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Anton Tchekhov O monge negro Andrey Vasilievich Kovrin, Magister, esgotara-se a trabalhar e tinha os nervos desarranjados. Não fizera qualquer esforço para se tratar com regularidade; só uma vez, por acaso, enquanto bebia uma garrafa de vinho, conversara com um amigo médico que o aconselhara a ir para o campo durante a Primavera e o Verão. Entretanto, recebeu uma carta de Tania Pesotzky, convidando-o a passar uma temporada em casa do pai dela, em Borisovka. E resolveu partir. Mas, primeiro (estava-se em Abril), dirigiu-se às suas propriedades, em Kovrinka, onde nascera, e ali ficou três semanas sozinho; só quando veio o bom tempo é que encetou a viagem para casa do seu antigo tutor e segundo primo, Pesotzky, célebre horticultor russo. De Kovrinka a Borisovka, a distância era de umas setenta verstas e, na confortável caleche, por aquele tempo primaveril, a jornada prometia ser agradável. A casa de Borisovka era grande, tendo na frontaria uma fila de colunas adornadas com estátuas de leões, cujo gesso estava a cair aos pedaços. À porta encontrava-se um criado de libré. O parque antigo, tristonho e severo, desenhado à inglesa, com uma versta de comprido, estendia-se da casa até ao rio, e terminava ali numa margem argilosa e alcantilada, coberta de pinheiros, cujas raízes descarnadas lembravam garras aduncas. Lá em baixo cintilava o rio deserto; no céu, as narcejas voavam em círculos, soltando pios melancólicos. Numa palavra, tudo convidava o visitante a sentar-se e a escrever uma balada. Porém os jardins e os pomares que, juntamente com a horta, ocupavam uma extensão de oitenta hectares, inspiravam sentimentos totalmente diversos. Mesmo sob o mau tempo eram risonhos e inspiravam alegria. Kovrin nunca vira tão belas rosas, tantos lírios e camélias, túlipas tão raras, uma infinidade de flores de toda a espécie e dos mais variados tons, desde o branco puro ao negro da fuligem. Uma riqueza floral que constituía uma novidade para Kovrin. Estava-se apenas no início da Primavera e as maiores raridades encontravam-se ainda abrigadas por vidros. No entanto muitas floriam já nas alamedas e nos canteiros, a ponto de constituírem um reino de delicados coloridos. E tudo isto era ainda mais belo às primeiras horas da manhã, quando as gotas de orvalho cintilavam sobre as folhas e corolas. Na infância, a parte decorativa do jardim, classificada com desprezo por Pesotzky como «inútil», produzira em Kovrin uma impressão fabulosa. Que milagres da arte, que monstruosidades estudadas, que escárnios da natureza! Espaldares feitos com árvores de fruto, uma pereira em pirâmide, do feitio dum choupo, carvalhos e tílias arredondados, casas formadas por macieiras, arcos, monogramas, candelabros, até mesmo a data de 1862 feita em ameixieiras, para comemorar o ano em que Pesotzky começara a dedicar-se à jardinagem. Havia ali árvores imponentes e simétricas, de troncos erectos como os das palmeiras, mas que eram, afinal, groselhas. Porém o que mais animava o jardim, emprestando-lhe um tom festivo, era o movimento constante dos jardineiros de Pesotzky. Desde a madrugada até altas horas, junto das árvores, dos arbustos, nas alamedas, sobre os canteiros, afadigavam-se os homens, quais abelhas diligentes, com os carrinhos de mão, as enxadas e os regadores. Kovrin chegou a Borisovka às nove da noite, indo encontrar Tania e o pai num grande susto. A noite clara e cheia de estrelas fazia prever geada, e o chefe dos jardineiros, Yvan Karlich, fora à cidade, não havendo portanto ninguém em quem se pudesse confiar. À ceia só se falou na ameaça da geada e ficou decidido que Tania não iria deitar- se a fim de inspeccionar os jardins à uma hora, para ver se estava tudo em ordem, ao passo que Yegor Semionovich se levantaria às três horas, ou antes ainda. Kovrin ficou junto de Tania todo o serão e depois da meia-noite acompanhou-a ao jardim. Pairava já no ar um forte cheiro a queimado. No pomar grande, chamado o «pomar comercial», que todos os anos rendia a Yegor Semionovich milhares de rublos, adejava, junto ao chão uma espessa nuvem de fumo acre que iria envolver as folhas novas e salvar as plantas. As árvores estavam dispostas em linha recta como filas de soldados; e esta regularidade estudada, bem como a altura uniforme das casas, tornava o jardim monótono e até enfadonho. Kovrin e Tania caminhavam ao longo das alamedas, observando as fogueiras de esterco, palha e lixo; mas era raro avistarem os trabalhadores, que andavam pelo meio do fumo como sombras. Só as ameixieiras e algumas raras macieiras estavam já em flor, mas todo o jardim se encontrava envolvido pelo fumo e só quando chegaram aos alfobres é que Kovrin conseguiu respirar. 1

Anton Tchekhov - O Monge Negro

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Anton Tchekhov

Anton Tchekhov

O monge negro

Andrey Vasilievich Kovrin, Magister, esgotara-se a trabalhar e tinha os nervos desarranjados. No fizera qualquer esforo para se tratar com regularidade; s uma vez, por acaso, enquanto bebia uma garrafa de vinho, conversara com um amigo mdico que o aconselhara a ir para o campo durante a Primavera e o Vero. Entretanto, recebeu uma carta de Tania Pesotzky, convidando-o a passar uma temporada em casa do pai dela, em Borisovka. E resolveu partir.

Mas, primeiro (estava-se em Abril), dirigiu-se s suas propriedades, em Kovrinka, onde nascera, e ali ficou trs semanas sozinho; s quando veio o bom tempo que encetou a viagem para casa do seu antigo tutor e segundo primo, Pesotzky, clebre horticultor russo. De Kovrinka a Borisovka, a distncia era de umas setenta verstas e, na confortvel caleche, por aquele tempo primaveril, a jornada prometia ser agradvel.

A casa de Borisovka era grande, tendo na frontaria uma fila de colunas adornadas com esttuas de lees, cujo gesso estava a cair aos pedaos. porta encontrava-se um criado de libr. O parque antigo, tristonho e severo, desenhado inglesa, com uma versta de comprido, estendia-se da casa at ao rio, e terminava ali numa margem argilosa e alcantilada, coberta de pinheiros, cujas razes descarnadas lembravam garras aduncas. L em baixo cintilava o rio deserto; no cu, as narcejas voavam em crculos, soltando pios melanclicos. Numa palavra, tudo convidava o visitante a sentar-se e a escrever uma balada. Porm os jardins e os pomares que, juntamente com a horta, ocupavam uma extenso de oitenta hectares, inspiravam sentimentos totalmente diversos. Mesmo sob o mau tempo eram risonhos e inspiravam alegria. Kovrin nunca vira to belas rosas, tantos lrios e camlias, tlipas to raras, uma infinidade de flores de toda a espcie e dos mais variados tons, desde o branco puro ao negro da fuligem. Uma riqueza floral que constitua uma novidade para Kovrin. Estava-se apenas no incio da Primavera e as maiores raridades encontravam-se ainda abrigadas por vidros. No entanto muitas floriam j nas alamedas e nos canteiros, a ponto de constiturem um reino de delicados coloridos. E tudo isto era ainda mais belo s primeiras horas da manh, quando as gotas de orvalho cintilavam sobre as folhas e corolas.

Na infncia, a parte decorativa do jardim, classificada com desprezo por Pesotzky como intil, produzira em Kovrin uma impresso fabulosa. Que milagres da arte, que monstruosidades estudadas, que escrnios da natureza! Espaldares feitos com rvores de fruto, uma pereira em pirmide, do feitio dum choupo, carvalhos e tlias arredondados, casas formadas por macieiras, arcos, monogramas, candelabros, at mesmo a data de 1862 feita em ameixieiras, para comemorar o ano em que Pesotzky comeara a dedicar-se jardinagem. Havia ali rvores imponentes e simtricas, de troncos erectos como os das palmeiras, mas que eram, afinal, groselhas. Porm o que mais animava o jardim, emprestando-lhe um tom festivo, era o movimento constante dos jardineiros de Pesotzky. Desde a madrugada at altas horas, junto das rvores, dos arbustos, nas alamedas, sobre os canteiros, afadigavam-se os homens, quais abelhas diligentes, com os carrinhos de mo, as enxadas e os regadores.

Kovrin chegou a Borisovka s nove da noite, indo encontrar Tania e o pai num grande susto. A noite clara e cheia de estrelas fazia prever geada, e o chefe dos jardineiros, Yvan Karlich, fora cidade, no havendo portanto ningum em quem se pudesse confiar. ceia s se falou na ameaa da geada e ficou decidido que Tania no iria deitar-se a fim de inspeccionar os jardins uma hora, para ver se estava tudo em ordem, ao passo que Yegor Semionovich se levantaria s trs horas, ou antes ainda.

Kovrin ficou junto de Tania todo o sero e depois da meia-noite acompanhou-a ao jardim. Pairava j no ar um forte cheiro a queimado. No pomar grande, chamado o pomar comercial, que todos os anos rendia a Yegor Semionovich milhares de rublos, adejava, junto ao cho uma espessa nuvem de fumo acre que iria envolver as folhas novas e salvar as plantas. As rvores estavam dispostas em linha recta como filas de soldados; e esta regularidade estudada, bem como a altura uniforme das casas, tornava o jardim montono e at enfadonho. Kovrin e Tania caminhavam ao longo das alamedas, observando as fogueiras de esterco, palha e lixo; mas era raro avistarem os trabalhadores, que andavam pelo meio do fumo como sombras. S as ameixieiras e algumas raras macieiras estavam j em flor, mas todo o jardim se encontrava envolvido pelo fumo e s quando chegaram aos alfobres que Kovrin conseguiu respirar.

- Lembro-me de que, em pequeno, o fumo fazia-me espirrar - declarou ele, encolhendo os ombros. - Mas at hoje ainda no consegui descobrir como que ele salva as plantas da geada.

- O fumo um bom substituto quando no h nuvens - respondeu Tania.

- Mas para que querem vocs as nuvens?

- Com o tempo enevoado no h geada pela manh.

- Ah, sim? - exclamou Kovrin.

Riu-se e pegou na mo de Tania. A cara da rapariga, muito sria e apreensiva; as suas sobrancelhas negras e espessas; a gola direita do casaco que a impedia de mover livremente o pescoo; a saia arregaada por causa do gelo; toda a sua figura esbelta e aprumada lhe agradava.

Santo Deus! Como ela cresceu! - disse consigo.

E declarou em voz alta:

- A ltima vez que aqui estive eras ainda uma criana. Magra, de pernas compridas, descuidada, de saias curtas, e eu costumava arreliar-te. Que mudana nestes cinco anos!

- Sim, cinco anos! - suspirou Tania. - Muitas coisas mudaram desde ento. Diz-me sinceramente, Andrey - pediu ela, fitando-o, prazenteira -, achas que perdeste o -vontade connosco? Mas para que pergunto eu isto? s um homem, tens uma vida cheia de interesses, possuis... natural que te sintas estranho. Mas, seja ou no assim, Andriusha, quero que nos consideres como tua famlia. Temos esse direito.

- Mas assim que vos considero, Tania!

- Palavra de honra?

- Palavra de honra!

- Admiras-te de termos c tantos retratos teus. Mas bem sabes como o meu pai te adora, como te quer. s um sbio e no um homem vulgar; tens feito uma carreira brilhante e est firmemente convencido de que isso se deve ao facto de haveres sido educado por ele. C por mim no lhe tiro as iluses. Deixemo-lo acreditar!

Era j madrugada. O cu clareava. A folhagem e as nuvens de fumo comeavam a ver-se mais distintamente. O rouxinol cantava e, nos campos, ouvia-se o grito dos esquilos.

- So horas de irmos para a cama; e est a ficar frio! - exclamou Tania. Pegou na mo de Kovrin: - Obrigada por teres vindo, Andriusha. Ns temos uma praga de amigos enfadonhos e, mesmo esses, no so muitos. Aqui reina a jardinagem, jardinagem e nada mais. Troncos, madeiras - ria ao dizer isto -, pros, mas reinetas, florescimento, poda, limpeza. enxertos... Toda a nossa vida gira em volta dos pomares, no sonhamos com outra coisa que no sejam mas e pras. Claro que tudo isto muito bom e muito til, mas s vezes no posso impedir-me de suspirar por uma mudana. Lembro-me de quando vinhas visitar-nos ou passar aqui as frias; toda a casa se me afigurava mais alegre e animada, como se algum houvesse retirado as coberturas moblia. Era ento uma rapariguita, mas j compreendia...

Tania falou durante algum tempo animadamente. Nesta altura veio ideia de Kovrin que, durante o Vero, podia suceder-lhe ficar preso a esta criaturinha frgil, mida e faladora, que podia deixar-se atrair, apaixonar-se... naquelas condies que havia de mais natural? Esse pensamento agradou-lhe, divertiu-o e, enquanto se curvava para o rostozinho amvel e perturbado, cantarolou o verso de Pushkine:

Onegin, no posso esconder

Que amo Tania a valer...

Quando chegaram a casa, j Yegor Semionovich estava levantado. Kovrin no sentia vontade de dormir; ps-se a conversar com o velhote e voltou com ele para o jardim. Yegor Semionovich era alto, largo de ombros e forte. Sofria de falta de ar, mas caminhava to apressadamente, que se tornava difcil acompanh-lo. A sua expresso era sempre preocupada, irrequieta, e parecia imaginar que tudo se perderia se chegasse um segundo atrasado.

- Olha, irmo, resolve l tu este mistrio! - comeou ele, parando para tomar flego. - superfcie da terra, como vs, h geada, mas, se erguermos o termmetro uns metros na ponta de um pau, o ar est morno... Porque ser isto?

- Confesso que no sei - retorquiu Kovrin, rindo.

- No!... No podes saber tudo... O maior crebro incapaz de abranger todas as coisas. Continuas interessado pela tua filosofia?

- Sim... Estou a estudar psicologia e filosofia duma maneira geral.

- E no te aborreces?

- Pelo contrrio, no poderia viver sem isso.

- Bem, queira Deus... - comeou Yegor Semionovich alisando as enormes suas com ar pensativo. - Bem, queira Deus... Folgo muito com isso, irmo. Folgo muito...

De sbito, ps-se de ouvido escuta, fazendo uma carranca medonha, e desatou a correr pela rua fora, desaparecendo entre as rvores no meio duma nuvem de fumo.

- Quem prendeu aqui este cavalo? - clamou uma voz desesperada. - Qual de vocs, seus ladres, assassinos, se atreveu a prender este cavalo a uma macieira? Meu Deus! Meu Deus! Tudo estragado, arruinado, destrudo! O jardim est arruinado! O jardim est destrudo! Meu Deus!

Quando voltou para junto de Kovrin trazia estampada no rosto uma expresso de impotncia e indignao.

- Que diabo podemos ns fazer com esta maldita gente? - inquiria em voz lamentosa a torcer as mos. - Stepka trouxe para aqui um carro de estrume na noite passada e prendeu o cavalo a uma macieira... atou as rdeas to curtas, o idiota, que a casca ficou arrancada em trs stios. Que podemos ns fazer com homens como este? Quando falo com ele, pisca os olhos com um ar estpido. Merecia ser enforcado!

Finalmente calmo, abraou Kovrin e beijou-o na face.

- Bem! Queira Deus... Queira Deus... gaguejava. - Estou muito contente, muito contente, por teres vindo. Nem sei dizer quanto me sinto feliz! Obrigado!

Em seguida, com o mesmo ar ansioso e o mesmo passo rpido, deu a volta ao jardim todo, mostrando ao seu antigo pupilo o laranjal, as estufas, os abrigos e duas colmeias que lhe descrevia como sendo uma das maravilhas daquele sculo.

Enquanto passeavam, o sol rompeu, iluminando o jardim. O ar ficou mais quente. Ao pensar no dia longo e soalheiro que tinha na sua frente, Kovrin lembrou-se de que se estava apenas no princpio de Maio e que o esperava um Vero inteiro de dias compridos, alegres e felizes. Num repente, assaltou-o aquele mesmo sentimento de juvenil satisfao que experimentara em criana, quando brincava naquele mesmo jardim. Ento abraou e beijou ternamente o velhote. Comovidos pelas respectivas recordaes, penetraram ambos em casa e tomaram ch pelas velhas chvenas chinesas, acompanhado com leite e biscoitos saborosos. Estes pormenores cada vez faziam lembrar mais a Kovrin a sua infncia. O presente risonho e as recordaes do passado, tudo se misturava, enchendo o corao de Kovrin duma intensa felicidade.

Esperou que Tania acordasse e, depois de tomar com ela o caf da manh e de dar uma volta pelo jardim, foi para o quarto e comeou a trabalhar. Lia com ateno e tomava apontamentos, s erguendo os olhos dos livros quando lhe apetecia olhar l para fora atravs da janela aberta ou contemplar as rosas frescas que tinha numa jarra em cima da secretria, ainda molhadas de orvalho. E parecia-lhe que todas as veias do seu corpo estremeciam e pulsavam de alegria.

II

Kovrin, no entanto, continuava a viver a mesma vida nervosa e inquieta que levava na cidade. Lia, escrevia muito e estudava italiano. E, quando saa a passear, estava sempre com a ideia de voltar ao trabalho. Dormia to pouco, que todos em casa se admiravam. Se acaso passava pelo sono meia-hora durante o dia, nessa noite no conseguia pregar olho. Mas, apesar dessas noites de insnia, sentia-se satisfeito e activo.

Conversava muito, bebia vinho e fumava charutos caros. Quase todos os dias, raparigas da vizinhana vinham a Borisovka tocar piano e cantar na companhia de Tania. Por vezes aparecia tambm um rapaz amigo que tocava bem violino. Kovrin escutava, embevecido, a msica e o canto, mas ficava depois exausto, a ponto de cerrar os olhos sem querer e deixar descair a cabea sobre o ombro.

Numa dessas tardes, encontrava-se ele sentado na varanda a ler, enquanto, na sala, Tania, que era soprano, uma das amigas, com uma voz de contralto, e o jovem violinista executavam uma conhecida serenata de Braga. Kovrin prestava ateno aos versos, mas, embora fossem russos, no conseguia perceber-lhes o sentido. Por fim, poisando o livro, escutou atentamente e compreendeu. Uma rapariga, de imaginao exaltada, ouvia noite, no jardim, uns sons to harmoniosos e estranhos, to mgicos e encantadores, que para os simples mortais se tornavam incompreensveis. Ento, arrebatada por eles, voou para o cu. As plpebras de Kovrin descaram. Ergueu-se, dominado pela msica, e comeou a passear na sala, dum lado para o outro, e depois pelo corredor. Quando a melodia terminou, pegou na mo de Tania e saiu com ela para a varanda.

- Hoje, desde manh cedo - comeou ele -, no me sai da ideia uma lenda estranha. No sei onde a li, ou se a ouvi contar a algum, mas uma lenda notvel e no muito coerente. Devo mesmo dizer que a no acho assaz clara. Aqui h mil anos, um monge, de hbito negro, andava a vaguear pelo deserto, algures na Sria ou na Arbia... A algumas milhas de distncia os pescadores avistaram um monge idntico a avanar devagarinho sobre a superfcie do lago. O segundo monge era uma miragem. Pensa agora em todas as leis da ptica que a lenda, claro, no menciona, e escuta: a primeira miragem deu lugar a outra, esta a uma terceira, e assim, sucessivamente, a imagem do monge negro sempre reflectida duma camada da atmosfera para a outra. Duma vez foi vista na frica, doutra na Espanha, depois na ndia, mais tarde no Plo Norte. Finalmente ultrapassou os limites da atmosfera terrena, sem nunca encontrar condies que a fizessem desaparecer. Talvez hoje esteja visvel no planeta Marte, ou na constelao do Cruzeiro do Sul. Mas o ponto principal, o que constitu a verdadeira essncia da lenda, consiste na profecia de que, precisamente mil anos depois de o monge ter ido para o deserto, a miragem ser de novo projectada na atmosfera da Terra e apresentar-se- no mundo dos homens. Parece que o prazo dos mil anos est agora a expirar... Segundo a lenda, provvel que o monge aparea hoje ou amanh...

- Que histria estranha! - murmurou Tania, a quem a lenda no agradara.

- Mas o mais espantoso - prosseguiu Kovrin, rindo - que no consigo recordar-me de que maneira isto agora me veio ideia. T-la-ia lido? Ou ouvido contar? Ou fui eu que sonhei com o monge negro? No me lembro. Mas a histria interessa-me. Durante todo o dia no tenho pensado noutra coisa.

Soltando a mo de Tania, que voltou para junto dos convidados, saiu de casa e ps-se a passear, absorto nos seus pensamentos, em volta dos canteiros. O sol estava a pr-se. As flores, acabadas de regar, exalavam um cheiro hmido e irritante. Dentro de casa, a msica recomeara e, distncia, o violino assemelhava-se a uma voz humana. Sempre a puxar pela memria, numa tentativa de se recordar onde ouvira a lenda, Kovrin atravessou lentamente o parque e, sem saber para onde ia, dirigiu-se margem do rio.

Comeou a descer pelo atalho que serpenteava no meio das razes descarnadas, assustando as narcejas e perturbando os patos. Os ltimos raios do sol brilhavam sobre os pinheiros negros, porm a superfcie das guas estava j totalmente coberta de escurido. Kovrin atravessou o rio. Na sua frente estendia-se um prado em que ondulava centeio novo. Naquela enorme extenso no se avistava vivalma ou qualquer habitao humana. Parecia que aquele atalho conduzia directamente regio misteriosa e inexplorada onde o sol acabava de se pr: onde brilhava ainda, imvel e majestosa, a refraco dos seus raios.

Que vastido! Que paz! Que liberdade! - pensava Kovrin avanando pelo atalho. - Parece que o mundo inteiro me observa de qualquer lugar oculto, espera que eu lhe compreenda o sentido.

Um sopro de ar agitou o centeio e a brisa leve da noite afagou-lhe a cabea descoberta. Dali a um minuto, o vento soprou de novo, desta vez com mais fora. O centeio ondulou e l atrs, ouviu-se o sussurrar montono dos pinheiros. Kovrin deteve-se, surpreendido. No horizonte, lembrando um ciclone ou uma tromba de gua, ergueu-se uma coluna negra que subia da terra para o cu. Os seus contornos permaneciam indefinidos; no entanto, via-se logo que no estava imvel, antes avanava com incrvel rapidez na direco de Kovrin; e, medida que se aproximava, ia-se tornando cada vez mais pequena. Sem se aperceber disso, Kovrin deu um passo para o lado, a fim de lhe abrir caminho. Um monge de hbito negro, com os cabelos e as sobrancelhas brancas, de mos cruzadas no peito, passou na sua frente, a uns vinte metros de distncia. Os seus ps descalos no poisavam no cho. Olhou, olhou para trs, fez um aceno de cabea a Kovrin e sorriu-lhe amavelmente, mas ao mesmo tempo com uma certa astcia. O rosto do velho era magro e plido. Depois de haver passado, comeou de novo a crescer, transps o rio, foi bater sem rudo na margem de argila e nos pinheiros, e sumiu-se no meio deles, desaparecendo como o fumo.

- Ora vem? - gaguejou Kovrin. - Afinal de contas a lenda era verdica!

Sem tentar sequer explicar este estranho fenmeno, satisfeito com o facto de haver contemplado to de perto e com tanta clareza, no s a veste negra, mas ainda o rosto e os olhos do monge, Kovrin regressou a casa, agradavelmente agitado.

Os visitantes passeavam agora calmamente no jardim. Dentro da sala, a msica prosseguia. Sendo assim, s ele que divisara o Monge Negro. Experimentava um forte desejo de contar o que acabava de ver a Tania e a Yegor Semionovich. Receava, porm, que estes considerassem aquilo uma alucinao da sua parte, e decidiu calar-se. Ps-se a rir, cantou, danou a mazurca, sentindo-se muito bem disposto. Os convidados de Tania notaram-lhe no rosto uma curiosa mscara de xtase, de inspirao, e acharam-no deveras interessante.

III

No fim do jantar, depois de os visitantes se terem ido embora, Kovrin retirou-se para o quarto e deitou-se no sof. Queria pensar no monge. Mas dali a momentos entrou Tania.

- Olha, Andriusha, se quiseres podes ler os artigos do pai. So esplndidos - declarou ela. - Ele escreve muito bem.

- No haja dvida! - exclamou Yegor Semionovich com um sorriso contrafeito. - No lhe ds ouvidos, pelo amor de Deus!... Ou ento l-os, se queres dormir depressa. So um ptimo soporfero.

- C por mim acho-os magnficos - exclamou Tania, muito convencida. - L-os, Andriusha, e convence o pai a escrever mais vezes. Julgo-o capaz de produzir um tratado completo de jardinagem.

Yegor Semionovich riu-se, corou e murmurou as frases convencionais usadas pelos autores envergonhados. Por fim concedeu:

- Se ests realmente disposto a l-los, comea por estes do Gauch e pelos artigos russos - gaguejou, segurando nos jornais com as mos trmulas. - De contrrio, no percebers nada. Antes de leres as minhas respostas, tens de saber a quem as dirijo. Mas isto no te deve interessar... Que estupidez! So horas de ir para a cama.

Tania saiu. Yegor Semionovich sentou-se na ponta do sof e soltou um fundo suspiro.

- Ah, meu irmo!... - comeou depois de um prolongado silncio. - Como vs, meu caro Magister, escrevo artigos, tomo parte em exposies, s vezes ganho medalhas... O Pesotzky, diz-se por a, produz mas do tamanho de cabeas... O Pesotzky faz uma fortuna com os pomares... Numa palavra: o Kochubey rico e glorioso. Mas qual ser o fim de tudo isto, pergunto eu! Os meu jardins, disso no pode haver dvida, so maravilhosos, modelares... No so propriamente jardins, mas antes uma instituio de grande importncia poltica, um passo em frente na nova era da agricultura e da indstria na Rssia... Mas qual o seu fim? Qual o seu objectivo?

- A resposta fcil.

- No falo nesse sentido. O que eu queria saber o que acontecer a tudo isto depois da minha morte? Tal como as coisas esto, nada disto pode manter-se sem mim, nem sequer durante um ms. O segredo no reside no facto de o jardim ser grande, no nmero de trabalhadores, mas antes no amor que eu lhe dedico, compreendes? Amo isto, talvez mais do que a mim prprio. V bem! Trabalho de manh at noite. Fao tudo com as minhas prprias mos. Os enxertos, as podas, as plantaes, eu que fao tudo. Quando algum me ajuda, sinto cimes e acabo por me irritar a ponto de ser grosseiro. O segredo de tudo est no amor, nos olhos atentos do dono, nas mos do dono, na sensao que experimento, quando vou dar um passeio ou visito algum durante meia-hora, de que deixei o corao para trs e no estou em mim... Receio constantemente que alguma coisa tenha acontecido aos pomares. Imagina agora que eu morro amanh: quem tomar conta de tudo isto? Quem far o trabalho? O chefe dos jardineiros? Os trabalhadores? Ora a minha maior preocupao, actualmente, no a lebre, nem o escaravelho, nem a geada. So as mos estranhas.

- E a Tania? - inquiriu, rindo, Kovrin. - Ser ela mais perigosa do que uma lebre? A Tania ama e compreende o seu trabalho.

- Sim. A Tania ama-o e compreende. Se, depois da minha morte, ela ficasse com isto, nada mais eu poderia desejar. Mas suponha-mos... Deus nos defenda!... que ela se casa? - Yegor Semionovich falava em voz baixa e fitava Kovrin com olhares assustados. - A que est o buslis! Pode casar-se, ter filhos e ento no lhe restar tempo para cuidar do jardim. Isto s por si j seria mau. Mas o meu maior receio que venha a casar-se com um perdulrio, esganado por dinheiro, que arrende o jardim a mercenrios, e l se vai tudo por gua abaixo logo no primeiro ano! Num negcio desta espcie, uma mulher uma praga!

Yegor Semionovich suspirou e ficou calado uns momentos.

- Podes chamar a isto egosmo. Mas eu no desejaria que a Tania se casasse. Tenho receio! Tu j viste esse peralvilho que a vem com o violino fazer uma barulheira medonha. Bem sei que a Tania nunca consentiria em casar com ele. Mas no posso enxergar o sujeito... Enfim, meu amigo. Sou um velho casmurro... sei isso muito bem!

Yegor Semionovich ergueu-se e ps-se a passear muito excitado dum lado para o outro. Via-se claramente que tinha algo de muito importante para dizer, mas no conseguia resolver-se.

- Estimo-te de mais para no te falar com toda a franqueza - declarou por fim, enterrando as mos nos bolsos. - Em todas as questes delicadas s digo o que penso e odeio as mistificaes. Confesso, portanto, com toda a sinceridade, que s tu o nico homem que no me importaria de ver casado com a Tania. s esperto, tens bom corao e no serias capaz de arruinar o meu trabalho. Mais ainda, amo-te como a um filho... tenho orgulho em ti. Por isso, se tu e a Tania acabarem por... arranjar uma espcie de romance... eu sentir-me-ei muito satisfeito, muito feliz. Digo-te isto cara a cara, sem vergonha, como prprio de todo o ser honesto.

Kovrin sorriu. Yegor Semionovich abriu a porta e ia a sair, mas parou ainda na soleira, para acrescentar:

- Se tu e a Tania tivessem um filho, eu poderia fazer dele um horticultor. Mas isto uma pura fantasia. Boas noites!

Uma vez s, Kovrin instalou-se confortavelmente e pegou nos artigos do velhote. O primeiro intitulava-se: Cultura intermediria, o segundo, Algumas palavras em resposta s observaes do senhor Z. acerca do tratamento do solo num jardim recente, o terceiro Ainda acerca dos enxertos. Os restantes eram do mesmo teor. Mas tudo aquilo respirava inquietao e irritabilidade doentia. At mesmo um escrito com o pacfico ttulo de Macieiras russas exalava mau gnio. Yegor Semionovich comeava com estas palavras: Audi alteram partem e terminava: Sapienti sat; no meio destas eruditas citaes, irrompia uma torrente de palavras azedas dirigidas contra a sbia ignorncia dos nossos horticultores encartados que observam a natureza do alto das suas ctedras acadmicas e contra M. Gauch cuja fama se baseia na admirao dos profanos e dos dilettanti. Deparou-se-lhe finalmente uma tirada despropositada e pouco sincera em que o autor lamentava o facto de j no ser legal usar-se o chicote para com os camponeses que so apanhados a roubar fruta e a maltratar as rvores.

O trabalho dele til, salutar e empolgante - pensou Kovrin -, no entanto, nestes panfletos nada encontramos seno mau gnio e guerra aberta. Calculo que o mesmo se passa em toda a parte; os especialistas, seja qual for o seu campo, mostram-se nervosos e so vtimas desta mesma sensibilidade exacerbada. Provavelmente no pode ser doutra maneira.

Pensou em Tania, to encantada com os artigos do pai e depois em Yegor Semionovich. Tania, pequenina, plida e frgil, com as clavculas salientes, os olhos negros e espertos, sempre muito abertos, que pareciam estar procura de qualquer coisa. E em Yegor Semionovich com os seus passinhos apressados. Voltou a recordar-se de Tania, do prazer que mostrava em conversar e discutir, acompanhando as frases mais insignificantes com mmica e gestos. Nervosa. Tambm ela devia ser nervosa no mais alto grau.

Kovrin tentou ler de novo, mas no percebia nada do que vinha nos livros e desistiu. A agradvel emoo com que danara a mazurca e escutara a msica continuava a empolg-lo, fazia surgir-lhe uma montanha de pensamentos. Passou-lhe pela cabea que, se aquele estranho e misterioso monge s tinha sido visto por ele, porque devia estar doente, a ponto de sofrer de alucinaes. Esta ideia assustou-o, mas em breve a ps de parte.

Sentou-se no sof, com a cabea entre as mos, tentando dominar a alegria que se apoderara de todo o seu ser; passeou depois para c e para l durante um minuto e voltou ao trabalho. Porm os pensamentos que lia nos livros j o no conseguiam satisfazer. Aspirava a qualquer coisa de mais vasto, de infinito, de avassalador. Pela madrugada despiu-se e meteu-se na cama, contrafeito. Reconhecia que era melhor descansar. Quando, finalmente, ouviu Yegor Semionovich que se dirigia para o trabalho no jardim, tocou a campainha e mandou ao criado que lhe trouxesse vinho. Bebeu uns poucos de copos, at comear a sentir a conscincia entorpecida e adormeceu.

IV

Yegor Semionovich e Tania questionavam amiudadas vezes e diziam um ao outro coisas muito desagradveis. Nessa manh estavam ambos irritados e Tania desatara a chorar e fora para o quarto, no voltando a aparecer nem para o jantar, nem para o ch. A princpio, Yegor Semionovich comeou a andar dum lado para o outro, solene e empertigado, como se quisesse dar a entender que, para ele, a ordem e a justia constituam o supremo interesse da vida. Mas no conseguiu manter por muito tempo esta atitude. Faltou-lhe a coragem e desatou a passear pelo parque, suspirando:

- Ah, meu Deus!

Ao jantar no comeu nada e por fim, torturado pela conscincia, foi bater de mansinho porta da rapariga, murmurando timidamente:

- Tania! Tania!

Do outro lado respondeu-lhe uma voz fraca, chorosa, mas decidida:

- Deixe-me em paz! Suplico-lhe!

A tristeza do pai e da filha reflectiam-se em toda a casa e at nos trabalhadores do jardim. Kovrin, como de costume, achava-se mergulhado no seu interessante trabalho, mas at ele acabou por se sentir cansado e mal disposto. Resolveu interferir e dissipar aquela nuvem, antes da noite. Foi bater porta de Tania, e esta mandou-o entrar.

- Vamos! Vamos! Que vergonha! - comeou ele num tom brincalho. Depois, olhando, surpreendido, aquele rosto lacrimejante e aflito, coberto de rosetas vermelhas, disse: - Ento isso a srio? Ora, ora!

- Se soubesses a que ponto ele me torturou! - exclamou ela, enquanto uma onda de lgrimas lhe rebentava dos olhos. - Atormentou-me! - prosseguiu a torcer as mos. - E eu no tinha dito nada... S alvitrei que no era necessrio mantermos uma chusma de trabalhadores efectivos... uma vez que nos podamos arranjar com jornaleiros... Bem sabes que os homens no tm feito nada durante toda esta semana... Eu... eu s disse isto e ele ps-se a berrar comigo e disse-me uma data de coisas... muito ofensivas... insultuosas. E tudo sem razo nenhuma.

- No faas caso! - declarou Kovrin, afagando-lhe os cabelos. - Tu j barafustaste e tiveste o teu desabafo; agora pronto! No deves prolongar isto indefinidamente... no est certo... tanto mais que ele gosta de ti a valer, sabes isso muito bem.

- O pai estragou-me a vida - soluava Tania. - Nunca ouvi outra coisa seno insultos e afrontas. Considera-me a mais na sua prpria casa! Deix-lo. Fao-lhe a vontade! Vou estudar e arranjar emprego como telegrafista!... Ele ver.

- Ora, ora! Acaba l com isso, Tania. S te faz mal!... Sois ambos muito exaltados, impulsivos, e nenhum tem razo. Vamos, eu que vou fazer as pazes!

Kovrin falava num tom suave e persuasivo, mas Tania continuava a chorar e sacudia os ombros, a torcer as mos como se na verdade estivesse esmagada por uma verdadeira desgraa. Kovrin sentia-se ainda mais apoquentado por verificar a insignificncia do motivo deste desgosto. Um simples nada bastava para tornar infeliz durante um dia inteiro aquela criaturinha, ou, segundo ela afirmava, durante toda a vida! E, enquanto tentava consolar Tania, ocorreu-lhe que, a no ser ela e o pai, mais ningum no mundo o estimava assim como se fizesse parte da famlia. Se no fossem eles, ter-se-ia sentido rfo em pequeno, passaria a vida inteira sem gozar uma carcia sincera e sem experimentar aquele amor simples e irreflectido que apenas dedicamos aos entes do nosso sangue. E sentia que os seus nervos, esgotados e tensos como cordas de viola, correspondiam aos desta rapariguinha chorosa e trmula. Considerava tambm que nunca seria capaz de amar uma mulher saudvel, de faces rubicundas; sentia-se, porm, atrado pela pequena Tania, plida, fraca e infeliz.

Dava-lhe prazer contemplar os seus ombros e os seus cabelos. Apertou-lhe a mo e limpou-lhe as lgrimas... Ela por fim deixou de chorar. Mas continuava ainda a queixar-se do pai, da vida insuportvel que levava em casa, suplicando a Kovrin que compreendesse bem a sua situao. Depois, pouco a pouco, comeou a sorrir e a suspirar, afirmando que Deus a castigara com um gnio impossvel; por fim, ria alto, chamando tola a si prpria, e acabou por sair a correr do quarto.

Passados uns momentos Kovrin dirigiu-se ao jardim. Como se nada se tivesse passado, Yegor Semionovich e Tania passeavam na alameda, ao lado um do outro, comendo po de centeio com sal. Ambos estavam cheios de fome.

V

Satisfeito com o seu papel de medianeiro, Kovrin foi para o parque. Quando estava sentado num banco, ouviu o rudo duma carruagem e um riso de mulher. Mais visitas, sem dvida! As sombras comearam a envolver o jardim. O som de um violino, a voz da mulher, tudo ali chegava to atenuado pela distncia, que mal se ouvia. Recordou-se ento do Monge Negro. Em que regies, em que planetas, pairaria agora aquela absurda iluso de ptica?

Mal lhe viera mente a ideia da lenda, evocando a escura apario no campo de centeio, logo viu surgir detrs das rvores, caminhando sem rudo, um homem de estatura mediana. Trazia a cabea grisalha a descoberto, vestia de negro e vinha descalo como um mendigo. No seu rosto plido como o de um cadver avultavam vrios pontos negros. Depois de um cumprimento de cabea, o desconhecido, talvez um mendigo, dirigiu-se silenciosamente para o banco e sentou-se. Kovrin reconheceu ento o Monge Negro. Durante uns momentos olharam um para o outro, Kovrin com ar de espanto, porm o monge com amabilidade e, tal como da primeira vez, mostrando no rosto uma certa ironia.

- Mas tu s uma miragem! - disse Kovrin. - Porque ests aqui e porque vieste sentar-te neste lugar? Isso no est de acordo com a lenda.

- tudo a mesma coisa - replicou suavemente o monge, voltando-se para Kovrin. - A lenda, a miragem, eu mesmo, tudo so produtos da tua imaginao exaltada. Eu sou um fantasma.

- Isso quer dizer que no existes? - inquiriu Kovrin.

- Pensa o que quiseres - replicou o monge, com um leve sorriso. - Eu existo na tua imaginao, e como a tua imaginao faz parte da Natureza, devo tambm existir na Natureza.

- A tua fisionomia distinta e inteligente. Tenho a impresso de que, na realidade, existes h mais de mil anos - observou Kovrin. - Nunca me julguei capaz de imaginar um fenmeno assim. Porque me olhas to encantado? Simpatizas comigo?

- Sim, s um daqueles entes raros que podem, com justia, ser chamados eleitos de Deus. Tu serves a eterna verdade. Os teus pensamentos, as tuas intenes, a tua cincia espantosa, toda a tua vida traz o selo da divindade, a marca do cu. Dedicas tudo ao racional e ao belo, ou seja, ao Eterno.

- A eterna verdade, disseste tu. Poder ento a eterna verdade ser acessvel e necessria ao homem se no houver vida eterna?

- H uma vida eterna - afirmou o monge

- Tu acreditas na imortalidade do homem?

- Pois claro. A vs, homens, espera-vos um futuro belo e grandioso. E, quanto mais homens como tu houver no mundo, mais perto se est de alcanar esse futuro. Sem vs, ministros dos altos princpios, que viveis conscientes e livres, a humanidade nada seria. Deixando-a desenvolver pela ordem natural das coisas, ela teria de esperar o fim da histria da terra. Mas vs conseguistes adiant-la no caminho do reino da eterna verdade alguns milhares de anos. E este o grande servio que lhe prestais. Vs personificais a bno que Deus derrama sobre o povo.

- E qual o objectivo da vida eterna? - inquiriu Kovrin.

- O mesmo de todas as vidas. O prazer. O verdadeiro prazer reside no conhecimento e a vida eterna oferece inmeras e inexaurveis fontes de conhecimento; foi neste sentido que se disse: Na casa de meu pai existem vrias manses...

- No calculas o prazer que sinto em ouvir-te - declarou Kovrin esfregando as mos, deliciado.

- Ainda bem.

- Sei, no entanto, que, mal te fores embora, ficarei atormentado por dvidas acerca da tua realidade. Tu s um fantasma, uma alucinao. Mas significar isso que estou fisicamente doente, que no me encontro no meu estado normal?

- E se assim for? No te deves preocupar com isso. Ests doente em virtude de haveres trabalhado para alm das tuas foras, porque sacrificaste a sade a uma ideia, e no vem longe o dia em que sacrificars no s a sade mas tambm a vida. Que mais poders desejar? a isso que aspiram todas as naturezas nobres e bem dotadas.

- Mas se me encontro de verdade enfermo, como posso acreditar em mim prprio?

- E quem te diz que todos aqueles homens de gnio que o mundo admira no tiveram vises? Hoje afirma-se que o gnio est muito perto da loucura. As pessoas saudveis e normais no passam de simples homens, constituem o rebanho. Receios, esgotamentos, estados de degenerescncia, tudo isso s pode preocupar aqueles cujos objectivos na vida se resumem ao presente. Esses que formam o rebanho.

- Os romanos consideravam como seu ideal: mens sana in corpore sano.

- Nem tudo o que afirmavam os gregos e os romanos verdade. A exaltao, as aspiraes, os estados de excitamento, o xtase, todas estas coisas que so o apangio dos poetas, dos profetas, dos mrtires de ideias fora do comum, so incompatveis com a vida animal, quero dizer, com a sade fsica. Repito: se desejas ser saudvel e normal, segue o rebanho.

- Como estranho que estejas a repetir aquilo mesmo que tenho pensado muitas vezes! - exclamou Kovrin. - D a impresso de teres lido os meus mais secretos pensamentos. Mas no falemos de mim. O que entendes tu por estas palavras: verdade eterna?

O monge no respondeu. Kovrin olhou para ele mas no conseguiu distinguir-lhe a cara. As feies haviam-se-lhe desvanecido, a cabea e os braos tinham desaparecido. O corpo dissolvera-se no banco e no crepsculo, sumindo-se por completo.

- L se foi a alucinao! - exclamou Kovrin, rindo. - Que pena!

Voltou para casa alegre e feliz. O que ouvira ao Monge Negro lisonjeara-lhe, no s o amor-prprio, mas tambm a alma e todo o seu ser. Considerar-se um eleito, um ministro da eterna verdade, fazer parte do grupo daqueles que apressam em milhares de anos o momento em que a humanidade se tornar digna do reino de Cristo, poupar a essa mesma humanidade milhares de anos de luta, de pecado, de sofrimento, pr tudo ao servio duma ideia - juventude, fora, sade -, ser capaz de morrer pelo bem-estar colectivo, que glorioso ideal! E quando a memria lhe fez reviver o passado, uma vida pura e casta, cheia de trabalho, quando pensou no que aprendera e no que ensinara aos outros, concluiu que no havia exagero nas palavras do Monge.

L vinha Tania ao seu encontro, no parque. Trazia um vestido diferente do que lhe vira da ltima vez.

- Ests a? - gritou ela. - Andvamos tua procura h que tempos... Mas que aconteceu? - inquiriu a rapariga, surpreendida, vendo a expresso radiosa e exaltada de Kovrin, e reparando-lhe nos olhos cheios de lgrimas. - Que esquisito tu ests, Andriusha!

- Estou contente. Tania - explicou ele, poisando-lhe a mo no ombro. - Estou mais do que contente, estou feliz! Tania, querida Tania! No sabes quanto te quero! Sinto-me muito satisfeito.

Beijou-lhe com fervor as mos e prosseguiu:

- Acabo de viver os momentos mais maravilhosos, mais belos, mais estranhos da minha vida... Mas no posso contar-te tudo, de contrrio chamar-me-ias louco ou recusar-te-ias a acreditar em mim... Falemos antes de ti! Tania, amo-te desde h muito! Ver-te constantemente, encontrar-te a toda a hora, -me absolutamente necessrio. No sei como hei-de passar sem ti quando me for embora!

- Ora! - retorquiu Tania rindo. - Vais esquecer-nos dentro de dois dias! Ns somos pessoas insignificantes e tu s um grande homem!

- Vamos falar a srio - disse Kovrin. - Quero levar-te comigo, Tania. Sim? Vens comigo? Queres ser minha?

Tania exclamou:

- O qu! - e tentou rir outra vez. Mas no conseguiu e apareceram-lhe no rosto duas rosetas vermelhas. Respirava com fora e ps-se a andar muito depressa. - No sabia... Nunca pensei nisto... nunca pensei - declarava apertando as mos uma na outra, como se estivesse desesperada.

Kovrin, porm, correu atrs dela e, com a mesma expresso deslumbrada e entusiasta, continuou a falar:

- Aspiro a um amor que possa tomar conta de todo o meu ser, e este amor, Tania, s tu mo podes dar. Sou feliz! To feliz!

A rapariga sentia-se desorientada, confundida, exausta, e parecia ter envelhecido dez anos de repente. Mas Kovrin achava-a encantadora e exprimiu em voz alta o seu xtase:

- Como linda!

VI

Quando ouviu da boca de Kovrin que, alm de um romance, iria haver um casamento, Yegor Semionovich ps-se a andar pelos cantos a fim de esconder a sua agitao. Tremiam-lhe as mos, tinha o pescoo inchado e vermelho. Deu ordem para atrelarem os cavalos sua charrete de corrida e saiu. Tania, ao ver a maneira como chicoteava os cavalos e enterrava o bon at s orelhas, percebeu o que ele estava sentindo e fechou-se no quarto a chorar todo o dia.

No pomar, os pssegos e as ameixas estavam j maduros. O empacotamento e o despacho, para Moscovo, de to delicada mercadoria exigia muitos cuidados, ateno e actividade. Por causa do calor, todas as rvores tinham de ser regadas; o processo ficava dispendioso em tempo e trabalho. Comearam a aparecer muitas lagartas que Yegor Semionovich e Tania, bem como os trabalhadores, esmagavam com o dedo, com grande escndalo de Kovrin. Tornava-se necessrio satisfazer as encomendas do Outono relativas a frutos e a rvores, e por isso mantinha-se uma correspondncia muito activa. No auge do trabalho, quando parecia que ningum poderia dispor dum momento, comeou a faina dos campos, deixando o jardim desfalcado em mais de metade dos trabalhadores. Yegor Semionovich, bastante queimado pelo sol, muito irritado e cheio de preocupaes, corria dum lado para o outro, ora no jardim, ora nos campos. E gritava a toda a hora que isto dava cabo dele e que iria meter uma baia nos miolos.

Alm de tudo, havia a preocupao com o enxoval de Tania, a que os Pesotzky ligavam grande importncia. A casa inteira vibrava com o rudo das tesouras, o matraquear das mquinas de costura, o cheiro dos ferros de engomar, as exigncias da modista muito nervosa e susceptvel. E, para cmulo, todos os dias chegavam visitas que era preciso divertir, alimentar, alojar durante a noite. No entanto, os trabalhos e as preocupaes desvaneciam-se numa nvoa de alegria. Tania tinha a impresso de que o amor e a felicidade se haviam apoderado dela, como se desde os catorze anos alimentasse a certeza de que Kovrin no casaria com nenhuma outra mulher. Mantinha-se num permanente estado de espanto, de dvida, de incerteza para consigo prpria. Em determinados momentos, a sua alegria era tamanha, que se julgava capaz de subir aos cus para orar a Deus; noutros, ento, recordava-se de que, em Agosto, teria de deixar a casa da sua infncia e abandonar o pai. E assustava-a a ideia que lhe vinha, no sabia donde, de ser uma rapariguinha vulgar e insignificante, indigna dum grande homem como Kovrin. Quando a assaltavam tais pensamentos, corria a fechar-se no quarto e ali chorava com amargura durante horas. Quando, porm, estavam presentes as visitas, reparava de sbito que Kovrin era um belo homem e que todas as mulheres o amavam e a invejavam a ela. E em tais momentos o seu corao inflamava-se de orgulho, como se tivesse conquistado o mundo inteiro. Quando ele ousava sorrir para qualquer outra mulher, tremia de cimes e fugia para o quarto, novamente em lgrimas. Estes sentimentos haviam-se apossado por completo de Tania. Ajudava maquinalmente o pai, no dava ateno aos jornais, nem s lagartas, nem aos trabalhadores, nem rapidez com que passava o tempo.

Yegor Semionovich encontrava-se num estado de esprito mais ou menos semelhante. Continuava a trabalhar de manh noite, corria pelo jardim e irritava-se a todo o momento, mas sempre mergulhado nas suas mgicas divagaes. Dentro daquele corpo robusto digladiavam-se dois homens: um, o verdadeiro Yegor Semionovich, que, ao ouvir o jardineiro, Yvan Karlovich, relatar-lhe qualquer engano ou percalo, perdia a cabea e arrepelava os cabelos; o outro, o novo Yegor Semionovich, um velho obcecado, que interrompia uma conversa importante para agarrar no ombro do jardineiro, gaguejando:

- Podes dizer o que quiseres, mas quem sai aos seus no degenera. A me dele era uma senhora das mais finas e inteligentes. Dava prazer fitar aquela cara, boa, pura, franca como a de um anjo. E tambm pintava muito bem, escrevia versos, falava cinco lnguas e cantava... Coitadinha! Deus a tenha em descanso. Morreu tsica!

O novo Yegor Semionovich suspirava e, aps um momento de silncio, prosseguia:

- Quando ele era um rapazinho que se fazia homem em minha casa, tinha tambm uma cara assim, boa, franca e pura. A sua aparncia, os seus gestos e palavras eram to suaves e graciosos como os da me. E que inteligncia! No sem razo que alcanou o grau de Magister. Mas vais ver, Ivan Karlovich, vais ver o que ele ser dentro de dez anos! Vamos perd-lo de vista!

Nesta altura, porm, o verdadeiro Yegor Semionovich caa em si, voltava terra e trovejava:

- Malandros! Tudo queimado, arruinado, destrudo! O jardim est arruinado! O jardim est destrudo!

Kovrin trabalhava com o antigo entusiasmo e raramente dava pelo rebulio sua volta. O amor no fazia mais do que deitar azeite na lume. Depois de cada encontro com Tania, regressava ao quarto, encantado e feliz, e atirava-se aos livros e manuscritos com a mesma paixo com que a beijara e lhe jurara o seu amor. Aquilo que lhe dissera o Monge Negro acerca de ele ser um dos eleitos de Deus, ministro da eterna verdade e do glorioso futuro da humanidade, conferia ao trabalho de Kovrin um significado especial e desusado. Uma ou duas vezes por semana, quer no parque, quer dentro de casa, encontrava-se com o frade, e ambos conversavam durante horas; isto porm no assustava Kovrin, antes o encantava, pois adquirira j a certeza de que tais aparies s visitam os eleitos e os raros que se dedicam ao ministrio das ideias.

O dia da Assuno passou despercebido. Seguiu-se a boda realizada com grande pompa segundo o desejo expresso por Yegor Semionovich, quer dizer, com aqueles festejos sem significado algum, mas que duram dois dias. Gastaram-se trs mil rublos em comidas e bebidas; porm, no meio da msica de baixa categoria, dos brindes ruidosos, dos criados atarefados, dos clamores e da atmosfera pesada das salas, ningum apreciou os vinhos caros nem os extraordinrios hors-d'oeuvre encomendados expressamente em Moscovo.

VII

Numa das longas noites de Inverno, Kovrin encontrava-se na cama a ler um romance francs. A pobre Tania, que todas as noites sofria de dores de cabea por no estar habituada vida na cidade, adormecera havia muito e, em sonhos, ia murmurando palavras incoerentes.

O relgio bateu trs horas. Kovrin apagou a vela e deitou-se para baixo, ficando contudo muito tempo sem poder dormir em virtude do calor do aposento e do murmurar contnuo de Tania. s quatro e meia acendeu de novo a vela. O Monge Negro estava sentado numa cadeira, ao lado da cama.

- Boa-noite! - disse o monge. E, depois de um momento de silncio, inquiriu: - Em que ests agora a pensar?

- Na glria - respondeu Kovrin. - No romance francs que acabo de ler, o heri um jovem que comete toda a casta de loucuras e morre de paixo pela glria. Quanto a mim, esta paixo afigura-se-me inconcebvel.

- s demasiado inteligente. Olhas com indiferena para a fama como para um brinquedo que te no pode interessar.

- Isso verdade.

- A celebridade no te atrai. Que prazer, que alegria ou conhecimento pode um homem tirar do facto de saber que o seu nome ser gravado num monumento, do qual o tempo cedo ou tarde vir a apagar as letras? Sim, felizmente vocs so tantos, que a fraca memria humana vos no pode recordar a todos o nome.

- Claro - retorquiu Kovrin. - Mas para qu record-los... Falemos antes de outra coisa. Da felicidade, por exemplo. O que a felicidade?

Quando o relgio bateu cinco horas estava Kovrin sentado na cama, com os ps poisados no tapete e a cabea voltada para o monge; dizia:

- Nos tempos antigos houve um homem que teve tanto medo da sua felicidade que, a fim de aplacar os deuses, lhes ofereceu um anel que muito estimava. J ouviste contar isto? Tambm eu agora, tal como Polcrates, me sinto um pouco assustado com a minha prpria felicidade. De manh noite s sinto alegria, que me absorve e abafa todos os outros sentimentos. No sei o que a dor, o cansao ou a aflio. Falo a srio. Comeo a desconfiar.

- Porqu? - inquiriu o monge num tom admirado. - Consideras ento a alegria um sentimento sobrenatural. Achas que no o estado normal das coisas? No! Quanto maior o grau moral e mental que o homem atinge, mais livre se sente, maior a satisfao que ele tira da vida. Scrates, Digenes, Marco Aurlio conheciam a alegria e no a tristeza. E o apstolo disse: Alegra-te extraordinariamente. Alegra-te e s feliz!

- E se de repente os deuses se encolerizam? - inquiriu Kovrin. - C por mim, no me agradava nada que me tirassem a felicidade e me obrigassem a tremer e a morrer de fome.

Tania acordou e olhou para o marido com espanto e terror. Este falava, voltado para a cadeira, a gesticular e a rir. Brilhavam-lhe os olhos e o seu riso tinha um som estranho.

- Andriusha, com quem ests tu a falar? - inquiriu ela agarrando na mo que ele estendia para o monge. - Andriusha, quem est a?

- Quem? - respondeu Kovrin. - Mas o monge!... Est ali sentado. - E apontava para o Monge Negro.

- Ali no est ningum... ningum, Andriusha! Ests doente!

Tania abraava o marido, apertava-o contra si, como a querer defend-lo da apario, e tapava-lhe os olhos com as mos.

- Tu ests doente - soluava ela, toda a tremer. - Desculpa, querido, mas desconfio h muito de que andas um pouco nervoso... No ests bem... fisicamente, Andriusha!

A tremura dela comunicou-se a Kovrin. Olhou mais uma vez para a cadeira, agora vazia, e sentiu as pernas e os braos subitamente tomados de fraqueza. Comeou a vestir-se.

- No nada. Tania. No nada... - gaguejava ele ainda a tremer. - No estou l muito bem... J tempo de o confessar.

- H muito que andava desconfiada... e o meu pai tambm - confessou ela, tentando dominar os soluos. - Andas constantemente a falar sozinho, a sorrir dum modo to estranho... e no dormes. Oh, meu Deus, meu Deus, tem pena de ns! - exclamava com terror. - Mas no te assustes, Andriusha, no te assustes... pelo amor de Deus, no te assustes...!

Tania vestiu-se tambm... S ento, ao olhar para a mulher, Kovrin compreendeu o perigo da sua situao e atingiu o que quisera dizer o Monge Negro nas suas conversas. Convenceu-se absolutamente de que estava doido.

Sem saberem porqu, um e outro vestiram-se e saram para o vestbulo, onde encontraram Yegor Semionovich de roupo. Vinha ter com eles, pois acordara com os soluos de Tania.

- No tenhas medo, Andriusha - dizia Tania, tremendo como se estivesse com febre. - No se assuste, pai... Isto passa... isto passa.

Kovrin ficara to agitado, que mal podia falar. Mas tentava levar as coisas a rir. Voltou-se para o sogro e comeou:

- Dem-me os parabns... parece que estou a ficar maluco. - Mas apenas conseguiu mover os lbios e sorrir amargamente.

s nove horas vestiram-lhe um casaco, um sobretudo de peles, embrulharam-no num xale e levaram-no ao mdico. Comeou ento a tratar-se.

VIII

Chegara de novo o Vero. Por ordem do mdico, Kovrin fora para o campo. Recuperara a sade e no voltara a ver o Monge Negro. S dependia dele prprio adquirir as foras fsicas. Habitava em casa do sogro, bebia muito leite, trabalhava apenas duas horas por dia, no provava vinho e deixara de fumar.

Na tarde do dia 29 de Junho, vspera de Santo Elias, realizou-se l em casa uma cerimnia religiosa. Quando o padre tomou o turbulo do incenso das mos do sacristo e todo o vestbulo ficou a cheirar a igreja, Kovrin comeou a sentir-se fatigado. Saiu para o jardim. Sem reparar nas flores que o rodeavam, comeou a andar dum lado para o outro, sentou-se durante um bocado num banco, e depois dirigiu-se ao parque. Desceu a rampa at margem do rio e quedou-se a olhar interrogativamente a gua. Os enormes pinheiros com as suas razes descarnadas que um ano atrs o tinham visto to jovem, to alegre, to activo, j no murmuravam desta vez. Mantinham-se calados e imveis, como se o no reconhecessem... Na verdade, com os cabelos cortados curtos, o andar vacilante, o rosto mudado, plido e de expresso carregada, to diferente do que era um ano antes, ningum o reconheceria.

Atravessou o rio. No campo da outra margem, outrora coberto de centeio, viam-se agora regos de aveia seca. O sol escondera-se j e, no horizonte, flamejava uma larga facha vermelha, a anunciar trovoada. Tudo estava calmo. Ao dirigir os olhos para o ponto onde um ano antes vira o Monge Negro, Kovrin quedou-se vinte minutos a observar o claro do cu. Quando regressou a casa, cansado e insatisfeito, Yegor Semionovich e Tania estavam sentados nos degraus do terrao, a tomar ch. Conversavam um com o outro e, ao verem aproximar-se Kovrin, calaram-se. Mas este percebeu-lhes no rosto que haviam estado a falar a seu respeito.

- So horas de tomares o teu leite - disse Tania para o marido.

- No, por ora no - retorquiu este, sentando-se no ltimo degrau. - Bebe tu. A mim no me apetece.

Tania trocou um olhar tmido com o pai e tornou, a medo:

- Sabes perfeitamente que o leite te faz bem.

- Oh, muitssimo bem! - troou Kovrin. - Dou-te os meu parabns! J engordei uma libra desde sexta-feira passada. - Apertou a cabea nas mos e lamentou-se, numa voz dolorosa: - Oh, porque que me curaram? Brometos... descanso, banhos tpidos, uma vigilncia aturada sobre tudo o que eu metia boca, sobre todos os passos que dava... tudo isto ainda acaba por dar comigo em doido! Andava maluco... tinha a mania da grandeza... Mas fora isso sentia-me lcido, activo e sempre satisfeito... Era um homem interessante e original. Agora tornei-me racional e slido, como toda a gente. Sou um medocre e a vida no passa de uma coisa enfadonha. Oh, que cruis... que cruis vocs foram para mim! Tinha alucinaes... que mal fazia isso aos outros? Que mal, pergunto eu?...

- S Deus sabe o que ele quer dizer na sua! - suspirou Yegor Semionovich. - At chega a ser estupidez estar para aqui a ouvir-te!

- Ento no oiam!

A presena de estranhos, sobretudo de Yegor Semionovich, passara a irritar Kovrin; respondia ao sogro num tom seco, frio, mesmo mal-educado e, quando o olhava, no conseguia disfarar o dio e o desprezo. Yegor Semionovich sentia-se atrapalhado, e tossia, culposo, no compreendendo que mal poderia ter feito ao genro. Incapaz de perceber o motivo de tamanha reviravolta nas relaes de ambos, outrora to cordiais, Tania abraava-se ao pai e fitava-o nos olhos, assustada. Via claramente que as relaes entre os dois homens pioravam dia a dia, que o pai envelhecera extraordinariamente e que o marido se tornara irritvel, caprichoso, excitado e enfadonho. A rapariga deixara de rir, de cantar, no comia nada, passava as noites sem dormir, vivendo sob a ameaa dum terror permanente. Torturava-se a tal ponto, que chegava a ficar inconsciente desde o jantar at noite. Durante a cerimnia religiosa teve a impresso de que o pai estava a chorar. Agora, ali sentada no terrao, fazia um esforo para no pensar nisso.

- Que felizes foram Buda, Maomet e Shakespeare por no terem tido parentes e mdicos solcitos que os curassem do seu xtase e inspirao! - exclamou Kovrin. - Se Maomet houvesse ingerido brometo de potssio para os nervos, trabalhado apenas duas horas por dia e bebido leite, esse homem extraordinrio nada mais teria deixado atrs de si do que o seu co. Os parentes solcitos e os mdicos no fazem outra coisa seno tornar a humanidade estpida. Tempos viro em que a mediocridade ser considerada gnio e em que a humanidade acabar por perecer. Se vocs soubessem - prosseguiu Kovrin com petulncia -, se vocs soubessem como vos estou grato!...

Sentia uma forte irritao e, para no falar de mais, ergueu-se e entrou em casa. No fazia vento e l dentro pairava o cheiro planta do tabaco e a jalapa. Atravs da janela do enorme trio, os raios de luar vinham poisar no cho e sobre o piano. Kovrin recordou-se dos encantos do Vero passado, em que o ar tambm cheirava a jalapa e a luz da lua entrava pela janela... A fim de reviver a atmosfera de ento, entrou no quarto, acendeu um charuto forte e mandou que o criado lhe trouxesse vinho. A verdade, porm, que o charuto amargava, sabia mal, e o vinho perdera todo o paladar do ano anterior. O que faz a falta de hbito! Depois de um nico charuto e de dois goles de vinho sentiu a cabea andar roda e teve de tomar brometo de potssio.

Antes de se meterem na cama, Tania disse-lhe:

- Ouve l! O meu pai adora-te, mas tu ests aborrecido com ele por qualquer motivo e isso mata-o. Repara como envelhece de dia para dia, de hora para hora! Suplico-te, Andriusha, pelo amor de Deus, por alma do teu pai, para meu descanso, v se te mostras mais amvel com ele!

- No posso, nem quero!

- Mas porqu? - Tania tremia toda. - Explica-me porqu?

- Porque no gosto dele, pronto! - respondeu Kovrin com indiferena, encolhendo os ombros. - Mas o melhor no falarmos nisso, teu pai.

- No posso, no posso perceber - tornou Tania. Apertava a testa com as mos e fitava um ponto vago. - Nesta casa passa-se qualquer coisa de terrvel, de incompreensvel. Tu mudaste, Andriusha. J no s o mesmo... Tu, um homem inteligente e excepcional..., a irritares-te com ninharias. Aborreces-te com pequenas coisas em que noutros tempos nem reparavas. No... no te zangues - prosseguia ela, beijando-lhe as mos, assustada com as suas prprias palavras. - s inteligente, bom, honesto. Hs-de ser justo para com o pai. Ele to bondoso!

- Ele no bondoso, mas apenas bem-humorado. Estes tios de opereta, no gnero do teu pai, bem alimentados, de rosto bonacheiro, so figuras tpicas sua maneira e outrora conseguiam divertir-me, tanto nos romances, nas comdias, como na vida real. Hoje, porm, odeio-os. So egostas at medula... O que mais me enoja a sua auto-suficincia, o seu optimismo estomacal, puramente bovino... ou antes, suno.

Tania sentou-se na cama e poisou a cabea no travesseiro.

- Isto uma tortura! - murmurou. E pelo tom da sua voz notava-se claramente que se sentia extremamente cansada e lhe custava falar. - Desde o Inverno, nem um momento s de sossego... horrvel, meu Deus! Sofro tanto...

- Pois claro! Eu sou um Herodes e tu e o teu paizinho os inocentes massacrados. Claro!

A cara dele afigurava-se a Tania uma mscara feia e desagradvel. Aquela expresso de dio e desprezo no lhe ficava bem. A rapariga observou at que faltava qualquer coisa na cara do marido: desde que cortara o cabelo parecia mudado. Sentiu um estranho desejo de lhe dizer qualquer coisa insultante, mas dominou-se a tempo e, aterrada, retirou-se para o seu quarto.

IX

Kovrin foi nomeado para uma ctedra independente. O seu discurso inaugural estava marcado para o dia 2 de Dezembro e nesse sentido foi colocado um aviso nos corredores da Universidade. Mas, quando chegou a data marcada recebeu-se ali um telegrama a comunicar s autoridades universitrias que o professor no poderia comparecer por motivo de doena.

Subira-lhe sangue garganta. Vomitou-o e, duas vezes naquele ms, teve fortes hemoptises. Sentia-se terrivelmente fraco e caiu numa modorra contnua. A doena, porm, no o assustava, pois sabia que sua me, atacada da mesma molstia, vivera ainda dez anos. Os mdicos declararam tambm que o doente no se encontrava em perigo e aconselharam-no a no se preocupar, a fazer uma vida regular e a falar menos.

Em Janeiro, a conferncia foi adiada pelo mesmo motivo e em Fevereiro era j demasiado tarde para comear o curso. Ficou, portanto, resolvido dar-lhe incio no prximo ano.

Kovrin, nesta altura, no vivia j com Tania, mas sim com outra mulher mais velha do que ele, que o tratava como uma criana. Tornara-se calmo e obediente; submeteu-se de bom grado quando Varvara Nikolayevna, assim se chamava ela, tomou a iniciativa de o levar para a Crimeia, embora soubesse que a mudana de ares nenhum bem lhe faria.

Chegaram a Sebastopol ao fim de tarde e pararam para descansar, tencionando seguir para Yalta no dia seguinte. Ambos se sentiam fatigados da viagem. Varvara Nikolayevna tomou ch e foi deitar-se. Kovrin, porm, ficou a p. Antes de sair de casa para a estao, recebera uma carta de Tania que ainda no abrira. A lembrana desta carta causava-lhe uma estranha agitao. No mais ntimo do ser sentia que o seu casamento com Tania fora um erro. Achava-se satisfeito por se ter finalmente separado dela; porm a recordao daquela mulher que nos ltimos tempos parecia haver-se tornado apenas um manequim ambulante no qual tudo morrera, excepto os olhos enormes e inteligentes, s despertava nele um sentimento de piedade e de remorso. A letra, no envelope, vinha lembrar-lhe que, dois anos atrs, havia sido culpado de crueldade e de injustia e que exercera vingana sobre pessoas que nenhuma culpa tinham da vacuidade do seu esprito, da sua solido, do desencanto que experimentava perante a vida... Recordou-se de ter feito em pedaos a sua dissertao e todos os artigos que escrevera desde que estivera doente, atirando-os pela janela fora e de como os fragmentos de papel haviam sido levados pelo vento, indo poisar nas rvores e nas flores; em cada uma daquelas pginas via apenas uma pretenso estranha e infundada, uma irritao frvola, a mania da grandeza. E tudo isto produzira em si uma tal impresso, que acabara por escrever um relatrio das suas prprias culpas. E contudo, no momento em que 95 ltimos pedaos do derradeiro caderno eram arrastados pelo vento, sentiu tamanha amargura e desiluso, que se dirigira mulher, falando-lhe cruelmente. Cus, como lhe arruinara ento a vida! Recordava-se de uma vez em que, querendo martiriz-la, declarara que o pai dela desempenhara no seu casamento um papel fora do vulgar, chegando mesmo a pedir-lhe para casar com a filha; e Yegor Semionovich, que por acaso ouvira estas palavras, rompera pelo quarto dentro, to consternado que emudecera e no fora capaz de pronunciar qualquer frase, limitando-se a bater com os ps no cho e a soltar uns grunhidos estranhos, como se lhe tivessem cortado a lngua. Ao ver o pai naquele estado, Tania pusera-se a gritar que cortava o corao e cara por terra sem sentidos. Fora horrvel.

A lembrana de todas estas coisas voltava-lhe agora memria, ao ver aquela letra to sua conhecida. Dirigiu-se varanda. O ar estava tpido, calmo, vinha do mar um cheiro salgado, e tanto o luar como as luzes em volta reflectiam-se na superfcie da baa maravilhosa, duma tonalidade impossvel de classificar. Era uma suave combinao de azul e verde. Em certos pontos, a gua assemelhava-se a sulfato, noutras em vez de gua era luar lquido que enchia o mar. E toda esta harmoniosa combinao de tons exalava tranquilidade e exaltao.

No andar inferior da hospedaria, por baixo da varanda, as janelas estavam sem dvida abertas, pois ouviam-se claramente vozes e risos de mulher. Devia tratar-se duma festa.

Kovrin fez um esforo sobre si mesmo, abriu a carta, entrou no quarto e comeou a ler:

O meu pai acaba de morrer. Isto te devo, pois foste tu que o mataste. O nosso pomar est arruinado, tem sido entregue a mos estranhas. Acontece aquilo que o meu pobre pai tanto receava. Tambm isto se deve a ti. Odeio-te com toda a minha alma e desejaria que morresses em breve! Ah, como sofro! O meu corao estala com uma dor intolervel!... Maldito sejas! Julguei-te um ente excepcional, um homem de gnio; amava-te e afinal revelaste ser um louco...

Kovrin no conseguiu ler mais; rasgou a carta e atirou fora os pedaos... Sentia-se tomado de inquietao, quase duma espcie de terror... Do outro lado do biombo dormia Varvara Nikolayevna. Ouvia-lhe a respirao. No andar de baixo chegavam-lhe as vozes e os risos de outras mulheres. Afigurava-se-lhe, porm, que em todo o hotel o nico ser humano era ele. O facto de essa pobre e abandonada Tania o haver amaldioado na carta causava-lhe desgosto; e olhava, receoso, para a porta, temendo ver surgir de novo essa fora desconhecida que no espao de dois anos trouxera tamanha runa para a sua vida e para a daqueles que lhe eram mais queridos.

Sabia por experincia que, quando os nervos fraquejam, o melhor remdio o trabalho. Costumava ento sentar-se mesa e concentrar-se num pensamento definido. Retirou da pasta vermelha um caderno que continha o resumo dum pequeno trabalho que tencionava realizar durante aquela estadia na Crimeia, se acaso se fartasse da inactividade... Sentou-se mesa e ps-se a trabalhar nesse resumo. Afigurou-se-lhe estar a assumir de novo a sua antiga personalidade calma, resignada, objectiva. Aquele sumrio levou-o a especular sobre a vaidade do mundo. Pensou no alto preo que ela exige em troca dos benefcios mais mesquinhos e vulgares concedidos ao homem. Para reger uma cadeira de filosofia antes dos quarenta anos; para ser um vulgar professor; para expor pensamentos comuns, pensamentos estes que l no eram seus, numa linguagem fraca, pesada e cansativa; numa palavra, para atingir a posio de um medocre letrado, estudara durante quinze anos, trabalhara noite e dia, sofrera uma doena grave, fizera um casamento desastrado, tornara-se culpado de muitas loucuras e injustias cuja recordao se tornava para ele uma tortura. Kovrin convencia-se agora completamente de que no passava de um medocre e no conseguia conformar-se com esse facto, sabendo perfeitamente que todo o homem se deve dar por satisfeito com aquilo que .

O sumrio que tinha na frente acalmara-o; porm, os restos da carta espalhados pelo sobrado desviavam-lhe a ateno. Ergueu-se, apanhou-os e atirou com eles pela janela fora. Mas uma leve brisa que soprava do mar, f-los voar para o peitoril. Kovrin sentiu-se outra vez inquieto, quase aterrorizado, e afigurou-se-lhe de novo que, em todo o hotel, o nico ser vivo era ele... Voltou para a varanda. A baa parecia uma coisa viva e fitava-o com uma infinidade de olhos brilhantes, azuis escuros, cor de turquesa e de fogo, a cham-lo. Estava um calor sufocante; seria delicioso ir tomar banho, pensou!

De sbito, l em baixo, ouviu-se um violino a tocar e duas vozes de mulher a cantarem. Era uma melodia muito sua conhecida. Falava duma jovem de imaginao doente que ouvira de noite, no jardim, uns sons misteriosos, achando neles uma harmonia e um encanto incompreensveis para o resto dos mortais... Kovrin susteve a respirao, o corao deixou de bater e aquele mgico e esttico enlevo, h muito esquecido, vibrou-lhe de novo no peito.

Uma coluna negra e alta, semelhante a um ciclone ou a uma tromba de gua, surgiu na costa, em frente. Corria com incrvel rapidez na direco do hotel; ia-se tornando cada vez mais pequena e Kovrin afastou-se para a deixar passar... O monge, de cabea grisalha a descoberto, as sobrancelhas negras, ps descalos e mos cruzadas no peito, passou na sua frente e deteve-se no meio do quarto.

- Porque no acreditaste em mim? - inquiriu num tom de censura, olhando com meiguice para Kovrin. - Se me tivesses dado crdito quando te disse que eras um gnio, estes dois ltimos anos no teriam sido para ti to dolorosos e to inteis.

Kovrin comeava a convencer-se de novo que era um eleito de Deus e um gnio; recordou-se nitidamente da sua conversa anterior com o monge e quis replicar. Porm, o sangue jorrava-lhe da boca para o peito, e ele, sem saber o que fazia, esfregou nele as mos at ficar com os punhos vermelhos. Quis gritar por Varvara Nikolayevna que dormia atrs do biombo e, ao fazer um esforo, s conseguiu chamar: Tania!

Caiu no cho, agitando as mos, e de novo gritou:

- Tania!

Chamava por Tania, chamava pelo enorme jardim com as suas flores maravilhosas, chamava pelo parque, pelos pinheiros com as suas razes nodosas, pelos campos de centeio, chamava pela sua cincia espantosa, pela sua mocidade, pela sua coragem, pela sua alegria, gritava pela vida que fora to bela. Via no cho, sua frente, uma grande poa de sangue e sentia-se to fraco, que no conseguia pronunciar uma s palavra. No entanto, todo o seu ser se sentia tomado duma alegria infinita. Por baixo da varanda a serenata prosseguia e o Monge Negro murmurava-lhe ao ouvido que ele era um gnio e, se estava a morrer, era porque o seu corpo frgil e mortal perdera o equilbrio e j no servia para abrigar um gnio.

Quando Varvara Nikolayevna acordou e saiu de detrs do biombo, Kovrin estava morto. Mas no seu rosto estampava-se um sorriso indelvel de felicidade.

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