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0 Unidade I: Unidade: Questões de Antropologia Clássica

Antropologia Clássica Unidade II.pdf

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    Unidade I:

    Unidade: Questes de

    Antropologia Clssica

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    Unidade: Questes de Antropologia Clssica

    Retomando conceitos

    Como vimos na primeira unidade, a Antropologia possui um objeto

    extremamente complexo e denso, e que pode ser estudado desde os mais

    distintos pontos de vista: o Homem e suas obras; sendo assim, como cincia,

    pode-se dizer que seus limites sejam pouco definidos.

    Ocorre que dizer que a Antropologia a "cincia do homem" no basta.

    Se assim fosse, confundiramos facilmente a Antropologia com a Medicina, a

    Psicologia, a Biologia, a Sociologia, a Economia, e tantas outras reas de

    conhecimento que focam o Homem a partir de um determinado mbito de sua

    existncia, individual ou coletiva. Portanto, dizer que se trata da cincia cujo

    objeto o Homem no ajuda a definir este campo de estudos.

    Se recorrermos ao histrico de conformao dessa rea, verificaremos

    que com a especializao progressiva das cincias humanas, datada do sc.

    XIX, a Antropologia se apropriava de questes que acabavam no sendo

    consideradas por essas disciplinas.

    Dentre esses aspectos relegados pelas demais reas de conhecimento,

    destacam-se aqueles que levariam ciso entre uma Antropologia Fsica e

    uma Antropologia Cultural (ambas definidas na unidade anterior);

    respectivamente:

    o estudo das raas humanas e suas caractersticas biolgicas;

    o estudo do homem do ponto de vista social e cultural.

    Sobre esta segunda dimenso da Antropologia, na qual se insere a

    dimenso social do existir humano, ou seja, sua organizao em grupos e as

    dinmicas de convvio social que desenvolvem, poder-se-ia dizer que, aqui,

    este objeto de interesse se

    confunde gravemente com o da

    Sociologia, cincia cujo objeto so

    as interaes interindivduos

    conformando grupos sociais e

    como esses grupos interagem entre

    si. Ocorre que a Sociologia se

    ocupa do estudo de sociedades Shangana warriors gathered around chief IMAGEM: Martin Harvey/Corbis LOCAL Shangana Cultural Village, South Africa COLEO Corbis Yellow

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    que possamos dizer modernas, isso porque nelas se verificam um alto grau de

    alfabetizao, so densas demograficamente (podendo nelas se verificar o

    fenmeno do anonimato) e geograficamente extensas. J a Antropologia

    estuda sociedades mais simples, grafas e conformadas por poucos membros,

    estabelecendo laos sociais muito mais estreitos. Contudo, essa regra se

    aplica exatamente quilo que podemos caracterizar como Antropologia

    Clssica, ou seja, sua configurao conforme seu perodo formativo; isso

    porque, hoje, subreas como a Antropologia Urbana, a Antropologia do

    Cotidiano e a Etnografia Urbana se ocupam exatamente de tipos de sociedade

    complexas, agravando a distino (por conta de sua abordagem e mtodos)

    com relao aos enfoques dados pela Sociologia.

    Os primrdios da Antropologia Clssica

    Como vimos, durante o sc. XIX houve um relevante desenvolvimento

    cientfico, produto da elaborao dos mtodos de investigao, dos sculos

    XVI ao XVIII.

    Decorreu da o

    desenvolvimento, nas cincias da

    natureza (como a qumica,

    primordialmente), de mtodos

    para datao de materiais

    orgnicos, dentre eles, restos

    esqueletais, o que possibilitava

    determinar a antiguidade do

    prprio ser humano. O

    desenvolvimento desses mtodos

    e tcnicas para datao resultou

    em um enorme esforo para

    determinar a antiguidade dos

    inmeros restos humanos que se

    encontravam guardados em

    museus, universidades e centros Sepultamento maia IMAGEM: c LOCAL Museo Nacional de antropologia, Ciudad de Mxico COLEO Acervo particular de Rodrigo Medina Zagni

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    de pesquisa, produto de descobertas arqueolgicas por vezes muito anteriores

    a esse sculo XIX. Este esforo resultou no desenvolvimento de uma nova

    cincia, dedicada exatamente a esses estudos e que passava a assumir como

    objetivo a determinao no s da antiguidade do Homem; mas dos processos

    de evoluo biolgica e social de nossos antepassados: a Antropologia.

    A primeira ciso entre estudos de ordem fsica e de ordem cultural,

    dentro da Antropologia, se deu exatamente neste momento. Isso porque

    antroplogos j se definiam como aqueles que estudavam sociedades distintas

    das europeias, como grupamentos humanos autctones ou sociedades

    primitivas, por exemplo; e um novo grupo de cientistas surgia,

    autodenominando-se tambm como antroplogos, mas voltados investigao

    sobre aspectos rcicos, biolgicos e evolutivos do Homem.

    importante salientar que se no houve acordo quanto ao emprego do

    termo antroplogo, tampouco houve em relao ao termo Antropologia.

    Apesar de nossa conceituao ter bem clara, as distines entre

    Antropologia Fsica e Antropologia Social e Cultural, filiados a uma

    interpretao vigente nos Estados Unidos e na Inglaterra; a escola francesa

    utiliza o termo Antropologia para se referir ao que conhecemos como

    Antropologia Fsica, enquanto no utiliza o termo Antropologia Social e

    Cultural, substituindo-o por etnologia; ao contrrio do que fazem os autores

    anglo-saxes.

    Essa notvel impreciso terminolgica se explica pelo fato de a

    Antropologia ter progredido em crculos cientficos e pases muito distintos,

    resultando em um relativo grau de autonomia entre as correntes que desde

    distintos pontos de vista enveredaram por este complexo campo de estudos.

    Raa e cultura ao longo da Histria

    Nas grandes religies que atravessaram a Histria se verifica um

    princpio comum: o de que os homens so iguais; contudo, se explorarmos as

    dinmicas sociais das mais distintas civilizaes, encontramos a prtica da

    discriminao racial, o que pressupe convices de superioridade e atribuio

    ao outro condio de inferioridade.

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    As civilizaes clssicas Grcia e Roma - praticaram o escravismo

    com base fundamentalmente neste

    princpio. Ainda que tenha se iniciado

    com a prtica da escravido por

    dvida, quando se tornou o eixo

    central da economia antiga o escravo

    j era, invariavelmente, aquele que de

    fora dos limites dos domnios dessas

    civilizaes havia sido apresado; mais

    do que isso, por no pertencer

    civilizao greco-romana, no seria

    merecedor da categoria de humano.

    No contexto da civilizao

    romana, da qual herdamos uma srie

    de caracteres, isso valia para todos

    que estavam de fora de suas

    fronteiras, caracterizados como

    Engraving After The Slave Market by Gustave Boulanger IMAGEM: Bettmann/CORBIS COLEO Bettmann

    Barbarians Invading Paris Ttulo original: The Barques of the Northmen before Paris. IMAGEM: Bettmann/CORBIS COLEO Bettmann

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    brbaros. Evidentemente, a barbrie se define pela contraposio ao conceito

    de civilizao; sendo assim, o termo claramente pejorativo e expressa juzos

    de valor assentados na convico de superioridade cultural, trao caracterstico

    dos povos da antiguidade clssica.

    No estamos tratando, contudo, de condutas racistas; uma vez que a

    civilizao romana se constituiu de um mosaico de povos distintos,

    aprofundando-se as dinmicas de miscigenao j assistidas por sculos.

    Trata-se, em essncia, de uma distino cultural, que permitia, por exemplo,

    submeter e dominar o outro, entendido como brbaro, em nome de uma cultura

    superior, signo de civilizao.

    Mesmo com a queda do Imprio Romano do Ocidente, em 476, a

    mesma lgica atravessou os quase mil anos de Idade Mdia na Europa, sob

    domnio da cristandade. Isso para dizer que as convices religiosas

    medievais, sob o cristianismo, tambm assumiram um carter opressor no s

    sobre outros credos religiosos (como o judasmo e o islamismo, por exemplo);

    mas fundamentalmente compunha um repertrio cultural que se auto referia

    como superior, frente a outras culturas que, no mais nominadas brbaras,

    eram referidas como pags (no-crists), sendo assim, inferiores, o que

    legitimava sua submisso ou converso pela fora.

    Condemned Books after a painting by Jehan Georges Vibert Ttulo original: Illustration titled "Condemned Books" after the painting by Vibert. It depicts two clergymen tittering as they burn books condemned by the church in a luxurious fireplace. Undated illustration.

    IMAGEM: Bettmann/CORBIS COLEO Bettmann

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    Na era moderna, inaugurada com a queda do Imprio Romano do

    Oriente (quando Constantinopla cai sob domnio turco), em 1453, assistiu-se

    mesma lgica, obviamente readequada para um novo contexto histrico. A

    partir do Renascimento, a expanso europeia para a sia e frica, bem como a

    conquista e dominao do Novo Mundo, estava carregada desse sentimento de

    superioridade civilizacional, dessa vez associada ao Homem europeu, ou seja,

    ao Homem branco. a, nesse momento, que a questo da superioridade

    cultural, ou civilizacional, passa a ser associada cor da pele.

    Isso dado exatamente no contexto da expanso europeia por meio das

    navegaes, se explica tambm pelo fato de o contato com povos at ento

    desconhecidos possibilitou saber da existncia de distintas etnias, hbitos

    culturais, religies e constituies biotpicas. No se trata apenas do contato

    com o outro: a Europa passava a dominar esses novos e antigos territrios;

    bem como seus habitantes passavam a ser submetidos ao Homem europeu.

    O contato, portanto, no despertou no europeu a vontade de incorporar o outro,

    aquele que aos seus olhos parecia estranho; seno tornou o estranhamento o

    567 x 419 - 366k - jpg - www.jf-sjose.pt/upload/Image/Historia/Planta%...A imagem pode ter direitos autorais. Veja abaixo a imagem em: www.jf-sjose.pt/slpage.php?page=17

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    princpio maior da violncia da conquista, aliado s ambies econmicas e

    polticas inerentes aos processos colonizadores.

    Povos inteiros pereceram sob as convices de superioridade europeia.

    Estima-se que 70 milhes de ndios na Amrica tenham morrido, direta ou

    indiretamente, pelo contato com os colonizadores espanhis e portugueses.

    Africanos foram apresados em seu prprio continente e trazidos como escravos

    para a Amrica; relegando-se toda a sua constituio cultural.

    A questo que no se tratava de uma opo por no compreender a

    cultura de ndios, negros e orientais, seno na convico de que se trava de

    povos no portadores de cultura, ou portadores de culturas inferiores.

    Ainda que o cristianismo, praticado nos principais pases colonizadores

    do perodo, ter defendido em termos teolgicos a igualdade entre os homens; o

    histrico de violncias da Igreja em relao a povos no-cristos, bem como as

    necessidades de manuteno dos alicerces de uma sociedade construda

    sobre bases escravistas, reafirmava a bestializao dos povos no-europeus,

    afirmando o princpio das raas.

    Os precursores da Antropologia moderna

    Com o movimento chamado Humanismo, no contexto do

    Renascimento, esse carter civilizador europeu passou a ser alvo de crticas na

    prpria Europa. Autores como Thomas More, La Botie, Montaigne e Erasmo

    de Rotterdam, entre outros, fizeram pesados ataques moral europeia e suas

    Slaves Crammed into

    Slave Ship Hold The hold of this

    slave ship is shown as 3 foot 3

    inches in height, forcing those inside to sit.

    IMAGEM: Louie

    Psihoyos/CORBIS

    FOTGRAFO Louie Psihoyos

    COLEO Documentary

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    convices de superioridade em relao aos povos dominados pelo Homem

    branco.

    Sua crtica expressa

    nas duas geraes do

    humanismo do Renascimento,

    dos sculos XVI e XVII, serviu

    de fundamento para o

    desenvolvimento posterior do

    movimento iluminista, que

    caracterizou o chamado

    Sculo das Luzes: o sc.

    XVIII.

    Pensadores europeus,

    primordialmente franceses,

    subverteram a interpretao

    valorativa dada aos

    "selvagens" como povos no-

    portadores de cultura,

    exaltando o extico, que

    seguia incompreendido, uma

    vez que foi criado para eles o

    mito do "bom selvagem".

    A questo que, do

    sc. XVI ao XVIII, a crtica

    cultura europeia se deu por

    meio de sua relativizao com as culturas dominadas;

    ainda que as exaltando, marcou-se um relevante

    esforo primeiro para o reconhecimento de que se tratava de povos portadores

    de cultura; segundo para o fato de que no se tratava de culturas inferiores.

    Ainda assim, tratava-se de uma viso de fora e que acabava, na

    prtica, reafirmando a cultura europeia, uma vez que sua pretenso no era

    compreender o outro, seno reformar a civilizao ocidental.

    435 x 600 - 60k - jpg - www.tudorhistory.org/people/more/youngmore.jpg

    Veja abaixo a imagem em: www.tudorhistory.org/people/more/gallery.html

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    Veja abaixo a imagem em: amigodemontaigne.blogspot.com/2008/01/o-anive..

    Portrait of Michel de Montaigne IMAGEM: Stefano Bianchetti/CORBIS DATA DE CRIAO 19th century FOTGRAFO Stefano Bianchetti COLEO Historical

    689 x 969 - 137k - jpg - clotildetavares.files.wordpress.com/2009/08/e...

    Veja abaixo a imagem em: clotildetavares.wordpress.com/2009/08/08/

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    O darwinismo

    Vimos na unidade anterior que na segunda metade do sculo XIX, as

    teses de Charles Darwin sobre a evoluo das espcies influenciaram

    enormemente as cincias biolgicas.

    Este sculo posterior s luzes,

    o sculo do cientificismo, foi marcado

    ento pela viso evolucionista. Se

    pensarmos nas duas antropologias

    que estavam em prtica nesse

    contexto (fsica e cultural), o

    evolucionismo lanava novas luzes a

    ambas. Isso porque restos

    arqueolgicos fossem restos

    humanos ou artefatos desenvolvidos

    e utilizados por humanos, alm de

    datados, poderiam ser classificados

    segundo seu percurso evolutivo.

    Com relao Antropologia

    Fsica, muitos dos restos esqueletais

    no correspondiam em alguns

    detalhes morfolgicos s caractersticas do homem atual. Darwin era o primeiro

    a dar uma explicao consistente, a partir da tese da perpetuao dos mais

    aptos, a esse estranho fenmeno. Ou seja, as diversas configuraes

    anatmicas diferentes do ser humano atual, verificadas em ossadas humanas,

    validavam a tese de que tambm o Homem evolua.

    Era possvel, ento, ordenar logicamente as etapas que constituam a

    linearidade evolutiva humana; bem como criar tipologias para os artefatos

    arqueolgicos escavados.

    Vintage Portrait of Charles Darwin Ttulo original: Darwin explained life as a parade of mutations evolving through a process called natural selection. The foundations of Victorian England were shaken by Darwin's contradiction of the biblical version of creation. IMAGEM: Louie Psihoyos/Science Faction/Corbis FOTGRAFO Louie Psihoyos COLEO Historical

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    A estruturao de uma Antropologia moderna

    Temos, ento, a figura do antroplogo atrelada s pesquisas sobre a

    antiguidade e o percurso evolutivo do Homem; sendo assim, o antroplogo em

    questo , essencialmente, um pesquisador de gabinete, ou seja, trabalha com

    os dados e elementos coletados por outros pesquisadores em suas atividades

    de campo.

    At mesmo os antroplogos que se dedicavam aos estudos culturais, se

    caracterizavam tambm como intelectuais de gabinete, uma vez que lidavam

    com dados obtidos por cronistas viajantes, navegantes, missionrios religiosos

    e exploradores mercenrios. Sendo assim, o despreparo terico daqueles que

    descreviam a cultura at ento desconhecida, era marcada por posturas

    eurocntricas e tendiam a sublinhar os caracteres culturais mais exticos, ou

    seja, aqueles que maior estranhamento causavam sobre o europeu ainda

    portador de convices de superioridade cultural.

    O resultado disso foi uma primeira Antropologia caracterizada pela

    excessiva teorizao e distante demais da realidade.

    No que tange aos aspectos culturais, sob a influncia do darwinismo que

    impregnava sua dimenso fsica, a Antropologia do sculo XIX entendia as

    sociedades primitivas como se estivessem em uma etapa infantil, em relao

    s sociedades adultas: os povos civilizados europeus. Essa convico alocava

    as sociedades europeias como o fim mximo de um processo civilizador e cujo

    496 x 303 - 29k - jpg - 1.bp.blogspot.com/.../S760/evolucao_humana.jpg

    A imagem pode ter direitos autorais.

    Veja abaixo a imagem em: primatasdaajuda.blogspot.com/2009/11/jaquim-d...

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    resultado seria inexorvel: todas as sociedades evoluiriam segundo o modelo

    europeu de cultura.

    Este tipo de convico, profundamente ideolgica e preconceituosa, s

    mudaria com o advento do trabalho antropolgico de campo, institudo como

    prtica no final do sculo XIX.

    Este novo antroplogo no deveria restringir-se ao gabinete, isso porque

    no deveria trabalhar com materiais e dados coletados ou descritos por

    amadores, sob pena de comprometer gravemente a prpria pesquisa. O

    antroplogo seria convertido no pesquisador que se deslocaria fisicamente at

    a sociedade a ser investigada, trata-se das pesquisas de campo, nas quais o

    prprio antroplogo observa e coleta os dados que dever analisar.

    no final do sc. XIX que o antroplogo se torna o investigador cuja

    tarefa se deslocar aos lugares mais distantes do mundo, aprendendo a

    conviver com pequenas comunidades, observando-as e coletando informaes

    com o rigor metodolgico que tambm vai se estabelecendo em torno dessas

    novas tarefas.

    As mudanas, para a Antropologia, foram extremamente significativas. O

    contato mais ntimo com povos que at ento eram compreendidos como

    simples e inferiores, revelou prticas sociais e dinmicas de organizao

    extremamente complexas e imps uma possibilidade interpretativa: no se

    tratariam de povos inferiores; mas sim distintos.

    Essa primeira e mais importante barreira ideolgica s foi rompida,

    sobretudo, pela observao antropolgica emprica.

    Essas mudanas no se operaram imediatamente, tampouco em

    ambiente harmonioso. Nesse final de sculo, o contato dos antroplogos

    ocidentais com outros povos foi marcado por atitudes de superioridade; tanto

    que na literatura antropolgica do perodo so comuns termos como "povos

    primitivos" e "selvagens", para referi-los.

    Os fundamentos tericos de Franz-Boas

    O trabalho pioneiro do antroplogo teuto-americano Franz Boas e seus

    discpulos consiste no mais importante ponto de inflexo nos estudos antropolgicos,

    no que tange ao declnio da Antropologia Rcica (tratada na unidade anterior e nesta),

    uma vez que sua proposta relativista desmontava a ideia de proximidade entre

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    evoluo biolgica e cultural.

    No livro "As Limitaes do Mtodo Comparativo em Antropologia", de 1896,

    Boas demonstrou como os primeiros antroplogos estavam preocupados com

    questes puramente histricas e, enveredando por anlises comparativas e

    valorativas, identificavam semelhanas e afinidades dos povos como indicadores de

    uma origem comum.

    Seu pioneirismo consiste na

    construo terica que assentou

    mtodos radicalmente distintos

    daqueles engendrados nos modos

    de conceber e estudar as culturas

    humanas, propondo relativiz-las,

    ao invs de escalon-las

    hierarquicamente.

    No que estudos

    comparativos no pudessem ser

    feitos entre distintas culturas, ou

    mesmo que no se pudesse

    identificar uma origem comum

    para ambas. Na verdade, o que

    Boas propunha era um processo

    indutivo que identificasse as

    relaes que possibilitariam a

    comparao, para o ento estabelecimento das conexes histricas

    pertinentes.

    Para Boas, o mesmo fenmeno tem sentidos variados em cada cultura.

    Sendo assim, o fato de ocorrncias semelhantes serem identificadas em

    distintas culturas no constitui prova de uma origem comum.

    Consequentemente, no havendo uma nica origem cultural, no se

    pode falar em cultura, seno em culturas. Ou seja, cada cultura tem sua prpria

    histria; no uma cultura humana universal e originria (como pressupunham

    os evolucionistas).

    Sendo ento autnomas, todas as culturas seriam tambm dinmicas

    em suas transformaes ao longo do tempo.

    Franz Boas Anthropologist and professor Franz Boas was the author of numerous scholarly works on aspects of anthropology. IMAGEM: Bettmann/CORBIS DATA DA FOTOGRAFIA 2 de janeiro de 1931 LOCAL New York, New York, USA COLEO Bettmann

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    Nesse contexto, suas crticas pesavam mais gravemente sobre os

    determinismos biolgicos e geogrficos, bem como no transporte de categorias

    explicativas evolucionistas para o tratamento das relaes culturais, o que

    havia levado ao fenmeno do evolucionismo cultural.

    Contrrio a essa explicao evolucionista para a diferenciao das

    culturas, Boas demonstrou que cada sistema cultural constitui uma unidade

    integrada, resultado de um desenvolvimento histrico especfico.

    Com isso, determinou a independncia dos fenmenos culturais em

    relao aos condicionantes geogrficos e biolgicos, vigentes como explicao

    desde o perodo formativo da Antropologia. As dinmicas culturais estariam

    desatreladas desses elementos; obedecendo apenas lgica da interao

    entre os indivduos, o meio e a sociedade.

    A concepo evolucionista aplicada cultura, responsvel pelo

    assentamento de uma viso etapista linear, na forma de estgios evolutivos e

    obrigatrios pelos quais, obrigatoriamente, todas as sociedades passariam,

    assistia ao surgimento de sua mais severa e consistente crtica.

    Esta nova postura terica deslocou completamente os sentidos gerais da

    Antropologia, desde seus objetos, objetivos at o ofcio do antroplogo, que

    passava a ser o estudo de sistemas culturais particulares, no da identificao

    de uma cultura universal.

    Com relao ao mtodo, o princpio fundamental o da relativizao, ou

    seja, culturas so relativas e no mantm relao hierrquica alguma no

    mbito dos valores que possam ser-lhes atribudas. O papel do antroplogo

    seria, portanto, o de no emitir juzos de valor, mas o de relativizar suas

    posturas.

    Os fundamentos tericos de Bronisaw Malinowski

    O antroplogo polaco Bronisaw Kasper Malinowski, criador da chamada

    escola funcionalista, considerado um dos fundadores da prpria Antropologia

    Social.

    Sua maior contribuio se deu sobre a questo dos mtodos utilizados na

    coleta de material etnogrfico e constam do captulo de abertura dos Argonautas do

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    pacfico ocidental, livro originalmente publicado em 1922. At ali, os mtodos

    existentes levavam a maior parte dos antroplogos a concluir pela incoerncia da vida

    primitiva, comparada ideia de civilizao.

    Para Malinowski, essa interpretao nada mais era do que um produto

    distorcido da falha de observao do

    antroplogo, que deslocava seus

    sentidos e significados para aes que

    no correspondiam ao seu sistema

    cultural. Assim sendo, a tarefa

    primordial consistiria em reconstruir o

    universo especfico de significaes da

    cultura estudada.

    Mas como os antroplogos, via

    de regra, europeus e portadores de um

    sistema cultural completamente

    distinto, fariam para compreender

    esses significados?

    As pesquisas de Malinowski nas

    Ilhas Trobiands, onde estudou uma

    populao de 1200 melansios da

    costa nordeste da Nova Guin,

    durante a dcada de 1910, levaram ao

    desenvolvimento de um mtodo

    inovador na forma em coletar dados de

    campo, no qual o pesquisador passava

    a participar diretamente do cotidiano social do grupo observado. Tratava-se da

    observao etnogrfica, na qual a coleta de dados seria realizada por aquele

    que passaria a vivenciar as prticas e partilhar dos significados a elas

    atribudos, permitindo correlacion-los e compreend-los em profundidade.

    Desta forma, no importaria ao antroplogo apenas a ao engendrada

    pelo povo estudado; mas essencialmente a representao da ao, para que

    se pudesse tratar dos significados que constituiriam os fenmenos culturais sob

    enfoque.

    Bronislaw Malinowski Bronislaw Malinowski (1884-1942) the Polish-born British anthropologist who studied folklore and customs. IMAGEM: Hulton-Deutsch Collection/CORBIS DATA DA FOTOGRAFIA ca. 1935 COLEO Historical

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    Obviamente, o desafio do antroplogo seria muito maior do que

    meramente descritivo e valorativo, tendo em vista que aes so, no mais das

    vezes, multirepresentacionais, ou seja, podem estar repletas de significados

    materiais, sociais e simblicos, englobando os mais variados aspectos como:

    econmicos, jurdicos, mgico-religiosos etc.

    Contudo, trata-se de um autor ainda preso ideia de universalidade

    cultural, apesar de reconhecer as particularidades das culturas, uma vez que a

    todo tempo buscava as relaes entre o particular e o universal, perdendo com

    isso a possibilidade de explicar questes como a da diversidade cultural.

    Ocorre que seus pressupostos terico-metodolgicos tiveram lugar

    paradigmtico na Antropologia, deslocando irreversivelmente tanto os

    referenciais tericos quanto os objetivos gerais da disciplina, sendo hoje uma

    referncia obrigatria sobre o modo padro da pesquisa etnogrfica.

    O trabalho de campo, depois de Malinowski, passou a se constituir

    mediante a observao participante, em grupos sociais de dimenses

    reduzidas e distintos daquele ao qual pertenceria o investigador. Esses

    pressupostos passaram a constituir, desde ento, os pilares da nascente

    Antropologia Social e Cultural, marcando a dimenso da importncia do autor

    para as Cincias Humanas e Sociais, isso porque o trabalho de campo,

    segundo definido por Malinowski, passou a constituir o mtodo privilegiado da

    Antropologia, influindo determinantemente na sua constituio como disciplina

    cientfica autnoma.

    Os fundamentos tericos de Claude Levi-Strauss

    O pensador francs Claude Levi-Strauss o fundador da chamada

    Antropologia Estrutural, corrente que se conformou a partir de seus estudos

    sobre povos indgenas do Brasil, no perodo em que aqui permaneceu

    integrando a misso francesa que teve como objetivo estruturar as reas de

    Cincias Humanas da recm-criada Universidade de So Paulo, no perodo

    que se estendeu de 1935 a 1939. Durante esses quatro anos, estudando

    aspectos sobre a lngua, costumes e lendas de povos indgenas, coletou os

    dados que permitiriam criar uma nova teoria antropolgica, elaborada e

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    apresentada entre o final da dcada de 1940 e incio de 1950.

    O percurso que desenvolveu no

    curto perodo em que esteve no Brasil

    revela as profundas mudanas que

    vinha sofrendo a prpria Antropologia.

    Desde que chegou, em 1935, passou a

    dar aulas de Sociologia na USP at

    1938, j empreendendo suas primeiras

    incurses de campo em territrio

    indgena. Contudo, a necessidade de

    empreender pesquisas de campo mais

    demoradas levou-o a abandonar o

    magistrio, o que o possibilitou passar

    mais tempo nas comunidades indgenas

    que estudava: os Kaingang, no Norte do

    Paran (na regio do rio Tibagi); os

    Kadiweu, na divisa com o Paraguai; e

    os Bororo, do Mato Grosso. Em 1938,

    retornou da Frana onde havia prestado

    exames para o magistrio, e ps-se a

    estudar os ndios Nambiqwara, do Mato

    Grosso; bem como os Tupi-Kaguahib, na regio do rio Machado, que se

    pensavam desaparecidos.

    Os pressupostos da nova corrente terica foram publicados em duas de

    suas principais obras: As Estruturas Elementares do Parentesco, de 1949; e

    Tristes Trpicos, de 1955; que o notabilizam mundialmente.

    Lvi-Strauss fez uso da chamada teoria estruturalista francesa, a qual

    pressupunha que estruturas universais estariam por trs de todas as aes

    humanas, dando forma s culturas em suas mais variadas manifestaes:

    linguagem, mitos, religies etc.

    Lvi-Strauss foi responsvel por uma revoluo intelectual

    considervel, e que consiste na aplicao do mtodo estruturalista ao conjunto

    dos fatos humanos de natureza simblica. Isso possibilitou ao antroplogo

    estudar o pensamento selvagem, e no o pensamento do selvagem. No se

    French Philosopher Claude Levi-Strauss IMAGEM: Annemiek Veldman/Kipa/Corbis DATA DA FOTOGRAFIA 1980s LOCAL Paris, France FOTGRAFO Annemiek Veldman COLEO Sygma

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    trata de uma mudana insignificante, seno na subverso completa do enfoque

    das pesquisas antropolgicas realizadas at ali. Ou seja, Strauss deixou de

    fazer a distino do funcionamento mental entre os povos primitivos e os povos

    europeus, para afirmar que o pensamento selvagem poderia ser encontrado

    em cada um de ns.

    Distinguiu-se gravemente dos demais antroplogos que buscavam

    revelar as diferenas entre povos e culturas, na maioria das vezes valorativas;

    enquanto Strauss buscava as estruturas universais, tambm chamadas de

    estruturas profundas.

    Sem se preocupar com as diferenas, os estudos de Lvi-Strauss

    colaboraram na relativizao entre povos e culturas, estreitando seus laos

    pela via da aceitao do diverso exatamente porque, para ele, as diferenas

    entre os povos no constituam o objeto central de interesse antropolgico.

    Para Lvi-Strauss, a maior parte dos antroplogos estava preocupado

    com o que nominou de aparncia. Obviamente, utilizou-se de um dos

    fundamentos do Estruturalismo para fazer esta afirmao, exatamente a

    oposio entre essncia e aparncia. Suas pesquisas estavam dirigidas aos

    sentidos profundos das aes humanas e de seus produtos, na busca pela

    essncia, encontrando-se com a psicologia, a lgica e a filosofia das

    sociedades estudadas. A mera descrio das prticas rituais de uma

    determinada sociedade, a aparncia, no lhe interessava.

    Essa nova e revolucionria abordagem encontrou contornos tericos

    acabados na obra O Pensamento Selvagem, de 1962. Sobre o impacto que

    representou, para alm da Antropologia, implicava em como tratar o at ento

    denominado homem primitivo. Seu mtodo estruturalista permitia

    compreender que sociedades tribais revelavam sistemas lgicos notveis, de

    qualidades mentais racionais to sofisticadas quanto s de sociedades at

    ento tidas como superiores.

    Sua teoria desmontava as convices comumente aceitas de que as

    sociedades primitivas seriam intelectualmente deficitrias e

    temperamentalmente irracionais, e que suas aes e obras, que constituam

    seus pobres repertrios culturais, tinham por finalidade a satisfao de

    necessidades imediatas, como as de alimento, vestimenta e abrigo.

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    Sob esses novos pressupostos tericos, a viso pejorativa sobre as

    tribos primitivas estava fadada a desaparecer.

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    Responsvel pelo Contedo:

    Prof. Ms. Rodrigo Medina Zagni

    Reviso Textual:

    Prof. Dra. Patrcia Silvestre Leite Di Irio

    www.cruzeirodosul.edu.br

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