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SEMIPRESENCIAL
Prof. Antonio Carlos Banzato
Filosofia
SUMÁRIO
1 CONCEITOS BÁSICOS 5
1.1 A CONSCIÊNCIA MÍTICA 5
1.2 O NASCIMENTO DA CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA: OS PRÉ-SO-CRÁTICOS
7
1.3 A FILOSOFIA DE VIDA E O RIGOR DO PENSAMENTO FILOSÓ-FICO
12
1.4 DOGMATISMO, SENSO COMUM E PENSAMENTO IDEOLÓGICO
15
2 FILOSOFIA ANTIGA E MEDIEVAL 18
2.1 A RETÓRICA DOS SOFISTAS E AS PERGUNTAS DE SÓCRATES 18
2.2 PLATÃO E O MUNDO DAS IDÉIAS 22
2.3 A FILOSOFIA MEDIEVAL DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUI-NO
27
3 FILOSOFIA MODEERNA E CONTEMPORÂNEA 32
3.1 O QUE SIGNIFICA MODERNIDADE? 32
3.2 RACIONALISMO E EMPIRISMO 33
3.3 O CRITICISMO DE KANT 39
3.4 O CONTRATUALISMO DE HOBBLES, LOCKE E ROUSSEAU
43
3.5 O POSITIVISMO DE COMTE 48
3.6 O MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO DE MARX
50
3.7 NIETZSCHE: A TRANSVALORIZAÇÃO DOS VALORES 55
3.8 PIERRE LÉVY: COMUNICAÇÃO EM REVOLUÇÃO 57
REFERÊNCIAS 64
APRESENTAÇÃO
Caro aluno do EaD,
Bem-vindo a essa nova modalidade de aprendizado.
A Filosofia possui uma quantidade enorme de pensadores, incessantemente questionando,
problematizando e confrontando idéias, destruindo e reconstruindo sistemas de pensamento.
Atendendo ao caráter introdutório do curso, o objetivo é fornecer o panorama do
pensamento filosófico desde o seu surgimento até os nossos dias.
Estudaremos o nascimento da filosofia na Grécia Antiga e veremos, logo no início, a
importância do pensamento filosófico no nosso cotidiano. Em seguida, passaremos a estudar as
idéias de alguns dos mais significativos filósofos da Grécia Antiga, da Idade Média, da Era
Moderna e, finalmente, identificaremos importantes filósofos contemporâneos.
Nosso ponto de chegada? Esqueça. Filosofar, como já dizia o filósofo alemão
Karl Jaspers, é estar sempre a caminho.
A nossa disciplina tem os objetivos seguintes:
a- diferenciar a consciência mítica da consciência filosófica e identificar a importância
do pensamento filosófico em nosso cotidiano;
b- identificar os principais pensadores da filosofia antiga e medieval, destacando
aspectos de suas teorias sobre política e conhecimento;
c- identificar alguns filósofos do início da modernidade e contemporâneos, destacando
aspectos de suas teorias sobre conhecimento e política.
Antonio Carlos Banzato A. Santos
5
1 CONCEITOS BÁSICOS
1.1 A CONSCIÊNCIA MÍTICA
Quem nunca se perguntou se o mundo foi criado por uma mente superior ou se surgiu ao
acaso? Estamos sós no universo? De onde viemos? Por que existimos?
Quem nunca se espantou diante dos mistérios do mundo? A vida e a morte, os fenômenos
da natureza ― às vezes belos, às vezes terríveis ― as estações do ano, a contínua alternância
entre o dia e a noite, a infinitude do universo, a finitude dos seres vivos etc. É extensa a lista do
espetáculo cotidiano que a natureza oferece aos nossos olhos, produzindo os mais variados
sentimentos: medo, resignação, perplexidade, encantamento, incompreensão e outros.
É bem verdade que o espantoso desenvolvimento do conhecimento científico nos últimos
quatro séculos respondeu a diversas perguntas que pareceriam impossíveis de serem respondidas
aos olhos dos antigos. Seria árduo e imenso o trabalho enumerar todas as magníficas descobertas
científicas ocorridas desde a comprovação, no século XVII, de que a Terra gira em torno do Sol
até as atuais e impressionantes descobertas da engenharia genética e da revolução informática.
A ciência, porém, não responde a tudo. Diversas perguntas permanecem abertas,
resguardando insondável mistério. E tudo aquilo que a ciência não consegue explicar
racionalmente os seres humanos acabam por explicar miticamente.
Se assim é com a nossa civilização ocidental, imagine agora os povos que nunca tiveram
acesso àquilo que chamamos de conhecimento científico.
Os habitantes da Grécia Antiga, do século XX ao século VIII antes de Cristo, assim como
as tribos indígenas de todo o continente americano ― principalmente antes da chegada dos
europeus ― são exemplos de culturas que têm na consciência mítica a forma de conhecimento
predominante.
6
Sem acesso à medicina e à previsão meteorológica, por exemplo, qualquer doença ou
qualquer fenômeno da natureza como enchentes, eclipses, falta de chuvas etc. são atribuídos aos
deuses.
E mesmo os rudimentares conhecimentos que, geralmente, esses povos têm sobre
astrologia e sobre o poder de cura de certas ervas medicinais, são sempre marcados por rituais
míticos.
Os mitos, assim, expressam os temores e os desejos dos seres humanos em face do medo
que as forças hostis da natureza lhes inspiram. Trata-se de uma forma de compreender a realidade
e de conquistar, pelo menos provisoriamente, tranqüilidade e acomodação em um mundo
assustador.
O pensamento mítico, portanto, é a forma pela qual uma cultura passa e explicar aspectos
essenciais da realidade. As perguntas sobre o funcionamento da natureza (que se mostra
ameaçadora), a origem do mundo, a importância dos valores que modelam o comportamento do
grupo etc. ganham uma resposta mítica, ou seja, uma resposta que apela ao sobrenatural, ao
sagrado, à magia. Tudo aquilo que acontece aos homens é visto como fruto de uma vontade
divina, exterior e superior ao mundo humano, e que apenas os magos ou sacerdotes são capazes
de interpretar.
Podemos dizer, por isso, que o pensamento mítico tem algo de paradoxal, pois ao mesmo
tempo em que fornece explicações e respostas a perguntas angustiantes, recorre nessas
explicações ao misterioso e sobrenatural, ou seja, àquilo que permanece além da compreensão
humana, esbarrando desse modo na impossibilidade do desenvolvimento do conhecimento
racional.
Outro traço importante das narrativas míticas é que elas não são "inventadas" por
ninguém. Não possuem um autor assim como não têm uma origem cronológica precisa. Antes
disso, são o resultado da tradição cultural de um povo que, na maior parte das vezes, é transmitida
7
oralmente. Trata-se, ainda, de uma consciência comunitária, compartilhada por todo o grupo que
aceita a "verdade" do mito sem discussões ou comprovações racionais.
É por isso, também, que o mito não pode ser reduzido a uma "mentira". Ou o indivíduo
faz parte de uma determinada cultura e aceita seus mitos como visão de mundo ― e, portanto
como "verdade" – ou o indivíduo não pertence ao grupo e o mito perde seu sentido.
A discussão ou o questionamento dos mitos só é possível com o distanciamento do
indivíduo em relação à visão de mundo que o mito representa e consagra. Mas para que isso
aconteça é necessária a transformação da própria sociedade. Foi exatamente o que começou a
acontecer num determinado período da Grécia Antiga, como veremos a seguir.
1.2 O NASCIMENTO DA CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS
A civilização micênica ― que se estendeu do século XX ao século XII a.C. ― era
constituída por povos guerreiros que viviam do comércio e das pilhagens de guerras. Sua
organização social era fortemente hierarquizada em torno da família real e da aristocracia
palaciana, o que se refletia na hierarquia de suas divindades. Uma escrita chegou a ser
desenvolvida nesse período, muito embora seu uso tenha se restringido aos escribas a serviço da
família real.
Por volta do século XII a.C., como resultado das guerras desse período, a civilização
micênica foi destruída e houve uma retração social: o comércio cedeu lugar à economia rural, o
sistema escravista recrudesceu, a escrita desaparece. A vida reorganiza-se no isolamento de clãs
e de pequenas aldeias tribais. O poder político passa a ser exercido por uma aristocracia
proprietária de terras.
Contudo, a antiga unidade social, anteriormente encarnada pelo rei, se desfaz e a
sociedade se torna lugar de desordem e de conflitos entre as diversas famílias aristocráticas e
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entre a aristocracia e as camadas mais pobres da população.
Muito da tradição mítica da civilização micênica se perde nesse período. Somente por
volta do século IX ou VIII a.C. a escrita reaparece, resguardando porém um caráter sagrado. A
Ilíada e a Odisséia, atribuídas a Homero, e a Teogonia, de Hesíodo (escrita no século VIII a.C.),
são as maiores fontes do nosso conhecimento sobre os mitos gregos. Isso, como vimos acima, não
significa que Homero ou Hesíodo tenham inventados os mitos. Na verdade, eles recolheram as
narrativas míticas dos diversos povos que sucessivamente habitaram a Grécia desde a civilização
micênica e as registraram em versos.
Lentamente, algumas transformações decisivas foram se impondo. A partir do século VIII
a.C. já se nota o renascimento do comércio, que ganha maior impulso com a invenção da moeda.
A escrita finalmente deixa de ser privilégio daqueles que detêm poder político ou religioso e, uma
vez dessacralizada, isto é, desligada das questões míticas, cheias de fórmulas mágicas e
inacessíveis ao não-iniciados, transforma-se em instrumento de divulgação de idéias, expandindo
o debate social e político. As antigas aldeias se unem, obrigando as diferentes
tribos e clãs a conviverem no mesmo espaço. Assim nasce a organização social, que é uma
característica da pólis, a cidade-estado grega.
Se antes a estabilidade da vida social gravitava em torno da figura do "rei divino", que
encarnava a vontade dos deuses, a vida na pólis adquire nova e decisiva característica, pois o
centro da vida social passa a ser a ágora, isto é, a praça pública onde são realizadas as
assembléias e onde, após ampla discussão e votação, são tomadas as decisões políticas sobre a
vida da cidade.
Não há mais um rei e a aristocracia não manda sozinha. O acesso ao poder é estendido a
todos aqueles que são considerados cidadãos, ou seja, os homens adultos que não são nem
estrangeiros nem escravos. Ainda que em Atenas, considerada o modelo da antiga democracia,
apenas cerca de 10% da população fosse de cidadãos, é inegável a novidade política nascente: a
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aristocracia hereditária, os comerciantes, as camadas mais pobres da população se vêem
indistintamente com direito de participar de discussões públicas e de votar, decidindo
politicamente sobre o futuro da cidade.
Em suma, junto com a pólis está nascendo a democracia, que se constrói no frágil
equilíbrio entre as várias camadas sociais que habitam a mesma sociedade. E mais importante
ainda: a política e o governo aparecem pela primeira vez na história como criação da vontade
humana. O destino, que antes era traçado inexoravelmente pela vontade dos deuses, passa a ser
responsabilidade dos cidadãos. Finalmente, as leis que regem o convívio social não são mais
tabus, não é mais expressão da consciência mítica, mas sim o resultado impessoal de uma decisão
coletiva, tomada abertamente após a discussão em praça pública. Todas essas mudanças
contribuem de modo decisivo para o desenvolvimento do pensamento racional. A ágora é, por
excelência, o espaço do logos, ou seja, da razão, do discurso, da palavra. A decisão sobre os
assuntos públicos passa a depender, afinal, da capacidade de persuasão do orador e não da sua
condição social ou econômica: vence quem sabe convencer melhor e, para tanto, é preciso
valer-se de uma boa exposição de idéias.
Podemos dizer que a política finalmente torna-se laica, ou seja, assunto dos homens e não
dos deuses.
É, pois, nesse ambiente de racionalidade que surgem os primeiros filósofos.
Diante das inevitáveis perguntas que o ser humano sempre se fez sobre a origem do
universo, da natureza, da vida, os primeiros filósofos não se contentam com as explicações
oferecidas pelo pensamento mítico.
A palavra grega physis, que é a origem etimológica de Física, é geralmente traduzida por
natureza. Seu significado, porém, é mais amplo e refere-se ao processo de nascimento,
crescimento e transformação da natureza.
Quem indaga sobre a physis, indaga sobre o princípio ou fundamento de todas as coisas,
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que os gregos chamavam de arché: haverá um princípio único que ordene todas as coisas do
mundo?
A resposta a essa pergunta, oferecida por Hesíodo em sua Teogonia, expressa, ainda, a
consciência mítica: ele narra o nascimento do mundo e dos deuses; as forças da natureza são
divinizadas e ganham contornos humanos: a Terra é Gaia; o Céu é Urano; o Tempo é Cronos etc.
Esses seres nascem ora pela segregação, ora pela intervenção de Eros, responsável por aproximar
os opostos.
Os primeiros filósofos, porém, insatisfeitos com as explicações míticas, foram buscar
uma explicação natural ― e não sobrenatural ― para o princípio de todas as coisas. A chave
para a compreensão da arché estaria, portanto, na própria natureza e não, em algo fora do mundo,
preso a uma realidade misteriosa e inacessível. A realidade, dessa forma, se abre à possibilidade
do conhecimento e de explicações racionais. Isso dá origem ao pensamento
filosófico-científico. Os filósofos opõem a Cosmologia à Cosmogonia dos mitos,
Ainda que muito dos escritos pré-socráticos tenham se perdido, restando apenas
fragmentos e citações de filósofos posteriores, sabemos que essa nova forma de pensar nasce por
volta do século VI a.C., na Jônia, que era uma colônia fundada na costa asiática da Grécia, atual
Turquia, mais especificamente na cidade de Mileto, que experimentava, então, grande
florescimento comercial e cultural. Mileto havia se transformado em centro cosmopolita onde
conviviam culturas distintas. É possível, assim, que as diversas e contrastantes tradições míticas
tenham levado os primeiros filósofos à relativização dos mitos.
Tales, nascido em Mileto, é considerado o primeiro filósofo. Ao recusar a explicação
mítica, ele afirma que o princípio da physis é a água. Todo o universo e toda a natureza teriam se
originado desse elemento, sendo possível encontrá-la em tudo aquilo que está vivo. É relevante,
também, o caráter crítico do pensamento de Tales: diz-se que ele não só admitia como estimulava
seus discípulos a desenvolverem outros pontos de vista, adotando, se possível, outros princípios
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explicativos. Seu discípulo Anaximandro e, depois, Anaxímenes e Heráclito são os mais
importantes filósofos pré-socráticos da Jônia.
No transcorrer dos séculos VI e V a.C., o pensamento filosófico se difunde na Grécia.
Pitágoras de Samos funda uma escola em Crotona, no sul da Magna Grécia (atual Itália).
Xenófanes, Parmênides e Zenão representam a cidade de Eléia, também na Magna Grécia.
Leucipo e Demócrito são de Abdera; Anaxágoras é de Clazomenas; Empédocles, de Agrigento.
A denominação filósofos pré-socráticos é, ao mesmo tempo, cronológica e temática.
Cronológica porque grande parte desses filósofos viveu antes de Sócrates, considerado um marco
da filosofia; temática porque sua principal característica é a tentativa de explicação racional da
origem do universo: seu objeto de reflexão é a physis.
Em resumo: há uma ruptura entre a consciência mítica e a filosofia nascente. Ao contrário
do que acontece com a explicação mítica, que é aceita pelo indivíduo sem questionamentos, a
explicação filosófica é problematizadora e convida à discussão. Desse modo, abre-se espaço para
a divergência e para o debate. Se Tales afirma que o elemento primordial de todas as coisas é a
água, Anaxímenes afirma que é o ar. Demócrito, por sua vez, sustenta que é o átomo. Empédocles
diz que são os quatro elementos: terra, ar, água e fogo. E assim sucessivamente.
Em oposição à figura do sábio religioso, que detém a verdade do conhecimento mítico, os
gregos inventam a figura do filósofo. Observa-se aí uma diferença de atitude diante do saber
recebido: no mito, a inteligibilidade é dada; na filosofia ela é procurada.
O filósofo, portanto, não é o dono da verdade, mas aquele que sai em sua busca, ou, como
diria Pitágoras, é o amigo (philos) do saber (sophia), daí a origem do próprio termo filosofia:
philos + sophia.
12
1.3 A FILOSOFIA DE VIDA E O RIGOR DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Como definir Filosofia? Qual sua utilidade no nosso dia-a-dia? Qual sua importância para
todos aqueles que não são filósofos e não fazem do pensamento filosófico um modo de vida?
Essas são algumas perguntas freqüentes entre os estudantes de qualquer faculdade.
Ao invés, porém, de se abrirem para o novo, é também significativa a parcela de alunos
que resolve se proteger da filosofia afirmando, do fundo da sua caverna, que ela é muito
subjetiva; é uma viagem incompreensível; não serve para nada que se relacione à vida prática.
Antes, portanto, de começarmos a estudar alguns dos mais importantes filósofos desde a
Antigüidade até nossos dias, vamos procurar responder às questões acima e desfazer os
preconceitos mais comuns que abalam a já restrita popularidade da filosofia.
Para Kant não é possível aprender o que é a Filosofia, só é possível aprender a filosofar.
Merleau-Ponty, por sua vez, afirma que filosofar é reaprender a ver o mundo. Segundo Gramsci,
"não se pode pensar em nenhum homem que não seja também filósofo, que não pense,
precisamente porque pensar é próprio do homem".
André Comte-Sponville, finalmente, arrisca: "filosofar é pensar sua vida e viver seu
pensamento", e arremata: a filosofia é "uma prática teórica (mas não-científica), que tem o todo
por objeto, a razão por meio e a sabedoria por fim. Trata-se de pensar melhor, para viver melhor".
Quem nunca parou para pensar: como devo viver?
Eis aí uma pergunta filosófica da maior relevância, ligada ao cotidiano de qualquer ser
humano. Se você às vezes se faz essa pergunta e procura respondê-la de um modo inteligente
está, bem ou mal, filosofando. Por que você resolveu fazer um curso universitário? Por que optou
por este curso e não por outro? Por que a Unisa? Por que resolveu cursar a disciplina Filosofia
pela Internet?
Por detrás dessas escolhas estão os seus critérios e os seus valores que, suponho, foram
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ponderados, pesados, avaliados até que você chegasse à sua decisão. Refletir sobre esses valores,
procurar justificá-los racionalmente, é uma forma de filosofar. Pensar a sua vida não é viver de
modo egoísta ou essencialmente introspectivo, mas pensá-la onde ela é vivida: na sociedade, na
história, no mundo. Viver seu pensamento é, na medida do possível, agir com autonomia ao invés
de sujeitar-se passivamente ao fluxo dos acontecimentos.
Para que serve então a Filosofia?
Para aprimorar a reflexão crítica, inerente a todo e qualquer ser humano! Pensar melhor,
para viver melhor! A esse pensamento crítico chamamos "filosofia de vida". Trata-se mais de
uma atitude do que de uma erudição.
É isso o que eu procuro fazer na minha vida.
É isso o que você pode fazer na sua!
Basta coragem e disposição.
Por que coragem? Ora, lembre-se dos pré-socráticos: eles rejeitavam as explicações
míticas em voga na sua época. Isso quer dizer que ousavam questionar aquilo que para a maioria
das pessoas era uma verdade absoluta, uma certeza, um dogma. Certamente encontravam muita
resistência o que, convenhamos, nem sempre é fácil de suportar (Sócrates que o diga!). Há,
porém, diferenças relevantes entre a filosofia de vida e o pensamento dos filósofos especialistas.
Enquanto a filosofia de vida não exige rigor ― muito embora exija sempre espírito crítico! ―, a
Filosofia propriamente dita se manifesta como um gênero à parte.
O iniciante, às vezes, assusta-se com a linguagem dos filósofos. E alguns deles,
principalmente a partir da modernidade, são de fato difíceis. Mas como tantas outras disciplinas,
a filosofia também tem o seu rigor próprio, o seu jargão, os seus conceitos.
Em filosofia, o uso preciso da linguagem é decisivo: é assim que os filósofos fogem da
ambigüidade e evitam a subjetividade não de seu ponto de vista, mas de como o expressam.
O filósofo, portanto, está acostumado a pensar com maior rigor lógico e de um modo mais
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sistemático que as pessoas comuns, além de conhecer a história e o desenvolvimento do
pensamento. Esse conhecimento teórico, todavia, é apenas uma parte do filosofar. Ao eleger a
dúvida como elemento desencadeador do processo crítico, a Filosofia se caracteriza como
conhecimento instituinte, capaz de questionar sempre e infinitamente o saber instituído,
provocando abalos e mudanças.
A Filosofia trai a si mesma quando estanca em verdade inquestionável, afinal ela é a
procura da verdade, não a sua posse. Por isso, como diz Jaspers, filosofar é estar a caminho:
perguntas em Filosofia são essenciais, e cada resposta transforma-se numa nova pergunta.
É por isso que ao estudar os clássicos precisamos tomar cuidado. Ler Filosofia não é
assimilar passivamente as idéias dos grandes filósofos como se fossem um produto pronto e
acabado; isso sim seria erudição estéril. Ler bem é ler antropofagicamente: só assim poderemos
nos aproximar da Filosofia como processo, como reflexão crítica e autônoma da realidade vivida.
O objeto da Filosofia? O todo. Isso não significa que todos os filósofos pensem sobre todos os
assuntos possíveis. Mas qualquer assunto possível pode ser o objeto de estudo de um filósofo. E,
sob uma perspectiva de conjunto, a Filosofia relaciona-se interdisciplinarmente com todas as
formas do saber e agir humanos.
Os filósofos, assim, podem ter como objeto de estudo o conhecimento, a política, a ética,
a ciência, a religião, o direito, a justiça, os valores, o próprio ser humano etc.
E já que falamos em ciência, convém, aqui, abrir um parêntese. A partir do século XVII,
com a revolução metodológica iniciada por Galileu Galilei, a Filosofia e a Ciência, que até então
andavam juntas, separam-se. Começa a nascer aí a noção moderna de conhecimento científico.
Aos poucos vão se firmando as ciências particulares ―física, astronomia, química, biologia,
psicologia, sociologia, economia etc. ―, cada uma delas com sua metodologia própria de estudo.
A Ciência, assim, faz "recortes" do real e tende cada vez mais à especialização, ao saber
fragmentado, ao estudo da parte e não do todo. Além disso, a Ciência está preocupada em fazer
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juízos de fato, ou seja, pretende descobrir como os fenômenos ocorrem, quais suas relações e
como prevê-los. Os resultados das investigações científicas se pretendem, por isso, impessoais e
objetivos, tendendo à verificabilidade e à uniformidade das conclusões.
A Filosofia, por sua vez, não renuncia ao ponto de vista da totalidade. Enquanto as
ciências se especializam, a Filosofia levanta problemas cujas respostas exigem a capacidade de
relacionar diversos aspectos do contexto no qual está inserido. Enquanto os cientistas se limitam
a fazer juízos de fato, os filósofos resgatam a dimensão dos juízos de valor e, com isso, julgam o
valor do conhecimento, preocupando-se não apenas em saber como é a experiência vivida, mas
também como deveria ser.
1.4 DOGMATISMO, SENSO COMUM E PENSAMENTO IDEOLÓGICO
Vamos, afinal, admitir que a Filosofia não é uma atividade apenas para iniciados. Muito
pelo contrário: a filosofia de vida é condição para a autonomia intelectual de qualquer ser
humano. Somente por meio dela questionamos as verdades sedimentadas e alteramos o rumo de
nossa própria existência.
Isso, porém, não é fácil. Há diversos obstáculos que impedem grande parte das pessoas de
abandonarem suas pequenas certezas e suas cômodas verdades. O dogmatismo, o senso comum e
o pensamento ideológico são alguns desses obstáculos. Vejamos cada um deles.
O termo dogma possui diversas perspectivas. Vejamos algumas delas:
o dogma mítico-religioso é uma verdade indiscutível que a razão não precisa explicar;
o dogma valorativo deriva da falta de capacidade de um indivíduo de colocar em xeque seus
próprios valores, que passam a ser considerados universais;
o dogma político é a maior ameaça às democracias.
Menos intransigente que o dogmatismo, o senso comum é o conhecimento que herdamos
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pela tradição e ao qual acrescentamos os frutos da experiência vivida na coletividade a que
pertencemos. Trata-se de um conjunto de valores e idéias mais ou menos compartilhados
socialmente e que nos permite interpretar a realidade e agir. O problema, porém, é que o senso
comum não é resultado da reflexão e pode encontrar-se misturado a crenças e preconceitos. Como
primeiro nível de conhecimento é ainda ingênuo, não-crítico, fragmentário, assistemático e
incoerente, levando, muitas vezes, à ação conservadora e resistente às mudanças. O senso
comum, todavia, pode ser superado não apenas pelas formas mais rigorosas do conhecimento
como a Ciência e a Filosofia, mas também pelo exercício da filosofia de vida.
O pensamento ideológico, finalmente, se apresenta muitas vezes como um discurso
aparentemente mais bem elaborado do que o dogmatismo e do que o senso comum, por isso
exigirá de nós um atenção um pouco mais detalhada.
Já vimos que, em Filosofia, um conceito é uma construção que só faz sentido no interior de uma
teoria, perdendo seu sentido quando indevidamente transportado para outra teoria. Assim, dois ou
mais filósofos podem utilizar-se da mesma palavra para construir conceitos absolutamente
distintos. É exatamente isso o que acontece ― ou aconteceu - com a ideologia.
No início do século XIX, certa corrente filosófica chamou de ideologia a "ciência das
idéias" ou a "ciência das ciências". Mas esse sentido caiu totalmente em desuso: ninguém, hoje
em dia, defende a viabilidade de uma ciência das ciências.
Já no uso cotidiano, chamamos de ideologia a nossa opinião ou posicionamento sobre
determinado assunto. É assim que falamos em ideologia de esquerda ou de direita, em ideologia
libertária ou repressora, em ideologia democrática ou bélica. Pense, por exemplo, na reeleição de
George W. Bush à presidência dos Estados Unidos: sua campanha política foi toda marcada pela
ideologia da guerra como forma de combate ao terrorismo.
Há décadas, porém, a palavra é utilizada pela maioria dos intelectuais, das mais diversas
áreas, em seu sentido marxista. Para entender isso, é preciso esquecer os dois sentidos acima
17
mencionados.
A ideologia, afinal, é um conjunto de idéias (compostas por valores, princípios, crenças)
que se explicam por suas condições históricas, Ou seja, as idéias que compunham a mentalidade
feudal eram diferentes daquelas que compõem a sociedade capitalista. Da mesma forma, há
diferenças entre a mentalidade da época da revolução industrial e a da revolução informática.
Podemos dizer, portanto, que o discurso ideológico nunca é fruto da autonomia do
pensamento, mas resultado de circunstâncias históricas que modelam ― inconsciente e
acriticamente ― os valores e a visão de mundo daquele que fala. O sujeito sequer chega a
perceber quais são os seus próprios valores, limitando-se a repetir como se fossem suas ―e como
se fossem naturais e universais ― as idéias que, na verdade, compõem um pensamento social
localizado no tempo e no espaço.
Outro traço importante da ideologia é que ela reflete os valores da classe ou do segmento
social dominante. A força do discurso ideológico consiste na capacidade de transformar em
"universais" os valores que, no fundo, não passam de interesses particulares de um grupo
específico. Assim, tanto dominados quanto dominadores incorporam o discurso e acreditam nele,
não percebendo as lacunas que existem no discurso e que ocultam a maneira pela qual a
realidade social foi produzida.
Isso faz da ideologia não um conhecimento falso, mentiroso ou delirante, mas sim
ilusório. Ou seja: o discurso ideológico não é uma mentira que alguém inventa deliberadamente
com a oculta intenção de manter os seus privilégios, tampouco se confunde com um delírio se o
entendemos como um pensamento desgarrado do real (e portanto falso) e, ao mesmo tempo,
individual, singular, enclausurado em si mesmo. Um delírio, porém, transforma-se numa crença
quando adquire a força de mover e comover todo um grupo. A crença, finalmente, pode
engendrar discursos ideológicos, não em função de sua validade ou falta de validade, mas de sua
capacidade de controlar comportamentos coletivos, reforçando crenças e estereótipos.
18
2 FILOSOFIA ANTIGA E MEDIEVAL
2.1 A RETÓRICA DOS SOFISTAS E AS PERGUNTAS DE SÓCRATES
A cidade de Atenas, no século V a.C., encarna o auge da antiga democracia. Isso não é
pouco, principalmente se lembrarmos que no século XII a.C. a civilização micênica foi destruída
e, como resultado, o comércio e a escrita desapareceram, o sistema escravista recrudesceu e a
economia, controlada por uma aristocracia proprietária de terras, voltou a ser fundamentalmente
rural. Somente no século VIII a.C., na transição dos tempos homéricos para o período arcaico, é
que o antigo mundo rural e aristocrático, assentado em tribos e clãs familiares, irá ceder espaço
para as primeiras aglomerações urbanas.
Com a lenta formação das pólis assiste-se, concomitantemente, ao renascimento do
comércio. Uma vez enriquecidos, os comerciantes passam a defender seus interesses que, muitas
vezes, se opõem aos da aristocracia. Após algumas importantes reformas políticas será,
finalmente, implantada a democracia. Esse novo contexto social e político é fundamental para
entender o pensamento de Sócrates e a atividade dos sofistas. Com eles, houve uma significativa
mudança no teor das indagações filosóficas. Enquanto os pré-socráticos perguntava-se sobre a
formação e a transformação da natureza (physis), buscando respostas racionais a essas questões
(cosmologias), Sócrates é o primeiro filósofo a eleger problemas éticos e políticos como tema
central de seus questionamentos, deslocando o objeto da filosofia da natureza para o próprio
homem e para a comunidade em que vive. Nesse exercício, irá divergir dos sofistas.
O termo sofistas deriva de sophos, que significa originalmente "sábios". Como, porém,
Sócrates e, mais tarde, Platão e Aristóteles criticaram duramente os sofistas, o termo acabou
adquirindo uma conotação pejorativa. Tanto é que chamamos de sofisma o argumento que,
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embora falso, possui a aparência da verdade e, portanto, o poder de induzir o outro ao erro. O
sofista, nessa visão pejorativa, é o charlatão que tem por hábito - e por habilidade - construir
argumentos com erros voluntários a fim de enganar ou embaraçar seu interlocutor.
Hoje em dia, porém, a tendência é reconhecer a importância que os sofistas tiveram na
história da filosofia. Foram eles, afinal, que justificaram o ideal democrático do século V a.C.,
elaborando teorizações que interessavam à nova classe dos comerciantes.
Muito embora não tenham constituído uma "escola de pensamento" (pois divergiam muito
entre si), os sofistas tinham algo em comum: eram estrangeiros (e portanto não eram
considerados cidadãos de Atenas), não descendiam da aristocracia e não pertenciam a famílias de
comerciantes enriquecidos. Para sobreviver, davam aulas e cobravam por isso. Ou seja,
transformaram o seu saber em ofício, o que causou espanto para os padrões da época. Não foram
poucos os que acusaram os sofistas de "mercenários do saber". A busca pela verdade -
argumentavam seus detratores - não poderia se submeter aos interesses daquele que paga,
exigindo como condição a independência.
A contribuição dos sofistas, todavia, reside no fato de terem sistematizado o ensino,
formando um currículo de estudos que incluía, entre outros pontos, a gramática, a retórica e a
dialética. Tais estudos vinham ao encontro das exigências práticas do cidadão de uma sociedade
democrática: para convencer não basta dizer o que se considera verdadeiro, é preciso
demonstrá-lo pelo raciocínio. E para demonstrá-lo é preciso falar bem, é preciso persuadir.
Preocupados com a coerência lógica e com o rigor dos argumentos, e dando mais
importância à forma da exposição do que ao próprio conteúdo, os sofistas se encarregam de
iniciar os jovens na arte da retórica: instrumento que se torna indispensável na assembléia
democrática.
Se os sofistas preocupavam-se mais com a forma do que com o conteúdo dos argumentos,
isso não se devia a uma falha de seu caráter. Sua intenção não era mentir deliberadamente, não
20
era enganar o interlocutor (ou, pelo menos, isso não se aplica à maioria dos sofistas e se
eventualmente ocorreu foi uma exceção).
Antes disso, os sofistas compartilham a idéia de que não há no mundo um único princípio
que a tudo comande. Para eles, tudo resulta de convenções, inclusive os valores e a própria
verdade. Quando Protágoras ― considerado o primeiro sofista ― afirma que o homem é a
medida de todas as coisas está querendo dizer que se existe um consenso entre os homens, este
resulta da convenção.
A verdade, portanto, é vista como resultado de uma construção humana e não como a
descoberta de algo absoluto.
Sócrates (470-399 a.C.) nada deixou escrito. Tudo o que sabemos dele se deve aos relatos
de seus discípulos, sendo Platão o mais importante de todos. Pela análise desses escritos, porém,
é possível identificar alguns dos mais importantes traços da filosofia socrática.
Os sofistas, como acabamos de ver, ensinavam a arte da retórica, ou seja, ensinavam o
orador a expor seu ponto de vista com coerência e brilhantismo a fim de convencer seus
interlocutores de que realmente tinha razão (o que, aliás, continua sendo útil em se tratando de
assuntos políticos e jurídicos).
Sócrates, por sua vez, faz exatamente o contrário: desenvolve um método de destruição
das certezas e das convicções. Está preocupado em descobrir a essência das coisas e seu primeiro
passo é admitir que não as conhece. É portanto um ignorante da essência que procura descobrir.
Sua famosa frase "só sei que nada sei" é o ponto de partida para a procura, para a pesquisa.
Sócrates resolve, então, interrogar todos aqueles que se consideram sábios. Porém, com suas
hábeis e irônicas perguntas, põe a nu a ilusão do conhecimento, revelando que as pessoas se
passam por sábias sem de fato o serem. Sua habilidade questionadora nada mais é do que uma
imensa capacidade de colocar em xeque as crenças, os dogmas, as opiniões e o senso comum de
seus interlocutores.
21
Essa fase inicial da investigação socrática tem por objetivo demonstrar que o nosso
primeiro nível de conhecimento ― que é prático, intuitivo e imediato ― se revela muitas vezes
insuficiente e inadequado, sendo possível aprimorá-lo e aperfeiçoá-lo por meio da reflexão. O
aprimoramento da reflexão, por sua vez, dá-se por meio daquilo que Sócrates chamou de
maiêutica. Não se assuste com essa palavra grega que significa literalmente "a arte de fazer o
parto". Filho de uma parteira, Sócrates fez uma simples analogia entre o seu ofício e o ofício da
mãe. Assim como ela ajudava outras mulheres a darem à luz uma criança, ele ajudava outros
homens a darem à luz suas próprias idéias.
Sócrates, com isso, quer reforçar que não é dono da verdade: ao destruir a ilusão do
conhecimento de seu interlocutor, não aponta onde está o conhecimento verdadeiro (que ele
também ignora). Apenas aponta para a deficiência do conhecimento do outro, estimulando-o a
aprimorar suas próprias reflexões por meio da dialética, isto é, pela discussão no diálogo. Ou
seja, o papel do filósofo não é transmitir um saber pronto e acabado.
Não podemos concluir daí que Sócrates aceita qualquer ponto de vista e que toda e
qualquer opinião deve ser respeitada. A filosofia, para Sócrates, nada tem a ver com o exercício
da subjetividade do indivíduo. Antes disso, Sócrates (ao contrário dos sofistas), preocupa-se em
descobrir um conhecimento que seja universal. Dessa preocupação, decorre a importância
fundamental do conceito.
Somente o exercício intelectual que leva à definição de um conceito poderia exprimir a
essência ou a natureza de uma coisa, aquilo que a coisa é verdadeiramente. Para Sócrates, não
bastam exemplos do que é ser corajoso ou do que é ser virtuoso. Ele quer saber o que é a coragem
ou a virtude em si mesmas.
Não foi por outro motivo que Sócrates tanto criticou os sofistas. Argumentava que as
decisões políticas nas assembléias estavam sendo tomadas não com base em um saber, mas por
influência dos mais hábeis em retórica, que poderiam não ser os mais sábios ou virtuosos.
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Sua postura de incansável perguntador rendeu-lhe, porém, diversos inimigos: os
poderosos, afinal, não gostavam nem um pouco de se verem expostos em sua ignorância. Resumo
da ópera: foi acusado de corromper a juventude e de ensinar crenças contrárias à religião do
estado e, num julgamento político e injusto, foi condenado à morte.
Curiosamente a execução de Sócrates, quando ele contava 70 anos, coincide com a
decadência da democracia ateniense, enfraquecida por intrigas, conspirações, corrupção e por
uma crise de valores políticos e morais.
2.2 PLATÃO E O MUNDO DAS IDÉIAS
Platão (428-347 a.C.) era um jovem de 29 anos quando Sócrates foi executado. A
decepção com o regime democrático que, já em declínio, acabou por condenar seu mestre à
morte, irá transparecer em toda a sua obra.
O verdadeiro nome de Platão era Arístocles. Ateniense de família aristocrática, recebeu o
apelido pelo qual ficou famoso por ter os ombros largos (os ossos que formam os ombros
chamam-se omoplatas).
Fiel a Sócrates, Platão compra a briga com os sofistas e continua denunciando aquilo que
acredita ser o falso saber dos homens, principalmente no que se refere aos valores humanos.
Desiludido, porém, com a democracia, afasta-se da participação política e elabora aquilo que viria
a ser considerada a primeira grande sistematização do pensamento filosófico.
Enquanto os sofistas defendiam que a verdade era fruto da convenção humana e
ensinavam os homens a defender com brilhantismo qualquer ponto de vista, Sócrates ―
preocupado em descobrir a essência das coisas ― se empenhava na produção de um "saber
negativo", isto é, destruía a ilusão do saber, levando seus interlocutores a admitir que não
conheciam a essência daquilo sobre o que falavam. Em suma: levava-os a reconhecer que não
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sabiam coisa alguma.
Platão, contudo, dá um passo além de seu mestre e ousa elaborar um "saber positivo",
capaz de garantir a certeza do conhecimento e, conseqüentemente, de orientar a ação ética e
política.
Vejamos, então, algumas das perguntas que Platão procura responder:
Como podemos conhecer a realidade? Qual o método, quer dizer, qual o caminho capaz de
garantir que o conhecimento é válido e verdadeiro?
Quais são os instrumentos mais adequados de que dispomos para chegar ao conhecimento: os
sentidos ou a razão?
O que queremos conhecer: o mundo material, mutável, perecível ou a realidade superior, a
essência eterna e imutável?
Finalmente: é possível conhecer a realidade, o mundo tal qual ele é?
Para responder a essas questões, Platão preocupa-se desde o início com a clareza: é
preciso criar definições, é preciso estabelecer com precisão o significado do que se diz, o
significado das palavras, é preciso, em suma, criar conceitos.
O método que Platão utilizou para criar conceitos foi a dialética.
A dialética, portanto, responde à primeira pergunta: é o método platônico de superação da
opinião (em grego, doxa). E qual o problema da opinião? É que ela expressa um ponto de vista
baseado num juízo insuficiente (tenha-se ou não consciência dessa insuficiência). É mais uma
crença do que um conhecimento, ou, se preferir, é um conhecimento falso, preconceituoso, sem
um fundamento sólido.
Os sofistas ― critica Platão ― defendem sem pudor qualquer ponto de vista, isto é,
qualquer opinião. Mas Platão não quer se limitar às opiniões: elas são múltiplas e podem variar
de indivíduo para indivíduo. Ademais, algumas de nossas opiniões decorrem dos sentidos que,
muitas vezes, nos enganam.
24
O conhecimento verdadeiro, por sua vez, é aquele que corresponde à essência das coisas,
é o único apto a responder o que é algo. Deve ser, portanto, universal, aceito por todos
independentemente de origem, classe, função ou interesses individuais. Esse conhecimento é
chamado por Platão de ciência (ou, em grego, episteme).
A admirável novidade expressa pelo pensamento de Platão é que ele não adota como
ponto de partida do seu sistema filosófico nenhuma revelação externa, nenhuma autoridade
divina nem algo que seja sobrenatural. Antes disso, parte da própria opinião, submetendo-a
porém a um reexame crítico (lembre-se da dialética). Em seguida, leva às últimas conseqüências
o discurso reflexivo, isto é, o discurso capaz de se voltar sobre o próprio discurso, preocupado em
justificar-se e legitimar-se a si mesmo, chegando finalmente à verdade pela clareza, pela razão.
A filosofia se converte, assim, numa análise crítica dos fundamentos, do discurso legitimador do
conhecimento como "posse de uma representação correta do real".
Com isso respondemos a segunda questão: a razão é mais refinada do que os sentidos para
chegar ao verdadeiro conhecimento. Se você reparar respondemos também a terceira questão: o
mundo material é mutável, é o mundo das opiniões e dos sentidos sujeitos ao engano, é o mundo
do falso conhecimento dos sofistas; o mundo superior, das essências, por sua vez, é o que Platão
almeja conhecer pela razão.
E como, afinal, é possível conhecer a realidade, o mundo tal qual ele é? Para responder,
Platão desenvolve a teoria das idéias. Teoria, nesse contexto, significa a capacidade de ver a
"natureza essencial" das coisas em seu sentido eterno e imutável; é, pois, o caminho para
conhecer a verdade. A "natureza essencial" de alguma coisa, por sua vez, corresponde àquilo que
Platão chama de "idéia".
Na alegoria da Caverna, Platão faz uma metáfora: o mundo no interior da caverna
corresponde ao mundo sensível, isto é, ao mundo mutável dos fenômenos, da multiplicidade e do
movimento. É um mundo ilusório e sujeito ao engano: pura sombra do verdadeiro mundo.
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Os homens que passam entre a fogueira e os prisioneiros carregando objetos cujas
sombras se projetam no fundo da caverna, criando a ilusão de que a projeção é a própria
realidade, são os sofistas e os políticos atenienses que manipulam as opiniões dos homens
comuns.
Finalmente, aquele homem que se liberta e sai da caverna é o filósofo. O mundo externo é
a metáfora do mundo inteligível ou mundo das idéias, ou, ainda, se você preferir, mundo das
essências. A teoria filosófica é o único caminho para depuração dos sentidos que permite ao
homem aproximar-se da contemplação das essências imutáveis. Para Platão, as idéias são as
únicas verdades. O mundo dos fenômenos em que vivemos, portanto, é apenas a cópia do mundo
superior. Um exemplo. Há diversos tipos de abelhas: grandes, pequenas, amarelas, negras etc.
Mas essas variações só existem no mundo sensível, que é mutável e múltiplo. A essência ou idéia
da Abelha, porém, é una, única, imutável e faz parte do mundo das idéias.
Como é possível, contudo, ultrapassar a fronteira que separam esses dois mundos? Platão,
para justificar tal dualismo, elabora a teoria da reminiscência, na qual supõe que o puro espírito já
teria contemplado o mundo das idéias, mas tudo esquece quando se degrada ao se tornar
prisioneiro do corpo, nascendo em nosso mundo. Assim, conclui Platão, conhecer é lembrar. A
função dos sentidos, por sua vez, é despertar a alma para as lembranças adormecidas.
Antes de encerrarmos, chamo a atenção para um detalhe importante. Na alegoria da
caverna, o filósofo que se aproximou do mundo das idéias volta, em seguida, ao mundo sensível.
Que conclusões podemos tirar disso? Como vimos no início, as corrupções que marcaram o
declínio da democracia ateniense e a execução de Sócrates produziram em Platão uma enorme
decepção levando-o a afastar-se da política. Esse afastamento, no entanto, não foi definitivo. Para
Platão, a prática filosófica representa o "abandono provisório" do mundo sensível e a busca do
mundo das idéias: se não temos condições da avaliar com clareza e eficácia a nossa prática
quando nelas estamos imersos, é preciso romper com ela, olhá-la de outra esfera, avaliá-la de
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longe para, somente depois, retornar com maior clareza.
Com a filosofia, é certo, Platão enfatiza a teoria, mas não deixa que ela se transforme num
fim em si mesmo, colocando-a à serviço de uma aplicação prática, baseada em princípios que vão
além do imediato, da opinião. A filosofia se converte, desse modo, em condição racional da ação,
conservando um interesse prático muito claro: a dimensão ética e política da existência humana.
O filósofo, portanto, é, para Platão, aquele que sai da "caverna", mas não esquece o compromisso
de retornar para alterar as relações humanas, conduzindo-as o mais próximo possível da verdade.
A caverna, afinal, apesar de inferior, é o próprio mundo humano.
Platão, finalmente, manifesta-se contrário à democracia, pois entende que o povo será
sempre manipulado e enganado pelos políticos. A opinião, por mais equivocada que seja, parece
a expressão da verdade quando bem defendida por um hábil orador e, assim, faz prevalecer
interesses particulares em detrimento de interesses comuns.
A tirania (governo violento e arbitrário) e a oligarquia (governo de uma minoria poderosa)
também são rejeitadas, pois além de não garantirem decisões sábias, representavam uma volta
indesejada ao passado.
Como solução, Platão defende a construção de uma "sofocracia" (sophos, como já vimos,
significa saber; krátos é governo; sofocracia é, literalmente, governo dos sábios). Nesse caso,
sábios são os próprios filósofos que saem da caverna e, quando voltam, devem transformar-se nos
governantes dos homens comuns, vítimas do conhecimento imperfeito. Ou, nas palavras do
próprio Platão: "Os males não cessarão para os homens antes que a raça dos puros e autênticos
filósofos chegue ao poder" (Carta VII).
Na sociedade imaginada por Platão, a família e a propriedade deveriam ser eliminadas e a
educação ficaria a cargo do Estado. As funções sociais de cada indivíduo seriam decididas de
acordo com suas aptidões. Assim, os indivíduos com "alma de bronze", isto é, de sensibilidade
mais grosseira, cuidariam da subsistência da cidade, dedicando-se ao artesanato, ao comércio e à
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agricultura.
Os indivíduos com "alma de prata", considerados os mais corajosos, cuidariam da defesa
da cidade. Por fim, os indivíduos com "alma de ouro" seriam instruídos na arte de pensar a dois,
isto é, na arte de dialogar. Estudariam filosofia até os cinqüenta anos quando, então, seriam
admitidos no corpo supremo dos magistrados, a quem caberia o governo da cidade.
2.3 A FILOSOFIA MEDIEVAL DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUINO
No século II a.C. a Grécia já se encontra sob o domínio do Império Romano. A perda da
autonomia das cidades gregas, contudo, não significou o aniquilamento de sua cultura mas,
curiosamente, a sua expansão: os romanos reconheceram e difundiram o pensamento filosófico da
Grécia Antiga.
No plano político, porém, a vida sob o domínio do Império é drasticamente alterada: o
cidadão não é mais aquele que participa coletivamente das decisões políticas em praça pública,
redigindo leis e votando. Em Roma, diferentemente, são poucos os que detêm poder político. Tal
fato acaba por gerar uma mudança no enfoque da Filosofia que, ao deixar de lado os problemas
políticos, volta-se para o interior do homem, preocupando-se fundamentalmente com a vida
privada e com as regras de conduta sociais destinadas ao bom viver.
No campo da ética, os filósofos romanos não chegaram perto da grandeza e originalidade
dos gregos. Sua grande contribuição, contudo, refere-se ao direito. Foram eles os responsáveis ―
ainda sob a influência da filosofia grega ― por elaborar um sistema jurídico impessoal,
sistemático e técnico. É ainda sob o domínio do Império Romano que nascerá Jesus. Após sua
crucificação surgem diversos seguidores de Cristo, todos inicialmente combatidos pelo Império.
Lentamente, o cristianismo, tornado religião, foi se difundindo em diversas comunidades sem,
contudo, possuir uma unidade. Ameaçada não apenas pelo Império, mas também pelas
divergências internas, foi necessária a criação de uma unidade institucional que desse à nova
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religião a identidade capaz de proporcionar maior integração entre as comunidades cristãs. Nesse
processo, a Filosofia grega terá importância fundamental, contribuindo com a formulação de uma
doutrina única ou ortodoxa,que significa, literalmente, doutrina correta, rechaçando-se as
doutrinas divergentes como heréticas, isto é, que contrariam os dogmas da Igreja.
Diversos teólogos se opõem à utilização da filosofia grega, alegando tratar-se de um
pensamento pagão, ou seja, alheio à mensagem cristã e, portanto, pernicioso, perigoso. Outros
teólogos, por sua vez, sustentam que a filosofia grega é uma preparação racional para a fé,
podendo desempenhar um papel legítimo, desde que submetida aos textos sagrados. Essa tensão
que se estabeleceu entre a teologia e a filosofia ficou conhecida como o conflito entre razão e fé e
permeou as discussões religiosas entre os séculos II e V da nossa Era, marcando, também, a
decadência do Império Romano.
A patrística, surgida nesse contexto, é a filosofia dos Padres da Igreja, também conhecidos
como apologistas. Seu objetivo: combater as heresias e justificar a fé. Sua estratégia: mesclar fé
e razão, subordinando esta àquela.
O principal nome da patrística é Agostinho (354-430). Nascido em Hipona, uma província
pertencente ao Império Romano, converte-se ao cristianismo aos 32 anos e, em 395, torna-se
bispo. Quando morre, na primeira metade do século V, sua cidade já está cercada pelos vândalos:
é a dissolução do Império. Cronologicamente, Agostinho é, ainda, um pensador do período
antigo. Sua obra, porém, reflete as mudanças históricas de sua época e prenuncia o importante
papel cultural exercido pelo cristianismo ao longo da Idade Média, além de contribuir para a
consolidação da filosofia cristã. Após sua morte foi canonizado pela Igreja, passando a ser
chamado pelos cristãos de Santo Agostinho.
A aproximação rigorosa e sistemática que Agostinho elaborou entre o cristianismo e a
filosofia de Platão ficou conhecida como platonismo cristão. O dualismo característico da teoria
das idéias e da teoria da reminiscência é recuperado e transformado por Agostinho na teoria da
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iluminação, da qual decorre a noção de interioridade, que prenuncia o conceito de subjetividade
do mundo moderno. Para Agostinho ―assim como para Platão ― o conhecimento supõe algo
anterior aos sentidos e à própria linguagem. No lugar, porém, do mundo das idéias, Agostinho
coloca Deus. A teoria da reminiscência, por sua vez, é substituída pela teoria da iluminação.
Vejamos como.
Platão argumenta que não é possível ensinar a Virtude: trata-se antes de "lembrar" sua
essência (contemplada no mundo das idéias por todo ser humano antes de nascer). Agostinho
concorda com Platão: a Virtude não pode ser ensinada! Veja o que diz o filósofo cristão sobre o
conhecimento:
No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado [...] é Cristo, que habita [...] no homem interior.
E ainda: “ [...] quem nos ouve conhece o que eu digo por sua própria contemplação e
não através de minhas palavras."
Em sua última obra, A Cidade de Deus, Agostinho formula uma concepção histórica com
um sentido, com uma direção, com início, meio e fim. O evento inicial da história é a Criação,
seguida por sucessivas rupturas e alianças com o Criador, desde a expulsão e queda de Adão e
Eva do Paraíso até o juízo final e a redenção. A aliança entre Deus e o homem é representada pela
cidade divina que, ao final, prevalecerá, pois é a finalidade da história. Os momentos de ruptura
da aliança correspondem à prevalência provisória da cidade terrena, que é também a cidade do
pecado.
A influência de Agostinho é fundamental para a consolidação da Igreja que, menos
preocupada em combater os bárbaros (até porque não possuía condições de derrotá-los pelas
armas), passa a convertê-los, iniciando o processo de cristianização da Europa ocidental. É
também com o auxílio do pensamento agostiniano que a Igreja, a "detentora terrestre das chaves
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da cidade de Deus", mantém a supremacia do poder espiritual sobre o poder temporal durante a
Idade Média.
O poder temporal, aliás, sem a centralização anteriormente proporcionada pelo Império,
se fragmenta. Com isso, as cidades transformam-se em lugares inseguros. As pessoas refugiam-se
no campo e deixam de fazer viagens. O comércio praticamente desaparece. A economia torna-se
agrária e de subsistência. A população, de servos a nobres, torna-se cada vez mais analfabeta.
Acentuam-se as disputas políticas entre duques, condes e barões, que montam suas próprias
milícias e muitas vezes detêm mais poder que o próprio rei.Em um mundo assim fragmentado, a
Igreja representa um elemento agregador e de forte influência. Grande parte da cultura
greco-romana, afinal, é conservada nos mosteiros. E os monges, os únicos letrados da Idade
Média, tornam-se os responsáveis por elaborar a fundamentação religiosa dos princípios morais,
políticos e jurídicos da sociedade medieval.
No século XIII, quando nasce Tomás de Aquino (1225-1274), o panorama medieval se
encontra em franca transformação. O renascimento do comércio estimula o surgimento de novos
núcleos urbanos. Desde a criação da universidade de Direito de Bolonha, em 1088, não cessam de
surgir novas universidades espalhadas pela Europa. A demanda por educação aumenta
consideravelmente, atendendo não apenas aos anseios eclesiásticos, visando à formação de uma
elite para combater os "hereges", mas também civis, pois a vida urbana exige pessoas
qualificadas para ocupar os cargos do governo e da administração pública.
Quando as dificuldades decorrentes da tensão entre a teologia cristã e a filosofia grega
transformam-se em assuntos universitários, tem início a escolástica, ou literalmente: doutrina da
escola, marcada, a princípio, pelo platonismo agostiniano.
Todavia, o renascimento do comércio intensifica as viagens e, com isso, o contato com
outras culturas. A filosofia árabe, bastante avançada para a época, traz ao ocidente cristão a obra
de Aristóteles. A novidade intelectual, porém, é vista pela Igreja com severas restrições ― a
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concepção filosófica do estagirita é ao mesmo tempo rigorosa e divergente da teologia elaborada
até então ― e, ameaçada, apressa-se em condenar trechos dos textos aristotélicos. Não obstante,
seu pensamento é bem acolhido no ambiente universitário, que procura desenvolver-se com
liberdade e autonomia. A obra de Tomás da Aquino é resultado de sua carreira como professor
universitário. Seduzido pela obra de Aristóteles, procura demonstrar a sua compatibilidade com a
filosofia cristã, tornando-se, assim, o maior nome da escolástica.
Como cristão, Tomás de Aquino se revela um pensador racionalista e extremamente
rigoroso. A função da Filosofia, contudo, continua sendo a de servir à fé. Seu propósito
intelectual é provar racionalmente a existência de Deus. Para tanto, argumenta que a definição de
Deus como sendo a própria perfeição nada prova , pois a definição é uma idéia e nada garante
que ela exista de fato na realidade.
Argumenta, ainda, que a existência divina não é auto-evidente, mas precisa ser
demonstrada.
O ponto de partida para o conhecimento racional, Deus é, de acordo com Tomás de
Aquino, o mundo sensível, percebido pelos sentidos: por meio deles todo e qualquer ser humano
apreende a existência auto-evidente do movimento das coisas, por exemplo, um dado inegável da
realidade.
O movimento, contudo, é sempre causado por alguma outra coisa. E para que a série das
causas não se estenda ao infinito e possa ser compreendida pela razão, é preciso chegar à noção
de causa primeira. É aí que o frade dominicano, ao se deixar influenciar pela obra de Aristóteles,
adapta-a ao cristianismo: a primeira causa eficiente do movimento de todo o universo, e que é
também a sua causa primeira, é Deus.
Além de produzir uma síntese da obra aristotélica, adaptando-a aos dogmas cristãos,
Tomás de Aquino influencia-se também pela visão política do filósofo grego, estudando questões
como a natureza do poder e das leis. Chega, ao final, à conclusão de que a realização humana se
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aprimora na cidade e que o plano político é a instância possível para o governo não-tirânico aliar
ordem e justiça.
Ainda que Tomás de Aquino faça a ressalva de que o Estado conduz o ser humano até
certo ponto e que, a partir daí, é necessária a atuação indispensável da Igreja, mantendo, portanto,
o poder temporal da Igreja acima do poder temporal dos reis, já se nota uma atenuação dessa
hierarquia. Não deixa de ser um prenúncio da desarticulação entre política e religião, que
ocorrerá no Renascimento, como veremos no próximo tema.
3 FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA
3.1 O QUE SIGNIFICA MODERNIDADE?
A Idade Média estendeu-se do século V ao século XIV da nossa era. Mil anos, portanto. A
partir do século XV a Igreja começa a perder parte de seu poder para os reis, cada vez mais
fortes. Inglaterra, França, Portugal e Espanha se constituem em monarquias nacionais. À perda de
influência da nobreza e do clero, corresponde a ascensão de uma nova classe social: a burguesia.
Dedicados às finanças e ao comércio, os burgueses passam a apoiar a coroa em troca de
proteção aos seus negócios.
Os séculos XV e XVI constituem, assim, o Renascimento: período de intensas
transformações. Uma das mais notáveis é o declínio da perspectiva teocêntrica ― tipicamente
medieval ― e o desenvolvimento da mentalidade antropocêntrica: o indivíduo volta a ser
valorizado em sua integralidade.
O humanismo renascentista, ao defender a independência e a liberdade de pensamento, e
ao retomar sob um nova perspectiva algumas idéias e valores da Antigüidade greco-romana,
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rompe com a visão filosófico-religiosa da Idade Média e prepara o terreno para o
desenvolvimento da modernidade nos séculos XVII e XVIII.
Se, porém, o termo Renascimento remete à retomada de algumas idéias e valores da
Antigüidade, o conceito de modernidade merece maior atenção.
Ao que tudo indica, a origem etimológica do vocábulo moderno deriva do advérbio latino
modo, que significa agora, neste instante, no momento, ou seja, designa o que nos é
contemporâneo. Por isso, nos habituamos a relacionar o conceito de modernidade àquilo que é
novo, que rompe com a tradição. No dia-a-dia, o termo moderno adquire um sentido positivo de
mudança, transformação, progresso (um cinema moderno, por exemplo, é um cinema bem
equipado, com tecnologia de última geração e design arrojado).
Historicamente, contudo, a modernidade é o período compreendido entre os séculos XVII
e XVIII. Trata-se de um período diretamente relacionado à supervalorização do indivíduo e da
idéia de progresso.
3.2 RACIONALISMO E EMPIRISMO
O francês René Descartes (1596-1650) nasceu numa época de transição, em meio ao
"fogo cruzado" de um novo pensamento que se anunciava e do pensamento tradicional, que ainda
sobrevivia de maneira muito forte.
Não é exagero dizer que a filosofia cartesiana inaugura o pensamento moderno.
Situando-se, porém, num período de transição, ela possui ao mesmo tempo elementos de ruptura
e de continuidade em relação à filosofia antiga e medieval. Importante deixar bem claro que a
ruptura com a tradição não significa que o filósofo a ignora, mas sim a critica. Ou melhor: ele
aborda os temas da filosofia tradicional sob uma nova perspectiva.
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De acordo com Descartes, nada garante que o saber cotidiano, adquirido pela tradição
ou pela experiência, sem maiores preocupações com o método, seja de fato um conhecimento
verdadeiro. Antes disso, pode tratar-se apenas da consolidação de erros acumulados através dos
anos. Não foi outra coisa, a propósito, o que Descartes testemunhou em sua época: a ciência de
inspiração aristotélica havia perdurado por aproximadamente dois mil anos, mas ruiu aos pés do
modelo de ciência inaugurado por Copérnico, Galileu e Kepler, desautorizando, inclusive, o
discurso oficial da Igreja, cuja autoridade ficou irremediavelmente abalada.
Como, a partir de então, seria possível garantir a certeza do conhecimento? Descartes
volta-se para dentro de si mesmo: ele aposta no poder crítico da razão. Logo no início de uma de
suas mais importantes obras, o Discurso do Método, ele afirma que o bom senso é natural ao
homem e compartilhado por todos. O erro, por sua vez, resulta do mau uso da razão. Para
evitá-lo, conclui, é preciso desenvolver um método, isto é, um caminho, um procedimento capaz
de garantir a certeza do conhecimento.
Fascinado pela matemática devido à sua certeza e ao seu caráter auto-evidente (a
verdade matemática mostra em si mesma o seu próprio fundamento), Descartes a elege como
modelo metódico para chegar à certeza também em outras esferas do saber como a Física, a
Moral e a Metafísica. Em outras palavras: seu objetivo é alargar o campo de eficácia da razão por
meio de um método de aplicação universal, capaz de fundamentar a unidade do saber.
Em certo sentido, Descartes se coloca na contramão de seu tempo. Nos períodos de
crise, em que a tradição ainda não morreu e a novidade ainda não se impôs, é compreensível que
a maioria das pessoas se sintam mergulhadas num mar de incertezas. Daí a simpatia que seus
contemporâneos nutrem pelos filósofos céticos da Antigüidade.
Descartes, ao contrário, pretende encontrar uma certeza básica e absoluta, imune às
dúvidas céticas. A etapa inicial da argumentação cartesiana elege a dúvida como recurso
metodológico. A chamada dúvida metódica coloca tudo em xeque: as crenças, as opiniões, os
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sentidos, o conhecimento adquirido pela tradição, pela experiência, pela autoridade etc. Descartes
chega, então, a criar a "dúvida hiperbólica" (exagerada): e se a realidade for uma ilusão; e se o
mundo foi criado por um gênio maligno ou por um deus enganador que se diverte brincando de
enganar meus sentidos?
Ao elevar a dúvida até o limite, Descartes abre o caminho para chegar à sua primeira
certeza: se existe um gênio maligno que gosta de me iludir é necessário, então, que eu exista. E,
por mais que o gênio maligno me engane, jamais poderá fazer com que eu não seja nada. Sendo
assim: se eu duvido, é porque eu penso. Se eu penso, é porque eu existo. Daí, sua celebre
afirmação: "penso, logo existo" (em latim: cogito, ergo sum). Resumindo: para duvidar é
necessário pensar. A existência do ser pensante, portanto, não está sujeita à dúvida: trata-se de
uma certeza básica, originária.
Ao atingir, porém, a certeza da existência da substância pensante, Descartes continua
duvidando do corpo. Ter certeza sobre a existência do corpo significaria ir além do pensamento
puro, dependeria dos sentidos, da experiência, do conhecimento adquirido. Mas nada disso pode
ser garantido pela certeza do cogito, isto é, do pensamento. Difícil, aliás, não lembrar aqui do
filme The Matrix.
Para garantir a passagem do mundo interno para o externo, Descartes lança mão da
chamada "prova ontológica da existência de Deus". A existência da dúvida, argumenta o filósofo,
prova a carência de conhecimento do ser humano, que se percebe imperfeito e finito.
Dúvida = imperfeição e finitude humana.
As idéias de perfeição e infinitude, por sua vez, não podem ser fruto da mente humana,
afinal a razão e o bom senso garantem que uma idéia nunca pode ser maior do que a sua causa.
Desse modo, um ser finito não pode causar a si mesmo a idéia de infinitude. Assim, perfeição e
infinitude são idéias inatas, causadas nos homens por um ser perfeito e infinito, ou seja, Deus. Se
Deus possui todas as perfeições em grau infinito, deve possuir também o atributo da existência,
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portanto, conclui Descartes, Deus existe (pensar em Deus como inexistente seria, para Descartes,
pensá-lo sem um atributo da perfeição, o que é impossível para o raciocínio por ele sustentado).
Deus = Perfeição e Infinitude.
Uma vez comprovada racionalmente a existência de Deus, bem como sua perfeição e
infinitude, conclui-se que Deus é bom e não pode produzir um mundo que seja uma ilusão. Os
erros do entendimento humano decorrem de nossas imperfeições que, apesar de tudo, podem ser
atenuadas por um método rigoroso. Deus é, assim, a ponte que leva das idéias ao real.
A filosofia cartesiana é, portanto, uma filosofia dualista, que separa corpo e mente. A
realidade da alma ― que Descartes chama de substância pensante - é completamente separada da
realidade do corpo ― a substância extensa. É, também, uma filosofia idealista e racionalista: a
desconfiança que nutre pelos sentidos leva-o a recusá-los como ponto de partida do
conhecimento; este, por sua vez, se constitui a partir das idéias, submetidas sempre ao crivo da
razão. Há, assim, isolamento do “eu" (solipsismo) em relação a todo o mundo externo, incluindo
o próprio corpo: a consciência está condenada à certeza solitária de si mesma.
Não podemos esquecer, contudo, que o objetivo de Descartes é fundamentar a
possibilidade do conhecimento científico. Afirmar a existência de Deus foi o modo que Descartes
encontrou para superar seu idealismo em direção a uma filosofia realista, capaz de estabelecer a
ponte entre o mundo interior e o exterior e, com isso, fundamentar o conhecimento científico.
Em suma: Descartes rompe com a tradição filosófica ao preocupar-se com o desenvolvimento de
uma metodologia rigorosa, capaz de fundamentar a ciência nascente e, nesse sentido, se faz
moderno. Todavia, ao invocar Deus para não cair no ceticismo que pretendia refutar, Descartes
conserva um aspecto da filosofia tradicional, qual seja, o recurso à metafísica.
John Locke (1632 - 1704) defendia uma teoria do conhecimento que, posteriormente,
ficou conhecida como empirismo. A palavra empeiria vem do grego e significa "experiência". Em
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sua obra Ensaios sobre o entendimento humano, opõe-se a Descartes e combate a tese das idéias
inatas. Para o filósofo inglês, o processo de conhecimento nunca é anterior à experiência. Antes o
contrário: é sempre o resultado das elaborações que fazemos de nossa experiência, sentidos e
impressões sobre o real.
Locke, portanto, não adota uma abordagem racionalista, ou seja, o ponto de partida do
conhecimento não é a razão. Antes disso, ele afirma que a mente do ser humano, ao nascer, é uma
tábula rasa, isto é, uma folha em branco, vazia, e que a experiência vai, aos poucos, fornecendo
os dados para a futura elaboração do conhecimento. Se não fosse assim, as crianças já estariam
aptas a encontrar em si as idéias inatas. Ademais, observa Locke, a idéia de Deus não se encontra
em toda parte ou, no mínimo, há povos que não desenvolvem a representação de um
Deus como ser perfeito.
Sendo assim, Locke sustenta que há duas fontes possíveis para o desenvolvimento do
conhecimento: a sensação e a reflexão.
A sensação é resultado dos estímulos externos e fornece elementos para o
desenvolvimento das idéias simples.
A reflexão, por seu turno, se reduz à elaboração interna das sensações, produzindo as
idéias complexas. As idéias simples são as que resultam da percepção da qualidade das coisas,
como solidez, extensão, cor, som, sabor etc., que são relativas e subjetivas, podendo variar de
sujeito para sujeito. Finalmente, por meio da análise, o sujeito ata e desata as idéias simples,
produzindo idéias complexas. Estas são formadas exclusivamente pelo intelecto e não têm
validade objetiva: são nomes que criamos para ordenar as coisas. Seu valor é prático e não,
cognitivo.
Ao aceitar a sensibilidade como ponto de partida do conhecimento, Locke rejeita a
Metafísica e conclui que não podemos conhecer as coisas em sua essência. Em outras palavras:
podemos ter opiniões sobre o mundo natural, mas não conhecimento verdadeiro.
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Se compararmos o racionalismo cartesiano com o empirismo de Locke, podemos dizer
que este privilegia a experiência sensível como fonte inicial do processo de conhecimento
enquanto Descartes privilegia a razão. Isso não quer dizer que o racionalismo despreza a
experiência sensível, mas que ela está sujeita a enganos e, portanto, o verdadeiro conhecimento se
elabora no espírito. O empirismo, por sua vez, não despreza o uso da razão. Apenas subordina o
seu uso ao resultado da experiência. As conseqüências de se adotar uma teoria ou outra são enormes. Os racionalistas confiam
na possibilidade de se atingir verdades universais e eternas. Os empiristas admitem que o
conhecimento se inicia sempre a partir de uma realidade em constante transformação e, com isso,
acabam por questionar o caráter absoluto da verdade, concluindo que tudo é relativo ao espaço,
ao tempo, ao humano.
Foi, contudo, o filósofo escocês David Hume (1711-1776) quem levou ao limite o
pensamento empirista. Assim como Locke, Hume descarta a possibilidade de se conhecer a
essência das coisas.
O espírito, ou a essência do ser humano, enquanto algo imutável, não pode ser conhecido.
Não há metafísica possível. Tudo que resta é a natureza humana, entendida não como substância,
mas reduzida às maneiras pelas quais a mente associa idéias. O que importa, para Hume, é
investigar como se dão tais associações.
O conhecimento, pode-se argumentar, inicia-se na experiência e depende de nossa
capacidade racional de compreender as relações de causa e efeito da natureza. Hume, porém,
coloca sob suspeita as relações de causa e efeito que pensamos encontrar na natureza.
O fogo queima? É o que a experiência nos confirma.
A regularidade da natureza e as relações de causa e efeito dos fenômenos naturais,
contudo, não existem senão em nossa mente. Não se trata de uma verdade absoluta, mas de um
pressuposto indispensável ao processo de conhecimento.
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Se todas as vezes que me encostei-se ao fogo, queimei-me, se o mesmo aconteceu com
todas as outras pessoas, sou capaz de prever, pressupondo a regularidade da natureza, que, no
futuro, se entrar novamente em contato com o fogo, mais uma vez me queimarei. O hábito, e nada
mais do que o hábito, nos leva a formular a noção de causa e efeito que, todavia, não é um dado
da natureza. A razão, portanto, é limitada para conhecer as coisas. O máximo que ela consegue é
fazer relações a partir do hábito.
Conclusão. O verdadeiro e o absoluto são inatingíveis. E mais: as afirmações metafísicas
carecem de provas e fundamentos. Reside nisso, aliás, o ceticismo de Hume.
Uma certeza é um conhecimento plenamente demonstrado, que não admite dúvidas. Mas o
que não admite dúvidas? Tudo o que conhecemos depende da nossa sensibilidade, dos nossos
instrumentos de medição, de teorias, de conceitos. O conhecimento humano começa e termina no
mesmo lugar:
a- todo conhecimento parte necessariamente dos sentidos e da razão;
b- toda certeza esbarra necessariamente nas limitações dos sentidos e da razão.
3.3 O CRITICISMO DE KANT
Immanuel Kant (1724-1804) foi um dos principais nomes do Iluminismo alemão. De
início, seduzido pelo racionalismo, torna-se leitor de Hume e compreende que não só é possível
como aconselhável colocar a razão em dúvida, chegando, por isso, a dizer que Hume o despertou
de seu "sono dogmático".
Dogmático é aquele que aceita sem questionamentos ―sem crítica, portanto ― algumas
idéias.
É nesse sentido ― denuncia Kant ― que toda a filosofia anterior a Hume incorreu no
erro dogmático, pois aceitou, sem questionar, sem criticar, que conceitos tais como: Deus, alma,
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infinito e finito, causa e efeito, matéria e forma, substância etc., pudessem ter uma realidade em
si mesma que fosse, de algum modo, apreensível pela razão. Ou, dito de modo inverso: nada
prova que as idéias produzidas por nossa razão correspondam exatamente a uma realidade
externa, que existe em si e por si.
Dessa forma, ao elaborar a sua teoria do conhecimento, Kant coloca a razão em um
"tribunal" a fim de avaliar cuidadosamente o que pode ser conhecido de modo legítimo e qual o
tipo de conhecimento que não tem fundamento.
Sua Crítica da razão pura, como o nome indica, tem o objetivo de avaliar criticamente
até que ponto é possível falar em "razão pura", independentemente da experiência individual. Por
esse motivo, aliás, seu método é conhecido como criticismo.
A ambição filosófica de Kant é superar a dicotomia entre o racionalismo e o empirismo.
Para tanto, propõe aquilo que ele mesmo chama de uma "revolução copernicana" em Filosofia.
De acordo com Kant, toda filosofia anterior, incluindo racionalistas e empiristas,
cometeram o mesmo erro: elaboraram teorias do conhecimento partindo da realidade (podemos
dizer: dos objetos, das coisas) e não da razão. Ou seja: colocaram os objetos no centro do
processo de conhecimento e deixaram os sujeitos girando em torno deles. Acreditaram, ainda, que
a realidade era racional, podendo ser conhecida integralmente pelas idéias da razão.
A "revolução copernicana" em Filosofia inverteu o jogo; deslocou os objetos do centro
do processo de conhecimento e em seu lugar colocou o próprio sujeito do conhecimento. Ora, se
o Iluminismo procurou elevar a razão ao status de Sol" capaz de iluminar as trevas da ignorância,
cumpria colocar esse "Sol" no centro do conhecimento e indagar:
a- O que é a razão?
b- O que é a experiência?
c- O que elas podem e não podem conhecer?
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O erro dos racionalistas (entre eles Descartes) foi o de supor que as idéias são inatas, o
que não se pode provar; o erro dos empiristas (entre eles Locke e o próprio Hume) foi o de supor
que a "estrutura da razão" é adquirida pela experiência.
Kant procura superar o impasse. A razão, afirma, é uma estrutura vazia, sem conteúdo,
pura forma. Essa estrutura não é adquirida pela experiência nem é subjetiva. Antes disso, é inata
(todo ser humano nasce com ela) e, assim, universal. A estrutura da razão, portanto, é anterior à
experiência, ou, como diz Kant, usando um termo latino, é a priori: é uma condição para que,
posteriormente, o conhecimento seja atingido.
Se a razão é uma estrutura formal, é a experiência, por sua vez, que fornecerá a matéria,
isto é, o conteúdo (variável) do conhecimento. Ou melhor: o conhecimento racional é a síntese
que a razão realiza entre uma forma universal inata e um determinado conteúdo oferecido pela
experiência.
De acordo com Kant, a estrutura a priori da razão é constituída pela forma da
sensibilidade (isto é, a capacidade da percepção sensorial) e pela forma do entendimento (isto é, a
capacidade da inteligência ou do intelecto).
A função da razão, separada da sensibilidade e do intelecto, não é conhecer coisa
alguma, mas regular e controlar a sensibilidade e o intelecto. A partir dos dados da experiência
(conteúdo variável), colhidos pela sensibilidade e pelo intelecto (estrutura inata e universal), a
razão produz uma síntese, quer dizer, organiza as percepções transformando-as em
conhecimentos intelectuais ou conceitos.
Para se explicar melhor, Kant desenvolve os conceitos de juízos analíticos, juízos
sintéticos e juízos sintéticos a priori.
No juízo analítico o predicado, isto é, a qualidade, a característica, faz parte da própria
existência do sujeito; ele não produz conhecimento, apenas descreve o próprio sujeito. Um
exemplo: o triângulo possui três lados . O predicado "três lados" independe da experiência, é
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universal e necessário: é, como diz Kant, a priori. Outros exemplos: "o calor é uma medida de
temperatura dos corpos"; "a água é um elemento".
Quando, porém, o predicado nos dá novas informações sobre o sujeito e permite a
síntese entre ambos, fazemos um juízo sintético. Veja: "o calor dilata os corpos" ou "a água ferve
a 100 graus centígrados". O que acontece nesses enunciados? Os predicados "dilata os corpos"
e "ferve a 100 graus" são informações novas sobre os sujeitos "corpos" e "água"
respectivamente. No juízo sintético, portanto, nota-se uma relação causal entre sujeito e
predicado.
Em resumo, o juízo analítico é uma verdade da razão.O juízo sintético, porém, não pode
ser considerado uma verdade de fato, pois os hábitos associativos de nossa mente (por exemplo:
"a água ferve toda vez que chega aos 100 graus centígrados") foram colocados sob suspeita desde
Hume. E Kant, por sua vez, admite a insuficiência do hábito ― e portanto da experiência – para
se atingir um conhecimento verdadeiro, universal e necessário.
Para superar o impasse, Kant introduz a idéia de juízo sintético a priori, isto é, um tipo
de juízo cuja síntese depende da estrutura universal e necessária da razão e não da variabilidade
das experiências individuais. A noção de causalidade, por exemplo (assim como a de quantidade
e de qualidade, entre outras), não é dada pelos sentidos.
Trata-se, como diz Kant, de uma categoria do entendimento, ou seja, a causalidade não
tem uma existência em si mesma, ela não está na natureza; antes disso, faz parte da estrutura a
priori da razão. Ou, ainda: a noção de causalidade é uma síntese a priori feita pela razão humana
e que permite a elaboração de enunciados universalmente válidos, independente da experiência.
Concluindo: todo conhecimento começa pela experiência, mas resulta, em última
instância, das relações estabelecidas entre as impressões (que possibilitam a experiência) e a
estrutura a priori da razão (que permite a elaboração do juízo sintético a priori). Ou seja, o
conhecimento é uma composição entre a matéria (resultado da experiência) e a forma (estrutura a
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priori da razão). Ao levar seu rigoroso raciocínio às últimas conseqüências, Kant conclui pela
impossibilidade de conhecermos os seres da metafísica, afinal não temos qualquer experiência
sensível sobre eles.
Assim, finaliza Kant, não podemos conhecer a coisa-em-si, não podemos conhecer a
essência, a substância (o noumenon, como diz o filósofo) das coisas. Tudo o que podemos
conhecer são os fenômenos (phainomenon), isto é, aquilo que "aparece" para nós. A realidade,
portanto, não é exterior ao intelecto. Antes o contrário: o mundo dos fenômenos só existe na
medida em que "aparece" para nós e, nesse sentido, participamos de sua construção.
A Filosofia de Kant, com isso, esbarra no idealismo. Ainda que reconheça a importância
da experiência como fornecedora da matéria do conhecimento, é a razão, com sua estrutura a
priori, que constrói a ordem do universo.
3.4 O CONTRATUALISMO DE HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
A modernidade foi, também, um período de intensas transformações políticas. E apesar
das diferenças, às vezes radicais, que diferenciam os pensadores modernos entre si, há elementos
que os une em uma mesma constelação intelectual.
A descoberta do Novo Mundo e das tribos selvagens no início do século XVI, a
revolução científica que amadurece no início do século XVII, a ambição de dominar e controlar
a natureza e construir uma ordem social racional capaz de proteger a vida contra a agressão dos
outros dão o tom do pensamento político moderno, marcado, sobretudo, pela crítica contundente
à idéia de "origem divina do poder dos reis", revelando, também na política, a tendência de
laicização do pensamento.
É igualmente comum entre os pensadores modernos a utilização da alguns conceitos tais
como: direito natural, estado de natureza e contrato social.
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No embate entre as novas exigências científicas e os extremados anseios políticos e
sociais de um mundo em franca transformação, as teorias jurídico-políticas dos séculos XVII e
XVIII apresentam uma tensão peculiar: ora legitimam o absolutismo e o despotismo, ora
defendem as idéias liberais que, mais tarde, conduziriam à Revolução Francesa. É nesse ambiente
que se dá a elaboração do pensamento de Hobbes, Locke e Rousseau.
O inglês Thomas Hobbes (1588-1679) é o autor da célebre frase "o homem é o lobo do
homem".
No estado de natureza, carente de organização política, todo ser humano é
absolutamente livre para fazer aquilo que quiser. Mas a liberdade desmedida, argumenta Hobbes,
é ruim, pois todos farão qualquer coisa que estiver ao seu alcance para satisfazer seus desejos
egoístas e preservar a própria vida sem se preocupar com os demais. Num tal estado de coisas,
um homem será sempre um inimigo em potencial de outro homem. As freqüentes e infindáveis
disputas provocam a guerra de todos contra todos e, assim, o homem se faz o "lobo" ― ou seja, o
predador ― do próprio homem. Ao invés da paz e da segurança, predominam a angústia, o medo
e a insegurança constantes. Ao invés do desenvolvimento da ciência e do progresso, capazes de
fornecer conforto a todos, a vida permanece precária e incerta.
Os seres humanos, continua Hobbes, não são sociáveis por natureza. Entretanto, são
capazes de perceber, pelo uso da razão, que podem encontrar melhores meios de afastar o medo e
assegurar a autopreservação. Quando, com tal objetivo, resolvem criar uma nova ordem, na qual
todos abdicam de sua vontade em favor de um homem ou de uma assembléia de representantes,
estão, na verdade, celebrando um contrato, um pacto, e, assim, criam uma sociabilidade artificial,
mais interessante e eficaz que a vida no precário estado de natureza.
O contrato social de Hobbes resume-se, desse modo, à seguinte fórmula: os súditos
cedem toda sua liberdade ao soberano que, por sua vez, garante paz e segurança a seus súditos.
Conclusão.O poder soberano deve ser:
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a- absoluto (o Estado está "absolvido" de qualquer constrangimento, não podendo ser
contestado);
b- ilimitado (a violência é monopolizada pelo Estado, que pode usá-la a fim de
garantir a segurança dos súditos);
c- e indivisível (cabe ao Estado administrar, legislar e julgar; decidir o que é justo e
injusto).
Todo esse poder estatal resulta da autoridade que lhe foi consentida pelo súdito.
Frise-se, por fim, que Hobbes não é defensor do absolutismo real, mas de um Estado
forte que pode ser tanto monárquico quanto constituído por uma assembléia. É significativo,
nesse sentido, o nome da principal obra política de Hobbes: Leviatã.
Apesar do viés absolutista da filosofia de Hobbes, já é possível notar em seu
pensamento alguns valores liberais que prevalecerão daí em diante: a valorização do
individualismo, a garantia da propriedade privada e a preservação da paz e da segurança como
atributos indispensáveis à realização dos negócios burgueses. Os anseios liberais irão, finalmente, se mostrar com toda força no pensamento de outro
inglês: John Locke (1632-1704). Suas idéias políticas contribuem com o amadurecimento das
revoluções liberais ocorridas na Europa e nas Américas.
Ao contrário de Hobbes, Locke não descreve o estado de natureza como um ambiente
de egoísmo e guerra generalizada. De acordo com ele, os seres humanos são por natureza livres,
iguais, independentes e sobretudo racionais. Liberdade não significa, em hipótese alguma,
liberdade de prejudicar os outros. A agressão, antes de tudo, tem um caráter insensato e
irracional. O agressor é, portanto, um criminoso que viola leis da natureza humana e, como tal,
merece ser punido.
O problema do estado de natureza, contudo, é que não há nele nenhuma instância de
poder acima dos próprios indivíduos. Cada um é juiz em causa própria. Os riscos das paixões e da
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parcialidade são muito grandes e podem desestabilizar as relações, produzindo conflitos. O
contrato social surge, assim, como a reunião de indivíduos cujo objetivo é garantir a vida, a
propriedade e a liberdade, proporcionando tranqüilidade e segurança a todos.
A constituição de um corpo político é uma estratégia para melhor preservação desses
direitos.
O poder, então, é delegado por consentimento a uma assembléia ou soberano. Do
mesmo modo que o poder foi delegado por consentimento, poderá ser retirado daqueles que não
governam no interesse da maioria ou que violam a liberdade e os direitos dos indivíduos
(novamente Locke diverge de Hobbes).
O contrato preconizado por Locke é, portanto, um pacto de consentimento e não de
submissão. Os direitos naturais do homem, argumenta, não desaparecem com a criação do
Estado. Antes disso, justificam a sua criação e limitam o seu poder.
Enquanto Hobbes defende a soberania absoluta e indivisível, para Locke o legislativo é
o poder supremo, devendo permanecer acima do poder executivo (observe que até esse momento
não se desenvolveu ainda a teoria da divisão dos três poderes, o que ocorrerá somente no século
XVIII com Montesquieu).
O suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), finalmente, defenderá a soberania
inalienável do povo.
O estado de natureza imaginado por Rousseau é diferente daquele imaginado por
Hobbes e mesmo por Locke. Segundo o pensador suíço, os seres humanos, no estado de natureza,
são bons, felizes, vivem bem e sadios, cuidando de sua própria subsistência, garantida por uma
natureza pródiga.
Esse estado ideal acabou no momento em que surgiu a propriedade privada e, com ela, a
desigualdade, a diferenciação entre rico e pobre, poderoso e fraco, senhor e escravo: "o
verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se
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de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo", lamenta
Rousseau na segunda parte de seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens.
O indivíduo que surge da desigualdade é corrompido pelo poder e esmagado pela
violência: "O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos
demais não deixa de ser mais escravo do que eles", sentencia no capítulo I de sua mais importante
obra: Do contrato social.
Um contrato social como esse, argumenta Rousseau, é na verdade um falso contrato,
cujo objetivo é colocar as pessoas sob grilhões. O que Rousseau pretende é a elaboração de um
contrato verdadeiro e legítimo, originado pelo consentimento do povo.
Enquanto Hobbes defende a alienação da liberdade em troca de segurança (e nesse
sentido é um defensor do fortalecimento do Estado), e Locke sustenta, com outras palavras, que a
liberdade de um termina onde começa a do outro e que o Estado deve respeitar as liberdades
individuais (e nesse sentido é um defensor do economia burguesa), Rousseau propõe outra noção
de liberdade que dê conta de garantir o exercício democrático.
A liberdade, continua, só pode ser integralmente vivenciada em uma sociedade que
garanta a participação política de todos os cidadãos por meio de assembléias freqüentes (trata-se
daquilo que, mais tarde, viria a ser chamado de democracia direta ou participativa).
O povo, em sua soberania ativa, é considerado cidadão. Seu papel é redigir, votar e
promulgar leis. Em sua soberania passiva, o povo é considerado súdito. Seu papel: submeter-se às
leis que ele próprio redigiu.
Com isso, o indivíduo que adere ao contrato social pode abdicar sem medo de sua
liberdade, afinal, obedecer como súdito à lei que ele mesmo prescreveu na qualidade de cidadão
nada mais é do que preservar a própria liberdade.
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Como podemos, no entanto, garantir que essa lei promulgada pela povo é adequada e,
ainda por cima, preserva a liberdade do indivíduo? Para resolver o problema Rousseau distingue
entre pessoa pública (cidadão ou súdito) e pessoa privada.
A pessoa privada tem uma vontade individual, geralmente ligada a interesses egoístas e
à gestão de bens particulares. Quando uma decisão política basear-se na soma de interesses
individuais, temos a expressão da vontade de todos.
Mas cada indivíduo particular também pertence ao espaço público, ou seja, faz parte de
um corpo coletivo com interesses comuns e cuja vontade só pode ser expressa pela vontade geral.
Nem sempre o interesse privado coincide com o público. Aliás, aquilo que beneficia uma
pessoa individual pode prejudicar o coletivo. Por isso, a vontade de todos não deve ser
confundida com a vontade geral.
A beleza do pensamento de Rousseau é também a sua fragilidade: é sempre possível a
confluência de interesses particulares se sobrepor ao interesse comum, fazendo-se predominar o
interesse da maioria. Em todo caso, Rousseau aposta na autonomia e liberdade do ser humano,
entendida como a superação da arbitrariedade e submissão a uma lei erguida acima de si, mas por
si mesmo.
3.5. O POSITIVISMO DE COMTE
O francês Augusto Comte (1798-1857) foi o inaugurador do positivismo filosófico. De
acordo com seu sistema, o conhecimento deve basear-se exclusivamente nos fatos e nas ciências,
renunciando à metafísica.
Cabe à razão descobrir as relações necessárias entre os fenômenos naturais e formular as
leis invariáveis que os regem.A grande novidade da filosofia comteana, porém, é a pretensão de
estudar os fenômenos humanos com o mesmo rigor que se estudam os fenômenos da natureza. De
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início, Comte afirma que a humanidade passou por três estados históricos diferentes: o teológico,
o metafísico e o positivo.
No estado teológico, os fenômenos físicos são explicados de um modo sobrenatural,
recorrendo-se à tradição mítico-religiosa. Nas sociedades tribais, por exemplo, a queda dos
corpos é explicada pela ação dos deuses (se quiser, veja aqui um exemplo concreto retirado da
mitologia grega).
No estado metafísico, os seres sobrenaturais são substituídos por forças abstratas e
noções absolutas que, todavia, conservam muito do pensamento supra-sensível. Aristóteles, por
exemplo, procura explicar o porquê da queda dos corpos; de acordo com sua teoria não são os
deuses, mas sim a própria "essência pesada" dos corpos que os impele para baixo, para o seu
"lugar natural".
Por fim, o estado positivo é o estado da maturidade humana e decorre do
desenvolvimento das ciências: as ilusões são superadas pelo conhecimento das relações causais e
invariáveis dos fatos, cujas leis são descobertas pela observação e raciocínio metódicos. Galileu
não indaga mais o porquê dos fenômenos (não procura as suas causas primeiras, o "Motor
Imóvel" de Aristóteles), mas contenta-se em descrever como o fenômeno ocorre. O termo
positivo designa, nesse contexto, o real em oposição à ilusão, a certeza em oposição ao incerto, o
preciso em oposição ao vago.
Comte pretende, também, encontrar uma ordem social permanente que apresente a
mesma certeza e invariabilidade encontradas na ordem natural. Com esse objetivo, elabora uma
classificação cronológica e conseqüentemente hierárquica daquilo que considera uma evolução
científica e, portanto, humana. Em primeiro lugar, reconhece na Matemática uma ciência à parte e
uma espécie de instrumento de todas as outras. Em seguida, distingue cinco ciências, partindo da
mais antiga e geral até a mais nova e complexa: Astronomia, Física, Química, Fisiologia
(Biologia) e Sociologia (que Comte chama sugestivamente de "física social").
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A Sociologia, da qual Comte se diz fundador, é por ele considerada o poder dominante
em relação à totalidade do saber científico. Sua pretensão sociológica, afinal, não é nada modesta:
ao tomar os modelos da Biologia para explicar a sociedade como um organismo, o pai do
positivismo quer descobrir as leis necessárias capazes de garantir o "progresso dentro da ordem".
A ordem social procurada por Comte é uma ordem invariável, equivalente à ordem
natural.
O sistema filosófico concebido por Comte tem uma finalidade política: organizar a
sociedade com base na metodologia das ciências positivas, a fim de garantir o desenvolvimento
da sociedade industrial sem a turbulência das revoluções.
No Brasil, o positivismo exerceu considerável influência sobre líderes republicanos que
se formaram na Escola Politécnica de Paris, devendo-se a eles o lema comteano reproduzido em
nossa bandeira: Ordem e Progresso.
3.6 O MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO DE MARX
Karl Marx (1818-1883) radicaliza a crítica a todos os filósofos que lhe são anteriores,
acusando-os de apenas interpretar o mundo quando o mais importante seria transformá-lo. A
busca de uma verdade objetiva, segundo Marx, não tem finalidade teórica, mas prática. Isso,
contudo, não significa que Marx dispensou a reflexão teórica. Antes o contrário: sua obra não
deixa de ser inspirada pela tradição moderna da filosofia crítica.
Do mesmo modo que Hegel criticou Kant, que havia criticado os racionalistas e os
empiristas, Marx também critica seu antecessor Hegel, considerando-o insuficientemente crítico.
Um de seus principais objetivos ― combater as ilusões da consciência e libertar o homem ― não
é, afinal, nenhuma novidade para o pensamento moderno. Contudo, se a crítica que Marx faz a
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Hegel situa-o, por um lado, na tradição moderna, por outro demonstra seu caráter inovador, capaz
de alterar ainda mais os rumos dessa tradição.
A teoria hegeliana do desenvolvimento do Espírito humano não consegue ― denuncia
Marx ― explicar as contradições da vida social. A principal delas: o avanço técnico, que
representa o aumento do poder humano sobre a natureza, gerando enriquecimento e progresso, se
faz acompanhar pelo crescente empobrecimento da classe operária.
Marx, auxiliado por seu inseparável colaborador Friedrich Engels (1820-1895), elabora
assim uma crítica ao idealismo hegeliano. A interpretação do processo histórico e da formação da
consciência proposta por Hegel restringe-se ao plano das idéias e representações, do saber e da
cultura, e não leva em conta as bases materiais da sociedade em que essas idéias e este saber são
produzidos, e pelos quais a consciência individual é formada.
Marx e Engels invertem esse idealismo e elegem as bases materiais da sociedade como
ponto de partida da sua filosofia, que chamam de materialismo dialético. De acordo com o
próprio Engels: "a dialética de Hegel foi colocada com a cabeça para cima ou, dizendo melhor,
ela, que se tinha apoiado exclusivamente sobre sua cabeça, foi de novo reposta sobre seus pés".
Para a longa tradição idealista é a razão quem constrói o tecido do real, ou seja, o
mundo material é visto como a encarnação da consciência. Para os materialistas, ao contrário, o
mundo material é anterior à consciência e esta é um reflexo, uma derivação da matéria. Todavia,
o materialismo dialético não considera a consciência um receptáculo passivo que funciona a
partir do estímulo da matéria. A consciência humana, ainda que determinada pelas suas condições
materiais e históricas, é capaz de discernir aquilo que a determina e de agir sobre o mundo,
possibilitando inclusive a ação revolucionária.
A partir da noção de materialismo dialético, Marx formula a sua teoria do materialismo
histórico. Como o próprio nome já indica, a história passa a ser explicada por fatores materiais.
Muito mais importante do que a ação dos "grandes vultos da história" (de Alexandre, o grande, a
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Napoleão Bonaparte e assim por diante), é a forma pela qual uma sociedade reproduz suas
condições de existência.
Isso quer dizer que as transformações sociais decorrem da luta de classes, ou seja, das
tensões e contradições dialéticas surgidas dos processos econômicos e técnicos que estruturam o
modo de produção social, isto é, a maneira pela qual as forças produtivas se organizam em
determinadas relações de produção num dado momento histórico.
Das contradições e conflitos que opõem essas duas classes, surge uma nova figura: o
burguês, habitante dos burgos construídos pelos servos que se dedicavam ao comércio e ao
artesanato e que, aos poucos, foram comprando sua liberdade pessoal e das cidades.
O modo de produção capitalista surge, assim, das ruínas do sistema feudal, que opôs os
senhores (tese) aos servos (antítese), fazendo nascer o burguês (síntese). Uma vez constituído o
novo modo de produção, o burguês, dono do capital, passa a ser a tese e a ele se opõe uma nova
antítese: o proletariado, que nada possui, a não ser a sua força de trabalho, vendida ao capitalista
em troca de sua subsistência.
Ainda de acordo com Marx, podemos dizer que a sociedade se estrutura em dois níveis.
O primeiro deles é a infra-estrutura, ou seja, a base econômica que engloba as relações do ser
humano com a natureza a fim de produzir a própria subsistência e as relações entre os indivíduos
e os objetos de trabalho (isto é, as relações entre proprietários e não-proprietários).
O segundo nível é a superestrutura, constituída pela estrutura jurídico-política
―representada pelo Estado e pelo direito; e pela estrutura ideológica ― referente às formas da
consciência social como religião, leis, educação, filosofia, ciência, arte, direito, moral etc.
A moral e o direito, por exemplo, como manifestações da superestrutura, são
determinados pela alterações da infra-estrutura (e não o contrário), decorrentes da passagem de
um sistema econômico para outro. Só assim é possível compreender que a moral medieval
valorizava a coragem e a ociosidade da nobreza guerreira e o direito, num mundo cuja riqueza era
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representada pela posse de terras, considerava ilegal o empréstimo a juros. Já na Idade Moderna,
ao contrário, o trabalho é moralmente valorizado e a ociosidade condenada; do mesmo modo, a
cobrança de empréstimo a juros passa a ser uma prática legal e moralmente aceita, afinal a
riqueza já não é mais medida pela posse de terras e sim pelo acúmulo de capital.
Para entender a sociedade, afirma Marx, é mais importante estudar a forma como os
indivíduos produzem os bens materiais necessários à subsistência do que saber como pensam, o
que dizem e imaginam. O pensamento, afinal, como manifestação da superestrutura, é
determinado pelas bases econômicas, isto é, pela infra-estrutura. Não podemos esquecer, contudo,
que o ser humano, ao tomar conhecimento das contradições sociais, pode agir ativamente sobre
aquilo que o determina. Essa ação transformadora da realidade é chamada de práxis.
No entanto, continua Marx, perceber as condições materiais e históricas que influem na
determinação da consciência é um processo difícil, pois o conhecimento muitas vezes se constrói
de modo distorcido e ilusório ou, se quisermos, ideológico. Isso significa que as concepções
éticas, filosóficas, políticas, estéticas e religiosas da burguesia são estendidas ao proletariado
como se fossem valores naturais e universais, o que acaba por impedir que a classe submetida
desenvolva sua própria visão de mundo e lute por sua autonomia.
Por que é tão difícil assim que o dominado perceba a sua condição subalterna, aceitando
passivamente como se fossem seus os valores que, na verdade, são daqueles que exploram sua
força de trabalho? Segundo Marx, isso é resultado da alienação e da mais-valia.
A mais-valia é, em resumo, o trabalho excedente e não pago ao operário.
Como isso é possível?
É simples: o trabalhador vende ao capitalista a sua força de trabalho e produz certa
quantidade de mercadorias. Em troca, recebe um salário suficiente para garantir sua subsistência.
O capitalista, por sua vez, vende a mercadoria por um preço superior ao salário pago,
permanecendo com a diferença daí obtida, isto é, o lucro.
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Todavia, com o aumento da capacidade de produção (geralmente obtida com a
implantação de novas tecnologias), o operário passa a produzir mais mercadorias no mesmo
período. Seu salário, entretanto, continua o mesmo, enquanto o excedente do capitalista aumenta.
Trata-se, afirma Marx, de uma forma de exploração camuflada de lucro.
A alienação, por sua vez, é resultado desse processo de venda da força de trabalho: o
operário não mais projeta ou concebe aquilo que executa (exige-se que ele faça e não que pense);
o aceleramento da produção provoca a mecanização do trabalho, executado cada vez mais por
partes; a cadência do trabalho é ditada exteriormente, não obedecendo ao ritmo natural do corpo.
Em suma, o produto que resulta de esforço do operário não mais lhe pertence e adquire uma
existência independente. A essa existência independente Marx chama de fetichismo da
mercadoria, ou seja, a mercadoria se "anima", se "humaniza", obrigando o indivíduo a sucumbir
às forças muitas vezes perversas da lei do mercado, que propicia ciclos de crises, guerras e
desemprego.
Ao fetichismo da mercadoria corresponde simetricamente a reificação humana, isto é, o
ser humano se "coisifica" (res, em latim, significa "coisa"), se desumaniza, se aliena.
O que faz com que a reificação não seja percebida é a ideologia: ela camufla a luta de
classes, representando o corpo social como uno e harmônico, e dissimula a real função do Estado,
que não é representar o bem comum, mas proteger os interesses da classe dominante.
Se a tradição jusnaturalista da modernidade viu no Estado a condição de sociabilidade
humana e Hegel defendeu-o como o "deus terreno", Marx, por seu turno, considerou-o um mal a
ser extirpado por meio da revolução. Para tanto, a classe operária deveria organizar um partido
revolucionário, capaz de destruir o Estado burguês e criar um Estado provisório a fim de suprimir
a propriedade privada dos meios de produção.
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Num primeiro momento, chamado de socialismo, se estabeleceria a ditadura do
proletariado, que supõe, ainda, a existência do aparelho estatal, da burocracia, do aparelho
repressivo e jurídico, a fim de evitar a contra-revolução.
Num segundo momento, chamado de comunismo, haveria a supressão da luta de classes
e conseqüentemente o desaparecimento do Estado e do direito, levando a humanidade à "era da
abundância".
3.7 NIETZSCHE: A TRANSVALORAÇÃO DOS VALORES
Os conceitos marxistas de ideologia e alienação denunciam as ilusões do conhecimento:
as "verdades" da classe dominante, impostas como universais, são antes o produto das condições
materiais de produção. O fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), ao criar, por sua
vez, a hipótese do inconsciente coloca em xeque a crença racionalista segundo a qual a
consciência humana possui controle sobre os desejos: antes disso, o indivíduo reage às forças
conflitantes
de suas pulsões sem conhecer os determinantes de sua ação (o papel da psicanálise seria
ajudar o indivíduo a tomar consciência de seus desejos reprimidos, auxiliando-o na superação do
comportamento neurótico).
A filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900) não se confunde com o pensamento de
Marx ou Freud, mas compartilha com eles algo crucial: a destruição - a golpes de martelo, como
dirá o próprio Nietzsche - da ilusão da certeza. É, afinal, a crise da racionalidade moderna que se
anuncia na obra desses pensadores.
Nietzsche coloca-se contra toda filosofia sistemática, de Platão a Hegel. Aliás, ele
subverte a noção tradicional segundo a qual a filosofia teria surgido com a superação do
pensamento mítico. Ao estudar a transição do período arcaico ao clássico da Grécia Antiga,
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Nietzsche nota a existência de dois princípios contraditórios que, no entanto, se
contrabalançavam e se completavam mútua e dialeticamente. Assim, ao "espírito apolíneo"
contrapunha-se o "espírito dionisíaco", ou seja, no lado oposto à racionalidade ordeira
encontrava-se o excesso festivo e a embriaguez.
O objetivo de Nietzsche?
Suprimir a base, a partir do qual os valores da tradição cristã foram erigidos, demolir
seu fundamento metafísico (que nada prova) e demonstrar, de um lado, a historicidade de valores
que se fizeram passar por universais e, de outro, como sua construção, afinal, não é divina, mas
humana, demasiado humana. E mais do que isso: pretende demonstrar como os valores da
tradição socrático-cristã são niilistas, pois depreciam a vida e desprezam o corpo (Saiba Mais). A
alma, continua Nietzsche, foi forjada "para arruinar o corpo". O "mundo verdadeiro" da
metafísica é o "atentado mais perigoso contra a vida", é a "máxima objeção contra a existência".
É preciso, então, suprimir o além, restabelecer o equilíbrio entre os valores vitais
("espírito dionisíaco") e a razão ("espírito apolíneo"), combater e inverter os valores da tradição
cristã para que surjam outros, afirmativos da vida. A essa empreitada, Nietzsche chama "a
transvalorização de todos os valores".
A "morte de Deus" presente no pensamento nietzschiano, significa, enfim, a ruptura
com o modelo de pensamento metafísico, baseado na dicotomia entre aparência e realidade,
falsidade e verdade, bem e mal. Todo conhecimento, portanto, é resultado de uma construção
resultante também de interesses e condicionamentos subjetivos, sujeitos a impulsos e anseios.
O conhecimento, desse modo, resume-se à interpretação, à atribuição de sentidos, sem
jamais constituir-se em uma explicação definitiva da realidade. Os sentidos, por sua vez, são
atribuídos a partir de uma escala de valores que se quer promover. O papel da filosofia é, pois,
interpretar a história da formação dos valores, identificando os diferentes processos de formação
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de um texto, observando suas lacunas e seus espaços em branco, desmascarando a pretensa
universalidade de "verdades" que, no fundo, são historicamente construídas.
Para Nietzsche a verdade é: "Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e
retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas,
canônicas e obrigatórias: verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são."
Sintetizando, Nietzsche ao colocar em questão o valor dos valores, procura demonstrar
que a pretensa universalidade dos valores da tradição socrático-cristã não passam de uma
construção histórica cujos frutos são nocivos à vida. A transvaloração de todos os valores é,
finalmente, a coragem de erigir novos e humanos valores, voltados para o florescimento e
intensificação da vida humana.
3.8 PIERRE LÉVY : COMUNICAÇÃO EM REVOLUÇÃO
Pierre Lévy nasceu numa família judaica. Fez mestrado em História da Ciência e
doutorado em Sociologia e Ciência da Informação e da Comunicação, na Universidade de
Sorbonne, França. Trabalha desde 2002 como titular da cadeira de pesquisa em inteligência
coletiva na Universidade de Ottawa, Canadá. É membro da Sociedade Real do Canadá (Academia
Canadense de Ciências e Humanidades).
Em seu livro A Revolução Contemporânea em matéria de Comunicação, Lévy faz uma
análise da evolução da humanidade, abordando o desenvolvimento da Internet e a digitalização da
informação.
De acordo com Lévy, antes da popularização da Iinternet, o espaço público de
comunicação era controlado através de intermediários institucionais que preenchiam uma função
de filtragem entre os autores e consumidores de informação. Hoje, com a Internet quase todo
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mundo pode publicar um texto sem passar por uma editora nem pela redação de um jornal. No
entanto, essa liberdade de publicações que a Internet oferece, acarreta problema de veracidade,
de garantia quanto à qualidade da informação. A cada minuto, novas pessoas assinam a Internet,
novos computadores se interconectam, novas informações são injetadas na rede. Quanto mais o
ciberespaço se estende, mais universal se torna. Novas maneiras de pensar e de conviver estão
sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da informática.
Segundo o filósofo, “as redes de computadores carregam uma grande quantidade de
tecnologias intelectuais que aumentam e modificam a maioria das nossas capacidades
cognitivas”, ou seja, o computador é um instrumento de troca, de produção e de estocagem de
informações, tornando-se desta forma, um instrumento de colaboração. A televisão, ao contrário,
para Lévy, é um meio de comunicação passivo, pois não proporciona ao receptor nem troca de
informação, nem interatividade, pois ao assistir uma programação na TV, o receptor apenas
absorve as informações, mas não consegue interagir com o emissor.
Lévy afirma ainda que “a comunicação interativa e coletiva é a principal atração do
ciberespaço”. Isso ocorre porque a Internet é um instrumento de desenvolvimento social. Ela
possibilita a partilha da memória, da percepção, da imaginação. Isso resulta na aprendizagem
coletiva e na troca de conhecimentos entre os grupos.
Pierre Lévy é um otimista, no bom sentido. É um otimista que tenta vislumbrar no mundo
atual, mesmo com todas as suas desigualdades e descaminhos, possibilidades para um
desenvolvimento, para uma “evolução” daquilo que ele chama de “inteligência coletiva”. Seria
difícil para Lévy falar disto algum tempo atrás: o “motor” da sua teoria são as redes
computacionais de informação – o que ele batizou, desde cedo, como sendo a base para a
cibercultura, um novo patamar de relacionamento humano, num espaço virtualizado,
mediatizado pela Internet. Lévy nutre uma especial admiração pela concepção filosófica de um
jesuíta e paleontólogo francês (ou seja, seu “conterrâneo”), Pierre Teilhard de Chardin (1881-
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1955). Segundo a tese deste filósofo e teólogo, a Humanidade caminha no sentido de uma
evolução “universal”, isto é, faz parte de um processo que se dá na natureza, no mundo, em todo
lugar. Impressionado pela visão darwiniana do século XIX, Theilard de Chardin acredita que o
homem segue num caminho de ascensão; superando obstáculos, vencendo seus próprios limites, o
homem evolui na direção de uma realização cada vez mais plena, mais completa. Superados estes
obstáculos, estes limites, o homem alcança a compreensão de sua posição no Todo – esta
totalidade é sua própria existência, convivência e interdependência com seus semelhantes, onde
todos se complementam mutuamente, formando vínculos de solidariedade quase que por um
processo “natural”.
Vencidas as barreiras que impedem os homens de formar uma comunidade plena (real em
seu significado mais estrito), o homem passa a entender que não pode continuar a existir sem a
cooperação e o apoio dos seus iguais; lidar com a vida e seus empecilhos passará a ser uma tarefa
mais próspera – e mais humana – na medida em que unir esforços com os demais, num trabalho
coletivo em prol de objetivos comuns. Esta ascensão à esfera do “espírito humano”, do
pensamento, do compartilhamento de idéias, de mentes (nous), resultará numa novíssima etapa de
convívio e aprendizado para a Humanidade: marcará o início do estágio “evolutivo” da Noosfera,
da plenitude de uma consciência solidária, de uma inteligência coletiva.
Esta idéia impressionou muito Pierre Lévy. Tanto que, na maioria de seus livros, esta
concepção perpassa boa parte de seus argumentos, tendo ficado ainda mais evidente em uma de
suas últimas publicações, “A Conexão Planetária”1 (lançada no Brasil pela Editora 34). E o
fenômeno da Internet reforça sua disposição para aceitar a chance de realização de uma Noosfera,
já a partir do momento atual. Isto porque a rede mundial de computadores traz em si o potencial
para a integração do pensamento humano; a cibercultura tem demonstrado a capacidade que o
homem tem de reformular sua visão de mundo, de compreender o outro (seu semelhante) como
1 Lançada no Brasil pela Editora 34.
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uma peça fundamental para a sua própria existência. Por isso proliferam-se pela Grande Rede
grupos de discussão (news groups), salas de bate-papo virtual (chats), fóruns de assuntos
específicos, listas de contato para troca de mensagens instantâneas in real-time (como o software
ICQ), entre outros. Vários aspectos da sociabilidade humana estão assimilando, aproveitando os
recursos das tecnologias de informação e compondo um novo cenário de relacionamentos: as
iniciativas nas áreas jornalística, cultural, educacional, comercial, política e artística são
indicativos, segundo Lévy, de que “algo realmente novo” começa a acontecer.
Esta tese tem o seu charme, o seu atrativo; e é um verdadeiro desafio tentar entendê-la à
luz dos acontecimentos recentes. A Internet nasceu como uma rede de comunicações livre e
autárquica, preparada desde sua gênese para não se submeter a controle estatal ou de grupos
particulares. As pessoas – pelo menos aquelas que têm acesso aos equipamentos e recursos
necessários – podem usufruir nos dias de hoje de uma liberdade para se fazer ler e ouvir nunca
antes experimentada. Mesmo em países onde o controle estatal da informação ainda é um
obstáculo marcante (como na China), podemos perceber que as fronteiras geopolíticas, aos
poucos, tornam-se translúcidas, e em muitos casos inexistentes, não mais obliterando o potencial
humano para comunicar idéias, sentimentos e anseios. Este “potencial” que está latente nas
mentes humanas é o que inquieta e atrai a atenção de Lévy. Estes elementos constitutivos do
“espírito humano” só precisam, segundo o filósofo, serem “postos em ação”, em movimento, para
que um verdadeiro turbilhão social, cultural e político se iniciem, redefinindo a face das relações
humanas.
Este caminho na direção da Noosfera conta com o suporte, com a base material (e por que
não dizer, virtual?) das tecnologias de informação contemporâneas; graças ao fenômeno da
Internet, hoje as pessoas podem compartilhar saberes, conhecimentos gerais ou especializados,
experiências de vida, relatos das condições sociais e denúncias de abusos institucionais em
diversos países e regiões, atraindo a atenção do mundo para os problemas locais, formando redes
61
de cooperação, de solidariedade, que se mobilizam, se organizam e agendam compromissos no
“ambiente etéreo” da Grande Rede. Esta compreensão “totalizante”, isto é, de um Todo que se
realiza no âmbito de um espaço virtual que só existe enquanto códigos binários que transitam na
velocidade do pulso eletrônico ao redor do planeta, coloca uma nova perspectiva para a ação
humana, para as relações que modelam seu ser: permite pensar uma nova “condição humana”,
determinada por uma existência de “convergência”, isto é, por um entendimento de que todos
fazem parte de um mesmo mundo.
Reportando-se ao filósofo grego Heráclito ― que dizia que “Tudo é Um” ―, Lévy tenta
nos mostrar que seu conceito de “inteligência coletiva” é algo mais do que o surgimento de um
“grande cérebro virtual” que resume o pensamento da Humanidade; não é um resumo, uma
redução ou um limite, mas justamente a chance de ir além dos limites, a partir de um
compartilhamento de saberes produzidos pela Humanidade como um todo. A Internet seria, nesse
sentido, o lócus de uma nova “realidade”; o equivalente pós-moderno do “Mundo das Idéias” de
Platão, de um jeito que dispensa a metafísica do velho sábio da Academia. A integração de
mentes neste novo nível de relacionamento humano (Noosfera) permitiria aproximar povos
separados por séculos em função de guerras, conflitos e concepções de mundo divergentes.
Apesar de ser uma bela perspectiva para o futuro da Humanidade, esta tese não foge à
regra do Iluminismo do século XIX, que em tudo via o alcance máximo da razão humana, da
realização de um “ideal libertário e comunitário” que por muito tempo marcou a imaginação dos
povos do ocidente. Não que a concepção de uma Noosfera seja insuficiente ou descartável; no
entanto, devemos antes olhar para o mundo, não nos atendo apenas a uma de suas características
mais recentes (o fenômeno das redes digitais de informação), mas buscando a “totalidade
concreta”, palpável, verificável e constatável. Em uma recente entrevista, Eric Hobsbawn,
historiador inglês e autor de obras de referência como “A Era dos Extremos”, nos alerta para o
perigo de um “excessivo otimismo” em relação ao mundo: não significa que devemos nos afastar
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da missão de melhorar o mundo em que vivemos, mas sim que devemos compreender cada vez
mais suas contradições, seus pontos de divergência, para só então aventarmos uma possibilidade
de mudá-lo concretamente.
Nesse ponto retornamos à idéia lá do início, a que afirmava ser Pierre Lévy, um otimista.
Mas vale lembrar que se trata de um otimista “no bom sentido”. Lévy compreende perfeitamente
o mundo em que vive, ou seja, está ciente de seus problemas e dificuldades; sabe muito bem que
as relações de poder em nível global ainda é um obstáculo fortíssimo à realização, mesmo que em
estado embrionário, de uma Noosfera. Porém não são os aspectos negativos que importam a
Lévy, e sim as potencialidades latentes, os caminhos possíveis para uma mudança de paradigma
civilizacional ― do tipo que, no longo prazo, venha despertar nos homens o desejo de viverem
juntos, em harmonia e com sabedoria.
A base material que permitiria a instalação de um cenário assim já está disponível: são os
computadores e a Internet, e o desenvolvimento de novos métodos e novas tecnologias de
comunicação à distância vão, cada vez mais, ampliar o espectro de soluções para a integração dos
povos do planeta. Além disso, a partir da base já instalada, inúmeras iniciativas vêm
demonstrando a capacidade de organização e difusão de idéias e propostas, integrando o mundo
real com o “virtual” ― naquilo que Manuel Castells chama de “Cultura da Virtualidade Real” ―
a fim de colaborar para mudar, para melhorar a vida das pessoas (exemplos disto foram reunidos
por Lévy em seu mais recente livro, “Ciberdemocracia”. As novas gerações que vierem a crescer
nesse ambiente de “virtualidade real” aprenderão a pensar o mundo como sendo uma gigantesca
“praça” de relações públicas, interessando-se cada vez mais pelas questões urgentes da vida
social, não apenas no que diz respeito a si mesmas, mas a todos no planeta.
Mas tudo isto, segundo o próprio Pierre Lévy, é apenas o começo. O acesso à educação
de qualidade nos países periféricos ainda deixa a desejar; o nível de conscientização e interesse
pelas questões públicas ainda precisa melhorar. No entanto, Lévy vislumbra no horizonte da
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“sociedade em rede” o potencial para uma mudança importante que repercutirá por todo o planeta
– seria o início desta tão alardeada “conexão planetária”, o pano de fundo para a emergência de
uma “inteligência coletiva”? Num sentido ainda mais abstrato, poderíamos estar assistindo, já em
nossa época, a ascensão da Humanidade a um patamar “evolucionário” mais nobre, rumo à
Noosfera? Nem Lévy pode afirmar isso categoricamente; mas que ele deseja isso, é evidente. E
já é um bom começo.
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