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“COMEÇAR DO ZERO”: A INVISIBILIDADE LÉSBICA Ludmila Castanheira (UEM) Resumo O texto a seguir reflete sobre a condição lésbica desde os escritos de Wittig, Rich, Swain e Anzaldúa, sublinhando o sistemático apagamento lésbico, mesmo nas pautas LGBT. Circula a urgência em grafar acadêmica, afetiva e socialmente as ações lesbianas e oferece um breve panorama das ações afirmativas promovidas por lésbicas na atualidade. Palavras-chave: lesbiandades, lesbofeminismo, invisibilidade Introdução Para além das designações de gênero e sexualidade, há, nas pautas LGBT, expressivas diferenças entre as conquistas, garantias de direitos, representação política, tematizações: o feixe de ideias e discussões que caracterizam o que temos chamado de visibilidade, enfim. “O lesbianismo, no discurso social, aparece obscurecido ou negado enquanto prática ligada ao humano, ou desqualificado enquanto mutilação do ser mulher, reles imitação do macho”. (Navarro, 2016, p. 17). Nós lésbicas, temos sido invisibilizadas enquanto grupo, em nossas subjetividades, no exercício do erotismo, enquanto seres da sexualidade. A característica intersticial da condição lésbica pode ser apontada como motivo possível do sistemático apagamento de nossas pautas. “As lésbicas não são mulheres”: a provocação de Wittig, elaborada há quase quatro décadas, ecoa nas nossas vivências contemporâneas. A descontínua história lésbica

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“COMEÇAR DO ZERO”: A INVISIBILIDADE LÉSBICA

Ludmila Castanheira (UEM)

Resumo

O texto a seguir reflete sobre a condição lésbica desde os escritos de Wittig, Rich, Swain e Anzaldúa, sublinhando o sistemático apagamento lésbico, mesmo nas pautas LGBT. Circula a urgência em grafar acadêmica, afetiva e socialmente as ações lesbianas e oferece um breve panorama das ações afirmativas promovidas por lésbicas na atualidade. Palavras-chave: lesbiandades, lesbofeminismo, invisibilidade Introdução

Para além das designações de gênero e sexualidade, há, nas pautas LGBT,

expressivas diferenças entre as conquistas, garantias de direitos, representação

política, tematizações: o feixe de ideias e discussões que caracterizam o que temos

chamado de visibilidade, enfim. “O lesbianismo, no discurso social, aparece

obscurecido ou negado enquanto prática ligada ao humano, ou desqualificado

enquanto mutilação do ser mulher, reles imitação do macho”. (Navarro, 2016, p. 17).

Nós lésbicas, temos sido invisibilizadas enquanto grupo, em nossas

subjetividades, no exercício do erotismo, enquanto seres da sexualidade. A

característica intersticial da condição lésbica pode ser apontada como motivo

possível do sistemático apagamento de nossas pautas. “As lésbicas não são

mulheres”: a provocação de Wittig, elaborada há quase quatro décadas, ecoa nas

nossas vivências contemporâneas.

A descontínua história lésbica

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Wittig toma como urgência a desnaturalização da heterossexualidade,

modelo pelo qual as denominações “homem” e “mulher” redundam no projeto de

dominação masculina, ao qual a aderência feminina se dá somente pelos contratos

nos quais estão postas as obrigações conjugais e de subserviência: Lo que constituye a una mujer es una relación social específica con

un hombre, una relación que hemos llamado servidumbre, una relación que implica obligaciones personales y físicas y tambíen económicas ("asignación de residência", trabajos domésticos, deberes conyugales, produción ilimitada de hijos, etc.) (Wittig, 1981, p.43).

“Homem” e “mulher” são demarcadas pela autora como expressões de uma

cultura – a heterossexual – para a qual a diferença é crucial à continuidade das

hierarquias entre opressores e oprimidos: A sociedade hétero está baseada na necessidade, a todos os níveis,

do diferente/outro. Não pode funcionar economicamente, simbolicamente, linguisticamente ou politicamente sem este conceito. Necessidade do diferente/outro é uma necessidade ontológica para todo o aglomerado de ciências e disciplinas a que chamo o pensamento hétero. Mas o que é o diferente/outro se não a(o) dominada(o)? (Wittig, 1980, sp.)

O pensamento heterossexual define s mulheres por contiguidade aos homens,

e professa a heterossexualidade como relação “natural” entre ambos. Subvertendo a

própria lógica excludente dessa organização, Wittig assinala as lesbianas como não

mulheres. Somos intersticiais, antinaturais: Rechazar convertirse en heterosexual (o mantenerse como tal) ha

significado siempre, conscientemente o no, negarse a convertirse en una mujer, o en un hombre. Para uns lesbiana esto va más lejos que el mero rechazo del papel de "muljer". Es el rechazo del poder económinco, ideológico y político de un hombre (Wittig, 1981, p.36).

Escapar à categoria de “mulher” é, para Wittig, celebração da lesbiandade em

não ceder tolhimento das determinações heterossexuais. A partir dessa evasão,

torna-se possível a tessitura de “uma nova história para explicar o mundo e a nossa

participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos

conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta” (Anzaudúa, 2005, p. 78), na qual nos

vejamos liberadas das lentes que nos definem como abjetas. Porém, na afirmação

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de uma localização fugidia, insinuam-se, também os motivos pelos quais temos sido

invizibilizadas.

A sexualidade não dirigida ao desejo masculino, o discurso calcado numa

pretensa naturalidade biológica que hipervaloriza a função reprodutiva, a das

performances “butch” e “femme” como “cópias malfeitas” de uma heterossexualidade

caricata, são características que nos impõem aspectos menores: “as relações entre

as mulheres não despertam senão o riso e a chacota. Assim, atribui ao

imaginário/representações sociais do XII, suas próprias considerações/

medos/rejeições” (Navarro, 2016, p.15).

Ante o risco que representamos para a organização da nossa sociedade

nuclear, nós, lésbicas, temos sido ridicularizadas e/ou temidas. Mas, sobretudo,

silenciadas. Anne Rich estabelece oito mecanismos pelos quais heterossexualidade

compulsória controla os corpos e subjetividades femininas, entre os quais o controle

da produção e exploração do nosso trabalho; a instituição do casamento e da

maternidade; os códigos de vestimentas e outros meios de coibir os movimentos

corporais; o estupro; a cafetinagem e o uso das mulheres para vender produtos; a

retirada das mulheres do domínio de conhecimentos e realizações culturais, como é

o exemplo do silêncio da existência lesbiana na história; e a destruição de

documentos referentes à existência lesbiana (LESSA, 2007, p.98).

Perfazer uma historiografia da lesbiandade desenha uma trajetória

descontínua, requer práticas acuradas de leitura para deduzir, nas linhas da “história

oficial” as contribuições substanciais em estágios incipientes do que viriam a ser

ações de reconhecida importância, como as Parada LGBT no Brasil (Um outro olhar,

fev/2019). As nossas produções, via de regra, não são nomeadas ou reconhecidas.

Por isso, ao adentrar esse campo de pesquisa, a sensação é a de que as ações

lesbofeministas estão sempre “começando do zero”.

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Considerações finais

O panorama exposto impõe a urgência de nos fazermos grafar acadêmica,

afetiva e socialmente como sujeitas de um universo de possíveis aos quais

chamamos lesbiandades. No Brasil, compreende-se que estejamos vivendo a quarta

onda do lesbofeminismo: a primeira delas, expressa, em grande parte pelo GALF

(Grupo de Ação Lésbico-Feminista) cuja ação remonta à década de 70 e a iniciativas

como o boletim ChanacomChana. O segunda tem a ver institucionalização dos

movimentos sociais, e abarca a criação do Dia da Visibilidade Lésbica,

protagonizada pelas lésbicas negras na criação do primeiro Senale (Seminário

Nacional de Lésbicas), em agosto de 1996. A terceira onda do movimento lésbico

tem a ver com a popularização da internet, o ativismo on-line (Sarmet, 2018 in

Holanda, pp.380-383).

A princípio, os anos 2000 parecem ter sido “mornos” no que concerne ao

movimento de afirmação das lesbiandades. Porém, cumpre ressaltar uma vez mais

que nós, lésbicas, somos constantemente apagadas por discursos e práticas que

privilegiam as ações masculinas, mesmo as homossexuais. A quarta onda

lesbofeminista inicia por volta de 2015, com ações despretensiosas como o

“Isoporzinho de Verão das Sapatão”: ao perceber que não havia, no Rio de Janeiro,

um lugar onde lésbicas se reunissem, Erica Sarmet usou suas redes sociais para

convidar lésbicas a se reunirem na Praça São Salvador, em Laranjeiras, no Rio de

Janeiro. A ideia era levar um isopor contendo bebidas, e partilhá-las no convívio de

uma tarde. A iniciativa se desdobrou de forma espontânea, não só agregando

mulheres de diferentes regiões da cidade, como sendo emulada em cidades como

Recife, Vitória, Florianópolis, Salvador, Londrina, Porto Alegre, Belo Horizonte,

Rondonópolis, Vitória da Conquista, Palmas (Op, cit, p.387)

A reverberação do “Isoporzinho” denuncia nossa carência de pertencimento e

convívio lésbico, mas também novas práticas de articulação: fluidas, maleáveis e,

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sobretudo, em atrito com a vida pública. Os corpos sapatões parecem encontrar na

coletividade maneiras de se colocarem, rasgando o silenciamento a quem têm sido

sujeitos.

É urgente grafar a história lesbofeminista, conta-la uma vez mais, desenhar

os contornos da quarta onda feminista são legatários dos movimentos anteriores,

ainda que a atual geração militante desconheça a história que nos circunscreve. E

marcar este um sintoma da nossa invisibilidade deliberadamente instituída por

razões exteriores às nossas ações.

Referências ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza/Rumo a uma nova consciência. Estudos Feministas, Florianópolis, 13 (3): 320, setembro-dezembro/2005.

HOLANDA, Heloísa Buarque de. Explosão Feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

LESSA, Patrícia. O feminismo-lesbiano em Monique Wittig. Revista Ártemis. Vol.7,

dez 2007, pp.93-100. MARTINHO, Míriam. Memória Lesbiana: IX EBGLT, organizado por lésbicas, foi embrião das Paradas do Orgulho LGBT no Brasil. Disponível em:

https://www.umoutroolhar.com.br/2019/02/memoria-lesbiana-ix-ebglt-organizado-por-

lesbicas.html. Acesso em 10/04/2019. SWAIN, Tânia Navarro. Lesbianismos, cartografia de uma interrogação. Revista Esboços, Florianópolis, v.23, n.35, p. 11-24, set. 2016.

Wittig, Monique. O pensamento heterossexual. 1980. Disponível em:

http://mulheresrebeldes.blogspot.com/2010/07/sempre-viva-wittig.html. Acesso em

10/04/2019.

_______________. No se nace mujer. 1981. Disponível em:

https://produccioneslesbofeministas.files.wordpress.com/2011/10/no_se_nace_mujer

.pdf. Acesso em 10/04/2019.