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ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE N° 41
Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil- CFOAB
Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional
Relator: Ministro Roberto Barroso
Constitucional. Lei n° 12.990/14 que institui reserva de 20% (vinte por cento) do total das vagas oferecidas em concursos públicos federais em favor de candidatos negros. Conformidade da lei sob invectiva com os princípios constitucionais da isonomia e da proporcionalidade, bem como com o postulado do Estado Democrático de Direito. A medida de ação afirmativa implementada pelo ato questionado destina-se a reduzir as desigualdades fáticas havidas entre os candidatos que competem para ingressar nos quadros de pessoal da Administração Pública federal. Mecanismo de inclusão de grupos sociais fàticamente excluídos do serviço público, cuja adoção não é apenas permitida. mas exigida pelo princípio da isonomia, previsto pelo artigo 5°, caput, da Constituição da República. Manifestação pelo deferimento do pedido formulado pelo requerente.
Egrégio Supremo Tribunal Federal,
O Advogado-Geral da União, tendo em vista despacho proferido
pelo Ministro Relator Roberto Barroso, vem, respeitosamente, manifestar-se
quanto à presente ação declaratória de constitucionalidade.
I - DA AÇÃO DECLARATÓRIA
Trata-se de ação declaratória de constitucionalidade, com pedido de
liminar, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
CFOAB, tendo por objeto a Lei n° 12.990, de 09 de junho de 2014, que "reserva
aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos
para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da
administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das
empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. ".
Eis o teor do diploma impugnado:
"Art. 10 Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, naforma desta Lei.
§ 10 A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igualou superior a 3 (três).
§ r Na hipótese de quantitativo fracionado para o nlÍmero de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual 0/1 maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos).
§ 30 A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido.
Art. r Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam
ADC n° 41, Rei. Min. Roberto Barroso. 2
assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuí::.o de outras sanções cabíveis.
Art. 3° Os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.
§ 10 Os candidatos negros aprovados dentro do nlÍmero de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para f!feito do preenchimento das vagas reservadas.
§ ]O Em caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente class~ficado.
§ 3° Na hipótese de não haver número de candidatos negros aprovados suficiente para ocupar as vagas reservadas, as vagas remanescentes serão revertidas para a ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação.
Art. 4° A nomeação dos candidatos aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros.
Art. 5° O órgão responsável pela política de promoção da igualdade étnica de que trata o § 1°do art. 49 da Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010, será responsável pelo acompanhamento e avaliação anual do disposto nesta Lei, nos moldes previstos no art. 59 da Lei n° 12.288, de 20 dejulho de 2010.
Art. 6° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação e terá vigência pelo prazo de 10 (dez) anos.
Parágrafo único. Esta Lei não se aplicará aos concursos cujos editais já tiverem sido publicados antes de sua entrada em vigor."
Inicialmente, o autor sustenta o cabimento da presente açao
declaratória com fundamento na controvérsia judicial sobre a validade dos
dispositivos legais em exame, a qual teria sido instaurada em diversas jurisdições
do País, a exemplo da decisão proferida pela 83 Vara do Trabalho de João Pessoa
do Tribunal Regional do Trabalho da 133 Região, nos autos da Reclamação
Trabalhista Ordinária n° 0131622-23.2015.5.13.0025, que declarou
incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei n° 12.990/14.
ADC nU 41. Rei. Min. Roberto Barroso. 3
Assevera que a Lei n° 12.990/14 foi editada com o objetivo de criar
ações afirmativas de combate à desigualdade racial, proporcionando uma maior
representatividade aos negros e pardos no serviço público federal. Nessa linha,
afirma que "a exposição de motivos anexada ao projeto de lei proposto pelo
Executivo (PL 6.738/2013) apresenta como justificativa da reserva de vagas a
adoção de política afirmativa para ~fetivar a igualdade de oportunidades entre
negros e brancos no país, garantindo que os quadros do Poder Executivo reflitam
a realidade da população brasileira." (fi. 15 da petição inicial).
Assim, o requerente conclui que a adoção de reserva de vagas nos
concursos públicos coaduna-se com o disposto no artigo 3°, incisos I, lI, IH e IV,
da Constituição Federal l , bem como com o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n°
12.288/10) e com a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial, promulgada pelo Decreto n° 65.810/1969.
o autor menCIOna, ainda, a decisão proferida por esse Supremo
Tribunal Federal, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nO 186, na qual essa Corte Suprema teria declarado a
constitucionalidade do sistema de cotas instituído pela Universidade de Brasília
(UnB), ao argumento de que a política de adoção de cotas para negros serviria à
correção das distorções sociais historicamente consolidadas, estando em
consonância com os valores e princípios da Constituição Federal.
Alega que o diploma questionado, ao estabelecer a reserva de 20%
(vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos a candidatos negros,
J "Art. 3° Constituem objetivosfundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; 11 - garantir o desenvolvimento nacional; 111 - erradicar a pobre::a e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem. raça. sexo. cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. ..
ADC nO 41. ReI. Min. Roberto Barroso. 4
realizaria o princípio da igualdade material, na medida em que "a discriminação
racial não está apenas no campo da educação, mas também do trabalho, razão
pela qual os autores chave que mediam o processo de inclusão do negro na
sociedade são: o sistema escolar, o Estado e o mercado de trabalho" (fi. 19 da
petição inicial).
o requerente defende, ademais, a utilização do critério da
autodeclaração pela Lei nO 12.990/14, considerando que as cotas raciais teriam
finalidade sociocultural, que visam a combater a discriminação racial e a baixa
representatividade do negro em entidades de serviço público federal. Alega que a
utilização de critério objetivo de classificação racial seria possível, apenas, no
campo científico, ressaltando que a discriminação racial seria "uma realidade
sociocultural, a qual se distingue completamente da realidade biológica" (11. 22
da petição inicial).
Diante disso, o autor requer a concessão de medida cautelar para o
fim de suspender processos judiciais que envolvam a aplicação da Lei n°
12.990/14 e, no mérito, a procedência do pedido para que seja declarada a
constitucionalidade da Lei n° 12.990/14.
o processo foi despachado pelo Ministro Relator Roberto Barroso,
que, nos termos do artigo 12 da Lei n° 9.868/99, solicitou informações às
autoridades requeridas, bem como determinou a oitiva do Advogado-Geral da
União e do Procurador-Geral da República.
Em atendimento à solicitação, o Congresso Nacional defendeu a
constitucionalidade formal e material da lei impugnada, tendo afirmado que a lei
questionada teria por objetivo amenizar as discrepâncias existentes quanto às
oportunidades de trabalho que vinham sendo proporcionadas a grupos menos
ADC n° 41, Ret. Min. Roberto Barroso. 5
favorecidos da sociedade brasileira, em atenção aos objetivos fundamentais da
República expressos no artigo 3° do Texto Constitucional.
Afirmou, ainda, que a Lei n° 12.990/14 teria decorrido da maturação
de políticas públicas que, gradativamente, foram se consolidando após a
Constituição Federal de 1988, a partir de um perfil de valorização e de validação
de ações afirmativas de distinção política reparatória.
o requerido ressaltou, também, que o artigo 6° da Lei n° 12.990/14
fixaria prazo de 10 (dez) anos para a sua vigência, evidenciando o caráter
temporário da lei atacada.
Por fim, mencionou que a autodec1aração seria o critério que '"melhor
atende ao apanágio de respeito à dignidade da pessoa humana, presente no caput,
bem como nos incisos 111 e X; do art. 5° da Constituição, sem olvidar da
responsabilidade decorrente da falsa declaração." (fi. 23 das informações
prestadas).
Por igual, a Presidente da República sustentou a constitucionalidade
da Lei n° 12.990/14, salientando que a ação afirmativa prevista no referido
diploma normativo estaria voltada à máxima realização dos direitos fundamentais
da igualdade, em sua dimensão material, da liberdade e da dignidade da pessoa
humana, bem como do princípio da justiça social (artigos 10, inciso IH; 3°, incisos
I, 111 e IV; 5°; 6°; 7° e 170, incisos VII e VIII, da Constituição2).
2 "Art. ]O A República Federativa do Brasil. formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem comofillldamentos: ( ... ) III - a dignidade da pessoa humana;"
"Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (. .. ) III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
ADC nO 41. Rei. Min. Roberto Barroso. 6
Alegou que a correção das desigualdades entre negros e brancos, por
melO da instituição de políticas públicas, constitui dever do Estado, "um
verdadeiro imperativo decorrente da consagração da dimensão material do
princípio da igualdade" (fi. 11 das informações presidenciais).
Asseverou que a autodeclaração seria o critério maIS utilizado nos
processos de classificação racial no Brasil, cuja constitucionalidade fora
reconhecida no julgamento da Arguição de Descumprimento Fundamental n° 186.
Mencionou, ainda, que a lei impugnada não vedaria a existência de comissões e
instrumentos de verificação das autodeclarações, de modo que seria possível
utilizar, conjuntamente, os demais critérios explicitados no referido julgado desse
Supremo Tribunal Federal.
o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental - IARA e o
EDUCAFRO - Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes
requereram o ingresso no feito na qualidade de amicus curiae.
Na sequência, VIeram os autos para manifestação do Advogado
Geral da União.
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem. raça. sexo. cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. "
"Art. 5° Todos são iguais perante a lei. sem distinção de qualquer natureza. garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida. à liberdade. à igualdade, à segurança e à propriedade. nos termos seguintes: (... )
Art. 6° São direitos sociais a educação, a saúde. a alimentação, o trabalho, a moradia, o tramporte, o lazer. a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, naforma desta Constituiçào.
Ar/. 7" Sào direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (00')"
"Art. 170. A ordem econômica. fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciatim, tem por fim assegurar a todos existência digna. conforme os ditames da justiça social. observados os seguintes princípios: (00' ) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; "
ADC n () 41. ReI. Min. Roberto Barroso. 7
83
11 - DO MÉRITO
Conforme relatado, o autor pretende a declaração da
constitucionalidade da Lei n° 12.990/14, no intuito de solucionar controvérsia
judicial gerada por decisões judiciais que declararam a incompatibilidade da
reserva de vagas para negros em concursos públicos com a Carta Republicana de
1988.
A petição inicial está acompanhada de julgados do Poder Judiciário,
dentre os quais o requerente destaca as decisões proferidas pelo Tribunal de
Justiça de Santa Catarina nos autos do Mandado de Segurança n° 216457 e pela
Vara do Trabalho de João Pessoa nos autos da Reclamação Trabalhista
Ordinária n° 0131622-23.2015.5.13.0025, que apresentam as seguintes ementas,
respectivamente:
"ADMINISTRATIVO - CONCURSO PÚBLICO - RESERVA DE VAGAS - LEI COMPLEMENTAR N. 32/3004 DO MUNICÍPIO DE CRICIÚMA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL RECONHECIDA PELO TRIBUNAL PLENO - SEGURANÇA MANTIDA Declarada, incidentalmente, a inconstitucionalidade do caput e parágrafo único do art. 50 da Lei Complementar n. 32/2004 do Município de Criciúma pelo Tribunal Pleno desta Corte de Justiça, que prevêem a reserva de vagas em concursos públicos a afro-brasileiros. há que se reconhecer o descabimento das regras contidas em edital de certame no mesmo sentido. " (TJSC, Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2005.021645-7, de Criciúma, Relator: Desembargador Luiz Cézar Medeiros, Julgamento em 28/04/2009);
"COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO, CONCURSO PÚBLICO. FASE PRÉ-CONTRA TUAL. ART. 144, 1, DA CRFB. A competência da Justiça do Trabalho é ampla. contemplando. inclusive. controvérsias ocorridas na fase pré-contratual. ou seja. as tratativas prévias e necessárias ao aperfeiçoamento da relação de trabalho, como o concurso público, notadamente quando a fittura contratação será regida pela CLT. CONSTITUCIONAL. COTA RACIAL. LEI N. o 12.990/2014. INCONSTITUCIONALIDADE. CONTROLE DIFUSO,
ADC nU 41, ReI. Min. Roberto Barroso. 8
DISTINGUISHING. ADPF N. ° 186. A reserva de vagas para negros, prevista na Lei n. ° 12.990/2014, é inconstitucional, por violar os arts. 3~ IV, 5°, caput, e 37, caput e Il, da Constituição Federal, além de contrariar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Além disso, envolve valores e aspectos que não foram debatidos pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADPF n. ° 186, que tratou da constitucionalidade da política de acesso às universidades públicas pautada no princípio da diversidade, com o propósito de enriquecer o processo de formação e disseminação do conhecimento. ". (TRT 13a Região, Reclamação Trabalhista Ordinária n° 013162223.2015.5.13.0025, 8a Vara do Trabalho de João Pessoa, Julgamento em 18/0112016).
A pretensão veiculada pelo autor merece acolhida, uma vez que está
em consonância com o entendimento adotado pela jurisprudência desse Supremo
Tribunal Federal.
Com efeito, a medida de ação afirmativa implementada pelo ato
questionado destina-se a reduzir as desigualdades fáticas havidas entre os
candidatos que competem para ingressar nos quadros de pessoal da Administração
Pública federal. Constitui, portanto, mecanismo de inclusão de grupos sociais
faticamente excluídos do serviço público, cuja adoção não é apenas permitida,
mas exigida pelo princípio da isonomia, previsto pelo artigo 5°, caput, da
Constituição da República.
De fato, a adequada identificação do conteúdo assumido pelo
princípio da isonomia na sistemática constitucional vigente depende de sua devida
contextualização, à vista, especialmente, do postulado do Estado Democrático de
Direito, contemplado pelo artigo 1°, caput, da Constituição da República.
Note-se, a respeito, que diversamente da concepção prevalecente
durante a Antiguidade e a Idade Média (períodos em que o termo "igualdade" era
tomado, prioritariamente, como "igualdade geométrica", a traduzir um
mecanismo de exclusão social, uma vez que servia para justificar a concessão de
ADC n° 41. Rei. Min. Roberto Barroso. 9
tratamento privilegiado aos homens considerados virtuosos3), o postulado do
Estado Democrático do Direito, adotado pela Constituição de 1988,
compatibiliza-se, tão somente, com um conceito inclusivo de igualdade, ou seja,
com a "igualdade aritmética", que confere a todas as pessoas idêntica importância.
Confira-se, nesse sentido, o entendimento de Marcelo Campos Galuppo4:
"A partir de Kant, quer dizer, com a sociedade contemporânea, tornase impossivel pensar uma igualdade geométrica na organização social moderna e contemporânea. Ao contrário, a civilização ocidental se pauta, na sua organização político-juridica, preponderantemente, pela igualdade aritmética, pela igualdade como mecanismo de inclusão social, capaz de permitir o pluralismo de projetos."
Com efeito, o Estado Democrático de Direito caracteriza-se por
pretender viabilizar a convivência entre os diversos projetos de vida que os
indivíduos possuem em uma sociedade pluralista, permitindo-lhes que concorram
em igualdade de condições para sua realização. Destina-se, portanto, a possibilitar
a todas as pessoas igual participação nos discursos jurídicos, de modo que "(...) o
direito que regula nossa própria vida é legítimo porque criado por nós"s. Revela
se, a partir daí, a importância da igualdade aritmética como fundamento de
legitimidade do próprio Estado Democrático de Direito.
Vê-se, pois, que apenas a igualdade aritmética (a qual atribui a todos
os seres humanos o mesmo valor6) coaduna-se com o Estado Democrático de
Direito, que pretende conferir-lhes igual participação na formação da vontade
3 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 48-49.
4 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 99.
5 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 205.
6 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 98.
ADC n° 41. ReI. Min. Roberto Barroso. la
estatal. Consequentemente, a concepção de igualdade apta a legitimar o Direito
produzido sob tal forma de Estado deve corresponder a "(...) um procedimento de
inclusão formal e material nos discursos de just(ficação e aplicação das normas
( ... )"7, em que "(.,.) cada vez que um número maior de cidadãos for incluído em
discursos jurídicos, estaremos criando igualdade, e não desigualdade"8,
Nota-se, destarte, que a adoção do princípio da igualdade não
significa que os indivíduos devam ser tratados de modo idêntico em toda e
qualquer situação; pelo contrário, a realização da igualdade impõe, em
determinados casos, a submissão dos sujeitos desiguais a tratamentos jurídicos
diversos (a exemplo do que ocorre com as chamadas ações afirmativas).
De fato, a discriminação jurídica pode contribuir para a efetivação da
igualdade, o que se verifica "(...) toda vez que ela implicar maior inclusão dos
cidadãos nos procedimentos públicos de justificação e aplicação das normas
jurídicas e de gozo dos bens e políticas públicas"9,
Ressalte-se que a linha de argumentação ora esposada, que
compreende o princípio da igualdade como mecanismo de inclusão, encontra
respaldo na jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, em conformidade com o entendimento construído por
essa Corte desde a promulgação da Constituição de 1988, a opção pelo Estado
Democrático de Direito significa a exigência de que os procedimentos decisórios
7 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 208.
8 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 213-214.
9 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 216.
ADC n° 41. ReI. Min. Roberto Barroso. ] ]
estabelecidos em seu âmbito, embora possam recorrer à regra da maioria, não
prescindem da efetiva participação das minorias. Neste sentido, o Ministro
Ricardo Lewandowski, Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3741,
ressalta a "(... ) necessidade vital, para a convivência democrática, da existência
de regras universais, oNetivas e transparentes, orientadoras de um embate
eleitoral isento de distorções, que permitam que todos os interessados dele
possam participar deformajusta e equilibrada" 10.
De modo semelhante, nos autos do Mandado de Segurança n° 24831,
o Ministro Relator Celso de Mello decidiu que, sob o regime democrático "(... )
não poderáiamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento,
de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição" I I .
Assume inquestionável relevo, pois, a efetiva proteção dos direitos e
garantias fundamentais assegurados pela Constituição, notadamente quando
relacionados à participação dos grupos minoritários na formação da vontade
democrática, a qual constitui fator de legitimação das deliberações efetuadas em
um Estado Democrático de Direito. Confira-se, nesse sentido, o seguinte excerto
do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, por ocasião do julgamento do
referido Mandado de Segurança n° 24831 :
"Na realidade, impõe-se, a todos os Poderes da República (e aos membros que os integram), o respeito incondicional aos valores que informam a declaração de direitos e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a própria organi=ação do Estado. Delineia-se, nesse contexto, a irrecusável importância juridicoinstitucional do Poder Judiciário, investido do gravíssimo encargo de fazer prevalecer a autoridade da Constituição e de preservar a força e o império das leis, impedindo, desse modo, que se subvertam as
10 ADI n° 374l!DF, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 06/08/2006, Publicação em 23/02/2007.
11 Excerto do voto proferido pelo Ministro Relator Celso de Mello nos autos do MS n° 2483l!DF, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 22/06/2005, Publicação em 04/08/2006.
ADC n Q 41, ReI. Min. Roberto Barroso. ]2
concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, em ordem a tornar essencialmente controláveis, por parte dos juí=es e Tribunais, os atos estatais que importem em transgressão a direitos, garantias e liberdades fundamentais assegurados pela Carta da República. (...) Em suma: a estrita observância dos direitos e garantias, notadamente quando se alegar, como se sustenta na espécie, transgres."ão ao estatuto constitucional das minorias parlamentares, traduz fator de legitimação da atividade estatal. "12 (grifou-se).
Como se vê, o Supremo Tribunal Federal reconhece que os direitos
fundamentais são (mais que limites) constitutivos do processo democrático, "(...)
conditio sine qua non da formação democrática da opinião e da vontade (...)",
conforme afirma Cattoni de Oliveira13, ao comentar a decisão ora examinada.
Dentre tais direitos, destaca-se o princípio da isonomia, cUJa
relevância para o Estado Democrático de Direito também é sublinhada pela
jurisprudência dessa Suprema Corte. A propósito, já restou afirmado, em decisão
por ela proferida, que, por meio do Estado Democrático de Direito, pretende-se
que todos os seres humanos, sem distinção de qualquer natureza, tenham os
mesmos direitos, razão pela qual a efetiva construção de um Estado sob tal
paradigma depende da superação das discriminações raciais 14.
Assim, se o Estado Democrático de Direito caracteriza-se, nos
termos da jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal, pela necessidade da
participação de todos os interessados nos processos de formação da opinião e da
vontade, justifica-se, sob sua égide, a adoção de políticas de ação afirmativa que
12 Excerto do voto proferido pelo Ministro Relator Celso de Mello nos autos do MS 24831 /DF, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 22/06/2005, Publicação em 04/08/2006.
13 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Minorias e democracia no Brasil. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, v. I, n. 4, p. 307 -322, 2006. p. 318.
14 HC nO 82424/RS, Relator: Ministro Moreira Alves, Relator p/ Acórdão: Ministro Maurício Corrêa, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 17/09/2003, Publicação em 19/03/2004.
ADC n° 41. ReI. Min. Roberto Barroso. 13
se traduzem na instituição de medidas de superioridade jurídica tendentes a
reparar ou a compensar situação de inferioridade fática a que certo grupo social
esteja submetido. O princípio da isonomia, concebido como critério de inclusão
no Estado Democrático de Direito, revela-se, então, como garantia do próprio
processo democrático.
Neste sentido, esse Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em
algumas ocasiões, a constitucionalidade da utilização de políticas de ação
afirmativa, a exemplo da instituição de reserva de vaga em concurso público para
candidato portador de deficiência física, conforme se depreende do seguinte
julgado:
"DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRA TIVo. RECURSO ORDINARIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA VISUAL. AMBLIOPIA. RESERVA DE VAGA. INCISO VIII DO ART 37 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. § r DO ART 5° DA LEI N° 8.112/90. LEI N° 7.853/89. DECRETOS N°S 3.298/99 E 5.296/2004. 1. O candidato com visão monocular padece de deficiência que impede a comparação entre os dois olhos para saber-se qual deles é o 'melhor '. 2. A visão univalente -- comprometedora das noções de profundidade e distância -- implica limitação superior à deficiência parcial que afete os dois olhos. 3. A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridadejurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988. 4. Recurso ordinário provido." (RMS n° 26071, Relator: Ministro Carlos Britto, Órgão Julgador: Primeira Turma, Julgamento em 1311112007, Publicação em 01/02/2008; grifou-se).
Também com fundamento na igualdade, ao apreCIar a Petição n°
3388, esse Supremo Tribunal Federal decidiu serem as ações afinnativas
mecanismos adequados à compensação das desvantagens historicamente
suportadas pelas chamadas minorias. Entendeu-se, em tal oportunidade, ser
possível a concessão de tratamento favorecido aos índios, por determinação
expressa da própria Constituição da República. Confira-se:
ADC n04J, ReI. Min. Roberto Barroso. 14
"Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o protovalor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os indios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguistica e cultural. "15
Do mesmo modo, no julgamento da Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental n° 186, esse Supremo Tribunal Federal reconheceu a
constitucionalidade de sistema de reserva de vagas instituído com base em critério
étnico-racial no processo de seleção para ingresso em instituição pública de ensino
superior. Confira-se, a propósito, a ementa da referida decisão:
"ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICORACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1~ CAPUT, III, 3°, IV, 4~ VIII, 5~ 1, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, 1, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇA-O FEDERAL. AÇA-O JULGADA IMPROCEDENTE. I - Não contraria - ao contrário, prestigia - o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5° da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. II - O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. III - Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das politicas de ação afirmativa. IV - Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso Pais, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua
15 Pet n° 3388, Relator: Ministro Carlos Britto, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 19/03/2009, Publicação em 25/09/2009.
ADC n° 41, ReI. Min. Roberto Barroso. 15
compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à lu::: do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro. V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, cOI?forme dispõe o art. 1~ V, da Constituição. VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, sign(fica distinguir, reconhecer e incOlporar à sociedade mais ampla valores culturais divers(ficados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes. VJI - No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação - é escusado di:::er - incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. VIJI - Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente. " (ADPF n° 186, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Órgào Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 26/0412012, Publicação em 20/1 0/2014; grifou-se).
Desta forma, percebe-se que a aplicação do princípio da isonomia,
conforme interpretado por esse Supremo Tribunal Federal, não importa concessão
de tratamento jurídico idêntico a todos os sujeitos, independentemente da situação
em que se encontrem. Pelo contrário, essa Corte Suprema reconhece a necessidade
de que sujeitos diversos sejam submetidos a tratamentos jurídicos díspares, nos
casos em que tal regramento diferenciado, consubstanciado em ações afirmativas,
concorra para a implementação da igualdade.
Com efeito, essa Corte Suprema examma a validade da medida
afirmativa adotada em cada caso concreto. De acordo com sua jurisprudência, o
tratamento diferenciado deve guardar compatibilidade com o conteúdo do
princípio da igualdade, ou seja, não se admite a utilização de critério de
ADC n° 41. ReI. Min. Roberto Barroso. 16
discriminação arbitrário, mas apenas aquele que se justifique à vista dos interesses
constitucionalmente assegurados. Veja-se:
"AÇA-O DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 77 DA LEI FEDERAL N. 9.504197. PROIBIÇA-O IMPOSTA AOS CANDIDATOS A CARGOS DO PODER EXECUTIVO REFERENTE A PARTICIPAÇÃO EM INAUGURAÇA-O DE OBRAS PÚBLICAS NOS TRÊS MESES QUE PRECEDEM O PLEITO ELETIVO. SUJEIÇÃO DO INFRATOR A CASSAÇA-O DO REGISTRO DA CANDIDATURA. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. ARTIGO 50, CAPUT E INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIOLAÇA-O DO DISPOSTO NO ARTIGO 14, § 9~ DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INOCORRÊNCIA. 1. A proibição veiculada pelo preceito atacado não consubstancia nova condição de elegibilidade. Precedentes. 2. O preceito inscrito no artigo 77 da Lei federal n. 9.504 visa a coibir abusos, conferindo igualdade de tratamento aos candidatos, sem afronta ao disposto no artigo 14, § 9~ da Constituição do Brasil. 3. A alegação de que o artigo impugnado violaria o princípio da isonomia improcede. A concreção do princípio da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais. O direito deve distinguir pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir tratamentos normativos diversos a pessoas e a situações que não sejam iguais. 4. Os atos normativos podem, sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações a fim de conferir a uma tratamento diverso do que atribui a outra. É necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente." (ADI n° 3305, Relator: Ministro Eros Grau, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 13/09/2006, Publicação em 24/11/2006; grifouse).
Com efeito, o fator de discriminação escolhido deve servIr para
reduzir ou extinguir a situação de desigualdade que se considera injusta, não
devendo concorrer para agravá-la.
Cumpre, então, averiguar se os negros (grupo social favorecido pelo
sistema de cotas instituído pelo ato hostilizado) estão, de fato, excluídos do
serviço público federal, ou seja, se possuem acesso mais restrito ou dificultado à
cargos e empregos públicos em relação aos que assim não se qualificam, a
justificar o tratamento jurídico diferenciado que lhes foi assegurado.
ADC n° 41, Rei. Min. Roberto Barroso. ]7
A tal respeito, merecem relevo as conclusões expostas pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, em estudo sobre reserva de vagas para
negros em concursos públicos 16, o qual revela a enorme desigualdade fática
existente, no Brasil, entre brancos e negros, inclusive no mercado de trabalho.
Confira-se:
"O racismo e seus reflexos na desigual distribuição de recursos é base estruturante das desigualdades no país. Embora o movimento social negro há muito tempo já denunciasse este estado de coisas, apenas recentemente instalaram-se e intens~ficaram-se instrumentos e políticas de promoção da igualdade racial no Brasil e o tema passou a conquistar progressiva relevância na agenda governamental. ( ...) Não obstante as melhorias verificadas para todos os grupos raciais, persiste intensa desigualdade quanto se comparam indicadores sociais de negros e brancos em diversas áreas. Tomando-se, por exemplo, a escolaridade, embora sejam evidentes os avanços conquistados nos últimos anos, a desigualdade racial permanece, ainda que tenha-se reduzido ao longo deste período. Para ilustrar, a média de anos de estudos da população negra passa de 65%, em 1992, para 81 % da taxa da população branca em 2012. A escolaridade média conquistada pelos negros em 2012 (7,1 anos), contudo, corresponde ao patamar que a população brancajá experimentava há mais de dez anos. Com efeito, estas desigualdades no campo educacional acabam por ter reflexos em outras esferas da vida social, como é o caso do mundo do trabalho. Os negros permanecem, nesta área, sobrerrepresentados entre os desempregados e, entre as posições mais desprotegidas e mais precárias. No entanto, cabe ressaltar que, mesmo equalizando a questão da escolaridade, via de regra, a população negra segue em desvantagem. Ainda que comparem trabalhadores com mais de 12 anos de estudo, o rendimento médio dos homens negros equivale a 66% daquele auferido por homens brancos com a mesma escolaridade. No caso das mulheres negras, com este mesmo nível educacional, percebem rendimentos equivalentes a apenas 40% do rendimento dos homens brancos (PNAD, 2012). Esta d~ferença explica-se pelo fato de que a segregação racial nos papéis relativos às carreiras, posição na ocupação, setor de atividade e nível hierárquico reflete-se na desigualdade salarial entre negros e brancos, mesmo entre aqueles com igual nível de escolaridade. Ademais, o racismo produz e reproduz estas diferenças e atua deforma direta neste quadro. (...)
16 SILVA, Tatiana Dias; SILVA, Josenilton Marques da. Nota Técnica; Reserva de vagas para negros em concursos públicos: uma análise a partir do Projeto de Lei 6.73812013. N° 17. Brasília: IPEA, 2014.
ADC n° 41, Rei. Min. Roberto Barroso. 18
opeso do racismo e da sua intervenção na conformação de pontos de partida, acesso desigual a ativos e tratamento social diferenciado também fica evidenciado na administração pública, apesar dos critérios considerados impessoais de seleção para cargos efetivos. Isto se justifica porque, assim como ocorre no ingresso no ensino superior, a despeito de critérios pretensamente neutros de seleção, resta evidente que não há iguais condições de formação e preparação dos candidatos, além de constatarem-se níveis de condição de vida mais precários vivenciados pela população negra. A tabela 1 mostra a distribuição dos ocupados desagregada por cor ou raça. A sub-representação da população negra é maior nas ocupações formais, com mais intensidade no funcionalismo público. A diferença torna-se ainda maior quando se analisa o "setor públicofedera1", no qual, frequentemente, as condições de trabalho, carreira e remuneração são ainda mais diferenciadas que nos demais níveis de atuação. (...) Entre os ocupados no setor público, a condição de funcionário público e militar é mais frequente para a população branca - acima de 60% destes, entre homens e mulheres, goza desse estatuto. Na população negra, a participação fica na casa dos 58% para ambos os sexos. No entanto, analisando-se apenas os ocupados no setor público, somente 7,5% das mulheres negras nesta condição estão no nível federal. Por sua ve.:-, um quarto dos homens brancos deste setor estão alocados no nÍvelfederal, que apresenta, via de regra, melhor nível de remuneração. Conquanto representem 45,3% dos funcionários públicos e militares e, 47,4% dos ocupados no setor público (tabela 1), os negros não estão distribuídos de forma equânime nem entre as diferentes esferas de poder e, muito menos, entre as diferentes carreiras, posições ou níveis de rendimentos. Com efeito, os rendimentos igualmente refletem a desigualdade racial, mesmo ao se considerar indivíduos atuantes no setor público e com a mesma escolaridade. Na mesma direção, a tabela 3 apresenta a distribuição por cor ou raça em ocupações selecionadas no setor público federal, conforme dados disponibilizados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (SlAPEj, do governo federal. (... ) Segundo estes dados, pode-se verificar que a presença da população negra é muito mais reduzida em carreiras mais valorizadas, especialmente as de nível superior, e que oferecem melhor remuneração." (grifou-se).
A partir do texto acima transcrito, percebe-se que, se a discussão
acerca da desigualdade entre negros e brancos pode, por vezes, parecer
indissolúvel, toda sua fluidez desaparece à vista dos dados estatísticos
apresentados.
ADC nU 41. Rei. Min. Roberto Barroso. 19
Com efeito, nota-se ser claro que, independentemente da inexistência
de um conceito preciso de raça, os negros têm sido excluídos do ensino e do
mercado de trabalho (concursos públicos) de modo sistemático. O tratamento
diferenciado, de fato, não deriva exclusivamente da condição socioeconômica dos
candidatos, como se os pobres brancos e os pobres negros encontrassem idênticos
obstáculos de acesso. Joaquim Benedito Barbosa Gomes 17, por exemplo, entende
que a exclusão dos negros também decorre de fatores que lhes são específicos.
Veja-se:
"(... ) a educação é precisamente um exemplo perfeito do divórcio entre lei e realidade, entre meras proclamações jurídicas e direitos efetivamente assegurados. (... ) Negros, portanto, estão excluídos desse sistema, em razão de injustos artificios criados pela própria lei. A injustiça se torna ainda mais intolerável em se tratando de ensino universitário."
No mesmo sentido, confira-se o seguinte excerto de julgado
proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro 18 :
"Os dados de que dispomos nos alertam para o fato de que os brancos pobres já contam com uma vantagem de escolaridade frente aos negros. Se abrirmos cotas para pobres, portanto, independentemente de sua cor, na verdade estaremos contribuindo para a reprodução ou até mesmo a intensificação da desigualdade dentro desse segmento dos pobres brasileiros."
Semelhante conclusão também restou expressa no maIS recente
estudo realizado pelo IBGE 19 a respeito do tema, por meio do qual se constatou
17 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Discriminação racial e princípio constitucional da igualdade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 36, n. 142, p. 307-323, abr./jun. 1999. p. 314-315.
18 RIO DE JANEIRO apud GALUPPO, Marcelo Campos, BASILE, Rafael Faria. O princípio jurídico da igualdade e a ação afirmativa étnico-racial no Estado Democrático de Direito: o problema das cotas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 43, n. 172, p. 99-108, out./dez. 2006. p. 104.
19 Instituto Brasileiro de Geografia c Estatistica. Síntese de indicadores sociais: uma anúlise das condições de vida da população brasileira 2008. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. p. 212-213.
ADC n° 41. ReI. Min. Roberto Barroso. 20
que os negros percebem rendimentos médios inferiores aos recebidos pelos
brancos, mesmo que possuam nível de escolaridade idêntico aos destes. Veja-se:
"As conseqüências destas desigualdades educacionais se refletem nas d(ferenças dos rendimentos médios percebidos por pretos e pardos em relação aos dos brancos, se apresentando sempre menores (em torno de 50%). As informações, contudo, mostram também como as diferenças de rendimentos não são apenas explicadas pelas desvantagens de escolaridade da população de cor ou raça preta e parda, quando considerados os rendimentos-hora de acordo com grupos de anos de estudo: em todos eles, sem exceção, os brancos aparecem favorecidos (Tabela 8.11). Comparando os rendimentos por cor ou raça dentro dos grupos com igual nível de escolaridade, consegue-se perceber a persistência do efeito racial, com o rendimento-hora dos brancos até 40% mais elevado que o de pretos e pardos, no grupo com 12 ou mais anos de estudo (Gráficos 8.4 e 8.5)." (grifou-se).
Trata-se de demonstração veemente da presença de discriminação
racial na sociedade brasileira, fato que não pode ser ignorado no presente caso e
que conduziu os arguidos a instituírem reserva de vagas em favor dos negros.
Assim, conclui-se pela viabilidade da criação de distinções jurídicas
baseadas em critérios étnico-raciais, com fundamento, inclusive, na
jurisprudência dessa Suprema Corte.
De fato, apesar de reconhecer a inexistência de raças do ponto de
vista genômico, esse Supremo Tribunal Federal entende que a divisão da espécie
humana em raças persiste enquanto fenômeno social, do qual resultam
desigualdade e discriminações entes os seres humanos. Sendo assim, o critério
racial deve ser considerado na aplicação do direito, sendo válida sua utilização
para a concreção do princípio da igualdade. Veja-se:
"Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma cient?/ico, qualquer subdivisão da raça humana. o racismo persiste enquanto fenômeno social, o que quer dizer que a existência das diversas raças decorre de
ADC nO 41, ReI. Min. Roberto Barroso. 21
mera concepção histórica, política e social, e é ela que deve ser considerada na aplicação do direito." 20
Ressalte-se, ainda, que a reserva de vagas em concursos públicos
federais para negros não enseja favoritismos ou desprestigia o mérito dos
candidatos como critério de seleção. Em verdade, sua adoção constitui
pressuposto para a efetiva aferição da capacidade dos candidatos, por evitar que a
disputa pelas vagas na Administração Pública envolva sujeitos faticamente
desiguais.
Com efeito, claro é que a utilização do critério do mérito pressupõe
que os concorrentes tenham tido as mesmas oportunidades ao longo de suas vidas.
Caso contrário, a disputa é realizada em bases desiguais, o que desvirtua o uso de
referido critério. É o que se depreende da lição de Cármen Lúcia Antunes Rocha21 ,
quando afirma que "sem oportunidades sociais, econômicas e políticas iguais, a
competição - pedra de toque da sociedade industrial capitalista - e,
principalmente, a convivência são sempre realizadas em bases e com resultados
desiguais".
Neste sentido, é o próprio sistema de cotas (ou de reserva de vagas)
que, ao compensar os "(. ..) jàtores de desigualdade jàctual com medidas de
superioridade jurídica"22 , permite a realização de uma competição justa e
igualitária, fundada no critério do mérito, o qual não pode ser verdadeiramente
20 Excerto do voto proferido pelo Ministro Maurício Corrêa nos autos do HC 82424/RS, Relator: Ministro Moreira Alves, Relator p/ Acórdão: Ministro Maurício Corrêa, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 17/09/2003, Publicação em 19/03/2004.
21 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 33, n. 131, p. 283 -295, jul./set. 1996. p. 284.
22 Excerto do voto proferido pelo Ministro Relator Carlos Britto nos autos do RMS 26071/DF, Órgão Julgador: Primeira Turma, Julgamento em 13111/2007, Publicação em 01/02/2008.
ADC n° 41, Rei. Min. Roberto Barroso. 22
avaliado nos casos em que concorrem sujeitos faticamente desigualados, aos quais
foram disponibilizadas oportunidades completamente diferentes.
Em síntese, a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas de
concursos públicos federais para candidatos negros, instituída pelo ato
impugnado, constitui verdadeira exigência resultante do princípio da isonomia,
conforme adequadamente concebido no âmbito do Estado Democrático de Direito
em que se constitui a República Federativa do Brasil. É o que afirmam Marcelo
Campos Galuppo e Rafael Faria Basile23 , especificamente a respeito das cotas
reservadas aos negros. Confira-se:
"Nesse sentido, tratar diferentemente os negros, criando, por meio dos direitos fundamentais, condições de inclusão social, significa tratá-los de modo juridicamente adequado, o que é necessário para assegurar a legitimidade, pois, conforme ajirmamos, a legitimação do direito só pode se dar se houver uma igual possibilidade de participação real nos discursos de formação da opinião e da vontade, o que exige, muitas vezes, um tratamento diferenciado daqueles que são faticamente excluídos, implementado-se uma igualdade produtora e produzida pelo Estado Democrático de Direito."
Deste entendimento não diverge Cármen Lúcia Antunes Rocha24, em
cUjas palavras "a ação afirmativa constitui, pois, o conteúdo essencial do
princípio da igualdade jurídica tal como pensado e aplicado democraticamente,
no Direito Constitucional Contemporâneo".
Conclui-se, portanto, que a Lei n° 12.990/14 homenageia o princípio
da isonomia (assegurado pelo artigo 5°, caput, da Constituição da República),
conforme interpretado pela jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal.
23 GALUPPO, Marcelo Campos, BASILE, Rafael Faria. O princípio juridico da igualdade e a ação afirmativa étnico-racial no Estado Democrático de Direito: o problema das cotas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 43, n. 172, p. 99-108, out./dez. 2006. p. 105.
24 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 33, n. 131, p. 283-295, jul./set. 1996. p. 295.
ADC nU 41, Rei. Min. Roberto Barroso. 23
Ressalte-se, ademais, que a reserva de vagas prevista pelo diploma
normativo sob invectiva coaduna-se, também, com o princípio da
proporcionalidade.
Com efeito, conforme ressalta Gilmar Ferreira Mendes25 , esse
Supremo Tribunal Federal tem se utilizado do princípio da proporcionalidade para
solucionar os casos em que se configure colisão entre direitos fundamentais. Nos
termos da jurisprudência dessa Corte Suprema, referido preceito encontra
fundamento no artigo 5°, inciso LIV, da Constituição da República26, conforme se
infere do seguinte julgado27 :
"A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process oflaw (CF, art. 5~ L/V). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em jubo meramente político ou discricionário do legislador."
No que diz respeito ao caso em exame, em que se questiona o sistema
25 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 2004.p. 67.
26 "Art. 5° (... ) LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;"
27 ADI 1407 MC/DF, Relator: Ministro Celso de Mello, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 07/03/1996, Publicação em 24/11/2000.
ADC 11° 41. ReI. Min. Roberto Barroso. 24
de cotas raciais em concursos públicos federais, pode-se considerar, com Gilmar
Ferreira Mendes28, a ocorrência de colisão entre dois aspectos do direito de
igualdade, quais sejam, os aspectos jurídico e fático do princípio da isonomia,
situação que o autor qualifica como espécie de colisão entre direitos fundamentais
idênticos. Confira-se, a respeito, o entendimento do mencionado jurista29 :
"As colisões entre direitos fúndamentais em sentido estrito podem-se referir a (a) direitos(undamentais idênticos e (b) direitosfil17damentais diversos. Em relação à colisão de direitos fundamentais idênticos, podem ser identificados quatro tipos básicos: (...) d) Colisão entre o aspecto jurídico de um direito fundamental e o seu aspecto fático: tem-se aqui um debate que é comum ao direito da igualdade. Se o legislador prevê a concessão de auxílio aos hipossuficientes, indaga-se sobre a dimensão fática ou jurídica do princípio da igualdade."
Assim, seguindo a linha trilhada por esse Supremo Tribunal Federal,
a solução de semelhante conflito deve ser mediada pelo princípio da
proporcionalidade, o qual "(...) pressupõe nao só a legitimidade dos meios
utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses
meios para a consecução dos objetivos pretendidos (... ) e a necessidade de sua
t '1' - ( )"30.U 1 lzaçao ...
Percebe-se, pois, que, além da apreciação das finalidades buscadas
por melO dos atos impugnados, o exame acerca de sua conformidade com o
princípio da proporcionalidade envolve a análise de sua compatibilidade com os
três elementos constituintes do mencionado preceito constitucional, que
28 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 79.
29 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. 3. ed, São Paulo: Saraiva, 2004. p. 78-79.
30 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 49-50.
ADC n° 41. Rei. Min. Roberto Barroso. 25
correspondem à adequação, à necessidade e à proporcionalidade em sentido
estrito. De tal modo, é necessário que, antes de serem cotejados com o teor do ato
do Poder Público em exame, cada um dos subprincípios referidos seja
conceituado, razão pela qual se recorre, uma vez mais, à jurisprudência desse
Supremo Tribunal Federal31 :
"São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. (...) há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do cOI?flito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto)."
Visto isso, passa-se ao exame da proporcionalidade do sistema de
cotas instituído pela lei federal em análise, sendo necessário que se identifiquem,
inicialmente, quais os fins perseguidos pela instituição de referida reserva de
vagas, cuja análise não descuidará da cautela que o tema exige, pois, conforme
adverte Gilmar Ferreira Mendes32, "a inconstitucionalidade de uma providência
legal por objetiva desconformidade ou inadequação aos fins somente pode ser
constatada em casos raros e especiais".
Dentre as finalidades pretendidas com a edição do diploma
normativo em questão, sobressai o objetivo de democratizar o acesso aos
concursos públicos federais, ou seja, de dotar os respectivos cargos e empregos
públicos de maior diversidade racial e sociocultural, com vistas à inclusão das
31 Excerto do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes nos autos do HC n° 81990/PE, Relator: Ministro CARLOS VELLOSO, Julgamento: 10/12/2002, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação: DJ 29-08-2003.
32 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 321.
ADC n° 41, ReI. Min. Roberto Barroso. 26
minorias e à formação de uma sociedade efetivamente pluralista, tão enfatizada
pelos artigos iniciais da Constituição da República.
Nessa linha, confira-se o seguinte excerto da justificativa que
acompanha o projeto de lei que deu origem à Lei n° 12.994/1433 , verbis:
"4. Para solucionar a problemática apontada, entende-se ser necessária a adoção de politica afirmativa que, nos próximos 10 anos, torne possível aproximar a composição dos servidores da administração pública federal dos percentuais observados no conjunto da população brasileira. Pressupõe-se que diversas outras ações fomentadas pelo Estatuto da Igualdade Racial (algumas das quais já implantadas, como é o caso da reserva de vagas em Universidades) impactarão também no ingresso de negros pela ampla concorrência, constituindo a reserva de vagas proposta um avanço significativo na efetivação da igualdade de oportunidades entre as raças, garantindo que os quadros do Poder Executivo federal reflitam de forma mais realista a diversidade existente na população brasileira. 5. A adoção de tal medida vem ao encontro do entendimento acerca da necessidade de diversidade na administração pública, considerando seu papel na formulação e implantação de políticas públicas voltadas para todos os segmentos da sociedade, e conjuga, ainda, elevado potencial de incentivar a adoção de ações semelhantes tanto no setor público quanto no setor privado, fàzendo cumprir determinação da Lei n° 12.288, de 2010, que, em seu artigo 39, dispõe que 'o poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas '." (grifouse).
Semelhante propósito afina-se aos objetivos perseguidos por meio
das mais variadas atuações procedidas no campo das ações afirmativas. De fato,
conforme ressalta Leila Pinheiro BellintanP\ "(...) dentre os objetivos das ações
33 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra,jsessionid=84756A 26A 40 07DBED4191AB71 2D6E335.proposicoesWeb2?codteor=1177136&fi/ename=Tramitacao-PL+6738/2013>. Acesso em: 29 maio 2016.
34 BELLINTANI, Leila Pinheiro. Ação afirmativa e os princípios do Direito: a questão das quotas raciais para ingresso no ensino superior do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 103.
ADC nO 41. ReI. Min. Roberto Barroso. 27
afirmativas encontra-se o de instaurar na seara laboral e educacional maior
diversidade de indivíduos que espelhem a realidade social de cada nação".
No mesmo sentido, Joaquim Benedito Barbosa Gomes35 assevera que
"isso contribuiria, sem dúvida alguma, para a preservação da paz social, para a
cessação do alijamento social e da marginalização de um grupo social de
importância vital na construção da nacionalidade brasileira".
Identificados seus objetivos, vê-se que o ato em exame é
absolutamente adequado a alcançar os fins a que se destina. De fato, a adoção de
sistema de cotas que considerasse exclusivamente a pobreza dos candidatos não
garantiria o acesso de candidatos negros a concursos públicos, pelo que seria
insuficiente (ou seja, inadequada) para a consecução do principal objetivo
perseguido pela Lei n° 12.990/14, qual seja, alterar a composição dos quadros de
pessoal da administração pública federal, adequando-os à diversidade de
indivíduos presentes na realidade social brasileira.
Do mesmo modo, o método de identificação da raça dos candidatos
contemplado pela Lei n° 12.990/14 não contraria o subprincípio da adequação.
De fato, adotou-se o critério da autodeclaração, permitindo-se ao próprio
indivíduo declarar sua identidade racial, em respeito à dignidade pessoal do
candidato, nos termos do artigo 2° do referido diploma legal, verbis:
"Art. 2° Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição 110
concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado,
35 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Discriminação racial e princípio constitucional da igualdade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 36, n. 142, p. 307-323, abr./jun. 1999. p. 311-312.
ADC n° 41. ReI. Min. Roberto Barroso. 28
,ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço 011 emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuí=o de outras sanções cabíveis."
Destarte, o candidato que pretende concorrer às vagas reservadas
deverá se autodeclarar negro ou pardo no ato da inscrição, autorizando a lei a
verificação da veracidade dessa informação no intuito de evitar a prática de
fraudes manifestas.
Conforme se depreende das informações prestadas pela Presidente da
República na presente ação declaratória, a Secretaria de Gestão de Pessoas e
Relações do Trabalho no Serviço Público do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão - SEGRT/MP e a Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Presidência da República - SEPPIRlPR têm adotado
providências ''para promover a regulamentação dos procedimentos de
verificação dafàlsidade da autodeclaração prevista no art. 2 0 da Lei 12.990, de
9 de junho de 2014, que poderá culminar com a publicação de orientação
normativa sobre o tema em questão".
De modo semelhante, a Lei n° 12.990/14 compatibiliza-se com o
subprincípio da necessidade, tendo buscado positivar as medidas menos gravosas
dentre as adequadas à consecução de seus fins.
Note-se, por exemplo, não existir excesso no quantitativo de vagas
reservadas. Com efeito, fixou-se em 20% (vinte por cento) o percentual de vagas
destinadas aos negros, quantidade, essa, inferior (e, portanto, não excessiva) à
preconizada por Joaquim Benedito Barbosa Gomes36, que defende, como já
aludido, "(... ) a obrigatoriedade de inclusão, em percentuais compatíveis com a
36 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Discriminação racial e princípio constitucional da igualdade. Revista de Informação Legislativa, Brasilia, ano 36, n. 142, p. 307-323, abr./jun. 1999. p. 311-316.
ADC n041. Rei. Min. Roberto Barroso. 29
respectiva presença de cada grupo em uma dada comunidade, de representantes
de grupos sociais historicamente marginalizados (... )".
De fato, os negros (grupo em que se incluem pretos e pardos)
constituem 49,5% (quarenta e nove vírgula cinco por cento) da população
brasileira, segundo dados do IBGE3? publicados em 2006.
De todo modo, verifica-se que o diploma legal em comento adotou
percentual transitório (vigente por dez anos) e razoável, ensejando a inserção
provisória do sistema de cotas nos concursos públicos federais.
Em resumo, percebe-se que a Lei n° 12.990/14 utilizou-se de meios
adequados e necessários para atingir os objetivos a que se propõe, tendo procurado
resguardar, ao máximo, o âmbito de proteção dos princípios em confronto.
Assim, valendo-se da terminologia empregada por esse Supremo
Tribunal Federal (que soluciona questões semelhantes por meio da chamada regra
de ponderação), conclui-se que, em relação ao sistema de cotas instituído pela Lei
nO 12.990/14, deve ser conferida prevalência ao princípio da igualdade concebido
como um critério de inclusão dos grupos faticamente excluídos do gozo de bens
e políticas públicas. Como visto, essa é a concepção adotada por essa Suprema
Corte acerca da isonomia, que a considera como instrumento apto a fomentar a
participação democrática e a formação de uma sociedade efetivamente pluralista.
Com efeito, os beneficios que o ato do Poder Público em questão
pretende proporcionar afina-se, com nitidez, a diversos preceitos constantes do
37 Instituto Brasileiro de Geografia c Estatística. Síntese de indicadores sociais 2006. Rio de Janeiro: IBGE. 2006. p.248.
ADC n° 41, ReI. Min. Roberto Barroso. 30
texto da Constituição da República, dentre os quais se destacam os transcritos a
segUIr:
"Art. 10 A República Federativa do Brasil, formada pela unwo indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como júndamentos:
( ... )
11 - a cidadania;
111 - a dignidade da pessoa humana;
( ...)
Art. 3 0 Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
1 - construir uma sociedade livre, justa e solidária; ( ... )
111 - erradicar a pobreza e a marginali::ação e reduzir as desigualdades sociais e regionais,'
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."
Demonstra-se, destarte, a constitucionalidade do sistema de cotas
instituído pelo ato sob invectiva.
IH - DA CONCLUSÃO
Ante o exposto, o Advogado-Geral da União manifesta-se pela
procedência do pedido fonnulado pelo requerente, devendo ser declarada a
constitucionalidade da Lei n° 12.990, de 09 de junho de 2014.
São essas, Excelentíssimo Senhor Relator, as considerações que se
ADC nO 41, ReI. Min. Roberto Barroso. 31
tem a fazer em face do artigo 103, § 3°, da Constituição Federal, cuja juntada aos
autos ora se requer.
Brasília,
fI(JOSE EDUI'f Advogado
GRACE MARIA FE~ESMENDONÇA Secretária-Geral de Contencioso
ADC nO 41, Rei. Min. Roberto Barroso. 32