270

António Manuel Hespanha - A Política Perdida - Ordem e Governo antes da Modernidade.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 1

  • Antnio Manuel Hespanha2

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 3

    A POLTICA PERDIDA

    Ordem e Governo antes da Modernidade

  • Antnio Manuel Hespanha4

    CONSELHO EDITORIAL DA COLEO BIBLIOTECA DE HISTRIA DO DIREITO:

    Prof. Andrei Koerner (UNICAMP) Prof. Manuel Martnez Neira (UniversidadProf. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC) Carlos III de Madrid)Prof. Airton Cerqueira Leite Seelaender (UFSC) Prof. Massimo Meccarelli (UniversitProf. Arno Dal Ri Jnior (UFSC) degli Studi di Macerata)Prof. Gilberto Bercovici (USP e Mackenzie) Prof. Paolo Cappellini (Universit degliProf. Jos Ramn Narvez (Universidad Studi di Firenze)Nacional Autonoma do Mxico) Prof. Samuel Rodrigues Barbosa (USP)Prof. Joseli Nunes Mendona (UFPR) Prof. Sergio Said Staut Jr. (UFPR)Prof. Luis Fernando Lopes Pereira (UFPR) Prof. Silvia Hunold Lara (UNICAMP)

    Coordenador:Prof. Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR)

    ISBN: 978-85-362-2477-0

    Av. Munhoz da Rocha, 143 Juvev Fone: (41) 3352-3900Fax: (41) 3252-1311 CEP: 80.030-475 Curitiba Paran Brasil

    Editor: Jos Ernani de Carvalho Pacheco

    ?????????????????????? ????????????????????????????????????

    ?????????????????????????????????????????? ?????????./ Curitiba: Juru, 2009.

    ??????????

    CDD ????????CDU ????????

    Visite nossos sites na internet: www.jurua.com.brwww.editorialjurua.com

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 5

    Antnio Manuel HespanhaProfessor de Direito da Universidadade Nova de Lisboa - Portugal

    A POLTICA PERDIDA

    Ordem e Governo antes da Modernidade

    CuritibaJuru Editora

    2010

  • Antnio Manuel Hespanha6

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 7

    PREFCIO

    H mais de quinze anos encontrmo-nos, eu e Bartolom Clavero, umquerido companheiro de armas de algumas batalhas historiogrficas, num co-lquio sobre razo de Estado, organizado pelo Istituto de Studi Filosofici deNpoles (lIstituto dellAvvocato Marotta, como era geralmente conhecidoentre os taxistas que me levavam e traziam). Logo na conversa inicial, cheg-mos concluso, com divertida surpresa, que amos tratar do mesmo tema. Nosendo ambos nem peritos nem apaixonados pela razo de Estado, tnhamosambos resolvido virar o tema do avesso. Eu levava um textozinho intitulado:Les autres raisons de la politique. L'conomie de la grce1; Bartolom umacomunicao que era j o embrio do seu livro, hoje um clssico Antidora.Antropologa catlica de la economa moderna (1991)2. Dois anos depois, Pipoagenciou a edio deste e de outros textos em que era glosado, a vrios prop-sitos, o mesmo tpico do carcter pluralista da ordem jurdica do Antigo Regi-me num livro a que chammos La gracia del derecho3, e que teve a sorte de terbonne presse4, estando hoje esgotado h anos. A linha de reflexo histrica que aabri frutificou em desenvolvimentos, mas tambm em perplexidades e crticas5.

    1 Depois publicado em Pierangelo Schiera (a cura di), Ragion di Stato e ragione dello Stato

    (secoli XV- XVII), Napoli: Istituto Italiano di Studi Filosofici, 1996. p. 38-67.2 Milano. Giuffr, 1991.3 Madrid. Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 3514 La gracia del derecho. Economa de la Cultura en la Edad Moderna. Madrid: Centro de

    Estudios Constitucionales, 1993. p. 351 (recenses: Journal of modern history, 67(1995), p.758-759 (J. Kirschner). Comentrios: Jos Ignacio Lacasta Zabalza, Antiformalismo jurdicoFin de siglo: su gracia e inconvenientes. Contraponto jurdico y moderadamente formalistaal ideario plenamente antiformalista de Antonio Hespanha, Ius fugit, 3/4 (1994-1995),437-456; Carlos Petit, Estado de Dios, gracia de Hespanha, Quaderni fiorentini per la st. delpensiero giuridico moderno, 1998. (tambm em Initium. Revista Catalana d'Histria delDret. 1 [Homenatge al prof. Josep M. Gay i Escoda] (1996); Javier Barrientos (Revista chilenade historia del derecho, 17, Santiago, 1992-1993. p. 225-226); Javier Barrientos Grandon, LaGracia del Derecho. Economa de la Cultura en la Edad Moderna, Madrid, 1993, por AntonioManuel Hespanha, en Revista Chilena de Historia del Derecho, 17, Santiago, 1992-1993. p.225-226. Disponvel em: .

    5 Refiro, apenas, em Espanha, o livro de um querido amigo, Salustiano de Dios. Graa, merc epatronazgo real. La Camara de Castilla entre 1474-1530. Madrid, C.E.C., 1944 e, em Por-

  • Antnio Manuel Hespanha8

    No se justifica muito que reeditemos hoje esse livro. J tenho deixa-do cair outros. Por razes idnticas: estamos sempre a aprender mais, a enri-quecer e complexificar as ideias simplrias que de incio nos surgem. Hoje dou-me claramente conta, que o papel normativo da graa era parte de uma questomuito mais vasta e, mutatis mutandis, ainda actual a da dimenso pluralistadas ordens que nos comandam, umas superiores, outras alheias, outras, para-doxalmente, de ns mesmos. E, para alm disso, tambm me resulta muito claroque aquele pluralismo normativo fazia parte de uma matriz antropolgico-cultural, caractersticas das sociedades modernas da Europa do Sul, bem comodas suas extenses ultramarinas. Com diferenas, mas tambm com identidadescentrais.

    Com o tempo, fui estudando isso a vrios propsitos, alguns menosprximos dos meus temas usuais de estudo. E, quando o Ricardo Marcelo Fon-seca, um querido colega da Faculdade de Direito da Universidade Federal doParan, me sugeriu a reedio, em portugus, de La Gracia del Derecho, eu lhepropus que, explorando um acrescento ao ttulo original, que Pipo Claveroento me sugeriu (Economa de la Cultura en la Edad Moderna), pegsse-mos agora o tema grande, aproveitando para reformatar o conjunto dos textos areunir.

    E assim se fez.

    Primeiro, reuni um texto mais terico sobre a questo geral das cate-gorias, como formas de organizao do mundo geral6, e um outro, de mbitomais local, sobre as categorias antropolgicas da sociedade moderna7. Emseguida, os textos comeam a particularizar os temas, inventariando geome-trias da alma, gramticas da mente e ordens do discurso caractersticasde universos epistmicos submersos ou em submerso.

    As exigncia normativas do universo dos amores8, estreitamente liga-do a esse mundo em que as atraces e solicitudes geradas por um sentido ex-

    tugal e em Frana, respectivamente, os traos que deixou, por exemplo em Fernanda Olival (AsOrdens Militares e o Estado Moderno: honra, merc e venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa:Estar, 2001) e em Jean-Frdric Schaub (Portugal na Monarquia Hispnica (1580-1640).Lisboa: Livros Horizonte, 2001).

    6 Categorias. Uma reflexo sobre a prtica de classificar. Anlise social, 38.168 (2003), p.823-840. Com alguma modificao.

    7 Las categoras del poltico y de lo jurdico en la poca moderna. Ius fugit, 3-4(1994-1995),p. 63-100.

    8 La senda amorosa del derecho. Amor e iustitia en el discurso jurdico moderno. Carlos Petit.(Ed.). Pasiones del jurista. Amor, memoria, melancola, imaginacin. Madrid, Centro deEstudios Constitucionales, 1997, p. 23-74. Rec.: Emanuele Conte, Rechtshistorisches Journal,17(1998), p. 53-59.

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 9

    celente da ordem melhoram o mundo, mais impessoal e neutro, da justia9;nesta altura, no resisti a incluir um texto mais actualista, imaginando no quedaria, hoje, essa justia dirigida pela solicitude e cuidado pelo Outro10.

    A pluralidade das ordens, desde a ordem familiar11 ordem nobilir-quica12; desde a ordem do clculo financeiro13 at a ordem do direito dos rsti-cos14 ou ordem... das cores15.

    E, no final, as tcnicas de acomodao desta governabilidade pr-estatal pelos tcnicos do governo e da ordem os juristas , no mbito de umacomplexa arte de ponderao de mltiplos ordenamentos a que se chamou odireito comum (ius commune)16.

    Hoje, quando o que est em submerso j visvel a cultura da mo-dernidade, e rememorao das formas profundas da sensibilidade pr-modernatem suscitado interesse. Esse interesse no se justifica, seguramente, por algumprojecto de reconstituir sentidos antropolgicos irremediavelmente perdidos enem pelos mais eruditos sequer suficientemente entendidos. Por muito que se 9 Les autres raisons de la politique. L'conomie de la grce, em J.-F. Schaub (ed.),

    Recherches sur l'histoire de l'tat dans le monde ibrique (15e.-20e. sicles), Paris, Pressesde l'cole Normale Suprieure, 1993. p. 67-86; tambm em Pierangelo Schiera (a cura di).Ragion di Stato e ragione dello Stato (secoli XV-XVII). Napoli: Istituto Italiano di StudiFilosofici, 1996. p. 38-67.

    10 Que espao deixa ao direito uma tica da ps-modernidade?. Themis, VII.14 (2007); tam-bm em Phronesis. Revista do Curso de Direito da FEAD, 4 jan./dez. 2008. p. 9-26.; versofrancesa: Le droit face une thique post-moderne. In: Studi in ommaggio di Paolo Prodi.Bologna, 2008.

    11 O estatuto jurdico da mulher na poca da expanso, In: O rosto feminino da expansoportuguesa. Congresso internacional, Lisboa. Comisso da Condio Feminina, 1994, p. 54-64; Carne de uma s carne: para uma compreenso dos fundamentos histrico-antropolgicosda famlia na poca moderna. Anlise social, 123/124.I (1993), 951-974.

    12 A nobreza nos tratados jurdicos dos scs. XVI a XVIII. Penlope, 12(1993), p. 27-42.13 A ordem moral da fazenda, adaptado de A. M. Hespanha, O clculo financeiro no Antigo

    Regime, In: Actas do Encontro Ibrico sobre histria do pensamento Econmico. Lisboa:CISEP, 1993; tambm em: Clculo financiero y cultura contable en el Antiguo Rgimen. In:PETIT, Carlos (Ed.); Del ius mercatorum al derecho mercantil. Madrid: Marcial Pons, 1997.p. 91-108.

    14 2003_Orality and law Tromso (text) The everlasting return of orality, paper presented toReadings of Past Legal Texts. International Symposium in Legal History in Troms, 13th and14th June 2002, In: Dag Michalsen (Ed.). Reading past legal texts, Oslo: Unipax, 2006, p. 25-56.; verso portuguesa em Sequncia. Revista do Curso de Ps-Graduao em Direito daUFSC, Santa Catarina (Brasil), 25(2005)47-107. ou Savants et rustiques. La violence doucede la raison juridique. Ius commune, Frankfurt/Main, 10(1983) 1-48; recenso: Rvued'histoire du droit, 1984. (A.-J. Arnaud); verso portuguesa, Revista crtica de CinciasSociais. 25/26 (1988) p. 31-60.

    15 As cores e a instituio da ordem no mundo de Antigo Regime. In: Philosophica. Filosofiada Cultura, 27(2006), p. 69-86.

    16 Os juristas como couteiros. Anlise Social. 161 (2001), p. 1.183-1.209.

  • Antnio Manuel Hespanha10

    aposte na nossa capacidade hermenutica, h sentidos hoje irrecuperveis,mesmo quando restos das frmulas, das palavras ou das instituies que ossuportavam, pode parecer que ainda subsistem. Um pouco de bom senso e derigor arqueolgico rapidamente destruir essas iluses. Mas como um novoparadigma no est ainda claramente desenhado e quando muitos apostam que,realmente, a histria parece que parou na estao da modernidade, um olharestranhado para este mundo perdido, de valores, de imagens e de prticas nodeixar de nos ensinar que, se h algo de natural no ser humano, justamente ofato de ele ter muito pouco de natureza.

    Antnio Manuel Hespanha

    Z

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 11

    SUMRIO

    CATEGORIAS UM POUCO DE TEORIA DA HISTRIA DO IMAGINRIOSOCIAL .................................................................................................................................15

    1 AS CATEGORIAS DO DIREITO: O DIREITO DO INCIO DA ERA MODERNA E AIMAGINAO ANTROPOLGICA DA ANTIGA CULTURA EUROPEIA ..................41

    1.1 Sujeitos e Objetos...................................................................................................421.2 Substncia e papis indivduos e status ...............................................................451.3 Substncia e papis uma propriedade multiforme ...............................................461.4 Ritos e emoes......................................................................................................471.5 Vontade livre e ordem social ..................................................................................491.6 A doutrina jurdica como fonte da antropologia histrica do Antigo Regime ........53

    2 O AMOR NOS CAMINHOS DO DIREITO: AMOR E IUSTITIA NO DISCURSOJURDICO MODERNO ...............................................................................................57

    2.1 Introduo ..............................................................................................................572.2 Os sentimentos como objeto de estudo...................................................................582.3 Os estados de esprito como princpios de ao ..................................................602.4 Estados de esprito, contextos, prticas e representaes ....................................612.5 A tradio literria teolgico-jurdica como habitus social ....................................632.6 Textos ideolgicos e textos descritivos ..................................................................652.7 Poltica e paixo .....................................................................................................662.8 Modelo de amor .....................................................................................................672.9 Amor e prtica poltica ...........................................................................................682.10 Amor e ordem.........................................................................................................712.11 Amor e unidade ......................................................................................................732.12 O amor concreto: a amizade ...................................................................................752.13 Amor, amizade e justia .........................................................................................782.14 A reconstituio do amor e a funo dos juristas....................................................82

    3 AS OUTRAS RAZES DA POLTICA: A ECONOMIA DA GRAA ..............85

    4 QUE ESPAO DEIXA AO DIREITO UMA TICA DA PS-MODERNIDADE? ...111

  • Antnio Manuel Hespanha12

    5 O ESTATUTO JURDICO DA MULHER NA POCA DA EXPANSO ............ 131

    5.1 Mulheres .............................................................................................................. 1325.2 Menos dignas ....................................................................................................... 1345.3 Frgeis e passivas................................................................................................. 1405.4 Lascivas, astutas e ms ........................................................................................ 1415.5 Portugal................................................................................................................ 144

    6 CARNE DE UMA S CARNE PARA UMA COMPREENSO DOSFUNDAMENTOS HISTRICO ANTROPOLGICOS DA FAMLIA NAPOCA MODERNA ................................................................................................... 147

    6.1 Uma comunidade natural ..................................................................................... 1476.2 Carne de uma s carne ......................................................................................... 1486.3 Uma comunidade fundada no amor ..................................................................... 1516.4 As hierarquias do amor ........................................................................................ 1526.4 A famlia, comunidade generativa ....................................................................... 1536.5 A economia dos deveres familiares...................................................................... 1546.6 Obedincia e liberdade pessoal ............................................................................ 1556.7 Poltica das famlias e poltica da repblica ......................................................... 1576.8 Uma comunidade de bens e de trabalho............................................................... 1586.9 Marido e mulher: uma igualdade de geometria varivel ...................................... 1586.10 A perpetuao da unidade: primogenitura e indivisibilidade sucessria do

    patrimnio familiar .............................................................................................. 1606.11 Entre a unidade da famlia e a igualdade dos filhos ............................................. 1616.12 Outras fidelidades domsticas.............................................................................. 1626.13 A fora expansiva do modelo domstico ............................................................. 1646.14 Orientao de leituras ......................................................................................... 165

    7 A NOBREZA NOS TRATADOS JURDICOS DOS SCULOS XVI A XVIII..... 169

    7.1 Direito e Classificaes Sociais ........................................................................... 1697.2 Natureza das Classificaes ................................................................................. 1707.3 O Imaginrio Nobilirquico ................................................................................. 1757.4 Ttulos de Aquisio ............................................................................................ 1767.5 Prova.................................................................................................................... 1817.6 Categorias ............................................................................................................ 1827.7 Efeitos .................................................................................................................. 185

    8 A ORDEM MORAL DA FAZENDA: O CLCULO FINANCEIRO DOANTIGO REGIME ..................................................................................................... 187

    8.1 A teoria financeira do Antigo Regime ................................................................. 1878.2 Constrangimentos do clculo financeiro .............................................................. 191

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 13

    9 O CONTNUO REGRESSO DA ORALIDADE .........................................................205

    9.1 Da Oralidade Escrita..........................................................................................2059.2 Lembranas da juventude .....................................................................................2069.3 A decadncia do dilogo ......................................................................................2119.4 Suporte comunicativo e estratgias discursivas....................................................2129.5 Oralidade e escrita no direito contemporneo ......................................................2159.6 Narrativas da Galxia ps-Gutenberg...................................................................2169.7 Velhos papis de um novo direito ........................................................................2189.8 De volta para a dogmtica jurdica(?)...................................................................2209.9 A Pluralidade de Narrativas no direito Continental Europeu................................222

    10 AS CORES E A INSTITUIO DA ORDEM NO MUNDO DO ANTIGOREGIME.....................................................................................................................225

    11 OS JURISTAS COMO COUTEIROS: A ORDEM NA EUROPA OCIDENTALDOS INCIOS DA IDADE MODERNA ..................................................................243

    11.1 A modernidade, antes e depois ............................................................................24311.2 Os juristas medievais como couteiros ..................................................................24811.3 Uma constelao de ordens normativas ...............................................................24911.4 Flexibilidade por via da graa..............................................................................25111.5 Flexibilidade por via da equidade ........................................................................25411.6 Legisladores coloniais..........................................................................................25611.7 Conhecimento imperial........................................................................................25811.8 A graa impeditiva: imprio, humanidade e decncia enquanto limites ao

    autogoverno .........................................................................................................26011.9 Uma questo prtica ............................................................................................26111.10 Concluso Voltando a Bauman: flexibilidade e tica contempornea ..............264

    NDICE ALFABTICO .....................................................................................................269

  • Antnio Manuel Hespanha14

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 15

    CATEGORIAS UM POUCO DE TEORIA DAHISTRIA DO IMAGINRIO SOCIAL

    Voc conhece o meu mtodo, meu caro Watson. Parte da obser-vao das coisas insignificantes. Sir Arthur Conan Doyle, TheBascombe Valley Mistery, 1891,

    O tema deste texto categorias. Podia chamar-lhes imagens, re-presentaes ou conceitos. Escolho a primeira palavra propositadamente.Categoria remete, na reflexo sobre o conhecimento, para a ideia de modelos deorganizao das percepes, da realidade, se quisermos. Ou seja: conota umacapacidade activa, estruturante, criadora (poitica) na modelao do conheci-mento. E este um sinal metodolgico que queria deixar desde j, o de quepressuponho que estas entidades a que me referirei tm essa capacidade de criarconhecimento (se no adianto j toda a provocao... de criar realidade).

    Nisso categoria leva vantagem sobre as restantes palavras, nomea-damente sobre imagem, ou representao. Tradicionalmente, imagem ourepresentao eram palavras que denotavam alguma passividade. A imagemera a cpia, ou representao, de uma coisa. Representar, em termos jurdicos,era estar em vez de. J em termos teatrais e polticos, no Antigo Regime era um tanto mais do que isso: era antes, apresentar algo escondido, mesmoinevitavelmente escondido; com o que representar podia constituir a primeiraviso de uma coisa, uma apresentao, como quando apresentamos torna-mos conhecidas pela primeira vez pessoas. Do mesmo modo, o reino, comocorpo mstico, via-se pela primeira vez (apresentava-se) nas Cortes17. Com isto,j havia alguma novidade e criao. Hoje em dia, os historiadores mesmoaqueles que no se confessam de bom grado como construtivistas fazem dostermos imagens, imaginrio e representao um uso que lhes reala, almdo aspecto arbitrrio, o seu aspecto poitico. Ou seja: por um lado, sublinhamque a imagem no mantm nenhum vnculo foroso com a realidade, antes

    17 Hasso Hofmann: Reprsentation Studien zur Wort und Begriffsgeschichte von der Antike

    bis ins 19. Jahrhundert. Habilitationsschrift. Schriften zur Verfassungsgeschichte,CAPPELLINI, Paolo. Berlin, 1974. v. 22. Rapresentanza in Generale Diritto Intermedio, In:Enciclopedia del Diritto. Milano: Giuffr, 1987. v. XXXVIII.

  • Antnio Manuel Hespanha16

    sendo criaes autnomas dos sujeitos (colectivos, prefere-se hoje pensar). Poroutro lado, realam que, uma vez instalados, estes imaginrios modelam as per-cepes, as avaliaes, os comportamentos. Com esta reviso, o termo convm-me e, por isso o usarei por vezes, para evitar a monotonia do discurso. Em todoo caso, categoria tem uma vantagem suplementar a de realar o carcterorgnico, arrumado, destes quadros mentais. O facto de eles constiturem con-juntos tendencialmente coerentes entre si, com lgicas internas de organizao ede desenvolvimento. Para alm de que, apesar de tudo, me parece mais forte aevocao da sua natureza activamente organizadora.

    Esta remisso para a lgica de organizao existe tambm na palavraconceito. Na sua etimologia est o verbo latino capere, que significa agarrar,tomar; tal como, no correspondente alemo (Begriff), est o verbo greifen, com amesma conotao activa, ao passo que ao sinnimo Auffassung subjaz o verbofassen, agarrar, apanhar, tomar. O que me afasta da palavra o facto de estarmuito embebida por concepes racionalistas; por insinuar um esforo mentalconsciente e reflectido, tpico dos pensadores e dos filsofos, gente de que nome vou ocupar muito, enquanto tais, ou seja, enquanto produtores conscientes eindividualizados de ideias. Temo que, se optasse por falar de conceitos seconfundisse o meu trabalho com uma empresa de histria das ideias, concebi-da como histria de ilusres pensadores e dos seus intencionais pensamentos. Eno disso que vou tratar. Qualquer grande pensador que aqui aparea aparecesem gales, reduzido a um soldado raso (eventualmente mais eloquente) de umgrande exrcito annimo. certo que a ideia de uma histria dos conceitos18foi relanada por Reinhardt Koselleck intenes muito semelhantes s que ex-primi19. Em todo o caso o peso da palavra conceito ainda , nos discursosusuais, demasiado para que se utilize sem a preocupao de ser mal entendido,aproximando-nos fora de uma histria individualista, subjectivista, intencio-nalista das construes intelectuais.

    O projecto de uma histria das categorias tem que combater em duasfrentes.

    18 BDEKER, Hans Erich. (Ed.), Begriffsgeschichte Diskursgeschichte Metapherngeschichte,

    com contributos de Reinhart Koselleck, Ulrich Ricken, Hans Erich Bdeker, JacquesGuilhaumou, Mark Bevir, Rdiger Zill und Lutz Danneberg, Gttingen: Wallstein Verlag 2001(publ. do Max-Planck Institut fr Geschichte). J o Archiv fr Begriffsgeschichte, ed. por Gun-ter Scholtz, em colaborao com Hans-Georg Gadamer e Karlfried Grnder (desde 1955), tinhaa inteno de constituir um ponto de partida para um dicionrio dos conceitos filosficos.

    19 Cf. KOSELLEK, Reinhardt. Le futur pass. Contribution la smantique des tempshistoriques. Paris: ditions de lcole des Hautes tudes en Sciences Sociales, 1990.;Koselleck, Reinhart. Practice of Conceptual History: Timing History, Spacing Concepts.Stanford University Press, 2002 (com prefcio de Hayden White). Fora da Alemanha, umaproposta semelhante tem sido avanada por J. G. A. Pocock, Q. Skinner [James Tully (ed.),Meaning and Context: Quentin Skinner and His Critics, Princeton University Press, 1989. p.370); Giuseppe Duso: La logica del potere. Storia concettuale come filosofia politica. Laterza.Biblioteca di cultura moderna, 1999, M. Barberis, Libert, Bologna, Il Mulino, 2002.Introduo.

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 17

    Por um lado, tem que combater, na frente da histria social, aquelesque acham decerto vacinados pela histria tradicional das ideias que, como ahistria se faz de actos humanos e no de palavras, l, nesse plano dos actos ecomportamentos, que a historiografia tem que assentar arraiais. Claro que esseshomens que agem tambm pensam e tambm falam. Mas esse pensar e esse falarlimitar-se-iam a pensar em coisas e a falar de coisas. Por outras palavras: oshomens construiriam o pensamento a partir da realidade, avaliariam a realida-de em funo de interesses e, em funo da realidade e da sua avaliao, as-sumiriam comportamentos, uns dos quais eram discursos, com os quais tradu-ziriam em palavras o modo como viam e avaliavam a realidade e a formacomo reagiriam; os quais, de novo, seriam apreendidos por outros como reali-dades, avaliados segundo outros interesses e respondidos com outros com-portamentos. Interesses, realidades, comportamentos seriam, termossociais, coisas. O resto, incluindo as palavras, seriam, nos mesmos termos,no coisas. Como a histria social se devia ocupar de coisas, as ideias e as pala-vras no faziam parte dela, por justamente lhes faltar espessura social.

    Hoje j poucos pem as coisas assim. Quase todos percebem que hmediaes, refraces, criao: (i) na passagem da realidade sua represen-tao intelectual; (ii) na identificao dos nossos interesses; (iii) na avaliaoda realidade em face deles; (iv) na formulao de programas de aco-resposta(reaco).

    Mas algumas manhas persistem. Por exemplo, a de, quando se fala naautonomia e criatividade dos discursos e das sua figuras, se responder com ofacto de que estes no falam por si, mas que so apropriados socialmente. Eque, sendo-o, perdem uma lgica prpria e se dobram lgica dos interessesdos grupos apropriadores. E, com isto, voltamos vaca fria. Pois os tais inte-resses voltaram a ser coisas perante as quais as palavras recebidas (apropria-das, tornadas coisa prpria pelas imperiais coisas) voltaram a perder qualquerautonomia). Que existe uma sobredeterminao de sentido local sobre o sentidogeral, que falamos, ouvimos, sentimos, avaliamos em situao e que isso rede-fine os sentidos gerais, parece evidente. Mas que essa redefinio decorra deinteresses em bruto, no estado de natureza, no mediados por representaesparticulares, uma coisa totalmente diferente.

    Outra via de recuperar a soberania das coisas a de, falando-se emdiscursos, se responder com as prticas. As prticas sero, naturalmente, coisas.Puras e duras. Gestos, gestos cruzados, contragestos, contagens, frequncias,viagens, tiros, cpulas, cultivos, coisas meramente exteriores, sem qualquerinterioridade. Uma vnia j duvidoso que o seja; uma palavra, quase nunca;uma ideia, isso jamais. Se houver um qualquer interior na prtica, ela j deixa deser prtica e passa a representao. De modo que a tal dialctica entre prticas erepresentaes, entre prticas e discursos, uma quadratura do crculo. , naverdade, uma maneira de simular alguma abertura s representaes, por quem,na verdade, cr que elas cantam ociosamente, enquanto as prticas, afanosa-mente, constroem a histria. Bondosamente, sugere-se agora que a formiga para svezes um bocadinho para ouvir a cigarra. Mas segue, imperturbada, a sua lida.

  • Antnio Manuel Hespanha18

    ZNum texto de sntese20, Koselleck sistematiza algumas das razes da

    autonomia da histria dos discursos.A primeira delas parece banal; mas contm mais de razo que aquilo

    que aparenta. Trata-se do uso de conceitos tcnicos ou enfaticamente carregadosde sentido. Uns e outros tm uma evidente espessura, que os faz dizer para almdo que aquilo que os locutores querem.

    No primeiro caso de que os exemplos tpicos so as linguagens for-malizadas, como, por exemplo, as linguagens de programao dos dias de hoje ,estamos perante aquilo a que Umberto Eco chamou os limites da interpreta-o21: o conceito, na sua fixidez tcnica ou formalista, resiste apropriao.E, por isso, a histria social no tem grande volta a dar-lhe. Dir-se- que, nalonga durao, isto raramente ou nunca acontece, pois no h formalismo queresista ao tempo. verdade, mas, no curto e mdio termo claro que h discur-sos e categorias no disponveis.

    Existe, no entanto, uma segunda espcie de indisponibilidade: a dosconceitos to carregados de sentido, que este sentido (positivo ou negativo)sobreinveste o sentido dos utilizadores. As categorias dizem mais do que sequer, tm sentidos preterintencionais. por isso que nem um honesto ateu est vontade com a palavra Deus; ou que um rebento das boas velhas famlias portu-guesas nunca usa, deliberadamente, a rabiosa palavra vermelho, mas apenasencarnado. Num plano menos ftil, Kosellek descreve o impacto objectivo depalavras polmicas na histria poltica europeia, como revoluo, feudal,cidado. Mesmo ciciada, melosamente insinuada, revoluo sempre Re-voluo.

    Da que estas palavras fecundas no sejam domesticamente apropri-veis, seno limitadamente, pelos grupos sociais. Realmente, elas esto antesdeles22.

    ZE com isto entramos num segundo aspecto da autonomia da histria

    dos discursos. Os discursos como palcos de lutas sociais. As categorias comopraas fortes que se conquistam ou se perdem, na luta social. 20 KOSELLEK, Cf. Reinhardt. Le futur pass, cit.21 ECO, Umberto. I limiti dell'interpretazione. Milano 1990; traduo de ingl. The limits of

    interpretation. Bloomington, Ind.: Indiana University Press, 1990.22 Cerruti (Simona), La construction des catgories sociales, In: Boutier (Jean), Julia (Dominique)

    (Dir.), Passs recomposs. Champs et chantiers de l'histoire. Paris: Autrement, 1995. p. 224-234. Aplicao: Cerutti (1990), Simona. La ville et les mtiers. Naissance d'un langagecorporatif, Turin, 17e-18e sicle), Paris: EHESS, 1990. Para Portugal, uma aluso ao problemaem Nuno L. Madureira (Coord.). Histria do trabalho e das ocupaes. III. A agricultura:Dicionrio. Lisboa: Celta, 2002. Introduo (Conceio Martins, Nuno Monteiro)

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 19

    Realmente, muitos nomes no so apenas nomes. Intelectual, bur-gus, proletrio, homem, demente, rstico, so, alm de sons e letras,estatutos sociais pelos quais se luta, para entrar neles ou para sair deles. Numasociedade de classificaes ratificadas pelo direito, como a sociedade de AntigoRegime, estes estatutos eram coisas muito expressamente tangveis, comportan-do direitos e deveres especficos, taxativamente identificados pelo direito. Daque, ter um ou outro destes nomes era dispor de um ou outro estatuto. Da quepor outro lado, classificar algum era marcar a sua posio jurdica e poltica. Amobilidade de estatuto que ento existia no era tanto uma mobilidade social,nos termos em que hoje a entendemos (enriquecer, estudar, melhorar o crculodas suas relaes, mudar de bairro); era antes e sobretudo uma mobilidade ono-mstica ou taxinmica conseguir mudar de nome, conseguir mudar de desi-gnao, de categoria (discursiva), de estado (nobre, fidalgo, jurista, peo, lavra-dor). Claro que a mudana de vida podia ter importncia; mas quem decidiadessa importncia era a prpria entidade conceptual que designava o estadopretendido. Ou seja: era o conceito de nobreza (a definio da categoria da no-breza) que decidia que mudanas de vida eram necessrias para se ser admitido.

    Pierre Bourdieu generalizou esta perspectiva a todos os mecanismosde distino social, construindo uma teoria geral sobre o modo de organizarestratgias de luta por smbolos, por marcas de distino23. E tambm explicouque, j quando se fala, se esto a fazer coisas muito mais complicadas do quedesignar objectos existentes a, em estado bruto, fora do discurso. Na verdade,no apenas se esto a construir, de novo, objectos; como se est a construir po-der, por vezes um poder imenso, com essas coisinhas aparentemente volteis efrgeis que so as palavras24.

    Por isso que podemos encarar a categorizao social como uma for-ma de institucionalizao de laos polticos; e as tentativas de recategorizaocomo uma espcie de revoluo.

    Simona Cerruti estudou este impacto poltico das categorias na socie-dade torinense dos fins do Antigo Regime e o modo como a reforma social epoltica passava sobretudo pelo refazer do mbito e hierarquia dessas categorias.Em Portugal, Nuno Monteiro e Fernanda Olival, entre outros, tm, por sua vez,estudado as lutas pelo poder de classificar; os seus trabalhos25 mostram a per-sistncia da poltica da coroa para se arrogar o direito de classificar pessoascomo nobres (nobilitar) ou como cavaleiros das ordens militares, enquanto anobreza mais antiga e os juristas cada grupo pelas suas razes se manifesta-vam frequentemente no sentido de que essa classificao era feita pela nature-

    23 BOURDIEU, P. La distinction, Paris: Minuit, 1979.24 BOURDIEU, P. Ce que parler veut dire: conomie des changes linguistiques. Paris, 1982.25 Nomeadamente, MONTEIRO, Nuno G. O crepsculo dos Grandes. Lisboa: ICS, 2000;

    OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado moderno. Honra, merc e venalidade emPortugal (1641-1789), Lisboa: Estar, 2002.

  • Antnio Manuel Hespanha20

    za, pelo valor, pelos usos e fama estabelecidos, nveis de leitura em que eleseram os peritos com o poder de classificar26.

    Num estudo de h uns anos mostrei como o uso pelos juristas medie-vais de categorias de classificao dos oficiais pblicos provindas do Impriobizantino e j sem qualquer correspondncia com a realidade poltico-administrativa tinha efeitos polticos concretos, inculcando a ideia de centraliza-o poltica e de hierarquia dos funcionrios entre si27. Neste caso, o conjuntodas categorias nem sequer aplicado a pessoas. Apenas funciona como um mo-delo de organizao poltica com o qual a situao administrativa instalada conti-nuamente confrontada, sendo por ele avaliada e paulatinamente conformada.

    O prprio facto de estas categorias serem objecto de um confronto so-cial i.e., de os seus contornos e contedos serem objecto de despique f-las,evidentemente, mover, mas apenas nos termos de uma gramtica que a delas.Ou seja: o prprio sistema das categorias que selecciona as regras da luta. Nemtodos os argumentos serviam, nem todas as autoridades eram sempre invocveis,nem todos os limites eram sempre ultrapassveis28.

    ZMas nem apenas no plano da categorizao tm os conceitos um im-

    pacto nas lutas sociais. Todo o conflito , de algum modo, raisonn. Ou seja:debate-se mais do que se combate. Esgrimem-se argumentos, tentando desvalo-rizar os argumentos do adversrio e reforar o consenso social sobre os nossos.Argumentos, h-os para todos os gostos e para todas as causas. As EscriturasSagradas e a tradio textual do direito (nomeadamente, o Corpus iuris civilis)foram fontes inesgotveis e muito variadas de tpicos polticos. Mas tambm osargumentos so relativamente indisponveis. Quanto argumentao e retricaconstituam elas a base dos estudos propeduticos da universidade, todas aspessoas cultas, que participavam nos grandes debates, estavam conscientes dasregras de uso de cada argumento. Para isso existiam os tratados De argumenti-bus et locis communibus (Dos argumentos e lugares comuns). Hoje, no dispo-mos deste ensino formal. Mas cada argumento, para alm de ter as suas regrasprprias, chama por outros ou repele outros. Realmente, o campo dos argumen-tos est organizado por regras de implicao, de simpatia, de antipatia ou deexcluso. De tal modo que o uso de um tpico conveniente pode implicar aaceitao de outros muito inconvenientes. Por exemplo, e como veremos maistarde. Era conveniente, para a justificao da escravatura, aceitar o tpico aris- 26 Cf. HESPANHA, A. M. A nobreza nos tratados jurdicos dos scs. XVI a XVIII, Penlope,

    12(1993), p. 27-42.27 HESPANHA, A. M. Reprsentation dogmatique et projets de pouvoir. Les outils conceptuels

    des juristes du ius commune dans le domaine de l'administration, In: HEYEN, E.-V. (Ed.),Wissenschaft und Recht der Verwaltung seit dem Ancien Rgime. Frankfurt/Main : Vitt.Klostermann, 1984. p. 1-28.

    28 Cf. KOSELLECK, op. cit, p. 103.

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 21

    totlico de que havia homens que, por natureza, estavam destinados a servir.Mas a aceitao deste tpica implicava reconhecer que o gnero humano no erauno e que, portanto, a Salvao no podia ser universal29.

    Ou seja: nem tudo se pode invocar. E, mais do que isso, invocar certasrazes pode ter consequncias indesejadas e indesejveis. De onde, as intenespolticas de quem fala as razes dos polticos, colhidas na histria polticaconjuntural podem no ser a nica instncia decisiva do que dito. A lgicainterna do prprio discurso em que elas se exprimem fornece, seguramente,outra leitura. Os seus argumentos existem previamente nas memrias tpicas no senso comum de uma cultura local (por exemplo, a cultura poltica, ou acultura parlamentar); os argumentos tm competncias demonstrativas limitadase organizam-se entre si segundo relaes objectivas.

    Z este facto da relativa indisponibilidade do discurso30 que autoriza

    uma histria autnoma das categorias e dos discursos. Koselleck exprime estaideia com nitidez: cada conceito abre certos horizontes, tal como fecha outros,define experincias possveis e teorias pensveis... A linguagem conceptual um mdio dotado da sua prpria coeso que permite exprimir tanto a capacidadede experincia (Erfahrungsfhigkeit) como a dimenso terica (Theoriehalti-gkeit)31. Koselleck vai bem fundo na justificao do carcter criativo do discur-so. Na verdade, ele sublinha o modo como o discurso conforma a prpria vida:ao predeterminar a sua apreenso (experincia). Poder-se-ia acrescentar: ao ava-liar essa experincia, ao identificar os interesses, ao escolher os comportamen-tos. Em suma, antes dos momentos pragmticos, existem sempre momentosdogmticos.

    Da que, muito coerentemente, Koselleck inclua a histria das catego-rias no mbito da histria estrutural. As categorias constituem, de facto, modelosmuito permanentes de atribuir sentido aos comportamentos individuais e indivi-dualizados (cada um dos significados ligados a uma palavra ultrapassa a uni-cidade prpria dos acontecimentos histricos, idem, 115). Tal como as estrutu-ras (virtuais) da lngua (langue) atribuem sentido lngua falada (langage) e aosactos de fala (linguistic utterances). neste sentido que as categorias conceituaisescapam a uma histria cronolgica dos seus sucessivos usos, reclamando antes

    29 Sobre este tema da cogncia das regras de argumentao, o melhor , ainda, PERELMAN,

    Chaini; OLBRECHTS-Tyteca, L. Trait de largumentation. La nouvelle rhtorique. Paris:PUF, 1958; LOMBARDI, Luigi [Vallauri], Saggio sul diritto giurisprudenziale. Milano:Giuffr, 1975. Recente e muito til, MEYER, Michel; CARRILHO, Manuel Maria;TIMMERMANS, Benat: Histria da Retrica. Lisboa: Temas e Debates, 2002.

    30 Pode ir-se mais longe neste descentramento do sujeito locutor. Do discruso pode passar-se materialidade do suporte da comunicao: a oralidade, a escrita; ou, mesmo, a materialidade dolayout tipogrfico, como tem sido sugerido pela material bibliography e pelos estudos de hist-ria do livro.

    31 KOSELLECK. Le futur pass, cit. 110.

  • Antnio Manuel Hespanha22

    uma histria da gramtica abstracta que d sentido aos seus usos verificados e averificar; a histria de um conceito no , por isso, uma mera cronologia (umanarrativa empirista de usos), comportando, tambm, aspectos sistmicos32.

    ZDe onde vem s categoria esta autonomia frente histria ? Se no

    vem das intenes dos locutores ou dos interesses dos grupos, de onde vem esteseu poder de organizar as vidas?

    H mais de trinta anos, Michel Foucault escreveu um livro muito im-portante sobre as categorias da cultura clssica europeia33, descrevendo aquiloque, a um nvel muito profundo, o das suas categorias mais fundamentais, sepa-rara essa cultura, quer da anterior, quer da de hoje. Para descrever essas grandesformas culturais, essas molduras mais gerais do conhecimento, Foucault cunhouum conceito, o de episteme. Num momento em que as explicaes sociologistasda histria cultural tinham um impacto muito forte na cultura universitria fran-cesa, Foucault foi severamente criticado pelo facto de no providenciar umaexplicao sociolgica para a gnese destes modelos intelectuais.

    Dois anos depois, um novo livro aparece expressa e exclusivamentededicado a explicitar a sua metodologia subjacente. O seu ttulo Larchologiedu savoir, 1969 remete j para a ideia de que o saber tem uma origem. Sque Foucault recusa enfaticamente uma concepo humanista desta origem,quer ele estivesse num sujeito individual (psicologismo, racionalismo clssico),quer num sujeito colectivo (sociologismo, nomeadamente o materialismo hist-rico da vulgata estabelecida)34. Essa origem encontra-a Foucault em dispositivosmateriais da produo cultural desde as tradies textuais aos circuitos decomunicao, desde as bibliotecas aos campos de objectos disponveis, desdeas linguagens tcnicas aos arquivos da memria cultural invocados, desde asformas de diviso social e de institucionalizao do trabalho intelectual s suasrelaes com as estruturas sociais mais globais. nesses dispositivos e nas pr-ticas discursivas que eles suscitam que as formaes discursivas, ou seja, asparticulares configuraes dos discursos num determinado perodo, tm a suaorigem.

    Glosado e adaptado de muitas formas, por vezes desenvolvido e es-tendido no seu mbito de aplicao, este texto continua, a meu ver, a ter uma

    32 Uma vez forjado, um conceito contm, pelo nico facto de constituir lngua a possibilidade

    de ser empregue de forma generalisante, de constituir um elemento de tipologia ou de abrirperspectivas de comparao. Os conceitos no nos informam somente do carcter nico dossignificados passados, mas contm possibilidades estruturais, apresentam estruturas contem-porneas em conjunto com outras que o no so, de uma forma que que no possvel reduzirao simples desenrolar dos acontecimentos na histria. (Idem, p. 115)

    33 FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris, 1966.34 Que no inclui toda a sociologia cultural marxista, nomeadamente a gramsciana e ps-

    gramsciana.

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 23

    enorme operacionalidade na resposta questo acima formulada. Os discursosno vm do nada, nem vm de um Todo que seja a Razo universal. Mas tam-bm no so, to pouco, a expresso, dcil e disponvel, de intenes dos sujei-tos. Vm de prticas de discurso, em que, seguramente, h sujeitos que falam eque escutam; mas em que uns e outros falam e escutam em lugares e com meiossobre os quais no dispem de um poder de conformao. Estas prticas fazemparte da histria, mas de uma histria em que, no centro, no est o Sujeito, como seu poder de atribuio de sentido. Mas antes dispositivos objectivos que,objectivamente, constituem os sentidos possveis. Dispositivos, uns intelectuais,outros materiais, outros sociais. Entre os primeiros esto as nossas categorias.

    Sem querer dar ao tema um desenvolvimento que, aqui, seria despro-porcionado, remeto, com estas linhas, para uma obra cannica que estabelece abase terica e metodolgica de que aqui parto, e que explicitei melhor comespecial aplicao aos discursos dos juristas em outros lugares35.

    ZNa obra de M. Foucault, esta ideia de descentramento do sujeito, de

    substituio do sujeito como instituidor do sentido dos discursos por estruturasobjectivas de produo discursiva no abria explicitamente para aquilo que seveio a chamar bibliografia material. Ou seja, para a ideia de que na gnese dossentidos do discurso podem estar elementos puramente materiais dos suportes dacomunicao. Embora esta ideia que seguramente agradaria a Foucault jtivesse sido suficientemente explicitada por Walter Ong, no final dos anos 50, apropsito da histria da lgica ocidental36. Para ele, a evoluo de um pensa-mento argumentativo, dominante at ao sc. XVI, para um pensamento sistem-tico, cujo emblema vem a ser a nova lgica de Pierre de la Rame (Petrus Ra-mus), relaciona-se estreitamente com a difuso massiva da imprensa e com umanova organizao da folha escrita37. Alguns anos depois, Marshall McLuhan

    35 HESPANHA, A. M. Cf. Una histria de textos, In: F. Toms y Valiente et al. Sexo barroco y

    otras transgresiones premodernas. Madrid: Alianza, 1990. p. 187-196; Tradizione letterariadel diritto e ambiente sociale. In: BENEDICTIS, Angela de; MATTOZI, Ivo (Eds.). Giustizia,potere e corpo sociale nella prima t moderna. Argomenti nella litteratura giuridico-politica. Bologna: Clueb, 1994. p. 23-36.; v. tambm: A histria do direito na histria social.Lisboa: Horizonte, 1978.

    36 RAMUS, Walter (Ong.). Method and the Decay of Dialogue: From the Art of Discourse tothe Art of Reason. Cambridge: Harvard University Press, 1958

    37 A folha corrida substituindo o flio glosado, em que o texto cannico aparece rodeado doscomentrios (individualizados) de sucessivos autores. A segunda, materializando graficamentea situao discursiva de dilogo, de posies dissonantes e no integradas, era menos compat-vel com a arte tipogrfica do que a primeira. Mas esta, promovia a reduo da pluralidade deopinies a uma exposio sistemtica. Cf., do mesmo autor: The Presence if the Word: SomeProlegomena for Cultural and Religious History. New Haven: Yale University Press, 1967;Rhetoric, Romance and Culture. Ithaca: Cornell University Press, 1971; Orality and Liter-acy: The Technologizing of the Word. Ithaca: Cornell University Press, 1982. Sntese e aplica-o ao direito no meu texto, Antnio Manuel Hespanha, Form and content in early modern le-

  • Antnio Manuel Hespanha24

    voltou ao tema da influencia da estrutura material dos media na criao de senti-do, alargando o mbito da discusso aos novos textos da galxia audiovisual(por oposio galxia do impresso38. Do lado da antropologia, o tema com-pletado por Jack Goody, numa obra clssica sobre o modo como a oralidade e aescrita condicionam o pensamento, mesmo nas suas operaes mais bsicas(listar, analisar, sistematizar, contextualizar)39. At que surge tambm num seulugar natural a histria do livro com a redefinio do prprio conceito debibliografia, levada a cabo por de Donald F. McKenzie. De modo a incorporarno estudo dos textos, todos os elementos que contribuem para lhes dar sentido,comeando pela sua apresentao grfica, da responsabilidade dos editores e,antes deles, da prpria organizao da produo material do livro40/41.

    Perspectivas deste tipo tm dois tipos de consequncias. Por um lado,afastam a ideia de sujeito e de intencionalidade do sentido ainda mais do centroda interpretao e da constituio das categorias. Por outro, convidam a umestudo das origens do sentido a uma arqueologia dos saberes muito atentaaos detalhes mais materiais da comunicao: no caso dos impressos: a estruturado trabalho editorial e as suas consequncias no livro42, a organizao da pgina,os tipos43, o uso das maisculas44, a diviso do texto impresso45, a ilustraodo texto, o nmero de pginas46, o formato do livro, a organizao das bibliote-

    gal books. Bridging the gap between material bibliography and the history of legal thought.Rechtsgeschichte, 12(March, 2008).

    38 MCLUHAN, Marshall. The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man. Toronto:University of Toronto Press, 1962; Understanding Media: The Extensions of Man, NewYork: McGraw-Hill, 1964.

    39 GOODY, Jack. 1977. The domestication of the savage mind. Cambridge: Cambridge Univer-sity Press [cujo ttulo, na verso francesa, muito feliz: La raison graphique]; Jack Goody,(Ed.), Literacy in Traditional Societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1968.

    40 Fundamentais: D. F. McKenzie: Bibliography and the sociology of texts. London: BritishLibrary, 1986; bem como os seus ensaios recolhidos em Making meaning. Printers of themind and other essays (ed. Por Peter D. McDonald & Michael F. Suarez, S.J. Amherst-Boston, University of Massachusetts Press, 2002. Sobre o novo conceito de bilbiografia (mate-rial ou analtica), cf. a primeira obra, pp. 9 ss. Sntese e aplicao ao direito no meu texto, An-tnio Manuel Hespanha: Form and content in early modern legal books. Bridging the gapbetween material bibliography and the history of legal thought, Rechtsgeschichte, 12(March,2008).

    41 Note-se que D. F. McKenzie se refere a um conceito muito alargado de texto, que engloba aescrita, a imagem parada ou em movimento, o som etc.

    42 Printers of the Mind: Some Notes on Bibliographical Theories and Printing-House Prac-tices, In: Making meaning, cit, 13-85.

    43 Indenting the Stick in the First Quarto of King Lear (1608), idem, p. 86-90; Stretching aPoint: Or, The Case of the Spaced-out Comps, idem, p. 91-109.

    44 Cf. um texto meu, j antigo, Forma e valores nos Estatutos Pombalinos. Vrtice, 347 (1972),927-941.

    45 McKenzie refere um dito de Th. Hobbes sobre o impacto que a atomizao da Bblia em vers-culos teria tido na sua apropriao por vrias seitas crists. Biblography..., cit., 56.

    46 O exemplo aduzido por McKenzie tirado de James Joyce, adaptando o nmero de pginas sugesto subliminar da importncia do nmero 13.

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 25

    cas e as suas polticas de aquisies47 a prpria forma escrita e os significadosque ela pode revestir para os seus utilizadores48. A obra de McKenzie, um eru-dito estudioso da edio (alm de, no comeo da sua vida profissional, ele mes-mo um tipgrafo), est repleta de exemplos de todo o peso que estes elementosmateriais tm na produo de sentido.

    ZMas abordando agora a questo de outro ponto de vista far senti-

    do a teoria da aco implcita nesta estratgia de explicao histrica? Na qualmodelos ou horizontes mentais tendem a preformar, tanto o diagnstico dassituaes, como as estratgias de comportamento ? Em que o macro a condi-o da interpretao do micro?49

    Sirva-me de contraexemplo, para clarificar o meu ponto, uma obra re-cente sobre histria da cultura, inserida em prestigiadas correntes actuais e es-crita com uma grande nitidez de contornos tericos50. E o que l encontrei, naproposta inicial e na concretizao, , ponto por ponto, um ataque em forma aesta maneira de ver as coisas.

    A, todo o sentido reside no contexto. a situao, o caso, que, nas suascaractersticas irrepetveis e irredutivelmente complexas, constri os sujeitos daaco (ou seja, os pe em aco). Ou melhor, os pe em aces, j que a com-plexidade das situaes e dos sentidos que os contextos envolvem mltipla einesgotvel51. Uma viso destas tem vrias consequncias historiogrficas, dia-metralmente oposta s que adopto, mas que o autor explicita com legitimidadeterica.

    A primeira a de que todas as evocaes de quadros gerais de refe-rncia ou horizontes de expectativas, ou quadros de avaliao, ou padres de

    47 Our Textual Definition of the Future: The New English Imperialism?, In: Making mean-

    ing, cit., p. 276 ss..48 Notvel, a sua anlise do Tratado de Waitangi, celebrado, em 1840, entre a coroa britnica e 46

    chefes maori: The sociology of a text: oral culture, literacy, and print in early New Zealand,In: Bibliography..., cit. 77-130. Sobre as transies de suporte comunicativo, mas na Europado sc. XVII, v. Speech Manuscript - Print, In: Making meaning..., cit., p. 237-258.

    49 Cf., sobre a oposio entre macro-historia e micro-histria, por ltimo, Jrgen Schlum-bohm (ed.), Mikrogeschichte Makrogeschichte: komplementr oder inkommensurabel?, 2.ed. com contributos de Maurizio Gribaudi, Giovanni Levi, Jrgen Schlumbohm und CharlesTilly, Gttingen: Wallstein Verlag 1998, 2000 [publ.Max-Planck-Insitut fr Geschichte].

    50 Refiro-me a Diogo Ramada Curto: A cultura poltica em Portugal (1578-1642). Comporta-mentos, ritos e negcios, diss. Doutoramento na FCSH, UNL, 1994. (no publicado).

    51 Ao oporem-se deliberadamente grande obra de sntese, investida de um carcter de subs-tncia unitria, os Discursos na sua natureza dispersa e fragmentada constituem-se em fontede inspirao para as abordagens interessadas em analisar o significado plural dos actos in-cluindo os actos de linguagem - considerados polticos [...]. Em esquema, pode dizer-se queactos, negcios, experincias ou prticas no podero separar-se dos significados, representa-es ou discursos, que os agentes em relao produzem em diferentes situaes, necessaria-mente contingentes. (CURTO, Diogo R., cit., p. 2)

  • Antnio Manuel Hespanha26

    valorao so deliberadamente suspensos (ou mesmo definitivamente exclu-dos)52. Cultura de elites, cultura popular, sistemas de crenas, modelos de religi-osidade, de disciplina, de poder e de resistncia, regularidades disciplinares53,quadros institucionais e, evidentemente, sistemas jurdicos54, tudo isto so for-mas de iludir o verdadeiro sentido dos actos humanos, justamente porque somodelos gerais pelos quais a aco concreta nunca se deixa moldar.

    A segunda pr a tnica na recepo55, mais do que na produo,tema um tanto trivial nos dias de hoje; mas que aqui aparece com uma colorao 52 Uma opo analtica desta natureza implica uma maior ateno ao comportamento dos

    actores envolvidos em cada um dos acontecimentos, em detrimento das instituies, dos siste-mas normativos, das estruturas ou dos processos, com os quais os seus actos se relacionam.Assim, sem nunca perder de vista o horizonte principal constitudo pelos acontecimentos, a in-sistncia no comportamento dos actores visa, por um lado, a anlise das diversas relaes queentre eles se estabelecem e, por outro lado, a interpretao subjectiva das suas aces [citaSimmel, Weber e Goffman]. (DIOGO, 1994. p. 2)

    53 Neste sentido, a cultura poltica, enquanto conceito que d acesso a um problema geral,constitui-se numa hiptese retrospectiva, espcie de grande quadro que articula diferentesunidades de actos e de situaes. Em cada urna dessas unidades, ser possvel reconstituiruma modalidade diferente da cultura politica. (DIOGO, 1994. p. 3)

    54 Note-se a crtica que o Autor dirige histria cultural que tenta superar o formalismo e imobi-lismo da histria institucional tradicional: Numa das suas utilizaes mais consolidadas disci-plinarmente, as explicaes que procuram valorizar a importncia dos aspectos culturais naanlise dos sistemas polticos fazem parte de urna reaco geral contra os estudos legais,constitucionais e institucionais [...] Primeiro, existe a possibilidade de se cair numa espcie deidealismo, atravs do qual as ideias identificadas com a cultura seriam a causa dos actos con-siderados polticos. Tornear este obstculo implica dispor de uma concepo alargada decultura, e prestar particular ateno aos contextos e configuraes sociais em que as mesmasideias adquirem significado. Segundo risco: o de radicalizar os aspectos subjectivos da cultu-ra. Neste caso, para evitar os exageros ser necessrio ter sempre presente o horizonte dosactos e das situaes. Finalmente, um terceiro risco reside, mais do que no carcter eclcticoda noo de cultura poltica, na circularidade das explicaes que consideram a cultura de-terminada pelos actos polticos e vice-versa. Ora, frente a esta indeterminao ser necessrioaproveitar os ensinamentos da sociologia poltica, que oscila entre o estudo da base social dopoder em todos os sectores institucionais, mais ou menos articulados, e a anlise dos grupospolticos especficos, que tm a seu cargo as prticas de controlo, incluindo as mais eufemiza-das, da violncia (burocracia, sistema judicial, elites, grupos de interesse etc.) (CURTO, Di-ogo R., cit., p. 4). Se bem entendo, o primeiro ponto tem sido eficazmente ultrapassado pormuita da melhor histria da cultura dos dias de hoje. O segundo ponto corresponde a uma ver-so amputada daquilo a que se costuma chamar a morte do sujeito; digo amputada, porque aslimitaes da subjectividade no so apenas as que decorrem dos horizontes dos actos e das si-tuaes; decorrem tambm de constrangimentos genricos liberdade de receber, de criar e dereagir. Quanto ao terceiro ponto, ele corresponderia a substituir a histria da cultura jurdico-institucional pela histria social dos agentes e processos institucionais, em particular dos gru-pos de que decidem na base das normas institucionalizadas. Ou seja, ficam de forma as fun-es automticas de inculcao ou de insinuao dos discursos e dos ritos institucionais e dasinstituies, bem como a considerao do seu papel geral na formao de sensos comuns.Bem como, evidentemente, as suas dimenses no sociais (lgicas autnomas de reprodu-o dos textos, dos gneros e dos estilos; bibliografia material includa).

    55 Cf., sobre a teria da recepo, R. Jauss e W. Iser: Teoria della ricezzione. Traduo de It,Torino: Eiaudi, 1997. ECO, Umberto. Lector in fabula: la cooperazione interpretativa nei testinarrativi. Milano: Bompiani, 1979.

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 27

    um pouco diferente das formulaes clssicas, tanto ao substituir a noo dehorizonte pessoal de leitura pelo de contexto prtico de utilizao56, comoao propor uma capacidade poitica ilimitada e arbitrria por parte dos leitoresem situao57.

    A terceira a de que a nica escala de observao , portanto, a pe-quena escala, aquela que reconstri aquela situao que, por sua vez, constri osactores, os lances (enjeux) e as estratgias58. claro que, se por atender s situa-es apenas se quer significar contextualizar adequadamente as aplicaes demodelos gerais e verificar a ambivalncia das suas apropriaes, o mtodo nopassa de um trusmo59.

    56 [...] uma definio alargada dos discursos - conotada quer com as formulaes tericas ditas

    da alta poltica, quer com determinadas sries organizadas em funo de uma instncia decontrolo discursivo (hospital, penitenciria, universidade, etc.) - ter ainda de integrar a mul-tiplicidade de sentidos que se encontram nas prticas que do a ler esses mesmos discursos,bem como nas diversas maneiras de politizao de enunciados inicialmente criados fora daesfera considerada poltica. Esta inevitvel disperso de significados encontra uma disciplinade anlise em torno dos materiais impressos, mas revela-se mais difcil de seguir no caso dosdiscursos de maior circulao, dos sermes aos rumores, bem como no caso dos discursos ba-seados em formas mais ou menos estereotipadas, da frmula de chancelaria ao captulo decorte. Se um mesmo enunciado pode ser lido de diferentes maneiras, como comeou por pro-por a teoria da recepo, o importante procurar analisar as reaces suscitadas pelos dife-rentes discursos. Um ponto de vista desta natureza sugere uma interrogao mais profundaacerca das modalidades de crena, legitimao ou reconhecimento baseadas em discursos.(CURTO, Diogo R., cit., p. 6)

    57 [...] surpreender a capacidade de uma audincia e de certos agentes construrem outrossignificados nos prprios actos de recepo. Prolongar este jogo de relaes supe conferiraos agentes, aos grupos ou s audincias uma capacidade de conferir significados, a uma or-dem social, a um sistema de crenas ou a um simples acto, significados que no se encontrampreviamente determinados. (CURTO, Diogo R., cit., p. 179)

    58 Um ponto de vista desta natureza aspira tambm a uma reconstituio mais precisa dos con-textos e das situaes em que ocorrem os diversos tipos de actos, tendendo, por isso, a acentuaruma escala de anlise microssociolgica. Partindo desta mesma escala, ser mais fcil recons-tituir as diferentes situaes de negociao, deciso e conflituosidade que caracterizam as rela-es dos indivduos ou dos grupos; e, simultaneamente, escapar ao crculo vicioso de muitasinterpretaes que, situadas a uma escala de anlise macrossociolgica, se bloqueiam nas ideiasfeitas sobre o sentido dos movimentos de mudana, os processos, as revoltas e as revolues[cita literatura sociolgica sobre a relao micro-macro (CURTO, Diogo R., cit., p. 2).

    59 Na verdade, no tem grande novidade chamar a ateno para o seguinte. Inventariar estescomportamentos, sem perder de vista o contexto conflitual em que se situam, constitui uma es-pcie de salvaguarda frente s leituras que tendem a reduzir a cultura popular lgica doprocesso de civilizao, centrado nos mecanismos e nos modelos de controle da violncia. Emsuma, compreender a lgica dos comportamentos populares supe deixar em aberto a sua di-versidade de pequenas tcticas, elaboradas ao sabor dos acontecimentos, e a no querer reite-rar atravs de anlise histrica as categorias da cultura hegemnica, quando atribui aos po-pulares e de forma geral aos inimigos as marcas da selvajaria e de uma violncia a controlar.Supe, ainda, uma maior ateno diversidade das situaes e a uma verificao das bolsasque, no interior da sociedade global, permanecem isoladas, sem que tais situaes impliquemnecessariamente comportamentos de violncia. (CURTO, Diogo R., cit., p. 177)

  • Antnio Manuel Hespanha28

    A quarta a de que a interpretao das situaes nunca fornece chavesque ultrapassem essa situao, uma vez que os contextos so irrepetveis. Quan-do muito, facilita aluses (que bem se podem transformar em iluses...). Areconstruo de um objecto geral como cultura poltica surge assimcomo um problema metodolgico central60.

    A quinta que, vista esta irrepetibilidade dos contextos e a inextensi-bilidade dos modelos interpretativos, a narrativa histrica inverificvel61. Pormuito que se sobrecarreguem os textos de citaes eruditas e de papelada dearquivo, ou por muito enfticas, fortes ou mesmo terrorizantes que sejam asafirmaes dos autores, as concluses a que se chega so apenas problemticas eprovisrias aluses a sentidos inatingveis, locais e efmeros62.

    Seja como for, as questes postas ao modelo aqui proposto (que tambm o que tenho cultivado, mas nem sempre aquele que tenho sugerido, emmomentos de maior desvario...) no deixam de ser pertinentes.

    A meu ver, sobretudo, em dois pontos:

    60 Uma perspectiva analtica que se desenvolve em funo da interpretao dos actos e dos

    acontecimentos ter de explicar a prpria disperso das unidades que constri, ou seja, terde saber encontrar na prtica os critrios que justificam a resoluo de um problema o que uma cultura poltica ? atravs de uma abordagem fragmentria cita bibliografia sobrefragmentao e histria (CURTO, Diogo R., cit., p. 10). Da que, coerentemente, o A. afir-me: Sem pretender oferecer qualquer tipo de sntese, este livro ser construdo sob a gide dadescontinuidade dos espaos, dos tempos e dos objectos. E se nas suas trs partes se encontra-rem velhas questes sobre nveis de cultura e grupos sociais, o poder carismtico, a constru-o de um espao pblico, a burocracia e a formao das elites, no se julgue que atravs de-las se pretende restaurar uma qualquer unidade temtica perdida. partida, a questo de sesaber qual a cultura poltica em Portugal, no perodo que decorre entre 1578 e 1642, ofereceum quadro propositadamente vago para poder inscrever nele uma sucesso de fragmentos e depequenas histrias. Tal como numa viagem sem destino certo, nenhum porto parece seguro....(CURTO, Diogo R., cit., p. 11)

    61 [...] Toda e qualquer preocupao de exaustividade fica excluda de uma anlise apostada emprovar a vantagens da fragmentao, na resposta a um problema de lgica de aco dosagentes e dos grupos. Por isso, a necessidade de alargar o inventrio de tais comportamentosdever ser orientada em funo de uma preocupao mais comparativa do que exaustiva[...].Frente s definies unvocas da cultura popular em progressiva tomada de conscinciapoltica [...], uma anlise destinada a compreender a lgica dos comportamentos polticos po-pulares, circunscrita descrio de um conjunto de acontecimentos, procede por insinuao.(CURTO, Diogo R., cit., p. 175-176)

    62 E a verdade que, muito frequentemente, se encontram no texto referido confisses de nonliquet, alertando para a indecidvel complexidade, para a ambgua polissemia, para a insufici-ncia da anlise. v.g., Mas a verdade que muito pouco se sabe acerca do significado de taisconjuntos de actos ou dos smbolos de representao que neles se utilizam (CURTO, DiogoR., cit., p. 106). A mostra militar constitui exemplo por excelncia da sua convergncia. A suadifuso constitui um processo social complexo, que dificilmente poder ser identificado com oda criao de uma cultura de massas. Pois, tal como se verificou, a mostra pode ser conside-rada como um modo de organizao formal sujeito a usos sociais diferenciados, o mesmoacontecendo com determinados argumentos passveis de ser utilizados por agentes situados emposies contrrias. (CURTO, Diogo R., cit., p. 121)

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 29

    Ao requerer uma melhor dilucidao da tenso entre categoriasculturais dominantes (simplificando um pouco, de senso comum)e categorias alternativas, bem como uma atenta ponderao dosseus equilbrios;

    Ao insistir numa melhor explicitao da matriz de transacesque, num contexto determinado, se realizam entre o modelo dosenso comum e os impulsos induzidos pela situao concreta.

    A minha convico pessoal a de que existem matrizes gerais de per-cepo, avaliao e reaco, histricas e integrantes do senso comum. Que estas,tendo espaos de incerteza e limites de variao, so tendencialmente coerentes.Que disso que se fala quando se fala de categorias de senso comum. E que estesenso comum mais do que as situaes que nos enredam pesa duramentesobre as nossas vidas. Neste sentido, creio que a histria da cultura comum,como a que tento fazer e como a que outros a tm feito, tem um sentido explica-tivo muito grande, sobretudo se se quiserem entender os processos sociais seriaise massivos.

    No me comove muito o descentramento do sujeito que com isto seopera; por um lado, porque no creio do seu descentramento venha algum mal histria; mas, mesmo que viesse, o sujeito no menos descentrado se o escra-vizarmos lgica das situaes concretas63.

    O ponto terico crtico, aqui, outro. o da capacidade trans-histricade aceder a esses universos categoriais dadores de sentido. Porm, tenho quedizer que no conheo nenhum fundamento metodolgico que garanta que, sedescermos do macro para o micro, das categorias para as prticas, das estruturaspara os indivduos, esses problemas de inacessibilidade desapaream.

    ZEsta ltima observao permite-nos um curso excurso sobre uma das

    novas modas da histria a biografia.Nos ltimos tempos, a biografia ficou de moda. Os mritos da novida-

    de vo para um grupo de companheiros de ofcio, de inspirao relativamenteconsistente, com referncias culturais tambm bastante partilhadas e todos elescomungando, se no me engano, de um certo desfastio pela histria chamadaestrutural. Em comum tm tambm a escrita sedutora e um bom conhecimento,pelo menos ao nvel que lhes interessa, do perodo sobre que trabalham64.

    63 Recorde-se novamente Diogo Ramada Curto: Segundo risco: o de radicalizar os aspectos

    subjectivos da cultura. Neste caso, para evitar os exageros ser necessrio ter sempre presenteo horizonte dos actos e das situaes. (CURTO, Diogo R., cit., p. 4)

    64 Em Portugal, a teorizadora desta nova histria poltica, entendida como histria biogrfica, temsido Ftima Bonifcio. Os operacionais so vrios, colaborando muitos deles num nmero deAnlise social dedicada ao tema 21.160 (2001).

  • Antnio Manuel Hespanha30

    Na teorizao desta histria biografia, a que tambm chamam polti-ca, ressaltam sobretudo duas ideias-chave.

    Uma delas a recusa de esquemas interpretativos fortes, daquelesusados pelos cientistas sociais dos vrios matizes, substituindo-os por uma in-terpretao evidente (pelo menos, de senso comum), do gnero daquela quens usamos para nos orientarmos na vida. O que, sendo pacfico para ns inter-pretarmos a vida de hoje, bastante mais problemtico para ns interpretarmos avida de h muitos anos. Os nossos filhos sabem, disso, quando procuram enten-der os pais; e ns prprios o sabemos tambm quando temos a sorte de aindapoder tentar entender os nossos. Na minha opinio, por detrs da evidncia dealguns enredos, podem esconder-se retroprojeces da sensibilidade de hoje. Eisto, j se v, tem perigos graves.

    A outra ideia-chave do nvel biografismo a de que so os homensconcretos e no os desenvolvimentos annimos das estruturas / tambmmentais) que modelam a histria. Mas como no so muitos os homens queesto em condies de modelar a histria pelo menos, a histria de um pas ,quem acaba por interessar a esta corrente historiogrfica so os grandes ho-mens, nomeadamente os grandes polticos.

    A grande biografia exige, em princpio, um grande biografado(pressupondo, naturalmente, que escrita por um grande bigrafo). Na sua falta,a biografia transforma-se num acto de cruel assassinato de um personagem,sempre confrontado com o personagem ideal que nunca foi, que nas condiesno poderia ter sido e que porventura nem sequer quis ser. Ressalvado o ltimolivro de Vasco Pulido Valente (Glria, Lisboa: Crculo de Leitores, 2001), quepode ser a boa contraprova do que acabo de dizer, e a reabilitao de Joo Fran-co, da autoria de Rui Ramos (Joo Franco e o fracasso do reformismo liberal(1884-1908), Lisboa: ICS, 2001), a ltima literatura (e no apenas deste gnero)sobre o sculo XIX portugus tem ganho, por isso mesmo, um tom cido, corro-sivo, e subrepticiamente moralista, de inventariao de mediocridades; que sno espanta muito, porque parece herdeira da auto-avaliao dos prprios con-temporneos, tambm eles cultivando j um o juzo azedo sobre uma sociedadeque, um pouco olimpicamente, consideravam decadente. Para alm de que, nomnimo, esta pr-compreenso implica um confronto sem sentido entre pasesmodelos (a Inglaterra, a Prssia, a Frana) e pases medocres (designadamente,Portugal).

    Da que voltando um pouco atrs , talvez se deva repensar na hi-ptese mais tradicional de investigar a vida dos outros homens, traando os taisgrandes frescos sociais ou mentais que, necessariamente, havero de ser in-formados por algum modelo interpretativo geral , de onde resultem os grandescenrios (econmicos, culturais, institucionais, jurdicos) em que os homens pequenos e Grandes se movem. E a retornaremos, seguramente, a uma hist-ria das categorias, dos sentidos comuns, mais gerais ou mais locais, que coman-davam os clculos pragmticos (que definiam, por exemplo, o que era glria,e, depois, que papel a sua busca devia ocupar numa estratgia de vida).

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 31

    ZEm suma, o que se pretende, aqui, sublinhar a necessidade de ter em

    conta o modo de transaco entre ideias e interesses, entendidos estes ltimoscomo os resultados mais directos da interaco social65.

    Poder-se- ento entender como um sistema de ideias (o liberal) cujalgica era a da generalizao absoluta da cidadania, posto em contacto com umcerto ambiente de prticas e interesses polticos inspito a essa generalizao, deformado por ele, e obriga a desenvolver elementos tericos capazes de in-troduzir critrios selectivos nas anteriores teorias da Nao e do indivduo.

    justamente este tipo mediatizado de conversao entre sistema eambiente66 que permite ultrapassar, quer uma histria das ideias que ignora osmecanismos de transaco com o exterior do sistema ideolgico, quer com umahistria social (ou uma histria poltica) que pressupe que as ideias so ili-mitadamente mobilizveis e disponvelmente funcionalizveis a quaisquer pro-jectos, estratgias ou interesses sociais e polticos. Assim, o que aqui nos inte-ressa sublinhar o modo como interesses at a justificados teoricamente nosquadros de uma concepo que, por motivos tambm tericos, deixou de poderservir buscaram novas justificaes nos quadros da nova teoria, para poderemsobreviver socialmente. E, ao mesmo tempo, ver esta teoria a alterar-se simesma para poder incluir em si desenvolvimentos capazes de justificar os no-vos/antigos interesses. O processo pode ser assim descrito: uma nova teoriadeslegitima interesses estabelecidos. Nem a primeira nem os segundos podemser sacrificados. Assim, a teoria tem que se equipar com mdulos tericos su-plementares que permitam relegitimar (em novos quadros) os interesses per-manentes/subsistentes.

    Uma nota final sobre interesses. Interesses so tambm, muito cla-ramente, representaes, neste caso acerca das vantagens (ou inconvenientes) do

    65 Literatura recente acerca da histria dos interesses tem salientado como estes so inevitavel-

    mente mediatizados pelas representaes da realidade social; e, deste modo, como to poucoeles escapam capacidade poitica das categorias. Cf. ORNAGHI. Interesse. Bologna: Il Mu-lino, 2000.

    66 Com estas referncias a sistema e ambiente, remete para os modelos tericos auto-poiticos, que me parecem muito produtivos neste contexto. Cf., por todos, N. LUHMANN,Essays on self-reference. Columbia: Col. U.P., 1990. No mesmo sentido de evocao de umaperspectiva sistmica, v. A seguinte formulao de M. Barberis: Si potrebbe forse aggiungere riformulando le posizioni della Storia concettuale e della Scuola di Cambridge nel gergodellevoluzionismo filosofico che i concetti giuspolitici nascono ed evolvono come le specienaturali, adattandosi ai mutamenti dellambiente. Coloro i quali, nei diversi contesti storici,partecipano ai giochi della politica o del diritto, compiono certo atti intenzionali, comedeliberate mosse del gioco; tali atti intenzionali, per, generano spesso effetti inintenzionali,n voluti n previsti dagli autori, fra i quali occorre annoverare gli stessi concetti, sempreintesi come regole duso del linguaggio. Dunque, i concetti si formano e si affermanocompatibilmente con le esigenze dellambiente, e sopravvivono solo a patto di adattarsi aimutamenti di questo. (BARBERIS, M. Libert. Bologna: Il Mulino, 1999)

  • Antnio Manuel Hespanha32

    alargamento do universo poltico a certas categorias pessoas. Mas, ao estudar-mos estes interesses, no estamos a tocar numa realidade bruta (isto , no me-diatizada por representaes). Pelo contrrio, estamos em pleno mundo das ima-gens e de representaes acerca de categorias de pessoas e acerca de vantagens edesvantagens polticas. Identificamos mulheres, dementes, falidos, loucos, me-nores, a partir das imagens (dos esquemas de percepo) que aplicamos reali-dade contnua do universo dos nossos parceiros sociais. Atribumos ou no van-tagens sua participao poltica, em funo imagens sobre as suas qualidades,sobre a ordem poltica, sobre as nossas qualidades e, finalmente, sobre o que nosconvm da ordem poltica67.

    ZNeste texto, vamos utilizar quase apenas categorias e conceitos tirados

    dos corpos literrios do direito comum europeu. Isto obriga-nos a esclarecer umpouco as razes desta fixao no discurso jurdico e, a partir da, dizer duaspalavras de um elogio da histria do direito.

    Comeo por salientar que o direito dispunha, realmente, de um corpotextual imponente. No plano dos livros impressos, as matrias jurdicas (de di-reito civil ou de direito cannico, de direito comum ou de direitos ptrios, natratadstica ou na praxstica) cobriam uma elevada percentagem da edio. Pelosfinais do sc. XVIII, se excluirmos os temas puramente literrios, o direito vinhaem segundo lugar, logo a seguir teologia, no panorama editorial portugus,espanhol ou napolitano:

    Assuntos Portugal Espanha< c. 1750, % < ad c. 1670, %

    Teologia 31 40Filosofia 3 4Medicina 3 4Direito 5 9tica 3 2Matemtica 4 3Histria 29 22Literatura 20 12Outras 2 6

    (Cmputos feitos com base em Barbosa Machado, Bibliotheca luzitana, crti-ca e chronologica, Lisboa, Of. Grficas Bertrand (Irmos) Lda, 1741-1759, 4vols.; Nicolas Antnio: Bibliotheca hispana nova: sive hispanorum scriptorumqui ab anno MD. ad MDCLXXXIV. flourere notitia: tomus primus. Matriti[Madrid]. Apud Joachimum de Ibarra typographum regium, 1783.)

    67 Sobre o carcter construdo do interesse, Ornaghi, 2000, Lorenzo, Interesse. Bari: Laterza,

    2000, Introduzione.

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 33

    Ainda sem abandonar o plano dos escritos de natureza culta, umabase de dados de textos jurdicos de ndole terica ou doutrinal produzidos emPortugal, nos scs. XV a XVIII, e mantidos em arquivos ou bibliotecas portu-guesas pde reunir mais de 6 000 peas, sem excessivas pretenses de exausti-vidade. Para alm disto, a mole imensa dos escritos jurdicos prticos, produzi-dos quotidianamente por escrives e notrios. Numa quantificao muito gros-seira, feita a partir dos emolumentos destes funcionrios, pude calcular que, sno domnio da administrao judiciria, se escreveriam em Portugal, por ano,milhares de laudas68.

    Estes escritos, situados a nveis diversos da comunicao social des-de as universidades at s escrivaninhas das pequenas terras , infiltravam-secontinuamente no dilogo social, disseminavam a imagens e tpicos acerca dasociedade e dos seus vrios grupos.

    Mas esta centralidade no decorria apenas do carcter massivo de pro-duo escrita, que inaugurou aquilo a que Pierre Legendre chamou espaosdogmticos industriais69. Decorria tambm do lugar que a cultura tico-polticado direito comum reservava justia, lugar esse a que, provavelmente, no eraestranho o funcionamento dessa industria dogmtica.

    A justia como equilbrio, como atribuio do seu lugar a cada coisa(ius suum cuique tribuendi) era, de facto, um virtude central numa imagem domundo dominada pela ideia de ordem, como era a Weltanschaung de AntigoRegime. Arte das artes e governo das almas (ars artium, & animarum regi-men), chama-lhe Manuel lvares Pegas, logo no promio do seu monumentalcomentrio s Ordenaes filipinas (Pegas, 1669, I, in proem., gl. 23, n. 2). Combom fundamento, pois j S. Toms de Aquino lhe atribura uma posio desta-cada no quadro da sua lista das virtudes (Summa theol., IIa.IIae, p. 57-122). Ajustia tinha virtudes anexas: a religio, a piedade, a reverncia, a gratido, averdade, a amizade, a liberalidade e a equidade. Em todas elas, havia alterida-de, ou seja, havia deveres a cumprir para com outrem; ou para com Deus, oupara com os pais ou superiores, ou para com os amigos, ou para com a proprianatureza das coisas (como no caso da verdade e da honestidade). Por isso,como a justia diz respeito aos outros explica S. Toms todas as virtudesrelativas a outrem so conexas com a Justia, pois tm algo em comum com ela.O mundo das virtudes s no se reduzia justia ou porque, estando esta ltimarelacionada com a igualdade (cf. idem, a.11), nem todas as outras se lhe podiamidentificar, uma vez que algumas careciam de igualdade nas recprocas presta-es (o caso mais tpico era a religio cf. p. 80, a. un.); ou porque, noutras delas,a razo do dbito no era estritamente jurdica.

    68 HESPANHA, A. M. Centro e periferia no sistema poltico portugus do Antigo Regime. Ler

    histria, 8(1986), p. 35-60.69 LEGENDRE, Pierre. L'empire de la vrit. Introduction aux espaces dogmatiques industriels.

    Fayard, 1983

  • Antnio Manuel Hespanha34

    Mas, basicamente, podia ser dito que justo era todo o comportamentodevido e que se podia pretender, em nome da justia, no apenas as dvidas dodireito, mas tambm, o respeito filial, a reverncia social, a gratido pelas mer-cs, a amizade merecida e aprpria correspondncia no amor. E, por isso, o queDeus erigia, no Fim dos Tempos, era precisamente um Tribunal, um juzo, cha-mando justos aos da sua direita e injustos ao da sua esquerda70.

    ZA centralidade a que acabamos de aludir explica a pervasividade de

    conceitos jurdicos no discurso cultural e social pr-moderno. A. Gurevic des-creve a cultura medieval como construda sobre o direito, retomando a conhe-cida designao utilizada por F. Chabod para descrever a cultura da Europameridional, no Antigo Regime la civilt della carta bollata, a cultura do papelselado.

    De facto, a centralidade, aliada longa permanncia da cultura jurdi-ca ocidental cujo corpus doutrinal se mantm durante sculos e sculos ,fizera com que ela tivesse embebido os esquemas mais fundamentais de apreen-so cognitiva e valorativa do mundo, instituindo grelhas de distino e de classi-ficao, maneiras de descrever, constelaes conceituais, regras de inferncia,padres de valorao. Esquemas que se tinham incorporado na prpria lingua-gem; que se tinham tornado comuns numa literatura vulgar ou em tpicos ebrocardos; que se exteriorizavam em manifestaes litrgicas, em programasiconolgicos, em prticas cerimoniais, em dispositivos arquitectnicos. E que,por isso, tinham ganho uma capacidade de reproduo que ia muito para almdaquela que decorria dos textos originais em si mesmos. A tradio literriateolgica, tica e jurdica constitua, assim, um habitus de autorrepresentaodos fundamentos antropolgicos da vida social. Neste sentido, a sua aco demodelao dos comportamentos antecedia mesmo qualquer inteno explcita econscientemente normativa, pois decorria de que a tradio jurdica inculcavanecessariamente uma panplia completa de utenslios intelectuais de base, ne-cessrios apreenso da vida social.

    Porm, a literatura jurdica era tudo menos puramente descritiva. Asua carga preceptiva era enorme.

    Primeiro porque, nela, o tom descritivo decorre, desde logo, de umacrena na indisponibilidade da ordem do mundo. As suas proposies apareciamancoradas, ao mesmo tempo, na natureza e na religio. De facto, o que aparece,como que descrito, nos livros de teologia e de direito constitui o dado inevitvelda natureza ou o dado inviolvel da religio. Os estados de esprito dos homens(affectus), a relao entre estes e os seus efeitos externos (effectus), eram apre-sentados como modelos forosos de conduta, garantidos a montante pela inder-

    70 HESPANHA, A. M. Justia e administrao nos finais do Antigo Regime, In: Hispania. Entre

    derechos propios y derechos nacionales. Milano: Giuffr, 1989. p. 135-204.

  • A Poltica Perdida Ordem e Governo antes da Modernidade 35

    rogabilidade da natureza e, a jusante, pela ameaa da inevitvel perdio eternae tambm da eventual punio terrena.

    Depois porque, para alm de decorrer de uma crena, a descrio era,tambm, um expediente retrico para reforar a perceptividade. Este tom descri-tivo inculcava, na verdade, a inelutabilidade natural de que as normas morais ejurdicas apareciam revestidas.

    Em suma, apesar de todas as aparncias estilsticas, inteno dos tex-tos tico-jurdicos no era a de descrever o mundo, mas de o transformar. Trans-formar, porm, mais por meio da sua eficcia simblica de constituir imagens,do que pela sua capacidade de enunciar normas de comportamento efectiva-mente dotadas de coao71.

    ZDeste modo, os textos jurdicos tm, ao nvel da sociedade, uma es-

    trutura semelhante do habitus, tal como concebido por Pierre Bourdieu. Porum lado, constituem uma realidade estruturada (pelas condies de uma prticadiscursiva embebida em dispositivos textuais, institucionais e sociais especfi-cos), que incorpora esquemas intelectuais cuja adequao ao ambiente fora com-provada72. Mas, por outro, constituem uma realidade estruturante que continua aoperar para o futuro, inculcando esquemas de apreenso, avaliao e aco.

    Tanto os intuitos prticos, como o apelo a valores universais como anatureza e a religio, favoreciam a difuso destes modelos mentais e pragmti-cos em auditrios culturalmente muito diferentes do grupo dos produtores. Paraalm disso, os ambientes institucionais em que os textos eram produzidos dispu-nham de interfaces de vulgarizao muito eficazes (a parentica, a confissoauricular, a literatura de devoo, a liturgia, a iconologia sagrada, para a teolo-gia; as frmulas notariais, a literatura de divulgao jurdica, os brocardos, asdecises dos tribunais, para o direito), por meio dos quais os textos-matriz obti-nham tradues adequadas a uma grande multiplicidade de auditrios.

    este secular embebimento que tornaram a moral e o direito em sabe-res consensuais. De resto, esta consensualidade em torno das suas proposiesfundamentais constitua uma vocao central destes discursos.

    Esta vocao para a consensualidade provm, antes de mais, das pr-prias condies de produo da tradio literria em que os textos se incluem.Trata-se, com efeito, de uma tradio que, durante vrios sculos, tinha traba-lhado sobre bases textuais imodificadas e que tinha podido produzir, como que

    71 Cf. SARAT, Austin; KEARNS, Thomas R. (Cords.): The Rhetoric of Law. Ann Harbor:

    University of Michigan Press, 1995.72 Esta uma vantagem deste corpo literrio sobre a tradio literria ficcional ou puramente

    ensastica. que, aqui, os mecanismos de controlo de adequao prtica das proposies ouno existem ou tm muito menos fora reestruturante. Uma personagem psicologicamente in-verosmil no obriga necessariamente o autor a reescrever uma novela.

  • Antnio Manuel Hespanha36

    por sedimentao, as opinies mais provveis, i.e., as mais aceitveis pelo audi-trio73. Esta sedimentao tinha cristalizado o acquis consensual em tpicos,brocarda, dicta, regras, opiniones communes. Era a, portanto, que estavamdepositadas as opinies mais comuns e mais durveis do imaginrio sobre ohomem e a sociedade.

    Mas provinha tambm da inteno prtica a que antes j nos referi-mos. A educao pela persuaso no se pode levar a cabo seno a partir de umncleo de proposies geralmente aceites. Para modificar eficazmente os com-portamentos dos homens, a moral e o direito tinham que partir de bases consen-suais de argumentao e exigir atitudes tambm no muitos distantes daquiloque era consensualmente tido como justo.

    ZO carcter consensual deste ncleo de representaes fundamentais

    no exclua, evidentemente, vises conflituais, sobre as quais era preciso optar,em vista da formao de uma regra de comportamento.

    O saber teolgico-jurdico tinha desenvolvido mtodos de encontrar asoluo justa que, por um lado, deixavam aparecer a pluralidade de vi