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2 Aos meus pais e irmão, que com o seu Amor incondicional me fazem acreditar que é possível. Por serem a minha força, a minha inspiração e o meu orgulho. Aos meus amigos, pelo apoio, pelas palavras de força, pelos risos, pelas lágrimas. Por todos os momentos de partilha. E por saber que vão estar sempre por perto. À Faculdade de Direito. A Coimbra. Bem hajam!

Aos meus pais e irmão, que com o seu Amor incondicional ... principio... · 2 Aos meus pais e irmão, que com o seu Amor incondicional me fazem acreditar que é possível. Por serem

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  • 2

    Aos meus pais e irmo, que com o seu Amor incondicional me fazem acreditar que

    possvel. Por serem a minha fora, a minha inspirao e o meu orgulho.

    Aos meus amigos, pelo apoio, pelas palavras de fora, pelos risos, pelas lgrimas. Por

    todos os momentos de partilha. E por saber que vo estar sempre por perto.

    Faculdade de Direito.

    A Coimbra.

    Bem hajam!

  • 3

    NOTA: a presente dissertao foi elaborada de acordo com o novo acordo

    ortogrfico.

  • 4

    Siglas e Abreviaturas

    Ac. Acrdo

    art. artigo

    CEDH Conveno Europeia dos Direitos do Homem

    CP Cdigo Penal

    CPP Cdigo de Processo Penal

    CRP Constituio da Repblica Portuguesa

    MP Ministrio Pblico

    R: - Relator

    STJ Supremo Tribunal de Justia

    TR Tribunal da Relao

    TRE Tribunal da Relao de vora

    TRG Tribunal da Relao de Guimares

    TRL Tribunal da Relao de Lisboa

    TRP Tribunal da Relao do Porto

    TEDH Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

    V. Ver

    vs. Versus

  • 5

    ndice

    Introduo .............................................................................................................................. 7

    I. O princpio nemo tenetur se ipsem accusare ................................................................ 10

    1. Origem histrica e evoluo do princpio nemo tenetur ........................................... 10

    2. A importncia da Jurisprudncia do TEDH .............................................................. 13

    3. Fundamentos jurdico-constitucionais ...................................................................... 19

    4. Direito no autoincriminao e direito ao silncio ................................................ 24

    5. Critrios delimitadores do princpio nemo tenetur ................................................... 27

    6. Consagrao do princpio nemo tenetur na ordem jurdica portuguesa - evoluo

    histrica (breve aluso) .................................................................................................... 31

    6.1. A transmissibilidade das declaraes anteriormente prestadas pelo arguido para a

    audincia de julgamento ............................................................................................... 34

    7. Restries legais ao princpio ................................................................................... 36

    8. Consequncias da violao do nemo tenetur ............................................................ 37

    II. A recusa do arguido em prestar autgrafos .................................................................. 39

    1. Delimitao do problema .......................................................................................... 39

    2. Apreciao crtica luz do princpio nemo tenetur .................................................. 41

    2.1. A recolha de autgrafos e a violao do princpio nemo tenetur .......................... 41

    2.2. O carcter no absoluto do direito no autoincriminao .................................. 44

    2.3. Princpio da legalidade .......................................................................................... 46

  • 6

    2.4. O juzo de proporcionalidade ................................................................................ 50

    2.5. A legitimidade do MP ........................................................................................... 53

    2.6. O CPP de 1929 ...................................................................................................... 54

    Concluso ............................................................................................................................. 56

    Bibliografia .......................................................................................................................... 59

    Jurisprudncia ...................................................................................................................... 64

  • 7

    Introduo

    No se adivinha fcil a tarefa que nos propomos desempenhar ora em diante: a de

    elaborar uma dissertao, enquanto jurista, e mestranda, sobre uma matria de direito

    processual penal que tanto entusiasmo nos provoca. Embora nos parecendo rduo o

    caminho que nos surge pela frente, com enorme vontade que o encaramos e desejamos

    trilhar.

    O tema que trazemos discusso prende-se com aquela que consideramos ser a

    figura central do processo penal: o arguido. Como sabemos, este personagem, durante todo

    o processo, confrontado com intromisses na sua esfera jurdica.

    Com a passagem de um processo penal de estrutura inquisitria para um processo

    penal de estrutura acusatria, o arguido assumiu a posio de verdadeiro sujeito processual,

    o que se traduz no poder de conformar os trmites do processo, detendo um vasto leque de

    direitos de defesa, consagrados na nossa Constituio e no Cdigo de Processo Penal.

    Entre eles, destacamos, porque sobre ele que nos vamos debruar ao longo deste excurso,

    o direito no autoincriminao do arguido. Afigura-se-nos um direito de extrema

    importncia na defesa de um Estado de Direito Democrtico, uma vez que num passado

    no muito distante o arguido era visto sobretudo como meio de prova e/ou meio de

    obteno de prova no processo.

    Atualmente incompatvel com a nossa Constituio toda e qualquer

    instrumentalizao do arguido na descoberta da verdade material, uma vez que o nosso

    Estado tem como pilar fundamental e estruturante a dignidade da pessoa humana. Por isso,

    tm de ser respeitadas as garantias de defesa que o arguido assume na sua esfera jurdica

    enquanto tal. Assim, o arguido deve ser livre de decidir se quer ou no participar no

    processo, e a forma de como o deseja fazer.

    pacfico na jurisprudncia e entre a doutrina que o princpio da no

    autoincriminao do arguido tem consagrao constitucional, embora apenas

    materialmente. J menos consentnea a sua fundamentao jurdico-constitucional, e essa

    uma discusso que nos propomos abordar.

    Neste momento, cumpre-nos justificar o motivo da escolha deste tema, uma vez

    que dado assente que o arguido um sujeito processual e que tem o direito de no

    contribuir para a sua prpria incriminao.

  • 8

    Ora, o assunto despertou-nos interesse, porque, sendo isto certo, menos bvia a

    extenso que este direito assume no nosso ordenamento jurdico. Assim, o direito no

    autoincriminao corresponde apenas ao direito ao silncio positivado no Cdigo de

    Processo Penal? mais amplo? Se o , em que medida? E, por outro lado, um direito

    absoluto? Ou pode ser limitado?

    So estas perguntas que continuam sem respostas unvocas, e cujas solues que

    tm sido apontadas merecem a nossa ateno. Por isso, principiaremos o nosso estudo,

    definindo este direito atravs de uma breve exposio histrica desde o seu surgimento.

    Seguidamente, olharemos para o seu desenvolvimento na jurisprudncia do Tribunal

    Europeu dos Direitos do Homem o tribunal que zela primacialmente pelo respeito dos

    direitos fundamentais. Depois de traadas as primeiras linhas orientadoras do princpio

    cumpre-nos precisar em que que consiste afinal o nemo tenetur. E nesse sentido, deter-

    nos-emos sobre o entendimento da jurisprudncia e doutrina, que se tem debatido para

    delinear o exato alcance do princpio. Com efeito, h situaes que se situam numa zona de

    fronteira e que podero justificar que o arguido seja obrigado a colaborar, sacrificando,

    nestes casos, o seu direito processual a no autoincriminar-se.

    Numa segunda fase, e depois de percorrido este primeiro percurso que visa dar

    uma viso geral do assunto e colocar a problemtica e as solues que podem ser

    apontadas, debruar-nos-emos sobre uma questo concreta, que se prende com a recolha de

    autgrafos, ordenada ao arguido, na fase de inqurito, no mbito de um processo-crime de

    falsificao de documentos. Com efeito, no decorrer do nosso estudo sobre o assunto foi

    proferido pelo Supremo Tribunal de Justia um Acrdo Uniformizador de Jurisprudncia

    sobre este tema.

    Ora, o acrdo suscitou-nos algumas questes, e, por isso, do nosso interesse

    observar a deciso, tecendo as devidas consideraes crticas, tendo em conta o princpio

    nemo tenetur se ipsum accusare que nos propomos defender neste excurso.

    Pretendemos com o nosso estudo, sobretudo, suscitar a discusso sobre a figura do

    arguido, e sobre o papel que o mesmo deve assumir no processo penal. Para isso, teremos

    em conta tudo o que defendido e protegido pela nossa Constituio, e os valores que hoje

    se levantam que reclamam por uma efetiva realizao da justia, denegando por vezes

    direitos que o arguido j tinha consolidado na sua esfera jurdica enquanto sujeito

    processual. Naturalmente, no podemos justificar todos os atropelos aos direitos do

  • 9

    arguido com a celeridade e a eficcia processuais, que sendo ideais desejveis, no podem

    ser elevados a valor primordial, sob pena de ofendermos valores fundamentais como a

    dignidade da pessoa humana.

    Conscientes de que o assunto trazido discusso gera divergncias, tanto

    doutrinais, como jurisprudenciais, nosso objetivo explanar as diferentes perspetivas,

    optando por aquela que nos parece ser a mais indicada, face estrutura acusatria do

    processo penal que defendemos, e sobretudo face ao processo penal que no desejamos ter.

  • 10

    I. O princpio nemo tenetur se ipsem accusare

    Diz-me como tratas o arguido,

    dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu.

    FIGUEIREDO DIAS

    1. Origem histrica e evoluo do princpio nemo tenetur

    O princpio da no autoincriminao do arguido expresso na frmula latina nemo

    tenetur se ipsum accusare1, ou nemo tenetur ipsum detegere

    2, assenta na ideia segundo a

    qual o acusado no est obrigado a contribuir para a sua prpria incriminao3, no

    recaindo sobre ele o dever de colaborar na descoberta da verdade material4. Este princpio

    constitui uma das garantias de defesa do arguido5 e desdobra-se no direito ao silncio e no

    direito de no oferecer meios de prova.

    na tradio anglo-saxnica e no perodo de transio de um processo penal de

    estrutura inquisitria para um de estrutura acusatria que surge a conceo moderna do

    privilgio contra a autoincriminao6, tambm designado abreviadamente pelo brocardo

    latino nemo tenetur.

    Com efeito, este direito surgiu como forma de combater os abusos provocados

    pelos institutos at ento vigentes que tornavam o arguido instrumento da sua prpria

    1 Ningum obrigado a acusar-se.

    2 Ningum obrigado a manifestar-se.

    3 PAULO DE SOUSA MENDES, O dever de colaborao e as garantias de defesa no processo sancionatrio

    especial por prticas restritivas da concorrncia, in Julgar, N. 9, 2009, p. 15; VNIA COSTA RAMOS,

    Corpus Juris 2000 - Imposio ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

    accusare, in Revista do Ministrio Pblico, n. 108, Out/Dez de 2006, p. 131; e tambm, MANUEL DA

    COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies de Prova em Processo Penal, 1 Ed., Reimp., Coimbra Editora,

    2013, p. 121. 4 MARIA JOO ANTUNES, Direito ao silncio e leitura em audincia de declaraes do arguido, in Sub-

    Judice, Justia e Sociedade, n.4, Setembro/Dezembro, 1992, p.26. 5 PAULO DE SOUSA MENDES, Os direitos e deveres do arguido, in Estudos em Memria do Prof. Doutor

    J. L. Saldanha Sanches, Org. Paulo Otero, Fernando Arajo, Joo Taborda da Gama, Vol. II, Coimbra,

    Coimbra Editora, 2011, p. 819; neste sentido, ver tambm, MARIA DE FTIMA REIS, O direito no

    autoincriminao, in Sub-Judice, Justia e Sociedade, n.40, Julho-Setembro 2007, p. 59. 6 AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, O direito no auto-inculpao (nemo tenetur se

    ipsum accusare) no processo penal e contra-ordenacional portugus, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 9.

  • 11

    condenao7. Vigorava nos Tribunais da Igreja o juramento ex officio em que os

    suspeitos de heresia tinham de prestar juramento sobre a sua inocncia, e se vacilassem,

    significava que Deus os considerava culpados8. Este sistema tambm chegou a ser aplicado

    nos tribunais comuns.

    De facto, recaa sobre o arguido o dever de verdade. Esse dever era alcanado

    com recurso tortura como forma de obter do acusado uma confisso, pois o entendimento

    poca traduzia a ideia de que o valor central da comunidade transcende os interesses

    conflituantes no processo e obriga os participantes a colaborar na descoberta da verdade.9

    aps a Magna Charta, de 1215, e com as sucessivas reformas que tinham em

    vista a implementao de uma estrutura acusatria, que surgem as primeiras manifestaes

    contra estas prticas. Aponta-se o caso de Jonh Lilburn10

    , em 1637, como o intensificador

    desses protestos. Jonh Lilburn recusou-se a prestar o juramento ex officio, e foi por isso

    severamente punido.

    Na sequncia de manifestaes, foi abolido pelo parlamento ingls o juramento ex

    officio, e surgiu entre a doutrina do common law o entendimento de que o arguido no

    podia ser instrumento da sua prpria incriminao11

    . Com efeito, alguns autores12

    apontam

    o ano de 1769, como o marco em que o princpio do nemo tenetur assumiu consagrao no

    direito ingls.

    Sendo este o entendimento de alguma doutrina, a verdade que na prtica judicial

    o arguido continuava a testemunhar contra si, uma vez que os jurados estabeleciam a sua

    convico atravs das declaraes do acusado. Significava isto que o silncio do arguido

    contribua para que o jri formasse a opinio de que o mesmo era culpado.

    por esta razo, que alguns autores defendem que o privilgio contra a

    autoincriminao surgiu mais tarde, j no sculo XIX, quando foi conferido ao arguido o

    direito a defensor, atribudo por lei em 1836. De facto, s a partir deste momento que o

    arguido adquire o verdadeiro direito de liberdade de no declarar contra si, uma vez que a

    7 JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, Superviso, Direito ao Silncio, e

    Legalidade da Prova, in Superviso, Direito ao Silncio e Legalidade da Prova, Coimbra, Almedina, 2009, p.

    38. 8 VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.137.

    9 RUPPING apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, p. 123.

    10 LARA SOFIA PINTO, Privilgio Contra a Auto-incriminao verus Colaborao do Arguido, in Prova

    Criminal e Direito de Defesa, Estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal,

    Coord. Tereza Pizarro Beleza, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Coimbra, Almedina, 2011, p. 100. 11

    VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.137. 12

    Cfr., MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, p.123.

  • 12

    acusao encara agora o defensor e no o arguido. Um pouco mais tarde, em 1848

    estabeleceu-se um dever para o juiz de instruo de informar o arguido do seu direito ao

    silncio.

    Entretanto, na Constituio Americana foi consagrado expressamente o privilgio

    contra a autoincriminao, atravs da V Emenda, em 1791, com o seguinte contedo: No

    person () shall be compelled in any criminal case to be witness against himself.

    Trata-se de um verdadeiro privilege against self-incrimination que veio a ser

    concretizado no clebre caso Miranda versus State of Arizona, em 1966. Na sua deciso, a

    Suprem Court afirmou que o privilege against self incrimination representava uma marca

    estruturante de todo o processo acusatrio, e, por isso, deveria ser o arguido esclarecido e

    devidamente advertido sobre os seus direitos13

    .

    Desta forma, o arguido passa a assumir a posio de parte processual em vez de

    instrumento da sua prpria incriminao. E, esta uma das caractersticas centrais do

    sistema processual penal acusatrio vigente num Estado de Direito.

    Na verdade, o princpio nemo tenetur vigora nos ordenamentos jurdicos dos

    modernos Estados de Direito, e, est tambm consagrado em vrios diplomas

    internacionais que visam a tutela dos Direitos Humanos.

    Podemos destacar entre outros, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e

    Polticos14

    , da ONU, de 16 de dezembro de 1966, que consagra expressamente no artigo

    14, n.3, alnea g) o seguinte: In the determination of any criminal charge against him,

    everyone shall be entitled to the following minumum guarantees: () not to be compelled

    to testify against himself, or to confess guilt15

    .

    No mesmo sentido, a Conveno Americana sobre Direitos Humanos, ou Pacto de

    Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, estabelece no seu artigo 8., n.2, al. g), que

    pessoa acusada de um delito assegurado o direito de no ser obrigada a depor contra si

    prpria, nem a confessar-se culpada.

    Ainda podemos referir o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional,

    adotado em 17 de julho de 1998, que contm nos seus artigos, 55., n.1, al. a), e n.2, al. b)

    e 67., n.1, al. g), manifestaes do nemo tenetur.

    13

    JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. , p.38. 14

    Aprovado para ratificao por Portugal pela Lei n. 29/78, de 12 de Junho. 15

    Qualquer pessoa acusada de uma infrao penal ter direito, em plena igualdade, pelo menos s seguintes

    garantias: () a no ser forada a testemunhar contra si prpria, ou a confessar-se culpada.

  • 13

    Pelo contrrio, a Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 10 de

    dezembro de 1948, no comtempla de forma expressa o princpio nemo tenetur, embora

    reconhea o princpio da presuno de inocncia, e o seu artigo 11. refere que devem ser

    concedidas ao acusado todas as garantias necessrias de defesa.

    Do mesmo modo, a Conveno Europeia dos Direitos do Homem16

    , de 4 de

    janeiro de 1950, tambm no contm a inscrio do princpio. No entanto, a jurisprudncia

    do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a defender que o direito ao

    silncio e o direito no-autoincriminao constituem standarts internacionais, que esto

    no corao da noo de processo equitativo, os quais se destinam a proteger o acusado

    contra o exerccio abusivo de poderes coercivos pelas autoridades, a evitar o perigo de

    adulterao da justia e, nesse sentido, a realizao plena do artigo 6. da Conveno.17

    2. A importncia da Jurisprudncia do TEDH

    Na verdade, a jurisprudncia do TEDH, considerada a suprema instncia judicial

    europeia no mbito dos direitos humanos18

    enquanto intrprete da CEDH, assumiu um

    papel importante na definio e delimitao do princpio. Por isso mesmo, consideramos

    fundamental olhar para algumas das suas decises. Por razes de brevidade, apenas

    traremos tona os casos que consideramos mais marcantes e decisivos na concretizao do

    princpio.

    Principiamos, porm, por nos debruar sobre uma deciso do Tribunal de Justia

    da Comunidade Europeia, de 18 de outubro de 1989, que ops a sociedade annima Orkem

    contra a Comisso das Comunidades Europeias19

    . O TJCE defendeu que a Comisso tem

    o direito de obrigar a empresa a fornecer todas as informaes necessrias relativas aos

    factos de que possa ter conhecimento e, se necessrio, os documentos correlativos que

    16

    Aprovada para ratificao por Portugal pela Lei n.65/78, de 13 de Outubro. 17

    JOS MACHADO DA CRUZ BUCHO, Sobre a recolha de autgrafos do arguido: natureza, recusa, crime

    de desobedincia v. direito no autoincriminao (notas de estudo), Outubro 2013, disponvel em:

    http://www.trg.pt/ficheiros/estudos/sobre_a_recolha_de_autografos_do_arguido.pdf. 18

    JNATAS MACHADO E VERA RAPOSO, O Direito no autoincriminao e as pessoas colectivas

    empresariais, in Revista Brasileira de Direitos Fundamentais e Justia, ano 3, n. 8, Julho/Setembro de

    2009, p. 31. 19

    Processo n. 374/87, que se encontra disponvel em:

    http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95715&pageIndex=0&doclang=EN&mode=lst&dir=&

    occ=first&part=1&cid=460447.

  • 14

    estejam na sua posse, mesmo que estes possam servir, em relao a ela ou a outra

    empresa, para comprovar a existncia de um comportamento anticoncorrencial. E

    conclui, observando o sumrio da deciso o seguinte: ainda que, no respeitante a

    infraces de natureza econmica nomeadamente no domnio do direito da concorrncia,

    no seja possvel reconhecer, relativamente a uma empresa, a existncia de um direito a

    no testemunhar contra si prpria, () a comisso no pode impor empresa a

    obrigao de fornecer respostas atravs das quais seja levada a admitir a existncia da

    infraco, cuja prova cabe Comisso20

    .

    Desta forma, apesar de no estender o princpio da no autoincriminao s

    empresas, a deciso veio admitir que as empresas no estavam obrigadas a confessar factos

    que as incriminassem. Neste sentido, a jurisprudncia Orkem aparece como uma das

    primeiras decises a ter em conta o princpio nemo tenetur, ainda que apenas na vertente

    do direito ao silncio e de forma muito limitada.

    Relativamente jurisprudncia do TEDH, s em 1993 que o princpio veio a ser

    afirmado, no Acrdo21

    de 25 de fevereiro desse ano, que ops Jean-Gustave Funke,

    cidado alemo, ao Estado francs. Neste caso, e de forma muito sucinta, o Tribunal de

    Estrasburgo foi chamado a pronunciar-se sobre a legitimidade de uma condenao, no

    sistema judicial francs, em multa e sano pecuniria compulsria, do senhor Funke, que

    se tinha recusado, na sequncia de uma busca ao seu domiclio em que foram descobertos

    livros de cheques de contas bancrias suas localizadas no estrangeiro, a fornecer

    administrao fiscal francesa extratos dessas contas, que poderiam eventualmente

    comprovar a existncia de infraes criminais. Face situao, o TEDH determinou

    categoricamente que a aplicao de sanes penais com o objetivo de obrigar entrega de

    provas documentais viola o direito no autoincriminao22

    .

    No pargrafo 44 do citado Acrdo pode ler-se: The Court notes that the customs

    secured Mr Funkes conviction in order to obtain certain documents which they believed

    must exist, although they were not certain of the fact. Being unable or unwilling to procure

    them by some other means, they attempted to compel the applicant himself to provide the

    20

    Sumrio disponvel em portugus:

    http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95665&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&

    occ=first&part=1&cid=372972. 21

    Ac. Funke vs. France, que pode ser consultado em:

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57809#{"itemid":["001-57809"]} . 22

    VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.142.

    http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95665&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=372972http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95665&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=372972http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57809#{"itemid":["001-57809"]}

  • 15

    evidence of offences he had allegedly committed. The special features of customs law (see

    paragraphs 30-31 above) cannot justify such an infringement of the right of anyone

    "charged with a criminal offence", within the autonomous meaning of this expression in

    Article 6 (art. 6), to remain silent and not to contribute to incriminating himself. There has

    accordingly been a breach of Article 6 para. 1 (art. 6-1).23

    Com efeito, o artigo 6. da CEDH consagra o direito a um processo equitativo no

    seu n. 124

    , e a garantia da presuno de inocncia, no seu n.225

    . E, nestes preceitos que o

    TEDH encontra o fundamento do princpio da no autoincriminao, sustentando que se

    trata de um direito mais amplo que o mero direito ao silncio26

    .

    Outro Acrdo que merece a nossa referncia aborda a questo que contende com

    o valor que assume o silncio do arguido num processo penal. No caso Murray27

    , o

    tribunal veio afirmar que o princpio nemo tenetur no absoluto, e que suscetvel de ser

    limitado. A histria envolve um caso de terrorismo e a seguinte: o senhor Jonh Murray

    foi detido pela polcia quando estava a descer as escadas de um prdio onde foram

    encontrados os sequestradores, militantes do Exrcito Republicano Irlands, e o

    sequestrado. Ora, durante todo o processo o arguido recusou-se a prestar declaraes. No

    entanto, acabou por ser condenado, tendo o tribunal construdo a sua sentena valorando o

    silncio do arguido. O TEDH chamado a pronunciar-se, veio reafirmar o princpio da no

    autoincriminao como princpio estruturante de um processo equitativo28

    . O tribunal

    comeou por afirmar a proibio de valorao do silncio do arguido, no entanto entendeu

    que tambm essa proibio no teria carcter absoluto29

    .

    23

    Sublinhado nosso. 24

    Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo

    razovel por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidir, quer sobre a

    determinao dos seus direitos e obrigaes de carcter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusao

    em matria penal dirigida contra ela. 25

    Qualquer pessoa acusada de uma infraco presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade no tiver

    sido legalmente provada. 26

    VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.143. 27

    Tratado no Ac. Jonh Murray vs. Reino Unido, de 8 de Fevereiro de 1996, disponvel em:

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57980#{"itemid":["001-57980"]} 28

    No pargrafo 45 pode ler-se: Although not specifically mentioned in Article 6 (art. 6) of the Convention,

    there can be no doubt that the right to remain silent under police questioning and the privilege against self-

    incrimination are generally recognised international standards which lie at the heart of the notion of a fair

    procedure under Article 6 (art. 6) 29

    No pargrafo 47 podemos ler: On the one hand, it is self-evident that it is incompatible with the

    immunities under consideration to base a conviction solely or mainly on the accuseds silence or on a refusal

    to answer questions or to give evidence himself. On the other hand, the Court deems it equally obvious that

    these immunities cannot and should not prevent that the accuseds silence, in situations which clearly call for

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57980#{"itemid":["001-57980"]}

  • 16

    E, por isso, considerou, que nem o julgamento tinha sido injusto, nem o princpio

    da presuno de inocncia tinha sido violado, j que a presena do acusado no prdio e a

    sua falta de explicao para o facto eram bastantes para a sua condenao com base no

    simples senso comum30

    .

    Esta deciso suscetvel de crticas, tendo em conta que a regra prevalecente

    nesta matria defende a proibio de valorao do silncio do arguido. Neste sentido,

    manifestaram-se alguns juzes, votando vencido sustentando que o Tribunal no pode

    retirar do facto de o arguido ter permanecido em silncio qualquer indcio incriminatrio.

    A pessoa acusada livre para assumir o risco da sua escolha, tal como livre de confessar

    ou no, o que uma forma de respeito da dignidade humana31

    .

    O caso que se segue, assumiu importncia fundamental para a jurisprudncia do

    TEDH, sendo frequentemente citada. Falamos do caso Saunders32

    . A questo que se

    levantava neste Acrdo era a de saber se, podem ser valoradas num processo criminal,

    declaraes incriminatrias prestadas anteriormente, sob coero. Com efeito, o caso relata

    uma investigao num caso de fraude de uma OPA, feita por uma equipa de inspetores do

    Ministrio do Comrcio e Indstria Britnico, empresa Guinness, dirigida pelo senhor

    Saunders, em que os responsveis e trabalhadores estavam obrigados a colaborar na

    investigao, fornecendo inclusive documentos relativos atividade da sociedade. Se no o

    fizessem poderiam ser punidos a ttulo de desobedincia qualificada. Sucede que as provas

    assim obtidas foram utilizadas no processo criminal que correu contra o senhor Saunders,

    servindo de base para a sua condenao.

    Chamado a pronunciar-se sobre esta questo, o TEDH decidiu que tinha havido

    violao do princpio do processo equitativo, violando assim o artigo 6., n. 1 da

    Conveno. Alm disso, pronunciou-se tambm no sentido de que tinha sido violado

    igualmente o n.2 do mesmo preceito, que consagra o princpio da presuno de

    an explanation from him, be taken into account in assessing the persuasiveness of the evidence adduced by

    the prosecution. 30

    PAULO DE SOUSA MENDES, O dever de colaborao, ob. cit. , p.19. 31

    VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p. 144, nota 37. A autora acaba por concordar com a deciso do Tribunal,

    uma vez que no caso em concreto, o arguido no teria sido condenado apenas com base no seu silncio. 32

    Ac. Saunders vs. Reino Unido, de 17 de dezembro de 1996, disponvel em:

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58009#{"itemid":["001-58009"]}.

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58009#{"itemid":["001-58009"]}

  • 17

    inocncia33

    , argumentando que no que respeita matria penal cabe acusao provar que

    o arguido praticou efetivamente o facto criminoso de que acusado.

    No entanto, este Acrdo tem vindo a ser citado inmeras vezes, no tanto pela

    questo central, mas porque o Tribunal, veio delimitar negativamente o princpio nemo

    tenetur afirmando o seguinte: o direito no autoincriminao concerne, em primeiro

    lugar, ao respeito pela vontade de um acusado em manter o silncio. Tal como

    interpretado na generalidade dos sistemas jurdicos das partes contratantes da

    Conveno, o mesmo no abrange a utilizao, em quaisquer procedimentos penais, de

    dados que possam ser obtidos do acusado recorrendo a poderes coercivos contanto que

    tais dados existam independentemente da vontade do suspeito34

    , tais como, inter alia, os

    documentos adquiridos com base em mandado, as recolhas de saliva, sangue e urina, bem

    como os tecidos corporais com vista a uma anlise de ADN35

    .

    Outro Acrdo que mereceu a nossa ateno prende-se com a questo sensvel das

    operaes encobertas, em que se discutiu se as mesmas constituam uma violao ao artigo

    6. da Conveno. Falamos agora do Acrdo de 5 de novembro de 2002, que decidiu o

    caso Allen versus Reino Unido36

    . Os juzes tiveram de aferir a legitimidade de uma deciso

    do Tribunal Britnico que condenou Allen a pena de priso perptua, com base em prova

    obtida atravs de sistemas de captao de som e imagem, colocadas no interior da esquadra

    onde o arguido se encontrava detido, com o objetivo de extrair declaraes que

    comprovassem a sua autoria no crime de homicdio de que estava acusado. Allen tinha sido

    detido, juntamente com outro suspeito, por causa de um crime de roubo. Entretanto, devido

    a uma denncia annima, passa a ser suspeito de ter assassinado um gerente de loja. Nos

    interrogatrios o arguido optou pelo direito ao silncio.

    Por isso, de forma a obter declaraes do arguido, foram filmadas as conversas

    que ele manteve com a sua mulher durante o perodo de visitas, e tambm aquelas que ele

    estabeleceu com o seu colega de cela, com quem tinha sido detido. Posteriormente, os

    33

    Pargrafo 68: ()The right not to incriminate oneself, in particular, presupposes that the prosecution in

    a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through

    methods of coercion or oppression in defiance of the will of the accused. In this sense the right is closely

    linked to the presumption of innocence contained in Article 6 para. 2 of the Convention (art. 6-2). 34

    Sublinhado nosso. 35

    PAULO DE SOUSA MENDES, O dever de colaborao, ob. cit. , p. 21. E, pargrafo 69 do Acrdo

    Saunders vs. Reino Unido. 36

    Disponvel em:

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-

    58009#{"languageisocode":["ENG"],"appno":["25424/09"],"documentcollectionid2":["GRANDCHAMBER

    "],"itemid":["001-122859"]}

  • 18

    agentes policiais, responsveis pela investigao, decidiram introduzir na cela de Allen, um

    informante, dando-lhe instrues para extrair do queixoso toda a informao que

    conseguisse. Foi com base no depoimento deste informante, e na respetiva gravao, que o

    tribunal fixou a sua convico que culminou com a acusao do arguido.

    Chamado a pronunciar-se, o TEDH considerou ter existido violao do direito

    autoincriminao, concluindo que a informao conseguida atravs da utilizao do

    informador fora obtida contra a vontade do acusado e que o uso da mesma feito em

    julgamento havia atingido o direito no auto-incriminao, em termos incompatveis com

    a garantia do processo equitativo consagrado no art. 6. da Conveno37

    .

    Segundo o TEDH, apesar de o direito ao silncio e o privilgio da no

    autoincriminao se encontrarem concebidos, em primeiro lugar, para prevenir o risco de

    uso imprprio pelas autoridades de mtodos de opresso ou coero directamente

    incidentes sobre a pessoa do acusado para dele obter prova contra sua vontade, o

    respectivo escopo estende-se ainda aos casos em que a coao exercida indirectamente

    sempre que a vontade do acusado haja sido por isso directamente forada de alguma

    forma38

    .

    Depois de feita esta abordagem jurisprudencial do TEDH, possvel retirar alguns

    critrios e princpios fundamentais presentes nas decises. Assim, desde logo resulta da

    jurisprudncia analisada, que o direito no autoincriminao relaciona-se com o respeito

    pela vontade do acusado de permanecer em silncio e em no facultar outros meios de

    prova, o que decorre da estrutura acusatria do processo, que impe acusao fazer prova

    que leve condenao do arguido, sem o recurso a mtodos coercivos violadores da

    vontade deste sujeito processual. E, desta forma, o princpio encontra-se intimamente

    relacionado com o processo equitativo e com a presuno de inocncia consagrados no

    artigo 6., n.1 e n.2 da CEDH39

    .

    Podemos ainda retirar a concluso de que o direito de no contribuir para a sua

    prpria incriminao, no um direito absoluto, mas admite ponderaes e restries no

    confronto com outros interesses juridicamente tutelados, desde que se garanta o ncleo

    essencial daquele direito40

    .

    37

    JOANA COSTA, O princpio nemo tenetur na Jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do

    Homem, in Revista do Ministrio Pblico, n. 128, Outubro/Dezembro 2011, p. 164. 38

    Idem, p. 162. 39

    Idem P. 119. 40

    PAULO DE SOUSA MENDES, O dever de colaborao, ob.cit., p.22.

  • 19

    3. Fundamentos jurdico-constitucionais

    Depois de apresentada uma breve abordagem histrica, e de expostas algumas das

    concretizaes do princpio desenvolvidas pela jurisprudncia europeia, atravs das

    decises do TEDH, cumpre-nos agora explorar de forma mais aprofundada o contedo e os

    fundamentos do princpio em questo.

    O princpio nemo tenetur s ganha sentido prtico no mbito de um processo

    penal de estrutura acusatria. Ao contrrio do que sucedia nos processos de estrutura

    inquisitria, em que o processo penal dominado exclusivamente pelo Estado, pois o

    juiz o dominus do processo, cabendo-lhe inquirir, acusar e julgar, e o arguido visto

    como mero objecto de inquisio41

    , o sistema acusatrio procura a igualdade de poderes

    de actuao processual entre a acusao e a defesa42

    .

    Como nos ensina FIGUEIREDO DIAS, estrutura acusatria significa na

    verdade duas coisas: por um lado, reconhecimento da participao constitutiva dos

    sujeitos processuais na declarao do direito do caso; por outro lado, reconhecimento do

    princpio da acusao, segundo o qual ter de haver uma diferenciao material entre o

    rgo que institui o processo e d a acusao e o rgo que vai julgar.43

    Desta forma, temos dois interesses distintos: por um lado, a descoberta da verdade

    material e a consequente punio dos crimes, e por outro, a proteo do arguido, que

    protegido por garantias de defesa procura afastar qualquer restrio sua liberdade.

    Neste plano, o arguido surge como verdadeiro sujeito processual e por isso, ser-

    lhe- assegurada uma posio jurdica que lhe permita uma participao constitutiva na

    declarao do direito do caso concreto, atravs da concesso de autnomos direitos

    processuais, legalmente definidos, que ho-de ser respeitados por todos os intervenientes

    do processo penal44

    .

    verdade que o processo penal tem como finalidade primria a realizao da

    justia, que passa pela descoberta da verdade material. Visando-se, deste modo, que

    41

    FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Lies coligidas por Maria Joo Antunes, Seco de textos

    da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1988-9, p. 39. 42

    GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Vol. I, 6. Ed., Lisboa, Verbo, 2010, p. 72. 43

    FIGUEIREDO DIAS, A Nova Constituio da Repblica e o Processo Penal, in Separata da Revista da

    Ordem dos Advogados, Lisboa, 1976, p. 9. 44

    FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1974, p. 429-430.

  • 20

    nenhum responsvel passe sem punio, e que nenhum inocente seja condenado45

    . S

    assim, se consegue o desejvel restabelecimento da paz jurdica comunitria, perturbada

    com a prtica do crime. No entanto, de fundamental importncia num Estado de Direito

    assegurar os direitos fundamentais das pessoas. Assim, necessrio que a deciso final

    tenha sido lograda de modo processualmente vlido46

    . Isto significa que no decorrer do

    processo as garantias de defesa do arguido tero de ser respeitadas. Uma vez que ele,

    enquanto sujeito processual, tem o poder de conformar os trmites de todo o processo.

    Alis, defendemos que no h verdade material onde no tenha sido dada ao

    arguido a mais ampla e efectiva possibilidade de se defender da suspeita que sobre ele

    pesa47

    . E esta afirmao implica que as medidas probatrias que sejam exercidas sobre o

    arguido no podem traduzir-se na extorso de declaraes ou de qualquer forma de

    autoincriminao, pois, nestas condies, todos os actos processuais do arguido devero

    ser expresso da sua livre personalidade.48

    Posto isto, constitui pressuposto essencial do processo penal dos modernos

    Estados de Direito a existncia de um verdadeiro privilgio contra a autoincriminao que

    assiste ao arguido, e que no poder sem mais ser afastado49

    . Importa contudo advertir que

    este direito no deve ser entendido na sua mxima amplitude de recusa de qualquer forma

    de cooperao com a justia, mas sim como direito a no colaborar para a sua prpria

    incriminao.50

    Entre ns, assim como no ordenamento jurdico alemo, e ao contrrio de outros

    pases51

    , o princpio contra a autoincriminao do arguido no encontra consagrao

    expressa na Constituio. No entanto, isso no significa que o princpio no tenha natureza

    constitucional. Alis, pacfico o entendimento entre a doutrina e a jurisprudncia que se

    trata de um princpio constitucional no escrito52

    .

    45

    Curso, Vol. 1, ob. cit. , p. 39. 46

    FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Lies ,ob. cit., p. 22-23. 47

    FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Vol. I, , ob. cit., p. 429. 48

    Idem, p. 430. 49

    Na esteira de GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Processual Penal Portugus, Noes Gerais, Vol.

    I, Lisboa, Universidade Catlica Editora, 2013, p. 73-74, este direito traduz-se numa forma de defesa pessoal

    negativa, que aquela em que o arguido se recusa a dar qualquer contribuio para os actos probatrios. 50

    VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.133. 51

    Na Constituio Americana, na Brasileira e na Espanhola. 52

    Cfr., MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, ob. cit. , p. 125; JORGE FIGUEIREDO DIAS

    E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. , p. 39; VNIA COSTA RAMOS, Corpus Juris 2000 -

    Imposio ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare, in Revista do

    Ministrio Pblico, n.109, Jan/Mar 2007, p. 59, e tambm, SNIA FIDALGO, Determinao do Perfil

  • 21

    Como afirma COSTA ANDRADE, no que ao direito processual portugus

    especificamente concerne, a vigncia do princpio, nemo tenetur se ipsum accusare

    afigura-se-nos unvoca53

    . O prprio Tribunal Constitucional j reconheceu em diversos

    acrdos que inquestionvel que o princpio nemo tenetur tem consagrao

    constitucional54

    .

    Mais controversa a questo de saber qual a concreta determinao do contedo

    do direito no autoincriminao. No entanto, para responder a este problema,

    necessrio que em primeiro lugar se definam quais os fundamentos constitucionais do

    princpio nemo tenetur. E, para a resoluo desta querela, h, desde logo, uma diviso que

    tem sido apresentada, proveniente da doutrina germnica, onde, como referimos, o

    princpio tambm no tem assento constitucional expresso.

    Para alguma doutrina, o princpio assenta num fundamento material ou

    substantivo, enquanto para outra parte da doutrina, o privilgio contra a autoincriminao

    tem uma matriz processualista ou adjetiva. Importa realar, desde j, que no indiferente

    a resposta que damos a esta primeira questo. Como afirma VNIA COSTA RAMOS,

    um direito que emana directamente da dignidade da pessoa humana no ser passvel de

    sofrer as mesmas restries que um direito decorrente de garantias processuais. Enquanto o

    primeiro ser um direito de natureza tendencialmente absoluta, j o direito fundado em

    garantias processuais poder ser sujeito a certas limitaes55

    .

    Importa por isso, debruar-nos sobre as duas correntes, e perceber qual o

    alcance que as mesmas comportam.

    Assim, para a primeira das correntes, que designamos de substantiva ou material,

    o fundamento do privilgio contra a autoincriminao assentaria diretamente na dignidade

    da pessoa humana, proclamada pela nossa CRP no seu artigo 1.. Dentro desta perspetiva,

    existem autores, que veem esta prerrogativa como corolrio dos direitos integridade

    pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados nos artigos 25. e 26. da

    Constituio56

    .

    Gentico como Meio de Prova em Processo Penal, in RPCC, Ano 16, N.1, Janeiro-Maro 2006, Sep.,

    p.140. 53

    Sobre as proibies , ob. cit. , p.125. 54

    Podemos apontar entre outros, os Acrdos do TC. n.s 695/95, 542/97, 304/2004, 181/2005, 461/2011,

    340/2013 e 418/2013, disponveis em www.tribunalconstitucional.pt. 55

    Ob. cit. , 2007, p. 58. 56

    Cfr. JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. , p. 40.

  • 22

    Esta corrente tem expresso na doutrina germnica pela voz de Rogall que

    defende que contra o instinto bsico de sobrevivncia do ser humano atuar contra si.

    Assim, para este autor, qualquer violao do direito de uma pessoa actuar em seu prprio

    favor, de pertencer a si mesmo, constituiria uma violao da rea intangvel do direito de

    personalidade57

    .

    No entanto, entendemos, na esteira de VNIA COSTA RAMOS que essa

    fundamentao se mostra insuficiente () por o prprio egosmo auto-favorecedor do

    arguido que segue o seu instinto de sobrevivncia, no parece encaixar-se na dignidade da

    pessoa humana. Alis, reconhecer-se que estes direitos processuais so um meio ou

    forma de concretizar um determinado direito fundamental no implica que este seja o seu

    fundamento directo e imediato. Desde logo se aponta que o prprio conceito de dignidade

    humana recobre de forma mediata toda a matria penal e processual penal de um Estado

    de Direito58

    . E, por isso, o fundamento do princpio h de, ao invs, procurar-se noutros

    direitos com dignidade processual, mas que no deixam de refletir uma dimenso

    material59

    .

    Assim, acompanhamos o entendimento da corrente processualista, que

    corresponde ideia prevalecente na doutrina portuguesa, segundo a qual o direito ao

    silncio e no autoincriminao teriam a sua fonte jurdico-constitucional nas garantias

    processuais reconhecidas ao arguido no texto constitucional60

    . Dentro desta corrente

    podemos observar algumas diferenas entre a doutrina.

    Alguns autores fazem assentar o princpio nemo tenetur na estrutura acusatria do

    nosso processo penal, e nas garantias de defesa do arguido61

    , uma vez que o acusado

    visto como verdadeiro sujeito processual, capaz de influenciar a deciso final da sua

    condenao, e no como mero objeto do processo. Reafirma-se o entendimento segundo o

    qual o direito de defesa constitui uma categoria aberta qual devem ser imputados todos

    os concretos direitos de que o arguido dispe, de co-determinar ou conformar a deciso

    57

    VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , 2007, p. 62. 58

    FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. , p.41 59

    Idem, p. 63. 60

    Idem, p. 40. 61

    PAULO DE SOUSA MENDES, Os direitos..., ob. cit. , p. 819; neste sentido, v. tambm MARIA DE

    FTIMA REIS, ob. cit. , p. 50, que afirma: o direito no autoincriminao, ou princpio nemo tenetur se

    ipsum accusare , tradicionalmente um dos direitos de defesa dos acusados.

  • 23

    final do processo62

    . Assim, dotado na sua esfera jurdica de verdadeiros direitos

    processuais, o arguido assume a veste de pessoa, cuja dignidade humana inviolvel, e

    despe os trajes tpicos do processo inquisitrio que o reduziam a mero instrumento. Alis,

    o TC63

    , j teve oportunidade de referir que O princpio nemo tenetur se ipsum accusare,

    uma marca irrenuncivel do processo penal de estrutura acusatria, visando garantir que

    o arguido no seja reduzido a mero objecto da atividade estadual de represso do crime,

    devendo antes ser-lhe atribudo o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os

    direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente.

    Como afirmam FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE: No princpio nemo

    tenetur espelha-se a essncia de um processo penal em que se reconhecem e tutelam as

    garantias inerentes qualificao do arguido como um autntico sujeito processual 64

    .

    Outros ainda65

    veem a prerrogativa do direito no autoincriminao como um

    corolrio do fair trial, ou do processo equitativo, consagrado no artigo 6., n.1 na

    CEDH, e no artigo 20., n.4 da Lei Fundamental.

    Para outros, o privilgio contra a autoincriminao decorre do princpio da

    presuno de inocncia, consagrado entre ns no artigo 32., n.266

    , da CRP. Com efeito, o

    princpio da presuno de inocncia encontra-se, entre outros diplomas, proclamado na

    Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1798, no seu artigo 9., n.267

    , e na

    CEDH, no seu artigo 6., n.2, e constitui um direito fundamental do arguido, que lhe

    reconhecido num Estado de Direito Democrtico. Este princpio significa que, por um

    lado, o acusado presumivelmente inocente at o trnsito em julgado da sentena que o

    condene, e, por outro, que no cabe ao arguido participar na produo de prova contra a

    sua vontade, uma vez que, a presuno de inocncia, contrariamente de culpa, significa

    uma inverso do nus da prova. Por isso, cabe ao Estado provar que o arguido o autor

    do crime que est a ser investigado, e, no deve o arguido ser coagido a contribuir para a

    sua prpria condenao68

    . Alis, como afirma FIGUEIREDO DIAS, O princpio da

    presuno de inocncia, ligado agora directamente ao princpio da dignidade pessoal,

    62

    FIGUEIREDO DIAS, Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Cdigo de Processo Penal, in Jornadas de

    Processo Penal O novo Cdigo de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1988, p.27-28. 63

    Ac. n. 340/2013. 64

    Ob. cit. , p.41. 65

    V. VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., 2007, p. 69-72. 66

    Todo o arguido se presume inocente at ao trnsito em julgado da sentena de condenao. 67

    Cuja formulao a seguinte: sendo todo o homem presumido inocente at ser declarado culpado. 68

    LILIANA DA SILVA S, O dever de cooperao versus o direito no auto-incriminao, in RMP, Ano 27,

    N.107, Jul-Set 2006, p. 133.

  • 24

    conduz a que a utilizao do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo

    integral respeito pela sua deciso de vontade69

    .

    Desta forma, somos levados a concluir, na linha do que o Tribunal Constitucional

    tem defendido70

    , e no seguimento da doutrina citada, que de forma imediata o direito no

    autoincriminao encontra o seu fundamento jurdico-constitucional nas garantias

    processuais de defesa do arguido, nomeadamente, no princpio da presuno de inocncia,

    inerentes e existentes num processo penal de estrutura acusatria, que se destinam a

    assegurar ao arguido um processo equitativo nos termos atrs explanados. E, que de forma

    mediata, o princpio reflexo do direito fundamental da dignidade humana e da liberdade

    de ao. Pois, s no exerccio de uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir

    se e como deseja tomar posio perante matria que constitui objecto do processo71

    .

    4. Direito no autoincriminao e direito ao silncio

    Parece-nos importante desde j defender que direito no autoincriminao e

    direito ao silncio no so conceitos sinnimos. Efetivamente, como atrs ficou dito

    quando definimos o princpio, o direito no autoincriminao desdobra-se no direito ao

    silncio, que se traduz na liberdade que o arguido tem em no prestar declaraes que o

    incriminem, e, tambm no direito que ele tem de no oferecer meios de provas72

    . Sendo

    certo porm que os dois direitos andam normalmente de mos dadas, os seus contedos

    no so totalmente coincidentes, mas, por vezes, chegam a sobrepor-se e a confundir-se.73

    A confuso pode suscitar-se, na medida em que o direito ao silncio assume a

    manifestao mais evidente do princpio nemo tenetur74

    . No entanto, no podemos deixar

    69

    69

    FIGUEIREDO DIAS, Sobre os Sujeitos ob. cit., p.27e ss.. 70

    No Acrdo n. 695/95, o TC declarou inconstitucional o n.2 do artigo 342. do CPP, fundamentando que

    a imputao ao arguido do dever de responder a perguntas sobre os seus antecedentes criminais formulada

    no incio da audincia de julgamento viola o direito ao silncio, enquanto direito que integra as garantias de

    defesa do arguido. Itlico nosso. 71

    71

    FIGUEIREDO DIAS, Sobre os Sujeitos, ob. cit., p. 27-28. 72

    Ac. TC n. 340/2013, Este princpio, alm de abranger o direito ao silncio propriamente dito, desdobra-se

    em diversos corolrios, designadamente nas situaes em que estejam em causa a entrega de documentos

    autoincriminatrios, no mbito de um processo penal. 73

    VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p. 132. 74

    Neste sentido, CRUZ BUCHO, ob. cit., p. 29; Ac. do TC n.418/2013, Ac. do TEDH Saunders V. Reino

    Unido; AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, p. 20-21: O direito ao silncio constitui assim o

    ncleo quase absoluto do nemo tenetur.; tambm PAULO SOUSA MENDES, O dever de colaborao, p.

    15, que define o princpio segundo o qual ningum deve ser obrigado a contribuir para a sua prpria

    incriminao, que engloba o direito ao silncio e o direito de no facultar meios de prova;

  • 25

    de frisar que o princpio nemo tenetur pretende conferir ao arguido, mais do que o direito

    de no declarar contra si atravs de manifestaes verbais, o autntico direito de no

    oferecer provas que contribuam para formar a convico no juiz de que ele autor do

    crime. unnime entre a doutrina, e a jurisprudncia que as manifestaes verbais no

    so as nicas formas em que se apresenta o princpio contra a autoincriminao, pois,

    atravs de outras condutas possvel produzir prova de carter incriminatrio, utilizvel

    contra quem a produziu75

    .

    Daqui resulta que o princpio implica, por um lado que ningum est obrigado a

    declarar contra si mesmo, e, por outro, que ningum obrigado a produzir prova contra a

    sua defesa. Assim, alm das declaraes do arguido, o princpio atinge a produo de

    provas () em que o arguido seja convocado a participar76

    .

    Defendemos por isso, uma conceo ampla do princpio ao invs de uma

    conceo restritiva77

    segundo a qual o princpio apenas abrange a vertente negativa da

    liberdade de declarao.78

    Cremos que o princpio perde a importncia que merece se o

    olharmos nesta perspetiva, diminuindo consequentemente as garantias de defesa do

    arguido. De que serve ao arguido o direito de no prestar declaraes, se por outras formas

    for obrigado a fornecer meios de prova que o incriminam? Sustentamos que o arguido tem

    no s o direito ao silncio, como tambm o direito a no participar na formao da sua

    prpria culpabilidade, fornecendo prova contra si.

    Alguns autores79

    defendem, ao invs, que o direito no autoincriminao uma

    componente do direito ao silncio. Neste sentido, perspetivando o direito ao silncio em

    sentido amplo, defendem que este abrange no s as declaraes do arguido (aqui

    estaramos apenas no mbito do direito ao silncio em sentido estrito), mas qualquer tipo

    de declarao, que se pode traduzir na entrega de documentos, na indicao da localizao

    75

    CARLOS HADDAD, Contedo e contornos do princpio contra a auto-incriminao, tese de doutoramento

    apresentada na Faculdade de Direito de Minas Gerais, a 13 de Outubro de 2003, disponvel em:

    http://www.bibliotecadigital.ufmg.brp, p. 43. 76

    ADRIANA RISTORI, Sobre o Silncio do Arguido no Interrogatrio No Processo Penal Portugus,

    Coimbra, Almedina, 2007, p.98. 77

    Este tambm o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Norte-Americano. 78

    Como nos afirma MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, p. 120-121, atravs de ESSER:

    esta liberdade analisa-se numa dupla dimenso ou funo. Pela positiva, ela abre ao arguido o mais irrestrito

    direito de interveno e declarao em abono da sua defesa. () Pela negativa, a liberdade de declarao

    ganha a estrutura de um autntico Abwehrrecht contra o Estado, vedando todas as tentativas de obteno por

    meios enganosos ou por coaco de declaraes auto-incriminatrias. 79

    Cfr. JNATAS MACHADO E VERA RAPOSO, ob. cit., p. 17.

    http://www.bibliotecadigital.ufmg.brp/

  • 26

    dos meios de prova, ou atravs de uma atuao. Nesta vertente, o direito ao silncio

    significa o direito a no ser obrigado a fornecer prova da sua culpabilidade80

    .

    Ora, na senda da autora LARA SOFIA PINTO, defendemos que este no deve ser

    o entendimento a seguir. Pelo contrrio, acolhemos uma conceo minimalista do direito

    ao silncio, abarcando este apenas as declaraes verbais do arguido sobre os factos que

    lhe so imputados. Nesta linha, o direito ao silncio um dos corolrios do direito no

    autoincriminao, que em sentido amplo, se traduz no direito a no facultar quaisquer

    meios de prova para a sua prpria autoincriminao.

    Como se v, os conceitos assumem significados e alcances distintos. O direito ao

    silncio, por razes histricas e pela sua consagrao normativa, assume uma importncia

    que permite a sua autonomizao dentro do princpio no autoincriminao. No entanto,

    no pode deixar de ser visto como um corolrio do nemo tenutur, uma vez que a liberdade

    de no declarar ela mesma uma forma de no autoincriminao, mas no a nica.

    Consideramos que o direito ao silncio, mesmo perspetivado numa viso

    maximalista, nunca seria capaz de acolher casos mais complexos e fronteirios em que o

    arguido submetido a medidas de investigao que incidem sobre o seu corpo. Olhemos,

    por exemplo, para a extrao de amostras de sangue, cabelo ou saliva para determinao do

    perfil de ADN, na realizao de uma cirurgia para a remoo de um projtil ou a utilizao

    de emticos para recuperar drogas, ou para a colaborao forada numa recolha de

    autgrafos para comparao de caligrafia81

    . Estes casos cairiam, sem qualquer hesitao,

    fora das malhas de proteo do direito ao silncio, mesmo encarado numa perspetiva

    maximalista. Por este motivo, defendemos essencialmente que o privilgio contra a

    autoincriminao confere ao arguido o direito a no contribuir, por qualquer forma, para a

    formao da convico do juiz de que ele o autor do crime de que acusado. Com isto,

    no queremos dizer que o princpio absoluto, e que no pode sofrer quaisquer restries.

    Pelo contrrio, admitimos que sendo esta a regra, ela comportar as devidas excees nos

    termos em que as mesmas forem permitidas.

    80

    LARA SOFIA PINTO, ob. cit., p.109. 81

    Cfr. SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido Como meio de Prova contra si mesmo: consideraes em

    torno do princpio Nemo Tenetur se Ipsum Accusare, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade

    do Porto, X, Porto, 2013, p. 362.

  • 27

    5. Critrios delimitadores do princpio nemo tenetur

    Sustentmos j, neste trabalho, que o direito no autoincriminao tem um

    contedo abrangente, no coincidindo exclusivamente com o direito ao silncio. Alis, este

    ltimo apenas uma das manifestaes daquele, ainda que a mais evidente. Podemos

    mesmo dizer que a extenso do princpio foi-se paulatinamente ampliando82

    . Com efeito,

    se no incio as questes que se colocavam visavam sobretudo defender que o arguido no

    fosse obrigado a confessar a prtica do crime, passando por isso pelo direito ao silncio,

    atualmente, e com a evoluo da cincia, as questes tornam-se mais complexas, uma vez

    que o corpo do arguido pode fornecer provas que de outra forma no seriam obtidas. E,

    nestas situaes, entramos na zona de fronteira, entre os casos em que o arguido assume

    a posio de sujeito processual e aqueles em que a lei permite o seu estatuto como meio de

    prova83

    . Nestas situaes no fcil decidir: quando se est ainda no mbito de um

    exame, revista, acareao ou reconhecimento, admissveis mesmo se coactivamente

    impostos; ou, quando, inversamente, se invade j o campo da inadmissvel auto-

    incriminao coerciva84

    .

    Face a esta dificuldade de traar uma linha que separe as situaes que caiem nas

    malhas de proteo do princpio nemo tenetur, daquelas que no se situam na sua esfera, a

    doutrina e a jurisprudncia tm-se apoiado em critrios.

    Um desses critrios foi elaborado pelo TEDH, no caso Saunders versus Reino

    Unido, que j tivemos oportunidade de tratar, mas que importa aqui relembrar. Falamos do

    critrio da dependncia ou independncia da vontade do arguido, segundo o qual o

    princpio no abrangeria as prestaes pessoais do arguido, ainda que exigidas sob ameaa

    de sano, desde que estas fossem independentes da vontade do sujeito85

    . Como refere o

    clebre Ac. do TEDH, o mesmo (o princpio nemo tenetur) no abrange a utilizao, em

    quaisquer procedimentos penais, de dados que possam ser obtidos do acusado recorrendo a

    poderes coercivos contanto que tais dados existam independentemente da vontade do

    suspeito.86

    82

    Neste sentido, CARLOS HADDAD, ob. cit., p.17. 83

    MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, 127. 84

    Idem. 85

    AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p. 24. 86

    Sublinhado nosso.

  • 28

    Importante tambm nesta matria, entre outros87

    , o Ac. do TEDH, que decidiu o

    caso Jalloh versus Alemanha88

    . Com efeito, aqui, estava em causa a administrao forada,

    atravs de uma sonda nasal, de substncias indutoras do vmito, atravs da qual se operou

    a recuperao da cpsula de cocana que o suspeito engolira quando foi detido em flagrante

    delito pela polcia. Neste acrdo, o TEDH voltou a afirmar o critrio seguido no caso

    Saunders, e alm disso, indicou tambm os critrios que devem estar presentes para decidir

    se determinada situao viola ou no o princpio nemo tenetur em concreto. Segundo o

    TEDH, para determinar se o direito autodeterminao do queixoso foi violado, o

    Tribunal, por sua vez, ter de considerar os seguintes factores: a natureza e o grau de

    coero empregado para obter a prova, a importncia do interesse pblico na

    investigao e punio da infraco em apreo, a existncia de garantias relevantes no

    processo e a utilizao prevista dos meios de prova obtidos dessa forma. No caso em

    apreciao, o TEDH conclui que o interesse pblico em assegurar a condenao do

    queixoso no podia justificar o recurso a to grave interferncia na sua integridade fsica e

    mental89

    .

    Contra este critrio argumenta-se que, nesta perspetiva, o princpio ficaria cingido

    s declaraes orais, fazendo-o coincidir com o direito ao silncio. Alm disso, no

    aceitvel defender que s as declaraes orais dependem da vontade do arguido, enquanto

    outras diligncias probatrias, como a colheita de ar expirado ou de urina, no esto na

    dependncia da sua vontade. Defende-se, por isso, que quem forado (sob ameaa de

    sano), a prestar declaraes, a entregar documentos ou a ceder ar, saliva ou urina, no s

    se torna objecto de prova como pode produzir prova contra si mesmo90

    .

    Para outros autores, o critrio de delimitao assentar na distino entre conduta

    ativa e tolerncia passiva do arguido, e neste sentido, s no primeiro caso estaria a violar-

    se o princpio nemo tenetur. Este critrio adotado pelo Tribunal Constitucional Alemo, e

    acolhido pela doutrina tradicional alem91

    . Segundo este entendimento, quando a

    87

    Ver por exemplo, o Ac. Quinn vs. Irlanda, de 21 de dezembro de 2000 e o Ac. P.G. et J.H. vs. Reino

    Unido, de 25 de setembro de 2001, o critrio foi reafirmado, disponveis em http://hudoc.echr.coe.int. 88

    De 11 de julho de 2006. Disponvel em:

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-76307#{"itemid":["001-76307"]}. 89

    JOANA COSTA, ob. cit., p. 158 e ss.. 90

    AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p.24-25, e ainda, p. 32 e ss.. 91

    Cfr. KARL-HEINZ GOSSEL, As proibies de prova no direito processual penal da repblica federal da

    Alemanha, Trad. de Manuel da Costa Andrade, in RPCC, Ano 2, Janeiro-Maro 1992, p. 423, Tais

    medidas s so, de todo o modo, permitidas se e na medida em que o arguido as sofra de modo meramente

    passivo, no podendo ser compelido a participar activamente na sua realizao. Isto porquanto tal

  • 29

    colaborao do arguido consubstancie uma ao, esta ser inexigvel, podendo o arguido

    opor-se92

    . Implicando, a contrario, que a conduta passiva do arguido, traduzindo-se numa

    sujeio, j ser exigvel ao acusado93

    . Entende esta parte da doutrina que s atravs de

    uma atividade ou de uma ao o arguido produz prova, e s quando produz prova est

    protegido pelo princpio94

    .

    Entre ns, este critrio parece ter sido acolhido pelo TC, no AC. n. 155/2007, que

    comeando por referir a citada jurisprudncia dos juzes de Estrasburgo, esclarece ()

    essa colheita (no caso, de saliva para efeitos de realizao de anlises de A.D.N.) no

    constitui nenhuma declarao, pelo que no viola o direito a no declarar contra si mesmo

    e a no se confessar culpado. Constitui ao invs uma percia de resultado incerto, que,

    independentemente de no requerer apenas um comportamento passivo, no se pode

    catalogar como obrigao de autoincriminao.95

    Contra este pensamento no faltam crticas96

    , nomeadamente da doutrina alem

    mais recente, que, na voz de WOLFSLAST contesta este critrio, alegando que pode haver

    uma violao da dignidade da pessoa humana tambm nos casos de colaborao passiva e

    no apenas nos casos de colaborao ativa97

    . Alis, servindo-nos das palavras da autora, o

    tormento, a humilhao de ter de ser instrumento contra si prprio podem, em caso de

    passividade forada e verificadas certas circunstncias, ser maiores do que em caso de

    colaborao activa98

    .

    Tambm entre ns, a doutrina, acompanhado o pensamento da autora alem,

    considera este critrio insatisfatrio, simplista e de difcil aplicao prtica99

    , reconhecendo

    configuraria () uma afronta inadmissvel dignidade humana. O arguido no pode, por isso, ser, v.g.,

    obrigado a participar em testes, reconstituio dos factos, provas grafolgicas ou lingusticas.. nesta

    distino entre colaborao activa e mera passividade, que na Alemanha se vem entendendo que o arguido

    no pode ser obrigado a soprar nos testes de controlo de alcoolmia, v. MANUEL DA COSTA ANDRADE,

    Sobre as Proibies, ob. cit., p. 129. 92

    V. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Anotao ao Acrdo do TC n. 340/2013, in Revista de

    Legislao e de Jurisprudncia, N.3989, Nov/Dez de 2014, p. 143, Brevitatis causa tomaremos aqui o

    privilgio contra a auto-incriminao pelo seu contedo nuclear. A significar que ningum pode ser

    coactivamente obrigado a contribuir activamente para a sua prpria condenao em processo penal. 93

    LARA SOFIA PINTO, p. 97. 94

    Neste sentido, CARLOS HADDAD, ob. cit., p.64. 95

    Itlico nosso. 96

    Contra a excessividade das crticas que so colocadas ver CARLOS HADDAD, ob. cit., p. 60-68. 97

    GABRIELE WOLFSLAT apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, ob. cit., p.127-128. 98

    Idem 99

    Entre outros, v. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, ob. cit., p. 127-131; SNIA

    FIDALGO, ob. cit., p. 141; LARA SOFIA PINTO, ob. cit., p. 97-98.

  • 30

    que difcil traar a linha que delimite os comportamentos que traduzem uma ao e os

    que, pelo contrrio, espelham uma sujeio100

    .

    De facto, a doutrina101

    e jurisprudncia102

    portuguesas tm optado por outro

    critrio: pelo critrio da concordncia prtica ou da ponderao dos bens. Seguimos, por

    considerarmos ser este o melhor critrio, o entendimento protagonizado por FIGUEIREDO

    DIAS E COSTA ANDRADE, que reconhecendo que o direito ao silncio e o direito no

    autoincriminao, constitucionalmente consagrados, assumem importncia fundamental

    num processo penal acusatrio como o nosso, admitem igualmente que estes direitos

    podem ser restringidos. E assim, afirmam que para que no restem dvidas sobre a

    constitucionalidade destas restries, parece seguro que elas devem obedecer a dois

    pressupostos: devem estar previstas em lei prvia e expressa, de forma a respeitar a

    exigncia de legalidade; e devem tambm obedecer ao princpio da proporcionalidade e

    da necessidade, previsto no artigo 18., n.2, da CRP103

    .

    Em sntese, para que o afastamento do princpio nemo tenetur seja legtimo

    imprescindvel que exista uma lei que expressamente imponha ao arguido um dever de

    colaborao. Socorrendo-nos das palavras de COSTA ANDRADE, defendemos

    veementemente que todo o atentado liberdade dos cidados carece de expressa

    legitimao legal104

    . No entanto, para que essa lei exista, ela tem de resultar de um juzo

    de ponderao que confronte os valores que esto em causa.

    Do mesmo modo, SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS invocam o critrio

    da concordncia prtica, quando afirmam que o modo de dirimir essa coliso , no

    atravs de um critrio all or nothing, mas por meio de uma compatibilizao ou

    concordncia prtica que visa aplicar todos os princpios colidentes, harmonizando-os

    entre si na situao concreta105

    .

    Neste sentido, o princpio nemo tenetur ter de ceder face a outros valores que a

    ordem jurdica reconhece serem superiores, ou, ento, que s dessa forma se salvaguardam

    100

    WOLFSLAT invoca como exemplo, a hiptese em que para se reconhecer o arguido, este fisicamente

    obrigado a manter a cabea erguida, ou a assumir uma determinada expresso facial; ou, nos casos de recolha

    de sangue, quando se pede ao arguido que cerre os punhos; ou ainda, quando o arguido obrigado a

    administrar uma substncia emtica. 101

    Ver neste sentido, JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., p. 45;

    AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p. 23 e ss; LARA SOFIA PINTO, ob. cit., p. 111; e

    tambm, FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Lies, ob. cit., p. 24-26. 102

    Ver AC. TC n.155/2007. 103

    Ob. cit., p. 44-45. 104

    Ob. cit., p. 130. 105

    Ob. cit., p.23

  • 31

    interesses de igual importncia. O indispensvel , que estando reconhecida essa

    necessidade de afastar o princpio, haja uma lei expressa que derrogue o princpio

    constitucional da no autoincriminao do arguido. At porque, jamais podemos renunciar

    ao valor essencial que defende que todo o atentado liberdade dos cidados carece de

    expressa legitimao legal.106

    Assim, este critrio permite, por um lado, fazer um juzo de constitucionalidade

    do dever de colaborao que imposto ao arguido; e, por outro, possibilita aferir da

    legalidade da restrio que for feita ao nemo tenetur107

    .

    6. Consagrao do princpio nemo tenetur na ordem jurdica

    portuguesa - evoluo histrica (breve aluso)

    Como vimos, embora unanimemente reconhecido como vigente na ordem

    jurdico-processual penal portuguesa, o princpio nemo tenetur no tem consagrao

    expressa, nem na Constituio, nem no Cdigo de Processo Penal.

    Mas, ficou j demonstrado que o nemo tenetur constitui um princpio

    constitucional no escrito, assente de forma imediata nos artigos 32. e 20., n.4 da CRP e

    de forma indireta nos artigos 1., 24. e 25. da Lei fundamental. O princpio s aparece

    positivado, entre ns, na vertente do direito ao silncio, no CPP.

    Antes de olharmos para a consagrao que o mesmo assume na legislao atual,

    vamos debruar-nos sobre as suas primeiras aparies na nossa ordem jurdica.

    Como j tivemos oportunidade de referir, as questes iniciais do princpio nemo

    tenetur, relacionavam-se em primeira linha com o direito ao silncio. por este motivo,

    que este direito assume uma importncia que outros corolrios do princpio no detm.

    Recuando mais de dois sculos atrs, podemos constatar que as questes

    relacionadas com o princpio, j se colocavam. Com efeito, as primeiras origens do direito

    ao silncio parecem remontar ao Projeto do Cdigo Criminal de 1789 e s Instituies de

    Direito Criminal. J nesta poca, Pascoal de Melo Freire defendia que o ru no deveria ser

    constrangido a responder num processo criminal, sob pena de ser levado a confessar o

    106

    MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as proibies, ob. cit., p.130. 107

    CRUZ BUCHO, ob. cit., p. 48.

  • 32

    crime ou a incorrer em perjrio108

    . Posteriormente, a Nova Reforma Judiciria de 1841,

    que implementou no nosso pas o modelo acusatrio continental veio acolher o direito ao

    silncio109

    .

    Em 1910, pelo Decreto-Lei de 28 de dezembro este direito vem assumir

    consagrao legal expressa. Efetivamente, o diploma veio declarar que nenhum ru em

    processo penal podia ser obrigado a responder em audincia de julgamento, com exceo

    das perguntas relativas sua identidade. Alm do mais, o julgador devia inform-lo desse

    direito e devia orientar o seu interrogatrio como exerccio do direito de defesa, e no

    como comprovao da acusao.

    Posteriormente, surgindo da necessidade de codificar a imensa legislao

    processual penal avulsa, o CPP de 1929110

    , que vigorou durante o regime do Estado Novo

    at 1987, veio consagrar de forma expressa, esta vertente do direito no

    autoincriminao, tendo como limitao a obrigao de responder com verdade quando

    questionado sobre a identificao pessoal e os antecedentes criminais. Porm, podemos

    dizer que, durante este perodo o direito ao silncio no tinha uma concretizao real, uma

    vez que o silncio do arguido podia ser valorado contra si, como indcio da sua

    culpabilidade. Alm disso, se o arguido tivesse confessado o crime numa fase anterior ao

    julgamento, essa confisso poderia ser usada, mesmo que fosse obtida contra a sua

    liberdade. Neste contexto de Ditadura Militar, o processo penal, designado de mitigado ou

    acusatrio formal, que na realidade se aproximava mais do modelo inquisitrio, visava

    primacialmente a descoberta da verdade material. Fruto da ideologia antidemocrtica e

    antiliberal, os direitos de defesa do arguido eram deixados para segundo plano,

    prevalecendo o interesse da comunidade jurdica em condenar o acusado111

    .

    Posto isto, somos levados a afirmar que s com o CPP de 1987112

    o direito ao

    silncio obteve, na prtica, efetiva consagrao. Com a Revoluo de 25 de Abril de 1974

    e com a entrada em vigor da Constituio de 1976, surge a necessidade de uma reforma do

    108

    AUGUSTO SILVA DIAS, O Direito no auto-inculpao no mbito das contra-ordenaes do CVM, in

    Revista de Concorrncia e de Regulao, Coimbra, N.1, 2010, p. 243. 109

    V. AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p. 10 e ss.. 110

    Decreto-Lei n. 16489, de 15 de Fevereiro de 1929. 111

    AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p. 13. 112

    Decreto-Lei n.78/87, de 17 de Fevereiro de 1987.

  • 33

    sistema processual penal, para que este se adequasse aos princpios do Estado de Direito

    material, de raiz democrtica e social113

    .

    Entre ns, o direito ao silncio aparece consagrado no artigo 61., n.1, alnea d)

    do nosso CPP, onde se diz expressamente que o arguido goza, em especial, em qualquer

    fase do processo e salvas as excees da lei, do direito de no responder a perguntas feitas,

    por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o contedo das

    declaraes que acerca deles prestar.

    titular do direito ao silncio, em primeira linha, o arguido. Mas no s. Nos

    termos do artigo 132., n.2, do CPP, o mesmo direito conferido testemunha, desde que

    esta alegue que da resposta s perguntas formuladas resulta a sua responsabilizao penal.

    E, este direito protege o arguido desde o momento em que ele aparece no processo

    enquanto suspeito114

    . O suspeito, no sujeito processual, mas pode adquirir os direitos de

    defesa previstos no artigo 61., desde que requeira a constituio de arguido, como resulta

    do artigo 59., n.2, do CPP. Este direito complementado com outras disposies legais,

    que regulam especificamente o exerccio deste direito durante as vrias fases do processo.

    A partir do momento em que assume o estatuto de arguido, recai sobre a

    autoridade judiciria ou sobre o rgo de polcia criminal a obrigao de lhe indicar e

    prestar as devidas informaes e explicaes sobre os direitos e deveres processuais

    referidos no artigo 61. da CPP, como dispe o art.58., n.2 do CPP.

    Nesta linha declarou o TC no Ac. n. 695/95, que o arguido deve ser informado,

    antes de qualquer interrogatrio, de que goza do direito ao silncio (141., n.4, al. a),

    143., n.2, 144. n.1 e 343., n.1 do CPP), devendo tambm ser esclarecido de que o seu

    silncio no pode ser interpretado desfavoravelmente aos seus interesses, no podendo,

    por isso, o arguido ser prejudicado por ter exercitado o seu direito a no prestar

    quaisquer declaraes (o silncio no pode ser interpretado como presuno de culpa).

    Desta forma, optando pelo silncio, este comportamento do arguido no o pode

    desfavorecer, alis, o tribunal no o pode valorar contra aquele sujeito processual, nem no

    113

    FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Lies, ob. cit., p. 55. 114

    Suspeito toda a pessoa relativamente qual exista indcio de que cometeu ou se prepara para cometer

    um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar, artigo 1., al. e) do CPP. Arguido todo

    aquele contra quem for deduzida acusao ou requerida instruo num processo penal, artigo 57., n.1, do

    CPP.

  • 34

    sentido de ele valer com indcio ou presuno de responsabilidade criminal do arguido,

    nem como factor de determinao concreta da pena.115

    6.1. A transmissibilidade das declaraes anteriormente prestadas

    pelo arguido para a audincia de julgamento

    Desde ento, at ao presente, o CPP j foi objeto de vrias alteraes e revises

    fundadas na prossecuo de objetivos poltico-criminais. Alis, podemos afirmar com

    SOUSA MENDES que O aperfeioamento da legislao processual penal nunca ,

    porm, uma questo meramente tcnica, axiologicamente neutra116

    . O processo penal

    mesmo o instrumento que leva a cabo os objetivos traados nos horizontes da poltica

    criminal, que hoje visa uma maior eficcia do sistema processual penal, que passa, em

    primeiro lugar, pela defesa da descoberta da verdade material.

    Ora, algumas dessas alteraes vieram contender diretamente com os direitos

    conferidos ao arguido, e, concretamente com o direito no autoincriminao do arguido,

    na vertente do direito ao silncio. A mais recente foi operada pela Lei n.20/2013, de 21 de

    fevereiro, que veio proceder vigsima alterao do CPP.

    No que respeita s declaraes do arguido, o referido diploma introduziu uma

    alterao significativa ao artigo 141., n.4, cuja al. b) dispe agora o seguinte: o juiz

    informa o arguido de que no exercendo o direito ao silncio as declaraes que prestar

    podero ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausncia, ou no preste

    declaraes em audincia de julgamento, estando sujeitas livre apreciao da prova. Isto

    s ser vlido, desde que o arguido seja assistido por defensor e seja claramente advertido

    desta possibilidade, nos termos da alnea b), do n.1, do art. 357. do CPP.

    Antes desta alterao legislativa, a leitura de declaraes anteriormente feitas pelo

    arguido s era permitida em dois casos. Em primeiro, quando fosse solicitada pelo prprio

    arguido, nos termos da al. a) do referido preceito. Em segundo, quando prestadas perante o

    115

    MARIA JOO ANTUNES, Direito ao silncio, ob. cit., p.26; no mesmo sentido, HELENA MONIZ,

    Os problemas Jurdico-Penais da criao de uma base de dados genticos para fins criminais, in RPCC,

    Coimbra, Coimbra Editora, Ano 12, Jan/Mar 2002, p. 263. 116

    A questo do aproveitamento probatrio das declaraes processuais do arguido anteriores ao

    julgamento, p.9, disponvel em:

    http://www.idpcc.pt/xms/files/Noticias_e_Eventos/Sousa_Mendes_Aproveitamento_das_declaracoes_do_arg

    uido_anteriores_ao_julgamento.pdf.

  • 35

    juiz, houvesse contradies entre elas e as feitas em audincia, nos termos da al.b) com a

    redao que lhe era dada antes da entrada em vigor da Lei 20/2013. Ora, at aqui, a regra

    era a da intransmissibilidade probatria das declaraes anteriores ao julgamento, hoje a

    regra a da transmissibilidade.

    Estas alteraes foram feitas com base no argumento de que tal permitir dotar

    o processo penal portugus de maior eficcia, suplantando-se desse modo as dificuldades

    probatrias que emergem da circunstncia de o arguido muitas vezes se remeter ao

    silncio na audincia de julgamento, embora tendo anteriormente prestado declaraes

    confessrias perante autoridade judiciria e tendo sido assistido por advogado117

    .

    Ou seja, visa-se o reforo da descoberta da verdade material, mas em

    contrapartida ficam beliscados os direitos de defesa do arguido, comprometendo o sistema

    processual penal de estrutura acusatria, e os princpios em que o mesmo assenta, como o

    princpio da oralidade, da mediao, do contraditrio, e da livre apreciao da prova. Alm

    do mais, o que esta alterao vem implicar, concretamente, que desta forma o arguido

    exercer o direito ao silncio desde o incio de todo o processo, deixando de fornecer

    qualquer indicao que ajudasse a investigao na descoberta de provas necessrias

    acusao118

    .

    Apesar de tudo, e de entendermos que esta alterao ao CPP deveria ter sido mais

    refletida e ponderada, a verdade que ela veio lanar a discusso sobre as efetivas

    garantias de defesa do arguido e sobre os princpios em que assenta o nosso processo

    penal.

    Defendemos que o direito no autoincriminao um princpio materialmente

    constitucional, e que tem vigncia no nosso ordenamento jurdico, no entanto, na verdade,

    so cada vez mais as restries que se verificam ao mesmo. E, se, algumas dessas

    limitaes se justificam face a outros interesses prevalecentes e reconhecidos pela

    comunidade jurdica, outras parecem surgir merc dessa ponderao, contribuindo para a

    incongruncia do sistema processual penal. Ora, se por um lado defendemos que o arguido

    um verdadeiro sujeito processual e que, num Estado de Direito, assente na dignidade da

    pessoa humana jamais pode ser reconduzido a mero objeto do processo, por outro lado, na

    realidade atual caminhamos no sentido de dar primazia eficcia do sistema e descoberta

    da verdade material, atravs da reduo dos direitos de defesa do arguido.

    117

    PAULO DE SOUSA MENDES,A questo do aproveitamento, cit., p.1. 118

    Idem p. 14.

  • 36

    7. Restries legais ao princpio

    Apesar de tudo, e como j referimos anteriormente, defendemos que o princpio

    nemo tenetur no um princpio absoluto. Alis, nesta matria, seguimos o pensamento de

    MARIA ELISABETH QUEIJO, quando afirma que a inexistncia do dever de colaborar,

    em todos os casos redundaria em uma conceo do nemo tenetur se deteregere como

    direito absoluto, aniquilando, em determinadas situaes, por completo, a possibilidade de

    desencadeamento da persecuo penal ou de dar seguimento a ela.119

    Deste modo, existem no nosso ordenamento jurdico-penal algumas limitaes ao

    direito no autoincriminao, expressamente contempladas120

    .

    Quanto ao direito ao silncio, este restringido, desde logo, porque o arguido est

    obrigado a responder com verdade s perguntas sobre a sua identidade, de acordo com o

    art. 61., n.3, al. b), do CPP121

    .

    Por seu turno, os art.s 152. e 153. do Cdigo da Estrada sujeitam os condutores

    a realizar exames, de alcoolemia ou de substncias psicotrpicas, por exemplo.

    A Lei n. 45/2004, de 29 de Agosto, no seu art. 6., impe a obrigatoriedade de

    sujeio a exames no mbito das percias mdico-legais, quando ordenadas pela autoridade

    competente.

    Alm destes, existem deveres de cooperao122

    perante a administrao

    tributria123

    , perante a autoridade da concorrncia124

    , e ainda perante a CMVM125

    .

    119

    O Direito de no produzir prova contra si mesmo: o princpio do nemo tenetur se detegere e as suas

    decorrncias no processo penal, 2Ed., Editora Saraiva, 2012, p. 364. 120

    H outras situaes, que tambm constituem verdadeiras restries ao direito no autoincriminao. Por

    exemplo, os meios ocultos de investigao, que, entre ns, so admitidos dentro de determinados

    pressupostos, e que redundam invariavelmente na recolha de declaraes auto-incriminatrias de arguidos e

    suspeitos. V. JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., p. 45. 121

    Antes da ltima alterao legislativa ao CPP, o arguido tambm estava obrigado a responder sobre os seus

    antecedentes criminais, quando a lei o impusesse. 122

    Neste mbito, levantam-se vrias questes, que por razes de brevidade, no poderemos abordar no nosso

    excurso. 123

    Impostos pela Lei Geral Tributria e pelo Regime Complementar de procedimento de Inspeo Tributria,

    aprovado pelo DL n. 413/98, de 31 de dezembro. 124

    Lei da Concorrncia, n. 18/2003, de 11 de junho. 125

    Impostos pelo Cdigo dos Valores Mobilirios.

  • 37

    8. Consequncias da violao do nemo tenetur

    Como vimos, o princpio nemo tenetur no tem carcter absoluto, e adotando

    como critrio delimitador aquele que impe a ponderao entre os valores e interesses que

    se visam proteger, resulta claro para ns que existem casos em que o direito do arguido

    no autoincriminao tem de ceder, estando desta forma o arguido sujeito aos deveres de

    colaborao. No entanto,