3
ANTROPAGOGIA Manuel Ferreira Patricio Universidade de Evora 1. 0 termo "pedagogia" tern origem no grego: paidagogia. E urn termo composto. Duas sao as componentes: pais, paid6s, que significa "crian<;a"; agein, que significa "conduzir", "levar". Na Grecia antiga, 0 pedagogo era 0 escravo que conduzia, levava, acompanhava as crian<;as ao ped6triba, ao citarista e ao gramatico ou didascalo. A estes cabia ministrar ensino. Ao pedagogo cabia conformar-Ihes 0 comportamento e 0 caracter ao longo das caminhaqas de as levar e trazer. Esta concep<;ao e esta pratica passaram da Grecia aRoma, encontrando-se em larim classico 0 termo paedagogus (pedagogo ). Com 0 tempo, 0 termo "pedagogia" veio a significar 0 saber, te6rico e pratico, acerca da educa<;ao, em sentido mais geral a ciencia e arte da educa<;ao, por vezes a filosofia da educa<;ao, definindo a respeito desta os princfpios, os fins e os meios de realiza<;ao. Os romanos seguiram os gregos; 0 preceptor, ou mestre, veio a corresponder ao escravo pedagogo. 0 termo "pedagogo" entrou na lingua latina e nela ficou. As linguas modemas levaram algum tempo a incluir no seu lexico os termos "pedagogia" e " pedagogo". Na lingua francesa, isso ocorreu no seculo XVI. Na lingua portuguesa, 0 termo "pedagogia" aparece em 1813, no Dicionario de Moraes, que referenda 0 termo "pedagogo" ja no seculo XVI. 2. E importante lembrar Platao no quadro da analise do conceito de "pedagogia". A Republica, que em grego se diz Politeia, e urn longo e profundo tratado sobre a Paideia. Portamo, sobre a Educafiio, e a Cultura em que a Educar;iio consiste. o conceito de Paideia e rico, complexo e evolutivo. Ate hoje, ninguem 0 estudou tao bern como Werner Jaeger na sua monumental obra Paideia, Die Formung Des Griechischen Menschen (Berlin, 1936). 0 termo e, para Jaeger, intraduzfvel nas nossas linguas modernas. Nao e traduzivel por "dviliza<;ao", "cultura", "tradi<;ao", "literatura" ou "educa<;ao". Todos estes termos designam aspectos da "Paideia", que e urn conceito global que integra todos estes aspectos, fazendo deles uma unidade incindfvel. Ha, todavia, urn outro conceito de PlaU'io, que e 0 de condw;;iio da alma, a que corresponde 0 termo "psicagogia". E no Fedro que se encontra a apresenta<;ao do pensamento de Platao sobre esta questao, na sua exposi<;ao da doutrina da alma. Dessa doutrina destacaremos 0 que respeita a estrutura ontol6gica da alma (psyche). E ela a seguinte, na sintese de Julian Marias: "a alma tern tres partes: uma parte concupiscente ou sensual, que e a que esta mais relacionada com as necessidades corporais; uma segunda parte, irascivel, correspondente aos impulsos e afectos; e, por ultimo, a parte racional mediante a qual e possivel 0 conhecimento das ideias e a voli<;ao em sentido deliberativo, segundo a razao." (Julian Marias, Hist6ria da Filosofia, Porto, Edi<;5es Sousa & Almeida, Lda., s. d., p. 72). A esta ontologia da<psique. corresponde rigorosamente uma etica, a que corresponde, por sua vez, uma direccrao da alma. A virtude regente da parte concupiscente e a temperancra (sophrosyne); A da parte afectiva e a fortaleza (andria); a da parte racional e a sabedoria ou prudencia (phr6nesis). A virtude suprema, regente da alma na sua unidade, e a justi<;a na sua concretude (dikaiosyne). A psicagogia e, no fim de contas, a conducrao onto16gico-etica da psyche (alma). No seculo XX, 0 termo "psicagogia" foi integrado no vocabulario psico16gico, como se pode ver no Vocabulaire de La Psychologie, de Henri Pieron (PUF, 1963 3), mas 0 1

Antropagogia Manuel Ferreira Patricio

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Antropagogia Manuel Ferreira Patricio

ANTROPAGOGIA

Manuel Ferreira Patricio Universidade de Evora

1. 0 termo "pedagogia" tern origem no grego: paidagogia. E urn termo composto. Duas sao as componentes: pais, paid6s, que significa "crian<;a"; agein, que significa "conduzir", "levar". Na Grecia antiga, 0 pedagogo era 0 escravo que conduzia, levava, acompanhava as crian<;as ao ped6triba, ao citarista e ao gramatico ou didascalo. A estes cabia ministrar ensino. Ao pedagogo cabia conformar-Ihes 0 comportamento e 0

caracter ao longo das caminhaqas de as levar e trazer. Esta concep<;ao e esta pratica passaram da Grecia aRoma, encontrando-se em larim classico 0 termo paedagogus (pedagogo). Com 0 tempo, 0 termo "pedagogia" veio a significar 0 saber, te6rico e pratico, acerca da educa<;ao, em sentido mais geral a ciencia e arte da educa<;ao, por vezes a filosofia da educa<;ao, definindo a respeito desta os princfpios, os fins e os meios de realiza<;ao. Os romanos seguiram os gregos; 0 preceptor, ou mestre, veio a corresponder ao escravo pedagogo. 0 termo "pedagogo" entrou na lingua latina e nela ficou. As linguas modemas levaram algum tempo a incluir no seu lexico os termos "pedagogia" e " pedagogo". Na lingua francesa, isso ocorreu no seculo XVI. Na lingua portuguesa, 0 termo "pedagogia" aparece em 1813, no Dicionario de Moraes, que referenda 0 termo "pedagogo" ja no seculo XVI.

2. E importante lembrar Platao no quadro da analise do conceito de "pedagogia". A Republica, que em grego se diz Politeia, e urn longo e profundo tratado sobre a Paideia. Portamo, sobre a Educafiio, e a Cultura em que a Educar;iio consiste. o conceito de Paideia e rico, complexo e evolutivo. Ate hoje, ninguem 0 estudou tao bern como Werner Jaeger na sua monumental obra Paideia, Die Formung Des Griechischen Menschen (Berlin, 1936). 0 termo e, para Jaeger, intraduzfvel nas nossas linguas modernas. Nao e traduzivel por "dviliza<;ao", "cultura", "tradi<;ao", "literatura" ou "educa<;ao". Todos estes termos designam aspectos da "Paideia", que eurn conceito global que integra todos estes aspectos, fazendo deles uma unidade incindfvel. Ha, todavia, urn outro conceito de PlaU'io, que e 0 de condw;;iio da alma, a que corresponde 0 termo "psicagogia". E no Fedro que se encontra a apresenta<;ao do pensamento de Platao sobre esta questao, na sua exposi<;ao da doutrina da alma. Dessa doutrina destacaremos 0 que respeita a estrutura ontol6gica da alma (psyche). E ela a seguinte, na sintese de Julian Marias: "a alma tern tres partes: uma parte concupiscente ou sensual, que e a que esta mais relacionada com as necessidades corporais; uma segunda parte, irascivel, correspondente aos impulsos e afectos; e, por ultimo, a parte racional mediante a qual e possivel 0 conhecimento das ideias e a voli<;ao em sentido deliberativo, segundo a razao." (Julian Marias, Hist6ria da Filosofia, Porto, Edi<;5es Sousa & Almeida, Lda., s. d., p. 72). A esta ontologia da<psique. corresponde rigorosamente uma etica, a que corresponde, por sua vez, uma direccrao da alma. A virtude regente da parte concupiscente e a temperancra (sophrosyne); A da parte afectiva e a fortaleza (andria); a da parte racional e a sabedoria ou prudencia (phr6nesis). A virtude suprema, regente da alma na sua unidade, e a justi<;a na sua concretude (dikaiosyne). A psicagogia e, no fim de contas, a conducrao onto16gico-etica da psyche (alma). No seculo XX, 0 termo "psicagogia" foi integrado no vocabulario psico16gico, como se pode ver no Vocabulaire de La Psychologie, de Henri Pieron (PUF, 1963 3), mas 0

1

Page 2: Antropagogia Manuel Ferreira Patricio

significado que lhe foi atribuido e diferente do que se encontra em Platao. 0 termo aparece em 1924, com Kronfeld, que designou com este termo uma psicoterapia que inspirasse no doente a confianc;a em si. Em 1948, a senhora Baumgarten-Tramer deu 0

mesmo nome a urn ramo da psicologia que estabelecesse, para 0 ser humano, linhas de conduta e Ihe fornecesse instruc;oes titeis (Henri Pieron, op. cit., p. 316).

3. A adequa~ao do termo "pedagogia" ao conceito e deste a realidade nao foi questionada senao em meados do seculo XX. Forc;ou essa questionac;ao 0 facto de se ter tornado social mente importante a educac;ao de adultos. Pierre Furter propos, nesse contexto, que se adoptasse 0 termo "'andragogia" para designar a cieI.1cia e arte da educac;ao de adultos. 0 Relat6rio Faure (da UNESCO, publicado originalmente em frances em 1972) aceita 0 novo termo, que teve a sua yoga. Entretanto, uma orientac;ao mais comeniana do pensamento e da pratica facilmente poe a vista que em educac;ao 0

que esta em causa e a formac;ao do ser humano ellquanto tal. "Pedagogia" e "andragogia" nao correspondem a exigencia de universalidade humana. 0 primeiro termo aponta para a crianc;a e 0 segundo para 0 adulto masculino, para 0 varao, esquecendo 0 adulto feminino, que exigiria uma "ginagogia". 0 termo que realmente se ajusta, em pleno, ao ser humano - seja qual for a sua idade ou sexo - e "antropagogia", com a sua origem no grego anthrop6s. Na Didactica Magna, Comenio abriu 0 caminho, ao citar S. Gregorio Nazianzeno, pondo avista a expressao "anthropon agein", conduzir o ser humano para ser 0 que e, formar 0 Homem, sendo esta a arte das artes (tecne tecnon). A Didactica magna e precisamente, para Comenio, a arte das artes: a arte da formac;ao do Homem (Cf. Comenio, Didactica Magna, Lisboa, Fundac;ao Calouste Gulbenkian, 1966, p. 47). Como definir "antfopagogia"? Tal como a "pedagogia", eia tern uma dimensaote6rica e uma dimensao pnltica: e puro saber acerca da Educac;ao e e saber-fazer, saber realizar, a Educac;ao, relacionando intimamente os dois saberes. Felix Adam plasmou 0 termo no universo linguistico da Educac;ao em 1970, que saibamos pela primeira vez, segundo informa Ricardo Nassif (Ricardo Nassif, Teoria de La Educaci6n; Madrid, Ed. CinceI, 1984, 3a reimp., p. 144). Em Portugal, mediante analise independente, plasmamo-lo nos proprios, a partir de 1979, no ambito do magisterio da disciplina de Teoria da Educac;ao na Universidade de Evora (Manuel Ferreira Patricio, Teoria da Educa~iio, Universidade de Evora, 1983, pp. 35-48). Chegamos aseguinte definic;ao de "antropagogia": "teoria e pratica da formac;ao do Homem no horizoI)te de plenificac;ao da sua humanidade (humanitas)". A atmosfera epistemicada definic;ao ecomeniana, em que 0 referencial e o quadrinomio didactico do grande moravio: omnes, omnia, omnino, semper. Quem deve ser ensinado? Todos. Que deve deve ser-Ihes ensinado? Tudo. Como se Ihes deve ensinar? De todas as maneiras. Quando? Sempre. E uma atmosfera com a qual vem a coincidir no essencial a ideia de Otto Willmann da Didactica como teoria da forma~ao humana. Parece uma ideia adeguada as exigencias colocadas a educac;ao pelas sociedades contemporaneas. Articula-se bern com os conceitos de filosofia da',educac;ao, antrOp01egia, psiceIogia e"personologia.

4. A relac;ao do termo "antropagogia" com 0 termo "antropologia" e limpida. A antropologia e a cienda do Homem. Responde a famosa pergunta de Kant: Que e 0

Homem? A antropagogia e a ciencia e arte da forma~ao do Homem. Responde a pergunta fundamental: Como formar 0 Homem? A hora historica que vivemos e contraditoria: por urn lado;·reconhece-se a necessidade de investir na forrnac;ao do Homem acima de tudo, como a prioridade das prioridades; por outro lado, a pressao da Economia exerce-se no sentido de reduzir a Educa~ao a

2

Page 3: Antropagogia Manuel Ferreira Patricio

Forma<;ao para 0 Trabalho e a consequente instrumentaliza<;ao da Educa~aq. enquanto Forma<;ao Humana. ° conceito de "antropagogia" nao padece de nenhuma ambiguidade, e clarissimo. Aponta em direc<;ao aexigencia primordial de formar 0 ser humano na sua humanidade (humanitas). A 16gica que 0 habita eesta: e preciso que 0

Homem se conhec;a a si proprio, no seu ser; e preciso que 0 Homem se forme, se eduque, se cuinpra no seu ser. ° programa antropag6gico deflui, por conseguinte, limpidamente, do programa antropo16gico. Assurnindo, alargando e aprofundando a arquitectonica da Nova Antropoiogia, de Gadamer-Vogler, vemos a pirfunide antropologica constitufda como segue, da base para 0 vertice: antropologia f{sica, antropologia biologica, antropologia psicologica, antropologia social, antropologia historica, antropologia filosofica, antropologia religiosa, antropologia cultural, 13 a totalidade da piramide que devera ser cumprida antropagogicamente. A educa~ao a levar a cabo nao pode deixar de ser, no seu cume ou no seu diametro maximo, Educar;;iio Cultural ( ver os verbetes Educar;;iio Cultural e Escola Cultural).

REFERENCIAS

ADAM, Felix, Andragogfa: Cienela de La Educacion de los AduLtos. Fundamentos teoricos. Federacion Interamericana de Educacion de Adultos, Caracas, 1970.

COMENIO, J. A.. Diddctica Magna. Funda<;ao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1966. FAURE, Edgard (Coord.). Apprendre aEtre. UNESCO, Paris, 1972. FURTER, Pierre. Grandeur et misere de La pedagogie. Universite de Neuchatel,

.. Neuchatel. 1971. MARIAS, Julian. Historia da Filosofia. Edi~oes Sousa & Almeida, Porto, s. d. NASSIF, Ricardo, Teoria de La Educacion - ProbLemdtica pedagogica contemportlnea.

Editorial Cincel- Kapelusz, Madrid, 1984,38 Reimp. PATRICIO, Manuel F .. Teoria da Educar;;iio. Universidade de Evora, Evora, 1983.

- A Disciplina de Teoria da Educar;;iio., Universidade de Evora, Evora 1986. - Lir;;oes de AxioLogia Educacional. Universidade Aberta, Lisboa, 1993. - "Leonardo Coimbra: ponto de convergencia e irradiac;ao de uma Filosofia

contemporanea da Educa<;ao", in Historia, Educar;;iio e lmagindrio. UIiiversidade do Minho, Braga, 1999, pp; 99-108.

WILLMANN, Otto. Teoria de La fonnaci6n humana. Madrid, Instituto "San Jose Calasanz " de Pedagogia, 1942.

3