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“Morte, Morte, Morte · 2013. 11. 17. · “Morte, Morte, Morte que, talvez, seja o segredo dessa vida” RAUL SEIXAS

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“Morte,Morte,Morteque,talvez,sejaosegredodessavida”

RAULSEIXAS

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ACanutoAbreu,pioneironapesquisaenadivulgaçãodaobradeKardecno Brasil; a Wagner de Assis, aliado fundamental neste projeto, queenfrentaagoraodesa ode transformarestahistória em lme; e aChicoXavier, que lutou até o m para pôr em prática as principais lições deKardec.

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PARTEI

OGIRODASMESAS

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ACEITAI

Paris,ruaGrangeBatelière,número18,maiode1855.Eramoitohorasdanoitedeumaterça-feiraquandoasessãonacasadasra.DePlainemaisoncomeçou.Em silêncio absoluto, os convidados tomaram seus lugares à mesa, mãosespalmadassobreo tampodecarvalho.Entreosmaiscompenetradosestavaoprofessor Hippolyte Léon Denizard Rivail, 50 anos. Em poucos minutos, setudodessecerto,eleseriatestemunhadeumfenômenoquecausavaespantoepolêmica na Europa e nos Estados Unidos do século XIX: o espetáculo dasmesasgirantes.

Ele já tinha lidoasnotíciasnos jornaiseouvidoosrelatosdascenasqueserepetiam em salões nobres de Paris, Londres, Nova York e São Petersburgo,diantedepersonalidadestãoilustresquantoperplexas:mesasdetodosospesose tamanhos se erguiam do chão e semoviam em todas as direções, sem queninguém as levantasse. Algumas chegavam a atingir o forro do teto e a seespatifarláembaixo,comoseestivessemdominadasporforçasocultas.Outrasutuavam no ar e pousavam diante das testemunhas, como folhas ao vento.

Muitas seguiam as ordens e contraordens dos comensais. Direita, esquerda,sobe,desce,para.

No jornalL’Illustration de14demaiode1853,o alvoroçoprovocadopelasmesasgiranteseraretratadoemtomdelamentoeironia:

Sóseouvefalar,portodaparte,damesaquegira:opróprioGalileufezmenosruídonodiaemqueprovouserrealmenteaTerraquegiravaemtornodoSol.

Ide por aqui, ide por ali, nos grandes salões, nasmais humildesmansardas, no atelier dopintor (...) e vereis pessoas gravemente assentadas em torno de uma mesa vazia, que elascontemplamàsemelhançadaquelescrentesquepassamavidaaolharseusumbigos.

Assombração?Possessão?Autossugestão?Delíriocoletivo?Estudioso, desde os 19 anos, da hipnose, do sonambulismo e do poder

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curativo dos uidos magnéticos, o professor Rivail tinha uma tese cientí capara explicar o que muitos celebravam como manifestações do além: aeletricidade dos corpos reunidos em torno das mesas agiria sobre elas. Era aforça magnética dos participantes das sessões, e não os fantasmas, ocombustíveldasmesas.Eessaeraamelhordashipóteses.

A explicação mais provável para tantos prodígios era outra: fraude pura esimples, operada por farsantes com a ajuda de os invisíveis, roldanasembutidas no teto e ímãs instalados sob o tampo das mesas, em ambientessempremal-iluminados.

Rivail testemunhara os poderes nada sobrenaturais de mecanismos comoestes, traquitanas que conhecera anos antes, enquanto trabalhava comocontadornopequenoteatroLesFoliesMarigny,nosChamps-Élysées,palcodeinúmerasexperiênciasmagnéticas,elétricasemecânicasconduzidasporfísicosequímicosemespetáculosconcorridos.

“Quem estudar a fundo as ciências rirá da credulidade supersticiosa dosignorantes.Nãomaiscreráemfantasmasoualmasdooutromundo.Nãomaistomará fogos-fátuos por espíritos”— a rmavaRivail, lho de pais católicos edevoto de lósofos racionalistas como René Descartes, para quem a ciência,“conhecimento exato e evidente”, deveria descartar tudo o que fossemeramenteprovável.

Era, portanto, com um misto de curiosidade e descon ança que Rivail sepreparava para encarar os prováveis fenômenos da noite. Será que amesa semoveria? Será que seguiria as instruções dos an triões e convidados, como aobedientemesadoconde,estadista,escritoreoradorAgénordeGasparin?

*

Um longo artigo assinado pelo conde e republicado nos principais jornais dopaís causara frisson entre os mais céticos e descon ados. Um ano antes deRivail tomar seu lugar à mesa da sra. De Plainemaison, o conde convocou amulher,ostrês lhos(criançasde11a15anos),osbotânicosMureteReutere

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o pastor Tachet, além de “vários domésticos”, para participar de umaexperiênciaemsuacasa.

A estrela da noite: uma mesa de freixo redonda, com tampo de 80centímetrosdediâmetro,apoiadosobrecolunademadeiramaciçacomtrêspés.Os olhos do conde e de seus convidados caram cravados nomóvel por umahoraatéquefizessejusàsuadefiniçãoesemovessesobreostacos.

Apósosprimeirostremores,oimpossívelpassouaacontecer.Comapalavra,oconde:

Dada a voz de comando, logo a mesa obedecia, e realizava movimentos que nenhumacumplicidadeinvoluntáriaouvoluntáriateriapodidoprovocar(...).

Bate três pancadas, bate dez. Bate com este pé, com aquele, com aqueloutro; levanta-tesobredoisdeteuspés,sobreumdeles; caaprumada;resisteaoesforçodaquelesque,colocadosnoladoemqueteelevares,procurarãoreconduzir-teaochão.

Empoucotempo,abrincadeira coumaisdivertida.Oscomensaisdeixaramde pronunciar suas ordens em voz alta e passaram apenas a sussurrar para ovizinho o número de pancadas imaginado a cada rodada. Instantes depois, amesaseguiaasordensinaudíveis.

No artigo, o conde admitiu ainda um engano cometido por ele e corrigidopelasábiamesa,quandopediuqueelarevelasse,aosomdaspancadas,a idadedecadaum:

Ela assentiu, apressando-se, de uma forma muito cômica, quando o número de pancadas abater era algo considerável.Devo confessar, para vergonhaminha, que fui corrigido por ela;tendo involuntariamente diminuídominha idade, amesa, apesar disso, deu 43 pancadas emlugardas42.

Asessãoterminoucomumareverênciadasúditaaseusenhor:

Ordeneiàmesaqueseerguesse,queseerguessemaisequeseinclinasseparaomeulado,oquefoifeito.

Nofimdotexto,umaordemaosleitores:“Aceitai”.Muitosnãoaceitavam.EoprofessorRivailestavaentreeles.

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Suaposturaaindaeraamesmadoanoanterior,quandoreagiucomceticismoàsdescriçõesdoamigoFortier—especialistaemhipnose—sobreopoderdecomunicaçãodasmesas.

—Elas falam! Interrogadas, respondem.Umadasmesasusouospésparaditarmagní cascomposiçõesliteráriasemusicais.

— Só acreditarei se me provarem que umamesa tem cérebro para pensar e nervos parasentir—responderaRivail.

Apresençadoprofessorcéticonasessãodasra.DePlainemaisonaumentavaatensãoeaexpectativadosanfitriõeseconvidadosnaquelanoite.

OnomedeHippolyteLéonDenizardRivail,oumelhor,suasiniciais,H.L.D.Rivail,estampavamascapasdemaisde20livrosdidáticosadotadosporescolase universidades da França. Seu primeiro livro,Curso prático e teórico dearitmética, lançadoaos18anos, seria republicadocomoobrade referência aolongo de cinco décadas. Como epígrafe, uma citação do lósofo Michel deMontaigne:“Nãosetratadesermaissábio,porémmelhorsábio.”

Quemsabeoprofessornãoencontrariaexplicaçõescientí casparaosobeedescedasmesas,casoofenômenoserepetissenacasadasra.DePlainemaison?Quemsabenãodesvendariatruquessecretosportrásdemovimentosatribuídosafantasmas?

De estaturamédia para a época, 1,65m, o professor Rivail exibia a palidezsalpicadade sardasdeumavida em con namento, sempredebruçado sobre aescrivaninhadoescritóriooudepénassalasdeaula,entreosalunosealousa.Cabeloslisosrepartidosnafrente,daesquerdaparaadireita,exibiaumbigoderarefeito,aparadorenteao lábioparadisfarçarumapintapronunciadasobreaboca.Osolhoscastanho-claroseacabeçaredondaemaciça,assentadasobreopescoçolargo,davamaeleaaparênciamaisdealemãodoquedefrancês.

Comavozclarae rme,gestossempresóbriosecontidos,demonstravaumtalento especial para a oratória e — como professor habituado à peleja deenvolverosalunos—eracapazde iniciarsuafalanotommaissuavepossível,até encerrá-la com explosões de eloquência. Fazia questão de comunicar: nasconversas,palestrasepáginasdoslivros.Eraquaseumaobsessãosuaseromaisclaro e acessível possível, ou seja, o mais didático. E não faltavam lições a

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prepararedifundirnaqueleséculodetantasdúvidasedescobertas.

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COISADODIABO

Para Rivail, a ciência, em plena ebulição na época, ainda tinha muito adescobrirerevelar.Ondaseletromagnéticas, feixesde luz,vaportransformadoempressãomecânica,caloremagnetismoestudadoscomofontesdeenergia,enãomaiscomo“ uidosimponderáveis”.Acadadia,pesquisadoresanunciavamdescobertas mais impressionantes e transformavam o impossível de temposatrásemevidênciascientíficaseinvençõesrevolucionárias.

Tudopareciapossívelno séculoXIX, inaugurado coma locomotiva a vapordeRichardTrevithickeiluminado,nareta nal,pelaslâmpadasincandescentesdeomasEdison.Criações quasemilagrosas. Era como se o homemvirasseDeusousuaextensão,parafinalizarouaperfeiçoaraobrainiciadaporEle.

“QueobraDeus fez!”Nãopor acaso foi esta a primeiramensagemenviadapor SamuelMorse ao inaugurar sua invenção: o revolucionário telégrafo, quedizimoudistâncias e aproximou os homens ao transmitir informações atravésdemaresecontinentesemvelocidadeimpressionante.

Masnemtodosfaziamreverênciasatantamodernidade.“Ascoisasestãosobrea sela/ecavalgamahumanidade”,alertavaoescritor

Ralph Waldo Emerson em 1847, preocupado com tamanha devoção aosavanços tecnológicos num mundo onde Deus já não era mais tão Todo-Poderoso assim. No conto de Nathaniel Hawthorne, “Celestial Railroad”(“Ferrovia celestial”), passageiros embarcavam numa locomotiva barulhenta efumeganterumoaoinferno.

Enem tudo era verdadeou avanço entre tantos feitos.Melhor estar atentopara não se deixar levar por embustes, como a exibição do esqueleto de umasereianoMuseuAmericano—obradeumgaiatochamadoBarnum,realizadacom rabo de peixe e cabeça de macaco— ou como os shows de levitação e“materialização de espíritos” promovidos por ilusionistas que, em vez de seanunciaremcomomágicos,vendiam-secomomagos.

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Neste cenário marcado por milagres da ciência e golpes de farsantes, asmesas girantes atraíam multidões engalanadas e dividiam opiniões. E estaagitação era só o começo. Em pouco tempo, as mesas passariam também atransmitir mensagens, ao som de pancadas certeiras, como telégrafossaltitantes.

Umapancada,letraA,duaspancadas,letraB,eassimsucessivamente,atéseformarempalavras,frasesetextosinteiros.

Diantedo frenesi causadopelasmesasgiranteseagoraparlantes, os jornaisdeParispassaramapublicarartigos irônicosechargesdivertidassobreanovamanianacional.

Numa série publicada noL’Illustration, em julho de 1854, uma mesamignon,bem-torneada,ofereciaseuspréstimosprofissionaisaosinteressados:

Jovemmesa,deexteriorsimpático,quefalaváriaslínguaseconheceumpoucodearitméticaemuitashistórias,pedeumlugardeintendentedefinanças.

Emoutrocartum,umestudante,recostadoemsuacadeira,cruzaosbraços,enquantoamesaàsuafrente,lápispresoaumadaspernas,fazodeverdecasa:

Os castigos escolares... Ora! Deles nãomais faço caso. Asmesas foram feitas para trabalhar,portantofaçotrabalharaminha.

Em outra charge, um senhor de fraque repreende o jovem, cartola àmão,cabisbaixo:

Comoépossível?Éentãovocê, infeliz rapaz,quemantémcriminosacorrespondênciacomamesadecosturadesra.Coquardeau!?

E,nacozinhadeoutraresidência,ocomissáriodepolíciainterrogaadonadecasa:

—Dissestesquevossacozinheiravosfurtou,maseasprovas?—Senhorcomissário,eisamesadacozinha,queestáprontaparadeporporescrito.

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Muita gente, porém, levava a sério astables mouvantes eparlantes. Aoencostarosdedosmindinhosnosdedosmínimosdosseusvizinhosdeassentoeassim“fecharacorrente”nacasadasra.DePlainemaison,Rivailseuniuaumgrupodeestudiososdispostosaencararosrodopioseditadosdasmesascomoobjetosdeestudoenãocomomeiosdediversão.

Oprofessorestavadispostoadarcréditoàan triã—consideradarespeitávele con ável pelos velhos conhecidos—,mas só decidiu apostar na sua boa-fédepoisdeinspecionar,comadevidadiscrição,oambienteiluminadoporvelasecandelabros, em busca de sinais de traquitanas ocultas. Nenhum o, ímã ouroldana à vista. “Concentrem-se, por favor. E que Deus nos abençoe nestanoite.”

Umabrevepreceantecedeuolongoperíododesilêncio,sóinterrompidopelapassagemdecarruagensdoladodefora,pelotique-taquedosrelógiosdebolsoeportossesesporádicas.Rivailjápensavaemseretirar,paraprepararasaulasdodia seguinte, quandoouviu estalidos sobre os tacos e testemunhouo primeiromovimentodamesa.

Se pudesse erguer as mãos, anotaria, com o máximo de isenção, suasimpressõessobreaquelanoite,semtomarpartido—ainda—denenhumadaslinhas de investigação dos fenômenos existentes até aquele momento. Ele jáconhecia os principais argumentos e interesses em jogo neste territórionebuloso,ondeféeciênciamediamforçasnaentãocapitalculturaldomundo,berçodeiluministasconsagrados.

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JOGODEFORÇAS

“Quem sabe não estamos diante de uma nova ciência, capaz de puri car omundode tantomaterialismo?”Foioqueescreveu, entusiasmado,oestudiosodomagnetismodr.A.MayeremartigonoPresseMedicale:

Étodoummundoaexplorar,e talvezsejaachavedeumaciêncianovaquenosdesvelaráosmistériosatéopresenteimpenetráveisdapsicologia.

Bemmenos esperançoso, o químicoMichel Eugène Chevreul, membro daAcademia das Ciências de Paris, arriscou, em artigo publicado no jornalLaPatrie, uma explicação siológica para o frenesi das mesas cultuadas pormultidões:

Tudoédevidoaumaaçãomuscularimperceptívelaelesmesmoseatodasasdemaispessoas(osparticipantes das sessões). Trata-se de um movimento vibratório, emanado de milhares depequenosramosnervosos.Acresceiaistoafadiga,aumidadedasmãos,etereisumaexplicação,senão completamente satisfatória, pelo menos bem plausível do fenômeno de que nosocupamos.

O célebre físico e químico inglês Michael Faraday entrou na roda deinvestigaçãoparamedirasuposta in uênciade uidosmagnéticosouelétricostransmitidosàmesapelosparticipantesdassessões—tesedefendidaporRivail.Resultado de suas experiências: a mesa se moveu quando as mãos estavamespalmadas sobre o tampo, mas continuou estática quando o cientista usoutalcoelâminasdemicaparaisolarocontatoentreosdedosdoscomensaiseamadeira.

Poresta lógica,adançadasmesasseriaregidapelosparticipantesdasessão,com ou sem a consciência deles, por boa-fé ou má-fé. E os relatos sobre asmesas suspensasnoar, livresdocontatodasmãos, estavamforadecogitação.

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Deveriamserdescartadoscomomerasfraudes,delírioshipnóticoscoletivosouilusõescontráriasàsleisdanaturezamaisbásicas,comoaforçadagravitação.

Ao ler tantos pareceres céticos, o conde de Gasparin pediu a palavra paracontestarossábioscientistas:

Todasasleisdanaturezajálhesforamreveladas?Aciênciahumananãolevamaisemcontaleisdesconhecidaseserecusaaconsiderarnovasideias?

A Igreja defendia uma tese bemmais simples para explicar os fenômenossobrenaturais:coisadodiabo.

DoisanosantesdeRivailsesentaràmesadasra.DePlainemaison,obispodeViviersdirigiraumacartapastoralàcomunidadecatólicadesuadioceseparacondenaraevocaçãodemortos“nessespassatemposaparentementeinocentes,mas ocultamente diabólicos”. Mesas girantes eram admissíveis — como“exercíciospuramenterecreativos”—,masmesasfalantes,queseidenti cavamcomo “almas de mortos”, eram necro lia, possessão e heresia, sujeitas aexorcismosouàexcomunhãodospecadores.

OpadreLouisEugèneMarieBautin,vigário-geraldoarcebispadodeParisedoutoremTeologia,MedicinaeDireito,tambémempunhouseucruci xoparaexcomungarasmesasdemoníacas.

Sim,eleadmitiu,emlivropublicadoem1853(AvisauxChrétiensurlestablestournants et parlantes, par um Eclésiastique ): esteve frente a frente com asditas-cujas,enãoeramtãoinofensivasquantopareciam.

BastavacitaronomedeNossoSenhor JesusCristoparaqueserebelassem:“Elasresistem,insurgem-se,agitam-seeselançamaochão,escapandoàsmãosqueastocam.”

Asmesas consultadaspeloescritor e ensaístaEugèneNuse seusamigoserambemmaiscomportadaserefinadasdoqueascolegasparoquiais.

Aspiruetassemrumo,testemunhadasnasprimeirassessõespromovidaspelogrupo, deram lugar a verdadeiros saraus literários quando omédico Artur deBonnandsejuntouaoscuriosos.

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Sob a orientação do dr. Bonnand, Nus e seus companheiros — entre osquais,oprofessordematemáticaemúsicaAllyreBureau—passaramaadotarométododeconverteronúmerodepancadasdesferidaspelasmesasemletrasdoalfabeto.

Osditadosiniciaislogosetornaramumdesa oliterário.Asmesasdeveriamrespondercomexatasdozepalavras—nemmais,nemmenos—asperguntasfeitaspelogruposobreasmaisdiversasquestões.Como tempoeaprática,asrespostas passaram a vir com velocidade e precisão impressionantes. Umade nição de in nito. E lá ia a mesa, pancada por pancada: “Abstraçãoidealizada,quevaialémdetudoaquiloqueossentidosconcebem.”

Numdosdesa os,Nuspediu ade niçãode fé, e amesa iniciou seuditadobarulhento: “A fé dei ca aquilo que o sentimento revela e...” Nesse instante,Nus jogou todo o peso de seu corpo sobre a mesa para interromper acomunicação e tentou adivinhar o m da frase— como num jogo. Faltavamtrêspalavrasapenas.Oscompanheirosdesessãoseentreolharam,embuscadaspalavras mais adequadas, e não chegaram a qualquer conclusão. Quandolibertaram a mesa, ela concluiu a de nição com 63 pancadas certeiras: “... arazãoexplica.”

EraoquecontavamNuseseusamigos,parasurpresademuitosedescrençadeoutrostantos.

Quemprecisavacompraringressoparaoteatrocomtantasemoçõesnasaladeestar?

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EASMESASGIRARAM

Mas o palco agora era outro — a sala da sra. De Plainemaison. E as mesasteriam de exibir prodígios admiráveis para derrotar as descon anças doprofessorRivail.

Por mais que lesse os relatos do conde de Gasparin e de Eugène Nus eestudasse os pareceres de Faraday e Chevreul, ele precisava “ver com ospróprios olhos e sentir com os próprios dedos” para descartar uma série desuspeitasepossibilidades.

Nãobastavaque asmesas semovessem—essesmovimentospoderiam serprovocados,segundoRivail,pelaeletricidadedoscorposreunidosnasessão:

Esseconjuntopoderiaatuarcomoumcondensador,cujapotênciaaumenta—oudiminui—deacordocomonúmerodefatores.

Nãobastavaqueasmesasgirassem:

O movimento rotativo existe na natureza — todos os astros apresentam movimentosrotatórios.Umacausaatéentãodesconhecidapoderiagerar,empequenosobjetos,impulsosatéentãorestritosaosgloboscelestes.

Nãobastavaque essesmovimentos fossemdesordenados eque asmesas selançassemdeum ladopara o outro e pairassemno ar, contra todas as leis dafísica:

Não vemos por acaso a eletricidade derrubar edifícios, arrancar árvores com raízes, lançarpesadoscorposadistância,atraí-losourepeli-los?

Maseosruídosinsólitos,aspancadasinexplicáveis?Rivailtambémarriscava

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hipóteses para explicar estes fenômenos: a dilatação da madeira ou a“acumulaçãodefluidooculto”.

Estamoslongedeconhecertodososagentesocultosdanatureza,outodasaspropriedadesdosagentesque jáconhecemos.Aeletricidademultiplicadiariamenteosrecursosqueproporcionaaohomemeparecedestinadaailuminaraciênciacomumanovaluz.

E havia ainda outro fator, mais terreno, a investigar: a honestidade dosparticipantesdassessões.Quemestariaemtornodasmesas?Quemconduziriaas conversas com o além? Como garantir que, por trás de tantasmaravilhas,nãoestivessemmerosfarsantes?

Rivailusariaumcritériobásicoparaavaliara idoneidadedosenvolvidosnosfenômenos das mesas girantes e falantes: o fato de cobrarem, ou não, pelaexibição dos prodígios: “É necessário separar o ‘charlatanismo’ dos ‘atos semlucro’.Charlatães,emrigor,nãopraticamoofíciodegraça.”

Na casa da distinta sra. De Plainemaison, ninguém cobrava ingresso nempediadoações.Oespetáculoeragratuitoeestavaprestesacomeçar.

Chegouahora.

Asmesas giraram na casa da ruaGrange Batelière e a cabeça de Rivail giroujunto.

Os registros sobre o que ele viu naquela noite são bastante concisos: “Asmesas giravam, saltavame corriamem tais condiçõesquenãodeixavam lugarparaqualquerdúvida.”

Rivailtestemunhoutambémoquede niucomo“algunsensaios,aindamuitoimperfeitos,deescritamediúnicanumaardósia,comoauxíliodeumacesta”.

Amparadanasbordaspelasmãosda sra.DePlainemaison, a cestade vimemoveu-se,aossolavancos,sobreumaplacadeardósia,rochaacinzentadausadacomo lousanaépoca.Encaixadono fundodocesto,comapontavoltadaparabaixo, umponteiro damesma pedra inscreveu frases esparsas na lousa. Eramrespostas a perguntas lançadas ao invisível, escritas— ao que parecia— semqualquerparticipação,ouconsciência,daanfitriã.

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Foiobastante.Rivailvoltouparacasaatordoado.

Entrevi, naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam daqueles fenômenos,qualquercoisadesério,comoarevelaçãodeumanovalei,quetomeiamiminvestigarafundo.Haviaumfatoquenecessariamentedecorriadeumacausa.

Qualseriaacausadaquelesmovimentosinexplicáveis?Oque—ouquem—estariaportrásdosgirosdasmesasedosditadosdoalém?

Háou não uma força inteligente? Eis a questão. Se esta força existe, o que é?Qual será suanaturezaesuaorigem?Estáalémdahumanidade?

Rival decidiu buscar respostas, com os devidos cuidados, de acordo commétodoscientíficosadotadosporeledesdeostemposdeestudante.

Emmuitosde seus livros, eraassimque sede nia: “discípulodePestalozzi,diretor de escola da Academia de Paris, membro de diversas sociedadescientí cas”.Melhorresumirocurrículodoqueexibiralongalistadediplomasobtidos nas mais diversas instituições: Sociedade Gramatical, Sociedade deEducaçãoNacional,SociedadeparaaInstruçãoElementar,InstitutodeLínguas,Sociedade de Ciências Naturais da França, Sociedade Promotora da IndústriaNacional,SociedadeFrancesadeEstatísticaUniversaleInstitutoHistórico.

Emseusestudos,aulaselivros,Rivailseguiaacartilhadoprofessor,jornalistae escritor JohannHeinrichPestalozzi, fundador de umdos centros de ensinomais inovadores e renomados da Europa, o Instituto de Yverdon, na Suíça.Rivailtinha10anosquandofoimatriculadonocastelodeYverdonporseupai,o juiz Jean-Baptiste-Antoine Rivail, e pela mãe, a dona de casa JeanneDuhamel.

Nointernato,osprincípiosdeliberdade,igualdadeefraternidadedifundidospelo lósofo Jean-Jacques Rousseau— e hasteados como bandeiras na entãorecém-vitoriosaRevoluçãoFrancesa—guiavamasdezhorasdiáriasdeestudoseatividadescomplementares,comojardinagem,pinturaeginástica.

Numa época em que estudantes eram obrigados a decorar fórmulas everdadesirrefutáveisimpostaspelosmestres,sobpenadeexperimentaraforça

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devarasepalmatórias,oInstitutodeYverdoneraumarevolução.“A época de ensinar não é a de julgar e criticar”, ensinava Pestalozzi. “A

individualidadedoalunodevesersagradaparaoeducador”,defendia.Eiaalém:“O principal objetivo do ensino elementar não é sobrecarregar a criança deconhecimentos e talentos, mas desenvolver e intensi car as forças de suainteligência.”

Quando Rivail passou de aluno a professor, fez questão de listar entre ospróprios “princípios adequados ao ensino” os seguintes objetivos: estimular oespírito natural de observação da criança; cultivar a inteligência para que oalunofaçaasprópriasdescobertas;levá-loaconhecero mearazãodetudooque faz; e conduzi-lo a “apalpar com os dedos e com os olhos todas asverdades”.

“Observar”e“descobrir”eramdoisverbosemaltanaépoca.Aciêncialotavateatros e disputava a atenção do público compeças e espetáculosmusicais.Opróprio físico Faraday, estudioso do eletromagnetismo, arrancava aplausos esuspiros da plateia ao exibir os poderes mágicos dos ímãs. Um deles, emformatodeferradura,faziagirarnoarumdiscodecobreencaixadoentreseuspolos.

Ilusionismo?Não.Ciência.Eciênciavoltadaparaa investigaçãodemundosinvisíveis, rastreados por microscópios e telescópios cada vez mais potentes.Dosátomosaosplanetas,quaisoslimites?

Entreosvivoseosmortos,quaisasfronteiras?

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PARTEII

OMUNDOINVISÍVEL

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FORÇASOCULTAS

AvidadeRivailestavaprestesasetransformarradicalmente.Oprofessor,queconciliava a educação com o ofício de contador para sobreviver, passou a daratenção cada vez maior ao invisível. A seu lado nessa aventura estava suacompanheira há 23 anos, Amélie-Gabrielle Boudet. Professora de Letras eBelas-Artes, Amélie publicara três livros antes de conhecer o futuro marido:Contosprimaveris,de1825,Noçõesdedesenho ,de1826,eOessencialemBelas-Artes,de1828.

ComoRivail,elasabiaoquantoera inviávelviverapenasdavendadeobrasdidáticaseoquantoeraduraavidadeeducadornaFrançadoséculoXIX,comsaláriominguadoe trabalhode sobra.Quandooscaminhosdeles se cruzaramnos corredores escolares, a a nidade foi imediata. Sempre entusiasmada esorridente,Amélie—chamadadeGabyporRivail—nãoaparentavasernoveanosmaisvelhadoqueoquasesempresisudocompanheirodeensino.

Apaixãopela educação eo sonhode construirumaescola emparceria, oumesmo uma rede de ensino, os uniu quando Amélie já tinha 37 anos, idadetardia,àépoca,parapensaremfilhosoumesmoemumbomcasamento.

No dia 6 de fevereiro de 1832, casaram-se em cerimônia civil, longe dosaltaresreligiosos.Rivail,aliás,foitambémdiscípulodePestalozzinestaunião:amulher do fundador da escola deYverdon era sete anosmais velha do que omaridoe,comoAmélie,vinhadefamíliacomboasituaçãofinanceira.

Sem lhos, o casal se dedicaria a instruir os lhos dos outros em escolasprivadas ou instituições públicas, e chegaria a promover em casa, à rua deSèvres, durante cinco anos, cursos gratuitos de química, física, astronomia eanatomiacomparadaaalunospobresdavizinhança.

Agora, em meio às aulas e cursos, planilhas contábeis e lançamentos delivros,Rivailprecisariaencontrartempoparaosestudosdoinvisível.Aciênciaainda não tinha nome, o objeto de suas observações não tinha corpo e seus

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novosmestresusariamforçasaindaocultasparasemanifestar.

Rivail já tinha feito contatos com esse mundomisterioso quando começou aestudar, três décadas antes, as experiências conduzidas pelo médico alemãoFranzAntonMesmer.Aoobservarain uênciadaluasobreosaltosebaixosdamaré, Mesmer passou a especular sobre a possível in uência de um uidoinvisível — que permearia todo o universo— sobre o homem. Inspirado naaçãoadistânciados ímãssobreosmateriaismetálicos,batizouesta substânciadefluidomagnético.

Aideianãoeranova.Mesmerretomavaumalinhadeinvestigaçãopercorridadesde a Antiguidade. O lósofo e médico suíço Paracelso, já no século XVI,atribuía um espírito a cada elemento da natureza:mineral, vegetal ou animal.Namesmaépoca,omédicoequímicobelgaJanBaptistavanHelmontdefendiaa existência de um princípio vital comum aos homens e a todo o meioambiente:omagnetismoanimal.

O próprio Descartes, já no século XVII, declarou que o universo estariaimerso — e preenchido — por um éter onipresente. Quem sabe essassubstâncias invisíveis não pudessem ser usadas para curar ou transmitirinformações,emoçõeseenergiasdeumcorpoaooutro?

Mesmer passou da teoria à prática médica ao adotar, em sua clínica,tratamentos conduzidos comousode bastões de ferro imantados,mais tardesubstituídos pela imposição das próprias mãos do magnetizador sobre ospacientes emsessõesdecura.Deacordocomestemétodo, a transferênciadouido magnético do corpo do magnetizador ao do paciente reestabeleceria o

equilíbriododoente.Apesardoceticismodoscolegasdepro ssão,Mesmeravançounaspesquisas

e desenvolveu um instrumento tão original quanto polêmico: a cuba demagnetização.Uma caixa demadeira com cerca de 40 centímetros de altura,cheiadeágua temperadacomlimalhade ferro.Mesmercobriaestacaixacomumatamparepletadefuros,deondesaíambarrasdeferromóveis,econvidavaentãoospacientesaserecostarememtornodacubaeaencaixaremashastesmetálicas,conectadasà“águamagnética”,nospontosdocorpoemtratamento.

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Umacordauniaosparticipantesdecadasessãounsaosoutrosparapermitiracirculaçãodofluidoentreeles.

Assessõeseramrealizadasemsalasacolchoadas,aosomdepianoeàmeia-luz,aolongodeváriashoras,eatraíamnobreseburguesesabastados,dispostosapagarcaroparase livrardasagrurasdostratamentosconvencionaisdaquelestempospré-anestesia:sangrias,ventosaselaxantes,porexemplo.

Masasreaçõesaestasintervençõesmagnéticasnemsempreeramtranquilas.Pacientes chegavam a sofrer convulsões violentas e de longa duração. Efeitoscolateraisdescritosassimnesterelatório:

Movimentos de todos os membros e do corpo inteiro, aperto na garganta, sobressaltos doshipocôndrios e do epigástrio, tremores e alucinação dos olhos, gritos penetrantes, choros,soluçoserisosdescontrolados.Reaçõesprecedidasouseguidasdeumestranhoestadodetorporedesonho,deumaespéciedeabatimentoeatédeadormecimento.

Nassessõesàmeia-luznacasadasra.DePlainemaison,Rivailvislumbravaaaçãode uidosinvisíveisnosmovimentosdamesaedocestoeselembravadasdescobertas deMesmer e seus discípulos. Aquelemundo de forças e energiasdesconhecidas—livresdamatériapuraesimples—sempreatraiuodiscípulodePestalozzi.

Rivail conhecia bem a história do marquês de Puységur, adepto domesmerismo. Em 1784, ele fora chamado às pressas para atender a umcamponês de 18 anos, Victor Race, atormentado por fortes dores na coluna,acompanhadas de espasmos e convulsões. Após quinze minutos de passesmagnéticos,orapazentrouemsonoprofundo,semagitaçãoesemdor.Nesseestadodeinconsciência,passouaatenderaospedidosdomagnetizador,mesmoquandoasordensdomarquêsnãoeramexpressasporpalavras.

De olhos fechados, comoum sonâmbulo, perambulou pelo quarto e seguiucaminhos tortuosos—beirais e terraçosdedifícil acesso—comose estivessecomosolhos abertos.A linguageme amaneiradeo camponês se comunicarganhavamre namentoinéditoduranteesteestadodesonoacordadoouvigíliadormente.Eracomoseumoutroeu semanifestassenele.Eracomosevisseomundo com outros olhos. Quando voltou a si, descreveu o marquês, seupacienteestavacurado.

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Aobraeasproezasdeoutronobreilustre,obarãoDuPotet—consideradooprincipalrepresentantedaescolamagnéticanaFrança—,faziamocoraçãodeRivailacelerar.

Algumasde suasdeclaraçõesmexiamcoma imaginaçãodoprofessordesdeosanos1820,quandotextoscomoestesvieramàtona:

Ohomemqueadmiteapenasoqueseusolhosveemtemumavisãobemcurta.Aquelequenãoreconheceavisãodoespíritoseparececomohomemque,aoverumlivrofechado,nãooabre,não faz nenhum esforço para saber o que ele contém nem em adivinhar seu conteúdo,masafirmacomsegurança:“Nãohánadaescrito.”

Pormaiscéticoqueainda fosse,Rivail identi cavanos transeshipnóticosenospassesmagnéticosain uênciadeforçasocultaseconcordavacomastesescentraisdifundidaspelobarãoDuPotet:

Osnovosfenômenosnosmostramquenossaalmapodepercebersemosórgãosdossentidoseque,mergulhadosnomaisprofundosono,podemostomarconhecimentodelugaresdistantesdenós,veroqueaísepassaedescrevê-loclaramente.

O professor sentiu na pele, ou melhor, nos próprios olhos, os efeitos dosonambulismoaoenfrentarumproblemagraveentre1852e1853:aperdadevisão,apontodejánãoconseguirlernemescrever.Apósumasériedeexames,o médico especialista deu o diagnóstico: amaurose, com comprometimentoirreversível do nervo óptico. O paciente deveria se preparar para o pior: acegueiraiminente.

Nadúvida,Rivail decidiuouvir uma segundaopinião.Emvezde recorrer aoutro médico, o velho estudioso do magnetismo bateu na porta de umasonâmbula conhecida emParis por promover curasmilagrosas.Odiagnósticodela foi bemmenos dramático: não era amaurose,mas, sim, uma in amaçãonos olhos: “Em quinze dias experimentareis ligeira melhora; em um mêscomeçareis a ver, e, em dois ou três meses, estareis curado.” Em seguida,receitouaaplicaçãodeumamisturadeáguaeervas.

Ocronogramafoicumpridoàrisca.Aoveramesarodopiareocestoescrevernacasadasra.DePlainemaison,

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Rivailenxergourelaçõesentreessasmanifestaçõesmisteriosas,omagnetismoeo sonambulismo.Masamesaeocesto—“semnervosnemcérebros”—nãopoderiamserencaradoscomosonâmbulosemtranse.

Seriamentãoos uidosmagnéticosdasra.DePlainemaisonosresponsáveispor aqueles movimentos bruscos e pelas mensagens ainda vagas? A nal decontas,osfenômenossóaconteciamnapresençadela.

Eraprecisoestudar,eRivailencontrouumcampodeestudosmaisfértilparasuas pesquisas quando foi apresentado a duas meninas na casa da sra. DePlainemaison:CarolineeJulieBaudin,entãocom16e14anos, lhasdeEmile-CharleseClementineBaudin.

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PRAZER,SOULIÉ

As duas jovens atraíam inúmeros curiosos aos saraus promovidos na casa deseuspais,naruaRochechouart,eimpressionavamosvisitantespelacapacidadede pôr no papel — e não em pedras de ardósia — mensagens atribuídas ainteligênciasestranhas.

Toda semana, encaixavamum lápisno fundodeumacestadevime, comapontavoltadaparabaixo,eequilibravamesteaparelho,acorbeille,sobrepáginasembranco.Parasurpresadosespectadores,o lápisparecia,então,ganharvidaprópria,enquantopreenchiaosmaçosdepapelcomtextosdetodosostiposeestilos.

Onovométodo,muitomaispráticoee cientedoqueotatibitatetelegrá codasmesas falantes ou os garranchos sobre a ardósia, teria sido recomendadopelosprópriosseres invisíveisemsessõessimultâneaspromovidasnaEuropaenos Estados Unidos, ao som das rudimentares pancadas alfabéticas. Um dosamigosdeRivailouviraasinstruçõesdoalém,atravésdeumatableparlante,aoparticipardeuma sessão emParis: “Vábuscarnoquarto aí ao lado acorbeillepequenina,amarra-lheolápis,coloque-asobreopapel.”

Instantesdepois,acestapassouasemovereo lápispreencheuapáginaembranco. Era uma advertência sobre o conteúdo político de uma mensagemtransmitida,minutos antes, através damesa, agora inerte: “Oque vos disse lá(namesa),euvosproíboexpressamentedeocontardesaoutrem.Napróximavezqueescrever,escrevereimelhor.”

Com o auxílio das cestas de bico (o bico, neste caso, era o lápis), asmensagensganharampeso,profundidadeevelocidade,paraalíviodeRivail.

Atraído pelo novométodo, o professor tornou-se frequentador assíduo dassessõesconduzidaspelasirmãsBaudin.Noinício,osespectadoreslançavamaoar apenas perguntas sobre dinheiro, trabalho, saúde, amor — “questõesfrívolas”,segundoopróprioRivail.

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PresoaocestosustentadoporJulieeCaroline,olápissemovia,semcontatodiretocomsuasmãos,diantedetestemunhasávidasporrevelaçõespessoais.

A princípio, quase todas as respostas eram atribuídas a Zé ro, “espíritoprotetor da família”. Irônico e bem-humorado,Zé ro gostava de brincar comsuaplateia.

Rivail não achava graça.As respostas para questões tão fúteis poderiam serdadaspelasprópriasjovens,casodesenvolvessematécnicadeconduzirocesto,a quatro mãos, para formar frases inteiras. Com muito ensaio, uma delaspoderiaassumiropapeldecondutoraprincipal.

Porquenão?

Mas essa história começou a mudar quando outro visitante invisível seapresentouatravésdaescritadeCarolineBaudin.Destavezcomolápisàmão,livredacorbeille,ameninadeunomeesobrenomeaorecém-chegadodoalém:Frédéric Soulié, romancista e dramaturgo francês morto e enterrado nocemitériodoPère-Lachaisenoveanosantes.

Soulié zera sucesso no teatro, com peças comoClothilde, e tambémconquistara o público com romances mordazes, comoOs dois cadáveres eAsmemóriasdodiabo .A ironiados temposdevivocomeçoua semanifestarnasmensagens escritas pela jovem de 16 anos. Os textos terminavam, quasesempre,comarebuscadaassinaturadoescritor.

Rivail confrontou as assinaturas do além com as originais e couimpressionado com as semelhanças. Caroline, que tinha 7 anos quando oescritormorreu,precisariatertreinadomuitoparaalcançaresseresultado.

Porquenão?Soulié passou a fazer visitas frequentes, mas só aparecia quando um dos

frequentadoresdosarauestavapresente.Eracomosechegasseefosseemboracomestevisitante, identi cadoporRivailemsuasanotaçõescomoum“amigopóstumo”doescritor.Nessasnoites,Zé roseretiravaeSouliéassumiasozinhoaconduçãodolápisdeCaroline.

Masseriamesmoosaudosoescritor?Arespostacomeçoua carmaisclaraparaRivailquandoovisitantedoalém

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decidiu presentear a plateia, quase trinta pessoas — entre elas, a ressabiadaAmélie—comumcontoinédito.Otítulo:“Umanoiteesquecida”.Asprimeirasfrases erampromissoras: “Havia emBagdáumamulherdo tempodeAladino.Voucontarasuahistória.”

O lápis sustentado por Caroline preenchia as páginas em branco seminterrupções.OcenáriodocontoeraumbairropobredeBagdá,ondemoravaumafeiticeirachamadaManuza.Numanoitededesespero,osultãobateuàsuaporta em busca de socorro e, durante “um quarto de hora de espera e deangústiamortal”, ouviu ruídos assustadores e vislumbrou brilhos inexplicáveisvindosdetrásdaporta.

Umamatilhadecãeslatiaferozmente;haviagritoslamentososecantosdehomensemulheres,comono mdeumaorgiae,parailuminaressetumulto,luzescorriamdealtoabaixodacasa,como fogos-fátuosde todas as cores.Depois, comoquepor encanto, tudo cessou: as luzes seextinguirameabriu-seaporta.

Carolinenãopareciaterqualquerconsciênciadoqueescreviaechegavaarire conversar enquanto suamão se arrastava sobre o papel. Foram necessáriascinco sessões para que omistério deManuza e seu sultão fosse revelado porcompleto.

O texto chegava sem rasuras, com as cenas bem-encadeadas, e, a cadareunião, a escrita era retomada sempre do ponto certo— o último parágrafoescrito no encontro anterior —, apesar dos intervalos de duas ou até trêssemanasentrealgumassessões.

A gra a era idêntica à dos textos assinados pelo dramaturgo— letras bemdiferentesdasexibidasemmensagensatribuídasaoutrosvisitantesinvisíveis.

Carolinedeveriaterexcelentememória,alémdetalentoliterário,paraimitara forma e o conteúdo de Frédéric Soulié nessas sessões esparsas. E as irmãsteriamdeexercitarmuitoparanãoseconfundiraoadaptaraprópriaescritaàsletras e estilos de mais de vinte inteligências diferentes (o número demanifestantesaumentariaacadasemana).

Porquenão?Rivail tinha uma resposta para esta última questão.Oumelhor, tinha uma

sériedeperguntasafazer.PorqueCaroline,Julieeseuspaisperderiamtempo

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com fraudes comoessas?Oque ganhariamcomestas encenações, já quenãoaceitavam doações nem pediam qualquer contribuição? Por que a jovemCaroline renegaria a autoriadeumconto tãobemurdido comoodeFrédéricSoulié?

Comachegadadodramaturgomortoedosoutrosvisitantesinvisíveis,Rivail—que jádera razãoao amigoFortier ao admitiropoderde comunicaçãodasmesas—passouadarcréditotambémaoutrovelhoamigo,olinguistaCarlotti.Depoisde testemunhar asproezasdasmesasgirantes,dançantes, saltitantes efalantes, Carlotti passou a defender, com veemência, uma tese encarada comdescon ança pelo professor: na falta de cérebro e nervos, as mesas seriamguiadasporespíritos.

Espíritos!Foramelesmesmosqueseapresentaramassim—nessestermos—aoainda

desconfiadoprofessor.Quemsabe?

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VEMCONTEMPLAROINVISÍVEL

Um dos escritores e poetasmais célebres da França, Victor Hugo, não tinhadúvidas:osespíritosnãosóexistiamcomoexerciamsobrenósuma in uênciadecisiva.ParaoautordeOcorcundadeNotre-Dame ,azombariaemtornodasmesasgirantesefalanteserainjustificável:

Substituir o exame pelomenosprezo é cômodo,mas pouco cientí co.O dever elementar daciência é veri car todos os fenômenos, pois a ciência, se os ignora, não tem o direito de rirdeles.

Jáem1853,oescritorassistiraaosprodígiosdasmesasfalantesemreuniõespromovidaspelasra.GirardinemJersey,pequenailhasituadaentreaInglaterrae a França. Jornalista e autora de romances e comédias, esposa do político efundadordo jornalLaPresse,ÉmiledeGirardin,aan triãconduziaas sessõesmaisconcorridase,aomesmotempo,privadasdaépoca.

Balzac, amigo de Victor Hugo, chegou a testemunhar alguns diálogosimprováveis intermediados pelas mesas mágicas da jovem senhora. Nosencontros,visitantestãocélebresquantomortostravavamlongosdiálogoscomosconvidadosperplexos.

Na lista de interlocutores notáveis, Dante, Molière, Rousseau, Sócrates,Ésquilo, Shakespeare eMaquiavel.GalileuGalilei e JoanaD’Arc, duas vítimasdo Santo Ofício, também se manifestavam com frequência, para deleite deVictorHugo,adversárioferrenhodosdogmasdaIgreja.“Pensaréduvidar”,elerepetia, enquanto sonhava com uma religião capaz de aceitar e unir éis dediferentescrenças.

Em19desetembrode1854,umespíritoquesedenominouMorteconvidouo futuroescritordeOsmiseráveis adarumanovadimensãoàsuaobraeàsuavida:

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Vemolharoinabordável,vemcontemplaroinvisível,vemacharoimprovável,vemtransporointransponível, vem justi car o injusti cável, vem realizar o não real, vem provar oimprovável.

NopoemaÀVillequier,oescritordeuseutestemunhodefé:

EudigoqueotúmuloquesobreosmortossefechaAbreofirmamentoEqueaquiloqueaquiembaixoacreditamosserofimÉocomeço.

Eemcartaàsra.Girardin,enviadaem4dejaneirode1855,agradeceupelarevelaçãodetantos“horizontesmisteriosos”:

Asmesas nos dizem, com efeito, coisas surpreendentes. Como gostaria de conversar com asenhora,beijar-lheasmãos,ospés,asasas...

Para os céticos, tanto entusiasmo tinha uma triste explicação: a morte dalhadeVictorHugo,Leopoldina,edomaridodelanumnaufrágionoRioSena.

Oespíritodamoçateriasidooprimeiroasemanifestarquandoasra.Girardinapoiouumapequenamesademadeirasobreumamesamaiornasaladeestarepassouaintermediarosdiálogostelegráficoscomoinvisível:

—Quemés?—Filha.—Emquepenso?—Morta.

VictorHugoentrounaconversa:

—Ondeestás?—Luz.—Oquesedevefazerparairati?—Amar.

EmParis,semapresençadasra.Girardin,oescritoresuamulherusavama

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própriamobíliaparaestabelecercontatoscomooutromundo.Numanoitedetédio,recorreramaumamesadepédegaloembuscaderespostasdoalémparaaseguintequestãometafísica:qualéafunçãodohomemnaTerra?

Depoisdealgumtempo,amesacomeçouatremer,atébatercincopancadas:letraE.Depois,forammaisquatropancadas—letraD—e,emseguida,outrascinco,umnovoE.

EDE.Apósbrevepausa,amesatelegrafouasletrasI,O,R,A—eparoudevez.A

palavraformadapelaspancadasnãofaziaomenorsentido:EDEIORA.Perguntou,então,asenhoraVictorHugo:

—Éestaarespostaàpergunta?—Sim.—Masnãosetratadeumapalavrafrancesa...—Não.—Éumapalavralatina?—Não.—Sãováriaspalavraslatinas?—Sim.

Comaajudadeduasvírgulas,acharadafoidecifrada:EDE,I,ORA.Embomlatim:coma,caminhe,ore.Afórmuladavida,edopapeldohomemnaTerra,segundoovisitantedoalém.

Aos amigos que insistiam em duvidar de seus relatos e aos sábios quedesprezavamosfenômenos,VictorHugoalertava:

Se abandonardes os fatos, tomai cuidado.Os charlatões aí se alojarão, e os imbecis também.Nãohámeio-termo:ouciênciaouignorância.Abandonarosfenômenosàcredulidadeétrairarazãohumana.

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MELHORREJEITAR10VERDADES

Comcadernetasdecourosempreàmãoe lápisa adosapostosnosbolsosdocolete,Rivailpassouaanotarcomletramiúda—que,muitasvezes,sóAmélie,além dele, conseguia decifrar— impressões e interrogações sobre os diálogoscomZéfiroeoutrosvisitantesinvisíveisnacasadasirmãsBaudin.

Erammuitasasperguntasaindasemresposta.Estariamessasinteligênciasnahumanidadeouseriamsobre-humanas?AsirmãsBaudincaptariamnoar—noinconscientedosvivos—ounoalémasmensagensatribuídasaosmortos?Emoutraspalavras:estariamosmortosvivos?

EstaseramasquestõescruciaiscapazesdetornarmuitomenospenosaavidanoséculoXIX.

OperigoeadesgraçaestavamàespreitaportodaaFrança.Acapitalculturaldomundo,cenáriodaRevoluçãoFrancesa,enfrentavatempossombrios.AtaxademortalidadeemPariseraamaiselevadaentreosprincipaiscentrosurbanosdaEuropa.Umterçodetodososnascimentosnacapitaleramilegítimos,eumdécimodosrecém-nascidoseramabandonadosnohospitaldeenjeitados,onde60%delesmorriamantesdecompletarumano.

Em meados do século XIX, um em cada dez parisienses dependia daassistência social ouda caridadepara sobreviver.Eo rio Sena, tão romântico,erapalcodeumsextodetodosossuicídiosdaFrança.

O romancistaHonorédeBalzac, cadavezmais lido e admiradonaEuropa,retratava nos volumes de suaComédia humana , lançada em 1842, o abismoentreosricoseospobresemParis.EmAmeninadosolhosdeouro ,descreviaassimaaparênciadosmoradoresempobrecidosdacidade:

Seusrostos—abatidos,amarelados,castigadospelasintempéries(...),contorcidos,des gurados— erammais máscaras do que rostos, máscaras de fraqueza, máscaras de força, máscaras dedesdita,máscarasdeprazer,máscarasdehipocrisia.

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Onde estava oDeusmisericordioso nisso tudo?Qual o sentido da vida emmeioatantamiséria?Comoaceitarainjustiçadesenascercondenadoàmorte?

Eracomceticismosim—ecomumaimensaesperançatambém—queRivaillutavaparadecifrara lógicapor trásdovéuqueseerguiaemtornodasmesasgirantes e dos cestos escreventes. Para ltrar as informações do além, tentouagir como um legítimo discípulo de Pestalozzi: “Observar, comparar e julgar,essaaregraqueconstantementesegui.”

A cada sessão na casa das irmãs adolescentes, as perguntas cavam maiscomplexas.Rivailcolocavaàprovaosespíritos—dosvivosoudoalém...Comoter uma con rmação da existência de Deus? O espaço universal é um todoinfinitooudelimitado?Aseparaçãodaalmaedocorpoédolorosa?

Oprofessorpassoua levarparaasreuniõessemanaisperguntascomoessas.Na pauta do longo inquérito, questões sobre a vida e a morte, a moral e apsicologia,esobreosbastidoresdomundoinvisível.

Para tristeza de boa parte da antiga plateia de Zé ro, as conversas com oalém foramse tornandocadavezmenospessoais.Comou semcestodebico,Caroline e Julie passaram a intermediar diálogos como este, conduzido porRivail:

—Osespíritospossuemumaformadeterminada,delimitadaeconstante?—Avossosolhosnão; aosnossos, sim.Ela será, se imagemquiserdes, amaouclarãoou

centelha.

Acadarespostamaiselaboradavindadasmãosoudocestodasjovensirmãs,oprofessorficavamaisesperançoso:

O simples fato de se comprovar a comunicação dos espíritos, dissessem eles o que dissessem,provariaaexistênciadomundoinvisível.

Ficavatambémpreocupadocomtantaresponsabilidade:

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Compreendi antes de tudo a gravidade da exploração que ia empreender; percebi, naquelesfenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro dahumanidade,asoluçãoqueeuprocuraraemtodaaminhavida.

Oproblemaeraamorteea solução,avidaemoutrosplanos, invisíveisaossimplesmortais(ouimortais?):

Era, em suma, toda uma revolução nas ideias e nas crenças; fazia-semister, portanto, andarcom amaior circunspecção e não levianamente; ser positivista e não idealista, para nãomedeixariludir.

TestemunhoscomoosdeVictorHugo—eoapoiopermanentedeAmélie— estimulavam Rivail a ir em frente. E sua convicção aumentava com asnotíciasdequeasmesmas informaçõessobreadinâmicademundos invisíveiscomeçavam a se revelar em outras sessões de mesas girantes mundo afora,conduzidas ou testemunhadas por “pessoas sérias, honradas, instruídas edignas”.

Quanto mais perguntas lançava ao invisível e mais respostas consistentesobtinha do “lado de lá”, mais Rivail se irritava com o tratamento dado pelaciênciaaosnovosfenômenos.FaradayeChevreul,porexemplo,nãopoderiamter chegado tão rápido a conclusões tão de nitivas sobre a inexistência deforças invisíveis nas manifestações das mesas. Faltavam a estas pesquisas,supostamente cientí cas, três qualidades básicas: continuidade, regularidade eisenção.

Rivail protestava e avançava, el a uma linha de conduta radical: “Melhorrejeitar dez verdades como sendomentiras do que aceitar uma únicamentiracomosendoverdade.”

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E,contudo,elassemovem

Para ltrareorganizarasmensagensdoalém—etentaridenti carverdadesementirasnesteintercâmbio—,oprofessorviravanoiteseabriamãodefériasens de semana. O volume de anotações e a qualidade dos textos ganhavam

forçaeconsistência,acadasessão:

—Oquesetornaaalmanoinstantedamorte?—Aalma,quehaviadeixadoomundodosespíritosparavestiroenvoltóriocorporal,deixa

oenvoltórionomomentodamorteevoltaaser,numinstante,espírito.

Amélie acompanhava o marido nas reuniões e o ajudava na revisão dasmensagens escritas a jato em meio às batidas das mesas e aos espasmos esolavancosdascorbeillessobreaspáginasembranco.Descon adanoinício,elafoiganhandocon ançaaosedepararcomdiálogoscomoestes,saídosdasmãosmiúdas de Caroline e Julie, com idade para serem suas netas e maturidadeintelectualparaseremsuasalunas:

—Aalma,depoisdamorte,conservasuaindividualidade?— Sim, não a perde nunca. Tinha-la antes da encarnação; conserva-la durante a união e

depoisdaseparaçãodocorpo.

RivailcostumavafazerasmesmasperguntasàsirmãsBaudineàsenhoraDePlainemaison — em dias, horários e endereços diferentes — e já não sesurpreendia quando as respostas se repetiam, palavra por palavra, como seviessem damesma fonte, e não das mãos, mesas e cestos manipulados pelasadolescentes ou pela velha senhora, com idades e formações culturais tãodistintas.

Depoisdemesesdechecagenserechecagens,provasecontraprovas,críticase autocríticas, as dúvidas que atormentavam Rivail deram lugar a uma

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convicção:aorigemdetodasaquelasinformações(muitasdelasdesconhecidasaté mesmo por ele) só poderia ser o invisível. Ou melhor: os espíritos. Eespíritos de todos os níveis. Frívolos, elevados, levianos, sublimes, profundos,triviais—falíveisouadmiráveiscomoqualquermortal.

Espíritostãocon áveisquantososvivos.Ouseja:eraprecisotomarcuidadocomeles.

A convivência com o divertido e às vezes um tanto fútil Zé ro levouRivail aumaconclusãobásica:aopiniãodosinterlocutoresinvisíveisdeveriaterovalorde uma crença pessoal e não a força de uma verdade absoluta, ditada porsupostos espíritos superiores. Eles seriam “fontes de informação” e não“reveladores predestinados”, e as mensagens que transmitiam deveriam serconfrontadaseavaliadascombomsensoediscernimento.

Convencidodaexistênciadeespíritos,Rivailpassouentãoàsegundaetapadesuainvestigação:desvendaronebulosoprocessodeintercâmbiocomoalém.

Comode nir,porexemplo,as irmãsBaudin,asra.DePlainemaison,asra.Girardin e outros an triões, de ambos os sexos, encarregados de intermediardiálogos entre vivos e mortos para deleite, descrença, diversão, instrução ouconsolodemilharesdetestemunhasávidaspornotíciasdoalém?

“Médium” — este era o nome correto, anunciou Rivail, após uma novarodada de entrevistas com os colaboradores invisíveis. Médium: meio,intermediárioentreosespíritoseoshomens—definiu.

Eporquesóemtornodestesmédiunsasmesas,cestas, lápiseponteirosdeardósia semoviam?PorqueopróprioRivail,porexemplo,não seria capazdepôr no papel as lições do além sem necessidade de intermediários? Causasfísicasemorais—“aindaimperfeitamenteconhecidas”,segundooprofessor—seriamasresponsáveisporestedom,quedeveriatambémserexercitado.

Foram necessários dez meses de incessantes diálogos com o invisível e depesquisascomplementaresparaqueoprofessorRivaildesenvolvesseasbasesdoquedefiniria,maistarde,comociênciaespírita.

Primeiro,os“nãos”:

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•Nãoeraoespíritoquemmoviaasmesascomasprópriasmãoseaslançavadeumladoaooutrocomosprópriosbraços.Motivo:seucorpoera uídicoenãopoderiaexercerumaaçãomusculardiretasobreosobjetos.•Nãoeraomédiumquemusavaopróprio uido,oumesmoasprópriasmãos,para transmitir mensagens através de mesas ou cestos. Um dos motivos:médiuns como as irmãs Baudin não teriam cultura para dar determinadasrespostas.Oconhecimentoviriadeinteligênciasestranhas.

Como então o espírito, ou “ser invisível”, atuaria sobre a matéria inerte?Simples (ou não tão simples assim): através dos uidos do médium. Acombinaçãodos dois uidos (do espírito e domédium) seria responsável peladançadasmesas.

O espírito satura a mesa com seu próprio uido, combinado com o uido animalizado domédium.Por essemeio, amesa camomentaneamente animadadeumavida ctícia: entãoobedeceavontade,comoofariaumservivo;porseusmovimentosexprimealegria,cóleraeosdiversossentimentosdoespíritoquedelaseserve.

Omesmoaconteceria comocesto, como lápis e comasprópriasmãosdomédium nesses ditados do além. O uido universal seria a matéria-prima detantosfatosinexplicáveis—“veículoeagentedetodososfenômenosespíritas”,comoescreveriaRivail.

Tudo parecia se encaixar. Tudo fazia sentido para o velho professor... E tudoparecia completamente absurdo para a maioria dos cientistas e jornalistas daépoca:mesasquecontrariavamas leisdagravidade,mensagens inconsistentessaídas de cestos manipulados, jovens histéricas (palavra muito em voga naépoca)ávidasporchamaratençãoe uidosmagnéticoscaquéticosemaçãoemplenoapogeudaciência.

Era preciso, sim, caminhar com “circunspecção” nesse território nebuloso,mas nem sempre Rivail conseguia manter a moderação diante da descrençaalheia.

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Quando os críticos insistiam em menosprezar e ridicularizar a dança dasmesas,elerecorriaàfrasequeGalileuteriaditoaosairdotribunal,logodepoisde condenado pelo Santo Ofício pela heresia de a rmar que a Terra girava:“Eppursimueve!”

E,contudo,elassemovem...

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PARATI,SOUAVERDADE

A cada nova revelação, Rivail cava mais convencido da necessidade decompartilharcomopúblicoas informaçõesrecolhidasnaquele longoprocessode entrevistas com o invisível.Umnovo livro ganhava corpo nessamaratonaexaustiva.Amélie apoiavaos esforçosdomarido, sem saberque faltavapoucoparaelemudardevida...edenome.

Nessaépoca,ocasalmoravanumapartamentodefundosnaruadesMartyrs,número8,segundoandar.Efoilá,duranteanoite,enquantopassavaalimpoasinformações do dia, que Rivail foi surpreendido por uma série de pequenaspancadas na parede. No início, não deu atenção aos ruídos e continuou aescrever.

Comotempo,aspancadas carammaisfortesepassaramaseespalharportoda a parede. O ruído só parava quando Rivail interrompia o trabalho parainvestigarsuaorigem,elogovoltavaquandoeleretomavaaescrita.

Àsdezdanoite,Amélie,recém-chegada,entrounoescritório,preocupada.Oqueestavaacontecendo?Rivailnãosabiaresponder.

Paris estava em obras, revirada pelas reformas comandadas pelo barãoGeorges-EugèneHaussmann,nomeadoprefeitododepartamentodoSenaporNapoleão III, três anos antes. Elemesmo se intitulara “Artista daDemolição”enquanto derrubava prédios para abrir ruas, transformava ruas em avenidas equarteirõesembulevares.

Tanto barulho poderia ser consequência de marteladas tardias, estalosprovocados por rachaduras subterrâneas oumesmo de ratos entranhados nosforros do imóvel. O casal vasculhou cada cômodo do apartamento, saiu aocorredorembuscadepistas,enada.BastavaRivailvoltaraescreverparaqueabateção interrompesse seu trabalhodenovo.Obarulho continuaria atémeia-noite,quandoRivaildesistiuefoidormir.

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Omistérioseriadesvendadonodiaseguinte,emnovasessãonacasadasirmãsBaudin, com a presença de Zé ro e de um acompanhante ilustre. Era 25 demarçode1856,eacorbeilletrabalhourápidoparadarexplicaçõesaoprofessorRivail:

—Qualacausadaquelaspancadas?—Eraoteuespíritofamiliar.—Comquefimfoielebaterdaquelemodo?—Queriacomunicar-secontigo.—Equeméesteespírito?—Podeperguntaraele.Eleestáaqui.

Rivailtomoufôlegoeconduziuaconversacomomáximodecordialidade—eformalidade—possível:

—Meu espírito familiar, quem quer que tu sejas, agradeço-te pela visita. Consentirás emdizer-mequemés?

Osilênciotomoucontadasalaenquantoolápispercorriaopapel.

—Para ti, chamar-me-eiAVerdade, e todos osmeses, aqui, durante um quarto de hora,estareiàtuadisposição.

—Ontem,quandobateste,tinhasalgoparticularadizer-me?

Acorbeillesemoveudenovo:

—Desagradava-meoqueescreviasequisfazerqueoabandonasses.— A vossa desaprovação dizia respeito ao capítulo que eu escrevia ou ao conjunto do

trabalho?—Aocapítulodeontem:submeto-oaoteujuízo;seoreleres,reconhecerástuasfaltaseas

corrigirás.

Rivail já tinha revisado os originais, mas não o su ciente, segundo ocopidesquedoalém:

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—Otextoestámelhor,masaindanãosatisfaz.Relêdaterceiraàtrigésimalinhaedepararáscomumgraveerro.

Rivail disse ter rasgado os originais da véspera, e o lápis então se moveurápidosobreopapelparacompletarumafraseumtantoríspida:

—Nãoimporta!Issonãoimpediuqueafaltacontinuasse.Relêeverás!

Melhor acatar emudarde assunto.ERivail, curioso, tentoudescobrirmaissobreaidentidadedeseunovoguia:

—OnomeVerdade,queadotaste,constituiuumaalusãoàverdadequeprocuro?—Talvez.Sereiaomenosumguiaqueteprotegeráeajudará.

AsvisitasmensaisanunciadaspelovisitantenoiníciodaconversaparecerampoucoaRivail,imersonumemaranhadodeperguntaserespostas.

—Podereievocar-teemminhacasa?— Sim, para te assistir pelo pensamento; mas só daqui a muito tempo poderás obter

respostasescritasemtuacasa.

Ouseja:os uidosdasirmãsBaudinaindaseriamnecessárioscomocanaisdecomunicação.Insistente,Rivailvoltouaoassuntosobreaidentidadesecretadeseuguia:

—TerásanimadonaTerraalgumapersonagemconhecida?

Arespostaveiosecamaisumavez:

—Játedisseque,parati,souaVerdade;isto,parati,querdizerdiscrição;nadamaissaberásarespeito.

Ao voltar para casa, o professor Rivail identi cou um erro crasso na

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trigésima linha de um capítulo escrito sobre a manifestação de espíritos e ocorrigiu.Ajulgarpelosilêncionaquelanoite,fezumbomtrabalho.

Duassemanasdepois,em9deabril,reencontrouseuguianacasadafamíliaBaudin e ouviu novos conselhos. O capítulo tinha melhorado, sim, masconvinhaaindaesperarantesdedivulgarqualquertexto.Eeraprecisotambémresguardaraomáximoosoriginais.Quandoalguémpedisseparalerosescritos,omaisseguroafazerseriaencontrarumaboadesculpaparaarecusa.

—Daquiatélá(apublicação),melhorarásestetrabalho.Faço-teestarecomendaçãoparatepouparacrítica;édoteuamor-próprioquecuido.

Malacestaparou,játevedesemoverdenovopararesponderoutraquestão,umapreocupaçãopessoaldoprofessor:

—Dissestes que serás para mim um guia, que me ajudará e me protegerá (...). Poderiasdizer-meseessaproteçãotambémalcançaascoisasmateriaisdavida?

Arespostaveiosuavedestavez:

—Nestemundoavidamaterialimportamuito;nãoteajudaraviverserianãoteamar.

Amélie,presenteàsessão,ficoualiviada.Quemsabeavidanãomelhoraria?

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MISSÃOPERIGOSA

Rivail trabalhava duro para se recuperar de uma série de baques nanceiros,iniciadamuitos anosantes.Em1834, tevedevender suapartenocolégioquefundara, o Instituto deEnsinoRivail, por causa de umadívida acumulada porseutio,sóciocapitalista,viciadoemjogos.Recebeu45milfrancospelonegócioe decidiu con ar toda a soma — pequena fortuna na época — a um amigoinvestidor.Mesesdepois,esteamigofaliueperdeutudo,inclusiveodinheirodeRivail.

Para pagar as contas, o professor passou a cuidar, durante o dia, dacontabilidadedetrêsempresas(entreelas,oteatroLesFoliesMarigny)—quelhe rendiam cerca de 7mil francos por ano— e a escrever, durante a noite,gramáticas e aritméticas, enquanto preparava cursos, corrigia provas... etambémsearriscavanoterrenoteatral.

Poucos alunos ou colegas de ensino do compenetrado professor Rivailsabiam,mas uma versão abreviada de suas iniciais—H. Rivail— estampara,em1843,oscartazesdeumapeçaintituladaUnepassiondesalon (Umapaixãode salão), comédia romântica de um ato, com treze cenas ligeiras, escrita aquatromãoscomojovemdramaturgoLéonardGallois.

O “salão” citado no título da obra era o Louvre. Nas galerias domuseu, oprotagonista da peça — o jovem e um tanto insolente Félicien — foraarrebatado por uma paixão fulminante. O alvo de tanto furor: uma jovemretratada numa das telas em exposição. Para se aproximar de sua paixão,contratouospréstimosdo renomadopintor responsávelpelaobra-prima, semsaber que o alvo de sua cobiça era irmã do artista ambicioso. Tudo muitodivertidoeromântico,masnadalucrativo.

A situação nanceira do casal de educadores só piorou quando LuísBonaparte, sobrinhodeNapoleão I, venceuas eleiçõespresidenciais em1848,com o apoio decisivo do partido clerical. Logo após a vitória abençoada pelo

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Vaticano, um novo projeto de lei sobre o ensino entrou em votação, sob asupervisãodoministroda InstruçãoPública edosCultos,o condedeFalloux,aliadodopapaedefensorintransigentedopoderdaIgrejaCatólicaemmatériadedisciplina,féeeducação.

Apósaaprovaçãodanovalei,asescolascatólicaspassaramarecebertodooapoio do clero e do novo presidente — logo autoproclamado imperadorNapoleão III, comasbênçãosdosbisposecardeais.Comrecursos nanceirosquase ilimitados, 257 escolas secundárias católicas foram fundadas de 1850 a1852,enquantoaslaicasfechavamasportas.

NasinstituiçõesdeensinodoSegundoImpério,omestretornou-se,cadavezmais,umsubordinadodosacerdote.Párocospassarama scalizarasescolas,eprofessoresforamforçadosarecitarocatecismoeazelarpelamoralcristãemsaladeaula,independentementedafé—oudafaltadefé—deseusalunos.

Quem se recusasse a seguir as novas regras — e a prestar juramento dedelidade ao novo imperador — era demitido. Mais de oitocentos mestres

foramafastados de suas funções logo após o golpedeEstado.Aodiscípulo dePestalozzisórestouabandonaromagistériodepoisdetrintaanosdeensino.

Durantetodootempo,Amélieesteveaoladodomaridoe,comosuportedopai, tabeliãoeprósperoproprietáriode terras,ajudouRivailacomplementararenda mensal obtida com a venda dos livros pedagógicos — cada vez maisescassanonovoregime—ecomosbicoscomocontador.

Oapoiomaterialprometidopeloguiaespiritual seria,portanto,muitobem-vindo.

Pouco antes da providencial aparição de seu protetor, o professor cogitaraabandonaroterrenoespinhosodasinvestigaçõesdoalém.SónãofoiemfrenteporquereencontrouovelhoamigoCarlottierecebeudesuasmãosnadamenosdoquecinquentacadernosrepletosdemensagens.

O calhamaço de textos escritos a lápis veio da casa do sr. Roustan, na ruaTiquetonne, número 14, pelas mãos de outra sonâmbula — ou melhor,médium:RuthJaphet,entãocom19anos.

Difícil recusar uma oferta daquelas em pleno processo de pesquisa. Rivail

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aceitouopresenteearesponsabilidadedelegadaporCarlotti:avaliar,condensare organizar omaterial reunido ao longo de cinco anos de sessões conduzidaspelolinguistaeumgrupodecolaboradoresilustres—oprofessorelexicógrafoAntoineLéandreSardou,o futuromembrodaAcademiaFrancesaSaint-RenéTaillandier, o livreiro Pierre-Paul Didier e o lósofo Tiedeman-Marthèse,primo-irmãodarainhadaHolanda.

MuitasdasmensagensreunidasnoscadernostraziamrespostasaquestõesjátratadasporRivailnosencontroscomasirmãsBaudin,eajudaramoprofessoracon rmaroucorrigirdeterminadasinformações.Comfôlegorenovadoecomo apoio dos amigos, ele passou a frequentar também as sessões da ruaTiquetonne.

A revisão nal dos textos do além foi conduzida ali em diálogos com oinvisívelintermediadosporRuthJaphet,lápisàmãoouàcesta,velozecerteiro.

Numadessassessões,em30deabrilde1856,Rivaillevouumsusto.Acestase voltou em sua direção— como se apontasse o dedo para ele— e o lápiscolocounopapelumamensagemenigmática:“Quantoati,Rivail,atuamissãoaíestá:ésoobreiroquereconstróioquefoidemolido.”

Nodia 12de junhode 1856, oEspíritodaVerdade voltou a semanifestar,agora pela escrita de outra médium, Aline C., e Rivail aproveitou para pedirdetalhes sobre amissão ainda nebulosa. Desta vez, tudo coumais claro... emaisassustador.Caberiaaeleorganizaredivulgarumanovadoutrina,capazderevolucionar o pensamento cientí co, losó co e religioso. Tantaresponsabilidade—etantahonra—preocuparamaindamaisoprofessor.

—Dize-me,peço-te,éumaprovaparaomeuamor-próprio?

Elequeria, sim, contribuirpara a “propagaçãodaverdade”—disse—,mashavia uma distância grande, e talvez perigosa, entre o papel de simplestrabalhadoreode“missionárioemchefe”.OEspíritodaVerdadecon rmouamissãoerecomendoudiscriçãomáximaaseuprotegido:

—Nunca falesda tuamissão: seria amaneirade a fazeresmalograr-se.Ela somentepodejusti car-se pela obra realizada e tu ainda nada zeste. Se a cumprires, os homens saberãoreconhecê-lo,cedooutarde,vistoquepelosfrutoséqueseverificaaqualidadedaárvore.

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Ainda havia muito, ou melhor, tudo a fazer, e os riscos de fracasso eramgrandes.

— Não esqueças que podes triunfar, como podes falir. Neste último caso, outro tesubstituirá,porquantoosdesígniosdeDeusnãoassentamnacabeçadeumhomem.

Rivailquestionou:

—Querazõesmefariamfracassar?Seriaainsuficiênciadasminhasaptidões?

Eleguardaria—ereleria—alongarespostaatéofimdavida:

—Amissãodos reformadores é repletadeobstáculos eperigos.Previno-tedeque a tua érude,poissetratadeabalaretransformaromundointeiro.Nãosuponhasquetebastepublicarumlivro,doislivros,dezlivros,paraemseguidaficarestranquilamenteemcasa.

Seriaprecisosairdogabineteeiraocampodebatalha:

— É necessário que te mostres no con ito. Ódios terríveis serão açulados contra ti,implacáveisinimigostramarãotuaperda;ver-te-ásabraçoscomamalevolência,comacalúnia,comatraiçãomesmadosqueteparecerãoosmaisdedicados;astuasmelhoresinstruçõesserãodesprezadasefalseadas;pormaisdeumavezsucumbirássobopesodafadiga.

A julgar pelas previsões do protetor espiritual, a vida do professor seriamarcadaporumasucessãodesacrifícios:dorepouso,datranquilidade,dasaúdeedaprópriavida.

Para lidar com tantos perigos e sacrifícios, o Espírito da Verdaderecomendou ao discípulo uma série de cuidados e qualidades: humildade,modéstia, desinteresse, coragem, perseverança, devotamento, abnegação,rmezainabalável,prudênciaetato,paranãocomprometerosucessocomatos

oupalavrasintempestivas.Mas nem tudo estava perdido. Rivail tinha direito, sim, de recusar esta

missãonadatentadora.

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— Tens o teu livre-arbítrio. Cabe a ti usá-lo como entendes. Nenhum homem estáconstrangidoafazerfatalmenteumacoisa.

Rivailleuas“cláusulas”docontratoeassinouembaixo.Oumelhor,disseemaltoebomsom,diantedastestemunhaspresentes:

—Aceitotudosemrestrição.

Dezanosemeiodepois,aorelerestamensagem,Rivailcon rmaria,pontoaponto,cadaalertadoguia.SuavidaestavaprestesamudarradicalmentecomapublicaçãodeOlivrodosespíritos.

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PARTEIII

NOCAMPODEBATALHA

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ONOMEDEGUERRA

Comocuidadodequemjátinhaescritoelançadomaisdevintelivrosdidáticos,Rivailsededicouaburilarosditadosdoalémparatorná-losclaroseatraentes.O formato que adotou, típico da loso a clássica, foi o de listar perguntas erespostasenumeradas,ladoalado,namesmapágina.

Na coluna da esquerda, as interrogações lançadas aos espíritos,acompanhadasderespostascurtas,“textuais”,atribuídasaoinvisível.Nacolunada direita, versões ampliadas de cada resposta, revisadas pelo professor. Aotodo, 501 diálogos curtos sobre os mais diversos temas, subdivididos em 916blocosdeperguntaserespostas.

Aquestão211,porexemplo,englobarianovepingue-ponguesligeiros,sobreopapeldomédiumesuaformação:

—Afaculdadedeescreversobainfluênciadeespíritosédadaatodaagente?Não,nãonopresente;maistardesim,todaagentepossuiráessafaculdade.—Quecondiçãodeveráahumanidadeadquirirparaquetalfaculdadevenhaasergeral?Quando os homens estiverem transformados emelhores, obterão essa faculdade emuitas

outrasdequenãogozamporsuainferioridademoral.

Emseguida,umarespostaatravessada:

—EssatransformaçãohumanasedaráaquinaTerra,ounãoseproduzirásenãoemmundosmelhores?

Acabamosdedizê-lo;elacomeçaráaquinaTerra.

Fé,prática,vocação?Oquetornaria,afinal,ohomemummédiumatuante?

—A faculdade de escrever é espontânea ou também é suscetível de se desenvolver peloexercício?

Umaeoutracoisa;elaexigenãoraropaciênciaeperseverança,poisqueéodesejoconstante

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domédiumqueajudaosespíritosavirempôr-seemcomunicaçãoconvosco.—Aféénecessáriaparaseadquirirafaculdadedemédiumescrevente?Nemsempre.Muitasvezescomafénãoseescreveesemelaseescreve; todavia,a févem

depois.Issodependedosplanosdaprovidência.

Rivail tentava ser omais didático possível, para atingir omaior número deleitores—crentesedescrentes,iniciadoseleigos:

—Omédiumescreventejamaistemconsciênciadoqueescreve?Jamais não é o termo, pois acontece muitas vezes que ele vê, percebe e compreende

enquantoescreve.

Odiálogo211incluiriaaindaoutrasduasquestõessobreaescrita—àsvezesilegível—dosmédiuns:

—Quandooescritoéindecifrável,dequemodoomédiumopodelerelepróprio?Porumaespéciedelucidez,ouentãoéoespíritoquemlherevela.—Equeconclusãopodemostirardamudançadecaligrafianaescritadomédium?Espíritosdiferentesquesecomunicam.

Estesdiálogosentre“vivos”e“mortos”ocupariam176páginas,divididasem24capítulos,nestaprimeiraversão.

Otrabalhoavançavarápidoelivredepancadasinvasorasnomeiodanoite.

Nodia17de junhode1856,oEspíritodaVerdadevoltouà cenana casadasirmãsBaudinpararecomendarnovosajustesecuidados:

—Oquefoirevistoestábom;mas,quandoaobraestiveracabada,deverátornararevê-la,afimdeampliá-laemcertospontoseabreviá-lanoutros.

SedependessesódeRivail,olivroseriabemmaislongo,mas,deacordocomo guia, ele deveria guardar determinadas revelações para um momento maisoportuno,quandooleitorestivessepreparadoparaelas:

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—Pormais importantequesejaesteprimeirotrabalho,elenãoé,decertomodo,maisdoqueumaintrodução.

Amensagemterminavacomconselhostáticosaocombatente:

—Vê,observa,sondaoterreno,dispõe-teaesperarefazecomoogeneralcautelosoquenãoataca,senãoquandochegaomomentofavorável.

Com a devida cautela, Rivail deixou para escrever por último o texto deapresentaçãodo livro.Chegaraomomentodedarnome e sobrenomeànovadoutrina,eeledividiucomosleitoresalógicadestebatizado:“Paracoisasnovaséprecisoterpalavrasnovas”—iniciouoprefácio,comcuidadosdepedagogo.

As palavras “espiritual”, “espiritualista” e “espiritualismo” já tinhamsigni cadosbemconhecidosdesdeaAntiguidade.Osespiritualistas—“opostosaosmaterialistas”—acreditavamqueo corpoémaisdoquemera carne,masnem todos apostavam na existência de espíritos ou na possibilidade decomunicaçõescomochamadomundo invisível, verdadesdefendidaspelanovadoutrina.

Comochamarentãoestanovacorrenteespiritualista?Onomeveioapúblicopelaprimeiravez, impressoempapel,na introdução

deOlivrodosespíritos:

Em lugar das palavrasespiritual eespiritualismo, empregamos, para designar esta referidacrença,osvocábulosespíritaeespiritismo.

A seguir, uma de nição sucinta, que o professor iria aprofundar — edefender—emnovoslivroseartigos:

Acrençaespírita,ouoespiritismo,consisteemacreditarnasrelaçõesentreomundofísicoeosseresdomundoinvisívelouespíritos.

OscréditosimpressosnacapadeOlivrodosespíritos nãodeixariamdúvidasquantoàautoriadaobra:“Escritoepublicadoconformeoditadoeaordemde

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espíritossuperiores.”Eatémesmoailustraçãodeaberturadaprimeiraediçãoseriaobradoalém.

Uma espécie de logomarca, oumelhor, símbolo da nova doutrina, desenhadapor uma dasmédiuns. Em vez da cruz católica, a cepa de vinha, “símbolo dacriaçãodohomemporDeus”: “Ocorpo é a cepa; a alma éobago; o espírito,enfim,éovinho.”

A campanha de marketing estava pronta, e o professor não seria nadacomedido ou cauteloso — como recomendara o Espírito da Verdade — aovender o conteúdo do livro num longo subtítulo: “Os princípios da doutrinaespírita. Sobre a natureza dos espíritos, suasmanifestações e relações com oshomens; as leis morais, a vida presente, a vida futura e o destino dahumanidade.”

De uma vez só, proclamava a nova doutrina, sacramentava a existência deespíritoseanunciavarevelaçõessobreofuturodahumanidade,semmencionarasvertiginosasejáumtantoentediantesmesasgirantes.

Mas quem procurasse as iniciais do discípulo de Pestalozzi logo abaixo dosubtítulo não as encontraria. Em vez do renomado educador “H.L.D. Rivail”,umilustredesconhecidoganhoudestaquenacapado livro,emnegritoecaixaalta,comoresponsávelpororganizaroditadodoalém:

ALLANKARDEC

Emcarta enviada ao amigoTiedeman,oprofessormediu cadapalavraparajustificaraadoçãodeumpseudônimo:

Lancei mão de um artifício, uma vez que dentre cem escritores há sempre ¾ que não sãoconhecidosporseusnomesverdadeiros.

Mas aquele não seria um artifício qualquer: “O pseudônimo Allan Kardecguardaumacertasignificação,podendoeureivindicá-locomopróprioemnomedadoutrina.”

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A decisão teria sido tomada com o aval de diferentes espíritos, através dediversosmédiuns:

Digomais:eleenglobatodoumensinamentocujoconhecimentoporpartedopúblicoreservo-meodireitodeprotelar.

Sómaistarde,Rivailrevelariaosbastidoresdaorigemdeseunovobatizado,também testemunhadoporAmélie.Onome foi revelado a eleporZé ro, emsessãonacasadasirmãsBaudin,ecarregavaahistóriadeoutrasvidasemsuasonzeletras.

O espírito brincalhão e o compenetrado professor teriam convivido etrabalhadojuntoscomodruidas,nasGálias,naépocadoimperadorJúlioCésar,entre58e44anosantesdeCristo.Naquelestemposdededicaçãoaoensinoeàfilosofianasociedadecelta,esteeraonomedeRivail:AllanKardec.

Paraquemnãoacreditavaemespíritosouemvidaspassadas—aexemplodojuizqueconduziriaotemível“processodosespíritos”anosdepois—,ahistóriaerabemmaissimples:oprofessorinventaraopseudônimopararesguardarseuslivrosdidáticosdepossíveisboicotesdogoverno.

Com a adoção da nova identidade, Rivail pretendia, sim, demarcar as duasfases de sua vida: a de educador laico, autor de obras adotadas em escolas euniversidades da França, e a de divulgador das novasverdades reveladas peladoutrinaespírita.

Mas, se sua intenção era preservar a própria identidade, a estratégia dariaerrado.

Hippolyte Léon Denizard Rivail tinha 53 anos quando se tornou AllanKardec, uma gura cada vezmais conhecida e visada.Desde o início,O livrodosespíritosteve,paraele,aforçadeumanovacertidãodenascimento,públicaenotória.

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OLIVRODOSESPÍRITOS

Nodia11de setembrode1856,ocesto semoveunacasadas irmãsBaudineumamensagemanimadorachegoudoalém:

— Compreendeste bem o objetivo do teu trabalho. O plano está bem concebido (...).Estamossatisfeitosenuncateabandonaremos.CrêemDeuseavante.

Acomunicaçãotraziaaseguinteassinatura:“MuitosEspíritos”.No dia 17 de abril de 1857, Zé ro também se manifestou pelas mãos de

CarolineBaudin.Destavez,seutomerabemmaissóbrioecomedido:

—Não te deixas arrastar pelos entusiastas, nem pelosmuito apressados.Mede todos os teuspassos,a mdechegaresao mcomsegurança.Nãocreiasemmaisdoqueaquiloquevejas;nãodesviesaatençãodetudooquetepareçaincompreensível.

Amensagem poderia ter sido assinada pelo Espírito da Verdade, inclusivepelasrevelaçõesseguintes,nadaanimadoras:

—Mas,ah!,averdadenãoseráconhecidadetodos,nemcrida,senãodaquiamuitotempo!Nessa existência não verás mais do que a aurora do êxito da tua obra. Terás que voltar,reencarnadonoutrocorpo,paracompletaroquehouverescomeçado(...).

Rivailfoiemfrente.Namanhãde 18de abril de 1857, 1.500 exemplaresdaobra começarama

ser vendidos em Paris, com a chancela do editor Pierre-Paul Didier, por 3francoscadaum.Emdoismeses—parasurpresadeRivail,oumelhor,deAllanKardec—,aprimeiratiragemjáestavaesgotada.

Osespectadoresdosfenômenosdasmesasgirantesedoscestosescreventes,oumesmooscríticosdediversõesouilusõesfúteiscomoaquelas,encontraram

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nas páginas do livro perguntas e respostas desconcertantes, divididas em trêspartes:“Doutrinaespírita”(comdezcapítulos),“Leismorais”(onzecapítulos)e“Esperançaseconsolações”(trêscapítulos).

A primeira pergunta da série era quase uma resposta aos católicos queencaravamcomoheresiaousatanismooatodeconsultarosmortos:

—OqueéDeus?DeuséasupremaInteligência,causaprimeiradetodasascoisas.

Asegundaquestãoeratãocristãquantoaprimeira:

—OndeencontraraprovadaexistênciadeDeus?Bastalançarosolhossobreasobrasdesuacriação.

Difícil imaginar começomenos herético.Mas nem tudo era tão apostólicoassim. As de nições básicas do glossário do além levavam o leitor para bemlonge domundo de anjos e demônios, exorcismos e excomunhões,missas deaçãodegraçaelutosfechadosdosritoscatólicoseprotestantes.

Deacordocomanovadoutrina,ohomemseriaformadoportrêsdimensões:o corpo denso, “de carne”; a alma imaterial, “dona do corpo”; e o liame,intermediárioentrealmaecorpo,queuneacarneaoespírito(o“perispírito”).

Emresumo:alma,serimaterialeindividualqueresideemnósesobreviveaocorpo;mundo espírita,mundo eterno, preexistente e sobrevivente a qualqueroutro; e mundo corporal, secundário, que poderia deixar de existir, ou nemmesmoterexistido,semalteraraessênciadomundoespírita.

Ummundonovo—eeterno—sedescortinavaacadapágina.Erammuitasasboas-novas:amortenãoéo m,masumrecomeço;aTerra

éapenasumdosmundoshabitadosnesteuniversoin nito,eestálongedeseromaisevoluídodeles;estamosdepassagemporesteplanetapararesgatardívidasde existências anteriores, cumprirmissões e renascer, em seguida, em outros

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estágiosdeevolução,numprocessoconstantedeaprendizadorumoàperfeição;ocorponocaixãoépuracarne,merocadáver;avidareal,verdadeira,estáforadele,noespíritolibertodopesodamatéria.

Masdeondeviriamtantasrevelações?No capítulo nal do livro, Rivail deu nome e sobrenome aos ilustres

colaboradoresinvisíveis.Quea Igrejaoperdoasse,mas JoãoEvangelista—elemesmo,umdosdoze

apóstolosdeCristo—eVicentedePaulo,osacerdotesanti cadopelopapanoséculo anterior, estavamna listade comunicantes, ao ladodo teólogo católicoliberalFrançoisFénelon,mortonoséculoanterior.

Queaciênciaseconformasse,masorenomadoBenjaminFranklin,inventordopara-raios edas lentesbifocais, eo controvertidomatemático espiritualistaEmanuel Swedenborg também contribuíram para as novas revelações,acompanhadospordoismédicoscontemporâneosdeRivail,recém-falecidos,oalemão Samuel Hahnemann, considerado o pai da homeopatia, e o cirurgiãofrancêsGuillaumeDupuytren.

Arelaçãodecelebridadesreuniaaindaotodo-poderosoimperadorNapoleãoI, tiodocatólicoNapoleãoIII,agoranopoder,eo lósofoatenienseSócrates,condenado à morte pelo crime de “não aceitar os deuses reconhecidos peloEstado”naAtenasdequatroséculosantesdeCristo.

O misterioso Espírito da Verdade não foi citado uma única vez. Talvezintegrasse uma outra categoria mencionada por Kardec entre seuscolaboradores do além: “Os demais habitam esferas elevadas, não viveram naTerraouaquiapareceramemépocamuitoremota.”

Sim,osmortosestavamvivos...Efelizespelaoportunidadedefazercontato.

CapítuloII—“VenturaedesventuranaTerra”Como é agradável poderdes entrar em comunicação com vossos amigos pelosmeios que

tendesequesepropagammaisemaistodososdias,enquantoesperaisobteroutrosmaisdiretosemais acessíveis aos vossos sentidos. (…)Apossibilidadede entrar em comunicação comosespíritos é uma agradabilíssima consolação, pois nos proporciona omeio de nos entretermoscomosnossosparenteseamigosquedeixaramaTerraantesdenós.

EmtodososcantosdaatormentadaParis,maisemaisgentelia,sublinhava,estudava e divulgava as boas-novas. Sofrimento? Expiação. Morte? Separação

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provisória.Umasensaçãodealívioacompanhavaaleituradetrechoscomoeste:

CapítuloVII—“Múltiplasencarnações”—Queaconteceàalmadacriançamortaemtenraidade?Reentraemoutrocorpopararecomeçarnovaexistência.

Em espírito, pais e lhos, viúvos e órfãos, unidos por vínculos imortais, sereencontrariam ao longo dos tempos, a cada existência, numa sucessão demúltiplas encarnações. E todas as dores da vida não seriam em vão. A cadarenascimento,seríamosrecompensadosse zéssemosanossaparte,deacordocomaleimoralnúmeroum:“Nãofazeisaosoutrosaquiloquenãoquereisqueosoutrosvosfaçam.”

Uma frase do escritor Goethe, extraída deAs a nidades eletivas, de 1809,resumiriatodaalógicadestadinâmicain nita:“Nascer,morrer,renasceraindaeprogredirsemcessar.Estaéalei.”

Esteseriaoepitá oinscritonosuntuosomausoléuerguidoemhomenagemaAllanKardecnocemitériodoPère-Lachaise,dozeanosdepois.

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TRAIÇÕES

Até lá seriam anos de provações, bem de acordo com o roteiro traçado peloEspírito daVerdade. Ao lançarO livro dos espíritos e assumir a identidade deAllanKardec,Rivailsepreparouparacontra-ataquesdaciência,daimprensaedaIgreja.

Já no texto de introdução da obra, antecipou-se às críticas para desa ar osantagonistas. Não por acaso intitulou seu petardo como “Refutação de váriasobjeções”—títuloasereliminadonasegundaediçãodolivro.

Queiramosdetratores lançaroolhar justo sobreos adeptosda crença espírita ehãodever seentreelessóseachamignorantes,eseonúmeroimensodehomensdeméritoerespeitoqueaabraçaramlhespermitirá legá-laaoroldascrendicesdegenteà toa.Deles,pelocaráterepelosaber,valetalvezbemapenadizer-se:umavezquetaishomensa rmam,éprecisoquehajaaomenosalgumacoisa.

Contra os cientistas que renegavam os fenômenos espíritas, Kardec lançouduas acusações: preconceito contra “coisas desconhecidas” e apego estreito àprópriaespecialidade,semconsiderarnovascausasenovosefeitos:

Ohomemquetemumaespecialidadenelaincrustatodasassuasideias.(...)Porissoconsultareidebomgradoecomtodacon ançaumquímicosobreumaanálisequímica,umfísicoacercade energia elétrica eummecânico sobre a forçamotora;masosdoutosmequeirampermitir(...) que eu dê tanta atenção à opinião negativa deles sobre o espiritismo quanto dou aojulgamentodeumarquitetosobreumaquestãodamúsica.

Asprimeirasreaçõesindesejáveisvieramlogoapósapublicaçãodolivro,edeonde o professormenos esperava: dos próprios colaboradores. Ao lançar suaobra—ou,melhor,aobradosespíritossuperiores—,Rivailnãoderaqualquercrédito às irmãs Caroline e Julie Baudin, a Ruth Japhet e a outros médiunstambémconsultados.

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Ruth Japhet não se conformou. Pelas suas contas, três quartos do livro sedeviamà suamediunidade e a seusmanuscritos, e a omissão a seunome era,portanto,inadmissível.EmdesabafoaoescritorrussoAlexandreAksakof,Ruthse queixaria de não ter ganho sequer um exemplar do livro e de não terrecebidoseusmanuscritosdevoltaquandoospediuaoprofessor.

Aksakof fariaestas revelaçõesemartigopublicadono jornale SpiritualistNewspaper,em1875.Rivail—mortoseisanosantes—nãopôdesedefender,nematravésdemensagensmediúnicas.

DezoitoanosdepoisdapublicaçãodeOlivrodosespíritos ,Ruthaindaestavainconformada com a falta de crédito e de consideração, mas em nenhummomento de sua entrevista renegou a comunicação com os espíritos nem aautenticidadedasmensagensatribuídasaoalém.

Aosamigosecolaboradoresmaispróximos,Rivailderaaseguinteexplicaçãoparaaomissãodosnomesdasmédiunsno livro:queriapreservara identidadedelasparapoupá-lasdeexposiçãodesnecessária.Alémdisso,aautoriadaobradeveriaseratribuídaaosespíritosenãoaos intermediários—atémesmoparaevitar riscos, como a vaidade e o orgulho, daninhos a quem se propusesse aservirdecanaldesinteressadocomoalém.

A julgar porumadasmensagensdos espíritos aAllanKardec, impressanaprimeira edição do livro— e também suprimida da segunda—, a relação doprofessor com o invisível ia bem além das intermediações de Ruth e assumiacontornosumtantoinvasivos:

—Estaremos contigo todas as vezes que o pedires e tu estarás também às nossas ordenssemprequeteconvocarmos.

Emanotaçõespessoais—reveladasapóssuamorte,emObraspóstumas —,Rivaildarianovosdetalhessobreestaparceriacomooutromundo:

Maisdedezmédiunsprestaramconcursoaessetrabalho.Dacomparaçãoedafusãodetodasasrespostas,coordenadas,classi cadasemuitasvezesretocadasnosilênciodameditação,foiqueelaboreiaprimeiraediçãodeOlivrodosespíritos.

Ao ser ignorada, desprezada ou simplesmente preservada por Rivail, Ruth

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Japhet talvez tenha se livrado dos riscos enfrentados por suas colegasamericanas mais famosas: as irmãs Fox, consideradas por muitos as“precursorasdoespiritualismomoderno”.Acelebridadecustoucaroparaelas.

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ASIRMÃSFOX

QuandoOlivrodosespíritoscomeçouacircularemParis,asirmãsKate,MaggieeLeahFoxjálidavamcomdiferentesdramaspessoais,acompanhadosdepertoporrepórteresávidosporinvestigarseuscontatosbarulhentoscomoalémeaspossíveisfraudesportrásdestesprodígios.Umavelhapolêmica.

Noveanosjásetinhampassadodesdeosprimeirosfenômenossobrenaturaisregistrados, emmarçode1848,na fazendaondeas irmãsmais jovens,KateeMaggie,moravamcomospais,JohneMargaretFox.

Katetinha11anoseMaggie,14,quandopancadasinexplicáveispassaramasacudiracasadafamíliaemHydesville,vilarejoaoestedoestadodeNovaYork.Os sons vinham de todos os cantos, como se irrompessem de dentro dasparedes.

Porvoltadasoitohorasdanoitede31demarço,oferreiroJohnFox,paidasmeninas, bateu à porta da casa dos vizinhos, Mary e Charles Red eld, parapedir socorro. Charles se recusou a sair em meio à nevasca, mas Mary nãoresistiuàcuriosidade.“Seformesmoumfantasma,tereiumaconversaanimadacomele”—foioquedisseaoseguirJohn.

Uma única vela iluminava o quarto ocupado pelos pais e pelas irmãs Fox.KateeMaggieestavamabraçadasumaàoutra,emboladasnacama,enquantoamãe,Margaret,davaordensaoinvisível:

—Conteatécinco.

Ecincobatidasseseguiam.

—Conteatédez...

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Margaret pediu então para que o fazedor de barulhos invisível revelasse aidadedeMaryRedfield,avizinha.Etodoscontaramjuntosas33pancadas.

—Sevocêforumespíritosofredor,manifeste-secomtrêsbatidas.

Toc,toc,toc.

Aspancadascontinuarampelanoiteadentroeomovimentoatraiuaatençãodeoutrosvizinhos.Àsnovedanoite,dozecuriososjáseacotovelavamnacasa.Um deles, William Duesler, ex-inquilino do imóvel, passou a conduzir aconversacomovisitantemisterioso.

A comunicação foi feita no ritmo do tatibitate alfabético— uma pancada,letraA,duas,letraB—easfrasestelegrá casrevelaramaseguintehistória...Omortobarulhento teria sidodegoladocincoanosantesporumex-moradordaregião, interessado na pequena fortuna acumulada por ele: 500 dólares, oequivalente amaisdeumanode trabalhodeum trabalhador local. Seucorpoestariaenterradonoporão,atrêsmetrosdeprofundidade.

A notícia logo se espalhou e a casa virou uma espécie de centro deperegrinação,cercadadecuriososerepórteres.Visitanteschegavamdecidadespróximas em busca de mensagens do além, católicos e protestantesesconjuravam os fenômenos como blasfêmia e céticos acusavam os Fox defraude.

LideradosporDavid, lhodocasalFoxquemoravaemumafazendavizinha,moradoresdacidadeiniciaramumaescavaçãonoporãodacasaassombradaembusca dos restos mortais da assombração. O resultado da expedição seriaanunciadonaprimeirapáginadojornallocalWesternArgus:

Pásepicaretasforamlogorequisitadase,após3metrosdeescavação,umafontedeáguapurajorroueencheuoburacodo“fantasma”.

Para escapar do assédio dos curiosos e da imprensa, John e Margaret serefugiaram com as lhas, às pressas, na fazenda de David. Mas um outroacompanhante pegou carona com o grupo: o espírito barulhento. As batidas

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não pararam no novo refúgio — pancadas, rangidos, estalos cada vez maisfortes.

Margarethdescartavaahipótese,levantadapormuitos,dequesuasprópriaslhasproduzissemosruídosdebrincadeira,paraassustarechamaratenção.A

pressão dos curiosos e dos céticos aumentava a cada dia. Para dar apoio aospais,aoutra lhadocasal,Leah,entãocom34anos,saiudacidadevizinhadeRochesterefoiaoencontrodasirmãs.

Seuplanoerasimples:separarKateeMaggieumadaoutra.Quemsabeassimosbarulhosnãocessavam?

Leah voltou a Rochester comKate,mas a situação só piorou.Os barulhosaumentaram na fazenda onde Maggie cara e na casa de Leah. Na manhãseguinteàprimeiranoitecomKate,Leahrelatouaseguintecena:

As mesas e tudo o mais no cômodo abaixo estavam se mexendo. As portas se abriam efechavam,fazendoenormesestrondos.Então,elessubiramasescadaseentraramnoaposentoaoladodonosso.Pareciahavermuitosatoresenvolvidosnessaencenaçãoeumagrandeplateiapresente.Ouvimosumespíritodançarcomoseestivesseusandotamancos,oquedurouunsdezminutos.

AspalavrasusadasporLeahFoxemseurelatoseriamquasepremonitórias:“encenação”,“grandeplateiapresente”,“muitosatoresenvolvidos”.

Semanas depois, Maggie se juntaria a Leah em Rochester e as duas setornariamatraçõespúblicasdeumespetáculopago.

Em 13 de novembro de 1849, uma terça-feira, o jornalDaily AdviserestampouoanúnciodaprimeiraapresentaçãodasirmãsFoxnomaiorteatrodacidade,oCorinthianHall,comcapacidadepara1.200espectadores:

Asportasseabrirãoàssetehoras.Apalestrateráinícioàsseteemeia.Entrada:25centavos;50centavosgarantemumcavalheiroeduasacompanhantes.

Kate, então com 12 anos, foi poupada de tanta exposição, e Leah— que,estranhamente, nunca manifestara qualquer poder sobrenatural — se uniu aMaggienopalco.

Osbarulhostomaramcontadoteatroassimqueasduasentraramemcena.

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Logo após a apresentação, começou o calvário das “médiuns”. Um comitê decinco homens, formado ali mesmo no teatro, foi incumbido de investigar afundoanaturezadosfenômenos.

Oprimeirotestefoirealizadonodiaseguinte,emsessãoprivada.OrelatóriosobreosresultadosalcançadospelocomitêirritouoscéticosaoserlidoemnovasessãonoCorinthianHall:

Umapessoadocomitêcolocouumadasmãossobreospésdassenhoraseaoutrasobreochão,e,emboraospésnãotivessemsemexido,houveumnítidoruídonochão.

Nochãoenoassoalho,omesmosomfoiouvido—umaespéciedebatidaduplabemnítida,comosefosseumapancadacomumricochete.

Uma nova comissão, “mais rigorosa”, foi formada e novos métodos deinvestigaçãoforamadotadosparaevitarfraudes.

Deitadas sobre umamesa,Maggie e Leah tiveram os pés imobilizados. Oscavalheiros amarraram cordas ao redor dos vestidos das irmãs e ataram seustornozelos — atos quase libidinosos naqueles tempos. As batidas não foramouvidas durante estes testes,mas pancadas irromperam em outrosmomentosdoexame.

Um médico recorreu ao estetoscópio para examinar o movimento dospulmõesdasjovenseeliminarapossibilidadedeventriloquismo.Outrasuspeitados caçadores de fraudes também foi afastada após inspeção minuciosa doambiente: a de que as irmãs usassem algum maquinário para produção dosruídos.

Onovorelatório,lidotambémemsessãopúblicanoCorinthianHall,gerouaformação de uma terceira comissão, ainda mais cética e implacável. Um dosintegrantes do grupo anunciou: se atiraria das cataratas do Genesee se nãoconseguissedesvendarafarsa.

No dia seguinte,Maggie e Leah deixaram-se tocar, atar emanipular comoantes e ainda se submeteram a outro exame. Um comitê complementar,formado apenas por mulheres, levou-as a um cômodo à parte, tirou seusvestidos e fezbuscas, em seus “corpos e roupas”, à catadeobjetos capazesdefazerruídos,comobolasdechumbo.

Esta nova etapa da investigação terminou com as irmãs aos prantos. Mas

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ainda faltava um teste: era preciso saber se as batidas seriam provocadas poreletricidade ou pelos tais uidosmagnéticos.Maggie e Leah foram forçadas acardepé sobre vidro e travesseiro, quenão conduzemeletricidade, comum

lençoamarradoàbarradeseusvestidos,apertadosnostornozelos.Oresultadodaexperiência foidescrito,compoucaspalavras,nocerti cado

emitido pelo Comitê de Senhoras: “Todas ouvimos nitidamente as batidas naparedeenochão.”

Ao m dos três dias de investigação, o veredito: “As pessoas em cujapresençaossonssãoouvidosforamabsolvidasdaacusaçãodefraude.”

Ninguém conseguiu comprovar encenação nem explicar a origem dasbatidas.O investigador que prometera se lançar nas cataratas não tocoumaisnoassunto.

Várias outras apresentações e vários outros testes seriam realizados nos anosseguintesemtornodasirmãsFox.EKateseuniriaaMaggieeLeahemalgunsdosespetáculosmaisimpressionantesemaisbem-remuneradosdessaturnê.

Em1857,anodo lançamentodeOlivrodosespíritos ,LeaheMaggieFoxsesubmeteram a uma nova prova. A caçula, Kate, foi poupada de humilhaçõesmaisumavez.

OnovoinquéritofoipatrocinadopelojornalBostonCourier.Estavaemjogouma recompensa de 500 dólares (por coincidência, o mesmo valor que teriasidoroubado domascate degolado emHydesville).Oprêmio seria entregue aqualquermédiumcapazdeprovaraexistênciadacomunicaçãocomosespíritosa uma equipe de quatro renomados professores de Harvard, entre eles omatemáticoeastrônomoBenjaminPeirceeobiólogoecientistanaturalLouisAgassiz.

Antes das irmãs Fox, duas outras celebridades domundo dos espíritosentraram no circuito para concorrer ao prêmio: os irmãos Davenport,anunciadoscomoos“médiunsdoarmário”emexibiçõessempreconcorridas.Acada apresentação, em teatros sempre lotados, eles se permitiam amarrar dospés à cabeça dentro de um “gabinete mediúnico”, um armário portátil denogueira,comtrêsportas,onde tambémeramtranca adospandeiros,violões,

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violinos,rabeca,banjoecornetas.Os nós das cordas eram atados diante do público, a porta de madeira se

fechava e, instantes depois, amelodia e o barulho dos instrumentosmusicaisembalavam e atordoavam a plateia. Paramuitos, não havia dúvidas: a energiados médiuns — a alma livre dos corpos — ou de outros espíritos musicaisregeriamosconcertossobrenaturais.

Uma prova da presença de visitantes invisíveis seria o fato de asmãos dosirmãos, besuntadas de farinha de trigo antes da apresentação, continuaremassim, enfarinhadas, logo depois do “concerto do além”, sem que seencontrassemvestígiosdepóbrancosobrequaisquerdosinstrumentos.

Chegara, então, o momento de a ciência pôr este mistério à prova, e oescalado para a missão de investigar amediunidade dos candidatos foiBenjamimPeirce.

Quando os irmãos Davenport estavam bem-amarrados, ele invadiu, desurpresa,o“gabinetemediúnico”eagarrou,umporum,todososinstrumentos.Dezminutossepassaramenenhumamúsicafoiouvidadentrodacabine,parajúbilodocientistaeconstrangimentodosirmãos.

O desempenho da irmãs Fox, avaliado por Pierce e sua equipe em seguida,seriaumpoucomaisanimador.Ruídosepancadasesparsostomaramcontadasalaenquantoogrupoobservavaadupla,queteveospulsosetornozelosatadosdenovo.

Mas nada muito empolgante — nem digno de premiação — a julgar pelorelatóriofinaldivulgadopelaimprensa:

Umas batidinhas facilmente rastreáveis às suas pessoas e facilmente feitas por outros, sem apresençadeespíritos;nenhumamesaoupianolevitou,enadasemoveusequerummilímetro.(...)Eassimterminaessaimposturaridículaeinfame.

Ao mdedoisdiasdeinvestigações,orepórterdoBostonCourier anunciouoresultadodoconcurso:os500dólarescontinuariamnocofredojornal.

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ACRENÇAEADESCRENÇAESPÍRITAS

Olivrodosespíritos causoumaisbarulho.Comosucessodapublicação—cadavez mais lida e discutida —, as mesas girantes, antes vistas como meradistração,conquistaramnovostatus:adeevidênciadamanifestaçãodeespíritose,portanto,daimortalidadedaalma.

Paramuitosjornalistas,cientistasereligiosos,jánãoseriapossívelaceitaremsilêncio,ouapenastratarcomescárnio,as“verdadesdacrençaespírita”.

Coma ajudada sempre atentaAmélie,Kardec recortoue guardouemseusarquivosasnovastesesdoscríticos.

De acordo com o professorury, de Genebra, asmesas e outros objetosseriammovidosnãoporespíritos,masporumagenteespecialde nidoporelecomopsicode, um uido que atravessava os nervos e todas as substânciasorgânicaseinorgânicas,“comooéterluminosodossábios”.

Segundo outro investigador, o biólogo americano Roggers, os movimentosmisteriosos seriam causados pelos centros nervosos dos participantes dassessões,queagiriampormeiodo uidouniversaleimponderável,denominadoporelecomoodilo.

Dois anos depois, em 1859, a respeitável Academia de Medicina de Parisproclamariaoutrodiagnóstico:

Aspancadasproduzidasnamesaeramdevidasaummúsculorangedordapernaque,detemposem tempos, se entrega a facécias, sendo que as pessoas ingênuas tomavam isso pormanifestaçõesdeespíritos.

Muita gente preferiu acreditar nos espíritos a apostar nos músculosrangedores, e a nova doutrina — ou ciência, como preferia Kardec — foiconquistandoadeptosdevotadosetambémrespeitados.

Um deles, o dramaturgoVictorien Sardou, enviou uma carta entusiasmada

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aoautordeOlivrodosespíritos:

Éolivromaisinteressanteeinstrutivoquejáli.Recebeimeuscumprimentospelomodocomoclassi castes e coordenastes os materiais fornecidos pelos próprios espíritos: tudo éperfeitamentemetódico,tudoseencadeiabem,evossaintroduçãoéumaobra-primadelógica,dediscussãoedeexposição.

UmcolunistadojornalCourrierdeParis ,G.DuCharlard,tambémavalizoua obra, depois de garantir que não conhecia o autor nem tinha qualquerintençãodefazer“propagandabibliográ ca”:“Olivrodosespíritos deM.AllanKardecéumapáginanovadoprópriograndelivrodoinfinito.”

Em breve, Kardec retomaria sua comunicação com o além para produzir asegunda edição deO livro dos espíritos, revista e bastante ampliada: 1.019diálogos,474páginas—“umaobranova”,comodefiniria.

Seriamtrêsanosdetrabalhoatélá—semoauxíliodasirmãsBaudin,recém-casadas,oudeRuthJaphet,indignadacomoautor,cadavezmaiscélebre.

Odiálogo como invisível teria agoraumanova intermediária: a enigmáticaErmanceDufaux.

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MINHARISONHAERMANCE

Em21deabrilde1857,trêsdiasdepoisdolançamentodeOlivrodosespíritos ,Rivail e Amélie abriram seu apartamento para uma recepção. A sra. DePlainemaison pediu licença para levar os Dufaux ao jantar. Rico produtor devinho e trigo — morador de um castelo medieval vizinho ao do imperadorNapoleãoIII—,osr.Dufauxeraconhecidopelaligaçãocomacorteetambémpelasproezasdesuabelafilha,Ermance,entãocom16anos.

Rivailouvira falardeErmance—a “médiumhistoriadora”—edasagrurasenfrentadasporsuafamília,muitocatólica.Desdeos12anos,elaeraacometidaporcrisesdeausênciae,emtranse,transmitiamensagensatribuídasamortos.Preocupado, o pai, ainda em 1853, recorreu a um amigo médico, Clever deMaldigny, estudioso dos “ uidos invisíveis”, e ouviu dele um diagnósticoalarmante.Adoençasechamavamediunidade.

Era uma epidemia recente, vinda da América. Uma moléstia mental,altamentecontagiosa,quefaziavítimasnaAlemanha,naInglaterrae,agora,naFrança. O mal atacava, principalmente, as moças sensitivas, mais sujeitas à“açãomagnética”.Teriacura?

*

Quinzediasdepois,Ermancesofreumaisumacrisenervosaeopaia levouaoamigomédico,emVersalhes,semrevelarà lhaataldoençamisteriosa.Apósbreveconversa,odoutorMaldignypôsumlápisentreosdedosdapacienteeaenfermeira Rosette pousou as mãos sobre a mão da menina, enquantobalbuciavaumaoraçãoencerradademaneirainusitada:

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—EmnomedeDeus,venhaanósumespíritobom.

O sr. Dufaux teve de se controlar para não rir da situação insólita. Emseguida,Maldigny,comoseestivesseà frentedeumasessãodehipnose,enãodeumaconsultamédica,instruiria:

—Escrevaoque lhevieràcabeçaou lhe for impulsionado.Nada tema.Escrevaoque lhevieràcabeça,ouaopulso.

Ermance não conseguiu conter uma risada nervosa enquanto equilibrava olápisnopapel,masengoliuorisoquandoviuoobjetosemoveràsuarevelia,atéescrever:

—MinharisonhaErmance.

Assustada, a menina largou o lápis e se recusou a continuar com aexperiência. O médico não tinha dúvidas. Diagnóstico con rmado:mediunidade.

Umasemanadepois,osr.DufauxrecebeuavisitadomarquêsdeMirville,aquem revelou os sintomas da lha e o diagnóstico do médico. Estudioso domagnetismo e da ação maligna do demônio nos supostos fenômenosmediúnicos,omarquêsentregouumlápisàjovemepediuparaelasesubmeteraumnovoteste.

Ermance relutou.Desde a consultamédica, vivia assustada.Tinhamedodesegurarolápisatémesmoparafazerasliçõesdecasa,esóofaziacomalguémpor perto. A insistência do visitante ilustre, porém, a convenceu. Católicofervoroso, o marquês tinha uma hipótese sobre a identidade de quem secomunicaria,casosecomunicasse.

Assimqueameninaequilibrouolápissobreopapel,eleperguntou:

—Estápresenteoespíritoemquepenso?Emcasoa rmativo,queiraescreverseunomeporintermédiodeErmance.

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Apóssegundosdetensão,amãodameninasemoveu.

—Não,masumdosteusremotosparentes.

—Podeescreverseunome?

Ocomunicantedesconversou.

— Pre ro, para teu bem, que meu nome venha diretamente à sua cabeça. Pense uminstante.

Omarquêsapostoualto,paraprovocar:

—SãoLuís,reidaFrança,primodoprimeironobredeminhafamília?

Pelasmãosdaadolescente,aconfirmação:

—Sim,eumesmo.

Comoperdãodesuamajestade—oreiLuís IX,mortoseis séculosantesecanonizadopelopapaem1297—,eraprecisoaindaumaevidência.

—VossaMajestadepodedar-meumaprovadequeérealmentenossogranderei?

EolápissustentadoporErmanceescreveu:

—Ninguém nesta casa sabe que tu e os teus considerais, em preces, que sou o anjo daguardadetuafamília,nãoéfato?

Certo de estar lidando com o dissimulado satã, o marquês tentou ser tãocínicoquantoele:

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—Impressionante.Exato.

Tambémdescon ado—etambémcatólico—,opaideErmancepediunovaevidência:

—PodeVossaMajestade,santocomoé,ditar-mealgodeedi canteemmoral,compatívelcomaglóriareligiosadeSãoLuís?

—Tentareicomprazer.

Amenina de 12 anos não se intimidou diante do pai e pôs no papel, comvelocidadeetranquilidadeimpressionantes,umalongaerebuscadamensagem:

Sê tu, amigo, como um rio benfazejo que derrama por onde passa a fertilidade e a frescura,perdoaa teus inimigoscomooSalvadorque,quaseaoexpirar,orouporseuscarrascos,dandoassimaoshomensseuderradeiroexemplodebondade(...).

Amateusinferioresnahierarquiasocial.Nãoimitesoshomenstiranosdeseusirmãos,nemos que, por seu exemplo, transviam as almas humildes e obscuras que lhe cumpre guiar eprotegernestevaledeprovaçõesparatodos.(...)

Otextofaziatambémreferênciasao“anjorebelado”eaos“abismoseternos”,bemdeacordocomosdogmascatólicos,antesdeencerraremclimafraternal:“Pazatieateus!ParticularmenteaErmance.Luís.”

Depoisdelerereleramensagem,omarquêsdividiusuasimpressõescomopreocupadoan trião.Duashipóteses:osdogmascatólicosprofessadosporeleepelo sr. Dufaux teriam sido transmitidos, em processo telepático, à jovemsugestionada, em estado sonambúlico; a inata inteligência de Ermance e suaeducaçãocristãteriamgeradootexto(comousemconsciênciadaautora).

Mas essas eramas explicações educadas.OmarquêsdeMirville continuavaconvictodequetudonãopassavadeobradesatã.

*

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Umaobraquecresceria,capítuloporcapítulo,pelasmãosmiúdasdeErmance,até gerar o livro intituladoVida de Luís IX, escrita por ele mesmo. Umaautobiogra apóstumarepletadeinformaçõessobreosbastidoresdopoderrealnoséculoXIII,conhecidocomoo“séculodeourodeSãoLuís”.

Ao leroscapítulosescritosa jatopela lha,opaivenceriaasdescon ançasiniciais.Pelalinguagemre nadaepelosdetalheshistóricos,aquelesópodiasermesmo o admirável rei santi cado. A convicção do sr. Dufaux foi tanta quedecidiu publicar o livro em 1854. Uma decisão que abalou as suas até entãocordiaisrelaçõescomacorte.

AComissãodeImprensaidenti coucríticasveladasaoimperadorNapoleãoIIIemdeterminadostrechosdaobraeconsiderouolivro,atribuídoaumsantomorto,umaafrontaàSantaSé.OtextoteveacirculaçãoproibidaeErmancefoiconvocadaaconfessarseuspecadoseaatribuirosescritosasatanás.

Aoserecusararenegarafénosespíritos,ameninapassouaservistacomouma herege pela própria imperatriz e teve cassados os direitos a sacramentosbásicoscomoaconfissãoeacomunhão.

TantacensuraeperseguiçãopreocupavamKardec.Olivrodosespíritoscorriariscos em Império tão católico. Mas ele cou mais tranquilo ao ouvir do sr.Dufaux, durante o jantar, novas revelações sobre o caso. Parte da corte seafastara, sim,de sua família,mas,para surpresadopróprioDufaux,NapoleãoIIIdemonstraramaiscompreensão...ecuriosidade.

OimperadorfezquestãodeabrirasportasdeseucasteloàsenhoritaDufaux.Recepcionada no Palácio de Fontainebleau, amenina, lápis àmão, enfrentouum novo desa o diante de sua majestade e de uma comissão de nobres:responderaumaperguntamentalfeitapeloanfitrião.

Segundoopaiorgulhoso,aresposta—assinadaporNapoleãoBonaparte,tiodeNapoleão III, emantida em sigilo— convenceu o imperador, pelo estilo epelaprofundidade,etambémpelofatodequeninguémnasalasabiaapergunta.

Nove meses depois, Ermance publicaria seu segundo livro:A história deJoanaD’Arc,ditadaporelamesma.

O livro começava com uma mensagem da santa acusada de feitiçaria equeimadaviva,aos19anos,nas fogueirasdaInquisiçãonoséculoXV.EraumalertaamédiunscomoErmance,queatraíamcadavezmaisadmiradores:

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Deus encarregou-me de cumprir uma missão junto aos crentes que favoreceu com omediunato.QuantomaisrecebemgraçasdoAltíssimo,maiscorremperigos,eessesperigossãobemmaioresporquetêmorigemnosprópriosfavoresqueDeuslhesconcede.

As faculdades das quais desfrutam os médiuns lhes atraem os elogios dos homens; asfelicitações,asadulações;eisapedradetropeço.

Esses mesmos médiuns que deveriam sempre ter presente na memória sua incapacidadeprimitivaaesquecem;elesfazemmais:oquedevemaDeusatribuemaseuprópriomérito.Oqueaconteceentão?Osbonsespíritososabandonam...

Oobra,destavez,foiliberadasemcortespeloimperador.Quatro anos depois, em 1861, a exemplo do que ocorrera a Joana D’Arc,

exemplaresdolivroqueimariamnumafogueiraalimentadapelaIgrejaCatólica,junto com volumes deO livro dos espíritos e de outras “obras heréticas” , noepisódioconhecidocomoautodefédeBarcelona.

Kardecsabia:precisavacaminharcomcuidadonesseterritórioondeespíritoseram esconjurados como demônios por líderes da Santa Sé. A presença deErmanceeoapoiodeseupai, tãobem-relacionado,dariammaissegurançaaovelhoprofessor,convocadoaocombatepeloEspíritodaVerdade.

Três dias depois daquele jantar com os Dufaux, Kardec foi apresentado aErmanceetestemunhou,aovivo,oquejátinhalidoeouvidoantes.Abelezadajovemoimpressionoutantoquantoavelocidadedesuasmãosenquantobotavano papel umamensagem assinada por “Luís” e endereçada ao “distinto AllanKardec”.Umtextocurtocomduasrecomendaçõessucintas:“coragemecautelananovamissão”.

Kardec aindanão sabia,mas ele e “Luís” estariam lado a lado emumnovoprojeto.

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ATIARAESPIRITUAL

Quecaminhosseguir?Oqueesperardanovavida,comnovonome?OlivrodosespíritoscirculavaháapenasduassemanasquandoRivailaceitouoconviteparaconsultarasra.DeCardone.SegundoosempreentusiasmadoCarlotti,avelhasenhora, frequentadora das sessões promovidas na casa do sr. Roustan, eracapazdedesvendaraalmaeodestinodequalquerumaoinspecionaraslinhasdesuasmãos.

Oprofessornuncaacreditouemleiturasdecartas,mãos,borradecafé,bolasdecristalouespelhosmágicos,masfoiatéládispostoaencararaan triãcomoumasonâmbula,alguémque—comoelejáestudaratantasvezes—teriaacessoainformaçõesdeoutrasdimensõesaoselibertardoprópriocorpo.

Em suas anotações pessoais, às quais se somariam as previsões da sra. DeCardone,Rivailregistravaasimpressõesrecolhidasaolongodeanosdeanálisedosonambulismoespontâneoouprovocadopormagnetizadores:

Seu corpo (do sonâmbulo) parece extinto, a palavra lhe sai mais surda, o som da sua vozapresentaqualquercoisadesingular;avidaespiritualestátodanolugarparaondeotransportaoseuprópriopensamento;somenteamatériapermaneceondeestava.

Nãoporacaso,eleviavínculosestreitosentremédiunsesonâmbuloseentreoespiritismoeomagnetismo:

Há uma certa porção do ser (durante o sonambulismo) que se lhe separa do corpo e setransportainstantaneamenteatravésdoespaço,conduzidapelopensamentoepelavontade.Éaessaparceladenósmesmosquechamamos:aalma.

Aoestenderasmãossobreamesaeouvirasprimeirasfrasesdesuaan triã—palavras surdas, ditas em tom singular—,Rivail con rmou estardiantedeuma sonâmbula, mas nenhuma das revelações sobre seu temperamento o

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impressionou:“amorpelaverdadeabsoluta”,“pendorparaasciênciasmorais”,“governado pela cabeça”, “necessidade imperiosa de consolar”, “olhos com oolhardopensamento”.

Oquechamoualgumaatenção—edespertousuaironia—foiumavisãodasra.DeCardoneaoobservaroaltodesuacabeça:

—Vejoaquiosinaldatiaraespiritual.Ébempronunciado...Vede.

Rivailencarouoespelhoapontadopelaan triãenãoviuqualquerrastrodecoroa:

—Querereisdizerquesereipapa?Setalhouvessedeacontecer,nãoserianestaexistência.

Asra.DeCardonenãoseinibiu:

— Eu dissetiaraespiritual, o que signi ca: autoridade moral e religiosa e não soberaniaefetiva.

ComO livro dos espíritos já em evidência, Rivail não viu qualquer grandeméritonestavisão...ouilusão.

Oitoanosequatrolivrosdepois,porém,elereencontrariaasra.DeCardone,agoraorgulhosadeseuspoderes:

—Lembra-tedaminhaprediçãosobreatiaraespiritual?Ei-larealizada.—Comorealizada?Queeusaiba,nãomeachonotronodeSãoPedro.

Rivail não contaria a ninguém o que ouviu a seguir, mas fez questão deanotarnodiárioarespostadavidente,textoqueviriaapúblicosomentecomamortedele:

O senhor não é, de fato, o chefe da doutrina, reconhecido pelos espíritas domundo inteiro?Nãosãoosseusescritosquefazemlei?Nãosecontampormilhõesosseuscorreligionários?Emmatéria de espiritismo, haverá alguém cujo nome tenha mais autoridade do que o seu? Os

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títulosdesumosacerdote,depontífice,mesmodepapa,nãolheserãodadosespontaneamente?

Diantedelouvaçõescomoessa,seriaprecisomantersobcontroleoorgulhoe a vaidade. Mesmo porque muitos destes títulos — papa, pontí ce, sumosacerdote—seriamdadosaRivail,por ironia,pelosadversárioscadavezmaisnumerosos.

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AREVISTAESPÍRITA

Devezemquando,KardecreliaamensagemdoEspíritodaVerdadesobresuamissão:

Nãoacreditesquetesejabastantepublicarumlivro,dois,dez livros,eestaressossegadamenteemtuacasa.Énecessárioquetemostresnoconflito.

O texto o ajudava a seguir em frente, apesar das críticas e dos riscoscrescentes.ComosucessodeOlivrodosespíritos —cujasvendasaumentavama cadadia—,passou a receber cartas de leitores de toda aEuropa.Gente atéentãosemféoucatólicosdevotados,edevastadosporperdasemsuasfamílias,enviavam relatos sobre o impacto da obra em suas vidas e também sobre apressão exercida por padres e bispos contra o sacrilégio da necromancia, operigoeopecadodedarvozeouvidosaosmortos.

Muitas jovens, como Ermance, estavam sendo internadas em manicômiospelasfamílias,comoapoiodemédicosepárocos,diagnosticadascomovítimasdedelírioshistéricosepossessõesdemoníacasatribuídosapráticasespíritas.Emuitosadeptosdoespiritismoeramameaçadosdeexcomunhãopelas igrejasede demissão pelos patrões ao professarem a fé na nova crença e ostentaremexemplaresdaobradeAllanKardecemsuascomunidades.

Como esclarecer e apoiar os leitores perseguidos? Como difundir asmensagensdomundoinvisívelvindasdetodososcantos,pelasmãosdosmaisdiversosmédiuns?Em15denovembrode1857,oautordeOlivrodosespíritosrecorreu a Ermance Dufaux para consultar seus conselheiros espirituais. Empauta,umnovoprojeto:o lançamentodaprimeirapublicação espiritualistadaFrança—aRevistaEspírita,comperiodicidademensal.

OsEstadosUnidos jápossuíamdezessetepublicações sobreosmistériosdomundo invisível,masumúnico jornalespiritualistacirculavaemtodooVelho

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Continente: o Journal de l’âme, editado em Genebra, sob a direção do dr.Boessinger.

PelasmãosdajovemErmance,vieramoavaldoalém—“Aideiaéboa”—eumasériedeconselhoseditoriaisparaatrairaatençãodopúblico:

—Decomeço,devescuidarde satisfazeràcuriosidade; reuniro sérioaoagradável:o sériopara atrair os homens de ciência, o agradável para deleitar o vulgo. (...) Em suma, é precisoevitaramonotoniapormeiodavariedade,congregarainstruçãosólidaaointeressegeral.

Mas havia umdetalhe... E o velho assunto voltou à tona: apoio nanceiro.Rivailaindasedividiaentreacontabilidadeeapedagogia,retomadaaospoucossob a censura do governo de Napoleão III, e sonhava abandonar os doisempregosparasededicarintegralmenteaoespiritismo.

Sedependessedaboavontadedosamigosinvisíveis,osonhoteriadeesperar:

—Porenquanto,nãodevesabandonarcoisaalguma;hásempretempoparatudo.

Cauteloso, Rivail sugeriu então lançar um “exemplar de experiência”, e sóseguiremfrentesearepercussãofossefavorável.

Nadafeito.

—Umsónúmeronãobastará.Move-teeconseguirás.

Rivailsemoveu atéaempresadeumpossívelsócio,osr.Tiedeman-Marthèse,que já demonstrara interesse em apoiar a publicação, mas voltou para casafrustrado.Oempresáriotinhamudadodeideia.

Com o apoio, inclusive nanceiro, da compreensiva Amélie, o professordecidiu seguir em frente por conta e risco próprios. Ele mesmo escreveu,sozinho, todos os artigos da nova publicação, e, apesar de não ter um únicoassinante ou investidor, bancou a impressão dos primeiros exemplares daRevista Espírita, produzidos na Tipogra a de Beau, amesma responsável pelaediçãodeOlivrodosespíritos.

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A publicaçãomensal começou a circular em 1º de janeiro de 1858 com oseguinte subtítulo na capa — “Jornal de Estudos Psicológicos” — e com ocréditoemletrasgarrafais:“PublicadasobadireçãodeAllanKardec”.

Aepígrafedavaumpesocientíficoaoperiódico:

Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder dacausainteligenteéproporcionalàgrandezadoefeito.

No texto de introdução,menos veemente do que o prefácio deO livro dosespíritos, Kardec defendia o valor cientí co de sua investigação e de nia osfenômenosdas“mesasgirantesefalantes”comoa“infância”danovadoutrina:

Hojeelaéumaciência,quedescobretodoummundodemistérios,quepatenteiaasverdadeseternas(...)edescobreomaisvastocampojamaisapresentadoàobservaçãodofilósofo.

Pelas páginas daRevista Espírita, o público poderia, segundo Kardec,acompanharoprogressodestanovaciênciaeseprevenircontraosexagerosdacredulidadeedoceticismo.

A revista seria uma “tribuna livre” para discussões “sensatas” sobre oespiritismo;umafontededivulgaçãode“fenômenospatentes”eumcanalparaa revelação de comunicações escritas ou verbais dos espíritos, “desde quetenhamum mútil”:“Emsuma:abarcaremostodasasfasesdasmanifestaçõesmateriaiseinteligentesdomundoincorpóreo.”

No último parágrafo, a explicação para o subtítulo “Jornal de EstudosPsicológicos”:“Estudaranaturezadosespíritoséestudarohomem,poiseleumdiaparticiparádomundodosespíritos.”

UmadasprimeirasmissõesdeKardecnanovapublicaçãofoiexplicaro ascodos fenômenos mediúnicos investigados pela comissão formada pelo jornalBostonCouriernoanoanterior.

O fracassodas irmãsFox,dos irmãosDavenportedeoutroscompanheiros

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demediunidaderepercutiaemartigopublicadopeloScienti cAmerican ,em11dejulhode1858,erepublicado,então,naRevistaEspírita.

A descrição do desempenho de um dos supostos médiuns testados, o dr.Gardner, era constrangedora.Uma longa lista de “nãos”: não conseguiu fazersoaropianosemtocar;nãoconseguiumoverumapequenamesadeumsópésemoauxíliodasmãos;enãoconseguiudescobrirapalavraescritanumafolhadepapeldobradaepostadentrodeumlivro.

Comoexplicartantosfracassos?Kardec reagiu aos ataques cientí cos com uma explicação sobre o

comportamentovoluntariosodosespíritos:

Eles agem quando e perante quem lhes agrada; por vezes, quandomenos se espera, é que amanifestaçãoocorrecommaisenergia;e,quandoasolicitamos,elanãoseverifica.

Além disso, a oferta de um prêmio em dinheiro, segundo ele, afastaria oscolaboradoresinvisíveis:

Éprecisosaberquesepodeobtercemvezesmaisdeummédiumdesinteressadodoquedaquelemovidopeloengododolucro,equeummilhãonãoolevariaafazeroquenãodeve.

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OSR.HOME

Entre todososmédiuns ematuaçãonaépoca,ummerecia admiraçãoespecialdeAllanKardec edestaquena imprensa:DanielDunglasHome,protagonistadeumasériedequatroartigosqueaRevistaEspíritapublicouentrefevereiroemaiode1858,primeiroanodarevista.

NascidonaEscócia, lhode família nobre, o jovemde 24 anos viajava portoda a Europa a convite de an triões tão nobres quanto ele, interessados emtestemunhar seus prodígios e comprovar a existência do mundo espiritual.Home acabara de exibir seus dotes naEscócia e na Inglaterra quandoKardectraçouumperfilgenerosodoviajante:

Sob sua in uência, ouvem-se os mais estranhos ruídos, o ar se agita, os corpos sólidos semovem, levantam-se, transportam-sedeum ladoaoutroatravésdoespaço. Instrumentosdemúsicaproduzemsonsmelodiosos.Seresdomundoextracorpóreoaparecem,falam,escreveme,porvezes,nosabraçamatéproduzirdor.

Osfenômenosmaisimpressionantes,segundotestemunhas,eramalevitação— “a metros de altura, sem qualquer sustentáculo” — e a materialização deespíritosmoldadoscomaajudadosfluidosmagnéticosdomédium.

Kardecnãoestiveraentreosespectadoresdetantasmaravilhas,masgarantiaaidoneidadedojovemapartirdosrelatosde“testemunhasocularesmaisdignasdefé”.

Entusiasmado com o que ouvia, o professor— defensor da necessidade deobservareanalisarcausaseefeitos—avalizouospoderesdeHomesemveretraçouumretratofulgurantedaprimeirainfânciadomédium:

Aosseismeses, seuberçosebalançava sozinhoe,naausênciadepajem,mudavade lugar.Osbrinquedosiamatéele,semqueprecisassesemover.

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Ilusionismo? Prestidigitação? Kardec rebatia estas suspeitas com outrosargumentos:nem sempreHome era capazde corresponder às expectativasdaplateia, e nunca cobrava por suas exibições. Os fenômenos aconteciamespontaneamente,àsuarevelia,enãocomhoramarcada,emsessõespúblicas,comingressosàvenda.

MasHomenão recusava doações e cou bastante grato ao receber de umasenhora inglesa, recém-convertida à doutrina espírita, um legado de 6 milfrancos. Um gesto noticiado com estardalhaço nos jornais franceses ecomemoradoporKardecnaediçãodemarçodaRevistaEspírita:

O sr. Home merecia esta prova de consideração (...). De parte da doadora o ato é umprecedentequeteráoaplausodetodosquantospartilhamdenossasconvicções.

EletalvezpensasseemTiedeman-Marthèseaoescreveremseguida:

Esperemosqueumdiaadoutrinatenhaosseusmecenas:aposteridadeinscreveráseusnomesentreosbenfeitoresdahumanidade.

Nadécadaseguinte,Homeseriaprocessadoecondenadosobaacusaçãodeaplicarumgolpenumaricaviúvade75anos,asra.JaneLyon.Deacordocomadenúncia, ele teria transmitido à viúvamensagens domaridomorto comdoispedidos muito especí cos: a de que ela adotasse o médium como lho e lhegarantissegenerosapensãoanual.

Entusiasmada comos fenômenos testemunhados em sua casa, a viúva teriadado,aotodo,cercade60millibrasao lhoadotivo(sim,asra.LyonchegouaadotarofascinanteHome)—umafortunaqueconseguiriareavernajustiça.

Em1858,noentanto,Homeaindaeraalvoapenasdeboatos.SegundoinformouopróprioKardecnaRevistaEspírita,“máslínguas”teriam

dito que Home se encontrava preso em Mazas, “sob o peso de gravesacusações”, e não em viagem de turismo na Itália, como anunciara. Kardecdesmentiu as notícias com uma a rmação: teria sobre a mesa várias cartasenviadas pelomédium, datadas e seladas em Pisa, Roma e Nápoles, onde eleestaria.

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O artigo terminava com um desabafo: “Muita razão têm os espíritos aoafirmarqueosverdadeirosdemôniosseachamentreoshomens.”

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PARTEIV

VERDADESEMENTIRAS

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SOCIEDADEDOSESPÍRITOS

Muitomaisdiscretaedesinteressadadoqueocolegaescocês,ErmanceDufauxcontinuavaapôrnopapelmensagensassinadasporSãoLuís.Suaautobiogra apóstuma fora proibida pelo governo,mas nada impedia, por enquanto, que osanto semanifestasse naRevista Espírita. Parábolas sobre orgulho, preguiça einveja,assinadasporele,foramestampadasnanovapublicação,acompanhadasdediálogoscomopróprioreisantificado.

Agora, porém, Ermance já não escrevia tanto. Asmensagens dos espíritossaíamdesuabocaa jato,equemestivesseaseuladoduranteestesditados“doalém”precisavaescreverrápidoparaacompanharavelocidadedosdiscursos.

Kardec deu destaque à jovem, como objeto de estudo, já nos primeirosartigosdarevista:

A princípio era boa médium psicógrafa e escrevia com grande facilidade; pouco a pouco setornou médium falante e, à medida que esta nova faculdade de desenvolveu, a primeira seatenuou.HojeasenhoritaDufauxescrevepoucoecomdi culdade,masoqueéoriginaléque,falando,senteanecessidadedeestarcomumlápisàmãoedefingirqueescreve.

Detalhes como estes chamavama atençãode leitores ávidos por evidênciasdavidadepoisdamorteelevavamàcasadeKardeccolaboradoresinteressadosemestudaranovaciênciaeatuarcomointermediáriosdoalém.

Quinzepessoas,emmédia,passaramaparticipardereuniõesprivadas, todaterça-feira,noapartamentodeKardeceAmélienaruadeMartyrs,número8.Mas em pouco tempo o número de visitantes dobrou e a sala cou acanhadaparatantagenteetantosfenômenos.

Os frequentadores mais assíduos propuseram, então, ratear os custos doaluguel de um novo espaço. Kardec aceitou a oferta e decidiu formalizar asociedade,comoavaldoEstado.

BatizadadeCírculoParisiensedeEstudosEspíritas,estaassociação,aindaum

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tanto improvisada nos primeiros meses de 1858, tornara-se o embrião daprimeira Sociedade Espírita domundo.O processo de legalização da entidadefoi conduzido com todoo cuidado e contou comodecisivo apoiodosDufauxnumperíododealtatensãoemParis.

AcapitaldaFrançaestavasobasançãodaLeideSegurançaGeral,promulgadaapós um atentado sofrido por Napoleão III, em 14 de janeiro de 1858. Oresponsávelpelatentativadeassassinato,orevolucionárioFélixOrsini,jáestavapreso, prestes a ser condenado à guilhotina, e a ordem do governo era clara:vigilânciamáximaparaevitarnovosataques.

De acordo com as novas leis, que vigorariampor doze anos, oministro doInterior poderia, por exemplo, exilar qualquer cidadão francês suspeito deconspirar contra a segurança do Estado. Reuniões privadas, como asorganizadasporAllanKardec,eram,portanto,vistascomreservaesuspeita.Omais seguro era obter uma autorização legal para não correr riscosdesnecessários.

Amigo do prefeito de polícia, o sr. Dufaux encarregou-se da petição egarantiu às autoridades o caráter apolítico dos encontros semanais no entãorecém-batizadoCírculoParisiensedeEstudosEspíritas.Logodepois, instruídopelopaideErmance,Kardecenviououtrasolicitaçãoao“Sr.PrefeitodePolíciadaCidadedeParis”:

OsmembrosfundadoresdoCírculoParisiensedeEstudosEspíritas,quesolicitaramjuntoavósa autorização necessária para constituir-nos em Sociedade, temos a honra de pedir-vos queconsintaispermitir-nosreuniõespreparatórias,enquantoesperamosaautorizaçãoregular.

Otextoseencerravacomduasassinaturasdomesmohomem:“(...)tenhoahonradeservossomuitohumildeemuitoobedienteservidor,H.L.D.Rivail,ditoAllanKardec.”

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Nodia1ºdeabrilde1858,trêsmesesdepoisdolançamentodaRevistaEspírita,a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas passou a ocupar, com autorizaçãodo Estado, um endereço próprio: um salão alugado, por um ano, no Palais-Royal,nagaleriaValois.

Aquele seria o palco de sucessivos diálogos com o invisível, descritos emediçõescadavezmaispopularesdaRevistaEspírita,atribunadeAllanKardec.

Foi nas páginas da publicação, em maio, que o professor festejou aconstituiçãodanovaassociaçãoparisiense:

ASociedade, cuja formação temosoprazerdeanunciar, compostaexclusivamentedepessoassérias, isentasdeprevençõeseanimadasdosincerodesejodeesclarecimento,contou,desdeoinício,entreosseusassociados,comhomenseminentesporseusabereporsuaposiçãosocial.

Estamosconvictosdequeelaéchamadaaprestar incontestáveis serviçosàconstataçãodaverdade.

Kardec assumiu a presidência do grupo e nomeou, então, São Luís“presidenteespiritual”daSociedade.Umadasmensagensassinadaspelo santoserviriadeguiaparaostrabalhosdeintercâmbiocomoalém:

— Tudo pesar e amadurecer; submeter ao controle da mais severa razão todas ascomunicaçõesquereceberdes;nãodeixardepedir,desdequeumarespostavospareçaduvidosaouobscura,osesclarecimentosnecessáriosparavosconvencer.

Entre osmembros fundadoresde carne e osso,médiuns comoos senhoresRose, Alfred Didier, D’Ambel, Leymarie e Delanne, e as senhoritas Eugénie,HueeStephanie,alémdaatuantesra.Costel.Entreosvisitantesinvisíveismaisassíduos, além de São Luís, destacava-se Erasto, discípulo e colaborador doapóstolo Paulo de Tarso nos tempos de Cristo, responsável agora pororientaçõesincisivascomoesta:

—Nãotemaisdesmascararosembusteiros.

Estimulado pelas vendas deO livro dos espíritos , pelo número crescente deassinantes daRevista Espírita e pela adesão de novos sócios contribuintes à

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Sociedaderecém-fundada,oprofessorpassouadedicarcadavezmais tempoàsuamissãooucombate.

LogoRivailseriaumasombradeKardec,acadadiamaisatuanteeconfiante.Com informação e divulgação, acreditava, seria possível vencer os

preconceitos contra o espiritismo e provar ao mundo que, em torno dasesfuziantesepolêmicasmesasgirantes,haviaummundonovoaserevelar.

Quemsabeaconteceriacomoespiritismooquejásedavacomsua“ciênciairmã”,omagnetismo?

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FLUIDOSPOSITIVOSENEGATIVOS

Naqueleano,chegaraàsmãosdeKardecumlivroadotadopelaIgrejaCatólicapara os cursos de catecismo. Escrito em formato de perguntas e respostas—comoO livro dos espíritos —, a publicação, intituladaAbregé, en forme decatéchisme, exibia a assinaturado vigário-geral deVerdun, o abadeMarotte, ededicavaumasériedediálogosaomagnetismo.

Kardecfezquestãodesublinharasrespostasdadasàquestãosobreosefeitosprovocadospelasinduçõesmagnéticas:

—Umestadodesonambulismo,noqualomagnetizado,privadointeiramentedousodossentidos,vê,ouve,falaerespondeatodasasperguntasquelhesãodirigidas.

—Umainteligênciaeumsaberquesóexistemnacrise:conheceoestadodedeterminadosdoentes, os remédios convenientes às suas doenças, bem como o que fazem certas pessoasafastadas.

Nenhuma referência a possessões demoníacas nem recomendações deexorcismo.

DeEstocolmo,Kardecrecebeuoutrapublicação,umaediçãodoJournal desDébats,comboas-novassobreospoderesdecuradomagnetismo.Eopacientenãoeraumplebeuqualquer.Atormentadoporfortesenxaquecas,queresistiama todos os remédios e tratamentos há mais de dois anos, o rei Oscar forasubmetido a uma série de sessões magnéticas, por recomendação do própriomédico, o dr. Klugenstiern. Para surpresa do editor do jornal, os suspeitosfluidosmagnéticosfuncionaram:

(...) por singularíssima coincidência, a saúde do reiOscar se acha restabelecida, precisamentenaquelepontodacabeçachamadocerebelo.

Kardec traduziu a reportagem e festejou em artigo publicado naRevista

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Espíritaemoutubrode1858:

Perguntamos se há 25 anos osmédicos teriamousadoprescrever publicamente um talmeio,mesmoaumsimplesparticular,quantomaisaumacabeçacoroada?

Umasériedeprovocaçõesaosantagonistasdoespiritismopontuavaotexto:

Comomudaramascoisasnessecurtoespaçodetempo!Nãosójánãoriemdomagnetismo,comotambémei-looficialmentereconhecidocomoagenteterapêutico.

Queliçãoparaosqueriemdeideiasnovas!Ela os fará compreender a imprudência de investirem em falso contra as coisas que não

entendem?

A resposta a esta última pergunta seria “não” quando o assunto fosse oespiritismo.

Enquantoomagnetismo era abençoadopelodestemido abade e receitado acabeças coroadas, o jornal especializado em saúdeGazette des Hôpitauxnoticiava, com destaque, que 25 pacientes estavam internadas no hospital dealienadosdeZurique“graçasàsmesasgiranteseaosespíritosbatedores”.

KardecrecorreudenovoàRevistaEspíritaparareagir:“PerguntaríamosseomedodoDiabonãofezmaisloucosdoqueacrençanosEspíritos.”

Oartigo,publicadoemnovembrode1858,terminavacomacusaçõesaoutrodemônio, cada vez mais devastador no mundo: o álcool. Uma pesquisaestatística,realizadanaInglaterra,chegaraaosseguintesresultados:

Decadacemindivíduos internadosnohospitaldealienadosdeHamwel,há72cujaalienaçãomentaldeveseratribuídaàembriaguez.

Kardec lamentava o tratamento reservado pela imprensa ao espiritismo eestranhavao fatodemuitos jornalistas, partidários sincerosdanovadoutrina,cruzaremos braços e esconderem sua fé.Alguns estariam, inclusive, entre osassinantesdaRevistaEspírita:“Porqueguardamsilêncio?”

Ele mesmo arriscou uma resposta: “por receio de perder os assinantes aoarvorar, francamente, uma bandeira cuja cor pudesse desagradar a alguns

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deles.”

Seis meses depois do lançamento, aRevista Espírita já conquistava assinantesem toda a Europa, além de México, Canadá, Moscou, Estados Unidos e atéShangai. As edições, sempre mensais, tinham se esgotado tão rápido que foipreciso reimprimirnúmeros extras.OpróprioKardec cadastrava os leitores elistava suas pro ssões sem tornar públicas suas identidades: o ciais generais,magistrados, negociantes, funcionários públicos, médicos — “uma grandequantidadedehomenssuperiores”.

Um deles, o sr. Jobard, diretor do Museu Real da Indústria de Bruxelas,o cialdaLegiãodeHonraemembrodaAcademiadeDijon,enviouumalongacartaao“SenhorKardec”pararenegarcríticasanterioresquepublicaracontraasmesasgirantes—“palhaçadasindignasdaatençãodossábios”—edestacara“profundezaelógica”deOlivrodosespíritosedaRevistaEspírita:

Vós vos elevastes de um salto ao nível de Sócrates e de Platão pelamoral e pela loso aestética.

A ideia de que a vida é uma a nação das almas, uma prova e uma expiação, é grande,consoladora,progressivaenatural.

Jobard estava encantado com as revelações de Kardec sobre a “pluralidadedosmundos”.

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MOZARTEMJÚPITER

NotórridoMercúrio,nocongelanteSaturno,nainsípidaatmosferadaLua,emtodos os planetasmapeados pelos astrônomos e em outras dimensõesmenossólidas a desvendar, vivem seres inteligentes, invisíveis para nós, adaptados aessas realidades extremas, assim como os peixes se adaptam à água emicrorganismossobrevivemaofogodosvulcões.

Espíritosteriamdescritoasmaravilhaseasmazelasde“outrosmundos”nassessõesdepsicografiaconduzidasnaSociedadeParisiensedeEstudosEspíritas:

—Tudo é povoado no universo; a vida e a inteligência estão por toda parte: em globossólidos,noar,nasentranhasdaTerraeaténasprofundezasetéreas.

Estapopulaçãoseria formadaporvelhosconhecidosnossos—as“almasdetodos os humanos desta Terra e de outras esferas, desprendidas dos liamescorpóreos”.

Segundoanovadoutrina,oreinodoscéusestaria,portanto,pulverizadopeloespaço.Aomorrer,ohomemrenascerianesseturbilhãoplanetário,organizadoconformeumaescalaevolutivapreocupante,pelomenosdopontodevistadosterráqueos.

Deacordocomas fontes invisíveisdeKardec, aTerraperderiade todososplanetas—menos deMarte— em nível de evolução espiritual. Os espíritossuperioresseriamexceçõesnesteplaneta,esódesembarcariamaquiemmissõesespeciaisdecivilizaçãoeprogresso.MercúrioeSaturnoestariamemmelhorescondições—comordemsocialmaisequilibradae relaçõesmenosegoístas—,seguidosdepertopelaLuaeporVênus,povoadosporseresmaisevoluídos.

Detodososplanetasconhecidos,omaisadiantado,deacordocomtalescalaespiritual, seria Júpiter — o “reino exclusivo do bem e da justiça”, habitadoapenasporbonsespíritos.

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EfoiumadessasboasalmasqueaterrissouemParispararevelaraKardecodiaadianomaiorplanetadosistemasolar.Deacordocomamensagemdoalém,este visitante se chamava Bernard Palissy e, antes de renascer em Júpiter,trabalharacomooleironaFrançadoséculoXVI.

Para espanto dos céticos e admiração dos espíritas mais devotados, Rivailpublicou estas revelações naRevista Espírita, em agosto de 1858, e aindaencartou na edição um desenho assinado por Palissy: a fachada de uma casatoda desenhada com claves de sol entrelaçadas. Ele mesmo, o ex-oleiro,traduziuosigni cadodaquelaconstruçãodiáfana:eraamansãodeMozartemJúpiter.

Outrasurpresa:o“médium”responsávelpelodesenho,umaaquarelafeitaaolongodenovehoras,nãoteriaqualquerdomparaasartesplásticas.EraoentãojovemdramaturgoVictorienSardou,omesmoque, semanasantes, enviaraaoautor deO livro dos espíritos carta repleta de elogios e que, tempos depois,levariaaospalcosfrancesesapeçaintituladaBernardPalissy,sobreasaventurasedesventurasdeumoleiroemParis.

Muitos assinantes daRevista Espírita escreveram para pedir dicas de comogarantir um pouso em Júpiter na próxima encarnação, sem escalas nemconexões emMercúrio e Saturno, e sem correr o risco de ser expatriado devoltaàinclementeTerra.

Outrosterráqueosescreveramparaprotestar:“CasasdeespíritosemJúpiter!Quepiada!”—manifestou-seumdeles.

Kardecnãoseintimidou:

Piada—seja!Maseunadatenhocomisso(...).Euoconvidoaconsultarosespíritos,dequemapenassoueco ele instrumento.QueseevoquemPalissyouMozartouumoutrohabitantedessemundofeliz...

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CARTAAOPRÍNCIPE

No mdoano,AllanKardecrecebeuumalongacarta,repletadeinterrogações,assinadaporumleitorilustre:umpríncipe.Asquestõeseramtãorelevantes—e a origem do documento, tão nobre — que Kardec decidiu publicar acorrespondêncianaprimeiraediçãodaRevistaEspíritaem1859.

Tomou apenas o cuidado de preservar a identidade do remetente,identi cado por ele como Príncipe G., para evitar polêmica desnecessária, eperigosa.Nacarta,opríncipecatólicoendereçavaumasériedeperguntassobreomundoinvisívelaoautordeOlivrodosespíritos:

Os espíritos podem guiar-nos mediante conselhos diretos nas coisas da vida? Os espíritospodemrevelarofuturo?Qualpoderáserautilidadedapropagaçãodasideiasespíritas?

Kardecdedicoutempoeatençãoespeciaisaestaterceiraquestão.Eraprecisoser hábil e convincente para provar ao príncipe que a nova doutrina nãorepresentavaqualquerameaçaàfécristã—muitopelocontrário.

Nopoderdesde1846,opapaPioIXestavaprestesa iniciarumacampanhacontra o que de nia de “falso liberalismo”. A lista de ideologias condenadasincluíaopanteísmo,oracionalismo,amaçonaria,o judaísmoeoutrascrenças“dadascomocristãsatentarexplicaraBíblia”.

Kardecmediucadapalavraemsuasrespostas:

Se considerarmos a moral ensinada pelos espíritos superiores, veremos que é toda elaevangélica;bastadizerquepregaacaridadecristãemtodaasuasublimidade(...).

Ao reconduzir os homens aos sentimentos de seus deveres recíprocos, o espiritismoneutralizaoefeitodasdoutrinassubversivasdaordemsocial.

Na longa carta de Kardec, eram muitos os argumentos dedicados ademonstrar o quanto o espiritismo seria um aliado poderoso no combate à

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“chagadomaterialismo”,cadavezmaisemaltadesdeaRevoluçãoFrancesa.Aocomprovaraexistênciadaalmaesuaimortalidade—eatestarquetodohomemérecompensadooupunidodeacordocomosprópriosatos,pelobemoupelomal —, a nova doutrina ajudaria a formar uma sociedade mais justa econsequente.

Pelalógicada“causaeefeito”,eporseusprincípioscientí cos,oespiritismoestariaatraindo,segundoele,cadavezmaismaterialistasparasuasfileiras:

(...) dá religião aos que não a possuem; forti ca-a nos que a têm vacilante, consola pelacertezado futuro, faz suportarcompaciênciae resignaçãoas tribulaçõesdestavidaedesviaopensamentodosuicídio.

Éporissoqueosquepenetraramemseusmistériossesentemfelizes.Paraestesoespiritismoéaluzquedissipaastrevaseasangústiasdadúvida.

Kardec não contou ao príncipe, mas também recebia cartas de quem seapavoravacomapossibilidadedeestarcondenadoàvidaeternaesubmetidoaum ciclo sem mde castigos e recompensasmorais. Estasmensagens—quecobravamodireitoàmorteouao“descansoeterno”—osurpreendiam,masomelhorerapouparsuaaltezadepreocupaçõestãoplebeias.

Outra carta que entusiasmou o velho professor foi enviada pelo dr.Morhéry,cientistadedicado,hámaisdevinteanos,aumestudosobrea“naturezafluídicae biodinâmica” dos germes. Ao ler os artigos daRevista Espírita, o médicopassou a enxergar ligações entre o mundo invisível das bactérias e o dosespíritos.

Ele tinha participado de sessões de mesas girantes e saiu dos encontrosconvencidodarealidadedasmanifestaçõesespirituaisedaimportânciadaquelesfenômenos:“Compreendiquechegaraomomentoemqueomundoinvisíveliatornar-sevisíveletangível.”

Em sua carta, o médico previa que, em breve, o homem daria razão aocientista Gay-Lussac, formulador da lei da dilatação dos gases, para quemexpressõescomo“corposinvisíveisouimponderáveis”deveriamsersubstituídaspordefiniçãomaisprecisa:“corposimponderados”...ainda.

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Kardec fez questão de divulgar a correspondência naRevista Espírita, emfevereirode1859—comautorizaçãodeMorhéry,“doutoremmedicina”—,edeacrescentarumagradecimentoaoilustreremetente:“Neleaconvicçãonãoéfé cega, mas raciocinada. É a dedução lógica do sábio que não pensa sabertudo.”

MasfaltavapoucoparaaAcademiadeCiênciasdaFrançaemitirumparecerbem diferente sobre os médiuns e seus prodígios — fenômenos que atraíamcadavezmais curiosose estudiososà sededaSociedadeParisiensedeEstudosEspíritas, agora de mudança para um novo endereço, mais amplo, à ruaMontpensier,12,noPalais-Royal.

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CONCERTOSDOALÉM

O ano de 1859 seria marcado por uma série de eventos concorridos naSociedadeEspírita.Algunsvisitantesviriamdemuitolonge.

Na noite de 8 de abril, uma das presenças ilustres chegou de Júpiter:WolfgangAmadeusMozart.Omoradordaquelebelopaláciocelestial,reveladoaos leitores daRevista Espírita no ano anterior, estava entre os espectadoresinvisíveisdeumconcerto executadoporumapianistadeDavans, ex-alunadeChopin,nasededaSociedade.

ApartiturasobreopianoforapreenchidapelomédiumBryon-Dorgeval:umfragmento de sonata assinado pelo próprio Mozart, convidado de honra doshow.

AllanKardecsubmeteraapartituramediúnicaadiferentesmúsicoseouviraamesmaopinião:asonatatinhaamarcadocompositordeRéquiemedeoutrasobras-primas, então morto há quase setenta anos, e poderia, sim, ter sidoconcebida por ele. Somente após coletar os avais dos especialistas decidiuapresentara“músicacelestial”aosconvidados.

Apedidodoan trião,aconcertistaexecutouprimeiroumasonatacompostaporMozartquandovivo.Sódepoisrevelouaospresentesacomposiçãodoalém.Umsucesso,comorelatariaKardec:

Todos foram unânimes em reconhecer não só a perfeita identidade do gênero, mas ainda asuperioridadedacomposiçãoespírita.

Logoapósoconcerto,oan triãoinvocouMozartatravésdeumdosmédiunspresentes:

—Reconheceicomoditadoporvósotrechoqueacabamosdeouvir?—Sim.Muitobem.Euoreconheçoperfeitamente.Omédiumquemeserviudeintérprete

éumamigoquenãometraiu.

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—Qualdosdoistrechospreferis?—Semcomparação,osegundo.Adoçuraeoencantosãonelemaisvivosemaisternos.

Kardec então convidou o ilustre visitante a presentear a plateia com umaapresentaçãohistórica:

—Podereistocarpiano?—Semdúvidaquesim.

Poderia,mas...

—...nãooquero:seriainútil.

Diantedadecepçãodaplateia,Kardecinsistiu:

—Seriapoderosomotivodeconvicção!

Argumentoerrado.

—Nãoestaisconvencido?

Em conversa com Amélie, uma das espectadoras mais frustradas da noite,Kardec lamentaria, mais tarde, ter insistido naqueles termos: “Os espíritoselevadosjamaissesubmetemaprovas.”

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MÚSCULOSQUERANGEM

EmsessãoconduzidapelajovemErmanceDufaux,tambémem1859,SãoLuís,opresidenteespiritualdaSociedade,colocounopapeloseguintealerta:“Evocaiumrochedoeelevosresponderá.”

Deacordocomasinstruçõesdoconselheiroinvisível,erapreciso caratentoaos espíritos levianos, que se divertiam à custa da credulidade alheia edeclaravam quaisquer identidades para enganar ou impressionar o público. Eeraprecisotambémficaralertaemrelaçãoaosmédiuns.

Emseusartigosepalestras,Kardecapregoavaduasqualidadesindispensáveisaos intermediários dasmensagens do além: “desinteresse absoluto”— não sóporganhosmateriais,mas tambémpornotoriedade—e seriedadedurante assessões:

É justo descon ar de todos quantos zerem dos fenômenos um espetáculo, um objeto decuriosidade ou um divertimento, ou dos que tirem desses fenômenos qualquer proveito, pormenorqueseja,gabando-sedeosproduziràvontadeeaqualquerpropósito.

Em artigo publicado naRevista Espírita, em abril de 1859, sob o título“Fraudes espíritas”,Kardec alertavao leitorparauma “pequena astúcia” capazdeproduzir,porexemplo,sonsinexplicáveisatribuídosaespíritos:

Basta colocar asmãos abertas sobre amesa, su cientemente próximas para que as unhas dospolegares se apoiem fortemente uma na outra; então, por um movimento muscularabsolutamente imperceptível, faz-se estalar as unhas com um ruído seco (...). Esse ruídorepercutenamadeiraeproduzumailusãocompleta.

Porestesistema,a rmava,seriapossívelproduzirquantosgolpessequisesse,simularbatidasdetambor,ditarrespostasaperguntaspelo“sim”epelo“não”,oupelaindicaçãodasletrasdoalfabeto.

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O texto mereceria, quatro décadas depois, a seguinte nota de rodapé da“equiperevisora”responsávelpelapublicaçãodaRevistaEspíritanoBrasil:

Não é imperceptível o movimento muscular, nem o ruído é tão semelhante aos golpesinternos.Kardecquispreveniraspessoasinexperientesedemasiadocrédulas.

Estava em jogo a credibilidade da comunicação com os espíritos através demovimentos de mesas e “espíritos batedores”. Fenômenos fundadores dadoutrina, postos à prova — mais uma vez — por uma comissão deinvestigadores.

No dia 18 de abril de 1859, a Academia de Ciências de Paris anunciou adescobertadeoutrapossívelcausadaspancadaseruídosmisteriososatribuídosa“espíritosbatedores”:músculosrangedores.

A causa inteligente por trás das mesas falantes — e de fenômenos decomunicaçãocomoodas irmãsFox—estariadentrodoscorposdossupostosmédiuns,enãoforadeles,numaoutradimensão.

Oobjetodeestudoinicialdoscientistas,lideradospeloanatomistadr.Schiff,foiuma jovemde14anos, “forteebem-constituída”, afetadapormovimentosinvoluntários e regulares do músculo peroneal lateral direito e por batidasgeradas por detrás do “maléolo externo direito” com regularidade e força,segundoartigopublicadonaediçãodeabrildojornalL’AbeilleMédicale:

Esse ruído era ouvidono leito, fora do leito e a umadistância bem considerável do lugarondeamoçarepousava.

Notável por sua regularidade e pela nitidez dos estados, o ruído a acompanhava por todaparte.

Depoisdevirarereviraramoçaeauscultarcadaumdeseusestaloseruídossecos—semelhantesa“marteladas”—,dr.Schiffsacramentou:

Sobain uênciadacontraçãomuscular,podemostendõesdeslocados—nomomentoemque

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entram nas goteiras ósseas — produzir batimentos que, para certas pessoas, anunciam apresençade“espíritosbatedores”.

E omais importante: esses sons poderiam ser produzidos por qualquer umquesedispusesseadeslocartendõesparamaravilharplateias.

Paracomprovara tese,omédicousaraoprópriocorpocomo laboratórioe,com a prática, conseguira produzir ruídos “voluntários, regulares eharmoniosos”pordetrásdotalmaléoloexternoena“corrediçadostendõesdoperônio”.

Plateiasdeatécinquentapessoasouviramas“mensagens”transmitidaspelasarticulaçõesdomédico,“comousemsapato,depéoudeitado”.

Oartigodetalhavaestes testesedestacava tambémoutroscasos,comoodeuma jovem internada no Hospital São Luís pelo pai, que se autodenominava“paideumfenômeno”ejáfaziaplanosdeganhardinheirocomodomda lhaem apresentações públicas. A jovem, segundo o pai coruja, carregaria umpêndulonoventre.

O prodígio, entretanto, foi desvendado após breves exames. Bastava apaciente fazer um ligeiro movimento de rotação na região lombar da colunavertebralparaproduzir estalos fortes—audíveis aaté25pésdedistância.Elacontrolavaoritmoeapotênciadossonscomacontraçãodosmúsculosdabasedacoluna.

Diantede“evidências”comoestas,osespecialistasdaAcademiadeCiênciasavalizaram o parecer do dr. Schi e deram por encerradas as investigaçõessobre os bastidores ocultos das “comédias espíritas”: “Os charlatãesrelacionaramestesfenômenossingularesacausassobrenaturaisparaexploraracredulidadepública.”

KardecpublicouodiagnósticodosinvestigadoresnaRevistaEspírita,emjunhode1859,elevantouasseguintesquestões:

• Porquean triõesbem-nascidosebem-criadosreuniriamvisitantesemsuascasasemsalõesdaEuropaedosEstadosUnidosparafazermúsculosestalarem

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duranteduasoutrêshorasseguidas, semnenhumlucro?Serianecessáriaumafortedosedevontadedemisti caredivertiropúblicoparasubmeteroprópriocorpoaexercíciostãocansativos.• Os tendões martelariam as goteiras ósseas, mas teriam de ir muito maislonge.Os“músculosrangedores”bateriamtambémnasportas,nasparedes,nostetos,emtodoocantoe—dotadosdeumpoderinsuspeito—ergueriammesasmaciças,commaisdecinquentaquilos,semastocar,easfariamandarportodaasala,abrir,fechareflutuarnoespaçosemapoio.• O charlatão usaria seusmúsculos para imitar o somdomartelo, responder“sim”ou“não”,ditarfrasesinteirasaosomdepancadasvinculadasaoalfabeto.Masequandoosmúsculosrespondemaquestõessobreassuntosdesconhecidospelo farsante? E quando ditam sonetos e partituras musicais sem que osembusteirostenhamquaisquerdonsparaapoesiaouamúsica?

Emlongoartigo,Kardecrecorreuàironiamaisumavezparaprotestar:“Naverdade,senhoresmédiuns,ossenhoresnãosuspeitavamdequehouvessetantoespíritoemseuscalcanhares!”Eprosseguiu:

Segundoocélebrecirurgião,todotoc-toc,todopan-panquedeboa-féfazarrepiaraquelesqueos escutam; esses ruídos singulares, esses golpes secos, vibrados sucessivamente e como quecadenciados, sinais certos da presença dos habitantes do outro mundo, são simplesmente oresultadodeummovimentoimprimidoaummúsculo,umnervo,umtendão!

Quase trinta anos depois dessa polêmica, a 21 de outubro de 1888,MaggieFoxcon rmaria,emparte,astesesósseo-muscularesdodr.Schiff.AosubirnopalcodaAcademiadeMúsicadeNovaYorkpara revelaraorigemdasbatidasmais investigadas da história do espiritualismomoderno, diria diante de umamultidãodejornalistas:

—As batidas são simplesmente o resultado de um controle perfeito dos músculos da pernaabaixodo joelho, que governamos tendõesdospés epermitema açãodas articulações edosossosdocalcanhar,quenormalmentenãosãoconhecidos.

Con ssãoque,mesesdepois,noentanto, renegaria,atribuindo-aapressõesde“poderososcatólicos”,subornodeumdonodejornaledesejodesevingarda

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irmãmaisvelha,Leah,comquemmediaforçasháanos.Mortodezenoveanosantes,Kardecnãoestariamaisapostosparadefender

a doutrina nem agradecer aos adversários, como zera ao longo de discursos,debates e artigos como este, endereçado aos “antagonistas”na Revista Espíritaemmarçode1859:

Nãoháumsóde seusartigos [escritospelos adversários],maisoumenosespirituosos,quenão tenhaproduzido a vendade algunsdenossos livros e quenãonos tenhaproporcionadoalgunsassinantes.

Obrigado,pois,peloserviçoquenosprestaminvoluntariamente.

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OALERTADOABADE

Umdosprincipais adversáriosdoespiritismomanifestou-se em13deabrilde1859, em artigo publicado no jornal católicoL’Univers. O abade FrançoisChesnel reconheceu o avanço da “necromancia espírita”, “inclusive entrehomens honrosamente conhecidos”, e pediu cuidado para que não seemprestasseà“novaseita”importânciadesmedida.

Oalertaveioacompanhadodeumpedidodeatençãoànovacrença,paraquenãosecaíssena“mania”detudonegarouamesquinhar:

Nãocreiasemtodoespírito,masprovaiseosespíritossãodeDeus;porquesãomuitososfalsosprofetasquejáselevantaramnomundo.

Em vez de acusar o demônio como responsável pelas comunicações dosmortos,oabadeapontouodedonadireçãodohomem.

Mensagensatribuídasaespíritospoderiamvirdoprópriomédiumemsessõesondequestõesdebatidasempúblicojáteriamsidocomentadasoureveladasforada“consultaespiritualista”.Paraele,omédiumsófalariacomclarezadefatosjáconhecidos.

Além de agir por má-fé — ou mesmo por autossugestão —, o médiumpoderia acessar informações ou emoções impregnadas no próprio ambiente,captadas dos frequentadores de cada sessão, ao entrar em “estadosonambúlico”.

ParaconfrontaradescrençadoabadeChesnel,KardecusariamaisumavezaRevistaEspírita:

Serápor efeitodo sonambulismoqueumamesa responde comprecisão às perguntas que lhesãofeitas,eatéaperguntasmentais?

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Massuamaiorpreocupação,aoescreveralongarespostaaorepresentantedaIgreja, eraoutra—o títulodo artigo assinadopelo abade: “Uma religiãonovaemParis”.

Segundo Kardec, ao desvendar o mundo invisível, como o microscópiorevelaraouniversodos“in nitamentepequenos”,oespiritismoserianãoumareligião, mas uma ciência: “Do contrário teria seu culto, seus templos, seusministros...”

ComonacartaenviadaaoPríncipeG.noiníciodoano,Kardectomaratodoo cuidado para reforçar os laços entre a nova doutrina e o cristianismo edefendersuaforçanocombateaomaterialismo:

(...)quantosincrédulosenfurecidoselejáencaminhou(...) quantas vítimas arrancou ao suicídio pela perspectiva da sorte reservada àqueles que

abreviamavida,contraaleideDeus(...)(...)quantosódiosacalmou,aproximandoinimigos!

O abade não se convenceu. Em novo artigo publicado noL’Univers, emjunho,logoabaixodarespostadeKardec,insistiu:aodiscorrersobreamoral,oespiritismo atuava sim como uma nova religião. E os médiuns seriam ossacerdotesdessanovaordem.

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OQUEÉOESPIRITISMO?

Mas, a nal, o que seria o espiritismo? Para responder esta pergunta e reagirtambémàscríticasesuspeitasmaiscomunscontraadoutrina,Kardec lançou,emjulhode1859,umaespéciedecartilhaintituladaOqueéoespiritismo?

Doutrina,ciência, loso a,religião?Aresposta—assinadaporKardecenãodelegadaaosespíritos—virialogonaintrodução:

Oespiritismoé,aomesmotempo,umaciênciadeobservaçãoeumadoutrina losó ca.Comociênciaprática,envolveasrelaçõesentrenóseosespíritos;como loso a,compreendetodasasconsequênciasmoraisqueemanamdessasrelações.

Paraquemachoulongo,umresumoaindamaisconciso:

Oespiritismoéumaciênciaquetratadanatureza,origemedestinodosespíritos,bemcomodesuasrelaçõescomomundocorporal.

Já no primeiro capítulo, Kardec pôs no papel, em formato de perguntas erespostas, diálogos que costumava travar com curiosos que batiam à porta daSociedadeembuscadeprovasdapresençadeespíritos.Algunsdessesvisitantesseapresentavamcomoadversáriosdadoutrina,prontosaseconverterdiantedefenômenosirrefutáveis:

Visitante—(...)seconseguísseisconvencer-me,conhecidoquesoucomoantagonistadevossasideias,istoseriaummilagreeminentementefavorávelàcausaquedefendeis.

A.K.— Lamento-o, caro senhor, porém não tenho o dom de fazermilagres. Julgais queumaouduassessõesbastariamparaadquirirdesconvicção?(...)Eupreciseidemaisdeumanodetrabalhoparaficarconvencido.

O diálogo terminava com um argumento que dividia opiniões e causava

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polêmicaentreosprópriosfundadoresdaSociedade:

A.K.—(...)alémdisso,nãorealizosessõespúblicaseparece-mequevosenganastessobreo mdasnossasreuniões,vistonãofazermosexperiênciascomoobjetivodesatisfazeracuriosidadedeninguém.

Desde o início, companheiros de Kardec defendiam a abertura das sessõescomo táticadedifusãodoespiritismo.Pressionado, ele chegouapedirpara seafastardapresidênciadaassociação—pedidorejeitadopelossócios.

AinclusãodessediálogoemOqueéoespiritismo? serviatambémcomoumamensagemaospossíveisdissidentes:asociedadedeveriaserencaradacomoumcentro de estudos e não como palco de fenômenos para propaganda dadoutrina.Enãoadiantavainsistir.

O que é o espiritismo? funcionou como canal para uma série de recados,diretos e indiretos, dirigidos aos antagonistas da doutrina, de “dentro” e de“fora”doscírculosespíritas.

No texto de abertura, Kardec tomou o cuidado de rejeitar os créditos defundador, criador ou inventor da loso a espírita, e de atribuir aoscolaboradoresinvisíveisoméritopelanovaciência:

Diz-sea loso adePlatão,deDescartes,deLeibniz;nuncasepoderádizeradoutrinadeAllanKardec (...). O espiritismo tem auxiliares demaior preponderância, ao lado dos quais somossimplesátomos.

UmasériededuelosentreKardeceosmaisdiversospersonagenspontuavaolivro.

Comapalavra,oVisitanteCrítico:

VC—Nãoacrediteisqueminhaopiniãosetenhaformadolevianamente.Vimesasgirareme produzirem sons como de pancadas; vi pessoas escreverem o que, segundo diziam, lhesditavamosespíritos;estouconvencido,porém,dequenissohácharlatanismo.

A.K.—Quantovoscobraramparamostrar-vosessascoisas?VC—Nada.A.K.—Ora,aítendescharlatõesdeumaespéciesingular.Atéopresentenãosetinhaainda

vistocharlatõesdesinteressados.

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OPadre:

P—A religião ensina tudo isso (caridade, fraternidade,moral...); até agora foi su ciente.Qualéhojeanecessidadedeumanovadoutrina?

A.K. — Se a religião ensina o bastante, por que há tantos incrédulos, religiosamentefalando?

EtambémoVisitanteCético:

VC — O espiritismo tende, evidentemente, a fazer reviver as crenças fundadas nomaravilhosoenosobrenatural;ora,noséculopositivoemquevivemos,istomeparecedifícil,porqueéexigirqueseacreditenassuperstiçõesenoserrospopulares,jácondenadospelarazão.

A.K.—O sobrenatural desaparece à luz do facho da ciência, da loso a e da razão (...).Sobrenaturalétudooqueestáforadasleisdanatureza.Opositivismonadaadmitequeescapeàaçãodessasleis;mas,porventura,eleasconheceatodas?(...)Oespiritismoampliaodomíniodaciênciaeénistoqueeleprópriosetornaumaciência.

Maseasprovasirrefutáveis?Entreváriasevidências,Kardeccitava,nonovolivro, os prodígios de um médium vidente, testemunhados por ele e outrosprivilegiados:

Seráporefeitosonambúlicoquecertomédiumdesenhou,umdia,emminhacasaenapresençade vinte testemunhas, o retratodeuma jovem,mortahavia dezoitomeses e a quemelenãoconhecera,retratoreconhecidopeloprópriopaidajovem,presenteentãoàsessão?

Notexto,Kardecpreservouaidentidadedojovem.OnomedeleeraAdrien.

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OINCRÍVELADRIEN

O jovem vidente fora personagem de uma reportagem publicada naRevistaEspíritapoucoantesdolançamentodeOqueéoespiritismo?,emjulhode1859.Kardec estava impressionado com sua capacidade de enxergar e descrever omundoinvisível:

Apopulaçãooculta,que formigaemvoltadenós, lheévisível. (...)Elerepresentaparanósopapeldeumvidentenumapopulaçãodecegos.

Mas como garantir que os relatos de Adrien correspondessem à realidadeinacessívelaossimplesmortais?

Kardectinhaprovas:asdescriçõesexatas,feitaspelomédium,daaparênciaedostraçosfísicosdemortosdesconhecidosporele:

Quandodescreve, comrigorosaminúcia,osmínimos traçosdeumparenteoudeumamigo,queevocamosporseuintermédio,temosacertezadequeelevê,poisnãopodeserfrutodesuaimaginação.

Nemsempre,porém,osparentesdosmortosreconheciamestasdescrições.Cordocabeloedosolhos,formadoqueixoedosmaxilares,altura,peso:comoexplicarasdiscrepânciasentreafiguradescritaeomodeloreal?

Kardec tinhauma justi cativa técnica: ao deixar o “envoltóriomaterial” naTerra,oespíritolevariaconsigoseu“invólucroetéreo”,outraespéciedecorpo,comformahumana,masquenãoseriacalcada traçoa traçosobreaquelequecara no plano físico. Quanto maior o tempo transcorrido desde a morte,

menorespoderiamserassemelhançasentreocorpomaterialeoetéreo.Outra explicação, aindamais complexa: omédium teria a visãodo invisível

através de uma “radiação uídica” emitida pelo espírito. E essa emissão

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magnética poderia ser comprometida pela presença de pensamentosdesfavoráveisnoambiente.

Paraosmaishostis,aexplicaçãoeraoutra:Adrienteriaproblemasdevisão...edecarátertambém.EKardecnãoconseguiriaenxergaressasdistorções.

Como converter os céticos? Pressionado pelas críticas e suspeitas de sempre,KardecescreveunaRevistaEspírita:

Nossoobjetivonãoéconvencerincrédulos.Senãoseconvencempelosfatos,menosofariampeloraciocínio:seriaperdermosonossotempo.

Aos“contraditores”,umamensagem:

Estudaiprimeiroeveremosdepois.Temosmaisquefazerdoquefalaraquemnãoquerouvir.Aliás,oqueimporta,emdefinitivo,aopiniãocontráriadesteoudaquele?

Eraumdesabafo.Kardecestava,sim,emplenacampanhaparaatrairadeptosaocírculovirtuosodoespiritismo:“Nascer,morrer,renasceraindaeprogredirsempre.” Uma evolução permanente, pontuada por penas e recompensasfuturas,baseadasnobemenomalpraticadospeloespíritoimortal.

Encontrai uma solução mais lógica para todas as questões que o espiritismo resolve; dai aohomem outra certeza, que o torne mais feliz, e compreendei bem o alcance do vocábulocerteza,porqueohomemsóaceitacomocertoaquiloquelheparecelógico.

Oespiritismo—“quedáavoltaaomundo,comquatrooucincomilhõesdeadeptos”,segundoKardec—tocariaacordamaissensíveldohomem:adesuafelicidade.Enãosepoderiabrincarcomeleimpunemente.

Não era o que pensava o redator daGazette de Lyon , principal jornal dacidadenataldoprofessorHippolyteLéonDenizardRivail.

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OSALUCINADOS

Comuma de nição sucinta, o jornalista abria a reportagem “Uma sessão dosespíritas”,publicadaem2deagostode1860:

São chamados espíritas certos alucinados que, apesar de terem rompido com todas as crençasreligiosasdeseutempoeseupaís,pretendemserelacionarcomosespíritos.

Diasanteseleparticiparadeumareunião semanalpromovidanao cinadeumtecelãodacidade,entrequatrotearesverticais.

Vinte e cinco pessoas acompanharam o desempenho da médium — ou“sibila”, como de niu o repórter —, mulher do an trião. Sentada à mesa,cadernoabertoàsuafrente,penadegansoàmão—“enãoumapenametálica,pois os espíritos têm horror aosmetais”, explicava o jornalista—, amédiumcolocounopapelrespostasàsmaisdiversasquestões.

A primeira pergunta partiu de um jovem soldado intrigado com o fato denuncaserconvocadoparaasbatalhasemmarchanaCrimeiaenaItália.Oitodiasantesdecadamissão,eradesignadoparaoutrospostos.Porquê?

A “Inspirada”—era assimqueo an trião e os convidados a chamavam—equilibrouapenasobreopapelepediuajudaaoinvisível:

—MeuDeus,fazei-meagraçadenosesclarecernesseassunto.

Instantesdepois, apena colocoua seguinte frasenopapel, lida emvoz altapela“sibila”:

—Équeestaisdestinadoaviverparainstruireesclarecervossosirmãos.

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Recém-chegado dos campos de batalha, um sobrevivente da guerra lançououtrapergunta:

—Oespíritodomeupaimeacompanhoueprotegeunoscombates?—Sim.

O repórter se aproximou do soldado e perguntou quando o pai dele haviamorrido:

—Meupainãoestámorto.

Em seguida, um jovem tecelão da cidade descreveu a seguinte cena: noitesantes, sua mãe fora despertada por um toque misterioso em seu rosto.Assustada, pediu ajuda aomarido e ao lho, que vasculharam a casa—ondetambémfuncionavaao cina—embuscadealgumvisitanteinoportuno(ratos,porexemplo).Derepente,umdostearescomeçouafuncionarnaextremidadedo salão, e logo as outras máquinas se juntaram à primeira numa sinfoniaaterradora.

Qualeraaexplicação?Maisumavezapenadegansodeuaresposta,lidapelamédium:

—Éovossoavô,quevempedirpreces.—Éissomesmo.Pobrevelho!

Afamília,católica,aindanãomandararezarasmissasprometidas.

Outro espectador buscava razões para as constantes aparições de cometasnoscéusdaFrança.Seriamsinaisdoapocalipse?

Arespostaveiorápido:

—Sim,eem140anosomundonãomaisexistirá.

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A sessão terminou com uma questão bem mais pessoal, lançada por umaespectadora que, segundo estimativas do repórter, deveria ter entre 40 e 50anos:

—Meuespíritojáfoiencarnado?Quantasvezes?

Apenadegansomatouacuriosidadedavisitante:

—Foram três vezes.Na primeira vez, foste lha natural de respeitável princesa russa; nasegundavida,filhalegítimadeumtrapeironaBoêmia;e,nestaterceira,tuosabes...

O jornalista não deu detalhes sobre a nova encarnação da ex-nobre, masencerrou a reportagem com uma pergunta — “Não seria bom impedir quepobres loucos cassem ainda mais loucos?” — e com certa nostalgia dasfogueirasdaInquisição:

OutroraaIgrejaerabastantepoderosaparaimporsilêncioasemelhantesdivagações.Talvezelamaltratassebastante,éverdade,massustavaomal.

Kardec cou indignado ao ler o artigo. Um dos parágrafos que mais oincomodoueraoquedefiniaoperfildosadeptosdadoutrina:

(...) são, geralmente, operários, pois ali não recebem facilmente os que, pelo seu exterior,denunciammuitainteligência.

Osespíritossósedignammanifestar-seaossimples.

Destavez,estimuladoporAmélie,KardecescreveuumacartaparaaGazettedeLyonepediudireitoderesposta.Erammuitasascorreçõesafazer:

• A quase totalidade dos espíritas — 5 ou 6 milhões, pelas suas contas jáatualizadas—pertenceriaàs“classesmaisesclarecidasdasociedade”:médicos,advogados,magistrados,homensde letras, altos funcionários,o ciaisde todasaspatentes,artistas,cientistas,negociantes,“pessoasquelevianamentecolocais

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entreosineptos”.•OsoperáriosdeLyondeveriammerecermuitomaisrespeitoegratidãodeseuconterrâneo. “Esqueceis que são esses mesmos operários que fazem aprosperidadedevossacidadepelaindústria?”•Sobreodesempenhoda“sibila”,Kardecfoibemmaissucinto:elanuncausou“penasdeganso”emsuascomunicações,eamaioriadasperguntaserespostascitadasnoartigoseriam“purainvenção”,segundorelatosdeseusinformantes.• Sim, ele reconhecia. Os espíritos, às vezes, proferiam absurdos. E mais:cometiam grosserias e impertinências. Se o jornalista tivesse lidoO livro dosespíritos, saberia por quê: ao deixar o corpo, o espírito não se despojava,imediatamente,detodasasimperfeições:

É provável que aqueles que dizem coisas ridículas como espíritos as disseram ainda maisridículasquandoestavamentrenós.

Eisporquenãoaceitamosmaiscegamenteoquevemdapartedelesdoqueovemdapartedoshomens.

Emsetembrode1860,mês seguinteànovapolêmica,osespíritas lionensesofereceriam um jantar a Kardec. No discurso de boas-vindas ao “zelosopropagador da doutrina espírita”, o an trião Guilhaume agradeceu aperseverançadohomenageado,“escolhidoparaespalharaluz”.

Todos os convivas ali eram gratos aO livro dos espíritos por pelo menosquatro razões, enumeradas na saudação inicial: felicidade de se sentiremmelhorados; “coraçãomais leve, livre da cólera e da vingança”; coragem paraenfrentar os reveses da vida; e disposição para o exercício da caridade, “nãomaisumapalavravã”.

Umbelodiscursoassinadoporumcomerciante,filhoenetodetecelões.

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PARTEV

MULTIPLICAREDIVIDIR

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ONOVOLIVRODOSESPÍRITOS

No jantar oferecido pelos espíritas de Lyon, foram muitas as dedicatóriasescritas por Kardec em exemplares da nova edição deO livro dos espíritos ,lançadaem18demarçode1860.Uma“obranova”,“inteiramenterefundidaeconsideravelmenteaumentada”,comooautordefiniu.

Os 501diálogos publicadosna primeira edição se transformaram em1.018perguntas e respostas numeradas, acompanhadas de comentários e notasexplicativas assinadas por Kardec, já reverenciado como “mestre” pormuitosadeptos.

A primeira parte da versão original deO livro dos espíritos , intitulada“Doutrina espírita”, foi desmembrada em duas, ainda mais especí cas: “Dascausasprimárias”e“Domundoespíritaoumundodosespíritos”.

Osubtítulodaprimeiraedição—“Escritoepublicadoconformeoditadoeaordemde espíritos superiores”— foi substituídoporumanovadescrição: “Osprincípios da doutrina espírita, segundo o ensinamento dado pelos espíritossuperiorespor intermédiodediversosmédiuns, recolhidosepostosemordemporAllanKardec.”

Napartesuperiordacapa,umnovotermo:“Filosofiaespiritualista”.O mestre logo passaria a ser de nido também como “o codi cador”,

responsávelpororganizarocalhamaçodoalém.As mensagens dos “espíritos superiores” passariam por seu crivo e seriam

ltradas,checadaserechecadasporeleatravésdediversasfontes,comaajudadosmais diversosmédiuns e apoiode farta pesquisa. “Adoutrina espírita nãofoiditadaemtodosospontos,nemimpostaàcrençacega”—explicariaKardecnanovaintroduçãodaobra,antesdeprosseguir:

Elaédeduzidapelotrabalhodohomem,daobservaçãodosfatosqueosespíritospõemsobseusolhos, e das instruções que eles lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, e dasquaistira,pessoalmente,consequênciaseaplicações.

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Este homem era Kardec, cada vez mais longe de casa, às voltas comsucessivasviagensdedivulgaçãodadoutrina.

Só em setembro de 1860, sempre acompanhado porAmélie, ele percorreu, abordo de trepidantes coches e carruagens sobre estradas esburacadas, Sens,Macon e Saint-Etienne, depois de passar por Lyon. Uma nova expressãoganhavaforçaenquantoocasalavançava:“Oespiritismoestánoar.”

Econquistavaaliadoscadavezmaisgraduadosdo ladode lá.Nestasegundaedição da obra fundadora do espiritismo, algumas respostas às perguntasformuladasporKardecexibiamassinaturasilustres.

SãoLuís,opresidenteespiritualdaSociedadeParisiensedeEstudosEspíritas,era o mais comunicativo da lista, que incluía novos colaboradores do além,como Santo Agostinho, um dos principais teólogos do catolicismo, mortocatorzeséculosatrás:

—Qualomeiopráticomaise cazquetemohomemdemelhorarnestavidaederesistiràatraçãodomal?

(...)Conhece-teatimesmo.—Mascomoconhecerasimesmo?Fazeioqueeufazia,quandovivinaTerra:ao mdodia,interrogavaaminhaconsciência,

passava em revista o que zera e perguntava amimmesmo se não faltara a algumdever, seninguémtiveramotivoparademimsequeixar(...).

Palavras do santo, que em seguida explicaria por que as mesas precisaramgirar pelo mundo afora antes de os médiuns entrarem em cena comointermediáriosdoalém:

Primeirochamamosavossaatençãopormeiodefenômenoscapazesdeferir-vosossentidoseagora vos damos instruções, que cada um de vós se acha encarregado de espalhar. Com esteobjetivoéqueditamosOlivrodosespíritos.

Blasfêmia! — diziam os católicos. Fogo! — recomendaria a Santa Sé emBarcelona,noanoseguinte.Atemperaturasubia.

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De Marselha, pelas mãos de outro médium, Jorge Genouillat, chegou novamensagemendereçada aKardec.Um texto intitulado “Futurodo espiritismo”,datadode15deabrilde1860.AIgrejaquesecuidasse:

O espiritismo restaurará a religião do Cristo, que se tornou nas mãos dos padres objeto decomércio e de trá co vil (...). Extinguirá para sempre o ateísmo e omaterialismo, aos quaisalgunshomensforamlevadospelosincessantesabusosdosquesedizemministrosdeDeus.

Também deMarselha Kardec recebeu uma carta com a notícia de que ospadres da cidade estavam debruçados sobre a leitura deO livro dos espíritos.Parachecarainformação,evocouoEspíritodaVerdade,nodia10dejunho,nacasadeoutramédium,asra.Schmidt.Notíciaconfirmada:

—Aparteesclarecidadocleroestudaoespiritismomaisdoqueosupões.

MasqueKardecnãoseentusiasmasse:

—Nãocreiasquesejaporsimpatia;aocontrário,éàprocurademeiosparacombatê-loeeuteasseguroquerudeseráaguerraquelhefará.

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AMONTOADODEBLASFÊMIAS

Em janeiro de 1861, o redator do in uente jornal católicoLa BibliotegraphieCatholique, Georges Gandy, lançou uma série de impropérios contra a“pretensa doutrina espírita”, que desclassi cava como um “amontoado deabsurdos,decontradições,dehipocrisiasedeblasfêmias”.

EnãoadiantariaKardecapregoaremseuslivrosediscursosocarátercristãoda doutrina nem a importânciamoral dos valores difundidos por ela, como acaridade e a devoção a Deus, descrito nas primeiras linhas deO livro dosespíritos como eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso esoberanamentejustoebom.

ParaGeorgesGandy,tantoespíritocristãonãopassavadebalela,oupior,deestratégiaparaaconquistadenovosadeptosentreoscatólicos:

Oespiritismotentaglori carocristianismoparaoaviltar,espalhá-loparaosuprimir,afetandoo respeito pelo divino Salvador, a m de substituir o seu reino imortal pelo despotismo dosímpiosdevaneios.

Em muitas igrejas, párocos usavam o púlpito para conclamar os éis amanter distância da nova seita. Em sermões virulentos, o espiritismo erade nido como “obra do demônio”, e as reuniões, que atraíam cada vez maisadeptos,denunciadascomo“encontrossatânicos”.Asobrevivênciadaalmaeopoder de comunicação dos mortos com os vivos não passariam de ilusões,mistificaçõesperversasdestinadasalevaroscrédulosàloucuraouaoinferno.

Eraprecisocuidado,muitocuidado,porqueo mdestinadoaquemseunissea estes adoradores de satã em busca de mensagens do além seria um só: adanaçãoeterna.

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As pregações contrárias ao espiritismo provocavam, muitas vezes, o efeitoinverso. Movidos pela curiosidade — e pela esperança de contato com osmortos queridos —, católicos faziam o sinal da cruz e adentravam os salõesespíritas.Amãequeimploravanotíciasdo lhomorto;opaidestroçadoporsero único sobrevivente da família à epidemia de cólera; a jovem viúva grávida,inconformadacomapartidarepentinadomaridonodiadeseuaniversário;osfamiliaresdosuicidaqueselançounaságuasgeladasdoSena.

Porquê?Aceita; perdoa; compreende; porque estava escrito; porque são muitas as

dívidasaresgatar...eporqueavidacontinuaparatodoosempre,eoquepareceinsuportáveleinjustohojesetornarámaisleveecompreensívelembreve.

Mensagens comoestas atraíamumnúmerocadavezmaiorde adeptos.E adescrição das conversas com os visitantes do além, promovidas nas sessõesprivadasdaSociedade,arrebatavaosleitoresdaRevistaEspírita.

Naquele ano, uma velha conhecida de Kardec, a sra. Bertrand, estudiosa doespiritismo,voltouàsededaAssociaçãopararelatarsuaexperiência“dooutrolado”. Morta semanas antes, após longa e dolorosa doença, ela poderiaconfirmarounão,agoranaprática,asrevelaçõesdeOlivrodosespíritos:

—Testemunhastesoinstantedamortedovossocorpo?—Esgotadopor longossofrimentos,meucorponãotevequepassarporumagrande luta.

Minha alma destacou-se dele como o fruto maduro que cai da árvore. O aniquilamentocompletodemeuserimpediu-sedesentiraúltimaangústiadaagonia.

—Vistesimediatamenteoutrosespíritosvoscercar?— Logo vieram me receber. Então desviei o pensamento do meu eu terreno, e o eu

espiritual transportado abismou-se no delicioso prazer das coisas novas e conhecidas quereencontrava.

A cada diálogo póstumodivulgado, a cada exemplar vendido deO livro dosespíritos, a cada edição impressa daRevista Espírita e a cada viagem de AllanKardec,anovadoutrinaseespalhava,apesardosataquesdaGazettadeLyonoudoLa Bibliographie Catholique... e também graças às polêmicas geradas por

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essaspublicações.Em um ano, o novoO livro dos espíritos esgotou três edições. Livreiros e

leitoresdosmaisdiversospaísesencomendaramexemplares:Rússia,Alemanha,Itália, Inglaterra, Espanha, Estados Unidos, México e, sim, Brasil. Em 1º dejaneirode1861,datadarenovaçãodeassinaturasdaRevistaEspírita,onúmerodeassinantesaumentara33%emrelaçãoaomesmoperíododoanoanterior.Eainda foi preciso reimprimir exemplares de edições esgotadas para atenderinteressadosemadquirircoleçõescompletasdapublicação.

DetodososcantosdaFrançaedoexterior,Kardecrecebianotíciassobreafundaçãodenovas sociedadesespíritas,voltadasaosestudosdadoutrina.Maisdecem,pelascontasdelenoiníciode1861.

“Oquedirãoosantagonistasdadoutrinaespírita?”—Kardecperguntouemnovo artigo na Revista Espírita, em janeiro daquele ano, e fez questão derespondercomaironiahabitual:

Dirãoqueonúmerode loucosaumenta.Sim:aumentade talmodoqueempouco tempoosloucosserãomaisnumerososqueagentesensata.

Elese lançavaaocampodebatalha,mastomavacuidadoparapreservarseuQG,asededaSociedade.Emmensagemdistribuídaaoscompanheirosdeluta,KardecrelembrouoobjetivocentraldaAssociação:oestudodaciênciaespírita,com “calma e recolhimento”: “Não formamos nem uma seita, nem umasociedadedepropaganda,nemumacorporaçãocominteressecomum.”

EraumlembreteimportantetambémparaopróprioKardec,enquantoa avaasarmaseiaàlutacumprirosdesigníosdamensagemdoEspíritodaVerdade.Eraprecisoagircomcautelae rmeza,deacordocomasnovasorientaçõesdo“espíritoprotetor”,postasnopapelpelamédiumSchmidt:

— Evita cuidadosamente em tuas palavras e nos teus escritos tudo o que possa fornecerarmascontrati.

Nesta mesma mensagem, o Espírito da Verdade deixou escapar umainformaçãopreocupante,reveladalogoapóspalavrasdeestímulo:

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—Prossegueemteucaminhosemtemor;eleestájuncadodeespinho,maseutea rmoqueterásgrandessatisfações,antesdevoltaresparajuntodenós“porumpouco”.

AoqueKardecperguntou:

—Quequeresdizerporessaspalavras“porumpouco”?

Ajulgarpelarespostaaseguir,elemorreriaantesdeconcluirseutrabalhoemalteriatempodedescansarnoalémantesdevoltaraobatente.

— Terás de retornar à Terra para concluir a tua missão, que não podes terminar nestaexistência.

Porque, então,nãodarmais tempoaocombatente,paraevitar estas idasevindas?

—Se fosse possível, absolutamente, não sairias daí,mas é preciso que se cumpra a lei danatureza. Ausentar-te-ás por alguns anos e, quando voltares, será em condições que tepermitamtrabalhardesdecedo.

Masnemtudoestavaperdido:

—Hátrabalhosqueconvémosacabesantesdepartires;porisso,dar-te-emosotempoquefornecessárioaconcluí-los.

Pelassuascontas—nãocon rmadaspelosamigosinvisíveis—,Kardecteriaaindacercadedezanosdevida.Eraprecisotercalma,sim...epressatambém.

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MANUALDEINSTRUÇÕES

Emjaneirode1861,Kardecanunciouolançamentodeumanovaobra:Olivrodos médiuns , um guia prático destinado aos interessados em desenvolver asaptidõesmediúnicas, decifrar osmecanismos de comunicação como alémoudesvendarfraudesportrásdesupostosintercâmbiossobrenaturais.

S eO livro dos espíritos era uma obra losó ca, este era um manual deinstruções. O subtítulo, mais uma vez, buscava ser o mais esclarecedor eatraentepossível:

GuiadosMédiunsedosEvocadores—Ensinoespecialdosespíritossobreateoriadetodososgêneros de manifestações, os meios de comunicação com o mundo invisível, odesenvolvimento da mediunidade, as di culdades e os tropeços que se podem encontrar napráticadoespiritismo...constituindooseguimentod’Olivrodosespíritos.

Em um dos capítulos do novo livro — intitulado “Do charlatanismo e doembuste”—, Kardec listava uma série de artifícios usados porfalsos médiunspara trapacear. No topo do ranking de manifestações mais enganadoras,estariam, segundo ele, os fenômenos físicos— “porque impressionammais avistadoqueainteligência”.

Levitações, giros demesas, pancadas inexplicáveis, aparições— era precisoestaratentoaoriscodefarsasemespetáculoscomoestes,sujeitosao“empregodetramoiasedocompadrio”:

Afraudeseinsinuaportodaparteesabemosque,comhabilidade,atémesmoumacestapodeserdirigidaàvontade,comtodasasaparênciasdosmovimentosespontâneos.

O único antídoto contra tanta enganação seria, de acordo com Kardec, aanálise do conteúdo— e do propósito— das comunicações do além.Muitasmensagens, insistia, estariammuito acima das capacidades ou conhecimentos

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dedeterminadosmédiuns:

Reconhecemos que o charlatanismodispõe de grande habilidade e vastos recursos,mas aindalhenãodescobrimosodomdedarsaberaumignorante,nemespíritoaquemnãootenha...

Outro cuidado fundamental aos que quisessem percorrer este territórionebuloso — e tão sujeito a farsas — era o de agir como um observadorcuidadoso das circunstâncias e do comportamento dos envolvidos em cadamanifestaçãodo“mundoinvisível”:

Julgamosquesedevedescon ardequemquerquefaçadessesfenômenosumespetáculoouobjetodecuriosidadeededivertimento,equepretendaproduzi-losàsuavontade(...).

Overdadeiroespiritismojamaissedaráemespetáculo,nemsubiráaotabladodasfeiras.

Kardec estava preocupado com a quantidade de curiosos ávidos portestemunhar maravilhas do outro mundo, e cava impressionado com onúmero de pessoas dedicadas a repousar os dedos sobre uma mesa, naesperançadevê-lagirar,ouaequilibrarolápissobreopapel,naexpectativadevê-lopreencherpáginas embrancocommensagensdoalém.Umprato cheioaosoportunistaseumriscoàcredibilidadedadoutrina.

Era preciso muito estudo para entender os limites e objetivos desseintercâmbio—elea rmava,comfrequênciacadavezmaior,emconversascommédiunsoucandidatosamédiuns.

Todos carregaríamos, sim, o “gérmendamediunidade” dentro de nós,masnemtodosestariamaptosaemprestarseucorpoesuavozaosmortos.Kardec,por exemplo, nunca conseguiu fazer contato direto com espíritos, sem aintervenção demédiuns. Por quê?Uma passagem do novo livro comparava amediunidadeadonsartísticos:

As regras da poesia, da pintura e da música não fazem que se tornem poetas, pintores oumúsicososquenãotêmogêniodealgumadessasartes.

Era preciso estudar a fundo a nova ciência e a nova loso a e era preciso

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tambémtomarcuidadocomoshomens...ecomosespíritos—elerepetia.

A con ança cega nessa superioridade absoluta dos seres do mundo invisível tem sido, paramuitos, a causa denãopoucas decepções. Esses aprenderão à sua custa a descon ar de certosespíritos,tantoquantodecertoshomens.

Em reunião na sede da Sociedade, a 5 de abril de 1861, Kardec exigiriaassiduidade eperseverançados companheirosdedoutrina, e condenaria,maisumavez,apresençadeouvinteseventuaisnassessões:

—A verdadeira convicção só se adquire pela leitura, pela re exão e por uma observaçãocontínua,enãoassistindoaumaouduassessões,pormaisinteressantesquesejam.

A estratégia estava funcionando. A cada dia, aumentava o número deespíritasconvertidosnãograçasaotestemunhodefenômenosmágicos,masaoestudodeOlivrodosespíritos.

—Eisporquedizemos:estudaiprimeiroevededepois,porquecompreendereismelhor.

NolongodiscursoaoscompanheirosdeSociedade,Kardecnãorecorreriaaconselhos espirituais ou a mensagens do além para defender seus pontos devista:

—Antes de instruir os outros, quisemos nós próprios nos instruir. O espiritismo é umaciênciae,comoqualqueroutraciência,nãoseaprendebrincando.

Alémdisso,eraprecisotratarcomrespeitoosvisitantesinvisíveis:

—Tomarasalmasque se foramcomoassuntoparadistraçãoseria faltarao respeitoaquefazemjus:especularsobresuapresençaesuaintervençãoseriaimpiedadeeprofanação.

Protegido dos olhares curiosos, um novo espírito logo semanifestaria, porescrito,nasededaSociedadeEspírita.

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AVISITADEUMSUICIDA

—Sofro!Souumcondenado.

Aexpressãodamédiumeradedorenquantocolocavanopapelodesabafodovisitante,evocadoporKardecapedidodoirmãodomorto.Doisanosantes,elecometerasuicídionoSena.

—Vossamortefoivoluntária?

Aletraeragrande,irregularequaseilegível.Arespostacon rmouacausadamorte:

—Sim.

A médium escreveu e, instantes depois, transtornada, quebrou o lápis aomeioerasgouopapel.

—Tendecalma.RogaremosporvósaDeus.

Jácomexpressãomaisleve,amédiumretomouaescrita:

—Quemotivovoslevouadestruirdes?—Tédiodavidasemesperança.—Soismaisfelizagora?—Onadanãoexiste!Minhaalmaestácomonumbraseiro,horrivelmenteatormentada.

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Kardecdividiucomos leitoresdaRevistaEspírita todoodiálogo—uma longaconversa, que se arrastaria por três páginas — e pontuou as perguntas erespostas com comentários dirigidos a quem via a morte como o m, umasoluçãoparaossofrimentosdavida:“Pelosuicídionãoseescapaaummal,massecainumoutromalcemvezespior”—afirmou.

Neste artigo, publicado em fevereiro de 1861, revelou também aos leitoresuma das dúvidas que o mobilizaram em suas pesquisas: se todos nós somos“espíritos” e conhecemosos “mundosespirituais”, comopodemos renascernaTerra tãomaterialistas, sem a consciência de que a vida continua através dostempos,emoutrasdimensões?

Essa intuição é recusada, como castigo, a certos espíritos que conservaram o orgulho deexistênciasanterioresenãosearrependeramdesuasfaltas.

O esquecimento seria também uma bênção, porque a lembrança deexistênciaspassadasprovocariauma“penosaconfusão”emnossasvidas.

Relatos como estes, de suicidas em desespero, ajudavam a evitar muitasmortes.Kardecseriasaudado,aolongodosanos,porváriosleitoresgratos,queatribuíam a seus livros e a seu trabalho o fato de continuarem vivos e comesperançasrenovadas.

Estas demonstrações de gratidão, testemunhos de vidas salvas peloespiritismo,aumentavamoinconformismodeKardecdiantedoscéticos.

Paraele,oceticismotambémmatava.E foi com o dedo em riste que fez uma acusação aos antagonistas da

doutrina, os “materialistas”paraquema vidadepoisdamortenãopassariadeilusão:

Muito culpados são aqueles que, por so smas cientí cos e no suposto nome da razão, seesforçamporprestigiarestaideiadesesperada,fontedetantosmalesecrimes,dequetudoacabacomamorte.

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PROCURAM-SEMÉDIUNS

Embuscadecontatoscomoalém,adeptosdoespiritismopassaramapromoverreuniõesemcasaouemassociaçõesdedicadasaoestudodadoutrina.Jáqueasportas da Sociedade fundada por Kardec não estavam abertas a todos— atémesmo por falta de espaço—, omelhor seria seguir o exemplo domestre eabrir“filiais”naprópriacidadeounoprópriobairro.

ComO livro dos médiuns à mão, os estudiosos da nova doutrina — ouciênciae loso a,comopreferiaKardec—seguiriamasinstruçõescontidasnaobraparaestabelecercomunicaçõescomoinvisível.

OcapítuloXIXdomanualerainspirador:“Todoaquelequesente,numgrauqualquer, a in uência dos espíritos é, por esse fato, médium.”Mas esta boa-nova era seguidaporoutra,menos empolgante: “Essa faculdadenão se revela,damesmamaneira,emtodos.”

O dom poderia ser apenas rudimentar, como nos médiuns sensitivos —“suscetíveis a sentir a vaga presença dos espíritos” —, ou espetacular e,portanto,raro,comonocasodemédiunsdeefeitosfísicos,capazesdelevitaregerarfenômenoscomoasuspensãodeobjetoseamaterializaçãodeespíritos.

Outras várias categorias intermediárias de mediunidade estimulavam osfundadoresdasnovas sociedadesa ir em frente.Quemsabenãohaveriaentreeles um médiumaudiente, dotado do dom de ouvir a voz dos espíritos etransmitir suas mensagens? Ou um falante, cujas cordas vocais fossemutilizadas pelos espíritos para se comunicar?Ou ainda um vidente, como o jácitadoAdrien,capazdeenxergaroinvisível?

Todosestesmédiunsseriammuitobem-vindosemqualquerassociação,masuma categoria, em especial, traria ainda mais alegria, consolo e esperança aqualquergrupo:adosescreventesoupsicógrafos,protagonistasdeumcapítulointeiro emOlivrodosmédiuns : “De todososmeiosdecomunicação,a escritamanual é o mais simples, mais cômodo e, sobretudo, mais completo”—

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afirmariaKardecjánaprimeiralinha.O método — que originouO livro dos espíritos eO livro dos médiuns —

ofereceriaumagrandevantagemsobreasoutrasopçõesdocatálogomediúnico:“Paraomédium,a faculdadedeescreveréamais suscetíveldedesenvolver-sepeloexercício.”

Nestacategoria,ensinavaKardec,eramváriososcaminhosaseguir.O médiummecânico não teria qualquer consciência do que escreve. Seria

apenasuminstrumentoparaoespírito,queatuariadiretamentesobresuamãoeaimpeliriadaprimeiraàúltimafrasedamensagem.Jánomédiumintuitivoomovimentoseriavoluntárioe facultativo,eopsicógrafoteria,sim,consciênciado que escreve, embora sem exprimir seu pensamento. O médiumsemimecânicoficarianomeiodocaminho:

Sente que à sua mão uma impulsão é dada, independente de sua vontade, mas, ao mesmotempo,temconsciênciadoqueescreve,àmedidaemqueaspalavrasseformam.

Kardec já testara e experimentara, através de diversos médiuns, todos osprincipaiscanaisdecomunicaçãocomoalém.Eracomconhecimentodecausa,portanto,quedescreviacadasistema.

Mashaviaumproblema:pormaisque seguissemà risca as instruçõesdeOlivrodosmédiuns ,muitosleitoresnãoconseguiamfazerqualquerconexãocomooutromundo.

Oravam, liam trechos das obras de Kardec, evocavam guias protetores,equilibravam o lápis sobre as páginas em branco e... nada. Muitos desistiamapóshorasde expectativa e ansiedade, e encerravamdevez as atividadesparanãofrustrarosvisitantesnemseexporaoridículo.

Queixas e pedidos de socorro começaram a chegar à sede da SociedadeEspírita e Kardec decidiu publicar, então, naRevista Espírita, em março de1861,umalistadenovasinstruçõesaosadeptos.

AntesdetudoeraprecisodaratençãoespecialaumadasfrasesdeOlivrodosmédiuns: “Os médiuns são comuns, mas os bons médiuns, na verdadeiraacepção da palavra, são raros.” E um bom médium, segundo Kardec, estavalongedeserperfeito.Seriaapenaso“menosenganado”pelosmausespíritos.

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Afaltadeintermediárioscomoalém,noentanto,nãodeveriaserobstáculoàrealizaçãodereuniõesespíritas.Omédium—a rmouKardec—nãoeraumapresença indispensável nas sessões espíritas, comoosmúsicos o eram emumconcerto, ondeo show é fundamental: “Numa reunião espírita, nós vamos—oudeveríamosir—paranosinstruir.”

Mas como suprir, então, a “escassez de bons médiuns” nas reuniões, semcruzarosbraçosneminterromperassessões?

A listadeatividadessubstitutaseraumtanto frustranteparaquemesperavasedeslumbrarcomfenômenosdoalém:

Relerecomentarasantigascomunicações,cujoestudoaprofundadofaráressaltarmelhoroseuvalor.

Contarfatosdequesetemconhecimento,discuti-los,comentá-los,explicá-lospelasleisdaciênciaespírita(...);examinarapartedaimaginaçãoedasuperstição.

Ler, comentar edesenvolver cada artigodeOlivrodosespíritos e deO livro dosmédiuns,bemcomodetodasasoutrasobrassobreoespiritismo.

Discutirosváriossistemassobreinterpretaçãodosfenômenosespíritas.

AssessõesdaSociedadedeEstudosEspíritasdeKardec,descritasnosváriosnúmerosdaRevistaEspírita,pareciambemmaisatraentes.

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VEJOUMAGRANDECLARIDADE

Em22de abrilde1861,umadolescentede14 anos, JulesMichel,mortooitodiasantes,entrouemcontatoatravésdamédiumCostel,mãedomelhoramigodele,aindainconsolável.Oquedizeraosamigoseàmãe,devastadapelador?

—Estoumorto?Vejo,vivo,pensocomoantes,apenasnãomepossotocarenãoreconheçonadadoquemecerca.

As primeiras sensações da vida fora do corpo — “deitado, duro, naqueleburacoondenãoestou”—eramdescritasassimpelovisitanteinvisível:

—Vejoumagrandeclaridade;meuspésnãotocamosolo;deslizo;sinto-mearrastado.Vejogurasbrilhanteseoutrasenvoltasembranco;pressionam-meemerodeiam;unsmesorriem,

outrosmemetemmedocomseusolharesnegros.

Aslembrançasdomomentodamorteeramconfusas:

—Nãomelembromuitodoquesenti.Tinhamuitadordecabeça(...).Estavaentorpecido,queriamover-meenãopodia,asmãosestavammolhadasdesuoresentiaumgrandetrabalhoemmeucorpo.

Mastudoterminarabem:

—Nadamaissentiedesperteimuitoaliviado,levecomoumapluma.

Paraosdescrentes,amédiumpoderiaterforjadoamensagemparaconsolaroprópriofilhoeamãedomorto.

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No mdaquelemês,ocamponêsHenriMondeux,recém-falecidoaos34anos,tambémsemanifestounaSociedade.QuandoaindaviviaemTouraine,tornara-seatraçãopúblicaenotíciade jornalporumtalentoextraordinário:apesardeanalfabeto e de jamais ter estudado, era capaz de resolver asmais complexasquestõesdaaritméticadecabeçaeemvelocidadeimpressionante.

Comoexplicarestedom?

—Eutinhaafaculdadedeleremmeuespíritoosresultadosimediatosdeumproblema.Eutinhaapenasdeler;eueramédiumvidenteecalculador...umlivrinhodecálculo,deantemãopreparado.

Odiálogoterminousemdesafiospóstumosdematemática.Para os adversários da doutrina, atribuir ao sobrenatural prodígios da

inteligênciaeraumatentadoàciência.

Poucodepois, umespírita fervoroso, odr.Glass, tambémmandoumensagensdomundodeláatravésdeummédiumdaSociedade.Mortoháquasecinquentadias,agradeciaportertidocontatocomadoutrinaantesdefazera“passagem”.

—Eu tive emmim, assimquemorri, operfeito conhecimentodemimmesmoe entrevicomcalmaaquiloquetantosoutrostememcomtantopavor.

Para os antagonistas, testemunhos como estes erammera propaganda paraatrair novos adeptos. Para os espíritas, eram evidências da sobrevivência, oumelhor,daimortalidadedoespírito.

Eles, os espíritos, estariam em todo canto, à nossa volta, e exerceriamin uência constante sobre cada um de nós, para o bem e para o mal.Mentirosos, traiçoeiros, generosos, obstinados, covardes, dissimulados,brilhantes, obtusos— humanos, en m, quase concretos, de acordo com estetrechodeOlivrodosmédiuns:

Oespíritonãoé,pois,umponto,umaabstração;éumser limitadoecircunscrito,aoqual só

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faltaservisívelepalpável,paraseassemelharaossereshumanos.Porque,então,nãohaveriadeatuarsobreamatéria?Porser uídicooseucorpo?Masondeencontraohomemosseusmaispossantes motores, senão entre os mais raros uidos, mesmo entre os que se consideramimponderáveis,como,porexemplo,aeletricidade?

ParaKardecnãohaviadúvidas: cedoou tarde, todosdeveriam se render àsevidências.

OjornalistaLouisJourdan,doLeCauseur ,nãoseentregariatãofacilmente.No livroUm lósofo ao pé do fogo , publicado naquele mesmo 1861, eleconfirmouqueleraesesurpreenderacomOlivrodosespíritos.

Nas páginas da obra — escreveu Jourdan —, uma nova doutrina ganharacorpo:

É um sistema completo, e não experimento nenhum embaraço em reconhecer que, se osistemanãotemacoesãopoderosadeumaobrafilosófica,secontradiçõesaparecemaquieali,épelo menos muito notável por sua originalidade, por seu alto alcance moral, pelas soluçõesimprevistasquedáàsdelicadasquestõesque,emtodosostempos,inquietaramouocuparamoespíritohumano.

Mas isso — continuava — não o obrigaria a acreditar em quaisquerrevelaçõesatribuídasaespíritossuperiores:

Oque repiloabsolutamente éque, sobpretextode revelação, venhamdizer-me: “Deus falou,portanto ides submeter-vos.Deus faloupela bocadeMoisés, doCristo, deMaomé, portantoseres judeus, cristão ou muçulmanos, senão incorrereis nos castigos eternos e, enquantoesperamos,iremosamaldiçoar-vosevostorturaraqui.”

Ojornalistaexigiarespeitoaodireitodenãocrer:

Acimadetodasasrevelações,detodasasinspirações,detodososprofetaspresentes,passadosefuturos,háumasupremalei:aleidaliberdade.

Eexigiamais:“Queroperderminhaalma,seistomeapraz.”

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MULTIPLICAIOSGRUPOS

NemtodostinhamadisposiçãodeLouisJourdan.Movidospelaesperança—etambémpelaleituradasobrasdeKardec—,muitosadeptosdanovadoutrinasereunirampara abrir as próprias sociedades, comou semmédiuns atuantes.Oespiritismo conquistava mais e mais espaço, e incomodava mais e maisadversários.

EmnovobanquetenacidadedeLyon,omestrefoihomenageadomaisumavez. E mais uma vez conclamou os discípulos a se unirem para enfrentar osarcasmo, a zombaria, a troça, a “ciência e os anátemas”. Neste encontro,Kardec defendeu a adesão de todos a um objetivo comum, uma espécie deslogan que logo se transformaria em estandarte do espiritismo:“Fora dacaridadenãohásalvação.”

Caridade no sentido mais amplo, de acordo com as novas de nições domestre: “sentimento de benevolência, justiça e indulgência em relação aopróximo,baseadonoquegostaríamosqueopróximonosfizesse”.

EmplenaRevolução Industrial—quando trabalhadoresde todas as idades,crianças emulheres inclusive, erammassacrados em rotinas escravizantes—,aquelaconvocaçãomobilizavaosaliadosesoavatambémcomoprovocaçãoaosadeptos do catolicismo, éis a outro princípio então em voga: “Fora da Igrejanãohásalvação.”

Kardec estava otimista. Juntos, os adeptos da nova doutrina conseguiriamcombater as injustiças domaterialismo. Sua esperança era tanta que, em seudiscursoemLyon,chegouaconjugaroverbonopassadoaosereferiràfaltadeféaindavigente:

—Omaterialismoameaçavafazerasociedademergulharemtrevasaoa rmaraoshomens:“O presente é tudo, o futuro não existe.” O espiritismo corrige esta distorção ao a rmar: opresenteébempouco,masofuturoétudo.”

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Seuentusiasmoeraevidente,enãoàtoa:

— Este último ano viu o espiritismo crescer em todos os países numa proporção queultrapassou todasasesperanças: estánoar,nasaspiraçõesde todos, epor todaparteencontraecos,bocasquerepetem:“Eisoqueeuesperava,oqueumavozsecretamefaziapressentir.”

Omovimentoalcançara,segundoele,umanovafase:adacoragem.Adeptosqueantesescondiamsuaféjáseconfessavamespíritas,comorgulho,semmedodeachaqueseretaliações.

Duranteapalestra,Kardecperguntou:

Talmovimentopodeestacionar?Poderãodetê-lo?Não.

Emseguida,enumerouosprincipaisantagonistasquesemobilizavamcontraa doutrina: os incrédulos, que a ridicularizavam; os ignorantes, que acombatiamsemaconhecer;e—osmaisperigosos,“tenazesepér dos”—osadversáriosmovidosporinteressesmateriaisouporsededepoder.

—Essescombatemnasombra,easflechasenvenenadasdacalúnianãolhesfaltam.

Antes de encerrar, Kardec convocou os adeptos a “multiplicar os grupos omaispossível”eadisseminarassociaçõesportodocanto:

—Quehajadez,quehajacem, senecessário, e cai certosdequenossa jornadaserámaisrápidaemaissegura.

Noencontro,foilidatambémumamensagematribuídaaoespíritodeErasto,odiscípulodoapóstoloPaulodeTarso.Chegaraomomentodetodososgruposdomovimentoseuniremparaevitarcisões,disputasedissidências.

—Comoemtudo,auniãofazaforçaetendesnecessidadedeserforteseunidos,parafazerfrenteàstempestadesqueseaproximam.

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EmOlivrodosmédiuns ,KardecderaaErastocréditoporváriasrespostaseporumafraserepetidaàexaustãodesdeentão:“Melhorrepelirdezverdadesdoqueadmitirumaúnicafalsidade,umasóteoriaerrônea.”

De acordo com as orientações do guia espiritual, todos deveriam seguir oexemplodosadeptosdacidadedeBordeaux,ondegruposparticularesatuavamcomo satélites em torno de um central, subordinado, ou melhor, “emcomunicaçãodireta”comaSociedadeIniciadoradeParis,aassociaçãofundadaporKardec.

Com este organograma, seria possível, segundo Erasto, repelir erros nascomunicaçõescomoalémeevitarabsurdoscometidosnos“ditadosmentirosose astuciosos emanados de uma turba de espíritos enganadores, imperfeitos oumaus”.

Porestaproposta,Kardecseria,emprimeiraeúltimainstância,lídere scalde todo omovimento. Para sacramentar a estrutura, um documento ganhavacorpo sobo títuloProjetode regulamento—paraousode grupos epequenassociedadesespíritas.

Parágrafo II: “A sociedade declara aderir aos princípios formulados emOlivrodosespíritoseemOlivrodosmédiuns.”Enasequência:“Asociedadetomapordivisa:‘Foradacaridadenãohásalvação.’”

Faltavapoucoparaquesecumprisseoutro trechodamensagemdoEspíritoda Verdade sobre a missão do professor Rivail: “Estarás sujeito à calúnia, àtraição,aindadosqueteparecerãoosmaisdedicados.”

Kardecaindanão sabia—nemseria avisadopor seusprotetores espirituais—, mas um dos mais novos adeptos da doutrina, o então insuspeito Jean-Baptiste Roustaing, comprometeria seu projeto de unir forças e evitardissidênciasnomovimento.

Naqueleano, em junhode1861,Roustaing, advogadodoTribunal ImperialdeBordeaux, ganhoudestaquenas páginas daRevistaEspírita com uma longacartadeapoioao“muitohonradochefeespírita”.

“Nada vi, mas li e compreendi; e creio”, declarou, ainda sob o impacto daleituradeOlivrodosespíritos.

Otextoeraumtestemunhodeféedelealdadeaomestre:

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Deusme recompensoubempor ter crido sem ter visto; depois vi e vi bem; vi em condiçõesproveitosas,eaparteexperimentalveioanimaraféqueapartedoutrináriamedera.

O advogado parecia seguir à risca todas as instruções de Kardec: foco naobservação e dedicação à pesquisa, de acordo com ométodo do “vede, tocai,compreendeiecrede”:“Depoisdeterestudadoecompreendido,euconheciaomundoinvisívelcomoconheceParisquemaestudousobreomapa.”

A mensagem terminava como uma con rmação da “fase de coragem”celebradaporKardecnoeventodeLyon:

Podeis fazer desta carta o uso que achardes conveniente. Eu me honro de ser altamente epublicamenteespírita.Roustaing,advogado.

Empoucotempo,porém,RoustaingsairiadomapatraçadoporKardec.

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ASFOGUEIRASDAINQUISIÇÃO

Porenquanto,operigoaindavinhadefora.AtempestadeanunciadaporErastocomeçaria a se formar nos céus de Barcelona no segundo semestre de 1861,quando Kardec enviou duas caixas, com trezentas obras espíritas, ao amigo,escritor e editor Maurice Lachâtre. Condenado a cinco anos de prisão porNapoleão III — pelas “ofensas ao Império” publicadas no célebreDicionáriouniversal ilustrado —,MauriceviviaexiladoemBarcelona,ondemontaraumalivrariaparasobreviver.

Entusiasmado comO livro dos espíritos e com o recém-lançadoO livro dosmédiuns, estava disposto a propagar por toda a Espanha a “nova revelação”.Autor deHistória dos papas eHistória da Inquisição , Lachâtre escreveu umacartaentusiasmadaaKardecsobreadoutrinadosespíritos:

Elaencerraemsios elementosdeuma transformaçãogeraldas ideias, e a transformaçãonasideiasconduzforçosamenteàdasociedade.

Naqueleano,as ideiasdeKardecganharamforçanaEspanhagraçasaumabrochuraintituladaCartadeumespiritistaadonFranciscodePaulaCanalejas .Um longo manifesto em favor da doutrina assinado pelo ilustre escritorespanholAlbericoPéron,futuromembrodaAcademiadeLetras.

Os exemplares enviadosporKardecdesembarcaramnoporto espanhol emsetembro, passaram por todos os trâmites burocráticos de praxe— inspeçãopelos scais e pagamento das taxas alfandegárias, por exemplo —, mas nãochegaramàsmãosdeLachâtre.

Quando estava prestes a ser liberada, a carga foi con scada por “ordemsuperior”. A entrega só seria autorizada com o consentimento expresso dobispo de Barcelona, Antônio Palau y Termens. Emissários violaram as caixasparalevarumexemplardecadaobraaobispo.

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NacoleçãopreparadaporKardecestavamseuslivros—Olivrodosespíritos ,OlivrodosmédiunseOqueéoespiritismo—eoutrasquatroobras:Fragmentodesonata(aquelequeteriasidoditadopeloespíritodeMozartaomédiumBryon-Dorgeval),Cartadeumcatólico sobreo espiritismo , do dr. Grand,História deJoanaD’Arcporelamesma (psicografadaporErmanceDufaux) eA realidadedos espíritos demonstrada pela escrita direta , do barão de Guldenstubbé, alémdascoleçõesdaRevueSpiritualiste,redigidaporPiérart,edaRevistaEspírita.

O veredito do bispo veio rápido: con sco. E pior: fogueira. Os livros —“imoraisecontráriosàfécatólica”—deveriamserqueimadosempraçapúblicaporordemdoSantoOfício.Enãoadiantavaapelar.

Kardec, é claro, apelou. A entrada dos livros em território espanhol foraautorizadapelaalfândegaetodasastaxasestavampagas.Aapreensãodacargaferia,portanto,odireitointernacional.Alémdisso,adestruiçãodasobrasseriaumatoarbitrárioecontrárioaodireitocomumeàsoberaniadaFrança.

Os argumentos não convenceram o bispo, que se manteve irredutível, eKardecfez,então,umaúltimaproposta: jáqueos livrosnãopoderiamcircularnaEspanha,quefossemdevolvidosaopaísdeorigem.Nadafeito.

Doutoremteologia,catedráticodoSemináriodeBarcelona,cônegomagistralde Tarragona e autor de várias obras religiosas, o bispo Antônio Palau yTermensmantevesuadecisão:fogo.Eaindaemitiuaseguintenota:

AIgrejaCatólicaéuniversale,sendoestes livroscontráriosà fécatólica,ogovernonãopodeconsentirqueelespervertamamoraleareligiãodeoutrospaíses.

Kardec cou indignado: um bispo estrangeiro agia como juiz do queconvinha ou não convinha aomundo todo! Pensou em recorrer à diplomaciadosgovernosdaFrançaedaEspanha,masdesistiuatempo.

Uma nova orientação assinada pelo Espírito da Verdade o convenceu adesistirdalutapeladevoluçãodasobras:

—Pordireito,podesreclamá-laseconseguiriasquetefossemrestituídas,setedirigissesaoministrodeEstrangeirosdaFrança.Mas, ameuver,desseautode fé resultarámaiorbemdoqueoadviriada leituradealgunsvolumes.Aperdamaterialnadaédiantedarepercussãoquesemelhantefatoproduziráemfavordadoutrina.

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Um conselho certeiro. O auto de fé de Barcelona estava prestes a setransformarnummarconahistóriadoespiritismo.

OsfantasmasdaInquisição,tãobem-retratadosporLachâtreemsuasobras,sematerializaramnamanhãde9deoutubrode1861naesplanadadaCidadeladeBarcelona,nobairroLaRibera,palcodaexecuçãodoscondenadosàmortenacidade.A“queimadelivros”seguiuoprotocoloeclesiástico.

Umpadre,vestidocomtrajessolenes,seguravaumacruzcomamãodireitaeumatocha,comaesquerda.Aseulado,otabelião,encarregadoderedigiraatado auto de fé, e um escrevente. Foram eles que registraram a presença dosdemais participantes do evento: um funcionário superior, um agente e trêsserventesdaAlfândega,trioresponsávelporatiçarofogo.

Umamultidão silenciosa acompanhou o evento. Quando o fogo reduziu acinzas os trezentos livros hereges, gritos ecoaram na praça: “Abaixo aInquisição!”

Sob protestos dos espectadores mais indignados, o cortejo liderado pelopadre se retirou. Em meio à fumaça, muitos curiosos se aproximaram pararecolher das cinzas restos de páginas queimadas. Entre eles um certo capitãoLagier, comandante do vapor El Monarca. Diante do desalento de muitossimpatizantesdoespiritismo,eleexclamouemvozalta:

—Euvostrarei,napróximaviagemdeMarselha,todososlivrosquequiserdes.

Muitas obras espíritas passariam a desembarcar na Espanha pelasmãos docomandanteeseussubordinados.

Dosrestosdoincêndio,chegaramàsmãosdeKardecumpunhadodecinzase um fragmento deO livro dos espíritos . Lembranças que ele fez questão deconservarnumaurnadecristal.

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DEPOISDASCINZAS

OjornalDiáriodeBarcelona foioprimeiroanoticiara“celebração”doautodefé.EcomemorouorigordemonstradopelaSantaSé:

Os títulos dos livros queimados bastampara justi car a sua condenação; está nodireito e nodever da Igreja fazer respeitar a sua autoridade, tantomais quantomaior for a liberdade deimprensa,principalmentenospaísesquegozamdaterrívelpragadaliberdadedeculto.

Osconcorrentesforambemmenossimpáticosaoatentadoeclesiástico.OLaCorona, também de Barcelona, saiu em defesa do livre pensamento e, “sememitiropiniãosobreovalordasobrasqueimadas”,protestoucontraosperigoseas armadilhas do absolutismo: “Ele tenta dar um golpe de força em algumaparte;seébem-sucedido,atreve-seamais.”

Asnovas fogueirasda Inquisiçãopoderiamserumprecedenteperigoso,umavalparaoutrasdemonstraçõesdeforçadescabidasdogovernoedaIgreja.

Na França, as primeiras reações foramde incredulidade.Muitos jornalistasduvidavam das notícias trazidas da Espanha pelos adeptos do espiritismo. Eramesmo difícil acreditar que as fogueiras da Inquisição ainda ardessem pelasvizinhanças.OjornalLeSiècleprotestoucontraofato,“lamentávelsobtodososaspectos”,masfoiumaexceção.Agrandeimprensafrancesaapenasselimitouaregistraroautodefé,semtomarposição.

NaRevistaEspíritadenovembrode1861,Kardecpublicouum longoartigointitulado “Os restos da Idade Média — auto de fé das obras espíritas emBarcelona”:

Aperseguiçãosemprefoiproveitosaàideiaquesequerproscrever.(...)Podem queimar-se livros, mas não se queimam ideias: as chamas das fogueiras as

superexcitam,emvezdeabafar.

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Nomanifesto,umaconvocação:

Espíritasdetodosospaíses!Nãoesqueçaisadatade9deoutubrode1861.Queelasejaparavósumdiadefesta,enãodeluto,porqueéopenhordevossopróximotriunfo!

Noanoseguinte,emsetembrode1862,KardecreceberiaavisitadeumcertoAntônio Palau y Termens na sede da Sociedade. Ele mesmo, o bispo deBarcelona,mortopoucoantes,em9deagosto.

AnotíciafoipublicadanaRevistaEspíritasobotítulo“Necrologia”.Umdosmédiuns colocara no papel uma longa mensagem atribuída ao ex-todo-poderoso, agora autointitulado “Aquele que foi bispo e que não passa de umpenitente”.

Emmuitostrechos,confissõesdeculpaearrependimento:

—Nãorepilaisnenhumadas ideiasanunciadasporqueumdia,umdiaqueduraráepesarácomoumséculo,essas ideiasamontoadasgritarãocomoavozdoanjo:“Que zestedonossopoder,quedeviaconsolareelevarahumanidade?”(...)Essavozterrívelmedisse:“Queimasteasideiaseasideiastequeimarão!”

Amensagem, lidaemvozaltanasessão, terminavacomumasúplica:“Oraipor mim. Orai, porque é agradável a Deus a prece que lhe é dirigida peloperseguidoemfavordoperseguidor.”

EoartigodeKardecnarevistaseencerravacomoperdão:

Espíritas,perdoemos-lheomalquenosquisfazer,comoquereríamosqueasnossasofensasnosfossemperdoadas,eroguemosporelenoaniversáriodoautodeféa9deoutubrode1861.

Docevingança.

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PARTEVI

SOBSUSPEITAESOBPRESSÃO

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OÚNICOEMEVIDÊNCIA

Bem antes da “ressurreição” do bispo, em 22 de dezembro de 1861, Kardeclançoumaisumaconsultaao invisível.Aos57anos, jáestavapreocupadocomsua sucessão.Quemo substituiria à frente da doutrina, no campo de batalha,quando fosse embora?Longedele considerar-se “indispensável”, a rmou,masalguns adeptos já demonstravam esta preocupação, e por este motivo eleincomodavaaespiritualidadecomumassuntotalvezprematuro.

A resposta, vinda do além pelas mãos do médium D’Ambers, não trouxegrandesconsolosnemrevelações.Primeiro,umleve“puxãodeorelhas”:

—Tensrazãoaoa rmarquenãoéindispensável:sóoésnavisãodoshomens,porqueeranecessárioqueotrabalhodeorganizaçãoseconcentrassenasmãosdeumsó,paraquehouvesseunidade;nãooés,porém,aosolhosdeDeus.

Apesardetodaaprojeçãoconquistada,eledeveriasecolocarnoseulugar—deinstrumento.Uminstrumentosubstituível:

—Fosteescolhidoepor issoéque tevês só;masnãoés,comoaliásbemosabes,oúnicocapaz de desempenhar essa missão. Se o seu desempenho se interrompesse por uma causaqualquer,nãofaltariamaDeusoutrosquetesubstituíssem.Assim,aconteçaoqueacontecer,oespiritismonãopericlitará.

No entanto, enquanto o trabalho de elaboração da obra não estivesseconcluído,Kardec seriao “único emevidência”.Tantodestaque— segundoocomunicanteinvisível,nãoidentificado—seriaestratégico:

— Fazia-se mister uma bandeira em torno da qual pudessem as gentes agrupar-se. Erapreciso que te considerassem indispensável, para que a obra que te sair dasmãos tenhamaisautoridadenopresenteeno futuro.Eraprecisomesmoque temessempelasconsequênciasdatuapartida.

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Mas quem seria o sucessor quando a hora chegasse? Kardec e os espíritasteriamdeesperarporestaresposta.Umaesperatambémestratégica:

—Seaquelequetehádesubstituirfossedesignadodeantemão,aobra,aindanãoacabada,poderiasofrerentraves.Formar-se-iamcontratioposiçõessuscitadaspelociúme;osinimigosdaDoutrinaprocurariambarrar-lheocaminho,resultandodaícismaseseparações.

Osucessor,portanto, só seria reveladonomomentocerto.E, a julgarpelasmensagensdoalém,suamissãoseriacomplementaràdeKardec.

—Atiincumbeoencargodaconcepção,aele,odaexecução,peloqueterádeserhomemdeenergiaedeação.

Quem?— Kardec se perguntaria a cada sessão na Sociedade Espírita ou acada viagemdedivulgaçãodadoutrina.Talvez fosse a exaustão, talvez fosse aidade,masmuitasvezessesentiaemplenacontagemregressiva.

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PELOCORREIO

Kardec já não conseguia mais dar conta de responder às cartas enviadas detodososcantosdaEuropaedeoutrospaísesdomundo.Amédiaeradedezpordia.Enquantoacaixapostal lotava, eleusavaaRevistaEspírita para esclareceras dúvidas mais comuns dos leitores e também para se desculpar aos“correspondentes”. “Estouna situaçãodeumdevedorqueprocuraumarranjocomoscredores,sobpenadedeixarocargo”,brincou,emartigopublicadonaRevistaEspíritaemmarçode1862.

Muitascartastraziamomesmopedido:mensagensdemortosqueridos.Seráque Kardec poderia ajudar na evocação dos espíritos? Será que, nas sessõesprivadasdaSociedade,osmortosqueridosnãopoderiamsemanifestar,mesmosemapresençadeseusfamiliares?

Não, Kardec dizia, a não ser em circunstâncias “muito excepcionais”. Assessões continuavam fechadas aos sócios, e a autenticidade das mensagensencomendadasporestranhosnãopoderiasercon rmadasemapresençadelesnassessões.Alémdisso,osespíritossemanifestavam,commaisfacilidade,emgruposformadosporpessoasqueridasenãopordesconhecidos.

A outra justi cativa para a impossibilidade da psicogra a demensagens dedesconhecidos, vinculados a não sócios, eramaismundana: a falta de tempodos médiuns da Sociedade, que trabalhavam todos, sem exceção, por “meragentileza”— semqualquer recompensa nanceira— emal tinham tempodecumpriramissãoprioritária:passarparaopapelinstruçõesdeinteressegeral.

Certasevocaçõesnãoexigemmenosdecincoouseishorasdetrabalho,tantoparaasfazerquanto para as transcrever e passar a limpo (...) e todas as queme foram pedidas até agoraformariamumvolumecomoOlivrodosespíritos.

Muitasvezesseriamevitadasumaporçãodeperguntas, sese tivessemlidoatentamenteasinstruçõesarespeitoemOlivrodosmédiuns,capítulo26.

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Nocapítulointitulado“Dasperguntasquesepodemfazeraosespíritos”,emOlivrodosmédiuns ,aquestão9erabastantefrustranteaos leitoresávidosporinformaçõesmaisíntimasdeseusmortos:

—Dequegênerosãoasprevisõesdequemaissedevedesconfiar?Detodasasquenãotiveremum mdeutilidadegeral.Asprediçõespessoaispodemquase

sempreserconsideradasapócrifas.

Mas nem todas as cartas traziam pedidos de socorro ou dúvidas járespondidas por Kardec em livros e artigos. Um envelope lacrado com ceraverde, e remetido quarenta dias depois do auto de fé de Barcelona, portava otestamentodeumadvogadoconvertidoaoespiritismo.

Ele se sensibilizara com um artigo em que o diretor do Museu Real daIndústria, Jobard—cadavezmais atuantenadivulgaçãodanovadoutrina—,arriscava o seguinte cálculo: 20 milhões de francos seriam uma “alavancapoderosa”paraadiantar,emumséculo,anovaeraqueseiniciava.

Por que não ajudar a doutrina com uma pequena parcela desta soma? Nacarta,obenfeitorjustificavasuadoação:

Possoedevoconsagrarumanotávelporçãodemeumodestopatrimônioaajudarestanovaera.Esse patrimônio que adquiri para a realização deminhas provas, como suor demeu rosto, àcustademinhasaúde,atravésdapobreza,dafadiga,doestudoedotrabalhoportrintaanosdevidamilitantedeadvogado,umdosmaisocupadosnasaudiênciasenoescritório.

Kardecdivulgaria o gesto aos companheiros da SociedadeEspírita deParis,sem revelar a identidade do doador. Fazia questão de prestar contaspermanentesparaevitar,oupelomenosreduzir,suspeitasepolêmicas.

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ACABEÇADAMEDUSA

UmadascartasqueKardecfezquestãoderesponderchegouaindanoiníciode1862,umamensagemde“felizano-novo”assinadaporquaseduzentosadeptos.Em sua resposta, ele alertou os “irmãos e amigos de Lyon” a m de que sepreparassemparanovosataques:“Ficaisavisados.Alutanãoterminou.”

Os tempos de zombaria — “arma que se mostrou impotente” — tinhamterminado. O espiritismo agora seria encarado como uma “potência” a sercombatida comnovas armas: perseguição aos adeptos e intrigas para dividir omovimento.

Eporqueosadversáriostinhaminteresseematacarumadoutrinaque,comosabiam,sótornavaaspessoasmelhoresemaisfelizes?Aresposta,paraKardec,erasimples:

Comoqueríeisqueumadoutrinaqueconduzaoreinodacaridadeefetivanãofossecombatidaporquantosvivemdoegoísmo?

Depois de pedir coragem a seus combatentes, Kardec voltava a hastear abandeiradoúltimoencontro:

Não temais: o penhor do sucesso está nessa divisa, que é a de todos os verdadeiros espíritas:“Foradacaridadenãohásalvação.”Hasteai-abemalto,porqueelaéacabeçadeMedusaparaosegoístas.

O “missionário em chefe” do espiritismo dedicava cada vez mais tempo apropagar entre seus seguidores uma reforma moral, um levante contra omaterialismo.Afasedacuriosidade—quemarcaraainfânciadoespiritismo—deveria dar lugar aos estudos da doutrina e a ações em favor do próximo,desvinculadasdosfenômenospurosesimples.Osespetáculosiniciaisdasmesas

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girantes e cestos escreventes tinham cumprido seu papel: despertar a atençãodoshomensparaomundoinvisível.Erahoradefecharascortinasedesligarosholofotes. “Uma luz intensamente brilhante e súbita não ilumina. Ofusca”,escreveu.

Kardec sabia.A caridade era um território bemmais seguro e fértil para ocrescimentodoespiritismo.Os fenômenosestavamsempresujeitosà fraudeeaosataquesdosadversários.

Era preciso afastar o espiritismo de guras como o casal Edwards e JúliaGirod.

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OHOMEMDASBONECASFALANTES

Aduplade“médiuns”americanosfascinaraacorteeosplebeusfrancesescomsuas exibiçõesmágicas. Foram trêsmeses de temporada lotada nos principaissalõesdePariseempaláciosdafamíliaimperial.

OprospectodocasalGiroderatentador:

Divertimentosnossalõesparisienses.Novidade!Sónovidade!Omundodosespíritosobedeceàssuasvozes.Visões.Êxtase.Fascinação.Magnetismo.Espíritosbatedores.

Para alegria das crianças, o ventríloquo Homem das Bonecas Falantestambémentravaemcena,nasmatinês,compreçosreduzidos.

Para conquistar novos clientes, a dupla exibia um álbum com mais deduzentas páginas, repletas de cartas de felicitações assinadas por ilustresespectadores de seus feitos. Entre os fãsmais devotados, nadamenos do quedezesseisarcebisposebisposdaFrança.

Muitas autoridades eclesiásticas foram arrebatadas pelo prospecto dedivulgaçãodocasal.Logoapóslistaremosprodígiosdomundodosespíritos,ossupostos médiuns revelavam a origem de todas aquelas manifestações:ilusionismo.

Visões?Êxtase?Fascinação?Magnetismo?Espíritosbatedores?

(...)tudoquantoaciênciaeocharlatanismoinventaram,queembasbacaoscrédulosdenossosdias,até lhesdarumaférobustaemtudoquantonãopassadecharlatanice,emqueagenteécomparsasemsaber.

Umadasfrasesdopan etonãodeixavadúvidasquantoàopçãoreligiosadadupla:“Afécristãsóteráaganharaoverclaramentequetudoquantoelanãoensinounãopassadebrilhantecharlatanismo.”

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Acadaexibiçãodeilusionistascomoestes,suspeitaseramlançadascontraosfenômenosespíritas,masKardecnãoseintimidava.

Tudo poderia ser imitado, ele dizia, mas as cópias não eliminavam aautenticidadedosoriginais.Omágico ngeentraremestadosonambúlico,masisto não quer dizer que o sonambulismo seja uma farsa. O pintor faz cópiasperfeitasdetelasdeRafael—masninguémpoderárenegarofatodequeRafaelexistiu.

Emseusargumentos,Kardeciaaindamaislonge—aostemposdeCristo:

O prestidigitador Robert-Houdin transforma a água em vinho e tira de um mero chapéuobjetoscapazesde lotarumagrandecaixa.EssasproezasdesmentemosmilagresdasbodasdeCanáedamultiplicaçãodospães?

Imitarfenômenosfísicos—Kardeca rmava—erafácilparaquemtinhaodomdamágica,maselelançavaumdesa oaosenhoreàsenhoraGirod:imitaros fenômenos inteligentes testemunhados por ele em sessões ondemortos semanifestavam emmensagens pontuadas por informações desconhecidas pelosmédiuns.

(...) e, melhor ainda, em longas dissertações de muitas páginas, escritas de um jato, semvacilações,comrapidez,eloquência,correção,profundidade,sabedoriaesublimidadedeideias,sobreassuntospropostosnaqueleinstante,foradoconhecimentoedacapacidadedomédium.

OcasalfoiemboradeParisantesdeaceitarodesa o,eKardeccontinuouarecebernotíciasdoalémvindasdetodososcantos.

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OINCANSÁVELJOBARD

Um dos frequentadores mais assíduos das sessões promovidas na sede daSociedadeEspíritaeraJobard,odiretordoMuseuRealdaIndústriadeBruxelas.Espírita devotado desde a leitura deO livro dos espíritos , ele deixava Kardectensopelainsistênciaemaceleraradivulgaçãodadoutrinaespírita.

Devezemquando,pediaapalavraparacriticaros“passosde tartaruga”domovimento e defender a abertura da Sociedade a novos sócios. Kardec, noentanto, tentava seguir os conselhos de Zé ro enquanto era submetido àspressõesdeJobardeoutroscompanheirosinflamados:

—Não te deixas arrastar pelos entusiastas, nem pelosmuito apressados.Mede todos os teuspassos,afimdechegaresaofimcomsegurança.

Em fevereirode 1862, Jobard voltou à Sociedade e tomou seu lugar àmesaparadescreveratodosoquenenhumdosmédiunsvia.Erastoestavapresente,oEspíritodaVerdadeplainavanoare“amigosinvisíveis”dividiamascadeiras jáocupadas pelos vivos— juntos nomesmo espaço,mas sem semisturar, cadaumcomseucorpo,fluidoecarne.

Quem o ouvisse falar não reconheceria o velho estudioso do psiquismooriental, autorde livrospolêmicos sobre temas como“autilidadedos tolosnaordemsocial”.

AntesdelerasobrasdeKardec,Jobarddefendiaumsistemaparaexplicarospoderes mediúnicos: “alma coletiva”. As almas de todos nós estariaminterligadas num “todo coletivo”.Omédium teria o poder de captar aptidões,inteligências e conhecimentos das almas vizinhas, ausentes ou presentes nassessões.Almasdevivos,enãodemortos.

Naquela sessão de 1862, ele não demonstrava qualquer dúvida quanto àpresença e in uência de espíritos, e falava com absoluta autoridade. Tinha

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morrido emBruxelas,deumataquede apoplexia, em27deoutubrode1861,aos69anos.

Erapelasmãosdasra.CostelqueJobardproclamavaavidanovaaos“irmãosnoexílio”:

—Meuscarosamigos,queembriaguezdesvencilhar-sedopesodocorpo.Queebriezabarcaroespaço!

Masqueninguémseenganasse:elenãoestavamais tranquiloepacientedooutrolado,evoltouaexigirímpetonadivulgaçãodoespiritismo:

—Nãosedeve temer lhedarumvigoroso impulso,quea fará transporosobstáculoscomumaforçaquenadapoderádominar.

Mas tanta pressa não prejudicaria a doutrina? — perguntou um dosparticipantesdasessão.

Aresposta,escritaa jatonopapel, foipor todoscomoumacon rmaçãodaidentidadedovisitanteimpetuoso:

—Derrubarieisosseusadversários.Vossalentidãolhesdeixaganharterreno.Nãogostodopassolerdoepesadodatartaruga:prefiroovooaudaciosodoreidosares.

Kardec dividiu amensagem com os leitores na edição demarço daRevistaEspírita,mastomouocuidadoderea rmar,porescrito,emnotaderodapé,oquecansaraderepetiraJobardatésuamorte,e,agora,depoisdela:

Observação: isto é um erro. Os partidários do espiritismo ganham terreno diariamente,enquantoosadversáriosoperdem.Osr.Jobardésempreentusiasta:nãocompreendeque,comprudência,sechegaao mcommaissegurança,enquantoseatirandoaosobstáculosdecabeçabaixaagentesearriscaacomprometeracausa.

Detodososcantos,chegavamnotíciasdenovasadesõesaomovimento.Na Argélia, o dono de uma livraria levou um susto ao ouvir um o cial do

exército,absolutamentecético,pedirumexemplardeOlivrodosespíritos ,sem

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fazerqualquercomentáriosarcástico:

Ele era umdosmais duros incrédulos: antes de Proudhon, dizia: “Deus é omal.” Por outraspalavras:nãoadmitianenhumdeus.Sóreconheciaonada.

DapequenacidadefrancesadeChauny,outrasboas-novas.AsrevelaçõesdeOlivrodosespíritos e deOlivrodosmédiuns , que circulavampor láhápoucomaisde seismeses, conquistavammais emais adeptos entreosoperários.EmreuniãonaSociedade,Kardecfestejaria:

— Não é prodigioso ver simples trabalhadores reservarem suas economias para comprarlivrosdemoraledefilosofiaemvezderomancesebugigangas?Homenspreferindoestaleituraàsalegriasruidosaseembrutecedorasdoscabarés?

Mas nem tudo era tão festivo assim. Em Bordeaux, uma senhora idosa emuitodoente—ecadavezmaisatraídapeloespiritismo—receberaaseguintecarta,assinadapelopárocodafamília:

Lamento que ontemnão tivesse podido alertá-la emparticular sobre certas práticas religiosascontráriasaoensinodasantaIgreja.Falou-semuitodistoemvossafamíliaemesmoemoutrocírculo social. Eu me sentiria feliz, senhora, de saber que só tendes desprezo por estassuperstiçõesdiabólicasequeestaissempresinceramenteligadaaosdogmasimutáveisdareligiãocatólica.

A lhadavelhasenhora,ÉmilieCollignon,recém-convertidaaoespiritismo,incumbiu-sededararespostaaovigário,tambémporescrito:

Carosenhor,emminhacasanãosefaznenhumapráticareligiosaquepossa inquietarosmaisfervorososcatólicos,amenosqueorespeitoeafépelosmortos,afénaimortalidadedaalma,uma con ança ilimitada no amor e na bondade deDeus (...) sejampráticas reprováveis pelasantaIgrejaCatólica.

Aoscríticosde“outroscírculos”,nãofamiliares,umrecado:

Jamais poderão dizer que algum de nós tenha feito coisas das quais tenha que corar ou

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esconder-se;eeunemcoronemmeocultoaoadmitiraimportânciadasmanifestaçõesespíritasparamim.

O padre que procurasse outros éis para intimidar, porque a conversão deÉmilienãoteriavolta:

Quanto a mim, pessoalmente, encontrei muita força e consolo na certeza palpável de queaquelesquenósamamos,epelosquaischoramos,estãosemprepertodenós.

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ADEUSEBEM-VINDO

Emmarçode1862,KardecfoiincumbidodefazerumdiscursoemhomenagemaumdoscompanheirosdaSociedadeEspíritadeParis:osr.Sanson.Ocenárioera o cemitério do Père-Lachaise, batizado assim em homenagem ao padreLachaise,confessordoreiLuísXIVdaFrança.Entreosmausoléusarborizados,Kardecsedespediudoamigoe,diantedo túmuloaindaaberto, rea rmoua fénadoutrinaquederatantaesperançaaSansondurantelongaesofridadoença:

—Desdemuitotempoelepreviaoseu m;mas, longedeseapavorar,oesperavacomoahoradalibertação.

Vidaemorteseentrelaçavamemseudiscurso.

—Quem, em presença desse túmulo aberto, não sente um calafrio percorrer as veias, aopensar que amanhã, talvez, o mesmo lhe acontecerá e que, depois de umas pás de terra,lançadas sobreo seucorpo, tudoestará terminadopara sempre,quenãopensará,nãosentirá,nãoamará?

Esteeraopontodevista—“pungenteeglacial”,segundoKardec—dequemencarava a morte como o m. Para os materialistas, Sanson era agora merocadáver, desprovido de inteligência e emoção, totalmente aniquilado. Para osespíritas,ahistóriaerabemdiferente:

—Almadosr.Sanson,queacabaisdeentrarnomundodosespíritos,aquiestaisentrenós;vedesenosescutais,poisentrenósapenasseachaocorpoperecível,queacabaisdedeixarequeembreveserápó.

E foi ao morto que Kardec dirigiu as últimas palavras, enquanto o corpodesciaàsepultura:

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—Essecorpo,instrumentodetantasdores,aindaestáaí,aovossolado.Vósovedescomooprisioneirovêas cadeiasdequeacabade se libertar.Deixastesogrosseiro invólucro sujeitoàsvicissitudes e àmorte e apenas guardastes o invólucro etéreo, imperecível e inatingível pelossofrimentos.

Odiscursodedespedidaterminariaemclimadeboas-vindas:

—Atéavista, caro sr. Sanson.Quepossaisgozarnomundoondevosencontrais agoraafelicidade que mereceis e que venhas estender-nos a mão quando nos chegar a vez de neleentrar.

Poucassemanasdepois,SansonjáestavadevoltaàSociedadeEspírita,nãoparalevaralguémembora,maspara trazernotíciasdomundode lá,pelasmãosdomédiumLeymarie:

—Meusamigos,estoujuntoavós.

Eraoiníciodeumasabatina,oumelhor,deuma“autópsiaintelectual”,comodefiniriaKardec.

Atormentado pela perda da visão no m da vida, Sanson nunca enxergaratãobemquantoagora:

—Oinstantedamortedáclarividênciaaoespírito.Osolhosnãoveemmais;masoespírito,quepossuiumavisãomuitoprofunda,descobreinstantaneamenteessemundodesconhecido,eaverdadelheaparecedesúbito.

Uma verdade que poderia gerar alegria profunda ou dor insuportável ao“morto”, de acordo com seu estado de consciência ou com as lembranças davidainterrompida.

Nalongaconversacomoscompanheirosdedoutrina,Sansondarianotíciaspreocupantes aos que ainda teimavam em não crer. Para eles, o instante damorteseriabemmaispenosodoqueparaosespíritas:

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—Aquelequenãocrêésemelhanteaumcondenadoàpenamáximaecujopensamentovêocuteloeodesconhecido.

Otestemunhodoalémecoavaodiscursodeoutrasmensagens transmitidasnaSociedadeEspíritasobreodestinoreservadoaosincrédulosnomomentoda“passagem”:

—Nos últimos instantes, o incrédulo endurecido experimenta as angústias dos pesadelosterríveis, nos quais se vê às bordas de precipícios, prestes a cair no abismo... Quer chamaralguémenãopodearticularomenorsom,queragarrar-seemqualquercoisa,acharumpontodeapoioesesenteescorregando...

Na dúvida, melhor crer. E muitos no mundo todo já criam, a julgar pelorelatório divulgado por Kardec na sessão de abertura do quinto ano deatividadesdaSociedadeParisiensedeEstudosEspíritas,emabrilde1863.

Onúmerodeassociaçõesaumentavaacadadia,eemtodoocanto.Argélia,Itália,ÁustriaeMéxicojásediavamassociaçõesdedicadasàciênciaespíritaeàbandeirahasteadaporKardec:caridade.

Oitenta e sete membros xos pagavam as cotas anuais da Sociedade emParis, além de sócios honorários residentes no exterior. Este número poderiaser bemmaior se o presidente da instituição reduzisse o rigor na seleção dosassociados — atitude que se recusava a tomar, embora as pressõescontinuassem.NasconversascomoscompanheiroseemartigospublicadosnaRevistaEspírita,Kardecnãosecansavaderepetir:

Teria sido fácil dobrar, emesmo triplicar esse número (de sócios), se visássemos receita. (...)Masarelevânciadasociedadenadatemavercomonúmerodesócios,mascomasideiasqueestuda,elaboraedivulga.

Estas ideias, segundo a avaliação do mestre, nunca tinham sido tãoconsistentes:

Jánãosão,comooutrora,pequenosfragmentosdemoralbanal,masdissertações,nasquaisasmaisaltasquestõesdefilosofiasãotratadascomamplidãoeprofundidade.

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Pelas mãos de médiuns cada vez mais produtivos— e mais instruídos—,vinham mensagens assinadas por personalidades como Voltaire e SantoAgostinhosobretemascomofé,caridadeeperdão.

Galileu também se manifestara, para divulgar seusEstudos uranográ cos ,através de um médium ainda em formação: o jovem astrônomo CamilleFlammarion, futuro fundador da Sociedade de Astronomia da França. Osprimeiros esboços dele como intermediário do além, no entanto, eram nadareveladores:

—Umapaisagemdehorizontesem m,tufosdeárvoressobasquaissentimosavidasubirnaseiva,umpradoesmaltadodefloresperfumosasecoroadopelosol:aistosechamanatureza.

Muito mais impressionante era sua obra de estreia, publicada em 1862,quando Flammarion, 20 anos recém-completados, ainda estudava noObservatório de Paris:A pluralidade dos mundos habitados . Um best-sellerque,emmuitospontos,avalizavaasrevelaçõessobreavidaemoutrosplanetasdivulgadas por Kardec e já proclamadas em outras obras e seitas desde aAntiguidade.

Numdostrechos,Flammarioncitavaasdescriçõesdo“bompadre”AtanásioKircher emViagem extática celeste , publicado no século XVII. Ao sair de seucorpo,elechegaraaSaturnoe caraespantadocomoshabitanteslocais:velhosmelancólicos em roupas lúgubres, com tochas fúnebres à mão. Muito maisvibranteseramosmoradoresdeVênus,comsuasvestesdecristaltilintandoaosomdelirasecímbalos.

Flammariondefendia, sim, a pluralidadedosmundos e se aproximava cadavez mais de Kardec. Caberia a ele, aliás, 38 anos mais jovem, o discurso dedespedida ao mestre na cerimônia de seu enterro. Entre os túmulos docemitério, o astrônomo de niria o homenageado como “o bom sensoencarnado”,umadefiniçãorepetidaportodososseusadmiradoresdesdeentão.

MasessediademorariaachegareKardecaindatrabalhariaduroparaestaràaltura dos que o viam como um pesquisador incansável, sempre pronto aduvidardas“verdades”atribuídasaoalém.

Erapreciso,repetia,lutarparadiscerniroverdadeirodofalsoeoracionaldo

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ilógico no emaranhado demensagens psicografadas: “Os espíritos estão longedepossuirasoberanaciênciaepodemseenganar.”

Osmédiunstambém.Equantomaisescreviamemaissemultiplicavam,maistrabalhodavamaomestre.Muitos reagiammal às críticas do autordeO livrodosespíritos.KardecnãoseconformavaedesabafavaemconversascomAmélieecomoscompanheirosmaissensatos:

Como discutir comunicações commédiuns que não suportam amenor controvérsia, que semelindramcomumaobservaçãocríticaeachammauquenãoseaplaudamasmensagensquerecebem,mesmoaquelasinçadasdegrosseirasheresiascientíficas?

Kardec criticava e era alvo também de críticas, cobranças, suspeitas eacusações.

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OSMILHÕESDEALLANKARDEC

AumadasacusaçõesKardec fezquestãoderesponderemartigopublicadonaRevistaEspíritaemmaiode1863.Umpadreespalharaentreosfiéisanotíciadeque o “inventor do espiritismo” estavamilionário graças a doações vindas daInglaterra,contribuiçõesdesócios,assinaturasderevistasevendasdelivros.Oclérigo teria conhecido Rivail, ainda pobre, nas ruas de Lyon, e caraimpressionado ao vê-lo des lar pelas avenidas de Paris a bordo de umacarruagemimponentepuxadaporquatrocavalospuro-sangue.

Em sua resposta ao padre— que tratou de proteger sob o anonimato—,Kardecfezduascorreções:nascidoemLyon,em3deoutubrode1804,nuncachegara amorar na cidade, e a tal carruagem imponente não passava de umacre tocado por burros de carga, alugado cinco ou seis vezes por ano, por

economia:

Quediria o sr.Vigário se vissemeusmais suntuosos banquetes, nos quais recebo os amigos?Achá-los-iamuitomagros,aoladodasmagrasrefeiçõesdecertosdignitáriosdaIgreja.

O espiritismo— escreveu Kardec— nunca seria um meio de enriquecer,mesmoporquepregavaque todosvivessemapenascomonecessário, livresdaganânciaedaambição.Outraliçãoespíritaeraadeser elaumadasmáximasdeCristo:“Nãofaçasaoutremoquenãoqueresquetefaçam.”Máximaque—Kardecressaltava—opadreteriatraídoaocaluniaropróximo.

Na longa resposta ao vigário, Kardec aproveitou paramandar recados, portabela,aadversáriosefalsosaliadosqueseincomodavamcomseusucesso.

Lucros com vendas de livros? Ninguém tinha nada a ver com isso —“qualquer trabalhador temo direito de vender o produto de seu trabalho”—,mas, para saciar a curiosidade dos detratores, Kardec revelou a renda obtidacomaprimeiratiragemdolivrodeestreia:

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(...)feitasasdevidascontas,esgotadaaedição,vendidosunsexemplares,dadosoutros,rendeu-me cerca de quinhentos francos, como posso provar documentalmente.Não sei que tipo decarruagempoderiasercompradacomisso.

Outronúmero—tambémreveladosobapressãodecobrançasesuspeitas—poderia nanciar,sim,umacarruagemzeroquilômetro:10milfrancos.Foiesteo total recebido por Kardec de um admirador da doutrina. Doação quetransferiuaumfundoquebatizaradeCaixadoEspiritismo, sobsupervisãodaSociedade.

Em detalhada prestação de contas apresentada aos companheiros daSociedadeEspírita,Kardecdeclaroucomoseriaaplicadaapequenafortunaquemuitosjulgavaminesgotável.Nenhumadoaçãoaospobresenenhumgastocomdespesaspessoais.Todoodinheiro seria reservadoaopagamentode seis anosde aluguel da sede da Sociedade, um amplo apartamento localizado num dosbairrosmaisvalorizadosdeParis.

Por que alugar um imóvel tão caro? — questionavam alguns associados.Aliás, seria mesmo necessário um imóvel exclusivo para reuniões espíritas?Kardectevederesponderporescritoemcartadistribuídaaosassociados:

Esse apartamento reúne as vantagens desejáveis por suas disposições internas e sua situaçãocentral.Nadatendodesuntuoso,émuitoadequado.

Seria inviável para ele eAméliemanter a própria casa aberta às visitas quenãoparavamdechegar,daFrançaedoexterior.Umamédiade1.200a1.500pessoasporano,queagoraencontravamabrigonasededaSociedade.

Com cuidados de contador, Kardec justi cou, franco por franco, o uso dadoação. O custo anual do aluguel do apartamento era de 2.530 francos. ASociedadepagava1.200deste total.Restava,portanto,umadiferençade1.528por ano.Ao longo de seis anos, seriam gastos 9.168 francos no total— umadespesa que aumentaria em 900 francos com a compra de móveis eultrapassariafacilmenteos10milcomimprevistoseinvestimentosextras.

Os gastos comviagens subiriammuito em1862.Paradivulgar adoutrina echecarosresultadosalcançados,naprática,peloespiritismo,Kardeciniciaraospreparativos para uma longa viagem: 1.158 quilômetros de trem e carruagem

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porvintecidadesdaFrança,aolongodeseissemanasdechuva,frioeneve,dooutono ao inverno. Kardec pagaria com dinheiro do próprio bolso todas asdespesasdestetour.

Jánão faltavadinheiro:Olivrodosespíritos estavananona edição eO livrodos médiuns chegara à quarta reimpressão dois anos depois de lançado. Eninguémtinhanadaavercomisso.

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NAESTRADA

Antesdearrumarasmalas,Kardecorganizouas ideias epreparoudiscursosaserem lidos nas recepções e banquetes promovidos por seus an triões. EmBordeaux e Lyon, os correligionários já se organizavam para reencontrar omestreeouvirsuasnovasorientações.

DesdeoautodefédeBarcelona,oespiritismoavançara—emuito—nessascidadesenosarredorestambém.Doisanosantes,naprimeiravisitadeKardecaLyon,onúmerodeespíritasdeclaradosnacidadenãochegavaamil.Noanoseguinte, 1861, já eram quase 5mil os adeptos da doutrina.Umnúmero queultrapassavaos25milespíritasagora,deacordocomestimativasdeKardec.EmBordeaux,osmilespíritasdoanoanteriorjátinhamsemultiplicadopordez.

Nalutacontraomaterialismo,Kardecprecisavaconduziresteexércitocomcautela— e foi assim, com os devidos cuidados, que preparou suas palestras,parágrafoaparágrafo,liçãoalição.

Para começar, um balanço histórico e uma avaliação dos novos tempos doespiritismo:

Afasedacuriosidadepassouejávivemosagoraumsegundoperíodo,oda loso a.Aterceiraetapa,quecomeçaráembreve,seráadesuaaplicaçãoàreformadahumanidade.

Osmédiunsdeefeitosfísicos—constatou—davamlugaraumnúmerocadavezmaiordemédiunsdecomunicaçõesinteligentes.Masafaltadefenômenosnãoafugentavaosnovosadeptos.Pelocontrário:“Aumentaonúmerodosquenada viram e que nem por isso são menos entusiastas, porque leram ecompreenderam.”

Nesteterritóriofértil,eraimportanteestarsempreatentoaosadversários.Eamelhorarmacontraeles,muitasvezes,seriaosilêncio:

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Quandoumexércitoveri caqueasbalasdo inimigonãooatingem,eleodeixaatiraraoseubel-prazeredesperdiçarsuasmunições,certodeobtervantagensdepois.

Amélie foi a primeira a ouvir os discursos domarido e os aprovou, palavrapor palavra. Ela estaria ao lado de Kardec, silenciosa e solidária, ao longo detodaaviagem.

Acadaevento,Kardecdiscursariacomoumcomandantediantedastropas.Ostextosburiladosemseugabinetesaíamdesuabocaemtompausado,pontuadoporgestoscomedidos:

—Omelhorgeneralnãoéaquelequeseatira,depeitoaberto,naconfusãodabatalha,masoquesabeesperareestudarasaproximações.

Ajálongaconvivênciacommédiunseadeptosdediferentesper spermitiaaKardec classi car os espíritas em três categorias básicas, listadas em seusdiscursos:

—Osquecreempuraesimplesmentenosfenômenos,masquedelesnãodeduzemqualquerconsequênciamoral.Osquepercebemoalcancemoral,masoaplicamaosoutrosenãoaelesmesmos.Osque aceitampessoalmente todas as consequênciasdadoutrina eque se esforçamporpraticarsuamoral.

Em muitos encontros, era grande a quantidade de médiuns ou deinteressadosematuarcomoinstrumentosdecomunicaçãocomoalém.EeraaelesqueKardecendereçavaosrecadosmaisdiretos,emaisduros.Deveriamsecuidarparaquenãosetornasseminimigosinternosdaprópriadoutrina.

Algunspoderiamerrarporinteressematerial—etodosprecisariamassumirocompromissoderenegarquaisquermédiunsquecobrassemporseusserviços.Outrospoderiamse equivocarporpuravaidade, ávidosnãopordinheiro,maspor projeção. Outros ainda poderiam ser traídos pelo orgulho. E Kardec jáestava cansado deles: dos médiuns que atribuíam todas as mensagens que

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recebiamaespíritossuperiores,semquestionaresemaceitarcríticascontrárias.Críticasqueomestrecostumavafazerequejátinhamprovocadoumasérie

de dissidências. Sem dar nomes, Kardec contou, em seu périplo pela França,uma história recente de orgulho ferido. Inconformado porque não foraconvocado a psicografar em determinada reunião, um médium se retirou dasessãoeprotestoucontraotratamento“imperdoável”.

Kardecaindaestavaindignadocomoepisódio:

—Imperdoável!Concebeiestapalavranoslábiosdepessoasquesedizemespíritas?Eisaquiumapalavraquedeveriaserriscadadovocábuloespírita!

Omesmomédiumexigiaatençãoconstanteeaadmiraçãodetodos,comosefosse alguém especial, escolhido por Deus para a missão de dar voz aosespíritos. A tensão sempre aumentava diante dele, porque qualquer palavrapoderia ferir sua vaidade. Como lidar então com intermediários desse tipo?Kardecdeuareceitaemseudiscurso:

—Euos convidoa tomarminhaatitude, isto é, adenãodar importância amédiunsqueantesconstituemumentravedoqueumrecurso.

Comumnúmerocadavezmaiordemédiunsemformação, jánãoeramaisprecisoficaràmercêdavaidadealheia.

Ogeneralprecisavadesabafareabriumãodadiscriçãohabitualparafalardesimesmoemsalõessemprelotados,aolongodesuaviagem.Diasantes,ouviraumacríticaqueoincomodou:adenãolutarparatrazerdevoltapessoasqueseafastavamdele.

Sim,Kardec,reconheceuempúblico:

—Jamaisdeiumúnicopassonessesentidoeaquiestãoosmotivosdeminhaindiferença.

Uma lista implacável, especialmente para alguém que rejeitava o uso doadjetivo“imperdoável”:osqueseaproximavamdeleofaziamporconveniência,atraídos pelos princípios da doutrina, e não por sua companhia; os que se

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afastavamdele tambémofaziamporconveniência,peladescobertada faltadeafinidadesemdeterminadasquestões.

—Por que então eu iria contrariá-los, impondo-me a eles? Parece-memais convenientedeixá-losempaz.

Apazaparentedodiscursologoseriadesmanteladapelasfrasesseguintes:

—Ademais, honestamente, falta-me tempo para isso.Minhas obrigações nãome deixamuminstanteparaorepouso.

EquenenhumdosdissidentesseenganassequantoàprópriaimportâncianavidadeKardec:

—Para um que parte, hámil que chegam. Julgo umdever dedicar-me, acima de tudo, aestes,eéissoquefaço.

Orgulho? Desprezo pelo próximo? Kardec lançou as perguntas— e deu aresposta:

—Não, honestamente não. Não desprezo ninguém. Lamento os que agemmal e isso étudo.

Kardecpareciaengasgadoedecidiu tambémresponderàscobrançasdequedeveria bater às portasda alta sociedade embuscadenovos adeptos e apoios,inclusivefinanceiros:

—Issoexigiriaumtempoqueprefiroempregarmaisutilmente.

Tempo era palavra-chave em seus discursos. Um tempo cada vez maisescassoparatantoscompromissos,tantascartasaresponder,tantasmensagensdoalémachecaretantosinteressesevaidadesaadministrar.Valiaapenatantoesforço?

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Sim,ajulgarporoutrotrecho—bemmaisinspirador—dodiscursolidoemLyon,destavezcomtomsuave:

—Colocoemprimeira instânciaofereceroconsoloaosque sofrem,ergueracoragemaosdecaídos, arrancar um homem de suas paixões, do desespero, do suicídio, detê-lo talvez nolimiardocrime!Nãovalemaisistodoqueoslambrisdoirados?

A correspondência que não parava de chegar à sede da Sociedade era umpeso,admitia,maseraumprêmiotambém:

—Guardomilharesdecartasque,paramim,maisvalemdoquetodasashonrariasdaTerraequeolhocomoverdadeiros títulosdenobreza.Assim,pois,nãovos espantei sedeixopartiraquelesqueviramascostas.

Assuntoencerradoparaosdesertores.

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JUMENTOSEBENGALAS

Dissidentes se afastavam, e os adversários atacavam.Nas páginas do jornalLeMoniteur,dacidadedeMoselle,notíciasalarmantes:

Oespiritismo fazperigosoprogresso. Invadeaalta, amédiaeabaixa sociedade.Magistrados,médicos,gentesériatambémseatiraaesseerro!

Na sededa SociedadedeCiênciasMédicas, o alerta dodr. PhilibertBurlet,apósanalisar seis casosde loucuraemhospitaisdeLyon, emmaiode1863:oespiritismo causaria alienação mental. Pretensos médiuns seriam apenaslunáticos,eespíritosnãopassariamdealucinações.

Nospúlpitosdasigrejas,párocoscadavezmaisinflamados.Um deles, o combativo padre Lapeyre, da Companhia de Jesus em Paris,

dedicouumlongosermãoaanalisarOlivrodosespíritos .Ondese liacaridade,ele identi cava a in uência das ideias comunistas. Onde se lia igualdade, eledenunciavaameaças àpropriedadeprivada.Onde se lia livre-arbítrio, ele via asupremaciadohomemsobreumDeussemforçanemvalor.Eondeseliamosnomes dos “autores espirituais” da obra — São Paulo, Santo Agostinho, SãoLucas,SãoVicentedePaula!—,eleviaapenasheresia.

Para Lapeyre, o livro atribuído a espíritos superiores teria sido ditado “pelohábileastutodiabo”,ávidoporludibriarosignorantescomailusãodequenãoháinfernonempurgatório,edequeodestinodahumanidadeestaria,portanto,nasmãos do homem. Um absurdo que só poderia prosperarmesmo naqueleséculo XIX — “da incredulidade e das heresias” —, terreno fértil para adisseminaçãodeperversõescomoaquela:

—Este século ama tanto a liberdade e vem lhe oferecer o livre exame, o livre-arbítrio, aliberdadedeconsciência!Esteséculoamatantoaigualdade...elhemostramohomemdaalturadeDeus!Amatantoaluz...edeumapenadarasga-seovéuqueocultavaossantosmistérios!

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Ao padre, só restava ter piedade dos pobres coitados adeptos da novadoutrina:

— Pobres insensatos que vos divertis em falar com os espíritos e pretendeis sobre elesexercerqualquerinfluência!

E que os éis diante dele, na nave da Santa Igreja, se livrassem domal defolhearOlivrodosespíritos:

—Eunão caria admirado se, entre vocês, nãohaja alguns que já foramarrastados à sualeitura. A estes só podemos dizer: depressa! Aproximai-vos do tribunal das penitências!Depressa!Vindeabrirosvossoscoraçõesaosguiasespirituais!

Oquefazer,então,comaquelasobrasdemoníacas?

—ComoSãoPaulo, faremosumamontanha empraçapública enósmesmosmeteremosfogo!

Comonenhumdos éis entregou exemplaresde seus livrospara a fogueirasanta, faltou combustível para o segundo auto de fé, mas não para novosataqueseclesiásticos.

EmsermãonaigrejaprimazdeSãoJoãoBatista,diantedocardealarcebispode Lyon, outro padre respeitado pela comunidade, o reverendo Nampon,decretaria,emoutubrode1863:

—Nadaémaisabjeto,maisdegradante,maisvaziodefundoedeatrativonaformadoqueas publicações espíritas, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossaépoca.

Na cidade que batia recordes de conversão à nova doutrina, a cruzadacatólica contra os livros espíritas era cada vez mais virulenta. O discurso deNamponnãodeixavadúvidas.

—Destruamestasobrasnefastas;nadaperdereis.ComodinheirogastoemLyoncomessas

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inépcias, facilmente se teriam construídomais leitos nos hospícios de alienados, superlotadosdesdeainvasãodoespiritismo!

Emoutraigreja,emBugarach,umvigáriomaisbem-humorado,PierreVasin,apelouparaumaparábolacontadaaos éiscomohistóriareal.Dilaceradapelaperdadocompanheiro,umajovemviúvarecorreraaospréstimosdeumespíritalocal.Omortosemanifestoupelasmãosdomédiumparadarumaboaeumamá notícia. A boa: ele acabara de reencarnar e estava bem perto dacompanheira,aumquilômetrodedistância.Amá:voltaranapele,oumelhor,no couro do jumentinho de um moleiro conhecido do casal. Movida pelasaudade, a viúva correu até a casa do fabricante de farinha e fez uma ofertairrecusávelpeloanimalsurrado.Finaldahistória,segundoopadre:

—Háquinzedias,oex- nadoocupaumcômodoespecialnacasadaex-viúva,cercadodecuidados jamaisdesfrutadosporseussemelhantes,desdequeaDeusaprouvecriarestaamávelraça.

Kardec não achou graça. Quem lesseO livro dos espíritos saberia queespíritos de homens não reencarnam em animais. E quem lidasse, como elelidava, com a dor de quem perde entes queridos levaria mais a sério osofrimentodeviúvassaudosas.

Outrahistória,quepassouacircularpelaFrança,tambémexigiriarespostasdeKardec. Um suposto participante de reunião mediúnica realizada na sede daSociedadedeParisrevelouaamigosoquantoasessãofora“marcante”paraascerca de trinta testemunhas.Asmarcas teriam cado nos corpos de todos osatingidos pelas pancadas dos espíritos naquela noite. Ele não chegou a ver abengala, mas sentiu o peso do golpe — que cara ali, estampado em suaespádua,comoprovaaosincrédulos.

PorqueKardecnãorelatavafenômenoscomoestes—menosedi cantes—naspáginasdesuaRevistaEspírita?

A resposta, segundo ele, era simples: porque este episódio não passaria de

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invenção.Aquemduvidasse,tinhaatéumálibi:atalsessãoteriaacontecido,deacordocomasupostavítima,noperíododerecessodaSociedadeEspírita,entre15deagostoe1ºdeoutubro.

Alémdisso, se fossemesmo real,Kardec teria revelado o episódio aos seusleitoressemqualquerconstrangimento:

Seria um fato capital, do qual não se poderia duvidar; pois, como foi dito, haveria trintatestemunhaslevandonolomboaprovadaexistênciadosespíritos!

Como justi car,então,amarcadasbengaladasnocorpoda testemunha?Avítimaqueseexplicasse:

Elaasrecebeuemalhurese,nãoquerendodizerondenemcomo,achouinteressanteacusarosespíritos,oqueeramenoscomprometedor...

Entresermõesfuribundos,jumentossaudososebengaladasinvisíveis,Kardecia em frente, e voltava a fazer contas para reagir aos ataques gerados peladevoçãodosdetratoresaumaentidadede nidaporelecomoo“Deusdenossaépoca”:odinheiro.

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FORTUNASEFANTASMAS

“Oorçamentoespíritaouexploraçãodacredulidadehumana.”Comestetítulo,o sr. Ablage Plaisir, o cial reformado e ex-representante do povo naAssembleiaConstituintede1848,mandouimprimirmaisumpan etocontraomovimentolideradoporAllanKardec.

Eraprecisoabrirosolhosdasvítimasinocentesda“epidemiaespírita”.Umapraga que, segundo ele, estava prestes a alcançarmetade de toda a populaçãofrancesa.Sim,20milhõesdeconterrâneosestariamexpostosàsfantasmagoriasda nova doutrina, e boa parte deste total — cerca de 5 milhões de adeptos,segundo o denunciante — faria doações xas à nova religião, comocontribuintesdesociedadesespíritasoucomoassinantesdaRevistaEspírita.

Resultado,deacordocomoscálculosdosr.Plaisir:umfaturamentodecercade 100 milhões de francos anuais para os presidentes e vice-presidentes dasinstituições, e renda média anual de 38 milhões para o sr. Allan Kardec,“proprietáriodaRevistaesoberanopontí ce”,semconsideraroslucrosobtidoscomasvendasdelivros:

Ah,osingênuosespíritas!Quepensaisdessaespeculaçãobaseadaemvossasimplicidade?Jamaispoderíeiscrerque,dojogodasmesasgirantes,tivessempodidosairsemelhantestesouros...Nãohárazãoparadizerqueatolicehumanaéumaminainesgotável?

Mais uma vez o “contador” Allan Kardec precisou entrar em cena paracorrigir os cálculos alheios. Primeira informação: a Sociedade Espírita nuncateve mais de cem sócios — apesar de todas as pressões pelo aumento destenúmero — e jamais recebeu qualquer contribuição das outras sociedadesespíritasvinculadasaela.

O orçamento de 1862 só fora fechado com um reforço de caixa de 429francos—necessáriosaopagamentodedespesasextras.Alémdisto,todogasto,

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pormenorquefosse,sópoderiaserfeitocomovistodocomitê.Outroponto:onúmerodeassinantesdaRevistaEspírita—calculadoem30milpeloautordopanfleto—nãochegava,infelizmente,a15%destetotal.

EmartigopublicadonaRevistaEspírita em junhode1863,Kardec ironizou— “Caluniai, caluniai! Sempre cará alguma coisa” — antes de concluir:“Restarásemprealgoque,maiscedooumaistarde,cairásobreocaluniador.”

Outros ataques ao espiritismo eram desferidos nos palcos dos teatros, ondeilusionistas como o casal Girod entretinham a plateia com aparições defantasmas,mesasgiranteseoutrosfenômenos“sobrenaturais”.

OjornalIndépendanceBelge,deBruxelas,costumavadardestaquemáximoaapresentações como essas. Em junho de 1863, complementou o anúncio dosshows do ilusionista Robin com uma provocação: “Eis a religião do sr. AllanKardecmetidaapique.Comovaioespiritismosair-sedesta?”

No palco doTeatro doChâtelet, antes de reproduzir pancadas e levitaçõestípicasdafaseinauguraldadoutrina,Robinanunciava:

—Senhorasesenhores,respeitávelpúblico.Estouaquiparacombateraestranhacrençadecertaspessoasnaexistênciadeespíritos.

Kardec se recusava a assistir a quaisquer desses espetáculos e repetia osvelhos argumentos para defender a autenticidade dos fenômenos do alémdiante das convincentes imitações: “Os falsos diamantes nada tiram do valordosbrilhantesreais.Asfloresartificiaisnãoimpedemquehajafloresnaturais.”

A cada ataque, ele agradecia aos adversários pelo destaque dado aoespiritismo.

Na categoria dos divulgadores mais dedicados estavam os párocos daspequenas cidades. Um deles, em Bordeaux, dedicara quatros sermõesapocalípticosàcalamidadeespírita.Embreve—anunciouaos éisapavorados—,trêsquartosdapopulaçãodetodoogloboseriamformadospormédiuns.

Eoqueseriamosmédiuns?Possessosdodemônio,falsosprofetas lideradospeloanticristo,dispostosamilagreseprodígiosadmiráveisparaconquistarmais

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e mais adeptos. Nem tudo estava perdido, entretanto. Quando estivessempróximos de dominar omundo, Ele nos salvaria— vaticinava então o padre,paraalíviodaaudiência:

—JesusdesceráàTerrasobreumanuvemcelestee,deumsopro,osprecipitaránaschamaseternas.

A repercussão gerada por ataques como estes con rmava, em 1863, umaprevisão de dois anos atrás, mantida em sigilo por Kardec. Numa de suasconsultasaoEspíritodaVerdade,perguntousobrecomooespiritismopoderiaavançarpelointeriordopaís.Arespostadoalémopegoudesurpresa:

—Pelospadres.—Voluntáriaouinvoluntariamente?—Aprincípio,involuntariamente.Maistarde,voluntariamente...

Kardec recebia cartas com relatos de sermões furibundos toda semana e,semprequepodia—e tinha tempoebomhumor—,agradeciaaosdetratoresporesteesforçoinvoluntáriodepromoçãodoespiritismo.

Numadesuaspalestras,lançouumasériedeperguntasaoscompanheirosdeguerra:

— Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o espiritismo nas praças? Convocamos opúblicoparaasnossasreuniões?Temosnossosmissionáriosdepropaganda?Temosoapoiodaimprensa?Temos,en m,todososmeiosdeaçãoostensivosdosnossosadversários?Não.Pararecrutarpartidários, contentamo-nosemdizer: “Ledeosprós eos contras e comparai. Se istovosconvém,vindeanós.”

Eelesvinham...NãoametadedaFrança,não trêsquartosdahumanidade,masvinham.

Eeraprecisotomarcuidadocommuitosdeles.

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QUANTASMOSCASNOCOCHE

UmamensagemassinadapeloapóstoloErasto,discípulodeSãoPaulo,colocadano papel pelomédiumD’Ambel naquele ano, alertava para os riscos de umaiminente“guerrasurda”noterritórioespírita.Ninguémseriamartirizadocomonos tempos da Inquisição, mas as torturas físicas seriam substituídas porsuplíciosmorais:

—Levantarãoembustes,armarãociladas,tantomaisperigosasquantousarãomãosamigas;agirãonasombraerecebereisgolpes,semsaberporquemsãodesferidos,esereisatingidosemplenopeitoporflechasenvenenadasdacalúnia.

Movidos pelo orgulho e pela vaidade, vaticinava a mensagem, adeptos dadoutrina declarariam independência do movimento liderado por Kardec etentariamseguircaminhosprópriosàfrentedegruposdissidentes.Pior:guiadospela ganância, alguns deles, os mais ambiciosos, representariam “indignascomédias”,bem-remuneradasporadversários,paradesmoralizaroespiritismo.

Paracombatertodosestesriscos,sórestavaumcaminho:aunião.

—Uni-vosparaqueoinimigoencontrevossasfileirascompactasecerradas.

AmensagemdeErastoparecia ecoaraspreocupações—e interesses—dopróprioKardec:

— A hora é grave e solene. Para trás, então, todas as mesquinhas discussões, todas asperguntas ociosas e todas as vãs pretensões de proeminência e amor-próprio.Ocupai-vos dosgrandesinteresses.

Sódepoisdetornarpúblicoesterecadodireto,Kardecdecidiutirardagaveta

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outro aviso, assinado pelomesmo Erasto em sessão particular.Neste texto, oalvo das críticas era bastante evidente: osmédiuns orgulhosos, cada vezmaisnumerososemaisávidosporprojeção.

—De todos os lados surgemmédiuns com supostasmissões, chamados, ao que dizem, atomaremmãosabandeiradoespiritismoeplantá-lasobreasruínasdovelhomundo,comosenósviéssemosdestruir—nósqueviemosparaconstruir.Ah,meusamigos,quantasmoscasnocoche!

Estes médiuns, alertava a mensagem, eram presas fáceis de espíritosperversos, interessados apenas em se divertir ou, pior, em desmoralizar oespiritismo. A um dos intermediários do além, uma dessas entidades teriaprometido revelar o segredo da transmutação dos metais e da incubação dediamantes;aoutro,passaraa fazerprofecias,pontuadaspordetalhes incríveis,todas desmentidas pelo futuro; a um terceiro, o espírito teria anunciado arevelaçãodedescobertascapazesdelevá-loàfamaeàfortuna.Tudoreduzidoanadae,opior,aoridículo.

Pelasmãos domédiumD’Ambel, as declarações atribuídas a Erasto atingiamsempiedadetodaacategoriadeescreventesdoalém:

— Espíritas, que vos importam os médiuns se, a nal de contas, não passam deinstrumentos?Oquedeveisconsideraréovalordosensinamentosdados;éapurezadamoralensinada,éaclarezadasverdadesreveladas.

Médiuns?Cuidadocomeles!

— Desagradável ver que alguns se julgam os únicos chamados a distribuir a verdade aomundo e se extasiam ante banalidades que considerammonumentos. Pobres abusados, querebaixamparapassarpelosarcosdetriunfo!

Médiunsvaidosos?Livrem-sedeles!

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—Ah!Setodososmédiunstivessemfé,euseriaoprimeiroainclinar-meperanteeles;maseles não têm, namaior parte do tempo, senão fé nelesmesmos, tão grande é o orgulho naTerra.(...)Muitosserãochamados;poucos,osescolhidos.

Entre os adversários — espíritas concorrentes?, médiuns orgulhosos? —,avisoscomoestesrepercutiampouco,oumal.

Quem garantia, a nal, que aquele fosse mesmo Erasto? Por que deveriamacatarasorientaçõesassinadaspelomédiumD’Ambel?Deveriam carunidos,sim,mas em torno de Kardec? Por que, se a doutrina era obra dos espíritossuperioresenãoumacriaçãosua?

Háumano,emBordeaux,oadvogadoRoustaing—que,doisanosantes,em1861, escrevera carta pública de apoio a Kardec — dedicava-se a conduzirlongosdiálogosparaleloscomoalém,intermediadospelamédiumbelgaÉmilieCollignon. Seus interlocutores eram tão célebresquantomuitos colaboradoresd eO livro dos espíritos eO livro dos médiuns : os quatro evangelistas,acompanhadosdepertopelosprópriosapóstoloseporMoisés.

Kardecaindanãosabia,masolivrogeradoporestesdiálogos—intituladoOsquatro evangelhos — circularia com o seguinte subtítulo estampado na capa:“Espiritismocristãoourevelaçãodarevelação.”

Erastoalertara,masMarcos,João,MateuseLucasfalarammaisalto.

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AMÉM

O ano de 1864 começou, aliás, com uma mensagem assinada por João, oevangelista,naSociedadeEspíritadeParis.CoubeàmédiumCostelpsicografá-la.Nasaudaçãoendereçadaaosoperários,ocompanheirodeJesusconclamavaostrabalhadoresaaderiremàdoutrinadivulgadaporKardec:

—Sedeespíritas:tornar-vo-eisfortesepacientes,porqueaprendereisqueasprovassãoumadádivaasseguradadoprogresso.

A julgar pelo tema da nova obra do autor deO livro dos espíritos , osevangelistas estavam sobrecarregados naquele período. Enquanto auxiliavamRoustaingnaredaçãodosquatroevangelhos,faziamserãonacasadeKardec,àsvoltas com os retoques nais deImitação do evangelho segundo o espiritismo ,livrorebatizado,trêsanosdepois,comoOevangelhosegundooespiritismo.

Naintrodução,umaexplicaçãocapazdeprovocararrepiosempadres,bisposevigáriosemgeral:ditadapordiferentesespíritosatravésdediversosmédiunsdosmais variados países, de acordo com ométodo de “controle universal doensino dos espíritos”, a obra pretendia esclarecer passagens nebulosas dostextossagrados.Ouemoutraspalavras,aindamaisafiadas:

Muitos pontos dos evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral são ininteligíveis,parecendo alguns até irracionais, por falta da chaveque faculte se lhes apreendao verdadeirosentido.

Achaveagoraestavadisponível:oespiritismo.Caberia à nova doutrina traduzir a essênciamoral dos evangelhos e traçar,

assim, o “roteiro infalível para a felicidade vindoura”, com o máximo deobjetividade,emlinguagemlivredefigurasalegóricaseparábolasmísticas.

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O principal objetivo do livro, segundo Kardec, era ambicioso: oferecer aoleitorum“códigodemoraluniversal, semdistinçãodeculto”.Chegaraahorade todos compreenderem, por completo, as principais lições de Cristo,reveladaspelanovaciência:oespiritismo.

Pelaprimeiravez,Kardecclassi cava,porescrito,a“doutrinadosespíritos”como a terceira revelação da lei de Deus, depois do antigo e do novotestamentos. E a fonte de todas as informações que revelava não era umhomem, sujeito a falhas e aosprópriosdogmas e interesses.Não.A fonte eraoutra:

Oespiritismoéfrutodoensinodado,nãoporumhomem,massimpelosespíritos,quesãoasvozesdocéu, em todosospontosdaTerra, comoconcursodeumamultidão inumeráveldeintermediários. É, de certa maneira, um ser coletivo, formado pelo conjunto dos seres domundoespiritual,cadaumdosquaistrazotributodesuasluzesaoshomens(...).

Blasfêmia!Umadepoisdaoutra.Títulodo segundo capítulo: “Meu reinonão é destemundo”—palavras de

Jesus, identi cadas por Kardec como prova da vida futura, em outros planos.Títulodoterceirocapítulo:“HámuitasmoradasnacasademeuPai”—palavrasde Cristo, que, segundo Kardec, comprovariam a coexistência de mundosparalelos e habitados no espaço in nito. Título do quarto capítulo: “Ninguémpoderá ver o reino de Deus se não nascer de novo” — demonstração, paraKardec, de o quanto a reencarnação já era um dogma para os judeus, sob onomederessurreição.

FrasesassinadasporSantoAgostinho,SãoLuís,Lázaro,Fénelon,pelobispodeArgel e pelo cardealMorlot—depois demortos—pontuavama obra emmeioacitaçõesdeIsaías,SãoMateus,SãoMarcoseSãoLucas,eaexortaçõesassinadas pelo Espírito da Verdade, como esta: “Espíritas! Amai-vos, este oprimeiroensinamento.Instruí-vos,esteosegundo.”Eprosseguia:

Eisquedoalém-túmulo,quejulgáveisonada,vozesvosclamam:“Irmãos!Nadaperece.JesusCristoéovencedordomal,sedeosvencedoresdaimpiedade.”

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Naepígrafe,umaa rmaçãosemaassinaturadequalquerespírito:“Nãoháféinabalávelsenãoaquepodeencarararazãofacea face,emtodasas idadesdahumanidade.”

Em abril de 1864, o livro já estava à venda em toda a França, devidamenteanunciadonaRevistaEspírita:“Estaobraéparausodetodos.CadaumpodeaícolherosmeiosdeconformarsuacondutaàmoraldoCristo.”

Nomês seguinte— no primeiro dia de maio— a Igreja Católica deu umvereditosucintosobreaterceirarevelação:incluiutodasasobraspublicadasporAllan Kardec no índex da sagrada congregação.Os cristãos deveriammanterdistânciadesteslivros,contráriosaosprincípiosbíblicos.

Kardec reagiu ao veto com uma nova comemoração em assembleia naSociedade:

—Aessanotícia,amaioriadaslivrariasapressaram-seempôressasobrasemmaisevidência.

Alguns livreirosse intimidaram,sim,mas,emvezdese livraremdos livros,tomaramocuidadoderetirá-losdasprateleirasedecolocá-losatrásdobalcão,àdisposiçãodosinteressadosemconhecerobrastãopolêmicas.

A reação da Igreja não foi nenhuma surpresa para Kardec. Poucos mesesantesdapublicaçãodeImitaçãodoevangelhosegundooespiritismo —em9deagosto de 1863 —, ele recebera, também pelas mãos do sr. D’Ambers, umacomunicaçãopreocupantesobrearepercussãodoevangelhoespírita:

—Ocleroclamaráaheresia,porqueveráquenestelivroatacas rmementeaspenaseternaseoutrospontossobreosquaisapoiasuainfluênciaeseucrédito.

Quandoestamensagemfoiescrita,omédiumnãotinhaqualquerinformaçãosobreoconteúdodaobraaindaemelaboração.Kardecmanteveotemadolivroemsigiloatéomomentodapublicação.Umcuidadoquetomaraparaconfirmarseasmensagenssobreonovoprojetovinhammesmodos“mortos”.

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Adepender dos avisos do além, os ataques seriammuitos,mas a polêmicavaleriaapenamaisumavez:

—Osespíritasverãoseunúmeroaumentar,emrazãodestaperseguição,sobretudoaoverospadresacusaremdedemoníacaumaobracujamoralidadebrilharácomoumraiodesol...

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ONOVOBISPODEBARCELONA

Nodia31de julhode1864,umnovobispo assumiuo comandoda Igreja emBarcelona, palco do auto de fé de três anos antes. Enquanto seu antecessorpediaperdãopor seuspecados emmensagenspóstumasna SociedadeEspíritade Paris, dom Pantaléon Montserrat y Navarro mandava publicar um artigofuribundocontraoespiritismonojornalElDiáriodeBarcelona.

No pan eto, lamentava o “triste espetáculo” oferecido pelo espiritismo: aevocação dos espíritos invisíveis em antigas práticas de necromancia e o“monstruoso comércio” entre a luz e as trevas, a verdade e o erro, o bemeomal.

O bispo estava indignado com a repercussão alcançada pelos milhares deexemplares deOlivrodosespíritos emcirculaçãonaEspanhaempleno séculoXIX, “tão rico em descobertas sobre as leis da natureza e em experiênciascientí cas”. E citava o lósofo Pascal para explicar como tantas “fábulas”prosperavamentrehomensdebem:“Os incrédulossãoosmais levadosacreremtudo.”

Ridículos—eraassimqueobispode niaos“sonhosdamagiaeapariçõesdeespíritos”. E era com estas palavras que classi cava Allan Kardec, o “grandepropagadordestaseitademodernosiluminados”:“umsonhadordeimaginaçãoexaltadaeemdelírio.”

QueKardecdesistissedeestabelecerligaçõescristãsentreadoutrinaespíritaeafécatólica—obisponãoadmitiriaesteatentadoaocristianismo.ContraOlivro dos espíritos , tinha a Bíblia, as escrituras santas. Estava em Eclesiastes(XXI:5,7):“Asadivinhações,osaugureseossonhossãocoisasvãs,eocoraçãosofreessasquimeras.”

Para tentar deter os “delírios e quimeras” espíritas, o bispo baixou umdecreto:

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CondenamosOlivrodosespíritos, traduzidoemespanholsobotítulodeLibrode los espiritos(...).Proibimosasua leituraa todososnossosdiocesanos,semexceção,e lhesordenamosqueentreguemaseuscurasosrespectivosexemplaresquelhescaíremnasmãos,paraquenossejamenviadoscomtodasegurançapossível.

E ele nem tinha lido aindaA imitação do evangelho segundo o espiritismo ,semversãoemespanhol...

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QUESEABRAMASCORTINAS

Desta vez,Kardec preferiria não entrar empolêmica.Tinhamuito trabalho afazernascidadesondeerabem-vindo.Depoisdedescansardamaratonadoanoanterior,arrumouasmalasdenovoparaatenderaconvitesfeitospelosaliadosdeBruxelas e daAntuérpia.Por todo canto,nos bairrosmais populares enasregiões mais nobres da Bélgica, eram inauguradas novas associações espíritasdedicadasnãoaos“sonhosdamagiaedaapariçãodeespíritos”,masàcaridade.

Emumdestescentros,batizadodeAFraternidade,ossóciosseuniramparaoferecer roupa e comida aos necessitados, e patrocinar uma creche parafamílias de operários. Em outro grupo, o Amor e Caridade, associadospercorriam bairros da periferia para dar apoio espiritual ematerial em visitassemanais.

Kardec festejou a “revolução emmarcha” na região e se rendeu também aum fenômeno típico da fase de nida por ele como “jardim de infância doespiritismo”. Ele já tinha assistido a prodígios de muitas mesas e cestosencantados,masnuncatestemunharamesamaisligeira—emaishabilidosa—doqueadeummédiumdeAntuérpia.

Os ditados do além vinham a jato através dos três pés damesa. Cada umecoavaumasériedeletrasdoalfabeto:opénúmeroum,doAaoH;odois,doIao P; e o três, do Q ao Z. Três assistentes se desdobravam para contar aspancadas e convertê-las em letras — cada um atento a um dos pés. Umapancada, letra A, duas pancadas, letra B, e assim sucessivamente, de acordocomovelhométodo.

Havia, porém, uma novidade neste processo já um tanto ultrapassado: aspalavras se formavamde trásparaa frente.Eramditadasaoavessoegeravamtextosdeatévintelinhasemmenosdequinzeminutos,diantedetestemunhasperplexas.

Kardec,que jánãose impressionavacomfenômenoscomoeste, tratariade

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dividirseuentusiasmocomosleitoresdaRevistaEspíritanaediçãodeoutubrode1864:

Esta divisão de letras, aliada à cooperação de três pessoas que não se podem comunicar, àrapidez do movimento e à indicação das letras em sentido inverso, tornam a fraudematerialmenteimpossível.

Em Bruxelas, testemunhou outra manifestação extraordinária. Sem queninguém evocasse qualquer espírito, a médium, lápis à mão, pôs no papel aseguinte frase, escrita com letras trêmulas e graúdas: “Arrependo-me,arrependo-me.Latour.”

Sete pessoas acompanharama cena, oumelhor, uma sequência eletrizante.Logodepoisdeescreverasprimeiraspalavras,amédiumlargouolápiseentrouem transe. Com as feições crispadas, mãos enrijecidas, olhos arregalados deterror, passou a dar voz ao recém-chegado: um criminoso executado naguilhotina.

OqueLatourviaesentiadooutroladoatemorizouatodos.

—Piedade!Queéaguilhotinapertodoquantosofroagora?Nada.Essefogoquemedevoraépior;éumamortecontínua,éumsofrimentoquenãodeixatréguanemrepouso.Eminhasvítimasestãoaí, emvoltademim,memostramsuas feridas...Meperseguemcomoolhar.Eestemardesangue?Eesteouromanchadodesangue?Tudosangue.Ei-lasessaspobresvítimas;elasmeimploram...Eeu,sempiedade,firo...Firo...Firosempre.Osanguemeembriaga.

Oinfernoeraali.Kardec transcreveu o pedido de socorro do criminoso arrependido e o

divulgou como um alerta geral. Melhor fazer o bem para não se arrependerdepois.

EstaseriaamensagemcentraldeseusdiscursosemBruxelaseAntuérpia.O descrente poderia duvidar de tudo— da mesa eletrizante e da médium

transtornada—,masnãopoderiaquestionaracaridade.

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OSVISITANTESRUSSOS

De volta a Paris, Kardec recebeu a visita de dois jovens recém-chegados deMoscou. Estudiosos do espiritismo, bateram à porta da Sociedade Espíritaávidosporassistir,aovivo,àssessõesdescritasnaRevistaEspírita.

Desde a fundação da associação, sete anos antes, em 1857, cerca de 6milouvintes — devidamente avaliados e cadastrados por Kardec — foramadmitidos na instituição.Os russos seriam, sim, bem-vindos,mas precisariamtratar com os devidos respeito e discrição os fatos testemunhados nosencontrosdasemana.

Eramcincoda tardeeapenumbra tomavacontadosalãoprincipalquandoeles chegaram. Kardec os encaminhou a uma sala de recepção e admitiu queacompanhassem uma das primeiras consultas da noite. Um jovem operárioqueria conselhos domestre sobre como lidar com a própria mediunidade. JátinhalidoOlivrodosespíritoseOlivrodosmédiuns,massesentia,àsvezes,sobain uênciadeespíritosinferiores.Kardectranquilizouomédiumemformaçãodiantedosvisitantes.

Asensaçãoqueeleexperimentavaeranatural.Muitasvezesosmausespíritoschegavam antes dos bons. Se trabalhasse com seriedade e agisse comhonestidadeemoderação,logoestariaemboasmãos,amparadoporespíritosdeluz.

Após encerrar a consulta,Kardec pôde dar atenção exclusiva aos visitantesestrangeiros. Estava curioso por notícias sobre os avanços do espiritismo emMoscouesobreovínculodosdesconhecidoscomadoutrina.

Kardecnãosabia—nenhumespíritoo informara—,mas tudooqueaduplavisseeouvissenasededaSociedadeacabarianaspáginasdeum jornaldeSão

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Petersburgo, oDoukhownaia Beceda . O jovem operário, que acabara de sedespedir, seria descrito com as seguintes palavras no artigo dos“correspondentes”,publicadoemnovembrode1864:

A voz, o ar acanhado do moço, tudo denotava uma violenta agitação... Suas palavras nosrevelaramqueeraummédiumrecente,obsidiadopelaforçaimpuraquelhedavarespostassobamáscaradepurosespíritos...

Aconversaentreodiscípulotranstornadoeomestremoderadonãopassaria,segundoeles,deuma“comédiarepresentada”paraosimpressionar.

Os autores do artigo caram impressionados com a sionomia “bastanteagradável” do an trião e com a força de seus “olhos admiráveis”, capazes de“varar” o indivíduo. Com a voz calma, expressão tranquila, Kardec repetiu asrespostasquecostumavadaradúvidasrecorrentes.

Numfrancêssofrível,umdosrussosquissaber:

—Comodistinguirosbonsespíritosdosmaus?

Kardecrespondeuemtomsuave:

—Peloníveldasmensagensmoraisereligiosas.

Asegundaperguntafoimaisescorregadia:

—Eporqueelesnãosemanifestamsobrequestõescientíficasepolíticas?

Eomestrefoimaisseco.

—Osespíritosnãosemetememassuntoscomoestes.

Política, então, estava fora de cogitação no Império deNapoleão III, aindasobcensuraevigilânciaconstantes.

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Às oito da noite de uma sexta-feira, com o aval de Kardec, a dupla deMoscoutomoulugarnosalãoprincipal,diantedamesarecobertaporumpanoverde,ondejáestavamdispostoslápisa adosepáginasembranco,àesperadasmensagens do além. Na parede, uma estatueta com a imagem de São Luís,presidenteespiritualdaassociação,lançavaosolhossobreaaudiência.

Cercade setentapessoas, entre elas a atentaAmélie, ocupavamas cadeirasen leiradasdiantedamesaparaacompanharasessãoiniciadacomaleituradeumcapítulodeOevangelhosegundooespiritismo .Naquelanoite,aexpectativaeragrande:seaevocaçãodessecerto,umdosoitomédiunspresentescolocariano papel mensagens do recém-falecido sr. Bruneau, membro da SociedadeEspírita,antigoalunodaescolaPolitécnicaecoroneldeartilharia.

Kardec fezumdiscurso emhomenagemao companheiro—“homem livre,cheio de esperanças no progresso intelectual e moral da sociedade” —, e osilêncio tomou conta da sala até que amãode umdos comensais semovessesobreopapel.Ummédiumdescritoassimpelosespiõesrussos:

(...)umjovemcomcaradetrapaceiro,numapalavra,prontoporumquartoderubloadizerdecorpelomenosmeialibradetodasortedeabsurdos!

Através deste “trapaceiro”, o sr. Bruneau mandava notícias, saudava oscompanheirosedava testemunhoda“vidanova”noalém,massuamensagemnão mereceu qualquer citação no jornal de São Petersburgo. Para osespectadoresrussos,ovisitanteinvisívelnãopassavadeuma cçãocriadaparaentreteraplateia:

O público, na maioria de meia-idade, era característico: quase metade era de semiloucos. Agentemoça,extasiadaedesgrenhada,seguiaatentamenteosmovimentosdomédium.Láhaviacriaturastãocegamentecrentes,queatéerapecadorirdelas:sósepodialamentá-las.

Kardec recebeu o artigo logo após a publicação e lamentou não poderdenunciarosestrangeirosporcalúniaedifamação,comofarianaFrança.

Era por estas e outras que tentava controlar ao máximo o acesso deestranhosàSociedade.Masnemassimficavalivredetrapaceiroscomoaqueles.

Nemdeoutros...

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OMÉTODOEOSMÉRITOS

Perseguido por adversários e incensado por admiradores, Kardec agia comolíder do movimento, mas fazia questão de corrigir o papel que muitos lheatribuíam:odecriadorouinventordadoutrina.Seucrédito,repetia,eraoutro,o de organizador dasmensagens do além: “Vi, observei, estudei os fatos comcuidadoeperseverança;coordenei-oselhesdeduziasconsequências;eistodaapartequemecabe.”

Osfatos—enãohipóteses, insistia—con rmavamaexistênciadomundoinvisível e comprovavam a presença constante e a in uência permanente dosespíritossobrenós.Aconstataçãodequeavidacontinuavaatravésdostempose de que colhíamos o que plantávamos em existências anteriores conduziria,inevitavelmente,àreformamoraldahumanidade.Maiscedooumaistarde,osmaterialistassucumbiriamàsrevelaçõesdadoutrinaespírita.

Esta era a sua esperança. Esperança, não: convicção. Kardec transmitiacon ança para mobilizar as tropas, mas nos bastidores tratava de manterposturamaisdefensiva.

O espírito de Jobard, evocado mais uma vez na Sociedade Espírita, deutrabalho a ele e sua equipe em outubro de 1864. Uma sonâmbula em transetransmitira um conselho atribuído ao velho correligionário e endereçado aoutromédiumdaassociação:odestinatáriodamensagemdeveriacobrarpelasconsultasdosricosedoarodinheiroaospobreseoperários.

Kardecestranhouoconselhomercantilistaedecidiu,então,pôremaçãoseuprincipalmétodo de pesquisa: o de checar a autenticidade damensagem comdiferentesfontesaomesmotempo.

Seismédiunsforamacionadossemsaberquenãoeramosúnicoschamadosparaatenderaoseguintepedido:

— Tende a bondade de perguntar ao espírito do sr. Jobard se ele ditou à sra. X, em

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sonambulismo magnético, uma comunicação para outro médium, em que o aconselha aexplorarsuafaculdade.Necessitodestarespostaparaamanhã.

Pelas mãos do médium Leymarie, veio um redondo “não” em tom nadacomedido:

—Masquê!Então,carosamigos,omeunomeservedeplastrãoatodaespéciedegente.Hámuito estou habituado a esses plagiários sem vergonha, que me fazem, de vez em quando,mudardecorcomocamaleão.

Atravésdasra.Costel,outro“não”,estebemmaisponderado:

— Venho reclamar e protestar contra o abuso que fazem de meu nome. Os pobres deespírito—eoshámuitosentreosespíritos—têmofeiohábitodeapoderar-sedenomesquelheservemdepassaportejuntoamédiunsorgulhososecrédulos.

Umainterrogaçãoabriuarespostaintermediadapeloterceiromédium,osr.Rulle:

— Como poderia crer que aquele que, em todas as suas comunicações, recomendou acaridadeeodesinteressehojeviriacontradizer-se?

EumaprovocaçãodirigidadiretamenteaKardec—“meucaropresidente”—marcouamensagemescritapelosr.VézyeassinadaporJobard:

—Julgais-mecapazdeescreverasfrivolidadequevosleram?

Aenquete terminavacomoutrosdois “nãos” eumdesaforopostonopapelpelomédiumD’Ambel:

— Ora! Como há tantos bobos no mundo dos espíritos quanto entre vós — sem vosofender—,umbobopôdedaraoutroacomunicaçãosonambúlicaemquestão.

Oplacarterminaraem6x1.VitóriacomfolgaparaaorientaçãoqueKardec

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não se cansava de repetir aos médiuns: a de nunca, em hipótese nenhuma,cobrarpelotrabalho.

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OFABULOSOHILLAIRE

UmconselhoqueKardecrepetiria,porescrito,aumdosmédiunsemevidênciana época: o simplório camponês Hillaire, morador da pequena cidade deSonnac.Napresençadele,mesasecadeirassemoviamnoar,eobjetosdetodosospesosetamanhosflutuavamsobreascabeçasdeespectadoresestupefatos.

Paraosadmiradores,nãohaviadúvidas:Hillaireeraumprodígiocomparávelao impressionantemédium escocês Daniel DunglasHome, capaz de levitar ametrosdochão, emplena luzdodia.Paraos incrédulos, elepoderia, sim, sercomparadoaHome,masporsuacapacidadede ludibriaros incautoseganhardinheirocomseustruques.

Admirador deHome— a quemdedicara uma série de artigos elogiosos naRevistaEspírita—,Kardecacompanhoucomatençãoos feitosdeHillaireeosriscosqueo rondavam.Emcartas enviadas aoautordeOlivrodosespíritos , omédium relatara o sonho de lotar teatros maiores do que sua aldeia emanifestaraodesejodeseencontrarcomomestreemParis.

Kardecmantevedistância.Emvezdemarcarumencontro,enviouaojovemadmiradorumacartarepletadeadvertências.Eraprecisotomarcuidadocomoorgulho,avaidadeeaambição.Misturarmediunidadeedinheiroseriaumerrograve. O jovem deveria continuar no campo e abandonar os projetos de sairpelo mundo em turnês teatrais. Ele poderia, sim, prestar grandes serviços àcausadoespiritismo,masemsuaterra,aoladodafamíliaedosamigos.

Contrariado, Hillaire interrompeu a correspondência e, em pouco tempo,ganhoumaisdestaqueainda—agoranaspáginaspoliciaisdosprincipaisjornaisde sua cidade e arredores. Seu patrocinador mais devotado, o abnegadocomercianteespíritaVitet,denunciarao“médium”porfraudeao agraros osinvisíveisqueeleesuamulherusavamnas“sessõesdetransporte”atribuídasaespíritos. Indignado, Vitet foi à polícia e à imprensa para exigir a prisão dosfarsantes—Hillaireesuacúmplice—eadevoluçãoimediatadesuasdoações.

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O“médium” fugiuda cidade, eKardec recebeuemcasamaisumacarta sobreseus “prodígios”. Um pedido de socorro assinado por Vitet. Nacorrespondência, a vítima pedia ajuda ao diretor daRevista Espírita e a seusleitoresparalocalizarosforagidoselevá-losàcadeia:

Épreciso tirar-lhes todos os recursos, a mde que sejam castigados pela justiça dos homens.Espero tambémque a justiçadesseDeusdemisericórdia os castigue também,pois fazemumgrandemalaoespiritismo.OroaDeusparaquesejamdescobertos.

Kardecleuacarta,mas,emvezdepublicá-la,sentou-seàescrivaninhaparaproduzir uma resposta urgente. Em vez de defender a punição, pediu para avítimaperdoarofarsante:

NãoéumacontradiçãodevossapartedizerqueoraisaoDeusdemisericórdiapara fazercomqueosculpadossejampresos?Dirigir-lhesemelhantespreceséofendê-lo,éesquecer-sedequeeledisse:“Sereisperdoadocomotiverdesperdoadoaosoutros.”

EmvezdedarapoioaVitet,condenousuaindiscrição:

Tantoporcaridade,quantopelointeressequedizeisterpeladoutrina,deveríeisterfeitooqueestava em vosso poder para evitar o escândalo. Pela repercussão que destes a estes fatos,fornecestesarmasaosinimigos.

Vitet recebeu a carta e foi mais indiscreto ainda: anexou a resposta doprincipallíderdadoutrinaespíritaaoprocessomovidocontraHillaire.Otextoseria lidoemvozalta,emplenotribunal,quandooacusado, nalmentepreso,fosseajulgamento,emfevereirode1865.

Vinte testemunhas deram depoimentos em favor dos fenômenosprotagonizados por Hillaire. Representantes da Sociedade Espírita localdefenderam a realidade do “mundo espiritual” e a lógica da doutrina,independentementede fenômenos físicos.Umjuiz,o sr. Jaubert, tambémdeu

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seu parecer. Ele já presenciara, ao lado de amigos, levitações e transportesrealizados “à luz das lâmpadas e do dia”, comoos descritos por quem assistiuaos espetáculosdeHillaire.Nem tudoeramisti cação... Fraudesoperadasporumhomemnãopoderiamdesmoralizartodaumadoutrina.

O tribunal declinou da competência de apreciar “todos os transportes eoutros fatos medianímicos” atribuídos ao réu, mas — diante do testemunhoindignadodosr.Vitet—condenouomédiumaumanodeprisãoemultas,deacordocomosartigos336,337e338doCódigoPenal.

Apesar da condenação, o nal do julgamento foi festejado pelas liderançasespíritas—eporKardectambém:

O espiritismo não saiu apenas são e salvo desta prova: dela saiu com as honras da guerra. ÉverdadequeotribunalnãoproclamouarealidadedasmanifestaçõesdeHillaire,mas,aoafirmarserincapazdeavaliarosfenômenos,nãoasdeclaroufraudulentas.

EmcartapublicadadestaveznaRevistaEspírita,emmarçode1865,Kardecagradeceu aos correligionários pela defesa do espiritismo e declarou a crençanospoderes deHillaire, oumelhor, em sua “notável faculdade”. Ele teria sidoarrastado ao desvio e interrompido sua missão apenas por fraqueza. E quemseríamosnósparajulgá-lo?

Nãopodemoscondená-lonemabsolvê-lo!SóaDeuspertenceojulgamentoporelenãohavercumpridoatarefaatéofim.Irmãos,estendamos-lheamãodesocorroeoremosporele!

NenhumapalavrasobreVitet.

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AORAÇÃODEVICTORHUGO

Denúncias de fraudes como estas e os incessantes artigos irônicos publicadosnosjornaiscontraoespiritismonãoabalavamafédosadeptosmaisconvictos.O escritor e poeta Victor Hugo, por exemplo, continuava às voltas com ascomunicações intermediadas por mesas, cestos e mãos, e fazia questão dedeclararempúblicosuaconvicçãonasobrevivênciadoespírito.

Coube a ele fazer, emmaio de 1865, o discurso de despedida de Emily dePutron, uma jovem amiga de seu lho. Duas semanas antes, ela era a maiscomovidanocasamentodairmã.Agoraestavaali,dentrodeumcaixãolacrado,morta aos 22 anos, ela que fora “como um jardim de alegrias espalhado pelacasa”.

—Paraondefoi?Paraasombra?Não.Nóséqueestamosnasombra.Elaestánaauroradarecompensa.

VictorHugonãotinhadúvidasaoencararamortecomoavida.Oumelhor,com muito mais esperança, a julgar pelas frases ditas entre os túmulos docemitério:

—Abelezadamorteéapresença.Osmortossãoinvisíveis,masnãoausentes.Amorteéamaiordasliberdades.Éaascensãodetudooqueviveuaograusuperior.Ascensãodeslumbranteesagrada!

KardecrecebeuumacópiadodiscursoefezquestãodelerotextoemsessãonaSociedadeEspíritadeParis.Logoapósaleitura,amédiumCostelarrastouolápissobreopapel:

—Aspalavrasdopoetacorreramsobreestaassembleiacomoumsoprosonoro.Fizeramosespíritosestremecerem;evocaramminh’alma,queaindaflutuaincertanoéterinfinito!

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Depois de agradecer o poeta— “revelador da vida”—, a visitante invisívelmandoumensagensàfamíliasaudosa.

— Ó, minha mãe, minha irmã, minhas amigas, grande poeta! Não choreis mais, caiatentos!Omurmúrioqueacariciaosvossosouvidosémeu.Operfumeda orinclinadaémeuhálito.

Aofim,aassinatura:EmilydePutron.

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PARTEVII

CONTAGEMREGRESSIVA

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BALANÇODEVIDA

Muitomenosmágicaseramassessõessobreocaixadoespiritismo.Emjunhode 1865, mais uma vez, Kardec foi a público, em encontro na SociedadeEspírita,paraatualizarcontasereagiràsinsinuaçõesouacusaçõesdeque cavacadavezmaisricoàcustadadoutrina.

A doação de 10 mil francos, já declarada em 1860, motivara outros trêsdoadores a contribuir com a causa espírita: quinhentos francos entraram noscofresdaSociedadeem1862,edonativosdemile2milfrancossesomaramaelesnoanoseguinte.Totaldoado:13.500francos—ocorrespondenteapoucomaisdequatroanosdealugueldasededaassociação.

Estaseramascontasfáceisdefazeredeclarar.Asmaiscomplexas—equemais irritavam Kardec— eram as relacionadas às vendas de suas obras e àsassinaturas daRevista Espírita. As vendas superavam, sim, em muito, asestimativas iniciais do autor, mas estavam longe de torná-lo um milionário,comosedizia:

—Basta terum leveconhecimentodeassuntoseditoriaispara saberquenãoé com livroslosó cos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, pois sobre a venda de cada

exemplarsóserecebeodireitoautoraldealgunscêntimos.

OslucrosobtidoscomaRevistaEspírita—esta,sim,depropriedadedele—estariam em queda por dois motivos: o não pagamento de alguns assinantes(muitosdelesmoradoresdoexterior)easdistribuiçõesgratuitas,“pelobemdadoutrina”,aquemnãotinhacondiçõesdepagar.

Masquanto,en m, livroseassinaturasrendiamaKardec?Estenúmeroelenãorevelava:

—Imaginaiascifrasquequiserdes!

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Kardecevitavacomentar,mascompraraumterrenode2.666metrosquadradosna avenida Ségur, logo atrás da rua des Invalides. O negócio esgotou seusrecursos e ele precisou contrair um empréstimo de 50mil francos no CréditFoncier para concluir um projeto que também mantinha em sigilo: o deconstruir um asilo — com seis pequenas casas — para abrigar seu sucessor(aindasemnome)eosdefensoresmaisdevotados—emaispobrestambém—doespiritismo.

Deondevinhamosrecursosparaosinvestimentosimobiliários?Davendadesuasobras—eninguémtinhanadaavercomisso.

Os livros eram resultado de esforço seu, de noites maldormidas e ns desemana sacri cados, e aRevista Espírita, ele a mandou imprimir, desde oprimeiro número, sem qualquer apoio. E bastava ler cada edição para medirquantoesforçoequantotempoexigiamdeleostextospublicados:

—Nãovivoàcustadeninguém.Eoquefaçocomarendadomeutrabalho?Issoéoquemaispreocupacertagente.

Kardeccontinuavaamorarnomesmoapartamento,aoladodeAmélie,semtempo para quaisquer distrações. Uma vida sem lhos, dedicada a escrever ereescrever artigos e livros, entre viagensdedivulgaçãodadoutrina, sessõesnaSociedadeEspíritaerecepçãoavisitantesquenãoparavamdechegardetodososcantos,todososdias.

OsucessodeOlivrodosespíritosedeOlivrodosmédiuns rendera—eaindarendia—lucro,massuasdespesas,a rmou,cresceramnamesmaproporçãodesua responsabilidade e de sua projeção pública como principal divulgador dadoutrina.Sópararesponderatodasascartasdeleitoreselíderesdesociedadesespíritas, chegava a gastar, do próprio bolso, mais de oitocentos francos porano:

—Nãoexageroaodizerqueminhasdespesasanuais,queforamcrescendoincessantemente,foramtriplicadasdesdeolançamentodoprimeirolivro.

Os recursos gerados por suas obras o ajudavam a nanciar a dívida para a

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compra do terreno, a custear despesas extras em favor do espiritismo e apatrocinaras longasviagensdepromoçãodas ideiasespíritas.Nenhumfranco—garantia—foragastocomluxoseextravagâncias.Mesmoporque,porcontadasdi culdades nanceirasdavidadeprofessor,aprenderaaviverapenascomonecessário.

CertanostalgiamarcavaaquelediscursoproferidonasededaSociedade.A nal,oitoanos já se tinhampassadodesdeo lançamentodeOlivrodosespíritos e ametamorfosedoprofessorRivail emmestreAllanKardec.Aoolharpara trás,entendiamelhorporqueoinícioforatãoduroeporqueouviratantasvezesdoEspíritodaVerdadeospedidosparaquetivessecalmaenquantopenavacomafaltadedinheiro:

—Nãoteinquietes;Deussabeoqueteéprecisoesaberáprovê-lo.

Quantas vezes, enquanto se desdobrava como contador e professor, lerafrasescomoestasnasmensagensendereçadasaele?

Depois de tanta luta, tinha certeza de que— tivesse dinheiro de sobra nocomeço da jornada — teria desperdiçado os recursos. Como Jobard, oimpaciente,teriainvestidofortunasempublicidadeparapropagaroespiritismo,pordesconhecer ainda a in uência gratuitadosdivulgadoresmais in amados:osadversários.

Grato por campanhas espontâneas como a do auto de fé de Barcelona,Kardecavaliava:

—Elesseencarregaram,eseencarregam,delevarnossasideiasadiante.Nãopondograndesrecursos à minha disposição, os espíritos quiseram provar que o espiritismo não devia o seusucessosenãoasimesmo,àsuaprópriaforça,enãoaoempregodosmeiosvulgares.

Semanasantesdestediscurso,umamigoperguntaraaKardecsobreoquefaria

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se recebesse um milhão de francos como doação. Sua resposta reveloupreocupaçãocomotempodevidaqueaindateriapelafrente,ecomafaltadepossíveissucessoresaseuredor.

Uma parte desta fortuna, ele reservaria para transformar sua propriedadenumretiroespírita.Orestante,investiriacomo“rendainalienável”paramantera instituição, sustentar seu sucessor e os colaboradores, e patrocinar as“despesas correntes” do espiritismo, sem a necessidade de lançamento deprodutoseventuais—livros,porexemplo.

—Eisoqueeu faria.Masesta satisfaçãonãomeédadaepoucome importaqueo seja aoutros.Aliás,seique,deummodooudeoutro,osespíritosquedirigemomovimentoproverãoatodasasnecessidadesemtempohábil.Eisporquenãomeinquietoabsolutamentepor istoeme ocupo do que para mim é o essencial: a conclusão dos trabalhos que me restam porterminar.Feitoisto,partireiquandoaDeusaprouverchamar-me.

Aprestaçãodecontasde1865foitambémumbalançodevida.

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RECEITASDOALÉM

Kardecestavacansado,oumelhor,exausto.Sóosmaisíntimossabiam,mas,noiníciode 1865, sofreraumacidente cardiovascular grave e cara de camaporlongos dias, acompanhado de perto por Amélie e por ummédico invisível: ohomeopata Antoine Demeure, morto aos 71 anos, em 25 de janeiro daqueleano.

Os dois não se conheceram em vida, mas se tornaram íntimos quandoDemeure passou a se manifestar através dos médiuns da Sociedade Espírita.Cincodiasdepoisdesuamorte,veioaprimeiramensagem,umacomunicaçãofestivasobreasensaçãodeliberdadedo“outrolado”:

—Comosoufeliz!Nãomaisvelhonemenfermo.Ocorpo,esseeraapenasumdisfarce...

Logo após o distúrbio cardiovascular de Kardec, o médico enviou outracomunicação, em tom bemmais sóbrio e preocupado. Se ele, Demeure, nãoestivesse por perto quando a pressão deKardec subiu e seu coração ameaçouparar,ocodi cadorestariatão“livre”quantoelenoalém.Masaquelenãoeraomomentoadequadoparaestalibertação:

— É preciso, antes de partir, dar uma última demão às obras complementares da teoriadoutrinaldequeésoiniciador.

Kardecdeveriasecuidarparaconcluirsuamissão.Umdescuidopoderiaserpunido pela espiritualidade com rigor, a julgar pelo alerta assinado porDemeure:

—Se, por excesso de trabalho, tu antecipares a partida para cá, serás passível da pena desuicídioinvoluntário.

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Só depois de ler e reler esta mensagem Kardec decidiu se recolher sob oscobertores de seu quarto e abandonar a leitura das cartas e dos livros recém-lançadosquelotavamsuacaixapostal.

Umapausarápidaantesdeconcluirsuanovaobra.

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OCÉUEOINFERNO

Emsetembrode1865,Kardec anunciou,naRevistaEspírita, o lançamentodeseuquintolivro:Océueoinferno—ouajustiçadivinasegundooespiritismo.

O subtítulo era tãodetalhadoquantoosdasobras anteriores: “Contendo:oexame comparado das doutrinas sobre a passagem da vida corporal à vidaespiritual, as penas e recompensas futuras, os anjos e os demônios, as penaseternas;segundonumerososexemplosdasituaçãorealdaalmaduranteeapósamorte.”

Desta vez, porém, Kardec não atribuía a autoria do texto a espíritossuperiores e a colaboradores invisíveis.Dividido emduas partes, “Doutrina” e“Exemplos”, o livro era resultado de pesquisa e reunia inclusive históriasrecentesjápublicadasnasediçõesdaRevistaEspírita.

Velhos conhecidos dos leitores, como Jobard e Sanson, ressurgiriam naspáginas do livro como exemplos de “espíritos felizes”. Jacques Latour— quetambém enviara mensagens na sede da Sociedade — estava entre os“criminososarrependidos”.Personagensdonoticiáriotambémeramcitadosnocapítulo“Suicidas”,comaidentidadedevidamentepreservadaporKardec.

Onde esta gente feliz e infeliz estaria hoje? No céu? No inferno? Nopurgatório?Que“céu”eque“inferno”seriamestes,osdoespiritismo?

Semmedo de riscar domapa as imagens dos subterrâneos infernais e dasalturascelestiais,Kardecescrevia:

O infernoestápor todaparte emquehaja almas sofredoras eo céu está igualmente em todaparteondehouveralmasfelizes.

Anjos e demônios, tão caros à crença católica, seríamos todos nós eestaríamosemtodososcantos,“unidosacorposmateriais”:

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EssesseresconstituemaHumanidadequepovoaaTerraeasoutrasesferashabitadas;umavezlibertos do corpo material, constituem o mundo espiritual ou dos espíritos, que povoam osespaços.

Equemdecretaria,emprimeiraeúltima instância,odestinode todos?Nósmesmos—enãoumDeus todo-poderosoe,muitasvezes, implacávelapontodefazerarderospobrespecadores.

“A cada um, segundo suas obras”— palavras deCristo citadas porKardecantesdemartelarconceitosjáreveladosnasobrasanteriores:

Aleigeraléque toda falta terápuniçãoe todoatomeritório terárecompensa, segundooseuvalor.Areencarnaçãopodedar-senaTerraouemoutrosmundos,maisoumenosevoluídos.Osespíritossuperioressóseocupamdecomunicaçõesinteligentes,visandoainstruir-nos.

Ao citar longos trechos deO livro dos espíritos eO livro dos médiuns eresgatar histórias já publicadas naRevista Espírita, Kardec dava sinais decansaço.

E caria mais cansado ainda quando dois novos visitantes estrangeirosdesembarcassememParis:osfamososepolêmicosirmãosDavenport.

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DUPLADOBARULHO

Antes de desembarcar na França, no início de setembro, os jovens de NovaYork enviaram uma carta a Kardec. A exemplo do camponês Hillaire e deoutrosfenômenosemdestaque,buscavamoapoiododiretordaRevistaEspíritaparaadivulgaçãodeseusdonsedeseusespetáculos.Mais:achanceladoautordeOlivrodosespíritos serviriacomoumavalparaadupla,tantasvezesalvodeataquesesuspeitas.

Kardecosconheciadenome,éclaro,epreferiunãodarqualquerapoioaosforasteiros antesde conferir ao vivo seuspoderesmediúnicos,uma longa listade efeitos físicos já investigada pela comissão contratada pelo jornalBostonCourieroitoanosatrás:toqueespontâneodeinstrumentosmusicais,transportedeobjetosnoar,apariçãodemãosluminosas.

OsirmãosDavenportestavamnoaugedafamaedapolêmica,eeramtemade biogra a escrita por um jornalista inglês, dr. Nichols, recém-traduzida epublicada em Paris pelo renomado Didier, mesmo editor das obras de AllanKardec.

EfoiDidierquemfezquestãodeincluirnaversãofrancesadabiogra adoisanexos sobre o espiritismo:Resumo da lei dos fenômenos espíritas eOespiritismo na sua expressão mais simples , súmulas das principais ideiasdivulgadaspeloautordeOlivrodosespíritos ,Olivrodosmédiuns eOevangelhosegundooespiritismo.

Juntosnabiogra a,KardeceosDavenportcontinuariamseparadosnaFrança,apesar da longapermanência dadupla em território francês.Recém-chegadosde uma turnê barulhenta pela Inglaterra, os irmãos queriam descanso epassaram algumas semanas recolhidos no pequeno castelo de Gennevilliers,

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antesdevoltaremaospalcos.Aprimeirasessãopúblicados“médiuns”—eraassimqueseidentificavam—

foimarcadapara12de setembrode1865na elegante salaHertz.O“gabinetemediúnico” onde eles cavam con nados, totalmente amarrados, ao lado dediversos instrumentos musicais, foi instalado sob a luz de tochas e velas, nocentrodotablado,diantedeumpúblicoávidoporfenômenossobrenaturais.

Embreve, se tudodesse certo, sons celestiais e ruídos infernais sairiamdascordasdosviolinos,violõeserabecas,atravésdo“closetespiritual”,semqueosjovens tivessemquaisquercondiçõesde semover, atadosqueestavampornósapertadoseconferidosporumacomissãodeespectadores.

Espíritos seriam os responsáveis por aquele concerto mágico. Os uidosmagnéticos dos irmãos, de 24 e 25 anos, seriam usados pelos visitantesinvisíveisparaatuarsobreamatéria.

Kardecnãoestavanaplateiaparaconferir,masseria informado,namesmanoite,dodesfechodaquela“sessãomediúnica”.

Como acontecera em Liverpool, um dos espectadores saltou no palco,invadiuo“armáriomediúnico”erevelou,nofundodotablado,astábuassoltasporondepassariamassistentesdosembusteiros.Ointrusogritou:

—Eisotruque!

Esórestouàgerênciaaopçãodedevolverodinheiroaopúblicoparaevitaradestruiçãodoteatro.

*

Na edição de 15 de setembro doCourrier de Paris du Monde Illustré , ojornalistasedivertiucomasartesdos“bonsrapazes”ecomopoderdelessobreos“comparsassobre-humanos”:

Os irmãos Davenport tratavam esses espíritos — que a nal de contas não são seus

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empregados—comtantaliberdadequantoumdiretordeteatroditaregrasàssuascoristas!E para que tarefa convocavam essas infelizes almas de além-túmulo? Para as rebaixar a

saltimbancos! Para as obrigar a brincar com violões, esses instrumentos grotescos, que nemmais querem os trovadores que arrulham nos pátios, com os olhos em moedas de cincocêntimos!

Kardecleuoartigoeconcordoucomosprincipaispontosdotexto.Nenhummédium teria tanto poder sobre os espíritos. Espíritos elevados jamais sesubmeteriamaespetáculoscomoaqueles.E fenômenoscomoestes, atribuídosao mundo invisível, nunca poderiam ser comercializados com dia e horamarcados, com tanta regularidade e pontualidade. “Omédium caria àmercêde tais espíritos, quepodemdeixá-lonomomento emque suapresença fossemaisnecessária”—avaliouemartigonaRevistaEspíritadeoutubro.

Kardec só não concordava com a euforia dos adversários do espiritismo aoproclamarem, mais uma vez, a desmoralização da doutrina. O “revés” dosirmãos Davenport, segundo ele, causava prejuízos apenas à imagem dos“exploradoresdoespiritismo”.A loso aouciênciaespíritareal—devotadaàcaridade—estariailesa:

Oespiritismonão consiste em se fazer amarrarpor cordasnemnestaounaquela experiênciafísica.Oespiritismonãoestáencarnadoemninguém;estánanaturezaedeninguémdependedeter-lheamarcha,porqueosquetentamfazê-lotrabalhampeloseuavanço!

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DESPEDIDAESURPRESA

Nodia2dedezembrode1865,Kardecperdeuumdeseusaliadosmais éis:oeditorDidier. Integrante da SociedadeEspírita de Paris desde a fundação, em1858,eleseconverteraaoespiritismologodepoisdemergulharnaleituradeOlivro dos espíritos — que editou deste o início, em 1857—, e já se preparavaparaimprimiradécimaquartaediçãodaobra.

Na véspera de sua morte, participara de uma sessão na Sociedade. No diaseguinte, às seis da tarde, foi fulminadoporumaparada cardíaca, nomeiodarua,aalgunspassosdecasa.

AmorteserianoticiadacomcertaironianoPetitJournal .Amávontadedoredator em relação ao espiritismo era tanta que ele não resistiu a fazer oseguintecomentáriosobreaconversãodeDidier:

Nestesúltimostempos,osr.Didiereditaraosr.AllanKardecetornara-se,então,porpolidezdeeditor,ouporconvicção,umadeptodoespiritismo.

NoGrandJournal,otommaledicenteeraomesmo:

Nestesúltimos tempos,o sr.Didier era adepto—eoquemais vale ainda—eum fervorosoeditordoslivrosespíritas.

Opobrehomemdevesaberagoraaqueseaternasdoutrinasdosr.AllanKardec.

Kardecacompanhouoenterrodoamigoemsilêncio,eouviucríticaspornãoter feito o discursode despedida. Por que se calou enquanto o corpodescia àsepultura? Por que não aproveitou a ocasião para homenagear o editor e, aomesmotempo,proclamara“verdadeespírita”?

Sua justi cativa era bastante simples: não queria ser acusado de usar umacerimônia fúnebre como plataforma de divulgação. Muitos companheiros de

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Didier — diferentemente dos amigos dos nados Sanson e Jobard — nãotinham qualquer ligação com a doutrina e poderiam encarar um discursoespiritualistacomreservasoumesmoirritação.

Setomasseapalavra,Kardecteriadesermaiscomedidodoquedecostumeao expor sua fé na vida depois da morte e na sobrevivência do espírito. E ocomedimentopoderiaserperigosonaquelascircunstâncias.

Acaminhodocemitério,Amélieconcordaracomasponderaçõesdomarido.Areticênciadeleao longododiscursopoderiaser interpretadacomomedoouaté mesmo como uma espécie de negação dos próprios princípios. Melhorcalar-sedoquefalarabertamente.

O silêncio à beira do caixão foi recompensado em artigo emocionado naRevista Espírita, em janeiro de 1866, uma homenagem ao “comerciante” emquem sepodia con arde “olhos fechados”.Umhomemque encarava, sim, olivrocomoumnegócio,masnuncacommesquinhariaouparcimônia:

Eragrande, largo.Nãoeraonegociantedelivrosacalcularseulucrovintémavintém,masoeditorinteligente,justoapreciador,conscienciosoeprudente.

Eque lição tirar daquelamorte súbita e fulminante?Cuidado!Atenção!Deum instante para o outro, podemos ser chamados a prestar contas do “outrolado”:

Nossavidasemantémporum o,quepoderomper-sequandonãoesperamos.AssimamortefulminanteadverteaossobreviventesparaqueestejamsempreprontosaresponderaochamadodoSenhor,paradarcontadoempregodavidaquenosdeu...

Outro editor admiradoporKardec tornoua semanade lutomenos sofrida.MauriceLachâtre—aindaexiladonaEspanha,asalvodacensuradeNapoleãoIII — enviou pelo correio uma surpresa encadernada, com capa de couro etítuloimpressoemdourado:umaediçãoreluzentedoNovodicionáriouniversal.

Dois belos volumes, com 20mil guras gravadas emmadeira, ao longo dequatrocentosfascículos.Maisde400milobrastinhamsidoconsultadasnamaisvasta pesquisa realizada até então sobre osmais diversos assuntos: mitologia,teologia, história, ciências, física, química, astronomia, invenções, medicina,

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geografia,marinha,economiadomésticaemuitomais.Kardec coupasmocomaqualidadedaenciclopédia—quede niucomoo

“maisgigantescoempreendimento literáriodenossaépoca”—eentusiasmadoao ver a quantidade de parágrafos dedicados à doutrina espírita nos verbetes“Alma”,“Espírito”e“Reencarnação”.

Seu nome— aliás, Allan Kardec— era o primeiro na lista de “cientistas,artistas e homens de letras” consultados por Maurice e sua equipe napreparação da obra.Umdestaque festejado pelos admiradores domestre, quetratoudeexplicaromotivodetantaproeminência:aordemalfabética.

Admirávelparaele—isto,sim—eraveroespiritismodetalhado logoapósas “teorias de alma” difundidas por Aristóteles, Platão, Leibniz, Descartes eoutrosfilósofos:

Segundo a doutrina espírita, a alma é o princípio inteligente que animaos seres da criação elhesdáopensamento,avontadeealiberdadedeagir.

Nadaacorrigir.

Unido ao corpo material pela encarnação, o espírito constitui o homem; de sorte que nohomemhátrêselementos:aalmapropriamentedita,ouprincípiointeligente;operispírito,ouenvoltóriofluídicodaalma;ocorpo,ouenvoltóriomaterial.

Nenhumreparo.UmapenaDidiernãoestarali,aseulado,paraveretocaraquelesvolumes.

Ouestava?

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FELIZANO-NOVO

Noúltimodiade1865,orespeitado jornalLaDiscussion ,dedicadoapolíticaenanças em Bruxelas, reservou uma página inteira à “palavra da moda”:

espiritismo.Oartigointitulado“Oespiritismosegundoosespíritas”foilidoporKardeccomoumaespéciedepresentedeano-novo.

Nunca um jornalista demonstrara tanto respeito pela doutrina espírita. Otextocomeçavacomumresumodasinsinuaçõeseacusaçõesdesempre:

Algunspretendemqueoespiritismoéo truquedoarmáriodos irmãosDavenport.Outrosa rmamquenãopassadamagia eda feitiçariadeoutrora. Segundoas comadresde todososbairros,osespíritastêmpalestrasmisteriosascomodiabo.

En m, lendo-se os jornais, ca-se sabendo que os espíritas são todos uns loucos ou, pelomenos,vítimasdecertoscharlatães,chamadosmédiuns.

O jornalista colecionou estas de nições, mas não se contentou com elas.Paraentendermelhoroquetantosedebatia—eseatacava—,recorreraaumamigo simpatizante da doutrina, disposto a encarar os fenômenos mágicos.Queriaverasmesasgirarem,oscestosescreveremeosmédiunsentrarememtranseparadarvozaosmortos.

Nãoviunada,masescutouoamigofalar.Etratoudecolocarnopapel,semcríticasnem ironias, as frasesditaspelo companheiroespírita.MúsicaparaosouvidosdeKardec:

Oespiritismonãoé, comocreemvulgarmente,uma receitapara fazer asmesasdançarem.Oespiritismoéumaciência,oumelhordito,uma loso aespiritualista,queensinaamoral.Nãoéumareligião,desdequenãotemdogmas,nemculto,nemsacerdotes,nemartigosdefé.Suadoutrinase rmasobreaprovacertadaimortalidadedaalma.Éparafornecerestaprovaqueosespíritasevocamosespíritosdealém-túmulo.

Kardecleutodootextoembuscadeerrosenãoencontrouumavírgulafora

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dolugar.Pelaprimeiravez,fezquestãodeescreveràdireçãodeumjornalparaagradecer.

Nem todos os leitores do jornal caram tão felizes assim. Muitos enviaramcartas à redação para protestar e checar se oLa Discussion havia setransformadoemtribunadosuspeitoespiritismo.

A resposta da publicação soou como música, mais uma vez, para Kardec.Daquelediaemdiante—a rmavaadireçãoemeditorial—ojornaldestacariaespecialistasparaescreversobreespiritismo,assimcomoofaziacom nanças,política,arte,ciênciaeliteratura.Equemseriamestesespecialistas?

Asquestõesdoespiritismoserãotratadasporespíritas,comoasdearquiteturaporarquitetos,afimdequenãonosqualifiquemdecegosraciocinandosobreascoresequenãonosapliquemaspalavrasdeFígaro:“Precisavamdeumcalculistaetomaramumdançarino.”

SeestamodapegassenaFrança,avidadeKardecseriabemmaisleve.

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DENÚNCIASECONFISSÕES

Em Paris, os jornaisÉvénement, Opinion Nationale eGrand Journal aindarepercutiam — e festejavam — o vexame dos irmãos Davenport, e davamdestaque a novas revelações capazes de desmoralizar de vez o claudicanteespiritismo.

OentãocélebreatoringlêsSothem—conhecidopelaalcunhadeSticartemsessõesespíritasondeatuavacomomédiumdeefeitosfísicos—escreveraumacarta a um jornal de Glasgow em que dava detalhes sobre seus poderesmediúnicos.Eraumaconfissão.

Com a ajuda de um amigo americano bastante hábil, conseguira inebriar eiludir incautos por toda a América. Aparição de fantasmas, ruídos deinstrumentos, a assinatura de Shakespeare em mensagens shakespearianas,toques de mãos invisíveis pelos cabelos de espectadores apavorados — tudomentira! Oumelhor: tudomágica aplicada com habilidade e destreza, com acumplicidadedeassistentesocultos,semqualquerparticipaçãodeespíritos.

Kardec lia e relia as inúmeras reportagens sobre os falsos médiuns ereservava horas preciosas de seu tempo escasso a tentar separar o espiritismodestes farsantes. Uma tarefa difícil, por mais que repetisse seu mantra: averdadeira doutrina — moral, losó ca — sairia ilesa das denúnciasrelacionadasamerosfenômenos.

Oespiritismonãopodeserresponsávelporindivíduosqueindevidamentetomamaqualidadedemédium, assim como a verdadeira ciência não é responsável pelos escamoteadores que sedizemfísicos.

Parareconhecerosmédiunsautênticos,bastariaadotarareceitadomestre:eles nunca tiravam qualquer proveito “direto ou indireto, ostensivo oudissimulado” de seus dons. E, para evitar danos à imagem do espiritismo,

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bastava aos espíritas de verdade seguir as orientações básicas do codi cador:respeitaros espíritos e jamaisos explorar emexibiçõespúblicas;nuncausar amediunidade como meio de adivinhação; e, no caso dos médiuns curadores,conduzirostratamentosespirituaiscomomáximodeprudência,desinteresseediscernimento.

Estescuidadosajudariamnãosóapreservara idoneidadedadoutrinacomotambém a manter os espíritas longe dos bancos dos réus, sob a acusação decharlatanismo,má-féeexploraçãodacrendicealheia.

Eraquestãodefé,edesegurança.KardecviviatensoeAmélie cava,acadadia,maispreocupadacomasaúde

domarido.

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OESPIRITISMOINDEPENDENTE

ApilhadecartasarespondersobreamesaaumentavaeKardeceraobrigadoadar prioridade às mensagens mais preocupantes. De dentro de um dosenvelopes,saiu,emfevereirode1866,anotíciasobreoprojetodeumgrupodeadeptos da doutrina: o lançamento de uma publicação periódica intituladaJournalduSpiritismeIndépendant.

Independentedequeoudequem?—Kardecseperguntou,elogoencontrouaresposta:

Espiritismo independenteéo espiritismo libertonão sóda tuteladosespíritos,masde todaadireçãoousupremaciapessoal,detodaasubordinaçãoàs instruçõesdeumchefe,cujaopiniãonãopodefazerlei,desdequenãoéinfalível.

SófaltavaonomedeKardecnolugardapalavra“chefe”.Estavatudomuitoclaro.OJournalduSpiritismeIndépendantdariavozaum

grupo de espíritas empenhado em se libertar da in uência de mentoresespirituaisedasupervisãodomestre.

Nas reuniões promovidas por esses amotinados, já não se evocavamvisitantesinvisíveis.

O estudo da doutrina— das ciências, religiões e loso as em geral— eraconduzido pelos vivos e não pelos mortos. Cabia a eles chegar às própriasverdades, sem submissão a médiuns sempre falíveis, sujeitos a enganos eautoenganos,eaespíritossuspeitose,muitasvezes,superficiais.

Kardec leu e releu a carta, repleta de críticas às “banalidades da moral”repetidasporespíritosincapazesderevelarnovasverdades:

Discutiremos entre nós, buscaremos e decidiremos, em nossa sabedoria, os princípios quedevemseraceitosourejeitados,semrecorreraoassentimentodosespíritos.

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Confrontado por tantos ataques, omestremergulhou a pena no tinteiro eescreveu, a jato, uma longa resposta aos dissidentes. A irritação e o cansaçomarcaramváriosparágrafosdesuacarta:

Algum dia nos zemos passar por profeta oumessias? Levares a sério os títulos de sumosacerdote, de soberano pontí ce, mesmo de papa, com que a crítica houve por bem nosgratificar?(...)

Se outros puderem fazer melhor do que nós não iremos contra porque jamais dissemos:“Foradenósnãoháverdade.”(...)

Há instruçõesquenósdamos?Sim.Masninguémé forçadoa se submeter a elas.Devemlamentar-se de nossa censura? Jamais citamos pessoas, a não ser quando devemos elogiar, enossasinstruçõessãodadassobformageral,comodesenvolvimentodenossosprincípios,parausodetodos.(...)

Sepudesse—eseconviesse—,poderiatirardagavetaamensagemdecincoanosatrássobresuasucessão.Aqueletextoemqueo“autorespiritual”ode niacomoo escolhido e—mais—comoo “único emevidência”na conduçãodadoutrina.Masoquesigni cariaestarevelaçãoparaquemquestionavaosabereopoderdosespíritos?

Kardecproduziu sua resposta semprenocoletivo—como“nós”—e,maisumavez,atribuiuaosespíritosaresponsabilidadepeladoutrina.

Mas que espíritos? — questionavam os insurgentes na carta-manifesto.Como garantir que Santo Agostinho, São Luís e outras sumidades fossemmesmo os autores das mensagens escritas nas sessões da Sociedade? Comoa rmar,semquaisquerdúvidas,quetodosaquelestextosnãofossemobrasdosprópriosmédiuns?

Em sua mensagem aos editores doJournal du Spiritisme Indépendant , oautordeOlivrodosespíritosnãopediuparaqueosdetratoresexplicassemcomojovens simples como as irmãs Baudin foram capazes de pôr no papel textoselaborados,cominformaçõesinacessíveisaelas.

Queduvidassemàvontade!

Certamentenãopodemos saber,porumaprovamaterial, seo espíritoque se apresenta sobonomedePascalérealmenteodograndePascal.

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Àsfavasapreocupaçãocomaautoria:“Quenosimportasedizboascoisas?”E às favas também os deslizes ortográ cos e gramaticais identi cados em

mensagenspsicografadasassinadasporgrandesnomesdafilosofiaedaciência:

Cabe-nospesarovalordesuasinstruçõesnãopelaformadalinguagem—quesesabeporvezesmarcadapelocunhodainferioridadedoinstrumento(omédium)—,maspelagrandezaepelasabedoriadospensamentos.

Em sua longa carta-resposta, Kardec a rmou que os espíritas rebeladospodiam,sim,renegarsualiderança—elenuncaobrigaraalguémasegui-lo—,masseriaumerrofatalrenegarosespíritos.Umriscoparaadoutrina:

Ascomunicaçõesdosespíritosfundaramoespiritismo.Repeli-lasdepoisdeashaveraclamadoéquererderrubaroespiritismopelabase,tirar-lheoalicerce.

Se o espírita rejeitasse as mensagens dos espíritos, agiria como um cristãoquedesprezasseasliçõesdeCristo,sobopretextodequesuamoraleraidênticaàdePlatão:

Foramnessascomunicaçõesqueosespíritasencontraramalegria,consolo,esperança.Éporelasque compreenderam a necessidade do bem, da resignação, da submissão à vontade da vida;graçasaelas,jánãohámaisseparaçãorealentreeles(osvivos)eosobjetosdesuasmaisternasafeições(osentesqueridosmortos).

Enquanto escrevia, Kardec se acalmava, mas a paz durou pouco. Mesesdepois,umdessesdissidentesganhouforçaeprojeçãocomnomeesobrenome:J.-B.Roustaing.

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OSQUATROEVANGELHOS

Em 1866, nalmente viriam a público os quatro longos volumes da obraassinada pelo advogado de Bordeaux Jean-Baptiste Roustaing:Os quatroevangelhos.

Noprefácio,umadeclaraçãodegratidãoaKardecporseulivrodeestreia:

L iO livro dos espíritos. Nas páginas desse volume encontrei umamoral pura, uma doutrinaracional, emharmonia como espírito e progresso dos temposmodernos, consoladora para arazãohumana.

Como escreveu cinco anos antes em carta a Kardec, Roustaing descobriraummundonovonaspáginasdeOlivrodosespíritos :apluralidadedosmundos,aleidorenascimento—tudopassaraafazersentidoparaele.

Oumelhor: quase tudo. Porque, depois de reler a obra-prima domestre emergulharnaleituradeOlivrodosmédiuns ,uma guraaindaointrigava:JesusCristo. A “moral sublime” do lho de Deus estava traduzida com clareza etransparência nos textos de Kardec,mas quais seriam sua origem e naturezaespirituais?

(...) senti a impotência da razão humana para penetrar as trevas da letra e, desde então, anecessidadedeumarevelaçãonova,deumarevelaçãodarevelação.

ParasurpresadeKardecedemuitosdeseusaliados,Roustaingtransformoueste trecho do prefácio em subtítulo para seu livro,Os quatro evangelhos —revelação da revelação, e passou a proclamar novas verdades com o aval dequatro colaboradores tão in uentes quanto os coautores dos trabalhos deKardec:osevangelistasMarcos,João,MateuseLucas.

O quarteto teria ditado a ele, através da médium belga Émilie Collignon,

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informações preciosas e ainda inéditas sobre o lho de Deus. Em poucaspalavras:JesusteriavindoàTerraemum“corpo uídico”enão“emcarne”,eagravidez de Maria teria acontecido apenas “em aparência”. Outra notíciaatribuída aos contemporâneos de Jesus: a reencarnação—necessidade para aevoluçãodohomem,segundoKardec—serviriatambémàpuniçãodepecados,castigodivino, enãoapenas ao ciclo evolutivo e virtuosode nidoedefendidopelomestre.

Entre as revelações da revelação, uma má notícia para os espíritas maiscombativos,anunciadanoterceirotomodaobradeRoustaing,estudiosovorazdaBíblia:o futuroespiritualdahumanidadeestariana“IgrejadoCristo”enasmãosdopapa,“cheiodehumildade,comseucajadodeviajante”.

Paraosespíritasatentosadetalhes,omaisconstrangedoreraaparticipaçãode João Evangelista nestas revelações do além. Identi cado como um doscolaboradores deKardec emO livro dos espíritos , ele não poderia, ou deveria,avalizar informações tão con itantes como as expostas emOs quatroevangelhos.

NaobradeRoustaing,oDeusmisericordiosodoespiritismoeracolocadoemxeque; a dor de Cristo em suavia crucis era reduzida a uma encenação (nãoteria sofrido “na carne” todos os castigos); e o ciclo fundamental do “nascer,morrer,renascereprogredirsemcessar”tambémsaíaarranhado.

Na edição de junho de 1866 daRevista Espírita, Kardec daria seu parecersobreosquatrovolumespublicadosporRoustaing.

Comocuidadodenãomencionarotermo“revelaçãodarevelação”nemdequestionar os poderes da Igreja Católica, o codi cador da doutrina espíritalançou dúvidas quanto à tese central deOs quatro evangelhos : a natureza“agênere”,nãocorporal,deCristo.

Semnospronunciarmospróoucontraessateoria,diremosqueelaépelomenoshipotética,eque,seumdiafossereconhecidaerrada,emfaltadebase,todooedifíciodesabaria.

Duas linhasdepoisdedeclararquenãoo faria,Kardec tomouumaposiçãocontra:

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Sem prejulgar essa teoria, diremos que já foram feitas objeções sérias a ela e que, em nossaopinião,os fatos (sobre amorte e ressurreiçãodeCristo)podemserperfeitamente explicadossemsairdascondiçõesdahumanidadecorporal.

OdiretordaRevistaEspírita,aliás,consideravaaobramuitoextensa:

Anossover,limitando-seaoestritamentenecessário,aobrapoderiatersidoreduzidaadois,oumesmoaumvolume,eteriaganhoempopularidade.

Conselhodeumbest-seller.Nos bastidores, em conversas com Amélie e os colaboradores mais leais,

Kardecfoimenospolido.Roustaingcometeraumerrograve:odecon artodoseu texto a umaúnicamédium e, o pior, a uma ilustre desconhecida, a julgarporestafrasedeseuprefácio:“Otrabalhoiriaserfeitopordoisentesque,oitodiasatrás,nãoseconheciam.”

As mensagens atribuídas aos evangelistas não foram checadas com outrosmédiuns, e nenhum outro espírito — a não ser os dos círculos de ÉmilieCollignon— fora “ouvido” até a publicação das 2 mil páginas. Ométodo da“universalidade do ensino dos espíritos”, defendido por Kardec, teria sidoignorado,eoresultadoeraaquele.

Kardec guardaria na gaveta, até sua morte, mensagens do além bastantediferentesdasdivulgadaspeloadvogadodeBordeaux.Emumadelas, intitulada“Futurodoespiritismo”,oautorespiritualnãodeixavadúvidasquantoaopodereàresponsabilidadedoespiritismo:

—Cabe-nos reti car os errosdahistória e depurar a religiãodoCristo, transformada,nasmãosdospadres,emcomércioeemvil trá co.Instituiráoespiritismoaverdadeirareligião,areligiãonatural,aquepartedocoraçãoevaidiretamenteaDeus,semdependênciadaobradasotainaoudosdegrausdoaltar.

Amensagem terminava com um vaticínio nada condizente comOs quatroevangelhos:“AIgrejaatira-se,porsimesma,aoprecipício.”

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ATESTADOSDOALÉM

Outramensagem—esta,sim,divulgadaporKardec—tratavadeumtemamaisíntimo: sua saúde. Em 23 de abril de 1866, o médico homeopata Demeurevoltou a semanifestar atravésdeumdosmédiunsdaSociedadeEspírita, o sr.Desliens, para receitar repouso ao paciente estressado, saudado por ele como“meucaromestreeamigoAllanKardec”:

—Precisasderepouso,asforçashumanastêmlimitesqueodesejodequeoensinoprogridate levamuitasvezesaultrapassar.Estáserrado,porque,agindoassim,nãoapressarásamarchadadoutrina,masarruinarásatuasaúdeetecolocarásnaimpossibilidadematerialdeconcluiratarefaqueviestedesempenharnestemundo.

Demeure não falava apenas como médico. Era porta-voz de uma equipepreocupada:

—Souaquiodelegadodetodososespíritosquetãopoderosamentetêmcontribuídoparaapropagaçãodadoutrina,mediantesuassábiasinstruções.

A nova prescrição do além seria lida com alívio por Amélie, já cansada depedircalmaaomarido,enquantoelesofriadiantedosartigosaredigir, livrosaescreverecríticasarebater,entreviagens,visitasepalestrassemfim.

Aos 62 anos,Kardec queria acelerar o trabalho, lançarnovos livros e fazernovas revelações antes que fosse tarde demais e seu tempo na Terra seesgotasse.Umengano,segundooporta-vozdosespíritos:

—Dequeservecorrer?Nãotedissemosmuitasvezesquecadacoisaviráaseutempoequeos espíritos prepostos ao movimento das ideias sabem fazer que surjam circunstânciasfavoráveis?

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Uma das principais fontes de tensão de Kardec naquele momento seamontoavadiantedele,sobreaescrivaninha:umapilhademaisdequinhentascartasaindasemresposta.Demeureotranquilizou:

—Asuperabundânciaéumbemenãouminconveniente.(...)Aimensacorrespondênciaquerecebeiséparavósumafontepreciosadedocumentosedeinformações.

Eoquefazercomtantascartas?Nada.Arquivar.Osremetentes,informadosagoradaexaustãododestinatário,entenderiam.

Destavez,Kardecpublicouamensagemdodr.DemeurenaRevistaEspíritae,respaldadopelomédicodoalém,pediudesculpasaos“correspondentes”pelafaltaderespostas.Osaliadosteriamdeseconformar.

Para não correr o risco de ser punido por “suicídio involuntário”, Kardecrendeu-se ao descanso e, na noite de 24 de abril, foi surpreendido por umsonhomisterioso.

Aopassarporumaruadesconhecida,deparou-secomumgrupodehomensentretidos com uma conversa quase inaudível.No canto de uma parede, logoatrás, viu uma inscrição em letras miúdas, brilhantes como fogo, que seesforçou para decifrar: “Descobrimos que a borracha enrolada sob a roda fazumaléguaemdezminutospelaestrada(...).”

A frase foi desaparecendo, pouco a pouco, antes de Kardec ter tempo deconcluiraleitura.Aoacordar,eletraziaumasériedeinterrogações:

—O que signi caria aquela borracha capaz de fazer uma légua em dezminutos? Seria arevelação de alguma nova propriedade desta substância? Ela desempenharia algum papel nalocomoção? Querem pôr-nos no caminho de nova descoberta? Mas por que, então, sedirigiramamim,emvezdeaespecialistas, comtempopara realizarosestudoseexperiênciasnecessários?

As respostas viriam do além. Não através do sumido Espírito da Verdade,masemnovamensagemassinadapelomédicoDemeure:

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— O que vistes são encarnados que se ocupam, em diferentes partes do mundo, deinvenções destinadas a aperfeiçoar os meios de locomoção. Uns têm pensado na borracha,outrosemoutrasmatérias.Masoqueexistedeparticularnestesonhoéquequiseramchamar-vos a atenção, como objeto de estudo psicológico, para a reunião, num mesmo lugar, deespíritosdediferenteshomensdedicadosaomesmofim.

Estas reuniões de trabalho aconteciam com frequência quando os homensdeixavam seus corpos, durante o sono, para se encontrar, em espírito, emdiferentes pontos do planeta. Ao despertarem depois destas longasconfabulações sobre descobertas e invenções em comum, voltavam adesenvolversuaspesquisas,longeunsdosoutros.

KardecrevelouseusonhoemreportagemnaRevistaEspírita.Premonição?Não. Para os adversários,mera ignorância. Em 1840, Charles Goodyear já

descobrira o processo de vulcanização da borracha; cinco anos depois, osirmãos Michelin patentearam o pneu para automóvel; e, em 1847, Robertompson inserira, pela primeira vez, câmaras de ar em pneus de borrachamaciça.

Revelação?Sim, de acordo comos aliados.A nal, só vinte anos depois deste sonho, a

partirde1888,opneupassariaaserfabricadoemlargaescalanaEuropaenosEstadosUnidos.

NemmesmoemsonhoKardecestavalivredepolêmicas.

Efoienquantotentavadescansarque leuumnovoartigoassinadoporumdosprincipaiscríticosdoespiritismo,BertramBechamel,publicadonojornalOfficedePublicité,deBruxelas,emjunhode1866.OjornalistaexaminaraoarmáriodosirmãosDavenporteassistiraaumadesuasexibiçõesnoCírculoArtísticoeLiterário.

As mãos amarradas da dupla, os sons dos violões e pandeiros saídos dedentro do armário, tudo o entediara: “Preparativos demorados, ruídoaborrecido, tudopoucodivertido.Enadadeespírito,nemnosingularnemnoplural.”

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EfoicomestamesmamelancoliaqueeleleuOlivrodosespíritos:

SeuestilonãovaleodeBossuete,salvoascitaçõesfeitasdasobrasdoshomensilustres,olivroépesadoe,porvezes,comum.

Segundoo jornalista,haveria tantapresençadeespíritosnaobradeKardecquantonoarmáriodosDavenport.

NemopseudônimoadotadopeloprofessorRivailfoipoupadodecríticas.Deacordo com o colunista, o autor deO curso prático e teórico de aritmética eoutrasobrasdidáticas“fariamuitomelhor”seusasseonomedebatismo.

Kardec reservou tempo para responder ao ataque público e, logo no início,demonstrouestarbem-informadosobreseuadversário:

Permita-me perguntar-te por que assinas teus artigos como Bertram, em vez de EugèneLandois—oquenadadepõecontra suasqualidadespessoais,pois sabemosqueésoprincipalorganizadordacrechedaSaint-Josse-Tennoode.

Oque importava—apesarde todasascríticas—eraaconstataçãodeque,como gostava de repetir, o espiritismo estava no ar e, de vez em quando,arrebatavaadversáriosferrenhoscomoosr.Bertram.

No jornalLeSiècle, por exemplo, o jornalista Louis Jourdan— aquele que,quatroanosantes,exigirarespeitoàsuafaltadefé—assinou,nomesmomês,umacartadedespedidaaofilhoqueacabarademorrer:

Eutesintovivo,deumavidasuperioràminha,meuProsper;equandosoaraminhaúltimahora,eumeconsolareiemdeixarosqueamamosjuntos,pensandoquevouencontrar-teenosunirmos.(...)

Percebemos um ponto luminoso, para o qual marchamos resolutamente; esse ponto éaqueleondevives,meufilho,juntoatodosaquelesqueameiaquiembaixoequepartiramantesdemimparaavidanova.

Transtornadopelador,Jourdanpreferialutarpelodireitodecrer.

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ANECESSIDADEDOIMPOSSÍVEL

Para Kardec, 1867 começava em clima de balanço de vida e de movimento.Uma década já se passara desde o lançamento deO livro dos espíritos , e aRevistaEspírita estavaprestesacompletardezanosdepublicação,mêsamês,sem pausas e sem trégua. Uma tribuna permanente e uma linha direta decomunicaçãocomaliadoseadversáriosespalhadosportodoocanto.

Sob o título “Olhar retrospectivo”, Kardec enviou, através da revista, emjaneiro, umamensagem aos antagonistas, que encaravam o espiritismo comoum “fogo de palha”. Fogo de palha que já durava quase quinze anos, desde aprimeiranoite emqueoprofessorRivail vira comosprópriosolhosogirodamesaeomovimentodocestonacasadasra.DePlainemaison:

Aforçadeaçãodoespiritismoéatestadaporsuapersistenteexpansão.Eháumfatoconstanteneste avanço: é que os adversários do espiritismo consumiram mil vezes mais força para oabater,semoconseguir,doqueseuspartidáriosparaopropagar.

Aos aliados, rea rmou a orientação de deixar os fenômenos para trás e sededicaràcaridade:“Diantedobem,aprópriaincredulidadetrocistaserende,eacalúnianãopodesujaroqueestásemmancha.”

No entanto, o estrago provocado por embusteiros como os Davenport jáestavafeitoecontinuariaarepercutirnosjornaisdaépoca.

N oFrance, em fevereiro, o colunista se espantava com a “inexplicávelnecessidadedoimpossível”demonstradapelosespíritas:

Mostra-se-lhes o truque dasmesas girantes e eles creem; desvendam-se-lhes as imposturas doarmárioDavenport, e creemmais ainda; exibem-se-lhes todos os cordões, fazem-nos tocar amentiracomodedo,furam-lhesosolhospelaevidênciadocharlatanismoesuacrençasetornamaisencarniçada!

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Kardec recortava textos comoestes e se indignava comdescrições comoaspublicadas pelo jornalMessengerFranco-American , deNova York, emmarço.Em reportagem sobre uma convenção de adeptos do espiritismo, o jornalistaidenti cara em todos os homens e mulheres reunidos no evento a mesmaaparência:um“aspectodooutromundo”.

A palidez da pele, o emaciado do rosto, o profético devaneio dos olhos, perdidos num vagooceânico,taissão,emgeral,ossinaisexterioresdoespírita.

O tom da matéria intitulada “Sempre os espíritas”, noÉvénement, era omesmo.O jornalista JulesClaretiegarantia:quem fosse aqualquer reuniãodeespíritas—“numanoitededesocupaçãoecuriosidade”—encontraria“ gurasbizarras,comgestosdeenergúmenos”:

Comprimem-se, curvam-se sobre asmesas onde osmédiuns, com os olhos no teto, lápis namão,escrevemsuaselucubrações.

Claretiesesurpreenderacoma“promiscuidadedeclasseseidades”numdossalões lotados por “velhas de olhos ávidos e jovens fatigados”. Lado a lado,porteiros da vizinhança e grandes damas do bairro, alfaiates e laureados doInstituto,todosunidosparaouvirasmensagensdoalém...Equemensagens!

Ouvi Cervantes lamentar a demolição do teatro dos Dellassements-Comiques, e LamennaiscontarqueJeanJournetláeraseuamigoíntimo.AmaiorpartedotempoLamennaiscometiaerrosdeortografiaeCervantesnãosabiaumapalavradeespanhol.

O pior, para o jornalista, era que o espiritismo conquistava cada vez maisadeptosentreex-céticoseex-católicos:

Onúmerodosloucosaumenta!Odelírioécomoumaondaquesobe.Entãoqueluzháqueserachadaparadestruiressastrevasjáqueaeletricidadenãobasta?

Claretietalvezserebelassecontraoconteúdodemensagenspostasnopapel,

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na sede da Sociedade de Paris, em determinadas sessões. Frases soltas,pensamentos às vezes um tanto frouxos, assinados por guras notáveis e porilustresdesconhecidos.

Napoleão:

—Aguerraéumdueloquesócessaráquandooscombatentestiveremforçasiguais.

Newton:

—Aciênciaéoprogressodainteligência.

Balzac:

—Aencarnaçãoéosonodaalma;asperipéciasdavidasãoosseussonhos.

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ODOUTORACASO

Menos ilustre e bem mais íntimo de todos os frequentadores da SociedadeEspírita, um visitante invisível também mandou notícias em sessão públicanaquele ano: o ex-associado Charles-Julien Leclerc, vítima de um infarto, acaminhodoteatro,em2dedezembrode1866.

Kardec zeraodiscursodedespedidaaoamigo,nabeirado túmuloe,maisumavez,aproveitaraaocasiãopararea rmarafénasobrevivênciadoespírito.Morte?Não.Vidanova:

—Fostesunir-vosaoscolegasquevosprecederameque,semdúvida,vieramreceber-vosnosólio da nova vida; mas essa vida, com a qual vos identi castes, não vos deve ter causadonenhumasurpresa;nelaentrastescomonumpaísconhecido,enãoduvidamosdequeaígozeisdafelicidadereservadaaoshomensdebem,aosquepraticaramasleisdoSenhor.

Sessenta dias depois do enterro, Leclerc ressurgiu pelas mãos do médiumDesliensedesmentiuasprevisõesdeuma“vidanovasemsurpresas”.

—Oh!Fiqueisurpresocomeste minesperado!Eunãotemiaamortee,demuitotempo,aconsideravacomoo mdaprovação;masessamortetãoimprevistanãodeixoudemecausarumprofundochoque!Quegolpeparaminhapobremulher!(...)

Nemparaquemacreditavaerafácilmorrer.

Kardec dividia com seus leitores asmensagens do além e garimpava também,comaajudadecolaboradores,prodígiosque,segundoele,comprovariamavidadepoisdamorteea“pluralidadedeexistências”.

Um destes prodígios se chamava Eugénie Colombe e conquistava aadmiraçãodosmoradoresdeToulonporsuacapacidadede lereescreverederesponder às mais diversas questões de gramática, história, geogra a e

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aritmética—tudoaos2anose11mesesdeidade.Osnomesdoscincocontinentes,ascapitaisdetodosospaísesdaEuropa,a

história sagrada desde a criação do mundo até o dilúvio, os nomes esobrenomesquilométricosdosoitoprimeirosreisdaFrança.Erasóperguntareela respondia, enquanto brincava com suas bonecas e encantava o distintopúblicocomobrilhodeseusolhosazuis.

Eugénie era lhadeprofessora e acompanhavamuitas liçõesdadaspor suamãeemcasa.ParaKardec,porém,nãohaviadúvidas.Aprecocidadeintelectualrevelariaum“conhecimentoinato”,herançadevidasanteriores.

Outro prodígio quemerecia sua admiração— e também seu aval— já eraumacelebridadeemLondres:Tom,ocego.Esteeraseunomeartístico.Negro,analfabeto, lhodeescravosecegodenascença,Tomsurpreenderaospatrõesao correr para o piano, num dia de chuva, e repetir, nota por nota, semqualquer deslize, a sonata tocada pouco antes por uma das lhas do dono dacasa.

Dias depois, repetiu o feito ao dedilhar uma peça de Haendel, e chocou aplateia ao revelar o que ninguém via na sala enquanto seus dedos deslizavamsobreoteclado:

—Euovejo,éumvelhocomumaperuca.Eletocouprimeiroeeudepois.

Kardec colecionava histórias como estas e identi cava também, nosromancesmaispopularesda época, a fénomundodos espíritos.Nemo livroRobinsonCrusoé — lançado por Daniel Defoe, em 1719 — escapou de seuescrutínio.Comolápisàmão,elesublinhoudiversas“passagensespíritas”,quefezquestãoderecitarparaAmélie.

Comapalavra,RobinsonCrusoé:

Porvezesum impulsosecretonoslevaderepente,nummomentodegraveincerteza,atomartalcaminhoemvezdeoutro,quenosteriaconduzidoaoperigo.

ParaKardec,este“impulsosecreto”sópoderiavirdoinvisível,eoutrotrechodaobradeDefoeapontavanestadireção:

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Nunca é demasiado tarde para ser prudente e aconselho a todos os homens (...) a jamaisnegligenciaremessesavisosíntimosdaprovidência,sejaqualforainteligênciainvisívelquenô-lostransmite.

Aodescrever revelações de umde seus sonhos, RobinsonCrusoé foi aindamaislonge:

Comotais fatosmeforamrevelados?Porquesecretacomunicaçãodosespíritos invisíveismetinhamelestrazidoestasinformações?Éoquenãopossoexplicar.

Kardec chou todo o livro e recomendou sua leitura — ou releitura — atodososcompanheirosdedoutrina.

Outra leitura indicada com entusiasmo por ele foi a de um artigo recém-publicadonojornalLeSièclepelojovemastrônomoCamilleFlammarion,entãofuncionáriodoObservatóriodeParis.Nolongotexto,Flammariondescreviaodiálogo entre dois homens—Sitiens, vivo, e Lumen,morto— e colocava nabocado “saudoso nado”declarações endossadasporKardec: “Nãohámorte.(...)Nascemosparaavidafuturacomonascemosparaavidaterrena.”

Do “lado de lá”, livre das limitações do corpo físico, Lumen celebrava ossuperpoderesadquiridoscomamorte: “Avisãodaminhaalma temumpoderincomparavelmentesuperioraodosolhosdoorganismoterrestre.”

“Olhos bem abertos”, aliás, era o título de uma crônica policial publicada, emfevereirode1867,tambémnojornalLeSiècle,sobreumdosmédiunscuradoresdeParis.

Duas senhoras de Saint-Germain foram à polícia denunciar um ex-cozinheiro que abrira um consultóriomédicomuito concorrido na rua Saint-Placide.Ostratamentoserambastantesuspeitos,segundoasdenunciantes:semnuncareceitarmedicamentos,apalpavaospacientesàprocuradadoença,e,aoidenti car a sede da enfermidade, aplicava sobre o local as mãos em cruz,enquantoevocavaumespíritoinvisívelcapazdeextirparomal.

Os pacientes retribuíam com donativos em dinheiro, alguns bastante

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generosos.Ao vasculhar a casa, os policiais encontraram um testamento assinado por

umavelha senhora,proprietáriade terrasnasproximidadesdeFontainebleau,comumadoaçãode40milfrancosao“médiumcurador”.

“Certamente ele é um louco”—decretou o jornalista, antes de se lançar aumacontradição:

Masoqueháde extraordinário, de inexplicável, é queprovou, comoo constatao inquérito,que,poresteprocessosingular,curoumaisdequarentapessoasafetadaspordoençasgraves.

Kardec evitou tomar partido contra ou a favor do suposto médium, agorarecolhidoàprisão,masalertouos companheirosdaSociedadeeos leitoresdaRevista Espírita para o risco de se condenar alguém por preconceito ouignorância: “O inquérito constata as curas,mas,por elas serem realizadaspor‘meiosinexplicáveis’,acusaoréudelouco.”

Deacordocomestatese,Cristo—quecuravasemdiplomaesemremédios—tambémdeveriaservistocomo louco,escreveuKardec,antesderecorreràironia:“Muitagentepreferesercuradaporumloucodoqueserenterradaporumhomemdebomsenso.”

Por trás destas curasmisteriosas, estava em jogo uma polêmicamais grave: oexercício ilegal damedicina.A cura pelomagnetismo, pela águamagnetizada,pelaimposiçãodasmãos,pelaprece,“comoconcursodosespíritos”,deveriaserpunidacommultaseprisões?

Crime, de acordo com Kardec, seria o “curador” não diplomado receitarremédios.Eodesinteresse nanceironotório—consultasetratamentosfeitosdegraça—deveriapesarcomoatenuantenosprocessosjudiciais.

E como explicar as tais quarenta curas atribuídas ao ex-cozinheiro, porexemplo? Para os céticos, a resposta era simples: o próprio doente se curou.PossibilidaderechaçadaporKardecemmaisumadeclaraçãoirônica:

Dirãoque éo acaso; odoente foi curadopor si só. Seja!Mas entãoomédicoqueodeclarou

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incurável dava prova de grande ignorância. E depois, se há vinte, quarenta, cem curassemelhantes,ésempreoacaso?Melhor,então,dar-seaeleotítulodeDoutorAcaso.

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CHUVADEPEDRAS

No dia 20 de maio de 1867, oLe Journal de Chartres deu destaque a outranotícianadaanimadoraparaosespíritas.UmpedreirodacidadedeIlliersforacercadoporumamultidão—estimadaemsessentaouoitentapessoas—que,àluzdelampiões,berrava:

—Feiticeiro!Cachorrolouco!MalditoGrezelle!

Opedreiro,Grezelle,precisouserefugiarnosfundosdeumamerceariaparanãosersoterradopelachuvadepedraslançadasemsuadireção.Osmoradoresda cidade estavam indignados com as sessões que conduzia, todas as sextas-feiras,emSorcellerie,àsportasdeIlliers.

Nestasreuniõesespíritassemanais—a rmavaojornal—,eleevocavaalmasdeoutromundoerevelavaempúblicoinformaçõesnadalisonjeirassobrecertasfamílias.Estedissemedisse atribuído ao alémquase levaraumadas senhoraslocaisaosuicídio.

OdesesperodamulhercomeçouquandoGrezelle—de nidopelojornalista,com ironia, como “pontí ce” do centro— anunciou a punição que lhe seriadestinadapelas faltas cometidas até então: opurgatório.A condenadaouviuoveredito na sexta e, já no sábado, despediu-se dos parentes e vizinhos para aviagemsemvolta.

Estava à beira do rio, pronta para se lançar às correntezas, quando foicontidapelafamília.Estecasoteriageradotodaaquelamobilização.

O artigo terminava com uma manifestação de apoio aos “manifestantesindignados” de Illiers: “Eles saberão como liquidar com esta coisa. (...) Hádessascoisasquemorrem,espancadaspeloridículo.”

Dias depois, chegaria à redação do jornal uma longa carta assinada pelopedreiro. Ele con rmava os ataques e ia além: já fora vítima de outras

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perseguiçõesnacidade:

Duasvezesquasemorriapedradasecacetadase,aindahoje,sevoltasseàcidade,seriacercado,ameaçado,maltratado.Alémdaspedrasquechovem,enchemoardeinjúrias:louco,feiticeiro,espírita,taissãoasdoçurasmaisordináriascomquemeregalam.

Segundo o pedreiro, pai de dois lhos, o jornal acertou ao mencionar aviolência,mas errou ao dar crédito à história damulher. SegundoGrezelle, amá reputação da denunciante, “uma revendedora”, atormentada peloalcoolismo, era conhecida de todos, e ela jamais botara os pés numa sessãoconduzidaporeleouporqualquerliderançaespírita:“Seusinstintosalevamemdireçãocontrária.”

Porqueentãoeleseriatãoperseguido?Eraoqueseperguntavao“pedreiro-pontí ce”nacartaenviadaao jornal,poucoantesdearriscarumaresposta: sópodia ser vítima de discriminação e de um movimento orquestrado deperseguiçãoreligiosa.Estavaprontoaresponderaquaisqueracusaçõesdemá-fénajustiça,mastinha,sim,umaconfissãoafazer:

Quantoaserespírita,nãooescondo.Éverdade:souespírita.Meusdoisfilhos,jovensativos,corretose orescentes,sãoambosmédiuns.Umeoutrogostamdoespiritismoe,comoseupai,creem,oram,trabalham,melhoram-seeprocuramelevar-se.Masquemalhánisto?

Quando a cólera me diz que me vingue, o espiritismo me contém e me diz: “Todos oshomens são irmãos; faze o bem aos que te fazem omal.” E eume sintomais calmo emaisforte.

Kardecleuamatériadojornaleacartadopedreiro,epediuparaumamigo,o sr. Quomes d’Arras, morador da região, checar a situação. As notícias otranquilizariam.

O pedreiro, de 45 anos, era um trabalhador respeitado e se convertera aoespiritismohaviatrêsanos.Mesmodiantedosvisitantesmaiscéticos—emaiscatólicos—,falavacomentusiasmodesuareligiãoedefendiasemtemor,ecomveemência talvez acima do recomendável, a fé na vida depois da morte e nainfluênciadosespíritos.

Osr.QuomesD’ArrasvisitouopedreiroemLaCertellerie,a5quilômetrosde Illiers, ouviu seus desabafos e aceitou o convite para participar de uma

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reunião espírita em sua casa. Vinte pessoas — entre as quais o prefeito —acompanharamasessão,iniciadacomprecesretiradasdeOevangelhosegundooespiritismo.

Ao longo da noite, o pedreiro e seus dois lhos atuaram como médiunsescreventes, e a empregada da casa também deu voz a mensagens do além.Nada muito revelador nem preocupante, segundo a carta do sr. QuomesD’Arras:

Ascomunicaçõesemgeralsãofracasnoestilo,as ideiasaísãodiluídasesemencandeamento.Mas tudo somado nada há de mau ou de perigoso e tudo quanto se obtém nas mensagensedifica,encoraja,fortalece,levaoespíritoaobemouoelevaaDeus.

Como scal do movimento, Kardec se tranquilizou com as notícias e,munido das novas informações, escreveu um artigo para protestar contra os“atosselvagens”deIlliers.

No texto, publicado naRevista Espírita de julho de 1867, ele recomendoucoragemeprudênciaaosaliados.Eraprecisotomarcuidadoparanãofornecerarmas—oupedras—aosadversários.

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OFEITICEIRODECAUDERON

Masatemperaturasubianosarredores...E,nocentrodenovapolêmica,surgiuoutro “médiumcurador”, batizadopela imprensade “FeiticeirodeCauderon”,referência a um subúrbio de Bordeaux. Simonet era o nome dele e amarcenaria, sua ocupação no Château du Bel-Air, imponente construçãodestinadaabailes,banquetesenoitesdenúpcias.

Simonet cuidava damanutenção dochâteau edapreparaçãodosambientespara as cerimônias,mas impressionava os colegas por outro dom: o de curar.Bastavaumoperárioseferiroumanifestarqualquersintomadedoençaparaeleentraremcenacomsucessoadmirável.

Empouco tempo,doentesdebairrosvizinhos—eatédecidadespróximas— passaram a fazer la na porta do castelo em busca de socorro. Quando amédia de forasteiros diários se aproximou demil pessoas, os proprietários doChâteauduBel-Air,osBarbier,decidirammudarderamo.Oferecerammoradaealimentaçãoaomarceneironopalácio,epassaram,então,adistribuirsenhascomnúmerosdeordemporchegadaaosvisitantes.

Seriaumaboaideiaseassenhasfossemdistribuídasdegraça.Nãoeram.Osdezcêntimosiniciaislogodobrarameummercadoparalelodetráficodesenhasganhou força.Osmelhores lugares na la passaram a ser negociados por atévinte vezes o valor original. Em pouco tempo, um denunciante indignadochamouapolíciaeocasoparounotribunal.

No inquérito,omarceneiroSimonet foicitadoapenascomotestemunhadaexploração organizada pelos Barbier, sem licença para atuar num mercadocomoaquele,masnãoselivroudassuspeitasdepráticailegaldamedicina.

Perguntariaoprocuradorimperial,dandoinícioaodiálogo:

—Ondeaprendestesamedicina,sesoisumsimplesmarceneiro?—EmAllanKardec...—Queinstrumentoseremédiosusaisparapromoverestaspretensascuras?

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—Com todo o respeito, senhor, pareceis não conhecer a ciência do espiritismo; e eu vosaconselhomesmoaestudá-la.

Oprocuradorreagiuaoconselhocomumaacusação:adequeomarceneiroabusavadacredulidadepública.Umaprovadesteabusoseriaocego,conhecidopor todos, que não passara a enxergar um milímetro sequer depois desubmetidoaospassescuradoresdeSimonet.

O “Feiticeiro de Cauderon” não se intimidou e, como bom discípulo deKardec, estudioso de obras comoO livro dos espíritos eO livro dos médiuns ,explicou: a curanemsempreerapossível, eopoder sobre elanãopertencia aele, mas sim a Deus. Questões como “merecimento” do doente estariam emjogonestasrelaçõesinvisíveisentrepacienteemédium.

Umfato,porém,erainegável,eoacusadornãopoderiadesmenti-lo:quandoapolíciachegou,maisde1.500pessoasesperavamavezdeentrarnochâteau.

Opromotoradmitiria:

—Infelizmente,istoéverdade.

Emseguida,porém,ameaçaria:

—Seistocontinuar,tomaremosumadasduasmedidas:ouvoscondenaremosaquipormá-fé,ouoacusaremosdeloucuraetomaremosumamedidaadministrativacontravós.Éprecisoprotegeraspessoashonestasdaprópriacredulidade.

Diasdepois,Simonetinterromperiaassessões,paraalíviodosmédicoslocaisedesalentodosdoentessemrumo.

O marceneiro se retirava, o pedreiro era apedrejado, e a condessa deClérambert — conhecida também pelo dom de realizar curas milagrosas —desembarcava na sede da Sociedade de Paris, em setembro de 1867, para darseutestemunho.

Durantevinteanos,elaabriraasportasdeseupalácioemSaint-Symphorien-

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sur-Coise a doentes “incuráveis” abandonados pelos médicos. Neste período,perdeuacontadequantasvidassalvouedequantoscasosgravesdeepilepsiaeinfecçõesagudasconseguiureverter.

Sim, estudaramedicina durante toda a juventude e semantinha atualizada,atravésdos livros,sobreosavançosmédicosemmarcha.Mas,segundodiziamos pacientes, não era só o conhecimento técnico que amovia. Uma intuiçãopoderosaconduziaseusdiagnósticosetratamentos.

Namaioriadas vezes, a própria condessapreparavaosmedicamentos, comervasespeciais,semrevelara fontedasreceitas.Kardecnãotinhadúvidas:eraumamédiuminconscienteefaziapartedacategoriademédiunsmédicos.

Três anos depois de sua morte, a condessa estava pronta a revelar seussegredosatravésdomédiumDesliens.OpróprioKardecconduziuaevocaçãoea conversa com a visitante do além, em sessão testemunhada com atençãoespecialporAmélie,admiradoradavisitante.

Suspeitascon rmadas.Ajulgarpelodepoimentopóstumo,acondessa,muitocatólica, teve apoio constante de um “ser oculto que se dizia espírito” noatendimentodosdoentes.Efoielequemexigiudesuadiscípuladoiscuidados:silênciosobresuapresençaedesinteressematerial.

Kardec avalizouo testemunhoeusouaRevistaEspírita deoutubrode1867paraprevenireadvertiros“médiunscuradores”:

A faculdade domédium curador nada lhe custou; não lhe exigiu estudo, nem trabalho, nemdespesas;recebeu-agratuitamente,paraobemdosoutros,edeveusá-lagratuitamente.

Ele não se cansava de aconselhar, advertir, prevenir, mas não conseguiaevitarnovasenovasdenúnciasepolêmicas.

Cada vez mais exausto e abatido, Kardec ia em frente, estimulado — eaconselhado—pormensagensdoinvisívelqueguardavanagaveta.

Uma delas chegou no m de 1867 pelas mãos do médium Didier. Kardecdeveria reduziracorrespondênciacomos leitoreseapublicaçãodeartigosnaRevista Espírita para concluir o próximo livro e publicá-lo “sem demora”. A

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mensagem,novamenteassinadapelopreocupadomédicoDemeure,davapistassobreopedidodeurgência.

UmdosprincipaisriscosparaotérminodaobraseriaasaúdedeKardec.Seutempo se esgotava, e nenhum médium curador ou médico médium poderiareverterestacontagemregressiva.

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AGÊNESE

Em janeirode1868, começarama circularpelasprincipais livrariasdaFrançaosexemplaresdanovaobraassinadaporAllanKardec.

Mais uma vez, o professor fez questão de ser o mais didático possível naapresentação de seu livro:Agênese—ouosmilagres e as predições segundooespiritismo.O longo subtítulo estampadona capa resumia, emalgumas linhas,os conceitos-chaves do texto: “A doutrina espírita é o resultado do ensinocoletivoeconcordantedosespíritos.Aciênciaéchamadaaconstituiragênesesegundo as leis da natureza. Deus prova sua grandeza e seu poder pelaimutabilidadedesuasleis,enãopelasuspensão.ParaDeus,opassadoeofuturosãoopresente.”

AGênese soava,emmuitostrechos,comoumresumodas ideiascentraisdesuas obras anteriores, uma repetiçãode conceitos já tantas vezes dissecados edefendidos.

OvelhoprofessorRivail—estudiosodaquímicaedabiologia—irrompia,devezemquando,emliçõesbásicascomoesta:

Dois elementos, ou se quiserem, duas forças regem o universo: o elemento espiritual e oelementomaterial.Daaçãosimultâneadessesdoisprincípiosnascemfenômenosespeciais,quesetornamnaturalmenteinexplicáveis,senãolevarmosemcontaumdeles,exatamentecomoaformaçãodaáguaseriainexplicávelsedesprezássemosumdeseusdoiselementosconstituintes:ooxigênioeohidrogênio.

Kardec cava indignado quando alguém se referia às manifestações dosespíritos como fenômenos sobrenaturais. Onde os materialistas apontavamfraudeouilusão,identificavaciênciaefilosofia:

Aonosrevelaromundoinvisívelquenoscerca,nomeiodoqualvivíamossemdissosuspeitar,assimcomoas leisqueoregem,suasrelaçõescomomundovisível,anaturezaeoestadodosseresqueohabitame, por conseguinte, odestinodohomemapós amorte, [o espiritismo] é

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umaverdadeirarevelaçãonaacepçãocientíficadapalavra.

Pelo espiritismo, nalmente, o homem soube de onde veio, para onde vai,porqueestánaTerraeporqueésubmetidoatantasprovasedores.

Neste livro — o último que publicaria —, Kardec listava, com concisão eespíritodidático,asrevelaçõesbásicasdadoutrina:

Aalmaprogrideincessantemente,atravésdeumasériedeexistênciassucessivas,atéquetenhaatingidoograudeperfeiçãoquepodeaproximá-ladeDeus.(...)

Sobreagênesedetodosnós,outrasinformaçõessucintas,capazesdeatenuar—eatéjustificar—opesodesofrimentosouinjustiçasbrutais:

Todas as almas nascem iguais, com aptidão para progredir em virtude do seu livre-arbítrio.Todasasalmassãodamesmanaturezaesóháentreelasadiferençadoprogressorealizado.

Porestalógica,colhemosoqueplantamos,movidospornossolivre-arbítrio,deacordocomasleisdecausaeefeito,açãoereação:

Como depende de cada um o seu aperfeiçoamento, cada um pode, em virtude do seu livre-arbítrio,prolongarouabreviar seus sofrimentos, comoodoenteque sofrepelos seus excessosenquantonãoparadepraticá-los.

Em outros capítulos do livro, sinais da exaustão de Kardec e de uma certanostalgia dos tempos de Rivail. No capítulo IX, por exemplo, uma aula degeogra a,comparágrafosdisponíveisemqualquerlivrodedicadoaoestudodosfenômenosgeológicosprovocadospelo fogo epela águana trajetóriadogloboterrestre.

Kardecprecisavadescansar,masnãodescansava.Novosadversários,comooabadePoussin,continuariamaincomodar.

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OBRADESATÃ

Ano de 1868: onze longos e turbulentos anos já se tinham passado desde olançamento deOlivrodosespíritos , em1857,mas o abadePoussin, professorno seminário deNice, ainda de nia a doutrina como “obra de satã” em livrorecém-publicado:O espiritismo ante a história e a Igreja — sua origem, suanatureza,suacerteza,seusperigos.

Kardec leu e chouaobra, e se surpreendeuaoveropároco reconheceropoderdadoutrinasatânica:

Oespiritismo,éprecisoreconhecê-lo,envolvecomonumaimensateia,eporseusprofetas,porseus oráculos, por seus livros e por seu jornalismo, esforça-se porminar surdamente a IgrejaCatólica.

Outra a rmação surpreendente atribuía ao espiritismo uma espécie deparceriacomaIgrejaCatólicanaguerracontraadescrença:

Seoespiritismonosprestouoserviçodederrubaras teoriasmaterialistasdoséculoXVIII,dá-nosemtrocaumarevelaçãonova,queameaçapelabasetodooedifíciodarevelaçãocristã.

O padre demonstrava preocupação com a “força da ignorância e dafascinaçãoqueexcitaacuriosidade”,elevavaoscatólicosa“brincardiariamentecomoespiritismo,semsepreocuparemnadacomosseusperigos!”.

Era preciso, sim, tomar cuidado e manter distância das manifestaçõesdiabólicasprovocadasporatosdesatinadoscomoode“interrogarmesas”.

Kardec reagiu ao livro com um artigo publicado na edição de março daRevista Espírita, em que aconselhava o pároco e seus leitores a lembrar aspalavrasdomonsenhorFrayssinousnassuasconferênciassobrereligião:

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Umdemônio que procurasse destruir o reino do vício para estabelecer o da virtude seria umdemônioesquisito,porquesedestruiriaasipróprio.

Quem,depoisdamortedeKardec,estariaapostospararesponderaataquescomoesteeparapedirpazebomsensoaosadversários?

Em 1868, Kardec começou a tirar da gaveta e a tornar públicas algumasmensagensatéentãoconfidenciais,assinadaspor“reveladores”célebres,atravésdediversosmédiunsdaSociedadedeParisedeoutrasassociaçõesespíritas.

Em textopsicografadoem1861,São Joséanunciavaa chegadadeumnovomessiasàTerraecelebravaoespiritismo:

—Jávosfoiditoqueumdiatodasasreligiõesconfundir-se-ãonumamesmacrença.Glóriaaoespiritismoqueoprecede(achegadadomessias)equevemesclarecertodasascoisas!

O escritor católico François Fénelon — cuja obra-prima,Telêmaco, oprofessor Rivail vertera para o alemão— também semanifestara, nomesmoano,paraabrirosolhosdeKardeceseusadeptos:

—Acorrupçãonoseiodasreligiõeséosintomadesuadecadência(...)porqueelaéoíndicedeumafaltadeféverdadeira.

Erasto pedira a palavra para proclamar, mais uma vez, a importância dasolidariedade:

—Nelaseencontraessamáximasublime:“Umportodosetodosporum.”Eis,meus lhos,averdadeiraleidoespiritismo,averdadeiraconquistadeumfuturopróximo.Marchai!

Osespíritasmarcharamnosúltimosanos,céticosecatólicosseconverteramànova religião,mas os ataques da Igreja persistiam e situações constrangedoras— de seis ou sete anos atrás — voltavam a acontecer, para indignação deKardec.

Num vilarejo vizinho de Lyon, o pároco da cidade bateu à porta de uma

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ovelhadesgarradaaodescobrirqueandavaocupadacomaleituradeOlivrodosespíritos.Aosberros,comosediscursassenumpúlpitoparaamultidãode éis,ameaçouavelhasenhoradenãoenterrá-laquandosuahorachegasseeexigiuaentregadolivrosatânico.

Depoisdeserecuperardosusto,aleitorabateriaàportadopárocoparapediro livro de volta. O exemplar lhe pertencia— argumentou— e seria difícil einjusto terdecompraroutro.Contrariado,opadredevolveuovolumeàdona.Oumelhor,oquerestavadele,agorarepletoderasuras,anotaçõesfuribundaserefutaçõesdetodootipo.

Ao lado do nome de cada espírito “santo” identi cado como fonte dasrevelações,opadreescreveuuminsulto:mentiroso,demônio,estúpido,herege.

A própria senhora narraria o drama a Kardec, através de carta, e seproclamaria mais espírita do que nunca depois de ouvir tantos impropérios:“Perdoai-lhe, Senhor, porque ele não sabe o que fez. De que lado estava overdadeirocristianismo?”

Kardecentãoselembroudopárocoque,anosantes,convocaraapopulaçãoaentregartodasasobrasespíritasquetinhaemcasaparaque,juntos,numabelacelebração cristã, alimentassem uma imensa fogueira na praça pública. Ficousemcombustívelparaofogo.

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AVISITADOCURABIZET

Emmaiode1868,KardecabriuasportasdaSociedadeaumvisitantedebatina:o cura de Sétif, Bizet,morto ummês antes, aos 43 anos, vítima de cólera.Orecém-chegadoestavaprontoadarseutestemunhodoalémpelasmãosdeumdosmédiunspresentes.

À frentede suaparóquia,Bizet sempre evitara atacaro espiritismo,mesmosobordensdobispodeArgel,monsenhorPavie, quede nia adoutrina como“esta nova vergonha da Argélia”. Em vez de combater as ideias e os valoresdifundidos por Kardec, e adotados também pormuitos de seus éis, Bizet sededicava,nashorasvagas,adistribuiralimentosecobertoresavítimasdafomeedofrioemsuaregião.Foinumadessascampanhasquecontraiuadoença.

Logoapósachegadadovisitanteinvisível,Kardecfoidiretoaoassunto:

—Erasespíritaemvida?

Quemesperavaumacon ssãodefé,oudeconversão,decepcionou-seaoleramensagempsicografada:

—Seentendeisporestapalavraaceitartodasascrençasquevossadoutrinapreconiza,não.

Mas o cura Bizet se recusava a alimentar a intolerância e encarava compragmatismoanovareligião:

—É preferível ter uma crença que leva à caridade e à prática do bem, do que não a terabsolutamente.

Antesde sedespedir,opárocoretomariaapergunta inicial e escapariapela

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sacristia:

—Eraeuespíritadefato?Nãomecabepronunciar-mearespeito.

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UMAFELICIDADE

Os jornalistas doLa Solidarité foram mais assertivos ao tomar a defesa deKardec, apesardenão seproclamaremespíritas.Emartigopublicado tambémemmaio, o jornal de niu como “uma felicidade” o fato de o espiritismo terencontrado “um chefe” como o sr. Allan Kardec, capaz de mantê-lo “noslimitesdoracionalismo”:

Teria sido muito fácil, com toda essa mistura de fenômenos reais e de criações puramenteilusórias,deixar-searrastarpelaatraçãodomilagreepelaressurreiçãodevelhassuperstições!

Kardec, segundo a publicação, livrara a doutrina deste risco ao investir em“sínteseseprocessosdepesquisacientíficoseracionais”.

Eleagradeceu,enãoresistiuapublicaroartigoelogiosoemsuarevista.Queseus sucessores— fossem quem fossem— tentassemmanter a doutrina nostrilhosdarazãoedaprudência.Porqueosataquessesucediamecontinuavamavirdetodososlados.

AtémesmodoplenáriodoSenadofrancês,deondeocomissáriodogoverno,Genteur,convocouoscorreligionáriosasepreveniremcontraosavançosdeumnovopartido:oPartidoEspírita,cadavezmaisin uenteentreosadversáriosdoImpério.

Osadeptosdestegrupoorganizadoestariamàfrente,oumelhor,portrásdapetiçãodeSaint-Étienne,encaminhadapeloSenadoaogoverno,comdenúnciascontra as tendências materialistas da Escola de Medicina e as in uênciasnegativasdabibliotecadaComuna.

Em pouco tempo, o discurso do senador ecoou pelos principais jornais daFrança, e Kardec teve de proclamar, mais uma vez, o caráter pací co da“doutrina losó ca moralizadora”, que em momento nenhum se organizaracomoumpartidodequalquerespécie:

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Oespiritismoéumaideiaquesein ltrasemruídoe,seencontranumerososadeptos,éporqueagrada.Jamaisfezreclamesnemquaisquerexibições;fortepelasleisnaturais,nasquaisseapoia,vendo-secrescersemesforçosnemabalos,nãovaienfrentarninguém,nãovaiviolarnenhumaconsciência.Dizoqueéeesperaqueaelevenham!

NoconceituadoLeSiècle,oespiritismomereceuumcapítuloespecialnasérieintitulada “Toda Paris”. Depois da “Paris artista” e da “Paris gastronômica”,entravaemcenaa“Parissonâmbula”,retratadaemartigoassinadoporEugèneBonnemère,autordoRomancedofuturo.

Para ele, a “mais elevada” forma de sonambulismo seria o espiritismo, que“aspira a passar ao estado de ciência”. Kardec arquivou o artigo e aprovou asdefiniçõesfeitaspeloescritor:

Espiritismo é a correspondência das almas entre si. Segundo os adeptos dessa crença, um serinvisível se põe em comunicação com um outro, chamado médium, que goza de umaorganização particular, que o torna apto a receber o pensamento dos que viveram e que oescreve, quer por um impulso mecânico inconsciente, imprimindo à mão, quer por umatransmissãodiretaàinteligênciadosmédiuns.

Textos como este estimulavamKardec a seguir adiante, apesar de todos osataques. Era uma vitória ler a rmações como estas assinadas pelo mesmoBonnemère:

Não, amorte não existe. É o instante de repouso após a jornada feita e a tarefa terminada;depois,éodespertarparaumanovaobra,maisútilemaiordoqueaqueseacabaderealizar.

Mas Kardec não conseguiu disfarçar o incômodo e a irritação ao ler, nomesmoLaSolidarité, umnovoartigo sobre adoutrina, bemmenos respeitosodoqueoprimeiro.

No texto, o autor se recusava a acreditar na intervenção de espíritos nosfenômenos fundadores do espiritismo: as mesas girantes e os cestosescreventes. A eletricidade ou mesmo a ação direta dos supostos médiunsseriamresponsáveisportodoaquelefrenesi.

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A velha polêmica, de quinze anos atrás, já entediava o autor deO livro dosespíritos.Kardecpoderia repetiroque jádisserae escrevera incontáveisvezes:como explicar a presença de informações desconhecidas pelos médiuns nasmensagens telegrafadas pelos objetos? E como justi car que milhões deobservadores esclarecidos — médicos, engenheiros, magistrados — dessemcrédito, em todo o mundo, a fraudes ou ilusões, segundo o jornalista, tãopatentes?

Desta vez, evitaria se alongar nas respostas. Preferiu recomendar a todos aleituradeAgênese,seumaisnovobest-seller.

Tinhamais o que escrever: um longo discurso a ser lido em assembleia naSociedadedeParis,duranteaSessãoAnualComemorativadosMortos.

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OTESTAMENTO

Amélie foi a primeira a ouvir o texto escrito pelo marido, sob o título “Oespiritismoéumareligião?”.

Kardec insistia na velha resposta: não. Uma religião organizada exigiria arealização de cultos e envolveria uma “casta sacerdotal com seu cortejo dehierarquias, cerimônias e privilégios”. E o espiritismo deveria ser encarado eadotadocomouma“doutrinafilosóficaemoral”.

Olaçoestabelecidoentreosespíritasnãodeveriaincluircontratosmateriaisnem práticas obrigatórias. Um sentimento moral, espiritual e humanitáriodeveriaguiarcadareuniãoespírita:odacaridade:

(...)ouporoutraspalavras:oamoraopróximo,quecompreendeosvivos eosmortos,desdequesabemosqueosmortosfazempartedahumanidade.

Améliesentiualívioenquantoouviaaspalavrasdomarido.Comestalistadeinstruções,ele nalmentepreparavasuasucessãoepunhaempráticaosplanosdedelegartarefasparasededicaràconclusãodasnovasobras:

Oqueéprecisoparapraticaracaridadebenevolente?Amaraopróximocomoasimesmo.(...)Abjurar todo o sentimento de ódio, rancor, inveja, ciúme, vingança, numa palavra, todo odesejodeprejudicar.

Sim,Kardec estavaprontoa se retirarda linhade frentedomovimento.Otexto que escreveu a seguir, publicado na edição de dezembro de 1868 daRevista Espírita, não deixaria quaisquer dúvidas. O título: “Constituiçãotransitória do espiritismo”. Era hora de preparar a transição. E, desta vez, os“contratosmateriaisepráticasobrigatórias”rejeitadosnotextoanteriorviriamàtona.

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Uma palavra-chave guiava as orientações do codi cador nesta passagem:unidade.

KardecescreveucomooprofessorRivail.Dividiuemtópicospedagógicososprincipaisitensdaestratégiaaserseguidaparaevitaradivisãodomovimento:

1. respeitar os princípios básicos da doutrina, sem dar margem aambiguidadesouinterpretaçõescontraditórias:

Quandosetiverdito[nasobrasespíritasescritasporele]claramentequedoisedoissãoquatro,ninguémpoderápretenderquesequisdizerquedoisedoissãocinco.

2. atuar no círculo das ideias práticas, sem seguir princípios consideradosquimeras,paranãoafastaros“homenspositivos”:

Seécertoqueautopiadeontemseja,muitasvezes,averdadedeamanhã,deixemosaoamanhãotrabalhoderealizarautopiadeontem.

3. progredir de acordo com a descoberta e a con rmação de novas leis danatureza,eassimilartodasasideiasreconhecidascomojustas:

Comestecaráteressencialmenteprogressivo,oEspiritismojamaisseráultrapassado.Estaéumadasprincipaisgarantiasdesuaperpetuidade.

Kardecdeixouparao motemamaisdelicadonesteprojetodetransição:asuasucessão.

Quemseráencarregadodemanteroespiritismonestecaminho?Quemteráaperseverançadesededicaraotrabalhoincessantequetaltarefaexige?

Quem esperava ouvir nomes, ou melhor, um nome, cou desapontado. Etambémsaiu frustradoquemesperavaumaconvocaçãoparaeleiçõesgeraisdeum líder entre vários candidatos indicados pelas diferentes sociedadesespalhadaspelaEuropaepelomundo.Uma tarefa inglóriae inviável, segundoKardec.

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Eosespíritos?Porquenãoanunciavamonovolíder,paraevitartranstornosoudúvidas?

Elesnossugerempensamentos,ajudam-noscomseusconselhos,sobretudonoquetocaasquestõesmorais,masdeixamaonossojulgamentoaexecuçãodascoisasmateriais.

Emseumundo,elestêmatribuiçãoquenãosãoasdaquidebaixo.Pedir-lhesoqueestáforadesuasatribuiçõeséexpor-seàstrapaçasdeespíritoslevianos.

Ouseja:osvivosdeveriamcuidardestaquestãosucessória,eKardecjátinhaum plano bem desenvolvido a propor, ou melhor, a executar. A direção doespiritismoseriadelegadanãoaumhomem,masaumComitêCentral.

O comando individual tinha sido fundamental à elaboração da doutrina—“paraestabeleceraunidadenoconjuntoeaharmoniaemtodasaspartes”,deacordo com Kardec. Agora— com os princípios gerais estabelecidos—, um“conselhosuperior”,formadopornomáximodozemembrostitulares,entrariaemcena.

As funções deste grupo seriam de nidas por sorteio, uma vez ao ano. Aopresidente caberiam as funções administrativas, sujeitas às deliberações docomitê,deacordocomestatutosconstitutivos.

Adiluiçãodopoder tinhadoisobjetivos:pouparum líderúnicodopesodeliderar um movimento cada vez mais in uente e combatido, e livrar oespiritismo do risco de ser comandado por um só homem, que, movido pelavaidade, pudesse abusar de sua autoridade para impor ideias e interessespessoais.

EmassembleianaSociedade,Kardecdefendeuoprojeto,aindanoexercíciodeseupodermáximo,solitárioeexaustivo:

Ocomitêseráacabeça,overdadeirochefedoespiritismo,chefecoletivo,nadapodendosemoassentimentodamaioriae,emcertoscasos,semoavaldeumcongressoouassembleiageral.

Estava pronto a abrir mão de seu “mandato”, assim que o comitê fosseconstituídoepassasseasededicaraumasériedenovasatribuiçõeslistadasporele: administração de uma biblioteca e de um museu abastecidos por obrasrelacionadas ao espiritismo; supervisão de um dispensário para consultas

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médicasgratuitas, sobadireçãodeummédico (enãodeummédium);gestãodeumacaixadesocorroeprevidênciavoltadaaaçõesbene centes;fundaçãoegestãodeumacasaderetiro.

Eesteseriaapenasocomeço...Aocomitêtambémcaberiadarcontadasériedeobrigações assumidas até então porAllanKardec: redação daRevista Espírita;correspondênciacomleitores;propagaçãodadoutrina;extensãodoslaçoscomadeptose sociedadesparticularesdosváriospaíses; scalizaçãodorespeitoaosprincípios básicos do espiritismo; exame dos artigos de jornais e de todos osescritos relacionados à doutrina, e refutação dos ataques, quando necessário;direção das sessões da sociedade; e convocação de congressos e assembleiasgerais,entreoutrasváriasresponsabilidades.

Neste processo de transição, Kardec assumiria o posto de conselheiro,destituídodepoderes especiais, semquaisquerbônusou remuneraçãopor seutrabalho. Ao contrário. A partir da aprovação daquele estatuto, toda a rendageradaporseuslivrosseriarevertidaparaoComitêCentral,quetambémseriabeneficiadoporbensmóveiseimóveisdoadosporKardeceAmélie.

Ao dividir as tarefas e delegar poderes a uma equipe, Kardec alimentavatambémaesperançadetertranquilidadeparasededicaraumnovolivrosobreasrelaçõesentreomagnetismoeoespiritismo.

Nãodariatempo.

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FAZENDOASCONTAS

Kardec iniciou o anode 1869 fazendo contas.Na falta de estatísticas o ciais,tentavade nironúmerode espíritas espalhadospelomundo.Deacordocomseuscálculos,osEstadosUnidosconcentrariamamaiorquantidadedeadeptos:cerca de 4milhões.AEuropa abrigaria ummilhão de espíritas, 600mil delesresidentesnaFrança.Ototalnomundochegariaa6ou7milhões—estimava.NúmerosquefezquestãodefestejaremdiscursonaSociedadeEspírita:

Mesmoque fossesóametade,ahistórianãooferecenenhumexemplodeumadoutrinaque,emmenosdequinzeanos, reuniu talnúmerodeadeptos,disseminadospelasuperfície inteiradoglobo.

O Brasil também integrava essas estatísticas. O Rio de Janeiro sediara, em1865,oprimeirogrupodeestudosedivulgaçãodadoutrinaespírita.Membrosdacolônia francesa instaladanacorte,unidosa integrantesdaseliteseclassesmédiasdacidade,lideravamomovimento.

A partir da farta correspondência recebida de todos os cantos, Kardecarriscava tambémuma espécie de censo sobre o espiritismo.A doutrina seriaseguidapormaishomens(70%)doquemulheres,amaioriadelesinstruídos,declassemédia,combaixonúmerodeiletrados.Entreospro ssionaisliberais,osmédicos homeopatas eram maioria, seguidos de perto por engenheiros eprofessores. Em seguida, ao lado de representantes de consulados, padrescatólicos!Ossempretemidos—ecombativos—jornalistasocupavamaoitavaposição no ranking de adeptos do espiritismo, lado a lado com arquitetos,pintoresecirurgiões.

Outronúmerocurioso—ouprovocativo—tambémdespontavadestecensoinformal: 50% dos seguidores espíritas seriam “católicos romanos livres-pensadores,nãoligadosaodogma”.

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O jornal parisienseLaSolidarité deu crédito edestaquea estespercentuaisnaediçãode13dejaneirode1869.Kardecfestejouotratamentorespeitosodadopelo periódico a seus números.O texto soava comomúsica a seus ouvidos jáfatigados:

Háespíritasemtodososgrausdaescalasocial.Agrandemaioriadosespíritasseencontraentrepessoasesclarecidasenãoentreos ignorantes.Oespiritismosepropagoupor todaaparte,dealtoabaixonaescalasocial.

Outrostrêspontosfundamentaisdefendidos—ouassumidos—porKardecaoanalisarapropagaçãodoespiritismotambémecoavamemLaSolidarité:

Aa ição e a infelicidade sãoos grandes recrutadoresdo espiritismo, emconsequênciadasconsolaçõeseesperançasqueeledáaosquechoramelamentam.

O espiritismo encontramais fácil acesso entre os incrédulos emmatéria religiosa do queentreaspessoasquejátêmumaféconsolidada.

Logodepoisdos fanáticosdogmáticos,osmaisrefratáriosàs ideiasespíritassãoascriaturascujospensamentosestãoconcentradosnaposseenosprazeresmateriais.

Kardec cou impressionado com o artigo. Poucas vezes a imprensa deratanto crédito a suas teses, esperanças e impressões. O jornal só não avalizoutodososnúmerosdivulgadospelocodi cadorporqueosconsideroumodestos.KardectinhaseesquecidodeincluiraÁsiaemsuascontas:

Sepelotermoespíritaentendem-seaspessoasquecreemnavidadealém-túmuloenasrelaçõesdos vivos comas almasdosmortos, háque contá-lospor centenasdemilhões.A crençanosespíritosexisteemtodosos seguidoresdobudismoepode-sedizerqueelaconstituiabasedetodasasreligiõesdoextremoOriente.

Kardec,éclaro,concordavacomcadalinhadestareti cação.Otextoeraumalentoparaele,aindasoterradopelaavalanchedecartasarespondereansiosopordarinícioàtransiçãotãoplanejada.

Emabrilde1869,publicounaRevistaEspíritaumanotaintitulada“Avisomuito

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importante”.Chegaraahora.A partir de 1º abril, o escritório de assinaturas e de expedição da revista

passaria a funcionar em novo endereço: rua de Lille, número 7. Esta seriatambém a sede do mais novo estabelecimento ligado à Sociedade Espírita deParis: a Livraria Espírita, entidade sem ns lucrativos, administrada porespíritas,cujarendasereverteriaintegralmenteàCaixaGeraldoEspiritismo.

Neste mesmo dia, 1º de abril, Kardec e Amélie se mudariam, nalmente,para a Villa Ségur, número 39, logo atrás da rua des Invalides. Ali seriamerguidosoasilo,abibliotecaeomuseutãosonhados...Seriam.

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ATÉBREVE!

Odiaé31demarçode1869,vésperadamudança.Kardecempacotavalivroseorganizava documentos no apartamento da rua Sainte-Anne, 59, em meio amóveisforadelugaretapetesjáenroladosparaotransporte.PassavadasonzedamanhãquandoumcaixeirodelivrariabateuàportaparabuscarexemplaresdaúltimaediçãodaRevistaEspírita.

Coberto por eleganterobe de chambre , Kardec entregou o pacote aovisitante, curvou-se sobre simesmo e desabou no chão sem dizer uma únicapalavra.Com65anosincompletos,oprofessorHippolyteLéonDenizardRivailestavamorto—oumelhor,maisvivodoquenunca,livredopesodeseucorpo,ajulgarpelasverdadesdefinitivasquedivulgaranosúltimosquinzeanos.

Chamado pelos criados, o médium Delanne seria o primeiro a chegar.Pressionou o peito do mestre, aplicou sobre sua cabeça e coração os passesmagnéticos,enada.Amélievoltoudaruapoucodepoisenãoconseguiuconteras lágrimasdiantedocorpodocompanheiro,comquemviveraaolongode37anos.Osprojetosdevidanova,osplanosdedescansoedeviagemadois,tudointerrompido.

Mas estava escrito.Nada era por acaso.O ciclo chegara ao m, de acordocom os planos da espiritualidade. Melhor enxugar as lágrimas e cuidar dasdespedidas.Embreve,acreditavaAmélie,elesestariamjuntosdenovo.

Delanneeoscriadoscolocaramocorpojáfriosobreumcolchãonasaladevisitas, e o cobriram com uma colcha de lã branca. A seus pés, envoltos emmeias,oschinelosabandonados.

OndeestariaoespíritodeKardecnaqueleinstante?Nasala,aoladodamulheredomédium,diantedalareiraacesa?Rodeadodosvelhosamigosmortosantes

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deleeamparadopelomédicoDemeure?AcolhidopeloEspíritodaVerdade,porZé roeoutroscolaboradores invisíveis?Ouemlugarnenhum, jáqueamorteseriaapenasofimereduziriaanadacadaumdenós?

—MonsieurAllanKardec estmort, on l’enterre vendredi. (Morreu o sr.AllanKardec,seráenterradosexta-feira.)

FoiesteoconteúdodotelegramaenviadoporumdosamigosdeKardec,osr.E. Muller, aos espíritas de Lyon. Na mesma noite, outros companheiros deSociedadeEspírita se revezariamà beira do caixãodurante o longo velórionasaladeestardoapartamentorevolto:DeslienseTailleur,DelanneeMorin.

Só aomeio-dia de 2 de abril de 1869 omodesto coche funerário partiu dacasadeKardecrumoaocemitériodeMontmartre,omaisantigodeParis.Umamultidãodeamigosesimpatizantes,estimadaem1.200pessoas,acompanhouocortejo,queatravessouas ruasdeGrammont,Laffitte eFontaine, e cruzouosgrandesbulevaresatéalcançarotúmulo.

Améliepreferiuacompanharacerimôniaemsilêncio.Quemtomouapalavraprimeiro foi o sr. Levent, vice-presidente da Sociedade Parisiense de EstudosEspíritas, fundadaporKardec em1ºde abrilde1858.Háonze anos, todas assextas-feiras,elesseencontravamnassessõessemanaisdeestudosdadoutrinaedecontatoscomoalémconduzidas,comrigoreserenidade,pelodiscípulodePestalozzi.Naqueledia,Kardec—ouRivail—estavado“outrolado”.

Nabeiradojazigo,Leventlançouaperguntaaoar:

—Ondeestáagoraonossomestre,sempretãomadrugadornotrabalho?

Eousouquestionaroinquestionável:

—Deusprecisariaterchamadoohomemqueaindapodiafazertantobem?Ainteligênciatãocheiadeseiva,ofarol,en m,quenostiroudastrevasenosfezentreveressenovomundo,maisvastoeadmiráveldoqueoqueimortalizouCristóvãoColombo?

Defensor intransigente da justiça divina, Kardec teria dispensado tantos

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lamentosefestejado,comalívio,alembrançaaseguir:

—Mas reanimai-vos, senhores, com este pensamento tantas vezes demonstrado e lembradopelonossopresidente:“Nadaéinútilnanatureza.Tudotemsuarazãodeser;eoqueDeusfazésemprebem-feito!”

O mestre, a rmava Levent em seu discurso emocionado, cumprira suamissão.Caberiaaelesdarcontinuidadeàsuaobra,deacordocomseusplanosesobseu“eflúviobenfazejoeinspirador”.

OpróximoafalarfoiojovemastrônomoCamilleFlammarion,tãoadmiradoporKardec.Nolongodiscurso,oautordeApluralidadedosmundoshabitadospassou a limpo a trajetória do codi cador e de niu, com três palavras, apersonalidadedoamigo:“bomsensoencarnado”.

Seestivesseporperto,Kardecaprovariaasdescriçõessobreseudestino:

—Agoravoltasteaessemundodeondeviemosecolhesosfrutosdeteusestudosterrenos.(...)Ocorpocai,aalma caeretornaaoespaço.Encontrar-nos-emosnummundomelhor.Aimortalidadeéa luzdavida,comoestesolbrilhanteéa luzdanatureza.Atébreve,meucaroAllanKardec.Atébreve.

LogodepoisdeFlammarion,AlexandreDelannetomouapalavranabeiradotúmulo,comorepresentantedos“espíritasdoscentrosdistantes”.Nodiscurso,bemmaissucinto,umagradecimentoemocionadoaocompanheirodeviagem,“desbravadordanaturezahumana”:

—Obrigadopelaslágrimasqueenxugastes,pelosdesesperosqueacalmastesepelaesperançaquefizestesbrotarnasalmasabatidasedesencorajadas.Obrigado,milvezesobrigado.

Oúltimoadiscursar foio sr.Muller. “Carosconsternados”—ele saudouamultidão, comosolhosmarejados, pouco antes de se apresentar comoporta-vozdaviúva,Amélie,silenciosaeabatidaaseulado.

Nesta despedida, Muller destacou a “tolerância absoluta” de Kardec, e suaintolerânciatambém:

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—Eletinhahorroràpreguiçaeàociosidade.Emorreudepé,apósumlaborimenso.

Logodepoisdecitaraspalavrasdeordemdomestre—“Foradacaridadenãohásalvação”—,Mullerhasteouabandeiraque,segundoele,deveriaseradotadacomoestandarteportodososcompanheiros:“Razão,trabalhoesolidariedade”.

— Coragem, pois! Saibamos honrar o lósofo e o amigo, praticando suas máximas etrabalhando,cadaumnamedidadesuasforças,parapropagarosvaloresquenosencantarameconvenceram.

NaediçãodoJournaldeParisdodiaseguinte,3deabrilde1869,ojornalistaPagès deNoyez prestou também sua homenagem aAllanKardec, o “homemque, por suas obras, fundara o dogma pressentido pelas mais antigassociedades”.

Adepto do espiritismo, o repórter — que vira o corpo de Kardec sobre ocolchãologoapóssuamorte—escreviacomadmiraçãoraraaosjornalistasqueKardecenfrentaraaolongodesuacruzada:

AllanKardecmorreu na sua hora. Com ele, fechou-se o prólogo de uma religião vivaz, que,irradiandocadavezmaisacadadia,embreveiluminarátodaahumanidade.

Ojornalistapecouporexcessodeotimismooudeesperança.

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DEPOISDAMORTE

Assemanas seguintes foramconturbadas.Paraconduzir aSociedadedeParis,foieleitaumacomissãocomseterepresentantesaprovadosporAmélie:Levent,Malet,Canaguier,Ravan,Desliens,DelanneeTailleurpassaramasedesdobrarpara dar conta de todas as tarefas acumuladas, sozinho, por Kardec. Maletassumiria a presidência da Sociedade, mas o comando — de fato — seriaexercidopelaviúva.

NaRevista Espírita de maio de 1869, um artigo intitulado “Caixa geral doespiritismo—decisãodasenhoraAllanKardec”nãodeixavaquaisquerdúvidasquantoaopoderdelaàfrentedoespóliodomarido.

Como“únicaproprietária legaldasobrasedarevista”,segundode niçãodapublicação,Amélieanunciouasprimeirasdecisões—algumasdelasdivergentesdoprojetodetransiçãopropostoporKardec.

Em vez de doar toda a renda da venda dos livros à Caixa Geral doEspiritismo,elapreferiudestinaraofundo,umavezporano,o“excedentedoslucros provenientes dos livros espíritas e das assinaturas da revista”. Umtesoureiro caria responsávelpelaadministraçãodaverba, soba supervisãodaComissãoDiretora.

A inauguraçãodoMuseuEspírita tambémteriadeesperar.Oitoquadrosdegrandesdimensões fariampartedoacervo inicial,deacordocomosplanosdeKardec:retratosdomestre,cenasdavidadeJoanad’Arcetelas inspiradasemJesus e seus apóstolos. Amélie, porém, decidiu guardar, num depósito, seisdestas telas até providenciar um local apropriado, “comprado com os fundosprovenientesdaCaixaGeral”.

Aviúvapassoua scalizartambémaqualidadeeaconsistênciadosartigosaserem publicados naRevista Espírita. Cada texto deveria ser aprovado pelaComissãoCentralesancionadoporela—umadecisãoqueincomodaramuitosdosantigoscolaboradoresdeKardec.

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Oque ele,Kardec, teria a dizer sobre estes novos rumos?Algumamensagemespecí ca à suamulher e aos companheiros de doutrina, enviada através dosmédiuns da Sociedade? Algum novo conselho sobre os caminhos a seguir ouevitarnestalutadiáriapeladivulgaçãodoespiritismo?

Asprimeirasmensagensdomestredemorariamachegar,esóviriamàtonano segundo semestre de 1869, nas páginas daRevista Espírita. Nada muitoespecíficonemprático:

— Há muitos séculos as humanidades prosseguem de maneira uniforme a sua marchaascendenteatravésdoespaçoedotempo.Háuniversosemundos,comopovoseindivíduos...

Nenhumarevelaçãosobreavidanovanoalém.Nenhumcomentáriopessoal.Nenhumamanifestaçãodesaudadenemdearrependimento.

A julgar por um dos trechos publicados, Kardec preferia, depois demorto,manterdistânciadasdecisõespráticasdodiaadia:

— (...) nós vos deixamos o julgamento das próprias intenções, para só apreciarmos osresultados.

NenhumamensagemassinadaporKardecavalizaria—ourenegaria—outradecisão tomadapelocomitêeaprovadaporAmélie: ade transferir, emmarçode 1870, seus despojos mortais para o Père-Lachaise, o cemitério de Balzac,Chopin, Molière, Proust e outras celebridades em Paris. A simplicidade dotúmulo original daria lugar a um mausoléu imponente — ou melhor, a umdolmen —, com direito a busto de bronze do homenageado, esculpido pelopremiadoartistaCharles-RomainCapellaro.

Kardec teriaaprovadoesteprojeto?EmartigonaRevistaEspírita, publicadoemjunhode1869sobotítulo“PedratumulardoSr.AllanKardec”,oredatoranônimodeuaresposta:

Ébemevidenteparanós,comoparatodososqueoconheceram,queosr.AllanKardec,comoespírito,nãoseinteressademodoalgumporumamanifestaçãodestegênero,masohomemseapaga—nestecaso—diantedochefedadoutrina.

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Oimportante,segundoosprojetistasdomausoléu,seriaconsagraraosrestosmortaisdeKardecum“monumentoimperecível”.

Duasinscriçõesgravadasnogranitohomenageavamatrajetóriadoprofessorcético,discípulodePestalozzi,quemudaradevidaedenomeparadarvozaosespíritos.

Nafacedianteiradopedestal—logoapósade nição“fundadorda loso aespírita” —, uma sequência de frases que Hippolyte Léon Denizard Rivailcostumavarepetiraosalunos:“Touteffetaunecause.Touteffetintelligentaunecauseintelligente.Lapuissancedelacauseestenraisondelagrandeurdel’effet .”(Em tradução livre: “Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente temumacausainteligente.Opoderdacausacorrespondeàgrandezadoefeito.”)

Ena borda frontal do granito, um resumoda essência da doutrina: “Naitremourirrenaitreencoreetprogresssersancesse.Telleestlaloi. ”(“Nascer,morrer,renasceraindaeprogredirsemcessar.Taléalei.”)

Em pouco tempo, o túmulo passaria a atrair visitantes de todo o mundo,inclusivedoBrasil,paísquemereceudestaqueespecialnaRevistaEspíritacercade sete meses após a morte de Kardec. Na edição de outubro, um artigofestejava o lançamento, em julho de 1869, do primeiro periódico dedicado àdoutrinaespíritaemterrasbrasileiras:oEchod’AlémTúmulo ,jornalbimestral,com sessenta páginas, editado em Salvador, na Bahia, sob a direção doabolicionistaLuizOlympioTellesdeMenezes:

Énecessárioumagrandecoragem,acoragemdaopinião,paralançarnumpaísrefratáriocomooBrasilumórgãodestinadoapopularizarosnossosensinamentos.

Era impossível imaginar,no mdo séculoXIX,queumpaís tão católico setornaria, no século seguinte, a capital do espiritismonomundo, berço de umdos discípulosmais devotados de Allan Kardec: Chico Xavier, omédium queescreveu mais de quatrocentos livros e renegou a autoria — e os direitosautorais—detodoseles.“Eunãoescrevinada.Eles,osespíritos,escreveram”,repetiriaatémorrer,aos92anos,nacamaestreitadeseuquartoacanhadona

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cidade de Uberaba, emMinas Gerais, admirado por milhões de brasileiros eatacadoporoutrostantos.

Difícilprevertambém,naquelaépoca,emmeioaolutopelamortedeKardeceàsincertezassobresuasucessão,oquantoadoutrinasofreriaperdaseabalos,naEuropaenosEstadosUnidos,semavigilânciaeamilitânciadomestre.

Seisanosdepoisdemorrer,Kardecestarianocentrodeumanovapolêmica,mas sem direito à defesa, no episódio conhecido como o “processo dosespíritos”.

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KARDECNOBANCODOSRÉUS

Emjaneirode1875,aRevistaEspírita,sobadireçãodePierre-GaëtanLeymariee supervisão de Amélie, abriu suas páginas a uma série de “fotogra as deespíritos”, produzidas em estúdio pelo fotógrafo ÉdouardBuguet e pelo jovemmédiumamericanoAlfredFirman.

Umadas fotos exibia a viúvaAmélie, comexpressão serena, sentadanumacadeira. Ao fundo, a imagem diluída do suposto espírito de Kardec, mesmaexpressão sisuda das fotos antigas, com um cartão preenchido com letrasmiúdas, quase ilegíveis, diante dele. Para os observadores céticos, não haviadúvidas:montagem.Enãoeraaúnica.

Muitos familiares saudosos recorriam à câmera deBuguet— e aos “ uidosmagnéticos” de Firman — para tentar captar a presença no estúdio de seusentes queridosmortos. Quarenta por cento dos clientes, segundo cálculos dopróprioLeymarie,voltavamparacasacomos agrantese—omaisimportante—comaevidênciadasobrevivênciadoespírito.Cadafotografiaeravendidapor75cêntimos,umapechincha,masnãoparaajustiça.

O caso chegou nos tribunais no dia 16 de junho de 1875. Leymarie e seuscúmplices foram acusados de fraude pelo juizMillet. Sob pressão, Buguet nãodemorou a confessar suas artimanhas: entrevistava as famílias para colherdadossobreaaparênciadosmortos—altura,idade,coresdecabeloeolhos—e, com ajuda de bonecos, silhuetas em papelão e negativos com semblantessemelhantesàsdescrições,compunhaseusfotogramas.

QuantoaLeymarie,seriaseucúmpliceousócio?Diantedeumjuizincrédulo,garantiuBuguet:

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—Não.Elenãosabiadenada.

OsucessordeKardecàfrentedarevistaentrounotribunalalgemado—paraalegria dos adversários do espiritismo e júbilo da imprensa— e se recusou aconfessarocrimeparaselivrardacadeia.Foicondenadoaumanodeprisãoeao pagamento de quinhentos francos demulta—mesma pena de Buguet—apóssofreruminterrogatóriodemolidor.

Ojuizserecusouadarcréditoàstestemunhasquejuraramreconhecer,nasfotosdoalém,asimagensdeseusmortosqueridos,eatribuiuaodesesperoestasdeclarações de fé. Ao longo dos interrogatórios, o nome de Allan Kardec foicitadopelomagistradoinúmerasvezes—enuncacomrespeito.

Eracomoseadoutrinaestivessenobancodosréus.AtésobreasvendasdasobrasdeKardeco juizpediudetalhes.Leymarie tinhaascontasatualizadas:Olivrodosespíritosjáestavanavigésimaedição,Olivrodosmédiuns,nadécima,eOevangelhosegundooespiritismo,nasétima.

Masopioraindaestavaporvir.Aos80anos,AmélieBoudet foichamadaadeporcomotestemunha.Nocentrodoinquérito,AllanKardec.

Ojuizentãoperguntou,comironia:

—Ondefoiqueelearranjouestenome?

Amélienemtevetempoderesponder,poisojuizjáafirmava:

—Conhecemosasorigensdoslivrosdoseumarido.EleosretirouprincipalmentedoGrandGrimoire.

Aviúvadissedesconhecera talpublicação—um livrodemagianegra—erepetiu o que todo espírita sabia: as obras de Kardec seriam resultado deconsultasaespíritosatravésdemédiuns.

O juizdeudeombrosepassouaquestionaradecisãodeaviúvaenterraroprópriomaridonãocomonomedebatismo,mascomopseudônimoretirado,segundoele,donomedeumaflorestadaBretanha.

Améliereagiu:

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—Nãosedevebrincarcomesteassunto.

Eomagistradofoialém,acirrandoodiálogo:

— Não gostamos de gente que toma nomes que não lhe pertencem, de escritores quepilhamobrasantigasequeenganamopúblico.

—Todososliteratosusampseudônimos.Meumaridojamaispilhoucoisaalguma.—Eleéumcompilador,nãoumliterato.Eraumhomemquepraticavaamagianegraou

branca.Vásentar-se!

SeKardecestivesseali,corriaoriscodeserpreso.Masestavabemlonge,ejánãomandavanotíciasdoalém.

Quemquisessesabermaissobreeleprecisariarecorreraseusarquivos.

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OMANUSCRITO

EntreospapéisguardadosnacasadeKardec,Amélieencontrouummanuscritosemdata.Umbalançodevida,mantidoemsigiloatéapublicaçãodareveladoraObraspóstumas.

Otítulodotexto:“Foradacaridadenãohásalvação”.

Estesprincípios,paramim,nãoexistemapenasemteoria,poisqueosponhoem prática; faço tanto bem quanto o permite minha posição; presto serviçosquandoposso;ospobresnuncaforamrepelidosdeminhaportaoutratadoscomdureza; foram recebidos sempre, a qualquer hora, comamesma benevolência;jamais me queixei dos passos que hei dado para fazer um benefício; pais defamíliatêmsaídodaprisãograçasaosmeusesforços.

Certamente não me cabe inventariar o bem que já pude fazer; mas, domomentoemqueparecemesquecer tudo, é-me lícito, creio, trazerà lembrançaqueaminhaconsciênciamedizquenunca zmalaninguém,queheipraticadotodoobemqueesteveaomeualcance,eisto,repito-o,semmepreocuparcomaopiniãodequemquerqueseja.

A esse respeito trago tranquila a consciência; e a ingratidão com que mehajampagoemmaisdeumaocasiãonãoconstituirámotivoparaqueeudeixedepraticarobem.

Eis como entendo a caridade cristã. Compreendo uma religião que nosprescreve que retribuamos o mal com o bem e, com mais forte razão, queretribuamos o bem com o bem. Nunca, entretanto, compreenderia a que nosprescrevessequepaguemosomalcomomal.

ALLANKARDEC

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FIM