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ANTROPOLOGIA SOCIAL DA RELIGIÃO E. E. Evans-Pritchard coordenação EDUARDO B. VIVEIROS DE CASTRO tradução JORGE WANDERLEY EDITORA CAMPUS LTDA. uma casa da Elsevier/North-Holland Rio de Janeiro 1978 Publicado originalmente em inglês sob o título Theories of Primitive Religion © Oxford University Press, 1965. © 1978, Editora Campus Ltda. Todos os direitos para a língua portuguesa reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros, sem a permissão por escrito da editora. Projeto Gráfico Ana Luisa Escorel Editora Campus Ltda. Rua Japeri 35 Rio Comprido Tel 284 8443 20000 Rio de Janeiro RJ Brasil Ficha Catalográfica (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Evans-Pritchard, E. E. E93a Antropologia social da religião; tradução /de/ Jorge Wanderley. Rio de Janeiro, Campus, 1978. (Contribuições em Antropologia, História e Sociologia) Do original em inglês: Theories of primitive religion_ Bibliografia 1. Homem (Teologia) I. Título II. Série CDD - 200.1 78-0074 CDU - 21

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ANTROPOLOGIA SOCIAL DA RELIGIÃO E. E. Evans-Pritchard

coordenação

EDUARDO B. VIVEIROS DE CASTRO

tradução JORGE WANDERLEY

EDITORA CAMPUS LTDA. uma casa da Elsevier/North-Holland

Rio de Janeiro 1978 Publicado originalmente em inglês sob o título Theories of Primitive Religion © Oxford University Press, 1965. © 1978, Editora Campus Ltda. Todos os direitos para a língua portuguesa reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros, sem a permissão por escrito da editora. Projeto Gráfico Ana Luisa Escorel Editora Campus Ltda. Rua Japeri 35 Rio Comprido Tel 284 8443 20000 Rio de Janeiro RJ Brasil Ficha Catalográfica (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Evans-Pritchard, E. E. E93a Antropologia social da religião; tradução /de/ Jorge Wanderley. Rio de Janeiro, Campus, 1978. (Contribuições em Antropologia, História e Sociologia) Do original em inglês: Theories of primitive religion_ Bibliografia 1. Homem (Teologia) I. Título II. Série CDD - 200.1 78-0074 CDU - 21

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ÍNDICE Prefácio à Edição em inglês, 9 Introdução, 11 Teorias Psicológicas, 35 Teorias Sociológicas, 71 Lévy-Bruhl, 111 Conclusão, 139 Bibliografia, 169 índice Remissivo, 181

PREFACIO A EDIÇÃO EM INGLÊS uatro dessas CONFERÊNCIAS SIR D. OWEN EVANS foram proferidas no Colégio Universitário de Wales, Aberystwyth, na primavera de 1962. Elas estão aqui apresentadas praticamente tal como foram escritas para a referida ocasião, muito embora alguns parágrafos não tenham então sido lidos,

uma vez que, se eu assim o fizesse, ultrapassaria o tempo que me havia sido concedido. A conferência que aqui aparece como a de n.º IV foi escrita na mesma época, mas como me haviam pedido apenas quatro conferências, não foi ela incluída, na ocasião, entre as demais. Deve o leitor levar em consideração que estes textos foram programados para a audição e não para a leitura; e também que foram lidos para uma audiência altamente educada em antropologia, embora incluindo também não-especialistas. Estivesse eu falando para colegas de profissão ou mesmo para estudantes de antropologia, e certamente teria, algumas vezes, utilizado linguagem algo diversa, embora de significado idêntico. Em meus comentários referentes a Tylor, Frazer, LévyBruhl e Pareto, baseeí-me maciçamente em artigos publi-

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cados muitos anos atrás no BULLETIN OF THE FACULTY OF ARTS da Universidade Egípcia (Cairo), na qual ocupei por algum tempo a cátedra de Sociologia; são artigos que circularam desde então até agora em Departamentos de Antropologia Social em versões mimeografadas e cujas partes principais aqui vão expostas. Por conselhos e críticas formulados, devo agradecer ao Dr. R. G. Lienhardt, e aos Drs. J. H. M. Beattie, R. Needham, B. R. Wilson e M. D. McLeod. E E. E.-P.

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INTRODUÇÃO

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stas conferências examinam o modo pelo qual vários escritores que podem ser considerados antropólogos - ou, pelo menos, como escrevendo dentro do campo antropológico - tentaram compreender e interpretar as crenças e práticas religiosas de povos primitivos. Devo esclarecer

desde o início que estarei lidando basicamente apenas com teorias acerca das religiões de povos primitivos. Discussões mais gerais sobre religião, quando fora destes limites, são periféricas ao meu tema. Assim, procurarei me manter naqueles que podem ser geralmente considerados como textos antropológicos, e, em sua maioria, de escritores ingleses. Pode-se notar que nosso interesse aqui se concentra menos em religiões primitivas, do que nas várias teorias formuladas com a intenção de explicá-las. Se alguém perguntasse qual o interesse que as religiões dos povos mais simples poderia ter para nós, eu responderia em primeiro lugar que alguns dos mais importantes filósofos políticos, sociais e morais, desde Hobbes, Locke e Rousseau até Herbert Spencer, Durkheim e Bergson julgaram os dados da vida primitiva como sendo dotados de grande signifi-

11 cação para a compreensão da vida social em geral; e assinalaria, ainda mais, que os principais responsáveis pelas modificações do pensamento em nossa civilização durante o último século, os grandes "fazedores de mitos" quê foram Darwin, Marx-Engels, Freud e Frazer (talvez eu devesse incluir Comte), todos mostraram intenso interesse pelos povos primitivos e usaram o que se conhecia a seu respeito para nos convencer de que - embora muito do que recebia crédito e estímulo no passado não mais pudesse recebê-los hoje - nem tudo estava perdido; considerada com o devido distanciamento, a luta valeu a pena. Em segundo lugar, eu responderia que as religiões primitivas são espécies do gênero Religião e todo aquele que tiver qualquer interesse pela religião deve compreender que um estudo das idéias e práticas religiosas dos povos primitivos, que são muito variadas podem ajudar-nos a chegar a certas conclusões acerca da religião em geral, e por extensão, acerca das religiões ditas mais elevadas, ou das religiões históricas ou positivas, ou das religiões de revelação, incluindo a nossa própria. Contrariamente a essas religiões mais elevadas, que são geneticamente relacionadas entre si (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, ou Hinduísmo, Budismo e Jainismo), as religiões primitivas em partes do mundo isoladas e amplamente apartadas entre si, dificilmente poderão ser outra coisa senão desenvolvimentos independentes, sem relações históricas entre elas, de modo que fornecem valiosíssimos dados para uma análise comparativa que vise a determinação dos caracteres essenciais do fenômeno religioso e que pretenda efetivar afirmações gerais, válidas e significativas a este respeito. Estou evidentemente ciente de que teólogos, historiadores clássicos, hebraístas e outros estudiosos da religião freqüentemente ignoram as religiões primitivas, julgando-as de pequena importância; mas me consolo com o pensamento de que menos de cem anos atrás Max Müller estava

12 batalhando contra as mesmas forças - complacentemente entrincheiradas - para conseguir o reconhecimento das línguas e religiões da índia e da China como importantes para a compreensão da linguagem e da religião em geral; uma luta que, é verdade, ainda está por ser vencida (aonde estão os departamentos de lingüística e religião comparadas deste país?), mas na qual já se fez algum avanço. Gostaria mesmo de dizer mais: que para compreender plenamente a natureza da religião revelada, temos que compreender a natureza das chamadas religiões naturais, uma vez que nada poderia ser revelado acerca de qualquer coisa, se o homem não estivesse já dotado de uma idéia acerca da coisa mesma. Ou então, talvez devamos dizer, a dicotomia entre religião natural e religião revelada é falsa e suscita obscuridade, pois há um sentido dentro do qual se pode dizer que todas as religiões são religiões de

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revelação: o mundo que as circunda e sua razão em toda parte revelaram aos homens algo divino e algo de sua própria natureza e seu próprio destino. Poderíamos pensar nas palavras de Santo Agostinho: "O que agora se chama de religião cristã existiu entre os antigos, e não estava ausente do alvorecer da raça humana, até que o Cristo veio em carne: e a partir de então a verdadeira religião, que já existia, passou a ser chamada de cristã."1 Não hesito, ademais, em dizer que embora os estudiosos das religiões mais altas olhem de cima dos seus pedestais, com desprezo, para nós outros antropólogos e nossas religiões primitivas - nós não dispomos de textos - fomos nós, mais que ninguém, os que reunimos o vasto material de cujo estudo nasceu a ciência da religião comparada, apesar de algo inseguramente; mais ainda, por mais inadequadas que possam parecer as teorias baseadas nestes 1 August. Retr.i 13. Citado por F. M. Müller, SELECTED ESSAYS ON LANGUAGE, MYTHOLOGY AND RELIGION, 188 1,i.5.

13 dados, poderiam servir e algumas vezes têm servido a estudiosos indo-europeus e a especialistas em estudos clássicos e semíticos, assim como a egiptologistas, na interpretação de textos de suas áreas de estudo. Aqui revisaremos, no curso destas conferências, algumas dessas teorias, de forma que devo me referir ao impacto que causaram sobre muitas disciplinas especializadas os escritos de Tylor e Frazer na Inglaterra, e de Durkheim, Hubert e Mauss, e Lévy-Bruhl, na França. Podemos não achá-los aceitáveis hoje, mas, em seu tempo, eles desempenharam importante papel na história do pensamento. Não é fácil definir o que deveremos entender por religião a fim de alcançar o propósito a que se destinam estas conferências. Fosse conveniente enfatizar crenças e práticas e seríamos forçados a admitir inicialmente a definição mínima de religião de Sir Edward Tylor (embora haja aí algumas dificuldades), como sendo a crença em seres espirituais, mas desde que deveremos enfatizar basicamente as teorias das religiões primitivas, não me sinto suficientemente livre para escolher uma definição em lugar de outra qualquer, pois que tenho que discutir certas hipóteses que ultrapassam os limites da definição de Tylor. Algumas delas incluirão, sob o rótulo de religião, tópicos tais como magia, totemismo, tabu e mesmo bruxaria; ou seja, praticamente tudo o que integra a expressão "mentalidade primitiva", ou o que, para o erudito europeu, parece irracional ou supersticioso. Farei forçosamente muitas referências à magia, uma vez que muitos autores merecedores de crédito não fazem qualquer diferença entre magia e religião e falam de elementos mágico-religiosos, ou as consideram geneticamente relacionadas num desenvolvimento evolutivo; outros ainda, embora distingam uma coisa da outra, encontram, para ambas, explicações semelhantes. Os estudiosos vitorianos e eduardianos interessaram-se profundamente pelas religiões dos povos simples, princi-

14 palmente porque enfrentaram, eles mesmos, em seu tempo, uma crise; e escreveram muitos livros a respeito. Assim, se me fosse necessário referir todos os autores desses períodos, as conferências deste livro não passariam de um recitativo de títulos e nomes. Preferi, portanto, selecionar os autores mais influentes ou típicos de uma ou outra determinada forma de análise dos fatos e discutir suas teorias como representativas de variantes do pensamento antropológico. Os detalhes que se perderem por esta escolha metodológica se compensam pelo que ganharmos em clareza. As teorias da religião primitiva podem ser adequadamente consideradas sob a designação de psicológicas e sociológicas; sendo as psicológicas subdivididas (e aqui estou empregando os termos de Wilhelm Schmidt) em íntelectualistas e emocionalistas. Esta classificação, que, ademais, se coaduna grosseiramente com o suceder histórico,

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servirá aos seus propósitos expositivos, embora alguns autores se situem entre as categorias mencionadas ou se enquadrem em mais de uma delas. Meu tratamento em relação a estes casos pode parecer muito severo ou negativista. Mas creio que encontrarei atenuantes no fato de que freqüentemente se vê como são inadequadas e mesmo ridículas muitas das interpretações escritas a respeito do fenômeno religioso. Os leigos podem não estar alertados para o fato de que muito do que se escreveu no passado - e às vezes com muita segurança - e que ainda hoje circula por escolas e universidades a respeito de animismo, totemismo, magia, etc., revelou-se, com o tempo, errôneo, ou, pelo menos, duvidoso. Assim, tenho o dever de ser crítico, antes de construtivo, para mostrar por que teorias aceitas durante algum tempo são hoje indefensáveis e têm ou tiveram de ser rejeitadas no todo ou em parte. Se eu puder persuadir o leitor de que muito é ainda incerto e muito ainda obscuro, meu trabalho não

15 terá sido vão. Nem terá, o leitor, ilusões de que somos portadores de respostas definitivas para as questões levantadas. Efetivamente, num olhar retrospectivo é às vezes difícil entender de que maneira algumas das teorias que pretenderam estudar as crenças dos homens primitivos e o desenvolvimento da religião chegaram a ser propostas. O espanto não depende apenas do fato de que agora, à luz da pesquisa moderna, muito se conhece que não podia ser conhecido pelos autores de então. Isto é inegável; mas mesmo a respeito dos fatos que estavam à mão desses autores, é espantoso que tanto se tenha escrito na direção oposta à do bom senso. E esses autores eram eruditos de grande conhecimento e habilidade. Para compreender o que agora nos parece terem sido interpretações falsas, teríamos que escrever um tratado a respeito do clima de pensamento daquele tempo, das circunstâncias intelectuais que limitaram os raciocínios dos autores: uma curiosa mistura de positivismo, evolucionismo, e alguns remanescentes de uma religiosidade sentimental. Estaremos revisando algumas dessas teorias nas conferências, mas eu gostaria já aqui e agora de recomendar como um "locus classicus" a INTRODUÇÃO A HISTÓRIA DA RELIGIÃO, de F. B. Jevons que foi por muito tempo famosa e muito lida e difundida; à época, em 1896, Jevons era professor de Filosofia da Universidade de Durham. Para ele a Religião era um desenvolvimento evolutivo uniforme do totemismo - sendo o animismo "uma teoria filosófica primitiva, muito mais do que uma forma de crença religiosa"1- que evoluiria para o politeísmo e o monoteísmo. Mas não pretendo discutir ou dissecar suas teorias. Apenas menciono o livro como o melhor exemplo que conheço para demonstrar como as teorias sobre as religiões primitivas podem se revelar errôneas - 1 F. B. Jevons, AN INTRODUCTION TO THE HISTORY OF RELIGION, 1896, p. 206,

16 pois acredito que não há no livro nenhuma afirmativa geral ou teórica que se possa defender hoje plenamente. Ele é uma coletânea de reconstruções absurdas, hipóteses e conjecturas insustentáveis, especulações incultas, suposições e analogias inadequadas, incompreensões e, especialmente no que o autor escreveu sobre o totemismo, é simplesmente puro disparate. Na eventualidade de algumas teorias que apresentarei nas conferências parecerem excessivamente simplórias, eu pediria que se recordassem de alguns fatos. A antropologia estava ainda em sua infância, na época - e dificilmente poderíamos dizer que já se encontre em idade adulta, hoje. Até muito recentemente ela tem sido o afortunado campo de caça de beletristas, e tem sido especulativa e filósofica, na mais antiquada das maneiras. Se pode dizer que a psicologia começa a dar os primeiros passos no sentido de uma autonomia científica por volta de 1860, mesmo sem se livrar de suas peias filosóficas senão quarenta ou cinqüenta anos depois, a antropologia

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social, por seu turno, que deu seus primeiros passos à mesma época, só bem mais recentemente vem se libertando de estorvos semelhantes. Um fato notável a registrar é o de que nenhum dos antropólogos cujas teorias sobre as religiões primitivas exerceram grande influência, tenha jamais estado entre um povo primitivo. É como se um químico julgasse desnecessário entrar em um laboratório. Assim, os antropólogos deviam se basear em informações que lhes eram fornecidas por exploradores europeus, missionários, administradores e negociantes. É evidente que tais dados são altamente suspeitos. Não digo que fossem todos fabricados, embora alguns realmente o fossem; e mesmo alguns viajantes famosos tais como Livingstone, Schweinfurth e Palgrave cometiam grosseiros descuidos,

17 Muitos desses dados, portanto, foram falsos, a maioria não merecia crédito e, pelos modernos padrões da pesquisa profissional podem também ser julgados como casuais, superficiais, sem visão perspectiva e distanciados do contexto real. Até certo ponto, tais críticas se aplicam mesmo aos primeiros antropólogos profissionais. A este respeito, afirmo que as primeiras descrições das idéias dos povos simples e suas interpretações não podem ser consideradas tais como se apresentam, nem devem ser aceitas sem um exame crítico de suas fontes e sem o concurso de fortes evidências corroborativas. Qualquer pessoa que tenha realizado pesquisas entre povos primitivos anteriormente visitados por exploradores e outros, pode testemunhar que os dados fornecidos por estes são freqüentemente incertos, não merecedores de confiança mesmo a respeito de matérias que podem ser avaliadas pela simples observação, sendo a insegurança mais grave em assuntos tais como as crenças religiosas, nos quais a simples observação de nada serve; aqui, as afirmativas podem ser flagrantemente falsas. Eis um exemplo de uma região com a qual estou particularmente familiarizado; diante de recentes trabalhos e extensas monografias acerca das religiões dos Nilotas do Norte, fica estranhíssimo ler o que o famoso explorador Sir Samuel Baker escreveu sobre elas, em uma comunicação à Sociedade Etnológica de Londres em 1866: "Sem qualquer exceção, eles não têm qualquer crença em um Ser Supremo, nem demonstram qualquer forma de culto ou idolatria. Tampouco é a obscuridade de suas mentes iluminada por sequer um raio de superstição. Seu espírito é tão estagnado como o charco que compõe o seu mesquinho mundo"1. Já em 1871, Sir Edward Tylor pôde mostrar, a partir das 1 S. W. Baker, THE RACES OF THE NILE BASIN, Transactions of the Ethnological Society of London. N. S. V 1867, 231.

18 provas desde então disponíveis, que isto não podia ser verdade1. As afirmações referentes às crenças religiosas de um povo devem sempre ser tratadas com grande cautela, porque nestes casos estamos sempre tratando com o que nem europeus nem nativos podem observar "diretamente", ou seja, com concepções, imagens mentais, palavras, que, todas, requerem, para o entendimento, um amplo conhecimento da linguagem deste povo e também boa percepção de todo o sistema de idéias de que qualquer crença participa, pois esta pode se tornar sem sentido desde que divorciada do conjunto de crenças e práticas ao qual pertence. Muito raramente alguns daqueles observadores estavam dotados de uma mente com hábitos científicos. E verdade que alguns missionários eram homens bem educados e chegaram a falar a língua nativa com fluência, mas falar fluentemente uma língua é bem diferente de compreendê-la; como freqüentemente observei ouvindo conversas entre europeus e africanos e árabes. i_ que aí existe uma nova causa de incompreensão. Os nativos e os missionários poderão estar usando as mesmas palavras, mas as conotações são diferentes, carregam diferentes cargas de sentido. Para alguém

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que não tenha estudado intensamente as instituições nativas e também hábitos e costumes do próprio meio nativo (isto é, coisa bem diferente dos postos de comércio, aldeiamentos missionários e postos administrativos), no máximo se pode esperar que surja um dialeto mascavado no qual seja apenas possível o comunicar-se acerca de experiências comuns e interesses comuns. Tomemos como exemplo uma palavra nativa correspondente à nossa palavra "Deus". O significado da palavra para o falante nativo pode ter apenas uma coincidência mínima com o significado existente na língua do missionário, e num 1 E. B. Tylor, PRIMITIVE CULTURE, Terceira edição, 1891, 1.423-4.

19 contexto muito restrito. O falecido professor Hocart cita um exemplo de tais desencontros, do Fiji: - quando o missionário fala de Deus como "ndina", ele quer dizer que todos os outros deuses são inexistentes. O nativo compreende que aquele é o único Deus efetivo, o único em que se pode crer; os demais deuses seriam eventualmente positivos, porém não merecedores de confiança absoluta ou contínua. Este é apenas um exemplo de como o professor pode querer dizer uma coisa e o aluno compreender outra. Em geral, os dois participantes permanecem candidamente ignorantes do equívoco. Não há remédio para isto, a não ser que o missionário adquira um amplo conhecimento dos costumes nativos e de suas crenças1. Além do mais, as informações utilizadas pelos eruditos para ilustrar suas teorias não somente eram altamente inadequadas, mas também - e isto é o que mais diz respeito ao assunto destas conferências - eram altamente seletivas. O que os viajantes gostavam de deitar no papel era o que mais impacto lhes causava enquanto curioso, rude e sensacional. Magias, ritos religiosos bárbaros, crenças supersticiosas sempre tinham prioridade sobre as rotinas diárias empíricas e enfadonhas que compreendem nove décimos da vida do homem primitivo e são seu principal interesse e sua principal ocupação: sua caça e pesca, a coleta de raízes e frutos, sua agricultura e seu rebanho, construções, fabricação de instrumentos e armas e, em geral, suas ocupações com os afazeres diários, domésticos e públicos. Nada disso ganhava o espaço que merecia, em tempo e importância, na vida daqueles cujo modo de vida estava sendo descrito. Em conseqüência, por dar excessiva importância ao que consideravam como superstições curiosas, 1 A. M. Hocart, MANA, Man, 1914, 46.

20 fatos misteriosos e ocultos, os observadores tendiam a pintar um quadro em que o místico (no sentido que Lévy-Bruhl dá à palavra), ganhava na tela uma porção muito maior do que ocupava na vida real dos povos primitivos; de modo que o empírico, o comum, o senso comum e o mundo da faina diária pareciam ter apenas uma importância secundiária - e os nativos apareciam como infantis, obviamente carentes de uma administração paternal e de zelo missionário, especialmente se houvesse um toque de obscenidade em seus rituais. Assim, os eruditos partiam para o trabalho com base em informações que lhes eram fornecidas ao acaso e provindas de todas as partes do mundo, e organizavam-nas em livros com títulos tão pitorescos como O RAMO DOURADO e A ROSA MISTICA. Estes livros apresentavam uma imagem composta ou caricatural da mente primitiva: supersticiosa, infantil, incapaz de pensar crítica ou consistentemente. Exemplos deste processo, deste uso promíscuo de dados podem ser encontrados em qualquer escritor da época. Assim, "Os amaxosa bebem a bílis de um boi para se tornarem ferozes. Os famosos Mantuana bebiam a bílis de trinta chefes, na crença de que isto os faria fortes. Muitos povos, como os Yoruba, por exemplo, acreditam que "o sangue é a vida". Os Nova-caledonianos comem os inimigos mortos para adquirir coragem e força. A carne de um inimigo morto é comida em Timorlaut para curar a impotência. O

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povo de Halmahera bebe o sangue dos inimigos vencidos para se tornarem bravos. Na Amboina os guerreiros bebem o sangue dos inimigos que venceram para lhes adquirir a coragem. O povo de Celebes o faz para ficar forte.

21 Os nativos de Dieri e tribos das vizinhanças comerão um homem e beberão seu sangue para ganharem sua força; a gordura é friccionada nos doentes"1. E assim por diante, volume após volume... Malinowski satirizou muito bem tais métodos, e a ele se deve a maior parte do mérito de haver tornado fora de moda (pelo ridículo e pelo exemplo), tanto o tipo de investigação que até então se fazia entre povos simples, quanto o uso que os eruditos davam a esses mesmos inquéritos. Malinowski fala das "longas litanias de afirmativas encadeadas que fazem com que nós antropólogos pareçamos idiotas e os selvagens ridículos", tais como "Entre os Brobdignacianos (sic), quando um homem encontra sua sogra os dois se agridem mutuamente e cada um se retira com um olho roxo"; "Quando um Brodiag encontra um urso polar costuma fugir e às vezes o urso o persegue"; "Na antiga Caledônia quando um nativo acidentalmente encontra uma garrafa de uísque pela estrada, bebe tudo de um gole, após o que começa imediatamente a procurar outra garrafa' 2. Já vimos que a seleção ao nível da observação pura produzira uma distorção inicial. O método de compilação com tesoura e cola-tudo, utilizado pelos eruditos em suas poltronas domésticas levou a distorções adicionais. No conjunto, faltou-lhes qualquer sentido de crítica histórica, as regras que um historiador emprega quando avalia dados documentais. Então, se uma falsa impressão era criada pelos observadores dos povos primitivos, pelo fato de atribuírem excessiva importância ao místico em suas vidas, logo passava a ser patrocinada pelo método do "álbum de recortes", este, por sua vez, dignificado pela designação 1 A. E. Crawiey, THE MYSTIC ROSE, 1927 (edição revista e aumentada por Theodore Besterman), 1.134-5. 2 B. Malinowski, CRIME AND CUSTOM IN SAVAGE SOCIETY, 1926, p. 126.

22 de "método comparativo". O processo consiste no que interessa ao nosso assunto, na utilização de recortes acerca de povos primitivos e de todas as partes do mundo, reunindo-os de qualquer maneira, fosse como fosse, retirando ainda mais os elementos de seus contextos reais, para aproveitar apenas o que se referisse ao estranho, sobrenatural, místico, supersticioso — usemos quaisquer palavras — num mosaico monstruoso que pretendia retratar a mente do homem primitivo. Assim, o homem primitivo tinha que aparecer, especialmente nos primeiros livros de Lévy-Bruhl, como claramente irracional (no sentido usual do termo), vivendo num mundo misterioso de dúvidas e temores, com medo do sobrenatural e lidando com ele incessantemente. Creio que qualquer antropólogo dos nossos dias considerará este quadro uma distorção. Efetivamente, o "método comparativo" enquanto assim usado é um equívoco. Havia muito pouca comparação, se nos referimos a comparação analítica. Havia apenas um conglomerado de itens que pareciam ter algo em comum. Podemos mesmo dizer que tal "método" possibilitou aos autores a elaboração de classificações preliminares em que inúmeras observações poderiam ser encaixadas, dentro do limitado número de rótulos, o que dava a tudo uma certa impressão de ordem; era o seu único valor. Mas este era na realidade um método ilustrativo e não comparativo; quase aquilo que os psicólogos chamam de "método anedótico". Um grande número de exemplos era trazido em feixe para ilustrar alguma idéia geral e para dar apoio às teses do autor acerca de tal idéia. Não havia nenhuma tentativa de por à prova as teorias a partir de exemplos não selecionados. As mais elementares precauções eram negligenciadas, enquanto vagas conjeturas se seguiam umas às outras (e recebendo a designação de hipóteses). As mais simples regras da lógica indutiva (métodos de concordân-

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cia, diferença e variações concomitantes) eram ignorados. Assim, para dar um simples exemplo, se Deus é, como Freud o diria, uma projeção da imagem paterna idealizada e sublimada, tornar-se-ia necessário mostrar que concepções de divindade variam com as diferentes posições que ocupa a figura paterna na família em diferentes tipos de sociedades. E mais, exemplos negativos, se levados em consideração (o que era raro) eram logo descartados como sendo desenvolvimentos tardios, decadência, sobrevivência ou qualquer outro capricho evolutivo. As primeiras teorias antropológicas, como se verá em minha próxima conferência, não apenas procuravam explicações para as religiões primitivas em fundamentos psicológicos, como também tentavam colocá-los numa gradação evolutiva ou como um estágio do desenvolvimento social. Uma cadeia de desenvolvimento lógico era assim construída dedutivamente. Na ausência de registros históricos, não se poderia dizer com certeza que em qualquer exemplo em particular o desenvolvimento histórico correspondesse ao paradigma lógico - na realidade, a partir da metade do século passado eclodiu uma verdadeira batalha entre aqueles que aceitam a teoria da progressão e aqueles que optam pela teoria da degradação, os primeiros sustentando que as sociedades primitivas se encontravam em um estado de desenvolvimento inicial e retardado, embora progressivo, no caminho da civilização; e os segundos, defendendo o ponto de vista de que elas já haviam estado, em algum tempo anterior, em condição de mais alta civilização, da qual regrediram. O debate se concentrou especialmente na religião, tendo um partido afirmado que aquilo que eles consideravam fossem elevadas idéias teológicas encontradas entre alguns povos primitivos eram um primeiro lampejo de verdade, que mais tarde levaria a coisas mais altas, enquanto que o outro partido afirmava que tais crenças eram uma sobrevivência de estados anteriores mais civilizados. Herbert

24 Spencer preservou um espírito aberto a este respeito1 mas outros antropólogos, com a exceção de Andrew Lang e até um certo ponto Max Müller, eram, assim como os sociólogos, adeptos da progressão. Não havendo evidências históricas para demonstrar quais as fases por que haviam passado as sociedades primitivas, acreditou-se que eram as mesmas de natureza ascendente e invariável. Tudo o que se fazia necessário era encontrar um exemplo em alguma parte, pouco importava onde, e que correspondesse a um ou outro estágio do desenvolvimento lógico - e então inseri-lo como ilustração; ou, como os cientistas pareciam considerá-los, tomá-los como prova da validade histórica deste ou daquele esquema de progressão unilinear. Se eu estivesse me dirigindo a um auditório composto de antropólogos, a simples alusão a estes métodos passados seria considerada comparável a chicotear cavalos mortos. Creio ainda que as dificuldades se viram aumentadas, e a distorção resultante tornada ainda maior, pela cunhagem de termos especiais na descrição de religiões primitivas, o que dava a entender serem as mentes primitivas tão diferentes da nossa que suas idéias não podiam ser expressadas por nosso vocabulário e nossas categorias. A religião primitiva era chamada de "animismo", "pré-animismo", "fetichismo", e coisas que tais. Ocorreu também que alguns termos foram tomados de empréstimo das linguagens primitivas, como se nenhum equivalente pudesse ser encontrado na nossa. É o caso de termos tais como tabu (da Polinésia), "mana" (da Melanésia), "totem" (dos índios da América do Norte) e "baraka" (dos árabes da África do Norte). Não nego que as dificuldades semânticas da tradução sejam grandes. Elas são bastante consideráveis no caso, digamos, de traduções entre o francês e o inglês; 1 H. Spencer, TRE PRINCIPLES OF SOCIOLOGY, 1882, 1.106.

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25 mas quando alguma língua primitiva precisa ser traduzida para a nossa própria, as dificuldades se tornam enormes. Esta, na realidade, é a maior dificuldade com que nos defrontamos no assunto que agora discutimos, de modo que me permitirei alongar um pouco mais este aspecto. Se um etnógrafo diz que na língua de um povo da África Central a palavra "ango" quer dizer "cão", estará absolutamente correto; porém ele terá até então trazido muito restritamente para nossa língua o que significa a palavra "ango", pois o que ela significa para os nativos que a empregam é muito diferente do que a palavra "cão" significa para nós. A significação que os cães têm para os primeiros - eles caçam com os cães, eles os devoram e assim por diante - não é a mesma que para nós. Quão mais prováveis serão esses deslocamentos quando começamos a lidar com termos que contenham em si uma referência metafísica?! Pode-se, como já se tem feito, empregar palavras nativas e depois demonstrar seu significado segundo o seu uso em diferentes contextos e situações. Mas é óbvio que este recurso tem limites. Reduzido ao absurdo ele seria como escrever uma descrição de um povo na sua própria língua, para uso de quem o desconheça. Pode-se padronizar o emprego de uma palavra primitiva como "totem" e usá-la para descrever fenômenos que ocorrem entre outros povos e que se mostrem semelhantes àqueles do povo que deu origem ao vocábulo; mas isto pode ser causa de grande confusão, uma vez que as semelhanças podem ser superficiais e o fenômeno em questão tão diverso que o termo perca todo o seu sentido, o que aliás, como notou Goldenweiser, foi o destino da palavra totem'. 1 A. A. Goldenweiser, EARLY CIVILIZATION, 1921, p. 282. Ver também seu trabalho "FORM AND CONTENT IN TOTEMISM", American Anthropologist, N. S. XX (1918).

26 Chamo a atenção para este obstáculo porque ele tem alguma importância na compreensão das teorias da religião primitiva. Na verdade, pode-se encontrar na nossa linguagem alguma palavra ou frase com que traduzir um conceito nativo de outro povo. Podemos traduzir uma palavra como significando "deus", ou "espírito", ou "alma" ou "fantasma" mas teremos que nos perguntar não somente o que tal palavra traduzida significa para os nativos, como ainda o que significa a palavra que escolhemos, enquanto tradutores, para nós ou nossos leitores. Temos que apontar os duplos sentidos; e reconhecer que na melhor das hipóteses não há senão uma superposição parcial de significações entre as duas palavras. As dificuldades semânticas são sempre consideráveis e podem ser superadas apenas parcialmente. Os problemas que apresentam podem também ser considerados numa ordem inversa, como na tentativa dos missionários de traduzir a Bíblia para línguas nativas. Foi muito difícil expressar conceitos metafísicos gregos em latim e, como sabemos, muitos equívocos ocorreram por ocasião do transporte de uma língua para a outra. Mais tarde, a Bíblia foi traduzida para diversas outras línguas européias, como o inglês, francês, alemão, italiano etc., e eu mesmo passei por esclarecedoras experiências ao cotejar alguns trechos, digamos um salmo em várias línguas, e verificar de que modo cada uma delas o tratava dentro de suas características próprias. Os que conhecem o hebraico ou qualquer outra língua semítica podem completar o jogo traduzindo essas versões de volta ao seu idioma e ver o que resultará. Muito mais desesperador é o caso das línguas primitivas! Em alguma parte li a respeito das dificuldades que os missionários encontraram entre os esquimós na tentativa de verter para a sua língua a palavra "cordeiro", como na frase "Alimente meus cordeiros". Poder-se-ia, por exemplo, utilizar o nome de algum animal com o qual os esquimós

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estivessem acostumados, dizendo, por exemplo, "alimente minhas focas", mas se assim se fizer, troca-se a representação que a palavra "cordeiro" tem para um pastor hebreu pela significação que uma foca tem para um esquimó. Como poderíamos traduzir a afirmativa de que "os cavalos dos egípcios são carne e não espírito" para um povo que nunca viu um cavalo nem nada parecido, e que pode não ter um conceito semelhante ao conceito hebreu de espirito? Estes são exemplos corriqueiros. Poderia eu dar dois outros, mais complexos? Como traduzir para o hotentote a frase "... Embora eu fale com as línguas dos homens e dos anjos e não tenha caridade"? Em primeiro lugar, é preciso determinar o que significava o trecho para os ouvintes de São Paulo; e, além das "línguas de homens e anjos", que conhecimento exegético foi necessário à elucidação de palavras como "eros", "agape" e "caritas"I Depois é preciso encontrar equivalentes em hotentote e, uma vez que não há nenhum, procurar fazer o melhor possível... Ou então, pergunto. como traduzir para uma língua ameríndia a frase "No começo era o Verbo"? Mesmo na forma inglesa o sentido só pode ser determinado depois de uma análise teológica. Os missionários lutaram ativamente e com grande sinceridade para superar estas dificuldades, mas, em minha experiência, muito do que eles ensinam aos nativos lhes é na realidade incompreensível e muitos o reconheceriam abertamente, creio eu. A solução mais freqüentemente adotada é a de transformar a mente das crianças nativas em mentes européias; e isto é uma solução apenas aparente. Esperando ter trazido à vossa atenção estes problemas, devo agora abandoná-los porque as conferências não dirão respeito às atividades missionárias, um fascinante campo de pesquisa que até agora não foi devidamente trabalhado. Igualmente evitarei discutir mais do que já o fiz os problemas mais gerais da tradução, pois não é assunto de que se possa tratar com brevidade. Todos nós conhecemos o di-

28 tado "traduttore, traditore". Eu menciono o problema em minha conferência introdutória, em parte porque devo ter em mente, ao lidar com teorias da religião primitiva, que significação têm, nessas teorias, as palavras empregadas pelos eruditos. Se alguém quiser entender as interpretações que eles deram à mentalidade primitiva, deverá conhecer também a mentalidade dos autores; entender a maneira por como viam as coisas, a maneira que regia sua classe, seu sexo e período em que viveram. No que concerne a religião, todos eles tinham, até onde sei, uma base religiosa de uma forma ou de outra. Cito alguns, cujos nomes devem ser familiares a todos: Tylor era um quacre, Frazer um presbiteriano, Marett pertencia à igreja anglicana, Malinowski era católico, enquanto Durkheim, Lévy-Bruhl e Freud eram judeus. Mas, com uma ou duas exceções, qualquer que fosse a base religiosa, os autores dos textos mais significativos eram, na ocasião em que os escreveram, já agnósticos ou ateus. A religião primitiva, quanto à sua validade, não era senão uma ilusão, como qualquer outra forma de fé religiosa. Não é que eles perguntassem, como Bergson, da razão por como "crenças e práticas que são tudo, menos coerentes, podem ter sido e sejam, ainda, aceitas por pessoas coerentes”1. O que ocorre é que estavam implícitas, em sua forma de pensar, as convicções otimistas dos filósofos racionalistas do século dezoito, segundo as quais as pessoas são estúpidas ou más apenas porque têm más instituições e são ignorantes e supersticiosas por terem sido exploradas em nome da religião por padres espertalhões e avaros, bem como pelas classes inescrupulosas que mantêm os padres. Deveremos ter em mente quais as intenções de muitos dos eruditos de que estaremos falando, se quisermos compreender suas construções teóricas. Nas 1 H. Bergson THE TWO SOURCES OF MORALITY AND RELIGIONED. 1956, p. 103.

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religiões primitivas eles procuraram e encontraram uma arma que poderia, segundo lhes pereceu, ser usada com efeito letal contra a Cristandade. Se a religião primitiva pudesse ser entendida como uma aberração intelectual, como uma miragem induzida pela tensão emocional ou por sua função social, estaria implícito que as religiões mais altas poderiam ser desacreditadas e consideradas sob julgamento idêntico. Tal intenção se oculta sutilmente em alguns casos. Como em Frazer, King e Clodd. Eu não duvido de sua sinceridade e, como disse antes,' eles merecem minhas simpatias, porém não minha aquiescência. No entanto, o fato de eles estarem certos ou errados está além do que nos interessa, especificamente: que é ter o racionalismo passional da época influído em sua avaliação das religiões primitivas e dado a seus escritos, tais como os lemos hoje, um sabor de presunção que podemos achar irritante ou ridículo. A crença religiosa era, para estes antropólogos, absurda, e o é ainda para muitos antropólogos de ontem e de hoje. Mas parece que é preciso encontrar alguma explicação para tal absurdidade, e isto vem sendo feito em termos psicológicos e sociológicos. Era intenção dos que escreveram sobre as religiões primitivas, explicá-las por suas origens, de modo que a explicação servisse aos dados essenciais de toda e qualquer religião, incluindo as mais altas. Quer explicitamente quer não, as explicações das religiões dos primitivos eram elaboradas com o fito de abarcar as origens de tudo o que se chama de "religiões iniciais", o que incluiria a religião israelita e implicitamente o cristianismo, que dela deriva. Assim, como diz Andrew Lang, "o teórico que acredita em cultos ancestrais como sendo a chave de todos os credos, 1 RELIGION AND THE ANTHROPOLOGISTS, Blackfriars, Abril, 1960. Reeditado em Essays in Social Anthropology, 1962.

30 verá em Jeová um fantasma ancestral desenvolvido ou uma espécie de deus-fetiche, ligado a uma pedra, talvez uma velha esteia sepulcral de algum xeque do deserto. O admirador exclusivo da hipótese do totemismo encontrará provas de sua teoria nos cultos às vacas e bois sagrados. O adepto dos cultos naturais insistirá na conexão existente entre Jeová e a tempestade, o trovão e o fogo do Sinai”1. Podemos nos perguntar por que eles não consideraram como seu campo inicial de estudo as religiões superiores, sobre cuja história, teologia e ritos já se sabia muito mais do que sobre as religiões primitivas, o que levaria o estudo a seguir um curso do mais para o menos conhecido. Eles podem, até certo ponto, ter ignorado as religiões superiores para evitar controvérsias e constrangimento nas circunstâncias em que se envolvessem, mas foi principalmente porque desejavam descobrir a origem da religião, sua essência, e por julgarem que a encontrariam entre os primitivos, que assim orientaram seus estudos. Mas alguns deles poderão ter declarado que por "origem" não se referiam ao mais novo no tempo, senão que ao mais simples em estrutura, suposição implícita, pois seria de esperar que do mais simples em estrutura se desenvolvessem as formas mais altas. Esta ambigüidade no conceito de "origem" causou muita confusão na antropologia. Não avançarei neste assunto por agora, mas voltarei a ele e a outros assuntos gerais até agora mencionados de passagem, na minha conferência final, ocasião em que terei tido oportunidade de trazer algumas teorias antropológicas da religião à audiência. Podemos, entretanto, notar aqui, que, se os autores cujos textos vamos examinar tivessem lido algo profundamente - digamos - teologia, história, exegesse, apologética, ritual e pensamento simbólico cristãos, teriam se 1 Andrew Lang, THE MAKING OF RELIGION, 1898, p. 294.

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situado melhor para avaliar as idéias e práticas referentes às religiões primitivas. Mas era só muito raramente que os eruditos que se situaram como autoridades a respeito das religiões primitivas mostravam em suas interpretações que tivessem algo mais que um conhecimento apenas superficial das religiões históricas e daquilo em que os crentes respectivos acreditam, o que significa para eles o que fazem, e o que sentem quando o fazem. O que acaba de dizer não implica em que o antropólogo "deva" possuir, ele mesmo, uma religião, e quero deixar isto bem claro, desde já. Ao antropólogo não interessa, "qua" antropólogo, a verdade ou falsidade do pensamento religioso. Do modo como compreendo o assunto, ele não tem possibilidade de "saber" se os seres espirituais das religiões primitivas ou outros quaisquer são dotados de existência ou não; e, se assim é, não lhe cabe levar em consideração tal problema. As crenças são, para ele, fatos sociológicos, não fatos teológicos e sua única preocupação é a relação que tais fatos mantêm entre si e com outros fatos sociológicos. Seus problemas são científicos e não metafísicos, ou ontológicos. O método que ele emprega é aquele que agora se designa freqüentemente como sendo fenomenológico: um estudo comparativo de crenças e ritos, temas tais como deus, sacramento, e sacrifício, com a finalidade de lhes determinar a significação intrínseca e social. A validade da crença pertence ao domínio do que podemos chamar de filosofia da religião. Foi exatamente por haverem tantos antropólogos tomado posição teológica, embora negativa e implícita, que foram conduzidos à evidência de que uma explicação dos fenômenos das religiões primitivas em termos causais se fazia necessária, vindo ela a ser levada, segundo me parece, além dos limites legítimos do problema. Mais tarde comentarei, numa revisão geral, as teorias antropológicas da religião. Deixem-me apenas dizer que eu li os livros que criticarei, uma vez que freqüentemente os estudiosos acei-

32 tam o que terceiras pessoas escrevem sobre textos de outros, em vez de lerem diretamente os textos (o livro de Lévy-Bruhl, por exemplo, tem sido freqüentemente mal interpretado por pessoas que, estou seguro, nunca o leram ou o fizeram sem aplicação). Ao fazermos as revisões, veremos que muitas vezes não me será necessário apontar os equívocos de um ou outro ponto de vista, porque a crítica necessária está contida em livros de outros autores, mais tarde mencionados. Sendo assim, devo acrescentar - e todos concordarão com isto - que não podemos aceitar a idéia de que exista apenas um tipo de afirmativa geral acerca de fenômenos sociais e que as outras devam estar erradas se aquela está certa. Não há nenhuma razão apriorística pela qual tais teorias que pretendem explicar as religiões primitivas em termos de raciocínio, emoção e função social não estejam certas, cada uma suplementando as outras -- embora eu não acredite que assim seja. As interpretações podem se fazer em diversos níveis. Do mesmo modo, não há razão por que várias explicações diferentes no mesmo tipo e nível não possam estar certas, desde que não se contradigam entre si - pois cada uma delas pode explicar aspectos diferentes do mesmo fenômeno. Efetivamente, eu considero todas.as teorias que nós examinaremos como apenas plausíveis e mesmo, como foram propostas, inaceitáveis, uma vez que contêm contradições e nutras incompatibilidades lógicas; ou ainda porque não se pode provar, como já disse, que sejam verdadeiras ou falsas; ou finalmente, e agora, mais precisamente, porque a experiência etnográfica freqüentemente invalidou-as. Uma palavra final: algumas pessoas consideram hoje em dia embaraçoso ogvir falar de povos designados como primitivos ou nativos, o que lhe soa como se estes estivessem sendo chamados de selvagens. Mas eu serei obrigado freqüentemente a usar as expressões dos autores de quem

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falarei e que escreveram na robusta linguagem de um tempo quando era praticamente impossível ofender um povo sobre o qual se escrevesse; o bom tempo do progresso e prosperidade vitorianos, e, podemos acrescentar, o do enfado e da pompa de ontem. Mas as palavras serão usadas por mim naquilo que 1 Neber chama de sentido desprovido de valor e não serão censuráveis do ponto de vista etimológico. De qualquer modo, o emprego da palavra "primitivo" para descrever povos que vivem em sociedades de escala pequena, com uma cultura material simples e desprovidos de literatura, já está muito firmemente estabelecida para que possa ser eliminado. Isto é uma pena, porque nenhuma palavra causou mais confusão nos escritos antropológicos, como veremos, uma vez que ela pode ter um sentido lógico e cronológico, e os dois sentidos nem sempre estiveram apartados um do outro, mesmo nas mentes dos melhores eruditos. Basta, para estas notas introdutórias que foram necessárias antes de embarcarmos na nossa viagem rumo ao oceano do pensamento do passado. Como é o caso com qualquer e toda ciência, encontraremos em muitas ilhas as sepulturas de marinheiros que naufragraram; mas quando olharmos para trás, encarando toda a história do pensamento humano, não precisaremos entrar em desespero por sabermos ainda tão pouco sobre as religiões primitivas, ou sobre a religião em geral, ou por termos de descartar, por meramente conjeturais, apenas plausíveis, teorias que tentaram explicá-las. Na verdade deveremos nos encher de coragem e prosseguir em nossos estudos com o espírito do marinheiro morto, do epigrama que se encontra na Antologia Grega: um marinheiro naufragado que nesta costa se enterrou ordena-te que partas: muitos barcos formosos, o vento daqui destruiu.

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TEORIAS PSICOLÓGICAS

teoria do presidente de Brosses,l um contemporâneo de Voltaire e que com ele se correspondia, sustentando tua a religião se originava do fetichismo, foi aceita até a metade do século passado. A tese, assumida por Comte2 Era de que o fetichismo (o culto, segundo marinheiros portugueses, de

animais ou coisas inanimadas pelos negros da África Ocidental) teria evoluído até politeísmo, e deste até o monoteísmo. Ela foi substituída por outras teorias, formuladas em termos intelectualistas e sob a influência da psicologia associacionista da época, e que podem ser divididas em teoria do fantasma e teoria da alma; ambas concordam em que o homem primitivo é essencialmente racional, embora suas tentativas de explicar os fenômenos sejam grosseiras e falazes. No entanto, antes de tais teorias serem aceitas, tiveram que disputar o terreno com outras, da escola do mito na- 1 Ch. R. de Brosses, Du cuRe das dieux té_iches ou paraUle de I'anlenne réliglon de I'Egypte avec Ia réligion actuelle de Ia Migritie, 1760. 2 Comte, COURS DE PHILOSOPHIE POSITIVE, 1908, lições 52-54.

35 tural, uma luta tanto mais amarga quanto eram ambas pertencentes ao mesmo gênero intelectualista. Quero inicialmente discutir a teoria da origem da religião a partir da teoria do mito natural, em parte porque foi ela a primeira cronologicamente, e também porque o que aconteceu depois foi uma reação às teorias animísticas, logo deixando, a teoria da mitologia natural, de ter qualquer influência neste país. A escola do mito natural era predominantemente alemã e estava basicamente interessada nas religiões indo-européias; sua tese era de que os deuses da antigüidade - e por extensão os deuses de todos os tempos e lugares - eram apenas fenômenos naturais personificados: sol, lua, estrelas, o alvorecer, a

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renovação da primavera, rios cauladosos, etc. O mais importante representante desta escola foi Max Müller (filho do poeta romântico Wilhelm Müller), um erudito alemão seguidor da teoria do mito solar, um ramo da escola (os diversos ramos mantinham disputas entre si), que passou a maior parte da sua vida em Oxford, onde foi professor e um Fellow of Ali Souls. Era um lingüista de talento excepcional, um dos maiores especialistas em sânscrito do seu tempo e, em geral, um homem de grande cultura, que foi muito injustamente desacreditado. Ele não estava disposto a ir tão longe quanto foram os seus mais extremados colegas alemães, não porque na Oxford daqueles dias fosse perigoso ser um agnóstico, mas por convicção - ele era um luterano sincero e sensível; mas ele chegou bem perto da posição dos demais e, realizando manobras e malabarismos em seus livros para evitar tal aproximação, faz com que seu pensamento parecesse algumas vezes ambíguo e opaco. Em sua opinião, tal como a compreendo, os homens sempre tiveram uma intuição da divindade, da idéia de Infinito - a palavra que ele usava para Deus -, intuição esta derivada de experiências sensoriais;

36 assim, não é preciso procurar sua fonte na revelação primitiva ou um instinto ou faculdade religiosos, como algumas pessoas então faziam. Todo o conhecimento humano vem pelos sentidos, sendo o do tato aquele que dá a maior impressão de realidade, e todo o raciocínio se baseia neles, o que é também verdadeiro para a religião: "nihil in fide quod non ante fuerit in sensu". Mas as coisas intangíveis, como o sol e o firmamento, dão ao homem a idéia de infinito e fornecem material para a concepção de deidades. Max Müller não pretendeu sugerir que a religião surgisse pela deificação; por parte dos homens, dos grandes objetos naturais; mas sim que estes lhes davam um sentimento de infinitude e serviam de símbolo para o infinito. Müller estava basicamente interessado nos deuses da índia e do mundo clássico, embora também tivesse incursionado um pouco pela interpretação de material primitivo, acreditando, certamente, que suas interpretações tinham uma validade geral. Sua tese era de que o infinito, uma vez nascida a idéia, não poderia ser pensado senão em termos de metáforas ou símbolos, os quais só poderiam ser derivados do que parecesse majestático no mundo conhecido: os corpos celestes ou seus atributos. Mas estes atributos, então, perdiam seu sentido original, metafórico, e adquiriam autonomia, tornando-se personificados como deidades de existência própria. Os "nomina" se tornavam "nomina". Assim sendo, as religiões poderiam ser descritas como sendo "doenças da linguagem", uma expressão vigorosa mas infeliz, que mais tarde Müller tentou explicar, mas que nunca teve vida longa. Em conseqüência, dizia ele, a única maneira de encontrarmos o significado da religião do homem primitivo é através da pesquisa filológica e etimológica, que devolve aos nomes dos deuses e às histórias contadas sobre eles o seu sentido original. Assim, Apolo amava Daphne; Daphne fugiu dele e foi transformada em um loureiro. Esta lenda não faz sentido até o momento em que

37 sabemos que Apolo era originalmente uma deidade solar, e Daphne, o nome grego para loureiro, era o nome que se dava à aurora. Isto nos dá o sentido original do mito: o sol perseguindo o alvorecer. Müller trabalha com a crença na alma humana e na sua forma espiritual de modo semelhante. Quando os homens desejaram expressar a distinção entre o corpo e algo que eles sentiam para além do corpo, o nome que lhe veio à mente foi o do sopro, algo imaterial e inegavelmente ligado à vida. Então, esta palavra, "psyche", paswou a expressar o princípio vital e por extensão a alma, a mente, o eu. Após a morte, a "psyche" vai para o Hades, o lugar do invisível. Uma vez assim bem estabelecida a oposição entre corpo e alma, nos planos do pensamento e da linguagem, a filosofia começou a operar sobre ela e surgiram os sistemas espiritualistas e materialistas da filosofia. Tudo isto para reunir o que a linguagem

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apartara. Assim a linguagem exerce uma tirania sobre o pensamento e o pensamento está sempre em luta contra ela, mas em vão. Da mesma forma a palavra espírito originalmente significava sopro, e a palavra para fantasma (dos mortos) originalmente se referia à sombra. Elas eram inicialmente expressões figurativas que por fim alcançaram concretude. Não pode restar dúvidas de que Müller e seus colegas adeptos da teoria do mito natural levaram suas teorias até à absurdidade; ele afirmou que o sítio de Tróia não era senão um mito solar; e, com a intenção de ironizar tal interpretação, alguém perguntou se Max Müller por acaso não seria também, ele mesmo, um mito solar... Deixando de lado os erros da erudição clássica, tais como hoje sabemos que foram, é evidente que, por mais engenhosas que explicações semelhantes pudessem ser, elas não estavam nem podiam estar apoiadas por provas históricas adequadas e não passavam, na melhor das hipóteses, de conjeturas eruditas. Não preciso lembrar os ataques desferidos contra

38 os adeptos da mitologia natural pelos seus contemporâneos, porque embora Max Müller (o principal nome) tivesse tido por algum tempo influência sobre o pensamento antropológico, a repercussão não demorou muito e cessou antes da morte de Müller. Spencer e Tylor, este último fortemente apoiado neste tópico por seu pupilo Andrew Lang, eram contrários às teorias do mito natural e sua luta por um enfoque diverso obteve sucesso. Herbert Spencer, a quem a antropologia deve alguns de seus melhores conceitos metodológicos, e que depois foi esquecido, devota grande parte de seus THE PRINCIPLES OF SOCIOLOGY (vol. 1) a uma discussão das crenças primitivas e, embora as interpretações que lhes dê sejam semelhantes àquelas de Sir Edward Tylor, e, mais, tenham sido publicadas depois que Tylor publicou o seu PRIMITIVE CULTURE, suas opiniões estavam formuladas desde muito antes do aparecimento do seu livro e ele chegou a elas independentemente. O homem primitivo, diz ele, é racional e, considerado o seu pequeno conhecimento, suas inferências são razoáveis, embora débeis. Fenômenos tais como sol e lua, nuvens e estrelas, vêm e vão, e isto dá a ele a noção da dualidade, de condições visíveis e invisíveis, e esta noção se fortalece por observações outras, tais como o encontro de fósseis, a observação de pinto e ovo, crisálida e borboleta; pois Spencer tinha enfiado na cabeça que os povos simples não podiam conceber as explicações naturais, como se pudessem ter chegado aos seus vários resultados de ordem prática sem elas ... E se outras coisas podiam ser dualidades, porque o homem mesmo não seria uma? Sua sombra e seu reflexo na água também vêm e vão. Mas foram os sonhos, que são experiências reais para os homens primitivos, que deram ao homem a idéia de sua própria dualidade e ele identificou o eu onírico que pervaga à noite com o eu-sombra que aparece de dia. Esta idéia de dualidade se reforça pela experiência de várias formas

39 de insensibilidade temporária, como no sono, desfalecimento, catalepsia, etc., de modo que a morte mesma passa a ser encarada como uma forma de prolongada insensibilidade. E se o homem tem uma alma, pelo mesmo raciocínio também devem tê-Ias os animais e as plantas e os objetos materiais. A origem da religião, no entanto, deve ser procurada na crença não em almas, mas em fantasmas. Que a alma tenha uma sobre-vida temporária, é coisa que se admite com base no aparecimento dos mortos em sonhos, enquanto são lembrados; e a primeira concepção de um ser sobrenatural é a de um fantasma. Esta concepção deve ser anterior à do fetiche, que implica a existência de um fantasma ou espírito interior. Igualmente, a idéia de fantasma é encontrada em toda a parte, ao contrário da idéia do fetiche, que não é realmente característica dos povos primitivos. A idéia do fantasma, inevitavelmente (esta é a palavra favorita de Spencer) se desenvolve até à idéia de deuses, os fantasmas de ancestrais remotos ou de pessoas superiores passando a divindades (a doutrina do Euhemerismo), e os alimentos e bebidas

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colocados nos túmulos para que os mortos se alegrem transformam-se em sacrifícios e libações dedicadas aos deuses para abrandá-los. Assim, Spencer conclui que "o culto do ancestral é a raiz de toda religião".Tudo isto é exposto em termos inadequados, tomados de empréstimo às ciências físicas, e de maneira decididamente didática. O argumento é uma especulação apriorística, salpicada de algumas ilustrações, e é capcioso. É um perfeito exemplo da falácia do psicólogo introspeccionista, ou "Se eu fosse um cavalo", à qual deverei me referir com freqüência. Se Spencer estivesse vivendo em condições primitivas, aquelas teriam sido, ele supôs, as etapas através das quais chegaria às crenças que os primitivos mantinham. Parece que não lhe ocorreu indagar como - já que

40 as idéias de fantasma e de alma surgem de raciocínios falazes acerca de nuvens e borboletas e sonhos e transes - as crenças teriam persistido por milênios, sendo mantidas vivas por milhões de pessoas em seu tempo e mesmo no nosso. A teoria do animismo de Tylor (na qual ele fica muito em débito para com Comte), sendo animismo uma palavra que ele cunhou, é muito semelhante à de Spencer, embora, como implícita na palavra "anima", saliente basicamente a idéia de alma, e não a de fantasma. Nos textos antropológicos, a palavra animismo aparece com alguma ambigüidade, sendo às vezes empregada no sentido de uma crença, atribuída a povos primitivos, em que não só as criaturas, mas também os objetos materiais estão dotados de vida e personalidade, algumas vezes com o acréscimo de que tenham também almas. A teoria de Tylor cobre ambas as possibilidades, mas aqui nos interessa basicamente a segunda delas. A este respeito a teoria conta com duas teses principais, a primeira concernente ao problema da origem, e a segunda referindo-se ao desenvolvimento da alma. As reflexões do homem primitivo a respeito de experiências tais como morte, doenças, transes, visões e, acima de tudo, os sonhos, levaram-no à conclusão de que são fenômenos que se devem à presença ou ausência de alguma entidade imaterial, a alma. Tanto a teoria do fantasma quanto a teoria da alma poderiam ser consideradas como versões de uma teoria ideal da origem da religião. O homem primitivo teria transferido a idéia de alma para outras criaturas a ele semelhantes e mesmo para objetos inanimados que lhe despertassem o interesse. A alma, passível de se desligar da matéria em que esteja (seja ela qual for), pode ser pensada como independente daquilo que a contém em si; de onde surgiria a idéia de seres imateriais, cuja suposta existência constitui a definição mínima de religião segundo Tylor; passo seguinte, o

41 desenvolvimento destes seres em deuses, entidades amplamente superiores ao homem e capazes de controlar seu destino. As objeções já levantadas à teoria de Spencer aplicam-se igualmente à de Tylor. Sendo impossível saber de que modo surgiram as idéias de alma e espírito, a mente do erudito impõe uma construção lógica ao homem primitivo, e tal passa a ser a explicação de suas crenças. A teoria é da mesma qualidade de estórias do tipo"de como o leopardo adquiriu as suas manchas". As idéias de alma e espírito poderiam ter surgido como Tylor imaginou, mas não há nenhuma evidência de que assim tenha sido. Quando muito poder-se-á demonstrar que os primitivos citam os sonhos como prova da existência da alma e se apóiam nas almas para demonstrar a existência de espíritos, mas mesmo se isto fosse conseguido, não se provaria que os sonhos fazem nascer uma idéia e a alma faz nascer a outra. Swanton protesta acertadamente contra essas explicações causais, perguntando por que, quando um homem morre e alguém mais tarde sonha com ele, isto pode ser chamado de "inferência óbvia" (Tylor) de que o morto tinha uma vida fantasma] divisível de seu corpo. Isto é óbvio para quem? O mesmo autor também assinala que não há identidade de atitudes em relação aos mortos e em relação aos sonhos entre os povos primitivos e que as diferenças devem necessariamente ser levadas em consideração se qualquer

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"inferência óbvia" está prestes a ser aceita como conclusão causal válida1. Dizer que a idéia de alma leva à idéia de espírito, é uma suposição muito duvidosa. Ambas as idéias estavam presentes entre os então chamados selvagens inferiores, que, numa perspectiva evolucionista, eram o que havia de mais 1 J. R. Swanton, THREE FACTORS IN PRIMITIVE RELIGION, American Anthropologist, N. S. XXVI (1924), 358-65.

42 próximo do homem pré-histórico; e os dois conceitos são não apenas diferentes, mas também opostos, sendo o espírito considerado como incorpóreo, estranho ao homem e invasivo. Efetivamente, Tylor, não conseguindo reconhecer uma distinção tão fundamental entre os dois conceitos, cometeu um grave equívoco na sua representação do pensamento hebraico antigo, como o Dr. Snaith assinalou1. Do mesmo modo, ainda não se provou que os povos mais primitivos pensem que as criaturas e os objetos imateriais tenham almas semelhantes à do homem. Se qualquer povo pode ser considerado como predominantemente animístico, no sentido que Tylor dá à palavra, ele há de pertencer a culturas muito mais avançadas, um fato que, embora não tenha qualquer significação histórica para mim, seria altamente lesivo à argumentação evolucionista. O mesmo para o fato de que a concepção de um deus se encontra entre todos os povos caçadores e agricultores ditos inferiores. Finalmente, poderemos perguntar como é que, se a religião é o produto de uma ilusão tão elementar, lhe foi possível manter-se com tão grande continuidade e persistência. Tylor tentou demonstrar que a religião primitiva era racional, que surgia de observações (embora inadequadas) e de deduções lógicas que partiam destas (embora falhas); e que constituiam uma filosofia natural grosseira. Em seu tratamento da magia, que distinguia da religião muito mais por conveniência de exposição do que por motivos etiológicos ou de validade, ele igualmente salientou o elemento racional naquilo que chamou de "esta mixórdia de disparates". Ela também se baseia em observações genuínas e repousa, sobretudo, na classificação de similaridades, o primeiro processo essencial do conhecimento humano. Onde o mágico erra é em inferir que uma vez que as coisas

1 N. H. Snaith, THE DISTINCTIVE IDEAS OF THE OLD TESTAMENT, 1944, p. 148.

43 são semelhantes elas estão dotadas de um elo místico entre si, ocasião em que se confunde uma conexão ideal com uma conexão real, ou uma conexão subjetiva com uma objetiva. E se nos perguntarmos como é que povos capazes de explorar a natureza e tão bem e organizarem socialmente podem cometer tais erros, a resposta é que eles têm razões muito boas para não perceber a futilidade de sua magia. A própria natureza (ou a trucagem, por parte do mago), freqüentemente é a responsável pelo aparecimento daquilo que se atribui à magia; e se a magia não consegue atingir seu objetivo, o fato é logo explicado racionalmente por ter havido alguma desobediência às regras, ou porque se ignoraram certas prescrições, ou porque alguma força hostil se contrapôs à prática. Do mesmo modo, existe uma plasticidade em relação ao julgamento de sucesso ou fracasso e as pessoas em toda a parte acham muito difícil aceitar a evidência, especialmente quando o peso da autoridade induz à aceitação do que confirma uma crença e a rejeitar o que a contraria. Aqui as observações de Tylor são corroboradas pelas observações etnológicas. Mencionei de passagem as discussões de Tylor acerca da magia, utilizando-as em parte como mais uma ilustração da interpretação intelectualista e em parte porque elas levam diretamente a uma estimativa das contribuições de Sir James Frazer no que concerne o nosso assunto. Frazer é, eu creio, o nome mais conhecido na antropologia e todos devemos muito a ele, bem como a Spencer e a Tylor. Seu livro THE

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GOLDEN BOUGH, um trabalho de notável esforço e grande erudição, se dedica às superstições primitivas. Mas não se pode dizer que ele tenha adicionado muitas contribuições valiosas para além da teoria da religião de Tylor; diga-se antes que introduziu alguma confusão nela, sob a forma de duas novas suposições, uma pseudo-histórica e outra psicológica. Segundo Frazer, a humanidade

44 — em toda a parte e mais cedo ou mais tarde — atravessa três estágios de desenvolvimento intelectual, da magia à religião e da religião à ciência, um esquema que pode ter sido calcado nas fases de Comte - a teológica, a metafísica e a positiva, embora esta correspondência não se possa chamar de exata. Outros escritores da época, tais como King, Jevons e Lubbock (e ainda, como veremos, por certa maneira de encarar o assunto - Marett, Preuss e os escritores da escola da ANNÉE SOCIOLOGIQUE), também , acreditavam que a magia precedesse a religião. Em certo momento, diz Frazer, as inteligências mais atiladas provavelmente descobriram que a magia não alcançava realmente seus fins, mas, ainda incapazes de superar suas dificuldades por métodos empíricos e de enfrentar suas crises por meio de uma filosofia refinada, passavam a uma outra ilusão: a de que havia seres espirituais capazes de lhes prestar ajuda. Com o decorrer do tempo, tais inteligências viam que os espíritos eram igualmente falazes, um episódio de iluminação que prenunciava o alvorecer da ciência experimental. Os argumentos que apoiavam esta tese eram, para dizer pouco, triviais; e etnologicamente muito vulneráveis. Muito particularmente as conclusões baseadas em dados australianos passaram muito longe do alvo e, uma vez que os australianos foram trazidos à baila para demonstrar que quanto mais simples a cultura maior a magia menor a religião, vale a pena assinalar que os povos caçadores e agricultores, incluindo muitas tribos australianas, têm crenças e cultos animísticos e teísticos. É também evidente que tanto a variedade quanto o volume de magia em suas culturas deve ser menor - e na verdade o é - do que em culturas tecnologicamente avançadas; não pode, por exemplo, haver uma magia da agricultura ou magia de trabalhar o ferro na ausência de plantas tratadas e na ausência de metal. Hoje ninguém mais aceita a teoria dos estágios de Frazer.

45 A parte psicológica de sua tese é a que opõe a magia e a ciência à religião, as duas primeiras postulando um mundo sujeito a leis naturais invariáveis, uma idéia que ele compartilhava com Jevons1 e a religião postulando um mundo em que os fatos dependeriam dos caprichos dos espíritos. Conseqüentemente, enquanto o mágico e ,o cientista, estranha associação, executam suas operações em tranqüila confiança, o padre realiza a sua com medo e tremendo. Portanto, psicologicamente, a magia e a ciência seriam semelhantes, embora aconteça, entre ambas, que uma seja falsa e outra verdadeira. Esta analogia entre ciência e magia, só se mantém enquanto ambas são técnicas, e, para a maioria dos antropólogos, ela é apenas artificial. Frazer aqui comete o mesmo erro de método' que LévyBruhl, quando da comparação realizada por este entre ciência moderna e magia primitiva, em vez de comparar técnicas empíricas e mágicas dentro das mesmas condições culturais. Entretanto, nem tudo o que Frazer escreveu a respeito da magia e da religião era desprezível. Havia alguma substância nos escritos. Ele foi capaz, por exemplo, de demonstrar, com seu trabalhoso método, aquilo que Condorcet e outros tinham apenas mencionado, isto é, quanto é freqüente que entre povos mais simples do mundo os legisladores sejam mágicos ou padres. Além disso, embora ele tenha adicionado pouco à explicação fornecida por Tylor da magia como uma aplicação errônea da associação de idéias, contribuiu com alguns termos classificatórios úteis, mostrando que essas associações são de dois tipos, aquelas de similaridade e as de contacto, ou magia homeopática

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ou imitativa e magia de contágio. Porém não foi além de mostrar que nas crenças e ritos mágicos podem-se discernir 1 F. B. Jevons, REPORT ON GREEK MYTHOLOGY, Folk-Lore, I1, 2 (1891) p. 220.

46 certas sensações elementares. Nem Tylor nem Frazer explicaram por que os povos, em seus erros sobre o mágico, como supunham os autores, tomavam conexões ideais por reais sem que o fizessem em outras atividades. Além de tudo, as coisas não ocorrem exatamente assim. O erro aqui foi não reconhecer que as associações são estereótipos sociais e não psicológicas e que, portanto, só podem ocorrer quando evocadas em específicas situações rituais que são também de duração limitada, como assinalei antes.1 Acerca de todas estas teorias, num certo sentido intelectualistas, devemos dizer que, se por um lado elas não podem ser refutadas, por outro, não, podem ser demonstradas, pela simples razão de que não há provas sobre o modo como se originaram as crenças religiosas. Os estágios de evolução que esses autores tentaram construir como meio de fornecer as provas de que careciam, pode ter tido uma certa consistência lógica - porém não têm qualquer valor histórico. Entretanto, mesmo se devemos nos descartar dos evolucionistas (ou adeptos da teoria da progressão) ou se, às suas assertivas e julgamentos, devemos dar o estatuto hipóteses vagas, podemos conservar muito do que disseram a respeito da racionalidade essencial dos povos primitivos. Esses povos podem não ter chegado às suas crenças do modo suposto por estes autores, mas mesmo assim o elemento de racionalidade permanece, ainda que as observações tenham sido inadequadas, as inferências defeituosas, e as conclusões erradas. As crenças são sempre coerentes e até certo ponto podem ser críticas ou céticas, e até mesmo experimentais, no interior mesmo do sistema da crença e em seu idioma; e seu pensamento 1 THE INTELLECTUALIST (ENGLISH) INTERPRETATION OF MAGIC, Bulletin of the Faculty of Arts, Egyptian University (Cairo), 1, parte 2, (1933), pp. 282-311.

47 é portanto inteligível para quem quer que cuide aprender a língua e estudar os modos de vida dos povos em questão. A teoria animística, sob várias formas, permaneceu intocável por muitos anos e deixou suas marcas em toda a literatura antropológica de seu tempo; como é o caso, para dar apenas um simples exemplo, do trabalho em que Dormam apresenta uma avaliação geral da religião dos índios americanos: nela, qualquer crença - totemismo, feitiçaria, fetichismo - é apresentada em termos animísticos. Porém começaram a surgir outras vozes protestando, tanto no que concerne a origem da religião, quanto em relação à sua ordem de desenvolvimento. Antes de comentarmos o que diziam, devemos lembrar que os críticos tinham duas vantagens de que careciam os seus predecessores. A psicologia associacionista, que era mais ou menos uma teoria mecanicista da sensação, estava dando lugar à psicologia experimental, sob a influência da qual os antropólogos passaram a adotar novos termos, embora de modo convencional e em seu sentido comum, pelo que passamos a ouvir falar menos das funções cognitivas, substituídas por função afetiva, função conativa e elementos orécticos da mente; passamos a ouvir falar em instintos, emoções, sentimentos e, mais tarde, sob a influência da psicanálise, de complexos, inibições, projeções, etc., sendo de considerar que a psicologia da GESTALT e a psicologia das multidões ainda viriam a trazer sua marca para o novo vocabulário. Porém, o que era ainda mais importante, era o grande avanço ocorrido na etnografia durante as últimas décadas do século dezenove e começos do século atual. Isto municiou os autores que se seguiram com numerosas informações e de melhor qualidade: pesquisas como

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as de Fison, Howitt e Spencer e Gillen, acerca de aborígines australianos; pesquisas de Tregear sobre os Maoris; de Codrington, Haddon e Seligman sobre os melanésios; de Nieuwenhuis, Kruijt, Wilken, Snouck Hurgronje

48 e Skeat e Blagden sobre os povos da Indonésia; de Man sobre os das ilhas Andaman; de In Thurn e voo den Steinen sobre os ameríndios; de Boas sobre os esquimós e, na África, Macdonald, Kidd, Mary Kingsley, Junod, Ellis, Dennet e outros. Ter-se-á percebido que em um aspecto Frazer diferia radicalmente de Tylor: em sua afirmativa de que a religião fora precedida por uma fase mágica. Outros autores adotaram o mesmo ponto de vista. Um americano, John H. King, publicou em 1892 dois volumes intitulados O SOBRENATURAL: SUAS ORIGENS, NATUREZA E EVOLUÇÃO. O livro causou pouco impacto devido ao clima de animismo então reinante e, tendo caído no esquecimento, só mais tarde foi ressuscitado por Wilheim Schmidt. Tão intelectualista e evolucionista quanto outros de seu tempo, ele era de opinião que as idéias de fantasma e de espírito são sofisticadas demais para homens rudes, opinião que segue logicamente o conceito básico do pensamento evolucionista da época, qual seja o de que tudo se desenvolve a partir de algo mais simples e mais bruto. Há de haver, pensava ele, um estágio ainda anterior ao animismo, um estágio "mana", em que a idéia de fortuna, de bom e de mau augúrio fossem o único componente daquilo que ele chamava de supremo. Isto teria surgido de falsas deduções a partir de observações de estados físicos e processos orgânicos, levando o homem primitivo a supor que a virtude, o "mana", estivesse nos objetos e fatos mesmos, como se fossem deles propriedades intrínsecas. Daí o surgimento de encantamentos e feitiços, e o nascimento do estágio da magia. Depois, através de erros de julgamento e raciocínios falsos a partir de sonhos e estados neuróticos adquiridos, a idéia de fantasmas; e finalmente, por uma sucessão de etapas, a de espíritos e deuses, sendo que os vários estágios dependeriam de um desenvolvimento geral das instituições sociais. Assim, também para King a religião era uma ilusão. Pior: um

49 desastre que bloqueava o progresso moral e intelectual. E os povos primitivos, que acreditavam em tais fábulas, seriam como crianças pequenas, o desenvolvimento ontogenético correspondendo aqui ao filogenético, o que os psicólogos costumavam chamar de doutrina da recapitulação. Que deve ter existido um estágio mais anterior 'e cru na religião que o animístico, é afirmativa feita também por outros autores além de Frazer e King, sendo dois dos mais conhecidos deles, Preuss na Alemanha e Marett na Inglaterra. Eles apresentaram um desafio à teoria de Tylor, que por tanto tempo dominara o cenário. Mas em alguns casos o desafio se referia apenas à questão da ordem do desenvolvimento e os críticos do assunto não conseguiram provar que houvesse existido um estágio de pensamento tal como os autores haviam postulado. O ataque mais radical e agressivo partiu de dois pupilos de Tylor: Andrew Lang e R. R. Marett. Como seus contemporâneos, Andrew Lang era um teórico evolucionista mas recusava a idéia de que deuses se pudessem desenvolver a partir de fantasmas ou de espíritos. Ele escreveu com muito bom senso - embora às vezes também cometesse disparates - mas, em parte porque a origem animística da religião fosse tão geralmente aceita como evidente, o que ele veio a dizer a respeito da religião primitiva passou ignorado até que Wilhelm Schmidt o recuperasse. Deve-se também ao fato de ele ter sido um homem de letras romântico, capaz de escrever sobre assuntos tais como o Príncipe Charles Edward e Mary Stuart, que tenha sido considerado um simples literato e um diletante. Lang era um animista enquanto concordava com Tylor. nisto de que a crença em almas, e conseqüentemente em espíritos, poderia muito

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bem ter partido de fenômenos psíquicos (sonhos, etc.), mas, por outra lado, não estava disposto a aceitar a idéia de Deus como sendo um desenvolvimento tardio das noções de almas, fantasmas

50 e espíritos. Ele assinalou que a idéia de um Deus criador, moral, paternal, onipotente e onisciente se encontra mesmo entre os povos mais primitivos do globo e deve ser considerada como pertencente ao assim chamado argumento do desígnio, uma conclusão racional do homem primitivo segundo a qual o universo ao seu redor deve ter sido obra de algum ser superior. Seja como for, nos critérios dos evolucionistas a idéia de Deus, sendo encontrada entre povos culturalmente mais simples, não pode ser um desenvolvimento tardio das idéias de fantasma e alma ou qualquer outra coisa. Ainda mais, continua Lang, o ser supremo de tais povos é, em muitas circunstâncias, pensado não como um espírito (pelo menos no nosso sentido do divino espírito - "Deus é um espírito e aqueles que o cultuam devem cultuá-lo em espírito e em verdade") mas sim como uma espécie de pessoa. Assim, Lang conclui que a concepção de Deus "não precisa ter evoluído a partir de reflexões acerca de sonhos e fantasmas” 1. A alma-fantasma e Deus teriam origens totalmente diferentes, e o monoteísmo poderia até ter antecedido o animismo embora a prioridade histórica possa não ser nunca esclarecida. Apesar desta afirmativa arguta, Lang achava que o monoteísmo era prioritário no tempo, corrompendo-se e degradando-se mais tarde pelas idéias animísticas. As duas correntes de pensamento religioso finalmente se reuniam, uma através das fontes hebraicas e a outra através das helenísticas, no Cristianismo. A linha de argumentação de Marett era bem diversa. Ele não apenas defendia a existência de um estágio pré-animístico, mas questionava, com base em elementos metodológicos, toda a argumentação das explicações da religião até então surgidas. O homem primitivo, segundo ele afir 1 Lang, THE MAKING OF RELIGION, p. 2.

51 mava, não era absolutamente o filósofo "manqué" que haviam desenhado. Com o homem primitivo, não são as idéias que dão lugar à ação, mas sim é a ação que dá lugar às idéias. Assim, "A religião selvagem não é tão pensada quarto dançada"1. `É o lado motor da religião selvagem o que importa, não o seu lado reflexivo; e a ação deriva de estados afetivos. Marett chegou à conclusão de que, nos estágios iniciais, pré-animísticos, a religião não pode ser diferençada da magia, enquanto pode sê-lo mais tarde, quando esta é condenada pela religião organizada e adquire um significado oprobrioso. Ele achava melhor, quando falando de povos primitivos, usar a expressão "mágico-religioso", expressão, aliás, a meu ver infeliz mas que foi adotada por muitos antropólogos, entre os quais Rivers e Seligman. Mas Marett preferia ainda falar de ambas as idéias como "mana", uma palavra da Melanésia que os antropólogos acrescentaram ao seu -vocabulário de conceitos com resultados a meu ver desastrosos; pois embora não possamos discutir assunto tão complicado agora, parece claro que "mana" não significa para os usuários nativos da palavra aquela força impessoal, uma concepção quase metafísica, que Marett e outros, tais como King, Preuss, Durkheim, Hubert e Mauss, seguindo a informação então disponível, atribuíam à idéia. Segundo Marett, os povos primitivos têm um sentimento de que existe um poder oculto em certas pessoas e em certas coisas e é a presença ou ausência deste sentimento que separa o sagrado do profano, o mundo do maravilhoso do mundo do dia-a-dia, cabendo aos tabus proceder a esta separação. __ Este sentimento seria a emoção do horror, um composto de \ medo, deslumbramento, admiração, interesse, respeito e talvez até amor. Seja o que for que tal sensação evoque e

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1. R. R. Marett, THE T`MESHOLD OF RELIGION, segunda ed. (1914), p. XXXI.

52 que passe a ser tratado como mistério, ela é religião. Por que deveriam algumas coisas evocar tais respostas e não outras, e por que isto ocorreria entre certos povos e não entre outros, são perguntas que Marett não nos responde; aliás seus exemplos ilustrativos são insuficientes e trazidos à argumentação atabalhoadamente. Embora ele diga que neste estágio a magia não possa ser diferençada da religião, Marett oferece para a magia uma explicação igualmente emocionalista. A magia surgiria de tensões emocionais. O homem sucumbe ao ódio ou ao amor ou a outra emoção qualquer e, desde que não há nada de prático que possa fazer a respeito, recorre ao fingimento para aliviar a tensão, do mesmo modo que um amante traída pode jogar ao fogo o retrato de sua amante. Isto é o que Marett chama de magia rudimentar (Vierkandt argumenta da mesma maneira). Quando tais situações se repetem com suficiente freqüência, a resposta se torna estabilizada sob a forma que designa como magia -desenvolvida, um modo socialmente reconhecido de comportamento habitual. A esta altura, o mago está bem consciente da diferença entre símbolo e realização. Ele então já sabe que não está fazendo "a coisa real", sabe que apontar uma lança para um inimigo distante enquanto pronuncia palavras de feitiço contra ele não é a mesma coisa que lhe atirar de perto contra o corpo a lança; ele não confunde, como queria Tylor, uma conexão ideal com uma real; pelo que também não há, como queria Frazer, verdadeira analogia entre magia e ciência, pois o selvagem então conhece bem a diferença entre causa mágica e causa real, entre a ação simbólica e a ação empírica. Assim, a magia é uma atividade de substituição nas situações em que faltam meios práticos para conseguir um objetivo; e sua função é catártica ou simuladora, dando ao homem coragem, alívio, esperança, tenacidade. No seu artigo sobre a magia na ENCICLOPÉDIA DE RELIGIÃO E ÉTICA de Hasting, Marett dá

53 uma explicação algo diversa, embora igualmente catártica, de certas formas da expressão mágica1. Situações repetidas na vida social geram estados de emoção intensa que, não podendo encontrar expressão numa atividade que leve a uma finalidade prática (assim como caçar, lutar e fazer amor) devem ser enfrentadas através de atividades secundárias ou substitutas, como danças que representem a caça, a luta, o ato amoroso; mas aqui a atividade substituta serve como válvula de escape para energias acumuladas. A partir deste ponto tais atividades substitutas passam a auxiliares da ação empírica, conservando sua forma mimética, embora sejam na realidade repercussões e não imitações. Marett disse muito pouca coisa importante sobre a religião primitiva, quando comparamos esta área com sua contribuição na área da 5ompreensão da magia. Ele falou muito do "sagrado", no que, acho, esteve sob influência de Durkheim, mas suas afirmações pouco mais foram do que mero jogo de palavras. Talvez ele se tenha sentido, como membro de uma faculdade de Oxford, à época, numa posição equívoca; e, sendo um filósofo, ele conseguiu (pareceu) sair dela ao distinguir a tarefa da antropologia social na determinação da origem da religião (uma mistura de história e procura de causas), da tarefa da teologia, que concerne a problemas de legitimidade2: uma posição que, de certa forma, nós todos assumimos. Sua conclusão é que "o fim e o resultado da religião primitiva é, em uma palavra, a consagração da vida, o estímulo à vontade de viver e ao fazer"3 Marett era um escritor brilhante, mas embora fosse 1 Marett, in ENCICLOPÉDIA DE RELIGIAO E ÉTICA, de Hasting, 1915, vol. VIII. 2 Marett, ORIGIN AND VALIDITY IN RELIGION (1916) e MAGIC OR RELIGION? (1919), in Psychology and Folk-Lore (1920). Ver também artigo citado na nota seguinte.

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3 "RELIGION (PRIMITIVE RELIGION)", Ency. Brit., 118 edição, XIX P. 105.

54 realmente um filósofo genial e instigante, capaz de com um pequeno trabalho publicado se estabelecer desde logo como um líder da escola pré-animística, não conseguiu somar às suas teorias o necessário peso empírico, pelo que sua influência e sua reputação não demoraram muito. Realmente não bastava que ele dissesse (embora o tenha dito com muita graça e haja um pouco de verdade em tudo isso) numa conversa que, para entender a mente primitiva não havia necessidade nenhuma de ir viver entre os selvagens, bastando para tal fim, ir-se a uma sala qualquer da universidade de Oxford. Falarei agora, brevemente, sobre os inúmeros escritos de outro erudito clássico, um chefe de escola, Ernest Crawley, cujos livros apareceram mais ou menos ao mesmo tempo que os de Marett. Ele empregou boa dose de bom senso para derrubar teorias errôneas ainda vigentes à época, tais como a do casamento grupal, comunismo primitivo, e casamento por captura; mas as suas contribuições positivas próprias são de menor valor. Ao discutir a religião em THE IDEA OF THE SOUL, ele acompanhou Tylor ao supor que a concepção de espírito desenvolve-se a partir da de alma e, num estágio mais avançado da cultura, transforma-se na idéia de Deus; mas ele discordava de Tylor no que concerne à gênese da idéia de alma. A opinião de Tylor neste assunto, dizia Crawley, nada acrescenta a Hobbes ou Aristóteles, e é psicologicamente impossível que a idéia de alma tenha se originado de sonhos, etc. Ela deve, sim, ter surgido das sensações. O homem primitivo podia visualizar qualquer pessoa que conhecesse quando tal pessoa estivesse ausente e, de tal dualidade surgiram as idéias de alma e de fantasma; segue-se que tudo aquilo de que uma imagem mental possa ser formada pode ter uma alma, embora as almas dos objetos inanimados não sejam mais "animadas" que os objetos mesmos, como acreditava Tylor. Assim, "a existência espiritual é a exis-

55 tência mental; o mundo dos espíritos é o mundo mental”1. Quanto a Deus ou aos deuses, são apenas agrupamentos de fantasmas ou fantasmas de indivíduos importantes, como disse Spencer. A religião é, portanto, uma ilusão. Se isto fosse tudo o que Crawley escreveu acerca da religião, ele poderia ser catalogado entre os da classe intelectualista e os comentários gerais que se fazem sobre ela se aplicariam também a ele. Mas em outros de seus escritos, incluindo seu trabalho inicial (e mais conhecido) A ROSA M(STICA, que eu, como alguns de seus contemporâneos, considero ininteligível, Crawley parece ter uma teoria mais geral da religião. A totalidade dos hábitos mentais do homem primitivo é religiosa ou supersticiosa, e por isto a magia não se deve distinguir da religião. Em sua ignorância, ele vive num mundo de mistério em que não diferencia a realidade objetiva da subjetiva; e a mola propulsora de todo o seu pensamento é o medo, especialmente o do perigo nas relações sociais, muito especialmente aquelas que envolvem homem e mulher. Tal sentimento seria parcialmente instintivo e parcialmente devido a uma idéia mais ou menos subconscientes de que as propriedades e qualidades, sendo infecciosas, se podem transmitir pelo contacto. Assim, os homens se sentem particularmente vulneráveis durante atos fisiológicos tais como comer ou manter relações sexuais, pelo que tais atos são isolados como tabus. Crawley conclui que "todas as concepções religiosas vivas surgem de origens funcionais mais ou menos constantes, de natureza fisiológica ou psicológica”1. Ele chega a falar de um "pensamento fisiológico", o processo pelo qual as funções, por um reflexo mais ou menos orgânicos, produziriam "idéias" acerca das mesmas funções. Nesta teoria a religião primitiva é praticamente o tabu, o produto do 1 A. E. Crawley, THE IPEA OF THE SOUL, 1909, p. 78.

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56 medo; os espíritos em que crêem os povos primitivos seriam apenas um produto do medo e do perigo. A mim me parece difícil conciliar esta posição com a afirmativa feita em THE IDEA OF THE SOUL segunda a qual a "alma é a base de toda a religião"1. Mas como eu já disse, não considero Crawley um escritor muito lúcido. Seu tema geral, no entanto, é o mesmo em todos os seus livros: a religião é, em última análise, apenas um produto do medo do homem primitivo, de sua hesitação, sua falta de iniciativa, sua ignorância e sua inexperiência; não chega a ser uma coisa mesma, um departamento da vida social, mas sim um tõnus ou espírito que permeia suas partes e cuida dos processos fundamentais da vida orgânica e acontecimentos mais críticos nela envolvidos. O instinto vital, o impulso para a vida, é idêntico ao sentimento religioso. A religião sacraliza o que promove a vida, a saúde, a força. Quando nos perguntamos o que vem a ser a emoção religiosa, respondem-nos que não é nada específica, "constituindo aquele tom ou qualidade de qualquer sentimento que resulta na sacralização de algo"2. Segue-se da argumentação de Crawley, segundo ele mesmo disse, que quanto maior for o perigo, maior será a religiosidade, e assim, quanto mais primitivo estágio de cultura, tão mais religiosa será; e a mulher sempre mais religiosa que o homem. Mais ainda, Deus é um produto de processos psicobiológicos. Antes de comentar as idéias de Marett e Crawley a respeito de religião e magia, consideremos alguns outros exemplos semelhantes. Acho que devo dizer alguma coisa sobre Wilhelm Wundt, um nome influente em seu tempo, embora em nossos dias raramente seja mencionado. Escritor eclético, fica difícil situá-lo. O enfoque do seu VOLKERPSYCHO- 1 I d., p.1. 2 Crawley, THE TREE OF LIFE, 1905, p. 209.

57 LOGIE indubitavelmente influenciou Durkheim, mas, no geral, pode-se dizer que suas explicações eram psicológicas, assim como altamente evolucionistas e também especulativas, além de entediantes. Para ele, as idéias que se referem ao que não é imediatamente apreensível pela percepção, o pensamento mitológico, como ele o chama, originar-se-iam de processos emocionais, basicamente o medo ("Scheu") que "são projetados rumo ao meio-ambiente"1. Em primeiro lugar vem a crença na magia e nos demônios, e não é senão no próximo estágio de evolução, a Idade Totêmica, que começa a religião propriamente, no culto de animais. Então, à medida em que o totemismo se evanesce, o totem-ancestral é substituído por um ancestral humano como objeto de culto. O culto do ancestral se transforma em culto do herói e mais tarde em culto de deuses: a Idade dos Heróis e Deuses. O estágio final é a Idade Humanística, com seu universalismo religioso. Talvez tudo isto devesse se chamar filosofia da história, e não antropologia. Constitui certamente uma leitura muito estranha para o antropólogo de hoje. Chegamos então à era dos antropólogos que se dedicaram ao trabalho de campo e que estudaram povos nativos em primeira mão, em vez de se basearem em relatos de terceiros, de observadores não treinados. R. H. Lowie, cujo estudo dos índios Crow foi uma importante contribuição para a antropologia, informa-nos que a religião primitiva se caracteriza por um "sentimento do Extraordinário, do Misterioso ou do Sobrenatural”, 2 (notar que escreve em maiúsculas) e que a resposta religiosa é de "assombro e terror; sua fonte é o Sobrenatural, o Extra- 1 W. Wundt, ELEMENTS OF FOLK PSYCHOLOGY, 1916, p. 74. 2 R. H. Lowie, PRIMITIVE RELIGION, 1925, p. XVI.

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ordinário, o Fantástico, o Sacro, o Santo, o Divino"1, (notar novamente as maiúsculas). Como Crawley, ele afirma que não há comportamento especificamente religioso, mas sim sentimentos religiosos, de modo que a crença dos índios Crow na existência de fantasmas dos mortos não é religiosa, porque o assunto não é de interesse emocional para os índios; assim, tanto o ateu militante quanto o padre podem ser pessoas religiosas se experimentam os mesmos sentimentos, e o dogma cristão e a teoria da evolução biológica podem, ambos, ser chamados de doutrinas religiosas. O positivismo, o igualitarismo, o absolutismo e o culto da razão, são indistinguíveis da religião; mais: a bandeira de um país é um típico símbolo religioso. Quando a magia se associa à emoção passa a ser, também ela, religião. De outro modo, seria um equivalente psicológico de nossa ciência, como disse Frazer. Paul Radin, outro. americano, cujo estudo dos índios Winnebago foi também notável, assumiu posições semelhantes. Não há comportamento religioso específico, mas sim um sentimento religioso, uma sensibilidade maior que o normal para com certas crenças e costumes, "que se manifesta por um frêmito, uma sensação de regozijo, exaltação e terror e numa completa absorção nas sensações internas”2. Quase todas as crenças podem estar associadas com este sentimento religioso, embora mais freqüentemente o estejam os valores de sucesso, felicidade e vida longa (e aqui sentimos ecoar William James e sua "religião da mentalidade saudável"); o frêmito religioso seria particularmente evidente nos momentos críticos da vida, como os da puberdade e da morte. Quando aquilo que é geralmente considerado como mágico faz despertar a emoção 1 Ibid. p. 22. 2. P. Radin, SOCIAL ANTHROPOLOGY, 1932, p. 244.

59 religiosa, então passa a ser religião. Caso contrário, é folclore. Para citar um último antropólogo americano, e dos mais brilhantes, mencionemos Goldenweiser: ele também diz que os dois reinos do sobrenatural, o mágico e o religioso são caracterizados por um "frêmito religioso"1 Como trabalhador de campo, Malinowski deixou os antropólogos para sempre devedores seus, mas nos seus escritos explicitamente teóricos mostrou pouca originalidade e pouca distinção de pensamento. Fazendo diferença, como outros, entre o sagrado e o profano, ele afirmou que o que distinguia o primeiro seria o fato de que os atos a ele relacionados ocorreriam em meio à reverência e temor. A magia difere da religião em que os ritos religiosos não têm propósito ulterior, estando o seu objetivo no rito mesmo, como nas cerimônias que ocorrem durante os nascimentos, puberdade e morte; enquanto que na magia se acredita que o fim "é obtido" através dos ritos, mas não está neles mesmos, como ocorre nos rituais da pesca, ou da agricultura. Psicologicamente, no entanto, as duas são semelhantes, uma vez que a função é, em ambas, catártica. Diante das crises da vida, principalmente a morte, os homens em seu medo e ansiedade aliviam suas tensões e superam seu desespero pela execução de ritos religiosos. A discussão de Malinowski, em seus escritos posteriores2 segue tão de perto a tese de Marett, que pouco precisaremos dizer a respeito. Como a religião, a magia surge de e funciona em situações de tensão emocional. Os homens 1 Goldenweiser, EARLY CIVILIZATION, 1921, p. 346. 2 Malinowsky, "MAGIC, SCIENCE AND RELIGION", in Science Religion and Reality, 1925. Em ensaio anterior, "THE ECONOMIC ASPECT OF THE INTICHIUMA CEREMONIES", in Festskrift Tillëgnad Edvard Westermarck, 1912, ele se interessara mais pelo papel desempenhado pela magia, o elemento mágico do totemismo em particular, em relação à evolução econômica.

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60 não têm conhecimentos adequados para superar por métodos empíricos as dificuldades que se contrapõem a seus objetivos, de modo que usam a magia como uma atividade de substituição, o que alivia a tensão causada pela impotência que ameaça o sucesso de seus empreendimentos. Daí a forma mimética dos ritos, a conversão de atos sugeridos pelos fins visados. Assim a magia produz o mesmo resultado subjetivo que a ação empírica teria conseguido, restaura-se a confiança, e seja qual for o programa em que as pessoas estejam engajadas, ele pode ser levado avante. Tal explicação é seguida por outros autores sem comentários críticos, entre eles Driberg1 e Firth2; efetivamente, explicações emocionalistas deste tipo eram comuns entre os que escreveram sobre o assunto naquele período. Mesmo um equilibrado estudioso da vida primitiva como foi R. Thurnwald aderiu à idéia de que os povos primitivos tomam conexões ideais por conexões reais - a fórmula Tylor-Frazer - dizendo que suas ações mágicas eram tão carregadas de emoções, seus desejos tão fortes, que inibiam os modos mais práticos de pensamento existentes em outros departamentos de suas vidas3. Talvez a melhor afirmativa deste ponto de vista (o de que a magia é produto de estados emocionais, ou de desejo, medo, ódio e assim por diante, e de que sua função é aliviar as tensões do homem e lhe dar esperança e confiança) tenha vindo de um psicólogo, Carveth Read, em um livro que parece ter escapado completamente às atenções dos antropólogos - AS ORIGENS DO HOMEM E SUAS SUPERSTIÇÕES4, - no qual são discutidas a magia e o animismo sob o título 1 J. H. Driberg, AT HOME WITH THE SAVAGE, 1932, p. 188. 2 R. Firth, "MAGIC. PRIMITIVE", Ency. Brit, 1955, p. XIV. 3 R. Thurnwald. "ZAUBER, ALLGEMEIN", Reallexikon der Vorgechichte, 1929. 4 C. Read, THE ORIGIN OF MAN AND HIS SUPERSTITIONS, 1920, Passim.

61 de "crenças imaginárias" por oposição às "crenças de percepção", aquelas do senso comum e da ciência, que derivam da percepção sensorial e são por ela controladas. É preciso dizer alguma coisa, embora não muito, sobre a contribuição de Freud. Uma ponte utilizável na direção do seu pensamento nos é fornecida por, entre outros, Van Der Leeuw. Os povos primitivos, diz ele, não percebem as contradições que estão por trás de muito do que pensam, porque "uma necessidade afetiva imperiosa lhes impossibilita a visão da verdade"1. Eles apenas vêem aquilo que querem ver e este é especialmente o caso da magia. Quando se defronta com um impasse, o homem pode escolher entre superá-lo através de sua habilidade e retirar-se para dentro de si mesmo, ultrapassando o obstáculo através da fantasia: poderá portanto, voltar-se para fora ou para dentro, sendo este o método da magia, o "autismo", para usar o termo psicológico. Os mágicos acreditam que por palavras, encantamentos, podem alterar o mundo, e assim pertencem à nobre categoria das pessoas que supervalorizam o pensamento: as crianças, mulheres, poetas, artistas, amantes, místicos, criminosos, sonhadores e loucos. Todos procuram lidar com a realidade através do mesmo mecanismo psicológico. Esta supervalorização do pensamento, a convicção de que a dura muralha da realidade pode ser rompida na mente, ou de que ela não existe absolutamente, foi o que Freud disse ter encontrado em seus pacientes neuróticos e que chamou de onipotência do pensamento (ALLMACHT DER GEDANKEN). Os ritos e fórmulas mágicas do homem primitivo correspondem psicologicamente às ações obsessivas e fórmulas protetoras dos neuróticos; assim, o neurótico é como o selvagem, desde que "acredita poder trans 1 G. Van der Leeuw, "LA STRUCTURE DE LA MENTALITÉ PRIMITIVE", La Revue d'Histoire et de Philosophie Religieuse, 1928, p. 14.

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formar o mundo exterior por um simples pensamento"1. Aqui nos vemos diante de um novo paralelismo entre os desenvolvimentos ontogênico e filogênico: o indivíduo passa por três fases da libido - o narcisismo, a descoberta do objeto, que se caracteriza pela dependência em relação aos pais, e o estado de maturidade, em que o indivíduo aceita a realidade e a ela se adapta; e estas fases correspondem psicologicamente aos três estágios do desenvolvimento do homem, o animístico (aqui Freud parece referir-se ao que outros teriam chamado de mágico), o religioso e o científico. Na fase narcísica, que corresponde à mágica, a criança, incapaz de satisfazer seus desejos através da atividade motora, se oferece uma recompensa, superando suas dificuldades através da imaginação, substituindo o ato pelo pensamento; é uma condição psíquica semelhante à do mágico; e o neurótico é como o mágico também, pois como ele, superestima o poder do pensamento. Em outras palavras, é a tensão, uma aguda sensação de frustração que origina o ritual mágico, e este por sua vez se destina a aliviar a tensão. Assim, a magia é uma realização-de-desejo na qual o homem se gratifica através de alucinações motoras. A religião é igualmente uma ilusão. Ela surgiu e é mantida por sentimentos de culpa. Freud nos oferece tal explicação, algo que só um gênio poderia se aventurar a compor, uma vez que não havia nem podia haver nenhuma prova a apoiá-la; embora, creio eu, se possa dizer que ela seja psicologicamente ou virtualmente verdadeira, no sentido de que um mito pode ser considerado verdadeiro mesmo quando literalmente e historicamente inaceitável. Certa vez, esta fábula merece uma abertura do tipo das dos contos de fadas, quando os homens eram criaturas 1 S. Freud, TOTEM AND TABOO, p. 145.

63 mais ou menos semelhantes aos macacos, o chefe da horda reservou todas as mulheres para si1. Seus filhos se ergueram contra sua tirania e contra este monopólio, almejando desfrutar também das mulheres e mataram e comeram o chefe numa festa canibalesca (uma idéia que Freud colheu de Robertson Smith). Em seguida os filhos começaram a sentir remorso e instituíram tabus a respeito da devoração de seus totens (identificados com o pai), embora o fizessem cerimonialmente de tempos em tempos, assim comemorando e renovando a culpa; estabeleceram, além disso, a interdição do incesto, que é a origem da cultura, pois a cultura resulta desta renúncia. A teoria de Freud acerca da religião está contida nesta alegoria, porque o pai devorado é também Deus. Este pode ser considerado um mito etiológico, que fornece uma base para os dramas encenados nas famílias vienenses de cujos problemas Freud realizou análises clínicas que julgou serem aplicáveis, em sua essência, às famílias de qualquer lugar, uma vez que eram derivadas da própria natureza da estrutura familial. Não preciso me estender mais. Todos nós conhecemos os traços gerais de sua tese, segundo a qual, para dizer cruamente, as crianças amam e odeiam seus pais, e o filho, das profundezas de seu inconsciente, deseja matar o pai e possuir a mãe (o complexo de Édipo), enquanto a filha, nas profundezas do seu inconsciente, deseja matar a mãe e ser possuída pelo pai (o complexo de Electra). Na superfície, a afeição e o respeito vencem; e a confiança no pai e dependência em relação a ele projetadas, idealizadas e sublimadas na imagem paterna de Deus. A religião é portanto uma ilusão e Freud deu a seu livro sobre o assunto, 1 Esta idéia, Freud obteve de J. J. Atkinson. Atkinson era primo de Andrew Lang, que publicou seu ensaio "PRIMEI LAW" como suplemento ao seu próprio SOCIAL ORIGINS, de 1903. Nada que corresponda a esta família ciclópica foi descoberto.

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o título de 0 FUTURO DE UMA ILUSAO1; mas esta ilusão o é apenas objetivamente. Subjetivamente ela não é assim, por não ser produto de alucinação: o pai é real. Em linhas como estas, não há limites para a interpretação. Do excelente livro de Frederick Schleiter acerca da religião primitiva quero citar as palavras irônicas que ele dedica ao COMPENDIO DE DOENÇAS MENTAIS de Tanzi. Ei-las: "Em cadência melíflua, metáforas equilibradas e com brilhantes artifícios retóricos, ele propõe o paralelismo (profundo, fundamental e inabalável) entre a religião primitiva e a paranóia... Entretanto, aqueles que, seja por predisposições temperamentais ou argumentações mais racionais se disponham a encontrar alguma justificativa ou dignidade na religião do homem primitivo, encontrarão, talvez, algum consolo no fato de que Tanzi rejeita o paralelismo entre os processos mentais do homem primitivo e os da demência precoce"2 A magia e a religião são assim reduzidas, ambas, a estados psicológicos: tensões, frustrações, emoções e sentimentos, além de complexos e delírios de qualquer tipo. Dei alguns exemplos de interpretações da religião em bases emocionais. Que devemos agora fazer com elas? Na minha opinião, estas teorias são, na maior parte, especulações do tipo "se eu fosse um cavalo" (permito-me repetir), com a diferença de que em vez de dizer: "Se eu fosse um cavalo eu faria o que um cavalo faz por esta ou aquela razão", ela diz agora: "eu faria o que um cavalo faz, devido a um ou outro sentimento que podemos supor que os cavalos têm". Se tivéssemos que praticar ritos tal 1 THE FUTURE OF AN ILLUSION, 1928. 2 F. Schleiter, Religion and Culture, 1919, pp. 45-47 (Acerca de E. Tanzi, A TEXTBOOK OF MENTAL DISEASES, tradução inglesa, 1909).

65 como os primitivos fazem, é provável que nos encontrássemos numa situação de perturbação emocional; caso contrário nossa razão nos diria que os ritos não têm finalidade objetiva e em nada resultam. A meu ver conseguiu-se muito pouco material demonstrativo em apoio a estas conclusões; e isto foi o caso até mesmo daqueles que, além de fornecer a teoria, tiveram a oportunidade de testá-la em pesquisa de campo. E aqui devemos fazer algumas perguntas. Que temor é este que alguns dos autores que citei mencionam como característico do sagrado? Alguns dizem que ele é a emoção religiosa específica. Outros, que não há emoção religiosa específica. Seja como for, como é que se pode saber se uma pessoa está sentindo terror ou um frémito emocional ou o que quer que seja? Como se pode reconhecer ou medir isto? E mais, assim como o admitiu Lowie e outros assinalaram, os mesmos estados emocionais podem ser encontrados em formas muito diferentes de comportamento; até mesmo em formas opostas, como, por exemplo, no comportamento de um pacifista e no de um militarista. Só poderíamos chegar a um resultado caótico, se os antropólogos classificassem os fenômenos sociais pelas emoções que se supõe acompanhá-las, pois tais emoções, se é que existem então, devem variar não apenas de indivíduos para indivíduo, mas também no mesmo indivíduo em ocasiões diversas ou mesmo em certas etapas do mesmo rito. É absurdo considerar sacerdote e ateu na mesma categoria, como faz Lowie; e seria ainda mais absurdo dizer que quando um padre está dizendo a missa não está executando um ato religioso a menos que se encontre em determinado estado emocional. Mas quem poderia saber qual o seu estado emocional? Se quiséssemos classificar e explicar o comportamento social a partir dos supostos estados emocionais, poderíamos chegar a resultados verdadeiramente estranhos. Se a religião se caracteriza pela emoção do

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temor, então, poder-se-ia dizer que um homem correndo desabaladamente de um búfalo em disparada está praticando um ato religioso. E se a magia se caracteriza por sua função catártica, um médico que alivie a tensão de um paciente apenas com recursos clínicos estaria praticando um ato mágico. Há ainda o que comentar. Muitos ritos que praticamente todo mundo aceitaria como sendo de caráter religioso, tais como sacrifícios, certamente não são efetuados em situações nas quais há alguma causa que dê lugar a inquietação e sentimentos de mistério e terror. Eles se constituem em rotina padronizada e obrigatória. Falar de tensões e coisas que tais nesses casos é tão sem sentido quanto falar de tensões nas pessoas que estão indo para a igreja em nossa sociedade. Se falamos de ritos levados a efeito em horas críticas, como por ocasião das doenças e da morte, ocasiões em que surgem sempre ansiedade e aflição, nestes casos as tensões estarão presentes. Mas mesmo aqui devemos ser cuidadosos. A expressão de emoção pode ser obrigatória, uma parte essencial do rito, assim como nas lamentações e outros sinais de sofrimento na morte e nos funerais, pouco importando que os atores estejam sofrendo ou não. Em algumas sociedades se empregam carpideiras profissionais. Então, pode muito bem dar-se que não seja a emoção a fazer, surgir o rito, mas sim o rito a fazer surgir a emoção. É o mesmo velho problema de saber se rimos porque estamos felizes ou se estamos felizes porque estamos rindo. É óbvio que não vamos à igreja por nos encontrarmos num estado emocional elevado, embora nossa participação no rito possa desencadear tal estado. No que concerne a função catártica da magia, que evidência prova que um homem efetua rituais mágicos de agricultura, caça e pesca por estar frustrado? Ou qual a prova que há de que a execução dos ritos lhe alivia as tensões? A mim me parece haver pouquíssima ou nenhuma

67 prova. Sejam quais forem seus sentimentos, o mago tem que efetuar os ritos a todo custo, pois eles constituem parte costumeira e obrigatória do processo. Pode-se dizer com acerto que o homem primitivo leva a efeito seus ritos porque acredita em sua eficácia e que não há grandes motivos para frustraçeõs, pois ele sabe que dispõe de meios para combater as dificuldades que se lhe apresentem. Melhor que dizer que a magia alivia tensões, seria dizer que o recurso da magia funciona preventivamente em relação às tensões. Ou, dizer novamente que se há algum estado emocional envolvido, ele pode ser, não a base do rito, mas o resultado do rito, com os gestos e fórmulas produzindo as tais condições psicológicas que se imaginava teriam levado à efetivação do rito. Deveremos também ter em mente que muita magia e muita religião têm caráter de substituição, sendo o mago ou o sacerdote uma pessoa diferente daquela a quem se dirige o rito, o cliente. Assim, a pessoa que se supõe estar num estado de tensão é alguém que não o contratado, esta pessoa desinteressada cujos gestos e palavras, espera-se, aliviarão a tensão. Assim, se seus gestos e manobras sugerem um estado emocional elevado, forçosamente serão simulados; ou então o executante deverá penetrar na emoção durante e por intermédio do rito. Devo acrescentar que, no caso de Malinowski, muitos dos ritos que ele observou foram efetuados "para ele" e em troca de pagamento, em sua tenda e fora dos métodos usuais; se assim for, dificilmente poderíamos aceitar que qualquer emoção então envolvida fosse causada por tensão ou por frustração. Além disso, como observou Radin1, na experiência individual a aprendizagem de ritos e crenças precede as emoções que se diz estarem presentes mais tarde, na vida 1 SOCIAL ANTHROPOLOGY, p. 247.

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adulta. O indivíduo aprende a participar do rito antes de experimentar qualquer emoção, de modo que o estado emocional, qualquer que seja ele, e se é que existe, dificilmente poderá ser a origem e a explicação do rito. O rito é parte da cultura em que nasce o indivíduo e se impõe a ele de fora, como o restante da cultura. Ele é uma criação da sociedade, e não das emoções ou condições individuais, embora possa satisfazer a ambas; e é por isto que Durkheim nos diz que toda interpretação psicológica de um fato social é invariavelmente uma interpretação errada. Pelo mesmo motivo, devemos afastar as teorias da realização de desejo. Ao comparar o neurótico com o mago, elas ignoram o fato de que as ações e fórmulas verbais do neurótico derivam de estados subjetivos individuais, enquanto que as do mago são tradicional e socialmente impostas a este por sua cultura e sociedade, sendo ainda parte da estrutura institucional em que vive e a qual deve se adaptar. Mais ainda: embora em certos casos e sob certos aspectos possam haver semelhanças exteriores, não se pode inferir que os estados psicológicos sejam idênticos ou que se devam a condições comparáveis. Ao classificar os povos primitivos como próximos às crianças, aos neuróticos, etc., erra-se ao admitir que, já que as coisas se parecem entre si em certos traços particulares, então devem ser semelhantes em outros; trata-se da falácia do "pars pro toco". Tudo o que isto significa é que, aos olhos desses autores, estas diferentes classes de pessoas (primitivos, crianças, neuróticos, etc.) não pensam cientificamente o tempo todo. E, poderíamos perguntar, quem já encontrou um selvagem que pensasse poder transformar o mundo pelo pensamento? Eles sabem muito bem que não podem. O que temos aqui é outra variante da espécie "se eu fosse um cavalo", ou seja: se eu me comportasse como um mago selvagem, estaria sofrendo das doenças de meus pacientes neuróticos.

69 Não devemos, é claro, afastar inteiramente estas interpretações. Elas foram uma reação saudável a uma posição excessivamente intelectualista. Os desejos e impulsos, conscientes ou inconscientes, motivam o homem, guiam seus interesses, impelem-no à ação; e certamente têm o seu papel dentro da religião. O que é preciso determinar é a sua natureza, e que papel exatamente desempenham. Aquilo contra que protesto é a mera afirmação especulativa, e o que ataco é uma explicação da religião em termos de pura emoção, ou de alucinação.

TEORIAS SOCIOLÓGICAS

s explicações emocionalistas da religião primitiva, que acabei de expor, têm todas um forte sabor pragmatista. Por mais que pareçam absurdos os ritos e crenças primitivas à mentalidade racionalista, o fato é que eles ajudam os povos mais rudes a lidar com seus problemas e seus

contratempos, assim eliminando o desespero que inibe a ação e dando confiança para a busca do bem-estar do indivíduo, fornecendo-lhe um sentido renovado do valor da vida e das atividades que a compõem. O pragmatismo exercia grande influência na ocasião em que tais teorias foram propostas, e a teoria de Malinowski acerca da religião e da magia poderia ter saído diretamente das páginas de William James, como de fato pode ter acontecido: a religião é algo de valor e mesmo algo verdadeiro, no sentido pragmatista de verdade, desde que ela sirva ao propósito de dar conforto e sentimentos de confiança, segurança, alívio, apoio; quer dizer - se resultados úteis à vida decorrem dela. Dentre os analistas do pensamento primitivo já mencionados, o que talvez enuncie mais claramente o enfoque pragmatista é Carveth Read, em livro a que já me

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referi. Por que, pergunta ele, seria a mente humana perturbada por idéias de magia e de religião? (Para ele a magia seria anteiror à religião e suas origens deveriam ser procuradas nos sonhos e nas crenças em fantasmas). A resposta é que, além do alívio psicológico que elas promovem, nos estágios iniciais da evolução social tais superstições eram úteis aos líderes, dando-lhes apoio, assim ajudando a manter a ordem, o governo, os costumes. Ambas as idéias são ilusórias, mas a seleção natural lhes foi favorável. As danças totêmicas, dizem-nos, "representam excelente exercício físico, estimulam o espírito de cooperação, constituem uma espécie de treinamento..."1 E assim por diante. Veremos que nas teorias sociológicas gerais da religião se encontra o mesmo sabor: - a religião é válida enquanto colabora na manutenção da coesão social e sua continuidade. Este modo pragmatista de encarar a religião é bastante anterior à organização do pragmatismo como uma filosofia formal. Montesquieu, por exemplo, pai da antropologia social (embora alguns atribuam esta honra a Montaigne), ensina que embora uma religião possa ser falsa, pode ter função social aproveitável; e verificar-se-á que eia se adapta ao governo ao qual está associada, sendo a religião de um povo geralmente adequada a seu modo de vida; o que torna difícil transportar a religião de um país para outro. Assim, função e legitimidade não devem ser confundidas. "As mais sagradas e verdadeiras doutrinas podem acarretar as piores conseqüências quando não estão ligadas aos princípios da sociedade; e, por sua vez, as doutrinas mais falsas podem alcançar os melhores resultados quando se aplicam na dedicação a estes princípios"2. Mesmo os ultra-racionalistas do Iluminismo, como Condorcet, concordam em que a religião, embora falsa, já teve, em algum 1 Op. Cit. p. 42. 2 Montesquieu, THE SPIRIT OF LAWS, 1750, I1, 161.

72 tempo, ume função social útil, desempenhando assim importante papel no desenvolvimento da civilização. Visões sociológicas semelhantes são encontradas nos primeiros textos escritos a respeito da sociedade humana. Eles às vezes utilizam aquilo que hoje chamaríamos de termos estruturais. Aristóteles, na POLÍTICA, diz que "todas as pessoas afirmam que os deuses também tinham um rei, pois elas mesmas sempre tiveram um, no passado ou no presente; pois os homens criam os deuses à sua imagem, não apenas no que concerne à forma, mas também no que diz respeito ao seu modo de vida"1. Hume diz praticamente a mesma coisa; e esta idéia da conexão entre desenvolvimento político e desenvolvimento religioso, nós podemos encontrá-la em vários dos nossos tratados de antropologia. Herbert Spencer diz que Zeus está para os demais Celestiais "exatamente na mesma relação existente entre um monarca absoluto e a aristocracia da qual ele é a cabeça”2 Para Max Müller, o "henoteísmo" (uma palavra que creio inventada por ele3para descrever uma religião em que cada deus ao ser invocado assume todos os poderes de um ser supremo) ocorre em períodos que antecedem a formação das nações a partir de tribos independentes, sendo esta uma forma comunal, e não imperial, de religião. King também assevera que à medida em que se desenvolvem os sistemas políticos, suas partes componentes são representadas por deuses tutelares; e quando as partes se unem, no momento em que as tribos se agregam em nações, aparece a idéia de um ser supremo. Este é o deus tutelar do grupo dominante na fusão. Finalmente surge o monoteísmo, o ser 1 I, 2.7. 2 Op. Cit. p. 207. 3 R. Pettazzoni, no entanto, In ESSAYS ON THE HISTORY OF RELiGION, 1954, p. 5, diz que a palavra foi inicialmente usada por Schelling, sendo a idéia mais tarde desenvolvida por Müller.

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73 supremo como reflexo do Estado universal, onipotente. Robertson Smith explicava o politeísmo da antigüidade clássica pelo contraste com o monoteísmo da Ásia, pelo fato de que em Grécia e Roma a monarquia caiu ante a aristocracia enquanto que na Ásia manteve seus poderes. "Esta diversidade de destino político se reflete na diversidade de desenvolvimento religioso"1. Jevons segue a mesma linha de raciocínio. Tudo isto é um pouco simplório. Os escritos de Andrew Lang e os muitos volumes de Wilhelm Schmidt contêm inúmeras demonstrações de que povos não dotados de um modelo político coerente com , a concepção de um ser supremo, os caçadores e coletores de produto silvestres são, em larga escala, monoteístas, pelo menos no sentido em que aceitam a existência de apenas um deus - conquanto não no sentido segundo o qual existe culto de um deus e rejeição dos demais (porque para haver monoteísmo no segundo sentido - o que tem sido chamado de monoteísmo explícito - é preciso que haja ou tenha havido alguma forma de politeísmo). Outros exemplos de análises sociológicas se encontram nos escritos de Sir Henry Maine sobre jurisprudência comparada. Ele explica, por exemplo, a diferença entre as teologias do Oriente e Ocidente pelo simples fato de que, nesta última, a telogia se combinou com a jurisprudência romana, enquanto que sociedade helênica "jamais mostrou a menor capacidade de produzir uma filosofia do direito”2. A especulação teológica passou de um clima de metafísica grega para um clima de direito romano. Porém o mais geral e extenso tratamento sociológico da religião é o de Fustel de Coulanges em THE ANCIENT CITY; este historiador francês (bretão) nos interessa de perto, porque um de seus 1 W. Robertson Smith, THE RELITON OF THE SEMITES, terceira ed. (1927), p. 73. 2 H. S. Maine, ANCIENT LAW, ed. de 1912, p. 363.

74 pupilos mais influenciados foi Durkheim, cuja teoria da religião logo apresentarei. O tema de THE ANCIENT CITY é o de que a antiga sociedade clássica estava centrada na família, no sentido mais amplo que se possa dar a esta palavra, compreendendo família conjunta ou linhagem, e que o que mantinha unido o grupo agnático como uma corporação, dando-lhe permanência, seria o culto do ancestral, no qual o chefe da família atuaria como um sacerdote. A luz desta idéia central e somente a partir dela - onde os mortos aparecem como as deidades da família - todos os costumes do período podem ser compreendidos: normas e cerimônias de casamento, monogamia, proibição do divórcio, interdição do celibato, o levirato, a adoção, a autoridade paterna, regras de descendência, herança e sucessão, leis, propriedades, os sistemas de nominação, calendário, escravidão,clientela e muitos outros costumes. Quando os estados-cidade se desenvolveram, tomaram o mesmo padrão estrutural que havia informado a religião nestas condições sociais iniciais. Outro autor que influenciou fortemente a teoria da religião de Durkheim (assim como os escritos de F. B. Jevons, Salomon Reinach e outros) foi o já mencionado Robertson Smith, que foi professor de árabe em Cambridge. Tomando algumas de suas idéias básicas do pensamento de um outro escocês, J. F. McLennan, ele supôs que as sociedades semíticas da Arábia antiga eram compostas de clãs matrilineares, cada um dos quais mantinha um relacionamento sagrado com determinada espécie de animal que era para eles um totem. As evidências que apóiem tais suposições são restritas mas é nelas que Robertson Smith acreditava. Segundo ele os membros do clã deveriam ter um só sangue, assim como seus totens; do mesmo sangue era também o deus do clã pois ele era concebido como sendo o pai físico do fundador do clã. Do ponto de vista sociológico, o deus era o clã mesmo, idealizado e divinizado. Esta projeção tinha sua representação material

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na criatura totêmica; e o clã periodicamente expressava a unidade de seus membros entre si e com seu deus, revitalizando-se pelo sacrifício da criatura totêmica e comendo-lhe a carne crua numa festa sacra, uma comunhão em que "o deus e seus adoradores se unem pela divisão da carne e do sangue de uma vítima sagrada"1. No entanto, na medida em que o deus, os membros do clã e o totem eram todos de um só sangue, os membros do clã estavam em comunhão sagrada com seu deus, mas estavam também dividindo-o, cabendo a cada membro do clã incorporar uma partícula sacramental da vida divina à sua própria vida. Formas tardias do sacrifício hebreu se desenvolveram a partir desta forma comunal. As provas desta teoria, que Jevons engoliu com anzol, linha, chumbo e tudo, são parcas. Tal teoria representava, para um pastor presbiteriano, chegar muito perto do fogo; de modo que o próprio Robertson Smith ou quem quer que tenha sido responsável pela publicação (póstuma) da segunda edição de THE RELIGION OF THE SEMITES em 1894 (a primeira era de 1889), suprimiu certas passagens que poderiam ser consideradas como desmentidos do Novo Testamento2. Tudo que se pode dizer da teoria como um todo, considerando que seus argumentos são ao mesmo tempo tortuosos e tênues é que comer o animal totêmico pode ter sido a primeira forma de sacrifício e a origem da religião - mas não há nenhuma prova de que o tenha sido. Mais ainda, na vasta literatura mundial que trata do totemismo, há apenas um exemplo, entre os aborígines australianos, em que um povo come, durante uma cerimônia, seu animal totêmico; e a significação deste dado, mesmo se aceitamos que seja verdadeiro, é duvidosa e questionável. Além disso, embora Robertson Smith pretendesse que sua teoria fosse genericamente verdadeira no 1 THE RELIGION OF THE SEMITES, p. 227. 2 J. G. Frazer, THE GORGONS'S HEAD, 1927, p. 289.

76 que concerne os povos primitivos, acentuemos que há muitos povos dos mais primitivos, inclusive, que não têm sacrifícios sangrentos, e outros entre os quais não vigora nenhuma idéia de comunhão. Neste assunto, Robertson Smith fez com que Durkheim e Freud se equivocassem. É também altamente duvidoso que a idéia de comunhão chegasse a estar presente nas formas mais antigas do sacrifício hebreu como o conhecemos e, se estava, forçosamente estariam presentes também a idéia de expiação e outras, talvez mesmo com caráter preponderante. De modo sumário, podemos dizer que tudo o que Robertson Smith realmente faz é especular acerca de um período da história semítica do qual praticamente nada se conhece. Assim fazend-o, ele pode ter protegido sua teoria da crítica, mas ao mesmo tempo lhe nega legitimidade e poder de convicção. Efetivamente, ela não é nada histórica; é apenas evolucionista, como todas as teorias antropológicas da época, uma ressalva que também deve ser feita. A tendência evolucionista é bem marcada em toda esta teoria e mostra-se claramente através da crueza materialística, aquilo que Preuss chamava de URDUMMHEIT, imputada à religião do homem primitivo, assim colocando o concreto, por oposição ao espiritual, no começo do desenvolvimento; e também por enfatizar excessivamente o caráter social (por oposição ao pessoal) das religiões iniciais; tudo isto revela a suposição básica de todos os antropólogos vitorianos, qual seja a de que as religiões mais primitivas em pensamento e costumes devem ser o seu contrário e antípoda, sendo a religião destes antropólogos (e de sua época) vista como uma espécie de espiritualidade individualista. Para compreender o tratamento que Robertson Smith dá à religião semítica antiga e, por implicação, à religião primitiva em geral, o que, aliás, se aplica igualmente à análise de Durkheim assinalemos que R. Smith afirmava que as religiões antigas não tinham credos, e não tinham dogmas:

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77 "Elas eram constituídas exclusivamente de instituições e práticas"1. Os ritos, é verdade, estavam conectados com os mitos; mas os mitos não explicam os ritos, e sim o oposto. Se assim é, deveremos procurar entender as religiões primitivas através de seus rituais, e, considerando que o ritual básico numa religião antiga é o do sacrifício, é aí que deveremos achar o entendimento procurado; mais ainda: desde que o sacrifício é uma instituição tão generalizada, devemos procurar sua origem em causas gerais. Fundamentalmente, Fustel de Coulanges e Robertson Smith estavam propondo o que se poderia chamar de teoria estrutural da gênese da religião; isto é, que esta surgiria da natureza mesma da sociedade. Este também foi o enfoque de Durkheim, que procurou além disso mostrar a maneira pela qual se gerava a religião. A posição de Durkheim, talvez a maior figura da história da sociologia moderna, só pode ser avaliada se recordarmos dois pontos principais. O primeiro é o fato de que, para ele, a religião é um fato social, isto é, objetivo. Ele desprezava as teorias que tentavam explicar as religiões em termos de psicologia individual. Como, perguntava ele, se a religião se origina de um mero erro, uma ilusão, uma espécie de alucinação, como se pode ter tornado tão universal, tão duradoura, e como poderia uma fantasia vã ter produzido lei, ciência e moral? O animismo é sempre, nas suas formas mais típicas e desenvolvidas, encontrado não em sociedades primitivas, mas em sociedades relativamente avançadas como as da China, Egito, e do Mediterrâneo do período clássico. Assim como o naturismo (a escola do mito natural) o propunha, deveria então a religião ser mais satisfatoriamente explicada como uma doença da linguagem, uma névoa de metáforas, a ação da linguagem sobre o pensamento, do que como 1 THE RELIGION OF THE SEMITES, p. 16.

78 sendo uma falsa inferência de sonhos e transes? Além de tal explicação ser tão trivial como a animística, é fato claro que os povos primitivos mostram pouquíssimo interesse pelo que podemos considerar como os mais impressionantes fenômenos da natureza: o sol, a lua, céu, montanhas, mar e assim por diante, cuja monótona regularidade aceitam tranqüilamente como infalível1. Ao contrário, dizia ele, naquela que ele considerava a religião mais elementar de todas, o totemismo, o que se diviniza são criaturas humildes (não as imponentes), como patos, ratos, rãs e vermes cujas qualidades intrínsecas dificilmente teriam sido a origem do sentimento religioso que teriam inspirado. É verdade, evidentemente, e Durkheim não o negaria, que a religião é pensada, sentida, e desejada por indivíduos - a sociedade não tem mente para experimentar tais funções - e sob este aspecto é um fenômeno de psicologia individual, um fenômeno subjetivo, podendo ser estudada deste ponto de vista. Mas não deixa de ser também um fenômeno social e objetivo, independente de mentes individuais, e é assim que o sociólogo a encara. O que lhe dá objetividade são três características. Em primeiro lugar, ela se transmite de uma geração para outra, de modo que se num sentido ela está no indivíduo, em outro está fora dele, pois existia antes dele nascer e existirá depois de sua morte. O indivíduo a adquire tal como o faz com a linguagem, desde que nascido numa sociedade qualquer. Em segundo lugar, a religião é, pelo menos nas sociedades fechadas, de caráter geral. Todos têm o mesmo tipo de crença religiosa, as mesmas práticas religiosas, e sua generalidade ou coletividade lhe dá uma objetividade que a coloca acima das experiências psicológicas de qual 1 Hocart assinala (MAN, 1914, p. 99), que embora os furações das ilhas Fiji sejam um tópico anual de conversa, jamais observou "a menor sugestão de uma teoria nativa a respeito, nem o menor temor religioso".

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79 quer indivíduo e de todos os indivíduos. Em terceiro lugar, ela é obrigatória. Além das sanções positivas e negativas, o simples fato de que a religião é geral significa, novamente numa sociedade fechada, que ela é obrigatória pois, mesmo que não haja coerção, um homem não tem opção, senão a de aceitar o que todo mundo concorda em aceitar; tanto quanto não tem escolha no que se refere à linguagem que ele usa. Mesmo que seja um descrente, ele só poderá expressar suas dúvidas em termos referentes às crenças aceitas por todos ao seu redor. E, tivesse ele nascido em outra sociedade, teria tido um outro sistema de crenças, assim como teria outra linguagem. Pode-se aqui notar que o interesse de Durkheim e seus colegas acerca das sociedades primitivas, pode ter derivado do fato de que elas são ou eram comunidades fechadas. As sociedades abertas, nas quais as crenças podem não ser transmitidas e em que podem ser diversificadas e - assim menos obrigatórias - são menos passíveis de interpretação sociológica tal como eles propuseram. O segundo ponto que devemos ter em mente diz respeito à autonomia dos fenômenos religiosos. Eu o menciono aqui apenas de passagem, pois que ele emerge claramente do tratamento que Durkheim dá à religião, o que logo estudaremos. Durkheim não era tão simplesmente determinista e materialista como queriam alguns. Na realidade, inclino-me a considerá-lo voluntarista e idealista. As funções da mente não poderiam existir sem os processos do organismo; mas isto, diz ele, não significa que os fatos psicológicos_ possam ser reduzidos a fatos orgânicos e por estes explicados; significa apenas que eles têm uma base orgânica, tal como os processos orgânicos têm uma base química. Os fenômenos têm autonomia a cada nível. Igualmente não poderia haver vida sócio-cultural sem as funções psíquicas de mentes individuais, mas os processos sociais

80 transcendem estas funções através das quais operam e, se . não independentes da mente, têm uma existência própria, fora de cada mente individual. A linguagem é um bom exemplo do que Durkheim estava dizendo. Ela é tradicional, geral e obrigatória; tem história, estrutura e função, das quais todos os usuários têm pouquíssima noção; e, embora indivíduos possam ter contribuído para ela, nem por isto vem ela a ser um produto de qualquer mente individual. É um fenômeno coletivo, autônomo e objetivo. Na sua análise da religião, Durkheim vai mais longe. A religião é um fato social. Ela surge da natureza da vida social, estando, nas sociedades mais simples, associada a outros fatos sociais, à lei, à economia, às artes, etc., que mais tarde se separam dela e vivem sua existência própria. Acima de tudo, ela é a maneira pela qual a sociedade se vê como algo mais que uma coleção de indivíduos, e meio pelo qual mantém na solidariedade e continuidade. Isto não significa, porém, que a religião seja apenas um epifenômeno da sociedade, como os marxistas diriam. Uma vez iniciada pela ação coletiva, a religião ganha um grau de autonomia e prolifera de várias maneiras, o que não pode ser explicado com base na estrutura social que lhe deu origem, só podendo sê-lo em termos de outras religiões e outros fenômenos sociais num sistema específico. Estabelecidas estas duas bases, não precisamos esperar mais para apresentar a tese de Durkheim. Ele partiu de quatro idéias principais tiradas de Robertson Smith: a religião primitiva é um culto de clã e este culto é totêmico (ele julgava que um sistema ciânico segmentar e o totemismo implicavam necessariamente um no outro); o deus do clã é o próprio clã divinizado; o totemismo é a forma mais elementar; mais primitiva e - neste sentido original - de religião que conhecemos. Com isto ele queria dizer que ela se encontra em sociedades dotadas de uma cultura

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material e de uma estrutura Social as mais simples; e que é possível explicar a religião, nestes casos, sem utilizar qualquer elemento tomado de empréstimo a outras religiões. Assim, Durkheim concorda com aqueles que vêem no totemismo a origem da religião, ou, pelo menos, como a forma mais incipiente de religião: McLennan, Robertson Smith, Wundt, Frazer em seus primeiros escritos, Jevons, e Freud. Mas que base existe para que se considere o totemismo um fenômeno sequer religioso? Frazer, em seus últimos escritos, colocava-o na categoria da magia. Para Durkheim, a religião pertence a uma classe mais ampla, a do sagrado, sendo que tudo, o real e o ideal, pertence a uma de duas classes opostas, o profano e o sagrado. O sagrado se identifica claramente pelo fato de que está protegido e isolado por interdições; profanas são as coisas sobre as quais as interdições se aplicam. O tabu recebe aqui praticamente a mesma função que Marett lhe deu. Assim, "as crenças religiosas são as representações que expressam a natureza das coisas sagradas" e os ritos "`são as regras de conduta que prescrevem como um homem deve se comportar na presença de objetos sagrados". Estas definições cobrem magia e religião desde que ambas pertencem ao sagrado dentro dos critérios de Durkheim, razão pela qual ele propôs um novo critério para distinguir religiões de magia. A religião é sempre um assunto coletivo, de grupo: não há religião sem igreja. A magia tem uma clientela, não uma igreja, e a relação entre o mago e seu cliente é comparável àquela existente entre um médico e seu paciente. Assim chegamos a uma definição final de religião: "a religião é um sistema unificado de crenças e práticas relacionadas a coisas sagradas, quer dizer coisas postas à parte e proibidas, sendo que crenças e práticas congregam numa comunidade moral única chamada igreja todos os que a elas

82 aderem”1.As origens hebraicas de Durkheim, parece-me, emergem vigorosamente, embora não inadequadamente, nesta definição; mas seja como for, em seus critérios, o totemismo pode ser considerado uma religião: ele está cercado por tabus e é uma manifestação grupal. Qual é então o objeto reverenciado nesta religião totêmica? Não é simplesmente um produto de imaginação delirante; ele tem uma base objetiva. É o culto de algo que realmente existe, embora não a coisa que os cultores suponham que é. É a sociedade mesma, ou algum segmento dela, que os homens cultuam nestas representações ideais. E isto é natural, diz Durkheim, porque a sociedade tem tudo o que é necessário para fazer surgir nas mentes a sensação do divino. Tem poder absoluto sobre todos, e lhes dá a sensação de dependência perpétua; e é também objeto de respeito e veneração. A religião é portanto um sistema de idéias através do qual os indivíduos representam para si próprios a sociedade a que pertencem e as relações que com ela mantêm. Durkheim tentou demonstrar a sua teoria com o exemplo de alguns aborígines australianos - usando como contraprova os índios americanos - tomando-lhes a religião como experiência crucial e admitindo ser aquela a forma mais simples de religião conhecida. Defendeu o processo, argumentando, com alguma razão, que ao se fazer um estudo comparativo de fatos sociais, devem ser tomados fatos de sociedades do mesmo tipo, e que um único experimento submetido a bom controle é o bastante para estabelecer uma lei; uma argumentação que me parece não ser muito mais do que ignorar os exemplos que contradizem a pretensa lei. Na época, a atenção dos antropólogos estava particularmente dirigida para as recentes descober- 1 E. Durkheirn, THE ELEMENTARY FORNIS OF THE RELIGIOUS LIFE, tradução inglesa 1915, p. 47.

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tas feitas na Austrália através das pesquisas de Spencer e Gillen, Strehlow e outros. Mesmo assim, a escolha daquela região por Durkheim para o seu experimento, foi infeliz, pois a literatura existente acerca dos aborígines era então pobre e confusa, e ainda hoje o é. Os "Blackfellows" australianos, tal como eram chamados, são (não restam muitos, vivendo como outrora, mas usarei o presente etnográfico) caçadores e coletores que vagam em pequenas hordas em seus territórios tribais, procurando caça, raízes, frutas, lavras e assim por diante. Cada tribo se compõe de um certo número de tais hordas. Além de ser membro de uma pequena horda e de tribo em cujo território a horda vive, um indivíduo é membro de um clã, havendo muitos clãs espalhados pelo continente. Como membro do clã, o indivíduo compartilha com os demais membros de um relacionamento para com certos fenômenos naturais, na maioria espécies de animais e plantas. Tais espécies são sagradas para o clã e não podem ser comidas ou atacadas por seus membros. A cada clã correspondem fenômenos naturais diversos, de modo que toda a natureza pertence a um ou outro clã; assim, a estrutura social provê um modelo para classificação dos fenômenos naturais. Uma vez que as coisas assim classificadas com os clãs se associam com seus totens, assumem também elas um caráter sagrado; e uma vez que os cultos se implicam uns os outros mutuamente, todos constituem partes coordenadas de uma religião única, tribal. Durkheim observou com agudeza que as criaturas totêmicas não são de modo algum cultuadas, como pareciam pensar McLennan, Tylor, e Wundt; tampouco, como mencionei antes, foram escolhidas como tais em virtude de sua aparência imponente. Ademais, não são as criaturas em si que têm importância máxima; elas são sagradas, é verdade, mas apenas secundariamente sagradas. De primeira importância, são, isto sim, os desenhos que as representam,

84 gravados em peças oblongas de madeira ou pedra polida, chamadas de "churinga", algumas vezes perfuradas e usadas como zunidores. Efetivamente, as criaturas totêmicas foram escolhidas, como Durkheim parece sugerir, por serem modelos adequados à representação pictórica. Tais desenhos são símbolos, em primeira instância, de uma força impessoal distribuída em imagens, animais e homens, mas que não deve ser confundida com nenhum deles, pois o caráter sacro de um objeto não deriva de suas propriedades intrínsecas. Tal caráter se acrescenta, superposto, ao objeto. O totemismo é uma espécie de deus impessoal imanente no mundo e difuso, numa numerosa multidão de coisas, correspondendo ao "mana" e a idéias semelhantes dos povos primitivos: o "wakan" e o "orenda" dos índios norteamericanos, por exemplo. No entanto, os australianos o concebem não como forma abstrata, mas sob a forma de um animal ou planta, o totem, que é "a forma material sob a qual a imaginação representa esta substância imaterial"1. Uma vez que esta essência ou princípio vital se encontra tanto nos homens como nos totens, constituindo em ambos sua característica mais essencial, podemos compreender o que quer dizer um "biackfellow" quando afirma que os homens de fratria do corvo são corvos. Os desenhos simbolizam, em segunda instância, os próprios clãs. O totem, portanto, é ao mesmo tempo, tanto o símbolo tanto do deus ou princípio vital, quanto de sociedade; porque deus e sociedade são a mesma coisa. "O deus do clã, o princípio totêmico, não pode ser nada, senão o clã mesmo, personificado e representado para a imaginação sob a forma visível do animal ou vegetal que serve como totem"2. Nos símbolos totêmicas os membros do clã exprimem sua identidade moral e seus sentimentos 1 Durkheim, op. cit, p. 189. 2 Durkheim, op. cit., p. 206.

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de dependência recíproca e para com o grupo como um todo. As pessoas só podem se comunicar através de signos, e para expressar este sentimento de solidariedade, é preciso que haja um símbolo, uma bandeira, o que para esses nativos vem a ser os seus totens, expressando cada clã tanto a sua unidade quanto a sua individualidade através do seu emblema totêmico. Os símbolos concretos são necessários porque "o clã é uma realidade complexa demais para que possa ser representada claramente em toda a sua complexa unidade por essas inteligências rudimentares"1. As mentes não sofisticadas não podem se ver a si próprias como um grupo social senão através de símbolos materiais. O princípio totêmico, portanto, nada é senão o clã concebido sob a forma material do emblema totêmico. Pelo modo com que age sobre os seus membros, o clã faz surgir dentro destes a idéia de forças externas que dominam e exaltam a todos, sendo tais forças representadas por coisas externas, as formas totêmicas. O sagrado não é mais (nem menos) do que a sociedade mesma, representada em símbolos para os seus membros. Durkheim reconheceu que os aborígines australianos tinham conceitos religiosos diferentes daquilo que se rotula como totemismo, mas afirmou que também eles eram explicáveis dentro dos termos de sua teoria. A idéia de alma é o mesmo princípio totêmico do "mana", corporificado em cada indivíduo: a sociedade individualizada. É a sociedade em cada membro seu, sua cultura e ordem social, que faz de um homem uma pessoa, ser social, em vez de simples animal. É a personalidade social, por oposição ao organismo individual. O homem é um animal racional e moral, mas seus componentes moral e racional são aquilo que a sociedade impôs ao componente orgânico. É como 1 Durkheim, op. cit., p. 220.

86 diz a senhorita Harrison, parafraseando Durkheim: "Seu corpo obedece à lei natural e seu espírito é circundado pelo imperativo social"1. Assim, a alma não é o produto de pura ilusão, como queriam Tylor e outros. Nós "somos" feitos de duas partes distintas, opostas entre si, como o sagrado e o profano. A sociedade não exerce sobre nós apenas um poder mobilizador externo e circunstancial. "Ela se instala dentro de nós de modo duradouro... Somos, portanto, feitos de dois seres que encaram direções diferentes, senão opostas, sendo que um exerce uma predominância real sobre o outro. Tal o profundo significado de antítese que todos os homens concebem mais ou menos claramente entre o corpo e a alma, o ser material e o ser espiritual que coexistem dentro de nós. Nossa natureza é dupla; existe realmente uma partícula de divindade dentro de nós, porque há dentro de nós uma partícula dessas grande idéias que são a alma do grupo' 2. Não há nada de depreciativo para o homem ou para a religião nesta interpretação. Pelo contrário: "a única maneira que temos de nos livrarmos das forças físicas é contrapor-lhes forças coletivas” 3. Assim, o homem, como diz Engels, ascende do reino de necessidade para o reino de liberdade. No que concerne os seres espirituais australianos, uma noção que Durkheim, como Tylor, pensou ser derivada de alma, eles devem ter sido totens em alguma época, acreditava Durkheim. Mas no momento corresponderiam a gru- 1 J. E. Harrison, THEMIS. A STUDY OF THE SOCIAL ORIGINS OF GREEK RELIGION, 1912. p. 487. Do mesmo ano que LES FORMES ELEMENTAIRES DE LA VIE RELIGIEUSE, de Durkheim. A srta. Harrison foi influenciada por "DE LA DÉFINITION DES PHÉNOMÈNES RELIGIEUX", L'Année Sociologique, II, 1899, publicação anterior de Durkheim. 2 Durkheim, THE ELEMENTARY FORMS OF THE RELIGIOUS LIFE, pp. 262-4. 3 Ibid. p. 272.

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pos tribais. Em cada território muitos clãs são representados, cada qual com seus emblemas totêmicas distintos, com seus cultos, mas todos pertencendo igualmente à tribo e com a mesma religião, sendo esta idealizada em deuses. O grande deus é simplesmente a síntese de todos os totens, assim como as tribos são sínteses de totalidade de clãs; é também inter-tribal em caráter, espelhando relações sociais de tribo a tribo, especialmente no que diz respeito à presença de membros de tribos outras em cerimônias tribais, de iniciação e sub-incisão. Assim, embora almas e espíritos não existam, na realidade, correspondem à reali-dade, e neste sentido, são reais, pois a vida social que simbolizam é bastante real. Até agora nada foi dito acerca do lado ritual do totemismo australiano. E este é o ponto mais central e mais obscuro de tese de Durkheim, ao mesmo tempo em que é também o seu ponto menos convincente. Periodicamente, membros do mesmo clã e presumivelmente componentes (pelo menos em sua maioria) de mesma tribo, se congregam para a realização de cerimônias que visam. à multiplicação das espécies com as quais mantêm um relacionamento sagrado. Uma vez que não podem comer as suas próprias criaturas totêmicas, os ritos são efetuados com a intenção de beneficiar membros de outros clãs, que podem comê-los, de sorte que cada clã traz sua porção de alimento como contribuição para o conjunto. Os aborígenes explicitam a finalidade dos ritos, mas o propósito manifesto e a função latente não são a mesma coisa; e Durkheim tem uma interpretação sociológica destes rituais que não está em concordância com a própria idéia dos aborígenes acerca do que eles estão fazendo; se é que é esta a finalidade de cerimônia para eles, o que não parece certo. O fato de que as cerimônias (chamadas "intichiuma") não se destinam realmente ao aumento das espécies, o fato de

88 que isto é uma racionalização, se demonstra pelo fato de que são levadas a efeito (diz Durkheim) mesmo quando um totem, o "wollunqua, é uma serpente inexistente, tida como única e incapaz de se reproduzir; e também porque a mesma cerimônia destinada ao aumento das espécies ocorre durante ritos de iniciação e em outras ocasiões. Tais ritos servem apenas para estimular certas idéias e sentimentos, ligar o presente ao passado e o indivíduo ao grupo. A finalidade alegada é completamente acessória e contingente, como mais ainda se demonstra porque às vezes até mesmo as crenças que atribuem eficácia física aos ritos estão ausentes, sem que isto altere nada. Os defensores de teoria racionalistas de religião têm considerado os conceitos e crenças como os fatos essenciais de religião, sustentando que os ritos são apenas a sua tradução externa. Mas, como já ouvimos de outros, é a "ação" que realmente domina a vida religiosa. Durkheim escreve: "Vimos que, se a vida coletiva desperta o pensamento religioso levando-o a certo grau de intensidade, isto se dá porque ela faz surgir um estado de efervescência que modifica as condições de atividade psíquica. As energias vitais estão superexcitadas, as paixões mais ativas, as sensações mais fortes; algumas, até, aparecem apenas neste momento. O homem deixa de se reconhecer a si mesmo, ele se sente transformado e conseqüentemente transforma o meio que o circunda. Para entender as tão peculiares impressões que recebe, ele atribui às coisas com que está em contato mais direto, propriedades que elas não têm, poderes excepcionais e virtudes que os objetos de experiência diária não possuem. Em uma palavra, acima do mundo real onde sua vida profana se passa, ele colocou um outro que, num certo sentido, não existe exceto no pensamento, mas ao qual ele atribui um tipo de dignidade mais alto que o do

89 primeiro. Um mundo, portanto, ideal de duas maneiras"1. Para que uma sociedade se torne consciente de si mesma e conserve seus sentimentos no grau necessário de intensidade, é preciso que se reúna e se

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concentre periodicamente. Esta concentração provoca uma exaltação de vida mental, que toma a forma de um grupo de concepções ideais. Assim sendo, não é o propósito declarado dos ritos que nos diz de suas funções. Sua significação real é, primeiramente, congregar os membros do clã e em segundo lugar, renovar, pela encenação dos ritos nestas ocasiões de concentração, os sentimentos de solidariedade dos participantes do grupo. Os ritos geram uma efervescência na qual todos os sentimentos de individualidade se perdem e as pessoas se sentem a si mesmas como sendo uma coletividade, a partir e através das coisas sagradas. Mas, quando os membros do clã se separam, o sentimento de solidariedade lentamente diminui e deve ser recarregado periodicamente por outra assembléia e pela repetição das cerimônias em que o grupo novamente se reafirma. Mesmo se os homens acreditarem que os ritos têm atuação sobre coisas, é na realidade apenas a mente que se deixa "atuar". Notemos que Durkheim não está dizendo aqui, como fazem autores emocionalistas, que os ritos são levados a efeito para liberar estados emocionais exaltados. São os ritos que produzem tais estados. Eles podem, portanto, neste aspecto, ser comparados aos ritos expiatórios como os do luto, nos quais as pessoas procuram afirmar a sua fé e cumprir um dever para com a sociedade sem que estejam sob qualquer tensão emocional; esta, enfim, pode estar completamente ausente de ocasião. 1 Durkheim, TOE ELEMENTARY FORNIS OF THE RELIGIOUS LIFE. p. 422.

90 Esta era a teoria de Durkheim. Para Freud, Deus é o pai para Durkheim, Deus é a sociedade. Se esta teoria é sufi, cientemente boa para os aborígines australianos, se-lo-á também para a religião em geral, pois (diz Durkheim) a religião totêmica contém todos os elementos de outras religiões, incluindo as mais avançadas. Durkheim foi ingênuo o bastante para admitir isto, o que equivale a dizer que o que é molho para o ganso é molho para o pato. Se a idéia do sagrado, de alma e de Deus, pode ser sociologicamente explicada no caso dos australianos, então, em princípio, a mesma explicação é válida para todos os povos entre os quais as mesmas idéias são encontradas com as mesmas características essenciais. Durkheim preocupava-se em não ser acusado de estar meramente repetindo o materialismo histórico. Demonstrando que a religião é algo essencialmente social, ele não queria dizer que a consciência coletiva seja um mero epifenómeno de sua base morfológica, assim como a consciência individual não é apenas uma mera eflorescência do sistema nervoso. As idéias religiosas são produzidas por uma síntese de mentes individuais reunidas em ação coletiva, mas, uma vez produzidas, passam a ter vida própria: os sentimentos, idéias, e imagens, "uma vez nascidos, obedecem a leis próprias". Por outro lado, se a teoria de religião de Durkheim está certa, é óbvio que ninguém mais aceitará as crenças religiosas. Apesar do fato de que elas, segundo ele mesmo disse, são geradas pela vida social, sendo ao mesmo tempo necessárias à manutenção de mesma. Isto o coroca nos cornos de um dilema, e tudo o que poderia dizer para se livrar seria que embora a religião no sentido espiritual seja condenada uma assembléia secular pode produzir idéias e sentimentos que terão a mesma função; e em apoio a esta idéia, ele cita a revolução francesa, com seus cultos à Pátria, Liberdade, Igualdade, Fraternidade e Razão. Pois não é verdade que em seus primeiros anos a revolução tornou estas

91 idéias sagradas, tornou-as em deuses, e à própria sociedade então surgida em deus também? Ele esperou, como SaintSimon e Comte, que à medida em que declinasse a religião espiritual, uma religião secular de tipo humanístico a substituísse. A tese de Durkheim é mais do que apenas concisa; ela é brilhante e imaginativa, quase poética; e ele demonstrou boa percepção quanto a um dos fundamentos psicológicos

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da religião: a eliminação do eu, a negação da individualidade, a visão de que a individualidade não tem significação ou mesmo existência exceto enquanto parte de algo maior e alheio ao eu. Mas receio ter de dizer mais uma vez que a teoria é também especulativa. O totemismo poderia ter surgido a partir de uma vida gregária, mas não há provas de que assim tenha sido; e outras formas de religião poderiam ter-se desenvolvido - como se apreende da teoria de Durkheim, efetivamente assim o fizeram - a partir do totemismo, ou do que ele chama de princípio totêmico; mas novamente, não há provas de que assim tenha sido. Pode - se admitir que as concepções religiosas devam manter alguma relação com a ordem social, estando, em certo grau, de acordo com fatos econômicos, políticos, morais e sociais outros; e mesmo que elas sejam um produto da vida social, no sentido de que não poderia haver religião sem sociedade, assim como não poderia haver pensamento ou cultura de qualquer espécie. Mas Durkheim está dizendo muito mais do que isto. Ele afirma que idéias religiosas tais como as de alma, espírito, e outras, são projeções da sociedade ou de seus segmentos e se originam de condições que fazem surgir um estado de efervescência. Meus comentários deverão ser poucos e breves. Embora várias objeções lógicas e filosóficas pudessem ser levantadas, eu prefiro basear os argumentos de acusação no aspecto das provas etnográficas. Será que elas corroboram a rígida dicotomia que Durkheim impõe acerca do sagrado

92 e do profano? Eu não creio. Por certo, o que ele chama de sagrado e de profano pertencem ao mesmo nível de experiência e, longe de serem nitidamente demarcados em seus limites de vigência, são tão intimamente ligados que se mostram quase inseparáveis. Tais conceitos, portanto, não podem, quer para o indivíduo, quer para a atividade social, ser dispostos em departamentos fechados que negam um ao outro, deixando um de existir quando o outro entra em cena. Por exemplo, quando alguma desgraça como a doença é atribuída a algum erro prévio, os sintomas físicos, o estado moral do indivíduo envolvido e a intervenção espiritual formam uma experiência objetiva unitária, que dificilmente pode ser atomizada na mente. Meu método de verificação para formulações como esta é bem simples: averiguar se elas podem ser decompostas em problemas que permitam a verificação através de pesquisa de campo ou se pelo menos podem ajudar numa classificação de fatos observados. Jamais constatei que a dicotomia entre sagrado e profano fosse de qualquer utilidade em nenhuma das duas direções. Pode-se também dizer aqui que as definições de Durkheim não deixam muito espaço para a flexibilidade de situações, como por exemplo, para o fato de que o que é "sagrado" pode sê-lo apenas em certos contextos e em certas ocasiões, e não em outras. Este aspecto já havia sido mencionado antes. Darei aqui um exemplo simples. O culto Zande dos ancestrais se organiza em torno de santuários erigidos no meio dos pátios e as oferendas são postas neles durante cerimônias ou, às vezes, em outras ocasiões. Porém, quando não estão em uso ritual, para assim dizer, os Azande utilizam os santuários como convenientes escoras contra as quais repousam suas lanças; ou não lhes dão a mínima atenção. Do mesmo modo, a demarcação do sagrado por interdições deve ser verdade para muitos povos, mas não pode ser universalmente válida,

93 como Durkheim supôs - se é que estou certo em crer que os participantes dos complicados ritos sacrificiais entre povos do Nilo não estão submetidos a qualquer interdição. No que concerne à prova fornecida pelos australianos, devo dizer que uma das fraquezas de posição de Durkheim é o fato concreto de que entre os aborígines australianos é a horda (e a seguir a tribo) que constitui o grupo corporado, não os clãs, amplamente dispersos. Assim, se a função é manter a solidariedade dos grupos, que freqüentemente necessitam de um sentimento de unidade, então deverão ser as hordas e tribos e não os clãs, que deveriam efetuar os ritos geradores de efervescência1. Durkheim percebeu isto e tentou se esquivar

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respondendo - a meu ver inadequadamente - que é precisamente por faltar coesão aos clãs, que não têm chefes nem territórios comuns, que as concentrações periódicas se tornam necessárias. Qual é o interesse de manter, através de cerimônias, a solidariedade de grupos sociais que não são corporados e que não têm qualquer ação conjunta senão nas cerimônias? Durkheim preferiu defender sua tese com a prova do totemismo e quase que exclusivamente com o totemismo australiano. Ora, o totemismo australiano é muito atípico e altamente específico, e conclusões obtidas a partir dele, mesmo se precisas, não podem ser consideradas como válidas para o totemismo em geral. Ademais, o fenômeno totêmico não é o mesmo em todas as partes de Austrália. Durkheim comportou-se muito seletivamente em sua escolha de material, restringindo-se basicamente à Austrália central e na maioria das vezes aos Arunta. Suas teorias não levam em consideração que em outras partes do com 1 Notar que a terminologia para os grupos políticos dos aborígines australianos não é apenas ambígua; é caótica. Difícil saber o que é tribo, clã, nação, horda, família, etc. Ver G. C. wheeler, THE TRIBE AND INTERTRIBAL RELATIONS IN AUSTRALIA, 1910, passim.

94 tinente as cerimônias "intichiuma" parecem ter um significado bastante diverso, sem importância equivalente, podendo mesmo inexistir de todo. Portanto, o totemismo entre outros povos não tem as características que Durkheim salienta mais marcadamente (tais como concentrações, cerimônias, objetos sagrados, desenhos, etc). A defesa de que o totemismo em outras regiões seja uma instituição mais desenvolvida ou uma instituição em decadência é uma alegação que não podemos aceitar, uma vez que não há meios de saber algo a respeito de história do totemismo nem na Austrália nem em parte alguma. A afirmativa de que o totemismo australiano seja a forma original de totemismo é muito arbitrária e repousa na pressuposição de que a forma mais simples de religião há de ser, necessariamente a de povos com a organização social e cultura mais elementares. Mas mesmo se aceitamos tal critério, deveríamos levar em consideração o fato de que alguns povos caçadores e coletores tão subdesenvolvidos tecnologicamente quantos os australianos, e com organização social bem mais simples, não têm totens (nem clãs), ou os totens que possuem não têm importância para eles; mas são dotados, apesar de tudo isto, de crenças e ritos religiosos. Poderíamos assinalar também que para Durkheim o totemismo era essencialmente uma religião ciânica, um produto deste tipo de segmentação social e que portanto, onde haja clãs, haverão eles de ser totêmicas e onde haver totemismo a sociedade terá uma organização à base de clãs; uma suposição em que ele está enganado, pois sabe-se agora que existem povos organizados em clãs e sem totens e vice versa1. Efetivamente, como assinalou Goldenweiser, a afirmativa de Durkheim segundo a qual a organização social dos australianos se faz à base de clãs foi totalmente com 1 Lowie, PRIMITIVE SOCIETY, 1921, p. 137.

95 trariada por provas etnográficas, e só este fato torna toda a sua teoria questionável1. Assim, ao pôr ênfase nas representações figuradas das criaturas totêmicas, Durkheim também se deixou vulnerável às poderosas argumentações de que em geral os totens não são, na realidade, representados de modo figurativo. Pode-se dizer também que existe muito pouca prova de que os deuses de Austrália sejam sínteses de totens - muito embora isto seja uma tentativa esperta de se livrar de sua incômoda presença. As vezes ficamos a pensar sobre como não teria sido tudo se Tylor, Marett, Durkheim e todos os outros tivessem passado pelo menos umas poucas semanas entre os povos sobre os quais escreveram tão

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livremente... Mencionei alguns pontos que me parecem suficientes para levantar dúvidas acerca de teoria de Durkheim se é que não a invalidam completamente. Mais se poderia dizer, como se diz na crítica devastadora de Van Gennep, que se torna ainda mais vigorosa e cáustica à medida em que Durkheim e seus colegas excluíram e ignoraram o autor2 Deverei, portanto, antes de passar rapidamente em revista algumas construções teóricas semelhantes a esta que temos comentado, fazer um comentário final sobre a teoria de gênese do totemismo - e portanto, de religião, em geral. Ela contraria suas próprias regras de metodologia sociológica, pois, fundamentalmente, oferece uma explicação psicológica para os fatos sociais, e o próprio Durkheeim afirmou que tais explicações são invariavelmente erradas. Estava muito bem para ele desprezar os outros por julgarem que a religião derivasse de alucinações motoras, mas isto é exatamente o que ele fez. Nenhum malabarismo verbal 1 Goldenweiser, RELIGION AND SOCIETY: A CRITIQUE OF ÉMILE DURKHEIM'S THEORY OF THE ORIGINEI AND NATURE OF RELIGION, Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Methods, XII, (1917). 2 A. Van Gennep L'État Actuel du problème totémique, 1920, p. 40.

96 tal como o uso de palavras do tipo "intensidade" e "efervescência" pode esconder a evidência de que ele faz derivar a religião totêmica dos "blackfellows" de excitação emocional de indivíduos reunidos numa pequena multidão, isto é, daquilo seria uma espécie de histeria das multidões. Algumas de nossas objeções iniciais e neste aspecto, algumas feitas pelo próprio Durkheim, devem ser aqui situadas. Qual é a prova de que os "blackfellows" estão, durante a realização de suas cerimônias, afetados por um estado emocional particular? E se estão, fica evidente que a emoção é produzida, como o próprio Durkheim assinalou, pelos ritos e crenças e não o contrário. Assim, a emoção exaltada, seja ela qual for, e se é que está envolvida nos rituais, poderia ser realmente um importante elemento dos ritos, dando-lhes uma significação mais profunda na mente de cada indivíduo, mas dificilmente poderia ser uma explicação causal adequada para o rito enquanto fenômeno social. Tal argumentação, como freqüentemente acontece entre argumentos sociológicos, é tautológica: como o problema de galinha e do ovo. Os ritos criam a efervescência, que criam as crenças, que levam à realização dos ritos. Ou o simples fato de haver uma reunião é que lhes dá origem? Portanto, fundamentalmente, Durkheim faz surgir um fato social de psicologia das multidões. Efetivamente não é um grande salto, o que vai de teoria de Durkheim - embora ele se chocasse se ouvisse isto - a uma explicação biológica de religião, tal como a que Trotter parece propor; ela seria um subproduto do instinto grupal, do instinto de gregarismo, um dos quatro que avultam na vida humana (sendo os outros três o de auto-preservação, o do sexo e o de nutrição). Eu digo que esta é a tese que Trotter "parece" propor porque neste aspecto ele não é muito preciso; a íntima dependência para com o rebanho "compele o indivíduo na direção de existências maio-

97 res que a sua própria, na direção de algum ser abrangente através de quem ele encontraria uma solução para as suas dificuldades e apaziguamento para seus desejos"1. O livro de Trotter é, no entanto, muito mais uma polêmica moral do que um estudo científico. Devemos assinalar nele o fervor idealístico (socialístico) que se encontra no de Durkheim. Algumas das idéias que Durkheim1. expôs em seu livro, foram desenvolvidas por seus colegas, por estudantes e outros que ele influenciou. Se passo a comentar alguns deles e ademais, apressadamente, é porque as presentes conferências tencionam mostrar diferentes maneiras de olhar para o mesmo assunto ou problema, longe de pretenderem ser uma história completa de idéias ou catálogo amplo de escritores que sobre elas escreveram. Um dos mais conhecidos

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ensaios publicados na revista que Durkheim1. fundou e editou (L'ANNÉE SOCIOLOGIQUE) era um estudo de literatura existente acerca dos esquimós, de autoria do seu sobrinho Marcel Mauss, em colaboração com M. H. Beuchat2. O tema geral deste ensaio é uma, demonstração de tese de Durkheim. de que a religião é um produto de concentração social e se mantém viva às custas do gregarismo periódico, de forma que o tempo, como as coisas, ganha dimensões sagradas e seculares. Não precisamos entrar em detalhes: basta dizer que o autor mostrou como os esquimós, durante parte do ano, - o verão - quando os mares estão sem gelo, se dispersam em pequenos grupos familiares vivendo em tendas. Quando o gelo se forma já não lhes é mais possível procurar caça, de modo que passam esta 1 W. Trotter, INSTINCTS OF THE HERD IN PEACE AND WAR, quinta ed. (1920), p. 113. 2 M. Mauss, ESSAI SUR LES VARIATIONS SAISONNIÈRES DES SOCIETÉS ESKIMOS: ÉTUDE DE MORPHOLOGIE SOCIALE, L'Année sociologique, IX (1906).

98 parte do ano (o inverno) em grupos maiores e mais concentrados em habitações comunais, várias famílias ocupando um mesmo cômodo, de sorte que quando as pessoas se encontram numa fase de relações sociais mais amplas (sendo, portanto, a ordem social então não apenas de diferentes proporções mas também bastante diferente em arranjo e estrutura), a comunidade é não apenas um grupo de famílias vivendo juntas por conveniências, mas uma nova forma de agrupamento social em que os indivíduos se relacionam de modo diverso. Com este padrão alterado, surge uma diferente escala de leis, de moral e costumes, adaptada às novas circunstâncias e que cessa durante o período de dispersão. É quando se formam os grupos amplos que as cerimônias religiosas anuais ocorrem; assim, poder-se-ia dizer que os esquimós confirmam a tese de Durkheim1. Por mais engenhosa que possa ser tal exposição, ela demonstra apenas que para a execução das cerimônias religiosas, são necessárias muitas pessoas e boa parcela de tempo livre. Diga-se também que o argumento se refere a circunstâncias bastante diversas daquelas concernentes aos aborígines australianos, onde os membros do clã se reúnem periodicamente para a realização de suas cerimônias totêmicas. Os esquimós se congregam por motivos diferentes, e só se dispersam por necessidade. Mauss, como Durkheim, afirmou que se pode formular uma lei a partir de um só experimento bem controlado, mas a verdade é que tal formulação não é uma lei e sim uma hipótese; e acontece que eu mesmo estudei um povo, os Nuer, entre os quais o período de maior concentração não é aquele 1 O ensaio de Mauss foi publicado antes do aparecimento de LES FORMES ÉLEMEN i AIRES DE LA VIE RÉLIGIEUSE, mas Durkheim1. já havia divulgado suas opiniões antes de lançar este livro; e as pesquisas e escritos dos dois (Mauss e Durkheim) são de tal modo entrelaçadas, que é difícil separar um do outro.

99 em que ocorrem as cerimônias, o que se deve a razões de conveniência, na sua maioria. Em outro ensaio da ANNÉE, Mauss, juntamente com o excelente historiador Henri Hubert, tinha anteriormente distinguido a magia da religião, como Durkheim, e realizara um exaustivo estudo daquela parte do sagrado - o mágico -1 de que Durkheim não tratou no seu THE ELEMENTARY FORMS OF THE RELIGIOUS LIFE; a mesma dupla de eruditos tinha também publicado, na mesma revista, uma magistral análise dos sacrifícios védico e hebreu2. Mas, embora magistral, como era a análise, suas conclusões são uma peça pouco convincente de metafísica sociológica. Os deuses são representações de comunidades, são sociedades concebidas idealística e imaginativamente. Assim, as renúncias através do sacrifício nutrem as forças sociais com

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energias mentais e morais. 0 sacrifício é um ato de abnegação através do qual o indivíduo reconhece a sociedade; ele leva às consciências particulares a presença de forças coletivas, representadas por seus deuses. Mas embora o ato de abnegação implícito em qualquer sacrifício sirva para manter as forças coletivas, o indivíduo também encontra vantagens no ato, porque nele a força total da sociedade lhe é transmitida além da obtenção de meios para recuperar equilíbrios perdidos ou perturbados; um homem, através da expiação, se redime da reprovação social - conseqüência de erros - e reingressa na sociedade. Assim se preenche a função social do sacrifício, tanto para o indivíduo, quanto para a coletividade. Tudo isto me parece ser uma mistura de especulações, conjecturas e reificações para as quais não há provas. São conclusões não derivadas 1 H. Hubert e M. Mauss, ESQUISSE D'UNE THÉORIE GÉNÉRALE DE LA MAGIE, L'Année Sociologique, VII (1904). 2 H. Hubert and Mauss, ESSA[ SUR LA NATURE ET LA FONCTION DU SACRIFICE, L'année Sociologique, LL, 1899.

100 mas impostas a uma análise brilhante do mecanismo do sacrifício ou, talvez devêssemos dizer, de sua estrutura lógica ou sua gramática. Quero mencionar também, como exemplos do método sociológico, dois notáveis ensaios de um jovem membro do grupo da ANNÉE, Robert Hertz1 Num desses ensaios, ele relaciona a dicotomia sagrado-profano de Durkheim às idéias de direito e esquerdo representadas pelas duas mãos que, em todo o mundo, são tidas como opostos, sendo a direita o bem, a virtude, a força, masculinidade, ocidente, vida, etc., e a esquerda o contrário de tudo isto. O outro ensaio é uma tentativa de explicar por que tantos povos têm não somente maneiras de se descartarem dos seus mortos, o que se compreende facilmente, como ainda possuem cerimônias mortuárias e, especialmente o costume, existente na Indonésia, de dar um "duplo" tratamento aos mortos. O corpo é deixado temporariamente até se decompor, quando então se recolhem os ossos, a seguir colocados no ossuário da família. Este processo representa, no símbolo material do corpo em decomposição, a prolongada passagem da alma do morto do mundo dos vivos para o mundo dos fantasmas, uma transição de um estado para outro, os dois movimentos correspondendo a um terceiro: a libertação dos vivos de suas ligações para com o morto. Nas segundas exéquias, os três movimentos atingem harmonicamente o seu clímax e seu término. São, na realidade, facetas diferentes de um mesmo processo, o ajustamento da sociedade à perda de seus membros, um processo lento porque as pessoas não se reconciliam facilmente com a morte, seja ela encarada como fato físico ou moral. Na Inglaterra, as teorias sociológicas da religião, especialmente a de Durkheim, exerceram grande influência sobre 1 R. Hertz, DEATH AND THE RIGHT HAND., 1960.

101 uma geração de eruditos clássicos como Gilbert Murray, A. B. Cook, Francis Conford e outros, fato admitido por Jane Harrison, que lida com a religião grega e por extensão com toda a religião, em termos de pensamento e sentimento coletivos. Ela seria o produto da efervescência induzida pela atividade durante a cerimônia, a projeção da emoção do grupo, o êxtase do grupo "thiasos". Embora a autora confesse que "os selvagens me cansam e desagradam, talvez porque eu passe longas horas lendo a respeito de seus tediosos hábitos", ela transplanta para solo grego a suposta mentalidade dos aborígines. E lá, em formas gregas, encontramos os mesmos velhos frutos... Os sacramentos "só podem ser

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entendidos à luz do pensamento totêmico"1. Os fenômenos religiosos gregos "dependem da ou expressam e representam a estrutura social dos praticantes do culto"2. "A estrutura social, e a consciência coletiva que se manifesta nela, estão por trás de toda religião"3. A religião báquica se baseia na emoção coletiva do "thiasos". Seu deus é uma projeção da unidade grupal. O Dr. Verrali, em seu ensaio acerca das Bacantes de Eurípides, acerta no alvo em um luminoso fragmento de tradução: - o êxtase dos iniciados, diz ele, jaz essencialmente nisto: "sua alma está congregacionalizada"4. O homem também reage coletivamente ao universo: "vimos sua emoção se estender, projetar-se aos fenômenos naturais e notamos como esta projeção faz nascer nele concepções tais como as de mana, orenda"5, com as quais a autora compara as concepções gregas de poder ("kratos") e força ("bia"). O totemismo "é uma fase ou estágio do pensamento coletivo pela qual 1 Harrison, op. cit. p. XII. 2 Ibidem p. XVII 3 Ibidem, p. XVIII. 4 Ibidem p. 48 5 Ibidem p. 73.

102 a mente humana tem que passar"1. O sacrifício e o sacramento são "apenas formas especiais de manipulação do "mana" que nós concordamos em chamar de magia"2. "A religião tem portanto em si dois elementos: o costume social, a consciência coletiva, e a ênfase e representação desta consciência coletiva. Contém, portanto dois fatores intimamente ligados: o ritual (costume, ação coletiva) e o mito ou teologia, representação da emoção coletiva, consciência coletiva. E, ponto de extrema importância, são ambas incumbentes, interdependentes"3. As falhas da teoria de Durkheim, que se devem basicamente à procura que ele faz da gênese e causa da religião, se acentuam ainda mais nos escritos de outro erudito clássico, muito conhecido Francis Cornford, que também deve muito a Durkheim. Também para ele o indivíduo não conta, salvo enquanto organismo, nas comunidades mais primitivas. Em outros aspectos, só o grupo importa. E o mundo da natureza é categorizado no padrão da estrutura do grupo social. No caso da religião, as almas e deuses de um tipo ou de outro são apenas representações da mesma estrutura. Em ambos os casos, a maneira de conceber a natureza e as crenças religiosas, as categorias do pensamento são projeções da mente coletiva. A alma é a alma coletiva do grupo; é a sociedade mesma, que está por dentro e por fora do indivíduo a ela pertencente; e é portanto imortal pois, embora seus membros individuais morram, a sociedade perdura. Da noção de alma desenvolve-se a representação de um deus, quando um certo grau de complexidade política, individualização e sofisticação é alcançado. Em última instância, porém, todas as representações religiosas são ilusões causadas pelo que Conford chama 1 Harrison, op. cit., p. 122. 2 Ibidem p. 134. 3 Ibidem p. 486.

103 de sugestão do rebanho. Assim ele conclui que "a primeira representação religiosa é uma representação de própria consciência coletiva - o único poder moral que pode vir a ser sentido como imposto de fora e que assim sendo, precisa ser representado”1. Embora o enfoque de Durkheim1. em relação à religião possa ter sido valioso, como o enfoque sociológico em geral, sugerindo novas maneiras de encarar os fatos

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de antigüidade clássica, deve-se admitir que afirmativas tais como as que mencionei aqui não são senão conjecturas, e mais, que elas se aventuram até bem mais longe do que o permite a especulação legítima. As provas invocadas para apoiá-las são em qualquer padrão critico insuficientes e duvidosas. Nos tempos modernos, o maior expoente de interpretação sociológica das religiões primitivas deste lado do Canal foi o durkheimiano inglês A. R. Radcliffe-Brown2. (Digo durkheimiano mas acho que ele deveu igualmente ou mais a Herbert Spencer). Ele tentou restaurar a teoria durkheimiana do totemismo para torná-la mais abrangente, embora ao fazê-lo, na minha opinião, tenha-a tornado num disparate3. Ele quis demonstrar que o totemismo era apenas uma forma especial de um fenômeno universal na sociedade humana, constituindo-se lei geral que qualquer objeto ou fato que tenha importantes efeitos sobre o bem-estar material ou espiritual de uma sociedade tenda a se tornar objeto de uma atitude rituallstica (uma generalização muito 1 F. M. Conford, FROM RELIGION TO PHILOSOPHY, 1912, p. 82. 2 Na análise de posição de Radcliffe-Brown, é Importante saber que ele terminou suas pesquisas entre os ilhéus de Andaman antes de se familiarizar com os escritos de Durkheim, sob a influência dos quais ele viria a publicar os seus resultados. 3 A. R. Radcliffe-Brown, "THE SOCIOLOGICAL THEORY OF TOTEMISM", Fourth Pacific Science Congress, Java, 1929, Biological Papers, pp. 295-309.

104 duvidosa). Assim, o povo que depende de caça e de coleta para sobreviver tem uma atitude ritual para com os animais e plantas que lhe sejam mais úteis. O totemismo surge desta atitude geral quando começa a segmentação social. Na sua discussão do totemismo, Radcliffe-Brown divergiu claramente de explicação que dava Durkheim de sua gênese a partir de psicologia das multidões; porém, em outras partes, como por exemplo em sua descrição das danças entre os ilhéus de Andaman, ele assume praticamente a mesma posição que Durkheim1. Na dança, diz ele, a personalidade do indivíduo se submete à ação que sobre ele exerce a comunidade, e o concerto harmonioso dos sentimentos individuais com suas ações produz uma unidade máxima e máxima concordância dentro de comunidade, o que é intensamente sentido por cada um de seus membros. Este pode ou não ser o caso entre os Andamaneses, mas em um de meus primeiros trabalhos fui obrigado a protestar contra a aceitação de afirmativa como uma generalização, porque as danças que observei na África Central eram uma das mais freqüentes ocasiões em que imperava a desarmonia; e minha experiência subseqüente confirmaria meu ceticismo de jovem. A força de uma corrente se põe à prova através do seu elo mais fraco. Vemos nos escritos de Radcliffe-Brown quão insatisfatórias podem se mostrar estas explicações sociológicas dos fenômenos religiosos. Em uma de suas últimas conferências, (a Henry Myres Lecture)2 ele diz que a religião é sempre a expressão de uma sensação de dependência para com um poder moral ou espiritual fora de nós mesmos: o que é, se deixarmos Schleiermacher e outros filósofos à parte, um lugar-comum de púlpitos... Mas Rad- 1 Idem, THE ADAMAN ISLANDERS, 1922, p. 246. 2 Radcliffe-Brown, RELIGION AND SOCIETY, Journal of the Royal Anthropological Institute, LXXV (1945).

105 cliffe-Brown estava tentando formular uma proposição sociológica que vai muito além deste conceito vago e geral. Se a tese de Durkheim devesse ser demonstrada, verificar-se-ia, que a concepção do divino varia de acordo com as diferentes formas das sociedades, uma comprovação pela qual Durkheim não se

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interessou. Assim, diz RadcliffeBrown, desde que a religião tem a função de manter a solidariedade da sociedade, ela deve variar em forma com os diferentes tipos de estrutura social. Nas sociedades com sistema de linhagem, deveremos encontrar o culto de ancestrais. Os hebreus e as cidades-estado da Grécia e Roma tinham religião nacional, de acordo com seus tipos de estrutura política. Isto é realmente dizer, como fez Durkheim, que as entidades postuladas pela religião não são senão a sociedade mesma e o raciocínio é, na melhor das hipóteses, apenas razoavelmente aceitável. Quando deixa de ser uma mera reafirmação do óbvio, ele é muito freqüentemente contrariado pelos fatos. Por exemplo, o culto de ancestrais é freqüentemente a religião de povos que não têm linhagens, como é o caso de muitos povos africanos; e talvez o mais perfeito exemplo de um sistema de linhagem seja o dos árabes beduínos, que são muçulmanos. E não é verdade que tanto o cristianismo quanto o islamismo foram adotados por povos com tipos bem diferentes de estrutura social? Existem graves objeções a todas essas teorias sociológicas (ou deveríamos dizer sociologísticas?) que temos estado considerando, inclusive quanto à inadequada coleta de dados que, como eu disse antes, são freqüentemente confusos e geradores de confusão. Então, temos novamente que enfatizar aqui, os exemplos negativos não podem ser simplesmente ignorados. Eles devem ser incorporados à análise da teoria proposta, ou então é melhor abandonar a teoria. Como encaixar os povos primitivos que têm clãs mas não têm totens? Os que crêem na sobrevivência da

106 alma, mas não têm segundas exéquias ou ritos mortuários? Os que não associam a orientação correta a qualidades morais superiores? Os que têm linhagens porém não culto de ancestrais? E assim por diante. Na ocasião em que todas as exceções estiverem registradas e verificadas, o que sobrar das teorias há de ser pouco mais do que especulações razoáveis de um caráter tão vago e geral que será pouco o seu valor científico, tanto mais que ninguém sabe o que fazer dos resultados, pois nada se poderá confirmar nem negar numa análise final. Se alguém quisesse testar a teoria de Durkheim e a de Mauss acerca da origem e significação da religião, como conseguiria obter suporte para elas ou demonstrar que estão erradas? Se questionássemos a explicação que Hertz dá das duplas exéquias, coloca-se o mesmo problema. Como saber se a religião mantém ou não a solidariedade de uma sociedade? Todas essas teorias tanto podem ser verdadeiras como falsas. Podem parecer claras e consistentes mas tendem a ridicularizar investigações mais profundas, porque à medida que vão além da simples descrição dos fatos e fornecem explicações, por outro lado como que evitam a verificação experimental. A suposição de que um certo tipo de religião decorre de ou acompanha um certo tipo de estrutura social só teria um alto grau de probabilidade se se pudesse provar historicamente não apenas que as alterações na estrutura social se acompanham de alterações no pensamento religioso, mas também que esta correspondência seja regular. Ou se se pudesse demonstrar que todas as sociedades de um certo tipo têm sistemas religiosos semelhantes, o que para LévyBruhl era um axioma; e sua contribuição neste assunto será o tema da próxima conferência. Em conclusão, devemos chamar a atenção para algumas semelhanças que há entre certas teorias que mencionamos e os escritos marxistas, ou pelo menos alguns deles, que em muitos casos e de muitos modos apresentam a mais

107 linear, direta e lúcida exposição de um ponto de vista sociológico. A religião é uma forma de "superestrutura" social, um "espelho" ou "reflexo" das relações sociais que repousam na estrutura econômica básica de sociedade. As noções de espírito, alma, etc., derivam de um tempo em que havia líderes de clã, patriarcas, "em outras palavras, quando a divisão do trabalho levava à segregação do labor

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administrativo"1. Assim, a religião começa pelo culto de ancestrais e dos mais velhos do clã: na origem, isto é um "reflexo das-relações de produção, principalmente daquelas entre senhores e escravos, e a "ordem política de sociedade" por elas condicionada"2. Assim, a religião tende sempre a tomar a forma de estrutura econômico-política de sociedade, embora possa haver um lapso de tempo no ajustamento de uma à outra. Numa sociedade formada por clãs frouxamente entrelaçados, a religião assume a forma do politeísmo; onde há uma monarquia centralizada, há um deus único; onde houver uma república comercial escravagista (como em Atenas, no século VI A.C.), os deuses se organizam como numa república. E assim.por diante. É evidentemente verdade que as concepções religiosas devem forçosamente derivar de experiência, e a experiência das relações sociais deve fornecer um modelo para tais concepções. Esta tese pode, pelo menos ocasionalmente, explicar as formas conceituais assumidas pela religião, mas não suas origens, suas funções, seu significado. Em qualquer caso, nem a etnografia nem a história comprovam a tese. É, por exemplo, falso - ao contrário do que afirma Bukharin - que durante a Reforma os príncipes governantes se alinhassem unanimemente ao lado do papa3. 1 N. Bukharin, HISTORICAL MATERIALISM. A SYSTEM OF SOCIOLOGY, 1925, p. 170. 2 Ibidem pp. 170-1. 3 Ibidem p. 178.

108 Conquanto não me seja possível discutir mais demoradamente o assunto aqui, eu diria que entre a escola francesa de sociologia e os teóricos marxistas existe, no que concerne à abordagem do estudo dos fenômenos sociais, muitos pontos comuns, embora com roupagens diferentes. Embora os teóricos marxistas considerassem Durkheim1. um idealista burguês, a verdade é que ele poderia muito bem ter escrito o famoso aforisma de Marx segundo o qual não é a consciência do homem que determina sua essência mas sim o seu ser social que determina sua consciência. Bukharin cita Lévy-Bruhl com aparente aprovação. E é a este que nos referiremos a seguir.

LÉVY-BRUHL

enhuma revisão das teorias da religião primitiva estaria apropriada se não devotasse especial atenção aos volumosos escritos de Lévy-Bruhl acerca da mentalidade primitiva, uma expressão que deriva de um de seus livros, LA MENTALITÉ PRIMITIVE. Suas conclusões sobre a natureza do

pensamento primitivo foram por muitos anos um assunto de acesa controvérsia, e muitos antropólogos da época se sentiram compelidos a abordá-las. Após expor e criticar suas opiniões, farei uma breve revisão do que Pareto tem a oferecer às nossas questões, em parte por ser ele um acesso útil ao estudo de Lévy-Bruhl, e em parte porque o que ele tem a dizer serve como uma ponte eficiente na direção da discussão geral e do resumo que se lhe seguirá. Lévy-Bruhl era um filósofo que já tinha erguido uma grande reputação através de livros notáveis sobre Jacobi e Comte antes de voltar sua atenção, como aconteceu com seu contemporâneo Durkheim, também filósofo, para o estudo do homem primitivo. A publicação do seu LA MORALE ET LA SCIENCE DES MOEURS em 1903 marca a mudança

111 dos seus interessas na direção do estudo da mentalidade primitiva, o que viria a ser sua única preocupação até sua morte, em 1939. Embora suas suposições fundamentais sejam sociológicas, sendo portanto possível classificá-lo entre aqueles autores de que estive falando, Lévy-Bruhl não se ajusta muito

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facilmente a esta categoria, e sempre recusou sua inclusão no grupo de Durkheim; portanto, é apenas num sentido formal que ele pode ser chamado, como faz Webb, um dos colaboradores de Durkheim1. Ele conservouse mais um filósofo, puro e simples, daí seu interesse se voltar mais para os sistemas primitivos de pensamento do que para as instituições primitivas. Afirmava que se pode começar o estudo da vida social tão legitimamente pela análise das maneiras de pensar quanto pela análise das formas de comportamento. Talvez possamos dizer que ele as estudou basicamente como um lógico, pois a questão da lógica é fundamental em seus livros, como se deve, aliás, esperar que seja em qualquer estudo dos sistemas de pensamento. Seus primeiros dois livros acerca dos povos primitivos traduzidos para o inglês sob os títulos de HOW NATIVES THINK e PRIMITIVE MENTALITY expunham a teoria geral do pensamento primitivo através da qual seu autor se tornou tão conhecido. Seus trabalhos ulteriores eram ampliações destes dois, embora ele pareça ter modificado lentamente sua visão original à luz das modernas pesquisas de campo; ele era um homem modesto e humilde. Ao fim de sua vida, ele pode ter modificado sua posição ou pelo menos ter considerado esta possibilidade, se é que podemos julgar a partir dos seus CARNETS, póstumos. Seja como for, foram suas opiniões do modo como apareceram 1 C. C. J. Webb, GROUP THEORICS OF RELIGION AND THE INDIVIDUAL, 1916, pp. 13 e 14.

112 em seus livros iniciais que formaram o corpo de sua notável contribuição teórica à antropologia; e é a respeito delas que falarei. Assim como Durkheim, ele recusa a orientação da escola inglesa por tentar ela explicar os fatos sociais através de processos individuais de pensamento (processos da própria escola) que são o produto de condições diferentes daquelas que moldaram as mentes que se pretende compreender. Os eruditos pertencentes a esta escola se auto-interrogam sobre como teriam eles próprios chegado às crenças e práticas dos povos primitivos, e depois admitem tacitamente que os primitivos chegaram a tais resultados seguindo os mesmos passos. É sempre inútil tentar interpretar as mentes primitivas em termos de psicologia individual. A mentalidade do indivíduo deriva das representações coletivas de sua sociedade, para ele, obrigatórias estas representações, por sua vez, são função das instituições. Conseqüentemente, certos tipos de representações e portanto certas maneiras de pensar, pertencem a tipos determinados de estrutura social. Em outras palavras, assim como variam as estruturas sociais, variam também as representações e conseqüentemente o pensamento individual. Cada tipo de sociedade tem, portanto, seu tipo distinto de mentalidade, uma vez que cada uma tem seus costumes e instituições específicos, os quais são, fundamentalmente, apenas um certo aspecto das representações coletivas. Estes costumes e instituições são, por assim dizer, a soma das representações considerada objetivamente. Lévy-Bruhl não quis dizer com isto que as representações de um povo são menos reais do que suas instituições. Mas as sociedades humanas podem ser classificadas segundo vários tipos diferentes e, no entanto, diz Lévy-Bruhl, julgando da maneira mais ampla possível, existem dois tipos principais: - o primitivo e o civilizado, com dois pensamentos correspondentes o opostos a elos associados, pelo

113 que podemos falar de mentalidade primitiva e mentalidade civilizada; e estas são. diferentes não apenas em grau mas também em qualidade. Observar-se-á que Lévy-Bruhl procura enfatizar as diferenças entre os povos primitivos e os civilizados; esta é talvez a mais importante observação a fazer acerca do seu posicionamento teórico e é o que lhe dá muito de sua originalidade. Por várias razões, muitos dos que escreveram acerca dos povos primitivos inclinaram-se a por ênfase nas semelhanças (ou no que lhes

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parecia serem semelhanças) entre os primitivos e nós outros; LévyBruhl achou que seria igualmente correto chamar a atenção para as diferenças. Ele é freqüentemente criticado por não ter percebido o quanto nos parecemos com os povos primitivos em muitos aspectos; mas tal crítica perde muito de sua força desde que reconheçamos a intenção que o norteava; ele queria realçar as diferenças e, para torná-las mais claras, dirigiu o foco sobre elas e deixou as semelhanças na penumbra. Ele sabia que estava incorrendo em distorções, no caso, o que algumas pessoas chamam de construtor ideal, mas nunca disfarçou isto, e o seu procedimento é metodologicamente justificável. Nós na Europa, diz ele, temos por trás de nós muitos séculos de análise e especulação intelectual rigorosas. Logo, somos orientados logicamente, no sentido de que normalmente procuramos as causas dos fenômenos em processos naturais; e mesmo quando nos defrontamos com um fenômeno que não podemos explicar cientificamente, estabelecemos que assim é porque nosso conhecimento é ainda deficiente. O pensamento primitivo, porém, tem um caráter completamente diferente. Ele se orienta na direção do sobrenatural. Diz Lévy-Bruhl: "A atitude da mente do homem primitivo é bem diversa. A natureza do meio em que ele vive se lhe apresenta de modo muito diferente. Todos os objetos e seres pertencem a uma rede de participações e exclusões místicas. É o que constitui sua textura e sua or

114 dem. Estas imediatamente se impõem a atenção do homem primitivo e a dominam. Se um fenômeno parece a ele Interessante e se ele não se contenta, por assim dizer, em apenas percebê-lo, passivamente e sem reação, pensará imediatamente, como por ação de um reflexo mental, num poder oculto e invisível do qual o fenómeno é apenas uma manifestação"1. Se perguntar por que os primitivos não mergulham, como nós fazemos, na procura das conexões causais objetivas, a resposta será que eles não podem fazê-lo, uma vez que suas representações coletivas são pré-lógicas e místicas. Estas afirmativas foram recusadas por antropólogos britânicos, cuja tradição empírica leva a que desacreditem de qualquer coisa que tenha a natureza da especulação filosófica. Lévy-Bruhl, para eles, é apenas um teórico de gabinete que, como os seus colegas franceses, nunca viu um homem primitivo e muito menos chegou a falar com algum deles. Acho que posso declarar que sou um dos poucos antropólogos aqui e na América que tomaram sua defesa, não porque eu esteja de acordo com ele mas porque sempre me pareceu que um erudito deva ser criticado pelo que disse e não pelo que se supõe que ele tenha dito. Minha defesa tem portanto de ser exegética,2 uma tentativa de explicar o que ele pretendeu dizer com suas expressões chave e seus conceitos-chave - que tanta hostilidade despertaram. Tais expressões e conceitos são por exemplo, "pré-lógico", "mentalidade", "representações coletivas", "místico" e "participações". Esta terminologia torna seu pensamento obscuro, pelo menos para um leitor inglês, de 1 L. Lévy-Bruil LA MENTALITÉ PRIMITIVE, 10 edição (1947), pp. 17/18. 2 E.E. Evans-Pritchard, "Lévy-Bruhl's Theory of Primitive Mentality", BULLETIN OF THE FACULTY OF ARTS, Egyptian University, (Cairo), 1934.

115 modo que ficamos sempre em dúvida quanto ao que ele queria dizer. Lévy-Bruhl chama de "pré-lógicos" os modos de pensamento (pensamento mágico-religioso, pois que ele não distinguia pensamento mágico de pensamento religioso) que parecem tão verdadeiros para um homem primitivo e tão absurdos para um europeu. Ele quer aludir, com esta palavra, a algo muito diferente daquilo que os críticos imaginaram e lhe atribuíram. Ele não quis dizer que os primitivos são incapazes de pensar coerentemente, mas sim que na maioria, as suas crenças são incompatíveis com uma visão crítica e científica do universo. E que contêm,

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também, evidentes contradições. Não diz que falta inteligência aos primitivos, mas sim que suas crenças são ininteligíveis para nós. O que também não significa que não possamos seguir seu raciocínio. Podemos, sim, pois que eles raciocinam de maneira bastante lógica. Mas partem de premissas diferentes e que representam para nós um absurdo. São razoáveis, mas raciocinam em categorias diferentes, das nossas. São lógicos, mas os princípios de sua lógica não são os nossos e nem os de lógica aristotélica. Lévy-Bruhl não afirma que "os princípios lógicos são alheios à mente dos primitivos; um conceito cuja absurdidade é evidente no mesmo momento em que se o formula. Pré-lógico não quer dizer desprovido de lógica ou anti-lógico. Esta palavra, aplicada à mentalidade primitiva, significa simplesmente que ela não se preocupa, como nós fazemos, em evitar contradições. A mentalidade não mantém sempre presentes as mesmas exigências lógicas. Aquilo que para nossos olhos parece ser impossível ou absurdo é, para a mentalidade primitiva, freqüentemente aceito sem dificuldade"1 Aqui Lévy-Bruhl estava sendo demasiado sutil, pois por "pré-lógico", ele queria 1 Lévy-Bruhl, LA MENTALITÉ PRIMITIVE (The Herbert Spencer Lecture), 1931, p. 21.

116 dizer pouco mais que "não-científico" ou "acrítico". O homem primitivo seria não-cieníficto e acrítico, embora racional. Quando ele diz que a mentalidade primitiva ou a mente primitiva é pré-lógica, irrecuperavelmente acrítica, ele não se está referindo à habilidade ou inabilidade individual para o raciocínio, mas sim às categorias em que o raciocínio se processa. Ele não está falando de uma diferença biológica ou psicológica entre nós e os primitivos, mas sim de diferença social. Segue-se daí que ele também não esteja falando de um tipo de mente como a que alguns psicólogos e outros conceberam: intuitiva, lógica, romântica, clássica e assim por diante. Ele está falando, isto sim, de axiomas, valores e sentimentos - mais ou menos o que às vezes se chama de padrões de pensamento - e diz que entre os povos primitivos eles tendem a ser místicos e portanto situados para além de verificação possível pela experiência, e indiferentes a contradições. Tomando o mesmo ponto de vista que Durkheim1. neste aspecto particular, declara que estes são fatos sociais e não psicológicos, pelo que são gerais; tradicionais e obrigatórios. Estão presentes desde antes do nascimento do indivíduo que os adquire, e presentes estarão depois de sua morte. Mesmo os estados afetivos que acompanham as idéias, são socialmente determinados. Neste sentido, portanto, a mentalidade de um povo é algo de objetivo. Se ela fosse simplesmente um fenômeno individual, seria subjetiva; sua generalidade torna-a objetiva. Esses padrões de pensamento que em sua totalidade constituem a mente ou mentalidade de um povo são o que Lévy-Bruhl chama de representações coletivas, uma expressão de uso comum entre sociólogos franceses de época, provavelmente uma tradução do alemão "Vorstellung". A palavra sugere algo de muito confuso, embora ele quisesse apenas dizer que equivale aquilo que nós chamamos de

117 uma idéia, ou noção, ou crença; e quando ele diz que uma representação é coletiva, quer dizer apenas que ela é comum a todos, ou pelo menos à maior parte dos membros de uma sociedade. Toda sociedade tem suas representações coletivas. As nossas tendem sempre a ser críticas e científicas, e as dos povos primitivos tendem a ser místicas. Acho que Lévy-Bruhl teria concordado em que ambas merecem crédito. Se Lévy-Bruhl tivesse desejado despertar as maiores suspeitas num inglês, não poderia ter feito melhor do que fez, usando a palavra "místico". Mesmo assim, ele esclarece que quer apenas dizer o mesmo que dizem os autores ingleses, quando falam da crença no sobrenatural, na magia, na religião e assim por diante. Ele diz: "Uso este termo à falta de melhor, não aludindo ao misticismo religioso de nossas próprias

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sociedades, que é bastante diferente, mas no sentido estritamente definido em que se usa o termo como referente à crença em forças, influências e ações imperceptíveis para os nossos sentidos, mas, assim mesmo reais"1. As representações coletivas dos povos primitivos dizem respeito, basicamente, a estas forças imperceptíveis. Conseqüentemente, assim que as sensações do homem primitivo se tornam percepções conscientes, passam a ser coloridas pelas idéias místicas que evocam. Passam a ser imediatamente conceitualizadas numa categoria mística de pensamento. O conceito domina a sensação e lhe impõe sua imagem. Pode-se dizer que o homem primitivo vê um objeto do mesmo modo como nós o vemos, mas percebe-o diferentemente, pois no momento em que lhe dedica atenção consciente a idéia mística do objeto se instala entre o objeto e ele, transformado as propriedades puramente objetivas do primeiro. Nós também percebemos no objeto a 1 Lévy-Bruhl, LES FONCTIONS MENTALES DANS LES SOCIETÉS INFÉRIEURES, segunda edição, (1912), p. 30.

118 representação coletiva de nossa cultura, mas desde que ela está de acordo com as características objetivas daquele, nós o percebemos objetivamente. A representação coletiva do homem primitivo é mística e ele, em conseqüência, percebe misticamente o objeto, de uma maneira realmente estranha e na verdade absurda para nós. A percepção mística é imediata. O homem primitivo não percebe, por exemplo, uma sombra e nela aplica a doutrina de sua sociedade, segundo a qual a sombra é uma de suas almas. Quando consciente de sua sombra, ele está consciente de sua alma. Poderemos entender melhor as opiniões de Lévy-Bruhl se dissermos que, em sua maneira de encarar o assunto, as crenças só aparecem tardiamente no desenvolvimento do pensamento humano, quando percepções e representações já se separaram. Podemos então dizer que um indivíduo percebe sua sombra e crê que ela é sua alma. A questão da crença não surge entre os povos primitivos. A crença está contida na sombra. A sombra é a crença. Do mesmo modo, um homem primitivo não percebe um leopardo e acredita que ele seja o seu irmão-totem. As qualidades físicas do leopardo estão fundidas na representação mística do totem e a ela se subordinam. Diz Lévy-Bruhl: "a realidade em que os primitivos vivem é em si mesma mística. Nenhum ser, nenhum objeto, nenhum fenômeno natural em suas representações coletivas é aquilo que a nós parece ser. Quase tudo o que vemos lhes escapa, ou lhes é indiferente. Por outro lado eles vêem muitas coisas das quais nem sequer suspeitamos"1. Ele vai ainda mais longe. Diz não apenas que as percepções dos primitivos englobam representações místicas mas que as representações místicas é que evocam as per 1 LES FONCTIONS MENTALES, pp. 30 e 31.

119 cepções. No fluxo das impressões sensoriais somente ai, algumas se tornam conscientes. Os homens apenas notam ou prestam atenção a uma pequena parte daquilo que vêem e ouvem. O que lhes merece mais atenção é selecionado à base de sua maior afetividade. Em outras palavras, os interesses de um homem são os agentes seletivos, que são determinados socialmente. Os primitivos prestam atenção aos fenômenos com base nas propriedades místicas que suas representações coletivas lhes atribuíram. Assim, as representações coletivas controlam a percepção e se fundem com ela. Os povos primitivos prestam grande atenção à própria sombra precisamente porque, em suas representações, suas sombras são suas almas. Nós não dedicamos à nossa sombra a mesma atenção porque para nós uma sombra nada é de positivo, sendo a negação da luz; as representações dos primitivos e as nossas, a esse respeito, se excluem mutuamente. Assim, não é exatamente que a percepção de uma sombra origine a crença (de que o que é

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percebido é a alma) na consciência, mas sim é a crença que faz com que o primitivo preste atenção à sua sombra. As representações coletivas, pelos valores que dão aos fenômenos, dirigem a atenção para eles, e desde que as representações diferem amplamente nos povos simples e nos civilizados, o que o homem primitivo percebe no mundo que o cerca será também diferente do que percebemos; ou, pelo menos, as razões que têm para prestar atenção aos fenômenos o serão. As representações dos povos primitivos têm uma qualidade que lhes é própria, a de serem místicas, o que é muito estranho às nossas representações, pelo que podemos falar da mentalidade primitiva como sendo algo "sul generis". O princípio lógico dessas representações místicas é o que Lévy-Bruhl chama de lei da participação mística. As representações coletivas dos povos primitivos consistem de uma rede de participações que, posto que as repre-

120 sentações são místicas, são místicas também. No pensamento primitivo as coisas são ligadas de modo que aquilo que afeta a uma delas, crê-se que afeta outras, não de modo objetivo, porém através de uma ação mística, embora devamos salientar aqui que o homem primitivo não é capaz de distinguir entre ação objetiva e ação mística. Os povos primitivos efetivamente estão mais interessados no que nós chamaríamos de supra-sensível ou, para usar a expressão de Lévy-Bruhl, o místico, no que diz respeito às relações entre as coisas; interessa-lhes menos o que chamaríamos de relação lógica entre as coisas. Para tomar o exemplo que usei antes, alguns povos primitivos se ligam a tal ponto a suas sombras que o que acontece à sombra os afeta também. Assim, seria fatal a um homem cruzar um espaço aberto ao meio-dia, porque ele perderia a sua sombra. Outros povos primitivos se integram nos seus nomes e não os revelam porque quando um inimigo conhece o nome, terá o dono do nome em suas mãos. Entre outros povos, um homem participa em seu filho, de modo que quando o filho adoece é ele e não o filho quem bebe o remédio. Essas participações formam a estrutura das categorias em que se move o homem primitivo, e a partir das quais constrói sua personalidade social. Existem participações místicas entre um homem e a terra na qual ele vive, entre um homem e seu chefe, um homem e seu parente, um homem e seu totem, e assim por diante, numa gama de relações que cobre todos os aspectos da vida. Pode-se notar que, embora as participações de LévyBruhl lembrem as associações de idéias de Tylor e Frazer, as conclusões a que ele chega são muito diversas das dos outros dois. Para Tylor e Frazer, o homem primitivo acredita na magia porque raciocina incorretamente, a partir da observação. Para Lévy-Bruhl ele raciocina incorretamente porque seu raciocínio é determinado pelas representações místicas de sua sociedade. A primeira é uma explicação

121 em termos de psicologia individual, enquanto que a segunda é uma explicação sociológica. Lévy-Bruhl está correto no que concerne aos indivíduos isoladamente, pois que os indivíduos aprendem os padrões nos quais e através dos quais se estabelecem as conexões místicas. Ele não as deduz de suas próprias observações.

A discussão de Lévy-Bruhl acerca da lei da participação mística é talvez a mais valiosa e original das partes de sua tese. Ele foi um dos primeiros, se não o primeiro, a salientar que as idéias primitivas, que nos parecem tão estranhas, às vezes mesmo chegando a parecer idiotas, quando consideradas como fatos isolados, são plenas de significação, desde que vistas como segmentos de padrões de idéias e de comportamento, tendo cada parte uma relação coerente com as demais. Ele reconheceu que os valores formam sistemam tão coerentes como as construções lógicas do intelecto e que existe uma lógica de sentimentos assim como existe uma da razão, embora aquela esteja baseada em um princípio diferente. Sua análise nada tem a ver com as historietas fantasiosas que comentamos anteriormente, porque ele não

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tenta explicar a magia e a religião primitivas por uma teoria que tenciona mostrar como teriam elas surgido, ou qual a sua causa e sua origem. Ele as aceita como consumadas, e procura apenas mostrar sua estrutura e o modo pelo qual elas constituem uma prova da existência de uma mentalidade distinta, comum a todas as sociedades de um determinado tipo. Para salientar a especificidade desta mentalidade ele aceita que o pensamento primitivo em geral difere também em qualidade e não somente em grau, do nosso (mesmo que haja entre nós pessoas que pensem e sintam como os primitivos e admitamos que em cada pessoa existe um substrato de mentalidade primitiva); e este, o seu tema principal, não se pode manter de pé; no fim de sua vida, ao que parece, ele próprio o abandonou. Se a afirmativa fosse

122 verdadeira, nós dificilmente conseguiríamos nos comunicar com um homem primitivo, mesmo para apenas aprender sua linguagem. O simples fato de podermos fazê-lo mostra que Lévy-Bruhl estava salientando exageradamente o contraste entre o homem primitivo e o civilizado. Seu erro deveu-se parcialmente à pobreza de material de que dispunha quando formulou inicialmente sua teoria, e parcialmente à seleção feita - à qual me referi antes - e que privilegiava o sensacional e o curioso em detrimento do cotidiano e do factual. Assim, quando Lévy-Bruhl nos compara com os primitivos, quem, na realidade somos nós, e quem os primitivos? Ele não distingue diferenças internas entre nós, as camadas sociais e ocupacionais diferentes dentro da nossa sociedade, o que era mais gritante cinqüenta anos atrás, do que é hoje; nem distingue a diversidade nos diferentes períodos de nossa história. Será que, no sentido que ele dá à palavra, a mentalidade dos filósofos da Sorbonne e dos camponeses da Bretanha ou pescadores da Normandia é a mesma? E, uma vez que o europeu moderno emergiu do barbarismo (sociedade com tipo de mentalidade primitiva), poderíamos determinar o momento e a forma em que nossos ancestrais atravessaram de um para outro estágio? Tal desenvolvimento não poderia ter ocorrido, a menos que nossos antepassados primitivos, ao lado de suas noções místicas, tivessem também um corpo de conhecimento empírico que os guiasse; e Lévy-Bruhl tem que aceitar que os selvagens às vezes despertam de seus sonhos, que isto é necessário no desempenho de suas atividades técnicas, que "as representações coincidam em alguns pontos essenciais com a realidade objetiva, e que as práticas sejam, em dados momentos, adequadas aos fins almejados”1. Mas esta aceitação, Lévy-Bruhl a encara 1 LES FONCTIONS MENTALES, pp. 354-5.

123 como uma concessão de pequena Importância e que não chegaria a prejudicar seus pontos de vista. No entanto, é evidente que, longe de serem os homens primitivos, os filhos da fantasia que ele insinua serem, suas chances de sê-lo são menores que as nossas, pois eles vivem em contacto mais próximo com as ásperas realidades da natureza, que permitem sobreviver apenas aqueles que são guiados em seus objetivos pela observação, pelo experimento e pela razão. Poderíamos ainda perguntar em que categoria Platão se encaixa, ou onde ficaria o pensamento simbólico de Plotino e de Philo; principalmente porque entre os seus exemplos de mentalidade primitiva encontramos povos como os chineses, junto a polinésios, melanésios, negros, índios americanos, além dos aborígenes australianos. É preciso também salientar uma vez mais que, assim como ocorre em tantas teorias antropológicas, os exemplos negativos são simplesmente ignorados. Cito como exemplo, o fato de que muitos povos primitivos não se preocupam com suas sombras ou seus nomes, embora pertençam, tipologicamente à mesma classe das sociedades que o fazem, na própria classificação de Lévy-Bruhl. Não há nenhum antropólogo digno do nome que, atualmente, aceite esta teoria dos tipos distintos de mentalidade. Todos os pesquisadores que realizaram

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prolongados estudos de observação direta de povos primitivos concordam em que estes são, em sua maior parte, muito interessados no que diz respeitos aos afazeres de ordem prática, que conduzem de maneira empírica, ora sem a menor referência a forças supra-sensíveis ou influências e ações do mesmo tipo, ora atribuindo-lhes um papel apenas subordinado e auxiliar. Deve-se notar também que aquilo que Lévy-Bruhl define como sendo a mais fundamental característica da mentalidade primitiva ou pré-lógica, a sua incapacidade de perceber ou se preocupar com contradições evidentes, é 124 francamente uma conclusão ilusória. Talvez não possamos culpá-lo por Isto, pois os resultados das intensas pesquisas de campo modernos ainda não haviam sido publicados quando ele escreveu seus livros mais conhecidos. Na época, creio eu, ele não poderia ter verificado que, pelo menos em geral, as contradições só parecem evidentes quando o observador europeu alinha lado a lado crenças que, na realidade, são encontradas em diferentes situações e em diferentes níveis de experiência. Nem poderia ele ter avaliado, ao contrário de nós hoje, o fato de que as representações místicas não são necessariamente suscitadas por objetos fora das situações rituais, ou que elas não são sistematicamente evocadas pelos objetos. Alguns povos, por exemplo, colocam pedras nas forquilhas das árvores para retardar o pôr-do-sol, mas a pedra empregada é tomada ao acaso e só tem significação mística enquanto dura o rito ou enquanto concernente a ele. A visão daquela ou de qualquer outra pedra não evoca a idéia de pôr-do-sol. A associação, como assinalei na discussão dos trabalhos de Frazer, é suscitada pelo rito e não precisa ocorrer em outras situações. Saliente-se também que objetos como fetiches e ídolos são construídos por mãos humanas, e que em sua essência material não têm significação. Só a adquirem depois de dotados de poder sobrenatural através de um rito, que também por expedientes humanos, lhes infunde tal poder; de modo que o objeto e suas virtudes são conceitos separados na mente. E mais: na infância, as noções místicas não podem ser evocadas por objetos que para os adultos têm significações místicas, pois a criança ainda não tem conhecimento delas, podendo mesmo nem sequer atender nos objetos. Uma criança, pelo menos entre nós, mais cedo ou mais tarde descobre sua sombra. Outro fato é que objetos que têm valor místico para certos povos não têm nenhum para outros: um totem, sagrado para um clã, é comido por membros de outros clãs da mesma comunidade.

125 Tais observações sugerem que é necessário formular uma interpretação mais sutil. Continuo acreditando que no tempo em que escreveu, Lévy-Bruhl não poderia valorizar, como nos é dado hoje, a vasta complexidade e o rico simbolismo das linguagens primitivas e do pensamento que elas expressam. O que parece serem contradições intransponíveis após tradução para o inglês, pode não parecer sê-lo na linguagem original. Quando, por exemplo, uma afirmativa é traduzida e nela se diz que um homem de tal ou qual clã é um leopardo, a coisa nos soa absurda; mas para o nativo, a palavra que tem o significado de palavra "é", pode não ter o mesmo significado que para nós. Seja como for, não há nenhuma contradição inerente em dizer-se que um homem é um leopardo. A qualidade do leopardo é algo que se adiciona, em pensamento, aos atributos humanos e não os diminui. As coisas podem ser diferentemente pensadas em diferentes contextos. Em alguns, é apenas a coisa, em outros, é algo mais do que apenas a coisa. Lévy-Bruhl também estava errado ao supor que há necessariamente uma contradição entre uma explicação objetiva causal e uma explicação mística. Não é verdade. Os dois tipos de explicação podem ser e na realidade são, considerados em conjunto, um complementando o outro; e não são reciprocamente excludentes. Por exemplo, o dogma de que a morte se deve a bruxaria não exclui a observação de que o homem tenha sido morto por um búfalo. Para Lévy-Bruhl existe aqui uma contradição à qual os nativos

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são indiferentes. Mas não há contradição nenhuma. Pelo contrário, os nativos estão fazendo uma análise muito aguda de situação. Eles estão perfeitamente cientes de que foi um búfalo que matou o homem, mas sustentam que isto não teria acontecido se não tivesse havido bruxaria. Não fosse a bruxaria, o homem não teria sido morto pelo búfalo, ou teria sido outro homem que não aquele ou teria sido outro búfalo e outro espaço e outro tempo e não aque-

126 les; por que aconteceria como aconteceu se não fosse a bruxaria? Eles estão perguntando por que - como nós diríamos - duas cadeias de eventos independentes se cruzam, levando um determinado homem e um determinado búfalo ao mesmo lugar e no mesmo tempo. Todos concordarão em que não há contradição aqui e que, muito pelo contrário, a explicação baseada na bruxaria complementa a explicação de causa natural, lidando com o que nós chamaríamos de acaso. A causa que implica a bruxaria é salientada porque das duas é ela, a mística, que permite intervenção - a vingança contra quem enfeitiçou o homem. A mesma mistura de conhecimento empírico e noções místicas se encontra nas idéias primitivas sobre a procriação, drogas e outros assuntos. As propriedades objetivas das coisas e a causa natural dos acontecimentos podem ser conhecidas mas não são socialmente enfatizadas, ou são negadas porque entram em conflito com algum dogma social que está de acordo com alguma instituição, e nestas circunstâncias a crença mística é mais apropriada do que o conhecimento empírico. Efetivamente, podemos novamente dizer que se não fosse assim seria difícil compreender o modo pelo qual se erigiu o pensamento científico. Mais ainda, uma representação social não é aceitável se entra em conflito com a experiência individual, a menos que o conflito possa ser considerado nos termos de própria representação ou de alguma outra representação; a explicação será, mesmo assim, reconhecimento do conflito. Uma representação que afirma que o fogo não queimará a mão que o toca, está fadada a ter vida curta. Uma que afirme que não haverá queimadura se o indivíduo tiver bastante fé, pode perdurar. Lévy-Bruhl admite, como vimos, que o pensamento místico é condicionado pela experiência e que em atividades tais como a guerra, caça, pesca, tratamento das doenças e adivinhações, deve se adaptar racionalmente aos objetivos visados.

127 Atualmente os antropólogos concordam unanimemente em que Lévy-Bruhl mostrou os povos primitivos como sendo muito mais supersticiosos, para usar uma palavra mais comum do que "pré-lógico", do que o eram, na realidade. E também sublinhou demais o contraste entre a sua mentalidade e a nossa, mostrando-nos mais positivistas do que realmente somos. De minhas conversas com ele, posso dizer que neste aspecto ele se sentia em meio a um dilema. Para ele, o Cristianismo e o Judaísmo eram também supersticiosos, indicativos de mentalidade pré-lógica e mística, e assim tinham que ser, de acordo com suas definições. Mas ele não se referiu a estas religiões, julgo eu que para não ser ofensivo. De modo que excluiu o que há de místico em nossa cultura tão severamente quanto excluiu o que há de empírico nas culturas selvagens. Esta falha, o não ter levado em consideração as crenças e ritos da ampla maioria de seus semelhantes, tornou viciosa a sua argumentação. Ele mesmo, como Bérgson ironicamente observou, ao acusar constantemente o homem primitivo de nunca atribuir nenhum acontecimento ao acaso, aceitava o acaso. O que o colocava na classe dos pré-lógicos. Entretanto, isto não significa que o pensamento primitivo não fosse mais místico (no sentido que ele dava à palavra) do que o nosso. O contraste que Lévy-Bruhl ergue é um exagero, mas seja como for, a religião e a magia primitivas levantam para nós um problema real; e um que não esteve nas cogitações do filósofo francês. Muitos homens que tinham larga experiência referente aos povos primitivos freqüentemente se sentiram confusos no trato do assunto; e é verdade que os primitivos freqüentemente (principalmente quando tratam de desastres)

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atribuem os fatos a forças supra-sensíveis enquanto que nós, com nosso saber maior, procuramos suas causas naturais. Mas eu acho que Lévy - Bruhl poderia ter colocado melhor o problema. Não é bem uma questão de opor mentalidade primitiva versus menta-

128 lidade civilizada, mas sim a relação de dois tipos de pensamento e de experiência. Ele não visualizou assim o proeia primitiva ou civilizada; um problema de níveis de pensamento e de experiência. Ele não visualizou assim o problema, porque estava dominado, como quase todos os escritores da época, por noções de evolução e progresso inevitável. Se ele não tivesse sido tão positivista em suas próprias representações, certamente se teria perguntado, não quais as diferenças entre os modos civilizado e primitivo de pensar, mas sim quais são as funções dos dois tipos de pensamento em qualquer sociedade ou na sociedade humana em geral, sendo os mencionados tipos os que às vezes se costuma chamar de pensamento "expressivo" e pensamento "instrumental”1. O problema se teria então mostrado a ele sob uma luz totalmente diferente, como ocorreu, em diversas formas, em relação a Pareto, Bérgson, William James, Max Weber, e outros. Posso apresentar este novo enfoque de modo preliminar, discutindo brevemente o que diz Pareto acerca do pensamento civilizado, uma vez que o seu tratado é um verdadeiro comentário irônico da tese Lévy-Bruhl. Lévy-Bruhl diz da mentalidade da nossa sociedade: "Eu a considero bem definida pelo trabalho dos filósofos, lógicos, e psicólogos antigos sem prejulgar quanto ao que uma análise sociológica posterior possa mudar nas conclusões até agora alcançadas"2. Pareto então se reporta a escritos europeus de filósofos e outros especialistas para provar que a mentalidade dos europeus é até bastante irracional ou, como ele diz, distanciada de um pensamento lógico-experimental. No enorme TRATTATO DI SOCIOLOGIA GENERALE, traduzido para o inglês sob o título de THE MIND AND SO 1 Ver J. Beattie, OTHER CULTORES, 1964, cp. XII, onde discute esta distinção. 2 LES FONCTIONS MENTALES, p. 21.

129 . CIETY, Vilfredo Pareto dedica cerca de um milhão de palavras a uma análise dos sentimentos e das idéias. Falarei apenas daquela parte do tratado que contém algum interesse para o tema da mentalidade primitiva. Pareto também usa uma terminologia peculiar. Existem, em qualquer sociedade, "resíduos", que por conveniência poderemos chamar de sentimentos, alguns dos quais respondem pela estabilidade social ao mesmo tempo em que outros respondem pelas mudanças sociais. Os sentimentos se expressam em comportamento e também em "derivações" (isto é, aquilo que outros autores chamam de ideologias ou racionalizações). Muitas ações, entre as quais Pareto inclui o pensamento, e que exprimem estes resíduos ou sentimentos, não são lógico-experimentais (chamemo-las alógicas, para abreviar) e devem ser distinguidas de ações lógico-experimentais (ou simplesmente lógicas). O pensamento lógico depende de fatos, e não o contrário, enquanto que o pensamento alógico é aceito "a priori" e dita ordens à experiência; e se os fatos entram em conflito com a experiência, convocam-se argumentos para restabelecer a harmonia. As ações e pensamentos lógicos estão em relação com as artes, ciência, economia e são também exemplificados em operações militares, jurídicas e políticas. Em outros processos sociais as ações e pensamento alógicos predominam. Para verificar se as ações são lógicas ou alógicas, é preciso verificar se seu propósito subjetivo está em concordância com seus resultados objetivos, isto é, se os meios estão objetivamente adequados aos fins visados. O único juiz deste teste deverá ser a ciência moderna, isto é, o conhecimento factual que nós mesmos possuímos. Ao usar a palavra "alógico", Pareto não pretende dizer, como tampouco Lévy-Bruhl quando usou a palavra pré-lógico, que o pensamento e a

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ação assim chamados seriam ilógicos; antes, quer dizer que tais pensamentos e ações só subjetivamente e não objetivamente correlacionam os fins com os meios. Nem devemos aplicar

130 ao resultado o critério de utilidade. Uma crença objetivamente válida pode não ter utilidade para a sociedade ou para o indivíduo que a cultiva, enquanto que uma doutrina absurda do ponto de vista lógico-experimental pode ser útil a ambos. Na verdade, Pareto o afirma como tentativa de demonstrar experimentalmente "a utilidade individual e social da conduta alógica"1. (A mesma opinião foi mantida por Frazer, por exemplo, que nos afirma que um certo nível de cultura, governo, propriedade privada, casamento e respeito pela vida humana "derivam muito de sua força de crenças que atualmente deveríamos condenar sem reservas por serem supersticiosas e absurdas")2. Mais ainda, a procura de causas, por mais imaginárias que as causas "descobertas" se mostrem, levou, às vezes, à demonstração de causas reais: "se alguém afirmasse que, se não fosse pela metafísica e pela teologia, a ciência experimental nem sequer existiria, não seria facilmente refutado. Esses três tipos de atividade são provavelmente manifestações do mesmo estado psíquico que, uma vez extinto, levaria à extinção simultânea das três"3. Mas do mesmo modo, como é possível que povos capazes de comportamento lógico tão freqüentemente ajam alogicamente? Tylor e Frazer dizem que isto ocorre porque raciocinam erradamente; Marett, Malinowski e Freud dizem que é para que se aliviem tensões; Lévy-Bruhl e, de certa forma Durkheim, dizem que é porque as representações coletivas governam seus pensamentos. Para Pareto, isto se deve aos resíduos. Eu usarei "sentimentos" em lugar desta palavra e lembro que o próprio Pareto freqüentemente fazia tal substituição; 1 V. Pareto, THE MIND AND SOCIETY, 1935, p. 35. Ver também LE MYTHE VERTUISTE ET LA LITTERATURE IMMORALE, 1911. 2 Frazer, PSYCHE'S TASK, 1913, p. 4. 3 Pareto, THE MIND AND SOCIETY, p. 591.

131 mas, para ser explícito, os "resíduos" de Pareto são os elementos comuns em formas de pensamento e ação, uniformidades abstraídas da fala e do comportamento observados; e os sentimentos são conceituações destas abstrações, atitudes constantes que embora não possamos observar, aceitamos que existam, dados os elementos constantes observados no comportamento. Assim, o resíduo é uma abstração do comportamento observado, e um sentimento é um nível mais alto de abstração: uma hipótese. Um exemplo pode ser útil aqui. Os homens sempre se reuniram para festejos, mas há muitas razões diferentes para seus banquetes. "Os banquetes em honra dos mortos se tornam banquetes em honra dos deuses e depois banquetes em honra dos santos; finalmente, retrocedem e se tornam novamente banquetes meramente comemorativos. A forma pode mudar mas é muito mais difícil mudar os banquetes”1. Na Linguagem de Pareto, o banquete é um resíduo e a razão para mantê-lo é a derivação. Não' é nenhum tipo especial de banquete, mas simplesmente o hábito de banquetear-se que o homem teve em todos os tempos e lugares, que constitui o resíduo. A atitude constante que subjaz a este elemento constante no banquete é o que Pareto chama de sentimento. Todavia, como estamos fazendo um resumo, empregaremos a palavra sentimento tanto para a abstração quanto para a sua conceptualização. Também para dizê-lo explicitamente, as derivações de Pareto são os elementos inconstantes em ação, mas como eles são tão freqüentemente as razões dadas para que se faça algo, contrastando com o elemento constante, que é o fazer, em si, Pareto geralmente usa a palavra para

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denotar as razões que as pessoas dão para os comportamentos que têm. O sentimento é assim igualmente expresso pela ação e pela racio- 1 THE MIND AND SOGIETY, p. 607.

132 nalização da ação, porque os homens não apenas têm necessidade de ação, como também de intelectualizá-la, para justificarem o terem agido, pouco importando aqui que os argumentos que empreguem sejam razoáveis ou absurdos. Os resíduos e derivações são ambos, portanto, derivados do sentimento; mas a derivação é secundária e menos importante. É portanto inútil tentar interpretar os comportamentos com base nas razões que os homens dão para explicá-los. Neste aspecto Pareto criticava severamente a Herbert Spencer e Tylor por julgarem que os cultos dos mortos derivavam realmente das razões alegadas, quais sejam, as de que as almas e os fantasmas existem. Deveríamos antes dizer que os cultos é que dão origem às razões, que são apenas racionalizações do que foi feito. Ele criticou igualmente Fustel de Coulanges por afirmar que a propriedade de terras surgia como conseqüência de uma idéia religiosa, qual seja, a crença de que fantasmas ancestrais viveriam naquele solo, enquanto que, na realidade, a posse de terras e a religião se desenvolveram provavelmente ao mesmo tempo, sendo a relação aí envolvida uma interdependência e não uma relação simples, de causa e efeito, unilateral. Mas, embora as ideologias possam atuar sobre os sentimentos, são os sentimentos, ou talvez devamos dizer aqui, os resíduos, os modos constantes do comportamento -, que são básicos e duráveis; e as idéias, as derivações, são meramente uma ligação inconstante e variável. As ideologias mudam, mas os sentimentos que as originam permanecem imutáveis. O mesmo resíduo pode até fazer surgirem derivações opostas. Por exemplo, o que Pareto chama de resíduo sexual pode se expressar através de um violento ódio a qualquer manifestação sexual. As derivações dependem sempre dos resíduos, e nunca se passa o contrário. As pessoas dão toda a sorte de razões para explicar a hospitalidade mas, de uma maneira ou de outra, todas insistem na hospitalidade. Manifestar hospitali-

133 dade é o resíduo, enquanto que as razões mencionadas são as derivações, e elas pouco importam, de modo que praticamente qualquer razão serve igualmente bem a este propósito. Se você pode convencer alguém de que as razões que dá para fazer o que faz são erradas, nem por isto vai ele suspender o que vinha fazendo, mas sim procurará outras razões para justificar a própria conduta. Aqui, Pareto, de modo muito surpreendente cita Herbert Spencer aprobatoriamente, no que concerne sua afirmativa de que não são as idéias mas os sentimentos, aos quais as idéias servem apenas como guias, que governam o mundo; ou talvez os sentimentos expressos em ação, isto é, os resíduos. Diz Pareto: "Logicamente deve-se primeiro acreditar em uma dada religião e depois na eficácia de seus ritos, o que será, evidentemente, uma conseqüência da crença. É absurdo oferecer uma oração sem que haja ninguém para ouvi-Ia. Mas a conduta alógica deriva de um processo exatamente inverso. Existe primeiro uma crença instintiva na eficácia do rito e depois vem a necessidade de uma explicação para a crença, o que mais tarde se fundamenta numa religião”1. Existem certos tipos elementares de comportamento encontradiços em qualquer sociedade, em situações similares, e dirigidos a objetos também similares. Estes, os resíduos, são relativamente constantes, desde que surgem a partir de sentimentos fortes. A maneira exata pela qual se expressam os sentimentos, assim como as ideologias que acompanham tal expressão, é variável. O homem, em cada sociedade, expressa-os no idioma particular da respectiva cultura. Suas interpretações

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"tomam as formas que geralmente prevalecem nas épocas em que eles evoluíram. Isto se compara ao estilo de vestimentas usados pelos povos 1 THE MIND AND SOCIETY, p. 569.

134 nos períodos correspondentes”1. Se queremos compreender os seres humanos, portanto, devemos sempre procurar por trás de suas idéias e estudar seu comportamento; e uma vez que admitamos que os sentimentos governem o comportamento, não fica difícil entender as ações humanas em tempos remotos, porque os resíduos mudam pouco através dos séculos e mesmo dos milênios. Se não fosse assim, como poderíamos ainda apreciar os poemas de Homero e as elegias, tragédias e comédias dos gregos e romanos? Elas exprimem sentimentos dos quais, pelo menos em grande parte, participamos. As formas sociais permanecem fundamentalmente as mesmas, diz Pareto; muda apenas o idioma cultural em que elas são exprimidas. As conclusões de Pareto podem ser resumidas pela afirmativa segundo a qual "a natureza humana não se modifica" ou em outras palavras, "as derivações variam, os resíduos perduram” 2. Assim, Pareto está de acordo com os que dizem que no começo era o ato. Pareto, como Crawley, Frazer, Lévy-Bruhl e outros do mesmo período, era um escritor do tipo tesoura-e-cola-tudo, tomando seus exemplos daqui, dali, de toda parte e adaptando-os a uma classificação elementar; e seus julgamentos são superficiais. Mesmo assim, seu tratado nos interessa porque, apesar de não haver nele discussões sobre os povos primitivos, ele tem importância para a compreensão do que diz Lévy-Bruhi acerca da mentalidade primitiva. Este nos diz que os primitivos eram pré-lógicos. Pareto diz que somos, em grande parte, alógicos. Teologia, metafísica, socialismo, parlamentos, democracia, sufrágio universal, república, progresso e o que mais se queira são tão irracionais quanto qualquer coisa em que os primitivos acreditam, uma vez que são igualmente o produto da fé e do senti- 1 THE MIND AND SOCIETY, p. 660. 2 Ibid. p. 143.

135 mento, e não do experimento e do raciocínio. b mesmo pode ser dito de maioria de nossas idéias e ações; nossa moral, nossas lealdadas à família e ao país, e assim por diante. Em seus livros, Pareto dedica ao comportamento e noções lógicas das sociedades européias, praticamente o mesmo espaço que Lévy-Bruhl dedica às sociedades primitivas. Podemos ser um pouco mais críticos do que e sensíveis fomos um dia, porém não muito. As áreas relativas do lógico-experimental e do não-lógico-experimental são bastante constantes através de história em todas as sociedades.Mas, embora as conclusões de Pareto sejam opostas àquelas de Lévy-Bruhl, pode-se assinalar alguma semelhança entre os conceitos analíticos que os dois empregam. "não-lógico-experimental" corresponde a "pré-lógico", "resíduos" corresponde a "participações místicas"; pois, para Pareto, os resíduos são abstrações de elementos relacionais comuns a todas as sociedades, desde o momento em que acréscimos variáveis são afastados, como é o caso de relações de família e parentesco, e com lugares, com os mortos e assim por diante. As participações particulares - de um homem com a bandeira de seu país, com sua igreja, sua escola, seu regimento, a rede de sentimentos em que vive o homem moderno seriam, para Pareto, derivações. E, de um modo geral, podemos dizer que estas derivações correspondem às "representações coletivas" de Lévy-Bruhl. Ambos quiseram, igualmente, demonstrar o mesmo ponto de vista, segundo o qual, fora do conhecimento empírico ou científico, as pessoas desejam se assegurar de que suas noções e conduta estará de acordo

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com os sentimentos e valores, pouco se importando com o fato de suas premissas serem ou não cientificamente válidas e suas inferências inteiramente lógicas. E tais sentimentos e valores formam um sistema de pensamento dotado de uma lógica própria. Qualquer acontecimento é logo interpretado, como diz Lévy-Bruhl, em termos de representação, coletiva e

136 como diz Pareto, em termos de derivação, na lógica das representações ou dos sentimentos que estão subjacentes às derivações. São eles e não a ciência os responsáveis pela determinação dos padrões de vida. Segundo Pareto, é apenas no campo tecnológico que a ciência rouba terreno dos sentimentos na sociedade moderna. Daí nossa dificuldade em compreender a magia primitiva e a bruxaria, enquanto que, por outro lado, compreendemos rapidamente a maioria das outras noções dos povos primitivos, desde que elas se põem de acordo com sentimentos que nós mesmos temos. Os sentimentos são superiores à simples observação e à experimentação, governando a ambas na vida diária comum. As principais diferenças teóricas entre os dois autores estão em que Lévy-Bruhl considerava o pensamento e o comportamento místicos como sendo socialmente determinados enquanto para Pareto eles seriam psicologicamente determinados; Lévy-Bruhl inclinava-se a ver o comportamento como um produto do pensamento, ou representações, enquanto que Pareto tratava o pensamento, ou derivações, como secundário e desimportante; e finalmente em que, enquanto Lévy-Bruhl opunha a mentalidade primitiva à mentalidade civilizada, para Pareto, os sentimentos básicos seriam constantes e invariáveis, pelo menos não variariam muito, em relação aos tipos de estrutura social. É esta última diferença que me interessa salientar, porque apesar de sua superficialidade, vulgaridade e confusão de conceitos, Pareto viu o problema corretamente. Em conferência proferida em Lausanne, ele disse: "A atividade humana tem dois ramos principais: o do sentimento e o de pesquisa experimental. Não se pode esquecer a importância do primeiro. É o sentimento que impele à ação, que dá vida às leis morais, ao dever e às religiões sob todas as suas complexas e variadas formas. É pela aspiração ao ideal que as sociedades humanas per-

137 duram e progridem. Mas o segundo ramo é também essencial para estas sociedades, ele provê o material de que a primeira faz uso; a ele devemos o conhecimento que garante a ação eficaz e a modificação proveitosa do sentimento, graças ao qual ele se adapta aos poucos, lenta ' mente, é verdade, às circunstâncias dominadoras. Todas as ciências, as naturais como as sociais, formam, em seus primórdios, uma mistura de sentimento e experimento. Foram necessários séculos para que surgisse uma separação entre esses elementos, separação que, em nosso tempo, está praticamente concluída no que diz respeito às ciências naturais, e que já começa e vai continuar, nas ciências sociais”1. Era intenção de Pareto estudar o papel desempenhado pela ação e pensamento lógicos e alógicos no mesmo tipo de cultura e de sociedade, a Europa antiga e moderna, mas ele não o fez. Ele escreveu muito acerca daquilo que considerava como sendo crenças falaciosas e comportamento irracional, mas nos disse muito pouco acerca do senso comum, crenças científicas e comportamento empírico. Portanto, assim como Lévy-Bruhl nos deixa com a impressão dos primitivos como homens quase continuamente envolvidos em rituais e sob o domínio de crenças místicas, Pareto nos dá a impressão de europeus como homens que estiveram, em todos os períodos de sua história, à mercê dos sentimentos, expressos em uma variedade de noções e ações que ele reputa absurdas. 1 JOURNAL D'ÉCONOMIE POLITIQUE, 1917, p. 426, Apêndice ao livro de G.C. Curtius, AN INTRODUCTION TO PARETO. HIS SOCIOLOGY, 1934.

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CONCLUSÃO

cabamos de fazer uma revisão, com alguns exemplos, dos vários tipos de teorias que foram propostas para explicar as práticas e crenças religiosas do homem primitivo. Na sua maior parte, as teorias que estivemos discutindo são, pelo menos para os antropólogos, algo de morto há tempos, e

que atualmente têm apenas interesse enquanto espécimes do pensamento de seu tempo. Alguns dos livros, como os de Tylor, Frazer e Durkheim, certamente continuarão a ser lidos como clássicos, porém não são mais do que um estímulo para os estudantes. Outros, como os de Lang, King, Crawley e Marett, já se encontram mais ou menos no esquecimento. Tais teorias já não oferecem mais nenhuma atração por causa de alguns fatores; destes, quero mencionar uns poucos. Uma das razões é, creio eu, que a religião deixou de preocupar a mente dos homens de maneira como fazia nos fins do século passado e no início do atual. Os antropólogos sentiram que estavam vivendo uma crise importante na história do pensamento e que tinham um papel a desempenhar dentro dela. Max Müller assinalou em 1878 que "todos os

139 dias, todas as semanas, todos os meses, as revistas mais amplamente lidas parecem agora conjugadas para nos dizer que o tempo de religião passou, que a fé é uma alucinação ou uma doença infantil e que os deuses foram finalmente encontrados e destruídos"1. Vinte e sete anos mais tarde, em 1905, Crawley2 escreveu que os inimigos de religião desenvolveram o antagonismo entre ciência e religião a ponto de transformá-lo numa guerra mortal e a opinião ganha peso em todas as partes, repetindo que a religião é mera sobrevivência de uma era mito-poética e primitiva e que seu fim é uma questão de tempo. Em outra publicação3 comentei o papel desempenhado pelos antropólogos nesta luta, de modo que não discutirei mais longamente o assunto agora. Menciono-o aqui apenas por pensar que as crises de consciência de certo modo ajudaram ao florescimento dos livros sobre as religiões primitivas neste período, e também porque a cessação de tais crises deve ter parte na diminuição do interesse dos antropólogos de gerações mais recentes com relação ao mesmo assunto, que tanto apaixonara seus antecessores. O último livro em que sentimos um sentimento de conflito e de urgência é o de S. A. Cook (THE STUDY OF RELIGION) terminado e publicado quando a guerra de 1914 já havia sido desencadeada. Há outras razões pelas quais a discussão cessou. A antropologia estava se tornando um ramo experimental, e à medida em que se desenvolveu a pesquisa de campo, tanto em qualidade quanto em quantidade, tudo o que parecia pertencer mais à área de especulação filosófica por parte de eruditos que jamais tivessem visto um homem 1 LECTURES ON THE ORIGIN AND GROWTH OF RELIGION, 1878, p. 218. 2 Crawiey, THE TREE OF LIFE, 1905, p. 8: 3 Evans-Pritchard, RELIGION AND THE ANTHROPOLOGISTS Blackfriars, Abril, 1960 pp. 104 - 18.

140 primitivo, passou a ser desacreditado. Não é apenas que os fatos revelados pela pesquisa moderna freqüentemente pusessem em dúvida as teorias iniciais, mas também que se foi verificado que elas tinham erros em sua construção. Quando os antropólogos tentaram empregá-las em seu trabalho de campo verificaram que elas tinham pouquíssimo valor experimental, porque eram formuladas em termos que

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raramente permitiam sua adequação a problemas que a simples observação podia resolver, peio que não poderiam ser dadas como falsas nem como verdadeiras. Que utilidade teriam para a pesquisa de campo as teorias de Tylor, Müller e Durkheim1. acerca de origem de religião? É sobre a palavra origem que se coloca ênfase. É porque as explicações das religiões foram fornecidas em termos de origens que os debates teóricos, antes tão cheios de vida e explosivos, terminaram arrefecendo. Para mim, é extraordinário que alguém tenha considerado válido especular acerca do que poderia ter sido a origem de algum costume ou crença, desde que não há absolutamente nenhum modo de descobrir, sem apoio histórico, qual teria sido a origem verdadeira. Mesmo assim, foi isto que quase a maioria de nossos autores explícita ou implicitamente fizeram, fossem suas teses psicológicas ou sociológicas; mesmo os mais hostis ao que chamavam de pseudo-história não escaparem de propor explanações semelhantes às que combatiam. Poder-se-ia escrever um longo ensaio acerca de apavorante confusão que ocorreu nessas discussões no que concerne a idéias de evolução, desenvolvimento, história, progresso, origem, gênese, caráter primitivo e causas, e não me proponho a fazê-lo. Baste-me dizer que há pouco ou nenhum proveito a tirar dessas teorias. Tantos exemplos já foram dados que eu quero citar apenas mais um. Herbert Spencer e Lord Avebury lidaram com o totemismo através de uma teoria segundo a qual o mesmo se originava de prática de dar nome aos indivi

141 duos, por uma ou outra razão, a partir de animais, plantas, objetos inanimados. Diz Avebury1: estes nomes então se tornaram ligados às famílias das pessoas que os receberam e sua descendência; e quando a origem dos nomes estava esquecida, uma misteriosa relação com as criaturas e os objetos se estabeleceu, evocando horror e levando ao culto. Além do fato de que não há provas de que as criaturas totêmicas, pelo menos usualmente suscitem nenhuma resposta que possamos chamar de horror, é de que sejam cultuadas, como provar que o totemismo se originou assim? E possível; mas como investigar o assunto ou testar a validade de suposição? Muitas tentativas foram feitas por eruditos alemães (especialmente Ratzel, Frobenius, Grabner, Ankerman, Foy, Schmidt, cujo método era conhecido como "Kulturkroisiehre") no sentido de estabelecer uma cronologia para as culturas primitivas, partindo de provas circunstanciais. Wilheim Schmidt foi o expoente deste método de reconstrução no que concerne as religiões primitivas, usando critérios tais como distribuição geográfica de caçadores e coletores e seu baixo estágio de desenvolvimento econômico. Ele admitiu que os povos que não têm o cultivo das plantas e o trato dos animais - os pigmeus e pigmóides de África e de Ásia, os aborígines do sudoeste de Austrália, os andameneses, os esquimós, os povos de Terra do Fogo e alguns índios americanos - seriam os povos "etnologicamente mais velhos", Eles pertencem à cultura primitiva que então se desenvolveu em três linhas independentes e paralelas: matrilinear e agricultura, patrilinear e totêmica e patriarcal nômade, cada uma delas com seus próprios modos de pensamento e sua própria perspectiva no mundo. Na cultura primitiva não há totemismo, culto do fetiche, animismo, 1 MARRIAGE, TOTEMISM, AND RELIGION. AN ANSWER TO CRITICS. 1911, pp. 86 e 87.

142 magia ou culto de fantasmas, podendo os dois últimos ser encontrados em estado incipiente. Por outro lado, estes povos que são os mais baixos na escala do desenvolvimento social e cultural têm, como assinalou Andrew Lang, uma religião monoteística, cujo deus é eterno, onisciente, beneficente, moral, onipotente e criativo, satisfazendo a todas as necessidades dos homens, sejam elas racionais, sociais, morais ou emocionais. As discussões acerca de prioridade ou não do monoteísmo pertencem aos tempos

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pré-antropológicos, como se encontra, por exemplo, no THE NATURAL HISTORY OF RELIGION (1757), de David Hume, no qual ele tencionou dizer que o politeísmo ou a idolatria era a mais inicial das formas de religião, baseando seus argumentos em fatos históricos, registros de povos primitivos e também na lógica. As controvérsias eram, como se pode esperar, adornadas por considerações teológicas e conseqüentemente inflamadas (como no livro de Hume) e tendentes a gerar polêmicas. Hume escrevia como um crente, mas podemos considerar ambígua a sua posição religiosa. É acima de tudo, como Lang tinha também admitido, o desejo de obter uma causa lógica para o universo que leva o homem a crer em Deus, pois esta resposta a um estímulo externo combinada com a tendência à personificação lhe dá ,a idéia de uma pessoa divina, um ser supremo. No que diz respeito a esta explicação dos deuses, Lang e Schmidt, se classificam entre os autores intelectualistas. A origem de concepção está na observação e na inferência mas, segundo eles, ambas então se haviam mostrado corretas. A teoria pode ser uma hipótese aceitável no que concerne ao ser criador, porém não explica satisfatoriamente, julgo eu, o predomínio do monoteísmo entre esses povos mais simples. Schmidt tentou pôr em descrédito os etnólogos evolucionistas, cujos esquemas supunham que a ordem de desenvolvimento destes povos se deveria fazer do mais baixo

143 grau de fetichismo, magia, animismo, totemismo e assim por diante. Indubitavelmente ele demonstrou sua tese contra os adversários, mas sendo forçado, como aconteceu com Lang, a aceitar os mesmos critérios evolucionistas deles, dando cronologia histórica aos níveis culturais. Efetivamente, do lado positivo, não me parece que ele tenha estabelecido firmemente sua posição e acho seu raciocínio tendencioso, e duvidoso o seu método de utilização das fontes. Deve muito ao Padre Schmidt por sua exaustiva discussão da religião dos primitivos e das teorias das religiões primitivas, mas não acho que sua reconstrução dos níveis históricos possa ser mantida, nem que os métodos que empregou possam ser aceitos como genuinamente históricos, como ele afirmou. Trato do assunto brevemente, porque ele é complicado; embora Schmidt, homem de forte personalidade e grande cultura, tenha construído em torno de si uma escola em Viena, esta veio a se desintegrar após a sua morte; e duvido que haja hoje em dia muitos defensores de suas reconstruções cronológicas, que foram outra tentativa de descobrir as origens da religião em que, dadas as circunstâncias, a ciência não pode ajudar com nenhuma confirmação positiva. É preciso, no entanto, assinalar, que o verdadeiro monoteísmo no sentido histórico da palavra poderia ser considerado uma negação do politeísmo, e assim não poderia tê-lo precedido; e a este respeito, quero citar Pettazzoni: "o que encontramos entre povos não civilizados, não é monoteísmo em legítimo significado histórico, mas a idéia de um ser supremo e a identificação errônea, a assimilação equivocada desta idéia para com o verdadeiro monoteísmo só pode dar lugar a confusões”1. Portanto, devemos acrescentar o monoteísmo (no sentido que Schmidt dá à palavra) à nossa lista de hipóteses in- 1 PettazzonI, ESSAYS ON THE HISTORY OF RELIGIONS, p. 9.

144 sustentáveis acerca da origem da religião, lista que se completa com fetichismo, manismo, mito-natural, animismo, totemismo, dinamismo ("mana", etc.), manismo, politeísmo e vários estados psicológicos. Ninguém, que eu saiba, defende mais estas posições hoje em dia. Os grandes avanços que a antropologia social conseguiu através das pesquisas de campo, desviaram nossos olhos da vã procura das origens e as muitas escolas que disso cuidaram desapareceram no ar. Creio que a maioria dos antropólogos concordaria atualmente em que é inútil procurar por um "primordium" na religião. Schleiter diz,

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acertadamente, que "todos os esquemas evolucionistas das religiões, sem qualquer exceção, partem, ao tentar a identificação dos primórdios e dos estágios seriais de desenvolvimento, de bases arbitrárias e desgovernadas”1. Do mesmo modo, estabeleceu-se firmemente que em muitas religiões primitivas as mentes dos povos funcionam de maneiras diferentes em diferentes níveis e contextos. Assim, um homem pode dedicar-se a um fetiche por vários motivos, enquanto que apela para Deus em situações outras; e uma religião pode ser ao mesmo tempo politeísmo e monoteística segundo o Espírito seja concebido como um só, ou mais de um. É também atualmente claro que na mesma sociedade primitiva pode haver, como assinalou Radin, amplas diferenças a este respeito entre indivíduos, o que ele atribui ao temperamento2. Finalmente, eu suponho ser pacífico que a explicação do tipo causa-efeito que estava implícita em muita teorização inicial só dificilmente poderia estar de acordo com o pensamento científico moderno em geral, desde que este procura basicamente revelar e compreender relações constantes. 1 F. Schleiter. RELIGION AND CULTURE, 1919, p. 39. 2 Radin, MONÕTHEISM AMONG PRIMITIVE PEOPLES, 1954, pp. 24-3Q.

145 Nestas teorias, foi suposto e tido como certo que nós estamos em uma extremidade de escala do progresso humano e os chamados selvagens na outra, e que, uma vez que o homem primitivo se encontra em um nível tecnológico muito baixo, seu pensamento e seus costumes devem por força ser o oposto dos nossos. Nós somos racionais e os primitivos pré-lógicos, vivendo num mundo de sonhos e fantasia, de mistério e de terror; nós somos capitalistas, eles comunistas; nós monógamos, eles promíscuos; nós monoteístas e eles fetichistas, animistas, pré-animistas ou que mais seja; e assim por diante. O homem primitivo foi assim apresentado como sendo infantil, rude, pródigo e comparável aos animais e aos imbecis. Herbert Spencer nos diz que a mente do homem primitivo é "incapaz de especulação, de generalização, acrítica, e desprovida de noções, salvo algumas raras, fornecidas pelas percepções”1. Aqui, mais uma vez, ele diz que nos vocabulários não desenvolvidos e nas estruturas gramaticais primárias dos homens primitivos, somente os pensamentos mais simples encontram lugar, de modo que, de acordo com uma autoridade que ele cita mas cujo nome omite, os índios Zuni "necessitam de muita contorção facial para tornar as suas frases inteligíveis"; e que a linguagem dos bosquimanos, necessita, segundo outro autor, de tanta gesticulação, que é incompreensível no escuro, os arapahos, teria dito uma terceira autoridade, "dificilmente conversam um com o outro no escuro"2. Mas Müller cita Sir Emerson Tennet quando afirma que os vedas do Ceilão não têm linguagem: "eles se fazem entender por sinais, caretas, e sons guturais que pouco se parecem com palavras ou com a linguagem em geral"3. A verdade é que eles falam 1 Op. Cit. p. 344. 2 Op. Cit, p. 149. 3 SELECTED ESSAYS ON LANGUAGE, MYTHOLOGY AND RELIGION, 11,27

146 o cingalês, uma língua indo-européia. Do mesmo modo, Darwin, num trecho bastante acientífico, descreve o povo de Terra do Fogo, um povo muito agradável, segundo melhores observadores, como bestas praticamente sub-humanas1 e Galton, num espírito ainda menos científico, afirma que seu cão tinha mais inteligência dos que os Damara (Herero) que ele contactou2. Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Uma magnífica coleção de observações amalucadas, se não ultrajantes, deste tipo, pode ser, por

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exemplo, encontrada no trabalho APTITUDES OF RACES3, do Padre Frederic W. Farrar, o autor de ERIC, OR LITTLE BY LITTLE e THE LIFE OF CHRIST. Seu desagrado e sua hostilidade para com os negros é semelhante ao de Kingsley. Cinqüenta anos de pesquisa demonstraram que o denegrir (a palavra neste contexto é etimologicamente irônica) assim tal raça eram apenas equívocos advindos de informações errôneas e grosseiras. Tudo isto se enquadrava muito bem nos interesses colonialistas e outros; e devemos admitir que algum descrédito deve caber aos etnólogos americanos que procuravam uma desculpa para a escravidão e para uns outros tantos que andavam procurando o elo perdido entre o macaco e o homem. É claro que se afirmou terem os povos primitivos as mais rudimentares concepções religiosas, e nós tivemos ocasião de observar, durante estas conferências, como se disse que eles as tinham alcançado. Isto pode ser ainda melhor demonstrado pelo condescendente argumento - uma vez que estava assegurado além das dúvidas que os povos pri- 1 C. Darwin, VOYAGE OF THE BEAGLE, 1831-36. Ed. de 1906, Cap X. 2 F. Galton, NARRATIVE OF AN EXPLORER IN TROPICAL SOUTH AFRICA, edição de 1889, p. 82. 3 TRANSACTIONS OF THE ETHNOLOGICAL SOCIETY OF LONDON, N. S. V. (1867). pp. 115-126.

147 mitivos, mesmo os caçadores e coletores, têm deuses com altos atributos morais - de que eles devem ter tomado de empréstimo a idéia ou a palavra (sem compreender seu sentido) a uma cultura mais elevada, seja de missionários, viajantes, ou o que seja. Tylor disse isto de modo certamente errôneo, como Andrew Lang demonstrou, acerca dos aborígines australianos1. Sidney Hartland era da mesma opinião de Tylor2. Dorman, também sem qualquer prova, diz categoricamente dos ameríndios: "nenhuma aproximação ao monoteísmo havia sido conseguida antes da descoberta da América pelos europeus”3. A pesquisa moderna mostrou que muito pouco valor podem ter afirmativas deste tipo; mas era mais ou menos um axioma na época, o afirmar que quanto mais simples a tecnologia e a estrutura social, mais degradados os conceitos religiosos e mesmo outros conceitos, também. E o arbitrário Averbury chegou ao ponto de dizer que não havia crença em deuses nem qualquer culto e, portanto, segundo ele, religião alguma entre os australianos, tasmanianos, andamaneses, esquimós, índios do norte e do sul da América, alguns polinésios, alguns ilhéus das Carolinas, hotentotes, alguns kaffires do sul da África, os Fulani da África Central, os Bambara da África Ocidental e o povo da Ilha Damood4. O famoso missionário Moffat, que se escusava de descrever as maneiras e os costumes dos Bechuana alegando que fazê-lo "não seria nem muito instrutivo nem muito edificante"5 afirmou que Satã havia apagado "qualquer vestígio de impressão 1 Tylor, "ON THE LIMITS OF SAVAGE RELIGION", J.A.I., XXI, 1892 p. 293. 2 E. S. Hartland, "THE HIGH GODS OF AUSTRALIA", Folk-Lore, IX, 1898, p. 302. 3 R. M. Dorman, THE ORIGIN OF PRIMITIVE SUPERSTITIONS 1881, p. 15. 4. Op. Cit., caps. 5 e 6. 5 R. Moffat, MISSIONARY LABOURS AND SCENES :N SOUTHERN AFRICA, 1824, p. 249.

148 religiosa das mentes dos Bechuana, hotentotes e bosquímanos”1 Era freqüente nessa época negar que os povos menos desenvolvidos culturalmente tivessem qualquer tipo de religião. Esta era a opinião de Frazer, como vimos; e até em 1928 nós encontramos Charles Singer negando que os selvagens tenham qualquer coisa a que possamos chamar de um sistema religioso, uma vez que suas práticas e crenças eram totalmente desprovidas de coerência2. O que ele quer dizer; é, suponho eu, que os selvagens não têm uma

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filosofia da religião ou uma apologética teológica. Pode até ser verdade que as crenças primitivas sejam vagas e incertas, mas parece não ter ocorrido a estes autores que assim são também as das pessoas comuns em nossa própria sociedade; como poderia ser de outro modo, se a religião diz respeito a seres que não podem ser diretamente apreendidos pelos sentidos ou totalmente compreendidos pela razão? E se seus mitos religiosos parecem às vezes ridículos, não o são mais do que os dos gregos e os de Roma e da índia, tão admirados pelos eruditos clássicos e orientalistas; e nem tampouco são os seus deuses tão revoltantes. Os pontos de vista de que falei até agora não poderiam ser aceitos hoje. Quanto à possibilidade de que se justificassem com base na informação de que se dispunha à época, não farei comentários, pois que não efetuei a trabalhosa pesquisa literária indispensável a que formasse um julgamento. Minha tarefa é apenas de exposição, mas devo também apresentar o que me parecem ser as fraquezas fundamentais das interpretações da religião primitiva que durante algum tempo pareceram merecer crédito. Seu primeiro erro foi se basearem em pressuposições evolucionistas para as quais não havia nem poderia haver provas. O se 1 Ibidem, pp. 244 e 260/3. 2 C. Singer, RELIGION AND SCIENCE, 1928, p. 7.

149 gundo é que, além de serem teorias referentes a origens cronológicas, eram também referentes a origens psicológicas; até mesmo aquelas que chamamos de sociológicas, poderíamos dizer que repousam, em última análise, em suposições psicológicas do tipo "se eu fosse um cavalo". E dificilmente poderia ter sido de outro modo, se nos lembrarmos de que os autores eram antropólogos de gabinete, cuja experiência se restringia à sua própria cultura e sua própria sociedade e, dentro desta, a um confinamento numa minúscula classe de intelectuais. Estou certo de que homens como Avebury, Frazer e Marett não tinham qualquer idéia de como sentia e pensava o trabalhador inglês de seu tempo, e não surpreende que tivessem ainda menos no que concerne os homens primitivos, que jamais viram. Como vimos, suas explicações acerca da religião primitiva derivava da introspecção. O erudito se colocava na posição do homem primitivo: se ele mesmo acreditasse no que o primitivo acredita ou praticasse o que ele pratica, teria sido guiado por uma certa linha de raciocínio ou impelido por algum estado emocional ou mergulhado, na psicologia das multidões ou envolvido numa rede de representações místicas e coletivas. Em diversas ocasiões fomos instruídos para não tentar interpretar o pensamento de povos antigos e primitivos nos termos da nossa própria psicologia, que foi moldada por um sistema de instituições muito diferente da deles; assim nos instruíram Adam Ferguson, Sir Henry Maine e outros, incluindo Lévy-Bruhl que, neste aspecto, pode ser considerado o mais objetivo de todos os que escreveram sobre a mentalidade primitiva, dentre aqueles cujos livros estivemos comentando. Escreveu Bachofen para Morgan: "Os eruditos alemães pretendem tornar a antigüidade inteligível medindo-a de acordo com as idéias correntes nos dias atuais Na criação do passado, eles apenas se vêem a si próprios. Penetrar na estrutura de uma mente diferente da

150 nossa própria é trabalho muito duro”1. É realmente trabalho duro, especialmente quando lidamos com assuntos tão difíceis quanto o são a magia e religião primitivas, nos quais é muito fácil, ao tentar a tradução das concepções dos povos mais simples para as nossas, fazê-lo transplantando o nosso para o seu pensamento. Se é verdade, como afirmaram os Seligman, que em matéria de magia os povos brancos e negros se encaram uns aos outros com total falta de compreensão ,2 as idéias que o homem primitivo

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tem a respeito devem ter sido gravemente distorcidas, especialmente por aqueles que nunca viram um homem primitivo e que consideram a magia uma superstição fútil. Por isto houve a tendência a analisar o fenômeno como se nos imaginássemos nas mesmas condições que os homens primitivos. Como assinalei em minha primeira conferência, considero este problema da tradução como sendo fundamental em nossa especialidade. Darei "mais um exemplo". Nós usamos a palavra "sobrenatural" quando falamos de alguma crença nativa, pois isto é o que significaria a coisa para nós; porém, longe de aumentarmos a nossa compreensão, fica mais provável que a partir de então passemos a compreender ainda menos. Temos o conceito da lei natural e a palavra "sobrenatural" nos dá a idéia de algo que está fora da operação comum de causa e efeito, mas este sentido pode estar completamente ausente para o homem primitivo. Por exemplo: muitas pessoas estão convencidas de que a morte é provocada por bruxaria; falar a estas pessoas da bruxaria como sendo algo de sobrenatural dificilmente refletiria a opinião que eles mesmo têm do assunto, desde que do seu ponto de vista, nada poderia ser mais 1 C. Resek, LEWIS HENRY MORGAN: AMERICAN SCHOLAR, 1960, p. 136. 2 C. G. e B. Z. Seligman,PAGAN TRIBES OF THE NILOTIC SUDAN, 1932, p. 25.

151 natural Eles vivenciam Isto pelos sentidos, 'na morte e em outras desgraças, e os bruxos são vizinhos seus. Efetivamente, para eles, se uma pessoa não morre por ação de bruxa: ia é que não morreu, em um certo sentido, de morte natural; morte natural é morrer por obra de bruxaria. Poderíamos aqui considerar melhor a dicotomia entre "sagrado" e "profano", assim como o sentido de "mana", e idéias semelhantes, as diferenças entre magia e religião, e outros tópicos que me parece estarem ainda confusos, principalmente por causa da nossa incapacidade de perceber que nos defrontamos com problemas semânticos fundamentais; ou seja, se preferirmos, problemas de tradução; mas isto levaria a uma longa discussão e espero dedicar-lhe a devida atenção em outro tempo e lugar. Referir-me-ei apenas de passagem, mais uma vez, ao apavorante nevoeiro de confusão que durou muitos anos e ainda não se dispersou e que diz respeito ao conceito (basicamente polinésio) de "mana"; a confusão nasceu em parte de registros incertos recebidos da Melanésia e Polinésia, e mais ainda das especulações de autores de influência, tais como Marett e Durkheim, que conceberam "mana" como uma força vaga e impessoal, uma espécie de éter ou eletricidade que se distribuía por pessoas e coisas. Pesquisas mais recentes parecem ter determinado que a idéia deve ser entendida como uma eficácia (com o sentido adicional de verdadeiro) do poder espiritual derivado de deuses ou espírito, usualmente através de pessoas, especialmente chefes; uma graça ou virtude que capacita pessoas a garantir o sucesso em empreendimentos humanos, o que assim corresponde a idéias semelhantes em muitas partes do mundo1. 1 Hocart. "MANA", Man, 1914, 46; ''MANA AGAIN". Man. 1922, 79. Firth, "THE ANALYSIS OF MANA: AN EMPIRICAL APPROACH" Journal of Polynesian Society, XLIX, 1940, pp. 483/610. A. Capell, "THE WORD MANA: A LINGUISTIC STUDY", Oceania, IX 1938, pp. 89-96. Também F. R. Lehman, Mana, DER BEGRIFF DES "AUBERORDENTLICH WIRKUNGSVOLLEN" BEI SUDSEEVOLKEN, 1922, passim.

152 Aqui e agora passo a ter uma tarefa nova: sugerir qual deveria ter sido o processo de investigação das religiões primitivas. Não nego que os povos tenham razão para suas crenças, que as aceitem como racionais; não nego que os ritos religiosos possam se acompanhar de experiências emocionais e que o sentimento possa mesmo ser um elemento importante neles; e certamente não nego que as idéias e

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práticas religiosas estejam diretamente relacionadas com os grupos sociais - que a religião, seja qual for, é um fenômeno social. O que nego é que possa ser explicada por qualquer um destes fatos ou mesmo por todos eles em conjunto, e sustento que não é método científico correto procurar por origens, especialmente quando elas não podem ser encontradas. Sempre que expliquemos os fatos da religião primitiva sociologicamente, deveremos fazê-lo em relação com fatos outros, aqueles que com e!a formam um sistema de idéias e práticas e outros fenômenos sociais que se lhe associam. Como exemplo do primeiro tipo de explicação parcial, tomemos a magia. Tentar entender a magia como uma idéia em si, qual seja sua essência, é tarefa inútil. Torna-se mais fácil compreendê-la quando ela é vista não somente em relação com atividades empíricas, mas também em relação com outras crenças, como uma parte de sistema de pensamento; freqüentemente se dá que ela não seja primariamente considerada como um meio de controlar a natureza, mas sim, mais freqüentemente, uma precaução contra a bruxaria e outras forças místicas que operem contra o esforço humano, interferindo com as medidas empíricas tomadas com o objetivo de alcançar um fim. Como exemplo de explicação em termos de relação entre religião e outros fatos sociais (e em si mesmo:

153 não-religiosos), poderemos tomar o culto dos ancestrais, que só pode ser compreendido quando visto como parte de uma montagem total de relações de família 'e parentesco. Os espíritos têm poder sobre seus descendentes, sobre os quais atuam como censores de conduta, cuidando em que cumpram suas obrigações interpessoais e punindo-os se falharem. E, mais uma vez, em algumas sociedades Deus é concebido como o uno e o múltiplo, sendo o uno considerado quando relacionado a todos os homens ou a uma sociedade inteira e o múltiplo quando considerado na forma de uma variedade de espíritos relacionados a um ou outro segmento de sociedade. Um conhecimento adequado de estrutura social é aqui obviamente necessário à compreensão de alguns dados do pensamento religioso. Ou ainda, o ritual religioso é executado durante cerimônias em que o "status" relativo de indivíduos ou grupos é afirmado, ou confirmado, como ocorre no nascimento, iniciação, casamento e morte. É óbvio que para entender o papel de religião nestas ocasiões é preciso mais uma vez ter bom conhecimento de estrutura social. Dei alguns exemplos bastante simples. Uma análise de relações do tipo que acabo de mencionar pode ser levada a efeito sempre que uma religião estiver em relação funcional com qualquer outro fato social - moral, ético, econômico, jurídico, estético e científico - e uma vez realizada em toda a extensão teremos uma compreensão sociológica do fenômeno tão amplo quanto possível. Tudo isto equivale a dizer que devemos considerar os fatos religiosos em termos de totalidade de cultura e de sociedade em que eles estão, a fim de compreendê-los de forma por como os psicólogos de "Gestalt" se referiam à "Kulturganze" ou o que Mauss chamava de "fait total". Eles devem ser vistos como uma relação de partes entre si dentro de um sistema coerente, de modo que cada parte

154 só faz sentido quando considerada em relação às demais e o próprio sistema também fazendo sentido somente enquanto relacionado com outros sistemas institucionais, agora num sistema mais amplo de relações. Lamento dizer que muito-poucos progressos têm sido feitos nestas linhas. Como assinalei antes, quando passaram os momentos de crise religiosa, o interesse dos antropólogos nas1 religiões primitivas definhou e entre o fim de Primeira Guerra e dias recentes, houve uma nítida escassez de estudos sobre o assunto por parte dos que fizeram pesquisas de campo. É também possível que a pesquisa de campo neste aspecto exija uma mente poética, apta a lidar com imagens e símbolos. De modo que, enquanto em outros departamentos de antropologia a pesquisa intensa conseguiu ponderáveis avanços, como no estudo do

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parentesco e das instituições políticas, por exemplo, não houve avanços equivalentes no estudo de religião primitiva. A religião se exprime, evidentemente, através do ritual e um sintoma de falta de interesse demonstrada nos últimos anos é o fato de se ter notado que das 99 publicações do Instituto Rhodes-Livingstone (relativas a vários aspectos de vida africana durante os últimos trinta anos, mais ou menos), apenas três tratavam do ritual como assunto1. Alegra-me dizer, no entanto - uma vez que a religião primitiva é um dos meus assuntos de interesse pessoal - que recentemente vêm surgindo sinais de uma renovação do interesse perdido e mais ainda, dentro de um enfoque que procura o estabelecimento de relações. Não pretendo ser seletivo, mas posso citar alguns exemplos de livros recentes acerca das religiões africanas: DIVINITY AND EXPERIENCE, do Dr. Godfrey Lienhardt, um estudo analítico de religião do 1 R. Apthorpe, tntroduction to "ELEMENTS IN LUVALE BELIEFS AND RITUALS", por C. M. N. White, Rhodes-Livingstone Papers, n° 32, 1961, p. IX. . .

155 Dinka do Sudão,1 o estudo do Dr. John Middieton acerca das concepções e ritos religiosos do povo Lugbara de Uganda2 e o estudo ao Dr. Victor Turner sobre o ritual e simbolismo Ndembu na Rodésia do Norte3 e também, fora de nossa área profissional, pesquisas como as de Tempels e Thews4 e5 entre os Baluba do Congo. Estas recentes pesquisas em sociedades particulares nos tornam mais próximos de enunciação do problema concernente no papel desempenhado pela religião e mais amplamente, o do pensamento não-científico, na vida social. Mas, mais cedo ou mais tarde, se viermos a ter uma teoria sociológica geral de religião, deveremos levar em consideração todas as religiões, e não apenas as primitivas. E somente assim poderemos compreender algumas de suas características essenciais. Pois embora os avanços de ciência e de tecnologia tornassem a magia supérflua, a religião persistiu, e seu papei social tornou-se mais e mais envolvente, incluindo pessoas cada vez mais distantes e ao contrário do que acontecia com as sociedades primitivas, não mais ligadas por laços de família e parentesco ou que participassem de atividades em comum. Se não tivermos alguma orientação geral a respeito do que seja a religião, não iremos além de inúmeros estudos particulares das religiões de povos particulares. Durante os últimos séculos, tais princípios gerais foram ensaiados, como vimos, sob a forma de hipóteses evolucionistas psicológicas e socioló 1 G. Lienhardt, DIVINITY AND EXPERIENCE. The Religion on the Dinka, 1961. 2 J. Middleton, Lugbara Religion, 1960. 3 V. W. Turner, "NDEMBU DIVINATION: ITS SYMBOLISM AND TECHNIQUES", Rhodes-Livigstone Papers, n° 31, 1961; "RITUAL SYMBOLISM, MORALITY AND SOCIAL STRUCTURE AMONG THE NDEMBU", RhodesLivingstone Journal, n° 309, 1961. 4 R. P. Placide Tempels, BANTU PHILOSOPHY, 1959. 5 Th. Thews, Lr€ RlÉEL DANS LA CONCEPTION LUSA, Zaire, XV 1961, 1.

156 gicas, mas, desde que as teses gerais foram abandonadas pelos antropólogos, o nosso assunto passou a sofrer de perda de objetivo e de método comuns. O chamado método funcional era muito vago e muito manhoso para que pudesse persistir, além de ser também muito adornado de pragmatismo e teleologia. Ele repousava excessivamente numa analogia biológica muito frágil; e pouco se conseguiu, através de pesquisa comparada, no sentido de apoiar as conclusões obtidas por estudos específicos; a verdade é que os estudos comparativos estavam se tornando praticamente obsoletos. Vários filósofos e quase-filósofos

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tentaram expor do modo mais amplo possível o que pensavam do papel de religião na vida social e quero agora analisar o que poderemos aprender com eles. A despeito de todos os seus plágios, de sua prolixidade e trivialidade, Pareto viu, como já assinalamos, que os caminhos alógicos do pensamento, isto é as ações (e idéias a elas associadas) nas1 quais os meios não estão segundo o ponto de vista de ciência experimental, racionalmente adequados aos fins visados, desempenham, apesar de tudo, um papel essencial nas1 relações sociais; e nesta categoria ele incluiu a religião. A oração pode ser eficaz, embora Pareto, obviamente, não acreditasse nisto, mas sua eficácia não é aceita pelo consenso de opinião científica como sendo um fato. Nas circunstâncias em que a precisão técnica é necessária, como é o caso de ciência, operações militares, direito e política, a razão deve dominar tudo. Por outro lado, em nossas relações sociais e pia esfera de nossos valores, afetividade e lealdades, prevalece o sentimento: em nossa ligação para com a família e o lar, a igreja e o estado, e em nossa conduta referente aos nossos pares; e estes sentimentos são de maior importância, estando entre eles o religioso. Em outras palavras, certas atividades exigem rigorosamente o pensamento racional (para substituir a expressão "lógico-experimental"),

157 mas mesmo estas só podem ser consumadas se existir algum grau de solidariedade entre as pessoas envolvidas, além de segurança e ordem entre elas; e tudo isto depende de sentimentos comuns que derivam de necessidades morais, e não técnicas, e se baseiam em imperativos e axiomas, e não na observação e experimentação. São construções do coração, muito mais do que de mente, e a mente aqui só serve para encontrar razões que protejam as referidas construções. Assim, o objetivo de Pareto, citado anteriormente, de demonstrar experimentalmente "a utilidade social e individual de conduta alógica",1 dá a impressão de que ele estava querendo dizer que no terreno dos valores somente os meios são escolhidos pela razão; os fins, não. E é este um ponto de vista compartilhado por, entre outros, Aristóteles e Hume. Para usar um outro exemplo, o filósofo Henri Bérgson estava, embora de outro modo, fazendo a mesma distinção entre os dois amplos tipos de pensamento e comportamento: o religioso e o científico. Devemos estudá-los através de ação; e também não nos devemos deixar desviar enganosamente por Lévy-Bruhl como ao supor que, mencionando causas místicas, o homem primitivo esteja com elas explicando efeitos físicos; ao contrário, ele está levando em consideração sua significação humana. A diferença entre os selvagens e nós outros, é simplesmente que nós temos maiores conhecimentos científicos do que eles, que são "ignorantes daquilo que aprendemos2. Guardando isto na lembrança, voltemos à tese principal de Bérgson. Fundamentalmente, diz ele, a sociedade e cultura humana servem a um fim biológico e os dois tipos de função mental o servem igualmente, de diferentes maneiras, mas maneiras que são complementares. Existem duas 1 THE MIND AND SOCIETY, p. 35. 2 Bergson, Op. Cit., p. 151.

158 espécies diferentes de experiência religiosa, a estática, associada com sociedade fechada e a dinâmica ou mística, (no sentido individualista que a palavra tem em escritos históricos e em estudos comparativos sobre a religião; não no sentido que lhe dá Lévy-Bruhl), a qual se associa à sociedade aberta, universal. A primeira é, evidentemente, característica das sociedades primitivas. Por outro lado, a evolução biológica, tanto no que diz respeito a sua estrutura quanto no que concerne sua organização, tomou duas direções: o sentido de perfeição do instinto em todo o reino animal, com exceção do homem, e neste, no sentido de

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perfeição de inteligência. Se a inteligência tem suas vantagens, tem também suas desvantagens. Ao contrário dos animais, o homem primitivo pode prever as dificuldades com que se defrontará e tem dúvidas e temores acerca de sua capacidade de contorná-las. Mas a ação é imperativa. Acima de tudo, ele sabe que um dia morrerá. Esta conscientização de desesperança inibe a ação e põe a vida em perigo. A reflexão, pálida organização do pensamento, traz outro perigo. As sociedades perduram por causa de um sentido de obrigação moral existente entre seus membros; mas a inteligência pode mostrar a um homem que seus próprios interesses devem vir antes, entrem eles ou não em conflito com o bem coletivo. Confrontada com tais dilemas, a Natureza (estas reificações são numerosas entre os escritos de Bérgson) faz ajustamentos a fim de restaurar a confiança do homem e impor-lhe o sacrifício de escavar as profundezas do instinto recobertas pela camada de inteligência. Com a faculdade mito-poética que aí encontra, ela põe a inteligência a dormir, embora sem destruí-Ia. Daí derivam magia e religião, inicialmente indiferenciadas e mais tarde individualizadas. Elas promovem o necessário equilíbrio de inteligência e permitem que o homem, através de manipulação de forças imaginárias de natureza ou apelos a espíritos imaginários, torne a en-

159 catar seus objetivos; e ele se vê também compelido a abandonar seus interesses egoísticos, trocando-os pelo bem comum, e a se submeter, por força dos tabus, à disciplina social. Assim, o que os instintos fazem pelos animais, faz a religião pelos homens, ajudando sua inteligência a opor-se ao instinto em situações críticas, através da arma das representações intelectuais. Portanto, a religião não é, como alguns supõem, um produto do medo, mas sim um amparo e um seguro contra o medo. Em última análise ela é produto de uma urgência instintiva, um impulso vital que combinado com a inteligência, garante a sobrevida do homem e sua ascensão evolutiva para altitudes cada vez maiores. Ela é, resume Bérgson, "uma reação defensiva da natureza contra o poder dissolvente da inteligência”1. Assim, desde que estas funções da religião (sejam quais forem as monstruosas construções da imaginação em que proliferem, sem o suporte da realidade) são essenciais à sobrevivência do indivíduo e da sociedade, não precisamos nos surpreender por terem existido e por existirem sociedades sem ciência, sem arte, sem filosofia; mas jamais alguma sem religião. "A religião, sendo vinculada à nossa espécie, deve pertencer à nossa estrutura”2Bergson utilizou fontes secundárias, especialmente os escritos de seu amigo Lévy-Bruhl, quando escreveu acerca de idéias primitivas em sociedades contemporâneas simples; mas quando falou do homem primitivo ele tinha em mente algum hipotético homem pré-histórico, que funcionava mais ou menos como um recurso dialético para lhe permitir um contraste mais nítido entre a religião estática da sociedade fechada e a religião mística da sociedade aberta do futuro (que sua imaginação, guiada por experiências religiosas pessoais, antevia). 1 Op. Cit. p. 122. 2 Op. Cit. p. 176.

160 Pode-se já ter observado que de um modo geral o 'instinto" de Bérgson corresponde aos "resíduos não-lógico experimentais" de Pareto e ao "pré-lógico" de Lévy-Bruhl; sua "inteligência" corresponde ao "lógico-experimental" de Pareto e ao "lógico" de Lévy-Bruhl; e o problema, visualizado por Pareto e por Bérgson, porém não, julgo eu, por Lévy-Bruhl, era em suma o mesmo, embora fossem diferentes os pontos de vista. Pode-se ainda observar que todos três nos dizem muito sobre a natureza do irracional, mas, dizem, em contrapartida, muito pouco sobre o racional, de modo que o contraste não fica muito nítido. O historiador

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social alemão Max Weber,1 que escolho como exemplo final, toca no mesmo problema, embora não de modo tão explícito; e seu "racional" por oposição a "tradicional" e "carismático" de certa maneira corresponde aos termos antagônicos dos outros autores. Ele distingue esses três tipos "ideais" ou puros de atividade social. O racional é o tipo mais inteligível, melhor observado na economia capitalista do Ocidente, embora evidente em todas as atividades sujeitas ao controle burocrático, à rotina, e que produzem uma despersonalização praticamente total. O tradicional se caracteriza pela devoção e tudo que sempre existiu, o que é típico das sociedades conservadoras e relativamente imutáveis, nas quais os sentimentos, afetivos predominam. As sociedades primitivas pertencem a este tipo, embora pareça que Weber leu pouco a respeito delas. O tipo carismático é, até o momento em que se torne rotinizado pelo oficialismo (como invariavelmente ocorrerá, se bem sucedido) é o tipo da livre emergência individual do espírito: é representado pela figura do profeta, do guerreiro heróico, do revolucionário, etc., que surgem como líderes em tempos críticos e a quem são atribuídos poderes ex 1 FROM MAX WERER: ESSAYS IN SOCIOLOGY, 1947.

161 traordinários e sobrenaturais. Estes líderes podem aparecer em qualquer sociedade. Como Bérgson, Max Weber faz uma distinção entre o que chama de religiosidade mágica, a dos primitivos e bárbaros, e as religiões universalistas dos profetas que desfazem os laços místicos (no sentido que ele dá à palavra) da sociedade fechada, dos grupos e associações exclusivos da vida de comunidade; ambas se preocupam muito com valores imediatistas: saúde, longa vida, riqueza. Em um certo sentido da palavra, a religião não é em si irracional. O puritanismo, a apologética e o casuísmo são altamente racionais. Sendo assim, segue-se que as doutrinas podem criar uma ética propícia a desenvolvimentos seculares: as seitas protestantes e a ascensão do capitalismo ocidental são um exemplo. Mas ela está em tensão referentemente à racionalidade secular, que lentamente a despoja de uma esfera após a outra - lei, política, economia e ciência - de forma que isto leva, como na frase de Friedrich Schiller, ao "desencantamento do mundo". Num outro sentido, portanto,, a religião é não racional, mesmo em suas formas racionalizadas; e embora Max Weber a encarasse como um refúgio contra a completa destruição da personalidade pelos caminhos inevitáveis da vida moderna, não lhe foi possível, a ele, abrigar-se: é, antes, necessário aceitar o aprisionamento numa sociedade terrível e estar preparado para ser uma peça da máquina, privando-se a pessoa de tudo o que significa ser um indivíduo, que tem relações pessoais com outros. Mas, embora as coisas estejam se movendo nesta direção, a religião ainda desempenha um importante papel na vida social e cabe ao sociólogo elucidá-lo, não apenas nas sociedades racionalizadas da Europa Ocidental, mas também nos períodos iniciais da história e em outras partes do mundo, demonstrando como, em diferentes sociedades, diferentes tipos de religião formaram e (foram formados por) outras áreas da

162 vida social. Em suma, temos de nos perguntar qual o papel do não-racional na vida social, e que papéis foram e são desempenhados nesta vida pelo racional, pelo tradicional, pelo carismático. Ele faz as mesmas perguntas que Pareto e Bérgson. Tais, portanto, são as questões. (Não vou dar mais exemplos). Serão as respostas a elas mais satisfatórias do que aquelas que estivemos considerando nas conferências iniciais? Acho que não. Elas são muito vagas, muito gerais e um tanto fáceis demais e têm um forte sabor pragmatista. A religião ajuda a preservar a coesão social, dá confiança aos homens, etc. Mas será que tais explicações não nos estariam levando longe demais? E se são verdadeiras, o que ainda tem que ser provado, como saber de que maneira e em que graus a religião tem estes efeitos? Minha resposta à

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questão que levanto tem que se fazer no sentido de que eu penso que, embora o problema seja real, por mais amplo que seja, as respostas possíveis não são convincentes. Seria melhor realizar algumas pesquisas no assunto. O estudo comparativo da religião está mal representado em nossas universidades e os dados que se tomam como a ele pertencentes, derivam quase que inteiramente de livros - textos sagrados, escritos teológicos, exegética; escritos místicos e tudo o mais. Mas para o antropólogo e o sociólogo esta é talvez a parte mais insignificante da religião, principalmente quando nos lembramos de que os eruditos que escrevem livros sobre as religiões históricas às vezes nem sequer estão seguros de qual o significado que certas palavras-chave tinham para os autores dos textos originais. As reconstruções e interpretações filológicas destas palavras-chave são freqüentemente contraditórias, pouco convincentes, como é o caso da palavra "deus". O estudioso de uma religião antiga ou de qualquer religião em suas fases iniciais não tem como examiná-la

163 senão através de textos, pois o povo em questão não pode mais ser consultado. Podem resultar daí graves distorções, como quando se diz que o Budismo e o Jainismo são religiões ateísticas. Não há dúvida de que podem ter sido consideradas como sistemas filosóficos e psicológicos, pelos autores dos sistemas mesmos, mas o que não sabemos é se assim as considerava o povo comum; e é o povo comum que interessa basicamente ao antropólogo. Para ele o que interessa saber é como as crenças e práticas religiosas afetam as mentes em qualquer sociedade, como afetam os sentimentos, as vidas e as inter-relações entre os membros da sociedade. Existem poucos livros que descrevam e analisem de modo adequado o papel da religião em qualquer comunidade hindu, budista, muçulmana ou cristã. Para o antropólogo social, a religião é o que a religião faz. Devo acrescentar que tais estudos entre os povos primitivos foram poucos e raros. Tanto nas sociedades civilizadas como nas primitivas, se encontra nesta área um campo de pesquisa praticamente inexplorado. Mais ainda, a religião comparada deve ser digna desse nome por procurar pontos de relação, se quer esperar algum resultado do trabalho. Se a comparação deve se interromper ao nível simples da descrição (o cristão pensa isto, o muçulmano pensa aquilo, o hindu pensa aquilo outro), ou, mesmo se ela vai um pouco adiante e classifica, apenas (Zoroastrismo, Judaísmo e Islamismo são religiões proféticas, Hinduísmo e Budismo são religiões místicas, ou ainda, certas religiões aceitam o mundo enquanto que outras o recusam) continuaremos longe de uma compreensão das semelhanças e diferenças. Os monistas indianos, os budistas, os maniqueus, podem ter pontos em comum, nisto de que desejam a liberação do corpo e o desligamento do mundo dos sentidos, mas o que deveríamos perguntar é se este elemento comum está relacionado a outros fatos sociais;

164 Uma tentativa deste tipo foi feita por Weber and Tawney, que relacionaram certos ensinamentos protestantes a certas modificações econômicas1. Longe de mim a intenção de minimizar o valor de estudiosos da religião comparada, pois, como demonstrei nas conferências iniciais, nós antropólogos não fizemos muitos progressos no tipo de estudos em que se procuram relações e que acredito sejam os necessários e os únicos que nos podem conduzir a uma vigorosa sociologia da religião. Para concluir, devo confessar que não encontro, no conjunto das diferentes teorias que revisamos, quer em cada uma delas isoladamente quer no todo, muito mais do que simples especulações do senso-comum, o que, na maioria das vezes, erra o alvo. Se nos perguntamos, como naturalmente fazemos, se elas exercem alguma influência sobre a nossa própria experiência religiosa, como por exemplo, se elas tornam mais significativas para nós palavras como "Paz vos deixo, minha paz vos dou", suponho que a resposta deve ser que a influência é pequena, e isto nos deve deixar céticos acerca do valor que acaso

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tenham enquanto explicação das religiões primitivas. E os primitivos não podem se aplicar o mesmo teste... Tudo se deve ao fato de que, conto já mencionei antes, os autores estavam procurando as explicações em termos de origens e essências, em vez de relações; e acho que isto derivou de suas suposições de que as almas e espíritos e deuses da religião são irreais. Se forem considerados como simples ilusões, então alguma teoria (biológica, psicológica ou sociológica) sobre o fato de em todas as partes e tempos os homens terem sido suficientemente estúpidos para acreditarem neles, deveria surgir. Quem aceita a realidade do ser espiritual não sente a 1 M. Weber, THE PROTESTANT ETHIC AND THE SPIRIT OF CAPITALISM, 1939; R. H. Tawney, RELIGION AND THE RIS£ OF CAPITALISM, 1944.

165 mesma necessidade de tais explicações, pois, por mais inadequados que os conceitos de alma e Deus possam ser entre os povos primitivos, eles não são, para tais povos, uma simples ilusão. Enquanto consideramos o estudo da religião. como fator na vida social, pode importar pouco a diferença entre um antropólogo crente ou ateu, desde que em ambos os casos ela deve se restringir apenas àquilo que pode observar. Mas se desejarmos ir além disso, é preciso que cada um siga caminho diferente do outro. O ateu procura alguma teoria - biológica, psicológica ou sociológica - que explique a ilusão; o crente procurará compreender a maneira pela qual um povo concebe uma realidade e suas relações com ela. Para ambos, a religião é uma parte da vida social, mas para o crente, tem também outra dimensão. Aqui eu me encontro de acordo com Schmidt, na sua refutação de Renan: "Se a religião é essencialmente da vida interior segue-se que só pode ser realmente alcançada "de dentro". Mas sem dúvida isto pode ser conseguido por alguém em cuja consciência interior uma experiência da religião desempenha algum papel. Há muito perigo de que o outro (o incréu) venha a falar de religião como um cego falando de cores ou um surdo de uma bela composição musical”1. Nestas conferências eu vos fiz uma revisão de algumas das principais tentativas antigas de explicar as religiões. primitivas e pedi que nenhuma fosse aceita como totalmente satisfatória. E parece que vamos sair pela mesma porta por onde entramos. Mas não quero que pensem que tanto trabalho tenha resultado inútil. Se somos agora capazes de visualizar os erros nestas teorias que tentaram explicar as religiões primitivas, é porque elas foram expostas e convidaram a uma análise lógica de seus conteúdos 1 W. Schmidt, THE ORIGIN AND GROWTH OF RELIGION, 1931, p. 6.

166 em contraste com fatos etnológicos registrados e pesquisas de campo. O progresso neste departamento da antropologia social nos últimos quarenta anos, mais ou menos, pode se avaliar pelo fato de que à luz do conhecimento que hoje possuímos, podemos identificar as impropriedades de teorias que durante algum tempo mereceram crédito; mas talvez nunca tivéssemos chegado a este conhecimento sem o trabalho dos pioneiros cujos escritos estivemos revendo.

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180 INDICE REMISSIVO A Aborígenes australianos, 83-97, 142, 148. Agostinho, Sto, 13. Animismo, 15-16, 25, 36, 41-44, 48- 50, 61, 78-79, 142, 145-146. Aptorphe, R., 155. Aristóteles, 73, 158. Atkinson, J. J., 64, 169. Avebury, Lord, 141, 148, 150, 169. B Bachoten, J. J., 150. Baker, Sir Samuel, 18, 169. Baraka, 25. Beattie, John, 129, 169. Bergson, Henri, 11, 29, 128-129, 158-162, 169. Beuchat, M. H., 98-99. Brosses, Ch. R. de, 35. Bruxaria, 14, 153. Bukharin, Nikolai, 108, 169. C

CapeN, A., 152-153, 169. Clodd, Edward, 30, 169. Comte, Auguste, 12, 35, 41, 45, 92, 111, 169. Condorcei, M. J. A. N. Marquês de, 46, 72. Cook, A. B., 102. Cook, S. A., 140. Coulanges, Foustel de, 74-75, 78, 133, 169. Crawley, A. E., 22, 55-57, 59, 135, 139-140, 169. D Darwin, Charles Robert, 12, 147, 169. Deus, uma pessoa, 50-51. Dorman, Rushtom M., 48, 148, 169. Driberg, J. H., 61, 169. Durkheim, E., 11, 14, 29, 52, 54, 58, 69, 75, 77-100, 103, 106-113, 117, 131, 139, 141, 152, 170. Engels, Friedrich, 12. Escola do mito natural, 35-39, 78,

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145. Esquimós, 27, 142, 148. Evolucionismo, 16, 47, 49, 58, 77, 149. F Farror, Padre F. W., 147, 171. Ferguson, Adam, 150.

Fetichismo, 25, 35, 40, 48, 142, 145. Fiji, 20. Firth, Raymond, 61, 152, 171. Frazer, Sir James, 12, 14, 29-30, 44-47, 49-50, 59, 61, 82, 121, 125, 131, 135, 139, 149-150, 171. Freud, Sigmund, 12, 29, 62-65,77, 82, 131, 171.

181

G Galton. Francis, 147, 171. Goldenweiser, Alexander A., 26, 60, 96, 171. H Harrison, Jane Ellen, 87, 102-103, 171. Hartland, E. Sidney, 148, 172. Hertz, Robert, 101, 107, 172. Hocart, A. M., 20, 79, 152, 172. Hubert, H., 14, 52, 100, 173. Hume, David,.143, 158, 173. I índios Crow, 58. J James, William, 59-71, 129, 173. Jevons, F. B., 17, 45-46, 74-76, 82, 173. K King, John H., 30, 45, 49-50, 52, 73, 139, 173. L Lang, Andrew, 25, 31, 39, 50-51, 64, 74, 139, 143, 148, 173. Lehman, F. R., 153, 174. Lévy-Bruhl, Lucien, 14, 21, 23, 29, 33, 46, 107, 109, 111-132, 135138, 150, 158, 160-161, 174. Lienhardt, Godfrey, 156, 174. Lowie, Robert H., 58, 66, 95, 174. Lubbock, John, vela em Avebury. M Magia, 14, 20, 43-50, 53-54, 56, 58-63, 68, 72, 82, 100, 103; 143144, 152-153, 159, 162.

Maine, Sir Henry Summer, 74, 150, 175. Malinowski, Bronislaw, 22, 29, 6061, 71, 131, 175. Mana, 25, 49, 52, 85-86, 102-103, 145, 152. Marett, R. R., 29, 45, 50-55, 57, 60, 82, 96, 131, 139, 150, 152, 175. Marx, Karl, 12, 109. Mauss, M., 14, 52, 98, 101, 107, 175. McLennan, J. F., 75, 82, 84, 175. Middleton, John, 156, 175. Mofrat, R., 148, 175. Monoteísmo, 16, 51, 74, 108, 143146, 154. Montesquieu, M. De Secondat, Baron de, 72, 175. Morgan, Lewis Henry, 150-151. Müller, F. Max, 12-13, 25, 36-39, 73, 139-141, 146, 175. Murray, Gilbert, 102. N Nilotas, religião dos, 18. P Pareto, Vilfredo, 111, 129-138, 157158, 161, 176. Pettazzoni, Raffaele, 73, 144, 176. Politeísmo, 16, 74, 108, 143-146. Positivismo, 16, 128-129. Pré-animismo, 25, 35, 55, 146. Preuss, K. T., 45, 50, 52, 77, 176. R Radcliffe-Brown, A. R., 104-105, 176. Radin, Paul, 59-60, 68, 145, 176. Read, Carveth, 61, 71, 176.

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182 Reinach, Salomon, 75, 176. ReseK, Carl, 151, 177. Renan, Ernest, 166. Sacrifício, 40, 76-78, 100-103. S Saint-Simon, C. H. De R., Comte de, 92. Schleiter, Frederick, 65, 145, 177. Schmidt, Wilhelm, 15, 49-50, 74, 142-144, 166, 177. Seligman, C. G. e B. Z., 48, 52, 151, 177. Smith, W. Robertson, 64, 74-78, 81, 177. Snaith, Norman, H., 43, 177. Sonhos, 39, 41, 49-51, 55, 72, 79. Spencer, Herbert, 11, 25, 39-42, 44, 56, 73, 104, 133, 141, 145, 177. Swanton, John R., 42, 177. T Tabú, 14, 25, 52, 56. Tanzi, E., 65. Tawney, R. H., 165, 177. Tempels, R. P. Placide, 156, 178. Teoria da alma, 35, 40-44, 50-51, 55-57. Teoria do fantasma, 35, 39-41, 50 -51, 55-56, 144-145. Theuws, Th., 156, 178. Thurnwald, R., 61, 178. Totemismo, 14-17, 25-26, 48, 58, 72, 76, 79, 81-96, 102, 104-105, 141-142, 144-145.

Tradução, problema da, 19-21, 2529. Trotter, W., 97-98, 178. Turner, V. W., 156, 178. Tylor, Edward B., 14, 18-19, 29, 39, 41-44, 46-50, 53, 55, 61, 84, 87, 96, 121, 131, 133, 139, 141, 148, 178. V Van Der Leeuw, G., 62, 178. Van Gennep, Arnold, 96, 178. Vierkandt, A.. 53. W Webb, Clement C. J., 112, 179. Weber, Max, 34, 129, 161-162, 165, 179. Wheeler, Geraldo C., 94, 179. White, C. M. N., 155. Wundt, Wilheim, 57-58, 82, 84. V Van Der Leeuw, G., 62, 178. Van Gennep, Arnold, 96, 178. Vierkandt, A.. 53. W Webb, Clement C. J., 112, 179. Weber, Max, 34, 129, 161-162, 165, 179. Wheeler, Geraldo C., 94, 179. White, C. M. N., 155. Wundt, Wilheim, 57-58, 82, 84.

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Este livro foi composto na COMPOSITORA HELVÉTICA LTDA.,

à Rua Correia Vasques, 25, RJ e impresso nas oficinas gráficas da EDITORA VOZES LTDA.,

à Rua Frei Luís, 100, Petrópolis.

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Theuws, Th., 156, 178. Thurnwald, R., 61, 178. Totemismo, 1426, 48, 58, 72, 76, 79, 81104-105, 141Tradução, problema da, 19Trotter, W., 97W., 156, 178. Tylor, Edward B., 14, 18-19, 29, 39, 4161, 84, 87, 96, 121, 131, 133, 139, 141, 148, 178.

V

Van Der Leeuw, G., 62, 1Gennep, Arnold, 96, 178. Vierkandt, A.. 53.

W

Webb, Clement C. J., 112, 179. Weber, Max, 34, 129, 161179. Wheeler, Geraldo C., 94, 179. White, C. M. N., 155.Wundt, Wilheim, 57

Teoria do fantasma, 35, 3955-

Teoria do fantasma, 35, 3955-

Theuws, Th., 156, 178. Thurnwald, R., 61, 178. Totemismo, 1426, 48, 58, 72, 76, 79, 81104-105, 141Tradução, probTrotter, W., 97W., 156, 178. Tylor, Edward B., 14, 18-19, 29, 39, 4161, 84, 87, 96, 121, 131, 133, 139, 141, 148, 178.

V

Van Der Leeuw, G., 62, 178. Van Gennep, Arnold, 96, 178. Vierkandt, A..

W

Webb, Clement C. J., 112, 179. Weber, Max, 34, 129, 161179. Wheeler, Geraldo C., 94, 179. White, C. M. N., 155.Wundt, Wilheim, 57

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Antropologia Social da Religião, por Evans-Pritchard, um dos valores máximos da antropologia social britânica, aborda várias teorias sobre a religião primitiva e, por extensão, sobre a religião em geral. Este texto torna-se assim especialmente útil não só para estudantes e profissionais de ciências humanas e sociais, teologia e teoria das religiões, mas também a todos aqueles que se interessam em compreender outras formas de pensamento além daquela de nossa cultura ocidental. Numa discussão que abrange de Freud a a Durkheim, Bérgson a Malinowski, Frazer a Lévy-Bruhl (este último sofrendo um exame crítico detalhado) o autor examina e questiona estas teorias, inscrevendo-as numa antropologia do conhecimento e analisando os preconceitos que ainda hoje fundamentam o senso comum, mais ou menos culto, no que se refere à religião.