.

Riam, pois recordar o passado tem certo feitiço. Foi rápido. Mas, suficiente. Um próximo

encontro foi marcado.