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Laudatio Robert Alexy 1 Senhor Reitor Senhor Presidente do Tribunal Constitucional Senhora Directora da Faculdade de Direito Senhoras e Senhores membros do Conselho Geral Senhoras Doutoras e Senhores Doutores Senhoras e Senhores Estudantes Senhoras e Senhores “quando o ontem for depois e o hoje sempre resta nada (Anónimo do séc. XXI) Quando no princípio dos tempos nos encontrávamos a ver os dias ficarem cada vez mais pequeninos, como ora, até chegar o solstício de Inverno — que nem sequer sonhávamos o que era e por isso não projectávamos o que iria acontecer e o que obser- vávamos era que as trevas se avolumavam de dia para dia e o mais razoável empiricamente seria que o mundo mergulhasse na noite sem fim e tudo acabasse — quando, dizíamos, isso aconte- cia, a angústia tocava-nos porque não sabíamos se amanhã exis- tiríamos. Felizmente a noite funda e sem fim não tinha que vir e

“quando o ontem for depois e o hoje sempre resta nada só … · 2012-11-13 · Laudatio Robert Alexy 2 não veio, porque tudo já estava igual antes de nós e tudo vai ficar igual

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Laudatio Robert Alexy

1

Senhor Reitor

Senhor Presidente do Tribunal Constitucional

Senhora Directora da Faculdade de Direito

Senhoras e Senhores membros do Conselho Geral

Senhoras Doutoras e Senhores Doutores

Senhoras e Senhores Estudantes

Senhoras e Senhores

“quando o ontem for depois e o hoje sempre

resta nada só

(Anónimo do séc. XXI)

Quando no princípio dos tempos nos encontrávamos a ver

os dias ficarem cada vez mais pequeninos, como ora, até chegar

o solstício de Inverno — que nem sequer sonhávamos o que era

e por isso não projectávamos o que iria acontecer e o que obser-

vávamos era que as trevas se avolumavam de dia para dia e o

mais razoável empiricamente seria que o mundo mergulhasse na

noite sem fim e tudo acabasse — quando, dizíamos, isso aconte-

cia, a angústia tocava-nos porque não sabíamos se amanhã exis-

tiríamos. Felizmente a noite funda e sem fim não tinha que vir e

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não veio, porque tudo já estava igual antes de nós e tudo vai

ficar igual depois de nós, e, desse jeito, houve sempre auroras,

noites, dias, sóis, luares e amanhãs e o mundo continuou a girar,

como roda agora, e, por mor disso, hoje estamos aqui. Porque o

mundo sempre girou em equilíbrios instáveis. Por certo. Jamais

com detença ou parança. Porém, entre tantas outras, uma coisa é

igual desde então. Cobre-nos a mesma angústia, o mesmo temor

e o mesmo tremor. Imorredoiramente. Sozinhos, perante nós e o

vazio de nós depois de nós, só encontramos sentido quando

olhamos para o "outro" e com ele refazemos tudo. O mundo, a

vida. E refazemos — sendo esse o nosso lado mais nobre —,

para além disso, tudo aquilo que não sendo é. Nada, mas mesmo

nada, se faz sem o "outro" a não ser a construção de uma solidão

infinita, seca e profundamente estéril. Uma solidão inumana. O

nosso impulso, pulsão ou tendência visceral não é para sermos

anacoretas. De sorte que, enquanto homens e mulheres que que-

ríamos viver (é essa a nossa dimensão onto-antropológica),

fomos à procura do encontro. Por isso fomos à procura da festa

que é encontro e partilha. Daí que tenhamos ido à procura dos

ritos que são festa, encontro, partilha e elevação espiritual.

Em verdade, o que se passou até agora aqui, hoje, e o que

vai acontecer depois nada mais é do que uma infinita repetição

que procura o "outro" em festa. Em verdade, depois de milénios

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e milénios, iguais a todos os gestos dos nossos mais longínquos

antepassados, viemos — com a cadência ritual, em que os pas-

sos são momentos de esquadria perfeita debruados a preto em

que se penduram garridas cores e em que as palavras são acessó-

rios que jamais merecem o aplauso, ligados por fios de seda

emaranhados e que já não têm conta —, em cortejo lento ao som

de metais cadenciados, até à Sala dos Actos Grandes, pela mão

da Universidade, guiados sempre pela estrela do amor à verdade

e na contemplação racional da livre sujeição à ciência. Em ver-

dade, eis-nos, pois, aqui e, neste momento, em festa que é rito e

encontro ou, se se quiser, em ritual que só se compreende quan-

do vivido debaixo da alegria do tempo de festa e do encontro,

desde que, não nos cansemos de repetir, enquadrados pelo amor

à verdade e pela livre sujeição à ciência. E, em verdade, tudo

isto só faz ou tem sentido se aceitarmos em limpidez estes pres-

supostos ou traves-mestras, porquanto se tal não acontecer

seremos meros bonecos articulados que, muito embora grandes

como o sapo da fábula de La Fontaine, só nos mostraremos

como meras figurinhas ridículas que não têm lastro ou densida-

de ético-social e menos ainda fulgurações analítico-científicas e

que, em caso algum, deixarão rasto, traço ou, ao menos, estrépi-

to passageiro. Figurinhas, para alguns até risíveis, digamo-lo em

cumprimento de um dever de verdade, que nem sequer pela pró-

xima geração serão lembradas. Mais: figurinhas que não podem

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ser lembradas porque, em rigor, de tão insignificantes que são,

não chegam a ter existência. E ninguém se pode lembrar do que

nunca existiu, nem sequer como quimera ou ficção.

Mas todos os que estamos aqui sabemos o que é o símbolo

e o valor do simbólico e conhecemos a força do rito como lugar

de passagem e como topos de união e de civilização. Mais.

Todos percebemos que a Universidade, se quiser continuar a ser

a entidade espiritual que, durante séculos da nossa civilização,

propiciou a criação, a inventiva, o conhecimento e a sua conse-

quente transmissão não pode transigir com o canto da sereia

nihilista e redutora do seu fim ou degenerescência que passa,

entre outras coisas, pela chã e rasteira obsessão da quantificação

do saber universitário, pela inqualificável subordinação a sim-

ples interesses economicistas que nem a legítimos interesses

económicos ascendem e ainda pela infantilização do seu ensino

que grassa e se expande sem que aparentemente alguém se preo-

cupe. Todos os que estamos aqui somos servidores. Servidores

livres e críticos de uma certa ideia de Universidade e por isso,

mas não só por isso, não somos figurinhas ou ademanes de cir-

cunstância. Somos servidores de uma Universidade que quer ser

inovadora sem renunciar ao seu passado; que quer saber ensinar

universitariamente e não infantilidades; que quer inovar e inves-

tigar; que quer ser avaliada mas de modo sério e universitaria-

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mente congruente; que quer subtrair-se ao jugo implacável e

ridículo de contabilidades; que quer ser uma voz crítica no seio

da “intelligentzia” nacional e europeia; que quer não pactuar

com jogos de burocracias estéreis e estiolantes; que quer a digni-

ficação dos seus professores e alunos; que quer afastar o mito

onírico de uma sua auto-sustentação financeira; que quer ser

verdadeira e límpida na sua missão de ensinar; em suma, somos

todos servidores de uma Universidade que quer assumir para si,

sem transigências, une certaine idée d'Université.

Tudo isto é verdade, tudo isto queremos, porém, nestes

tempos de incerteza, de que é que podemos estar certos? De

duas coisas podemos estar certos: quer Robert Alexy, quer o seu

padrinho, Castanheira Neves, sabem o que é a Universidade e

defendem a Universidade como lugar único e de eleição de "une

certaine idée" não só de si própria mas também do pensamento

ocidental. E estas certezas comezinhas fazem-nos acreditar que

vale a pena ensaiarmos narrativas de elogio que se não estiolam

no elogio estulto porque têm como seu fundamento o mérito

universitário. Mérito que sendo um dado do intangível não pode

nem deve ser mensurado mas que é percebido e compreendido

por todos os verdadeiros universitários.

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É, pois, firmemente convicto de que o papel que represen-

to neste rito tem sentido que irei desenhar a narrativa do elogio

de Robert Alexy não sem antes dizer, não por circunstância, que

o seu apresentante, Castanheira Neves —académico e universi-

tário que irá ser elogiado pela palavra sempre elegante, culta e

densa do meu Querido Colega e Amigo Aroso Linhares — faz

parte de um escol de eleição da nossa Faculdade e que, para

além disso, representa um dos mais genuínos, profundos, fecun-

dos e empenhados — qualidades, aliás, que o irmanam a Robert

Alexy — pensadores do direito e da filosofia do direito que a

todos, por sobre tudo dentro do pensamento jurídico português e

brasileiro, de uma forma ou de outra, influenciou. É um daque-

les Mestres que, ao olhar para trás, pode legitimamente dizer, o

que só acontece a raros, em total coerência universitária: fiz o

que devia e devia o que fiz.

Senhoras, Senhores

Porém, olhemos, ora e definitivamente, para Robert Alexy

porquanto estamos aqui porque é ele o “alfa” e o “omega” do

encontro, da partilha e da festa. Em suma: da honra que merece.

Olhemo-lo, pois, nesta circunstância e dentro de uma narrativa

que tem de assumir os cânones de um discurso académico, mas

não entediante, isto é, que seja ao menos elegante e que, final-

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mente, por isso mesmo se não pode perder nas subtilezas ines-

capáveis do pensamento dos verdadeiros "maîtres-penseurs".

Ao trazermos ou ao sublinharmos o núcleo essencial das coisas

(aquilo que o rasoiro do tempo não levará) sabemos que estamos

a cortar, que estamos a reduzir, que estamos a ser incompletos

ou até injustos na valoração, mas isso é o preço que se tem que

pagar para sermos adequados e coerentes com aquilo que, em

princípio, deve ser a narrativa laudatória.

Quando, nos idos dos anos cinquenta, o nosso homenagea-

do frequentava o Gymnasium da sua Oldenburg, por certo pouca

ideia teria desta Universidade e da cidade de Coimbra. Terras

longínquas lá no extremo ocidental da Europa. De uma Europa

que acabava de se ver devastada pela guerra. Talvez o nome de

Coimbra e o da sua antiga Universidade se tenham consigo cru-

zado quando na Universidade de Göttingen começava os seus

estudos de direito e de filosofia, já então pela mão segura de

Günther Patzig. Mas é com Ralf Dreier que trabalha aquando da

elaboração da Theorie der juristischen Argumentation – Die

Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen

Begründung, publicada pela primeira vez em 1978 – estudo,

aliás, diga-se en passant, que é premiado em 1982 pela Acade-

mia de Ciência de Göttingen, na classe de filologia e história.

Porém, o seu cursus honorum vai continuar e é nessa linha que

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vemos aparecer, pela ordem natural das coisas, a Theorie der

Grundrechts.

Todavia, é tempo, mais que tempo, de viajarmos nos car-

reiros, nas veredas e nos campos abertos do pensamento de

Robert Alexy e deixarmos a espuma dos invólucros e a estéril e

até perniciosa lógica da contabilidade curricular. Comecemos,

primeiro, por enunciar o passo inicial dessa caminhada e, desse

jeito, afirmar que nos vamos situar no horizonte prático da filo-

sofia analítica para, de seguida, delimitar os esforços teóricos de

Robert Alexy que, em verdadeiro rigor, se concentram em três

objectos ou temas principais de investigação: a) os fundamentos

da argumentação jurídica; b) a estrutura dos direitos fundamen-

tais; c) o conceito e a natureza do direito.

Assim, na teoria da argumentação (concebida como teoria

de fundamentação de enunciados morais), Alexy sustenta que o

discurso jurídico, em virtude da sua característica vinculação à

lei, ao precedente e à dogmática, é um “caso especial” do dis-

curso prático geral. Ao contrário dos autores — como Alf Ross e

Hans Kelsen — que consideram a razão prática um conceito

“autocontraditório” ou “logicamente insustentável”, Alexy afir-

ma que os discursos práticos racionais são possíveis, desde que

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possam ser explicitados através de um sistema de formas da

argumentação racional. Deste modo, ao postular esta interpreta-

ção da razão como argumentação (ou seja, como a prática de dar

e promover razões), Alexy defende uma concepção ético-

discursiva — na linha de Jürgen Habermas, embora com ela

não totalmente coincidente — da razão prática. Por isso, a sua

construção teórica pode e deve ser situada no movimento de

“Rehabilitierung der praktischen Philosophie”. Para Alexy, a

teoria do discurso é uma teoria procedimental. E seu procedi-

mento é a argumentação. Ao buscar a solução justa ou racional

(ponderada) de uma questão moral (de um conflito de interes-

ses), o discurso prático (enquanto explicação ou fundamentação

da correcção prática) assume o carácter necessariamente comu-

nicativo da formação do seu juízo, a ser elaborado através da

troca de argumentos entre os participantes, enquanto indivíduos

mutuamente reconhecidos como livres e iguais. A pretensão de

verdade ou de correcção implica uma pretensão de fundamenta-

ção, vale por dizer, o dever argumentativo de fundamentar o

asseverado quando isso seja requerido ou de apresentar razões

da negação justificadora. Assim, a interpretação teórico-

discursiva da racionalidade prática não se contenta com o mero

consenso (o qual pode ser rapidamente obtido, v.g., em situações

de psicose de massas), pois a teoria do discurso não considera

como correcto ou verdadeiro qualquer resultado da comunicação

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linguística, senão apenas o resultado de um discurso “racional”.

E esta racionalidade — não apenas lógica e empírica, mas agora

também e sobretudo valorativa ou normativa — define-se atra-

vés da observância das regras do discurso, com destaque para

aquelas regras que se referem directamente à bondade dos

argumentos (v.g., as exigências de não-contradição, de universa-

lização, de clareza lógico-conceitual, de verdade empírica, etc.).

Observância que, em todo o caso, pouco valor teria se os

participantes do discurso não tivessem ideias ou não dispusesse

da capacidade de ajuizar. Para Alexy, esta é a premissa essencial

da teoria do discurso: todos os participantes (seres humanos

como de facto existem) estão, em princípio, em condições de ter

ideias e de distinguir as boas das más razões em favor de enun-

ciados substantivos. Por outras palavras: o respeito pelas regras

do discurso só pode gerar a correcção prática em uma situação

em que todos têm basicamente as capacidades de formular a

pergunta “porquê?”, de expressar asserções e de apresentar uma

razão, bem como uma praxis mínima a respeito destas capacida-

des. Parte-se, assim, da capacidade de juízo e de imaginação dos

participantes que, em princípio, existe de uma maneira suficien-

te. Mas, pelos deuses maiores e menores, esta suficiente capaci-

dade é tão-só um “pressuposto”, não uma “exigência” do proce-

dimento. À luz do critério teórico-discursivo de correcção, Alexy

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recusa a tese de Dworkin sobre a existência de uma única res-

posta correcta para cada questão prática, pois “o facto de res-

ponder a questões práticas baseia-se (não só, mas essencialmen-

te) em interpretações de interesses e em ponderações de interes-

ses. Não se pode aceitar que sobre esta base seja possível apenas

exactamente uma resposta para cada questão prática”. Vale por

dizer: “a razão prática (...) é realizável aproximativamente e a

sua realização suficiente não garante nenhuma correcção defini-

tiva, mas tão-só relativa. Isto basta como razão para a irrenun-

ciabilidade da incorporação no sistema jurídico das regras e

princípios da racionalidade prática procedimental”.

Deste jeito, tal como as normas e as decisões do direito

apresentam necessariamente uma pretensão de correcção (mais

exactamente, uma pretensão de justiça), existe uma conexão

também necessária entre a racionalidade discursiva e a raciona-

lidade jurídica. Neste sentido, a concepção procedimental-

comunicativa da correcção prática segundo a teoria do discurso

— uma norma é correcta apenas se pode ser resultado de um

procedimento definido através das regras do discurso — condi-

ciona a argumentação jurídica. Neste horizonte, a teoria da

argumentação jurídica emerge como o procedimento que asse-

gura a racionalidade da aplicação do direito. E as particularida-

des do discurso jurídico frente ao discurso prático geral pren-

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dem-se com os próprios limites da argumentação jurídica, esta-

belecidos através da lei, da dogmática e do precedente judicial.

Para solucionar o “problema de conhecimento” — o carác-

ter aberto dos resultados no discurso prático-real, em virtude do

marco discursivamente possível — e o “problema do cumpri-

mento” — a intelecção obtida no discurso não conduz necessa-

riamente à correspondente acção — Alexy destaca a necessidade

de situar a teoria do discurso no contexto de uma completa teo-

ria do Estado e do direito (em particular, da institucionalização

do processo de legislação e do processo judicial), de modo a

vincular as estruturas da argumentação com as estruturas de

decisão. Pois somente no horizonte de uma teoria básica das ins-

tituições do Estado constitucional democrático a teoria do dis-

curso alcança todo o seu valor prático desde a perspectiva dos

ideais de liberdade e igualdade discursivamente fundamentados.

Por outros termos: a qualificação de “caso especial” diante do

discurso prático geral conduz à dupla natureza do direito: as

vinculações à lei, aos precedentes e à dogmática configuram o

seu carácter institucional e de autorização. E a abertura à argu-

mentação prática em geral acrescenta-lhe uma dimensão ideal e

crítica. A conexão entre ambos os aspectos conduz, por sua vez,

a uma vinculação entre direito e moral, como mais adiante tere-

mos ocasião de sopesar.

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Senhoras, Senhores

No domínio da teoria jusfundamental, além de analisar a

estrutura dos direitos fundamentais como direitos subjectivos,

desenvolver a doutrina externa de suas “restrições” (baseada em

um conceito amplo de hipótese de facto e de âmbito de protec-

ção) e sistematizar a doutrina do seu efeito horizontal ou sobre

terceiros (através da tese de irradiação), Alexy elaborou uma

valiosa compreensão sobre a estrutura das normas de direito

fundamental, assumindo a distinção entre regras e princípios

como base da argumentação jusfundamental correcta e ainda

chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos

direitos fundamentais (sobretudo na teoria dos limites, na teoria

da colisão e na teoria dos efeitos em terceiros).

Para Alexy, as normas podem mesmo dividir-se em regras

e princípios, mas esta divisão não é apenas de grau, senão quali-

tativa. Os princípios são “imposições de optimização”, ou seja,

normas que ordenam que qualquer coisa seja realizada na maior

medida possível, dentro das possibilidades jurídicas (definidas

pelas regras e princípios opostos) e fácticas existentes. Por isso

são cumpridos ou realizados em diferente medida: a sua forma

de aplicação característica é a ponderação. Diferentemente, as

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regras são “imposições definitivas”, pois ordenam, proíbem ou

autorizam definitivamente — cumpridas determinadas condi-

ções — levar a cabo qualquer coisa. São determinações já situa-

das no âmbito do fáctico e juridicamente possível, normas que

só podem ser cumpridas ou não (tertium non datur). Se uma

regra é válida, deve-se fazer exactamente o que ela exige, nem

mais, nem menos (trata-se de uma questão de tudo ou nada): sua

forma de aplicação característica é a subsunção.

Nesta óptica, para Alexy, a diferença fica ainda mais evi-

dente no modo de solução da incompatibilidade ou contradição

entre normas. O “conflito” de regras só pode ser resolvido com a

introdução, em uma delas, de uma cláusula de excepção que

elimina a contradição ou com a declaração de invalidade de ao

menos uma das regras, eliminando-a do sistema jurídico. Já na

“colisão” de princípios, um deles tem que ceder diante do outro,

sem que isso signifique, entretanto, declarar inválido o princípio

deslocado, nem que nele se tenha que introduzir uma cláusula de

excepção. Nos casos concretos, os princípios podem assumir

diferente peso e o princípio com maior densidade primar sobre

os demais. Logo, em certas circunstâncias, um dos princípios

precede o outro. Enquanto os conflitos de regras ocorrem na

dimensão de validade, a colisão de princípios tem lugar mais

além desta dimensão (só podem entrar em colisão princípios

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válidos), ou seja, na dimensão da medida, da ponderação. A

solução da colisão de princípios significa que, tendo em conta as

circunstâncias do caso, estabelece-se entre eles uma relação de

precedência condicionada (indicando-se as condições sob as

quais um princípio precede o outro, nunca em geral ou em abs-

tracto, mas na concreta situação). Eis a chamada “lei de colisão”

(Kollisionsgesetz), a convocar um juízo de ponderação —

segundo a máxima da proporcionalidade — dos interesses con-

trapostos: “as condições sob as quais um princípio precede a

outro constituem o suposto de facto de uma regra que expressa a

consequência jurídica do princípio precedente”. Alexy conclui

que as normas jusfundamentais possuem a estrutura de imposi-

ções de optimização, o que significa situar o máximo da propor-

cionalidade no centro da dogmática dos direitos fundamentais,

de modo a que, em muitos casos, o seu conteúdo definitivo seja

decidido pela ponderação.

Senhoras, Senhores:

Por fim, Alexy também assume a filosofia do direito como

reflexão filosófica — como pensamento compreensivo de carác-

ter crítico (normativo), analítico e holístico (sintético) acerca

daquilo que existe (metafísica enquanto ontologia), daquilo que

se deve fazer ou que é bom (ética) e de como justificar nossas

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crenças sobre aquilo que existe e sobre aquilo que se deve fazer

ou é bom (epistemologia) — especialmente dedicada ao concei-

to e à natureza do direito, uma reflexão a ser desenvolvida pela

análise sistemática dos argumentos sobre este conceito e esta

natureza — “o que é o direito?” A tese nuclear neste específico

território narrativo é simples de enunciar: existe uma relação

conceitual necessária entre o direito e a moral.

Neste horizonte compreensivo, Alexy não só reitera os

princípios e as regras — as duas classes de normas (dever-ser)

— como as entidades constitutivas do direito qua tale — o que,

por sua vez, reafirma a tese de que o raciocínio jurídico inevita-

velmente combinará a subsunção com a ponderação e por isso

estará determinado pelas estruturas do raciocínio prático em

geral — como também afirma a “natureza dual” do direito.

Segundo esta tese, o direito necessariamente implica duas

dimensões. A primeira é a dimensão fáctica ou real, atinente à

irradiação de autorização e à eficácia social do direito, mais

exactamente; à relação entre o direito e a coerção ou força; à

relação entre o direito e a institucionalização dos procedimentos

de criação e aplicação das normas; e, finalmente, à relação entre

o direito e o assentimento ou aceitação real de suas normas.

Assim, aquilo que seja o direito depende não só dos factos

sociais, mas também daquilo que o direito deve ser.

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Na dimensão real ou fáctica (perspectiva do observador),

Alexy concede especial atenção à coerção ou força como pro-

priedade essencial do direito: um sistema de normas que em

nenhum caso autoriza o uso de coerção (sanção) — nem mesmo

a legítima defesa — não é um sistema jurídico. Primeiramente, a

coerção é uma necessidade conceitual baseada no uso da lingua-

gem ordinária: “quem aplicaria a expressão ‘direito’ a um siste-

ma de regras semelhante a este?” Em segundo lugar, a coerção é

uma necessidade prática ou normativa de caráter teleológico

(instrumental ou extrínseco), ou seja, definida por uma relação

entre meio e fim, no sentido de desenvolver o melhor de uma

prática social à luz de suas funções ou tarefas: “a coerção é

necessária se o direito está chamado a ser uma prática social que

cumpra na maior medida possível suas funções formais básicas,

tal e como as definem os valores da certeza e da eficácia jurídi-

ca”. Pois somente o direito pode resolver o problema do conhe-

cimento prático e o problema do cumprimento prático, ao

determinar os direitos do cidadão, assegurá-los através de sua

exigibilidade e garantir a organização social. Determinação,

exigibilidade e organização que promovem não só o valor da

certeza jurídica, mas também o valor da eficiência.

Já a dimensão crítica ou ideal (perspectiva do participante)

revela a pretensão de correcção (Anspruch auf Richtigkeit)

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moral como segunda propriedade essencial do direito. Pretensão

que assume um carácter de deontológico, resultante da estrutura

dos actos jurídicos e da racionalidade jurídica. Pretensão implí-

cita que se faz explícita através de uma “contradição performa-

tiva”: o artigo 1º de uma Constituição que estabelecesse que “X

é uma república soberana, federal e injusta” e a sentença judicial

que dispusesse “condena-se o acusado a uma pena de prisão

perpétua, embora isto seja incorrecto, porque o direito válido foi

interpretado de forma incorrecta” seriam absurdos. Contra a tese

da separação (não existe uma conexão necessária entre a valida-

de jurídica ou a correcção legal e o mérito ou demérito ou a cor-

recção ou incorrecção moral) típica do “positivismo jurídico

excludente” (a moral está necessariamente excluída do direito) e

do “positivismo jurídico includente” (a moral não está necessa-

riamente excluída nem necessariamente incluída, de modo que a

inclusão é uma variável contingente e convencional, dependente

do que o direito positivo estabeleça), Alexy sustenta a tese não-

positivista da conexão entre direito e moral (há ao menos uma

relação necessária entre a validade ou correcção jurídica e o

mérito ou demérito ou a correcção ou incorrecção moral), ou

seja, a ideia de que a moral está necessariamente incluída no

direito. Pretensão a revelar-se como necessidade prática intrín-

seca, vale por dizer, como necessidade existencial. Pois renun-

ciar à pretensão de correcção seria abandonar uma prática que se

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define pelas distinções entre o correcto e o incorrecto, o verda-

deiro e o falso, o objectivo e o subjectivo, o justo e o injusto. E

“depois de renunciar à pretensão de correcção, o nosso actuar e

o nosso falar seriam essencialmente diferentes do que são agora.

As mudanças não se relacionariam exclusivamente com o carác-

ter da nossa comunidade. Também diriam respeito a nós mes-

mos. Não seríamos as mesmas pessoas”. Segundo Alexy, como a

pretensão de correcção leva tão-só a uma “conexão qualificado-

ra”, as normas ou decisões jurídicas moralmente erróneas ou

defeituosas são apenas, de forma necessária, juridicamente erró-

neas ou defeituosas. Não deixam de ser decisões ou normas

jurídicas, ou seja, juridicamente válidas.

Embora ocupe um lugar central, o argumento de correcção

(Richtigkeitsargument) não é o único invocado para

fundamentar a moralidade como elemento do direito. Segundo

Alexy, também são relevantes, neste particular ponto, outros dois

argumentos. Um deles é o “argumento da injustiça”: a injustiça

extrema ou intolerável (casos de extraordinária injustiça legisla-

tiva ou judicial) não é direito. Ao contrário do argumento da

pretensão de correcção moral, o argumento da injustiça extrema

convoca uma conexão classificatória entre o direito e a moral: as

normas ou decisões jurídicas moralmente insuportáveis não são

juridicamente válidas, ou seja, não são normas ou decisões ver-

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Laudatio Robert Alexy

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dadeiramente jurídicas. Neste território compreensivo, a justiça

material ganha preferência em face da certeza jurídica. Assim,

no que tange à questão dos diferentes efeitos que as perversida-

des ou os deméritos morais podem ter sobre a validade jurídica,

Alexy defende não um “não-positivismo excludente” (todo o

defeito moral conduz à invalidade jurídica), tão-pouco um “não-

positivismo super-includente” (a existência de um defeito ou

incorrecção moral de modo algum afecta a validade jurídica),

ambos incompatíveis com a natureza dual do direito (enquanto o

primeiro se inclina a favor da dimensão ideal ou crítica, o

segundo inclina-se a favor da dimensão real ou fáctica do direi-

to), mas um “não-positivismo includente”, no qual os defeitos

morais só afectam a validade jurídica quando ultrapassam o

limiar da injustiça extrema. Em linha de máxima: somente em

situações extraordinárias (sobretudo nos casos de violação de

direitos humanos ou fundamentais) existe uma “conexão classi-

ficatória” e o carácter meramente defeituoso converte-se em

invalidade jurídica.

O terceiro argumento favorável à tese da conexão é o

“argumento dos princípios” (Prinzipienargument), atinente às

implicações morais necessárias de um ordenamento jurídico

também estruturado sobre princípios. Enquanto o argumento da

injustiça extrema se refere a uma situação excepcional, o

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argumento dos princípios prende-se com a vida jurídica

quotidiana e resulta de uma consideração metológico-jurídica.

Efectivamente, todo o direito positivo minimanente

desenvolvido possui, necessariamente, em maior ou menor

medida, uma estrutura aberta (open texture) — sobretudo em

razão da vaguidade da linguagem jurídica, da possibilidade de

contradição entre normas, da eventual falta de uma norma em

que se possa apoiar a decisão e da possibilidade de decidir con-

tra legem em casos especiais) que admite a existência de casos

“difíceis” ou “duvidosos” nos quais se esgotam as razões de

autorização (legais) e não se pode mais decidir apenas com base

em razões que procedem exclusivamente do direito positivo,

será também necessário o recurso a razões de não autorização

referidas a razões de justiça (portanto, à moral). Neste contexto,

ao contrário da leitura positivista da criação de novo direito com

base em pautas não-jurídicas ou extrajurídicas, o argumento dos

princípios significa que o juiz, também no horizonte da abertura

do direito positivo (imposto e eficaz), está juridicamente vincu-

lado e está-o de uma maneira que cria uma vinculação necessá-

ria entre o direito e a moral, estabelecida através da ponderação

enquanto forma característica de aplicação dos princípios. Em

suma: “a textura aberta do direito torna impossível que exista

uma aplicação não-arbitrária e justificada do direito que não

inclua algum tipo de raciocínio moral”.

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Senhoras, Senhores

Eis-nos chegados ao fim desta fascinante viagem que

começa em Coimbra e acaba em Coimbra mas que foi ao mun-

do, viu-o, ouviu-o, sentiu-o, falou com ele e retornou. Fomos

guiados pela mão da “ciência” mas confessamos que nos ajuda-

ram com o seu riso, o seu saber e a sua alegria três belas mulhe-

res: Eufrosina, Thalia e Aglaia. E disseram-nos que vinham à

festa. Por isso temos a certeza de que estão por aí. Talvez, quem

sabe, sentadas, com o rosto de outras, mas sendo elas, no tão

nosso "gineceu" desta belíssima Sala.

Para além disso, animou-nos a recta intenção de contribuir

para a festa, que é também partilha, exaltação do espírito e, por

sobre tudo, exaltação do mérito irrestrito de Robert Alexy.

Como todos os viajantes que vêm de longada e que procu-

ram e se interrogam com aquilo que vão vendo, reflectindo e

estudando, confessamos que estamos cansados. Mas cobre-nos o

cansaço da satisfação de poder ter contribuído para uma mereci-

da festa que honra um dos juristas mais marcantes deste tempo

de charneira de séculos e de milénios. Para uma festa que tam-

bém nos honra.

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Senhor Reitor:

Quando Hölderlin já estava para lá do bem e do mal mas

ainda fulgurava nele o génio, que nunca o abandonou, deixou-

nos estes versos sublimes:

Die Linien des Lebens sind verschieden,

Wie Wege sind und wie der Berge Grenzen

Was hier wir sind, kann dort ein Gott ergänzen

Mit Harmonien und ewigem Lohn und Frieden

Sim, são “diversas as linhas da vida” mas foram elas que

nos reuniram aqui, hoje, e também porque tudo deve terminar

em paz, harmonia, beleza e alegria vos peço que concedais, por

tudo aquilo que se disse mas, por sobre tudo, por aquilo que se

não disse, as insígnias doutorais a Robert Alexy. Ao fazê-lo,

mais do que um acto de justiça estais a honrar, sem mácula, a

Universidade de Coimbra que representais e com isso a honrar-

nos e a honrar-vos.