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Aos meus pais e irmo, que com o seu Amor incondicional me fazem acreditar que
possvel. Por serem a minha fora, a minha inspirao e o meu orgulho.
Aos meus amigos, pelo apoio, pelas palavras de fora, pelos risos, pelas lgrimas. Por
todos os momentos de partilha. E por saber que vo estar sempre por perto.
Faculdade de Direito.
A Coimbra.
Bem hajam!
3
NOTA: a presente dissertao foi elaborada de acordo com o novo acordo
ortogrfico.
4
Siglas e Abreviaturas
Ac. Acrdo
art. artigo
CEDH Conveno Europeia dos Direitos do Homem
CP Cdigo Penal
CPP Cdigo de Processo Penal
CRP Constituio da Repblica Portuguesa
MP Ministrio Pblico
R: - Relator
STJ Supremo Tribunal de Justia
TR Tribunal da Relao
TRE Tribunal da Relao de vora
TRG Tribunal da Relao de Guimares
TRL Tribunal da Relao de Lisboa
TRP Tribunal da Relao do Porto
TEDH Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
V. Ver
vs. Versus
5
ndice
Introduo .............................................................................................................................. 7
I. O princpio nemo tenetur se ipsem accusare ................................................................ 10
1. Origem histrica e evoluo do princpio nemo tenetur ........................................... 10
2. A importncia da Jurisprudncia do TEDH .............................................................. 13
3. Fundamentos jurdico-constitucionais ...................................................................... 19
4. Direito no autoincriminao e direito ao silncio ................................................ 24
5. Critrios delimitadores do princpio nemo tenetur ................................................... 27
6. Consagrao do princpio nemo tenetur na ordem jurdica portuguesa - evoluo
histrica (breve aluso) .................................................................................................... 31
6.1. A transmissibilidade das declaraes anteriormente prestadas pelo arguido para a
audincia de julgamento ............................................................................................... 34
7. Restries legais ao princpio ................................................................................... 36
8. Consequncias da violao do nemo tenetur ............................................................ 37
II. A recusa do arguido em prestar autgrafos .................................................................. 39
1. Delimitao do problema .......................................................................................... 39
2. Apreciao crtica luz do princpio nemo tenetur .................................................. 41
2.1. A recolha de autgrafos e a violao do princpio nemo tenetur .......................... 41
2.2. O carcter no absoluto do direito no autoincriminao .................................. 44
2.3. Princpio da legalidade .......................................................................................... 46
6
2.4. O juzo de proporcionalidade ................................................................................ 50
2.5. A legitimidade do MP ........................................................................................... 53
2.6. O CPP de 1929 ...................................................................................................... 54
Concluso ............................................................................................................................. 56
Bibliografia .......................................................................................................................... 59
Jurisprudncia ...................................................................................................................... 64
7
Introduo
No se adivinha fcil a tarefa que nos propomos desempenhar ora em diante: a de
elaborar uma dissertao, enquanto jurista, e mestranda, sobre uma matria de direito
processual penal que tanto entusiasmo nos provoca. Embora nos parecendo rduo o
caminho que nos surge pela frente, com enorme vontade que o encaramos e desejamos
trilhar.
O tema que trazemos discusso prende-se com aquela que consideramos ser a
figura central do processo penal: o arguido. Como sabemos, este personagem, durante todo
o processo, confrontado com intromisses na sua esfera jurdica.
Com a passagem de um processo penal de estrutura inquisitria para um processo
penal de estrutura acusatria, o arguido assumiu a posio de verdadeiro sujeito processual,
o que se traduz no poder de conformar os trmites do processo, detendo um vasto leque de
direitos de defesa, consagrados na nossa Constituio e no Cdigo de Processo Penal.
Entre eles, destacamos, porque sobre ele que nos vamos debruar ao longo deste excurso,
o direito no autoincriminao do arguido. Afigura-se-nos um direito de extrema
importncia na defesa de um Estado de Direito Democrtico, uma vez que num passado
no muito distante o arguido era visto sobretudo como meio de prova e/ou meio de
obteno de prova no processo.
Atualmente incompatvel com a nossa Constituio toda e qualquer
instrumentalizao do arguido na descoberta da verdade material, uma vez que o nosso
Estado tem como pilar fundamental e estruturante a dignidade da pessoa humana. Por isso,
tm de ser respeitadas as garantias de defesa que o arguido assume na sua esfera jurdica
enquanto tal. Assim, o arguido deve ser livre de decidir se quer ou no participar no
processo, e a forma de como o deseja fazer.
pacfico na jurisprudncia e entre a doutrina que o princpio da no
autoincriminao do arguido tem consagrao constitucional, embora apenas
materialmente. J menos consentnea a sua fundamentao jurdico-constitucional, e essa
uma discusso que nos propomos abordar.
Neste momento, cumpre-nos justificar o motivo da escolha deste tema, uma vez
que dado assente que o arguido um sujeito processual e que tem o direito de no
contribuir para a sua prpria incriminao.
8
Ora, o assunto despertou-nos interesse, porque, sendo isto certo, menos bvia a
extenso que este direito assume no nosso ordenamento jurdico. Assim, o direito no
autoincriminao corresponde apenas ao direito ao silncio positivado no Cdigo de
Processo Penal? mais amplo? Se o , em que medida? E, por outro lado, um direito
absoluto? Ou pode ser limitado?
So estas perguntas que continuam sem respostas unvocas, e cujas solues que
tm sido apontadas merecem a nossa ateno. Por isso, principiaremos o nosso estudo,
definindo este direito atravs de uma breve exposio histrica desde o seu surgimento.
Seguidamente, olharemos para o seu desenvolvimento na jurisprudncia do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem o tribunal que zela primacialmente pelo respeito dos
direitos fundamentais. Depois de traadas as primeiras linhas orientadoras do princpio
cumpre-nos precisar em que que consiste afinal o nemo tenetur. E nesse sentido, deter-
nos-emos sobre o entendimento da jurisprudncia e doutrina, que se tem debatido para
delinear o exato alcance do princpio. Com efeito, h situaes que se situam numa zona de
fronteira e que podero justificar que o arguido seja obrigado a colaborar, sacrificando,
nestes casos, o seu direito processual a no autoincriminar-se.
Numa segunda fase, e depois de percorrido este primeiro percurso que visa dar
uma viso geral do assunto e colocar a problemtica e as solues que podem ser
apontadas, debruar-nos-emos sobre uma questo concreta, que se prende com a recolha de
autgrafos, ordenada ao arguido, na fase de inqurito, no mbito de um processo-crime de
falsificao de documentos. Com efeito, no decorrer do nosso estudo sobre o assunto foi
proferido pelo Supremo Tribunal de Justia um Acrdo Uniformizador de Jurisprudncia
sobre este tema.
Ora, o acrdo suscitou-nos algumas questes, e, por isso, do nosso interesse
observar a deciso, tecendo as devidas consideraes crticas, tendo em conta o princpio
nemo tenetur se ipsum accusare que nos propomos defender neste excurso.
Pretendemos com o nosso estudo, sobretudo, suscitar a discusso sobre a figura do
arguido, e sobre o papel que o mesmo deve assumir no processo penal. Para isso, teremos
em conta tudo o que defendido e protegido pela nossa Constituio, e os valores que hoje
se levantam que reclamam por uma efetiva realizao da justia, denegando por vezes
direitos que o arguido j tinha consolidado na sua esfera jurdica enquanto sujeito
processual. Naturalmente, no podemos justificar todos os atropelos aos direitos do
9
arguido com a celeridade e a eficcia processuais, que sendo ideais desejveis, no podem
ser elevados a valor primordial, sob pena de ofendermos valores fundamentais como a
dignidade da pessoa humana.
Conscientes de que o assunto trazido discusso gera divergncias, tanto
doutrinais, como jurisprudenciais, nosso objetivo explanar as diferentes perspetivas,
optando por aquela que nos parece ser a mais indicada, face estrutura acusatria do
processo penal que defendemos, e sobretudo face ao processo penal que no desejamos ter.
10
I. O princpio nemo tenetur se ipsem accusare
Diz-me como tratas o arguido,
dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu.
FIGUEIREDO DIAS
1. Origem histrica e evoluo do princpio nemo tenetur
O princpio da no autoincriminao do arguido expresso na frmula latina nemo
tenetur se ipsum accusare1, ou nemo tenetur ipsum detegere
2, assenta na ideia segundo a
qual o acusado no est obrigado a contribuir para a sua prpria incriminao3, no
recaindo sobre ele o dever de colaborar na descoberta da verdade material4. Este princpio
constitui uma das garantias de defesa do arguido5 e desdobra-se no direito ao silncio e no
direito de no oferecer meios de prova.
na tradio anglo-saxnica e no perodo de transio de um processo penal de
estrutura inquisitria para um de estrutura acusatria que surge a conceo moderna do
privilgio contra a autoincriminao6, tambm designado abreviadamente pelo brocardo
latino nemo tenetur.
Com efeito, este direito surgiu como forma de combater os abusos provocados
pelos institutos at ento vigentes que tornavam o arguido instrumento da sua prpria
1 Ningum obrigado a acusar-se.
2 Ningum obrigado a manifestar-se.
3 PAULO DE SOUSA MENDES, O dever de colaborao e as garantias de defesa no processo sancionatrio
especial por prticas restritivas da concorrncia, in Julgar, N. 9, 2009, p. 15; VNIA COSTA RAMOS,
Corpus Juris 2000 - Imposio ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare, in Revista do Ministrio Pblico, n. 108, Out/Dez de 2006, p. 131; e tambm, MANUEL DA
COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies de Prova em Processo Penal, 1 Ed., Reimp., Coimbra Editora,
2013, p. 121. 4 MARIA JOO ANTUNES, Direito ao silncio e leitura em audincia de declaraes do arguido, in Sub-
Judice, Justia e Sociedade, n.4, Setembro/Dezembro, 1992, p.26. 5 PAULO DE SOUSA MENDES, Os direitos e deveres do arguido, in Estudos em Memria do Prof. Doutor
J. L. Saldanha Sanches, Org. Paulo Otero, Fernando Arajo, Joo Taborda da Gama, Vol. II, Coimbra,
Coimbra Editora, 2011, p. 819; neste sentido, ver tambm, MARIA DE FTIMA REIS, O direito no
autoincriminao, in Sub-Judice, Justia e Sociedade, n.40, Julho-Setembro 2007, p. 59. 6 AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, O direito no auto-inculpao (nemo tenetur se
ipsum accusare) no processo penal e contra-ordenacional portugus, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 9.
11
condenao7. Vigorava nos Tribunais da Igreja o juramento ex officio em que os
suspeitos de heresia tinham de prestar juramento sobre a sua inocncia, e se vacilassem,
significava que Deus os considerava culpados8. Este sistema tambm chegou a ser aplicado
nos tribunais comuns.
De facto, recaa sobre o arguido o dever de verdade. Esse dever era alcanado
com recurso tortura como forma de obter do acusado uma confisso, pois o entendimento
poca traduzia a ideia de que o valor central da comunidade transcende os interesses
conflituantes no processo e obriga os participantes a colaborar na descoberta da verdade.9
aps a Magna Charta, de 1215, e com as sucessivas reformas que tinham em
vista a implementao de uma estrutura acusatria, que surgem as primeiras manifestaes
contra estas prticas. Aponta-se o caso de Jonh Lilburn10
, em 1637, como o intensificador
desses protestos. Jonh Lilburn recusou-se a prestar o juramento ex officio, e foi por isso
severamente punido.
Na sequncia de manifestaes, foi abolido pelo parlamento ingls o juramento ex
officio, e surgiu entre a doutrina do common law o entendimento de que o arguido no
podia ser instrumento da sua prpria incriminao11
. Com efeito, alguns autores12
apontam
o ano de 1769, como o marco em que o princpio do nemo tenetur assumiu consagrao no
direito ingls.
Sendo este o entendimento de alguma doutrina, a verdade que na prtica judicial
o arguido continuava a testemunhar contra si, uma vez que os jurados estabeleciam a sua
convico atravs das declaraes do acusado. Significava isto que o silncio do arguido
contribua para que o jri formasse a opinio de que o mesmo era culpado.
por esta razo, que alguns autores defendem que o privilgio contra a
autoincriminao surgiu mais tarde, j no sculo XIX, quando foi conferido ao arguido o
direito a defensor, atribudo por lei em 1836. De facto, s a partir deste momento que o
arguido adquire o verdadeiro direito de liberdade de no declarar contra si, uma vez que a
7 JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, Superviso, Direito ao Silncio, e
Legalidade da Prova, in Superviso, Direito ao Silncio e Legalidade da Prova, Coimbra, Almedina, 2009, p.
38. 8 VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.137.
9 RUPPING apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, p. 123.
10 LARA SOFIA PINTO, Privilgio Contra a Auto-incriminao verus Colaborao do Arguido, in Prova
Criminal e Direito de Defesa, Estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal,
Coord. Tereza Pizarro Beleza, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Coimbra, Almedina, 2011, p. 100. 11
VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.137. 12
Cfr., MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, p.123.
12
acusao encara agora o defensor e no o arguido. Um pouco mais tarde, em 1848
estabeleceu-se um dever para o juiz de instruo de informar o arguido do seu direito ao
silncio.
Entretanto, na Constituio Americana foi consagrado expressamente o privilgio
contra a autoincriminao, atravs da V Emenda, em 1791, com o seguinte contedo: No
person () shall be compelled in any criminal case to be witness against himself.
Trata-se de um verdadeiro privilege against self-incrimination que veio a ser
concretizado no clebre caso Miranda versus State of Arizona, em 1966. Na sua deciso, a
Suprem Court afirmou que o privilege against self incrimination representava uma marca
estruturante de todo o processo acusatrio, e, por isso, deveria ser o arguido esclarecido e
devidamente advertido sobre os seus direitos13
.
Desta forma, o arguido passa a assumir a posio de parte processual em vez de
instrumento da sua prpria incriminao. E, esta uma das caractersticas centrais do
sistema processual penal acusatrio vigente num Estado de Direito.
Na verdade, o princpio nemo tenetur vigora nos ordenamentos jurdicos dos
modernos Estados de Direito, e, est tambm consagrado em vrios diplomas
internacionais que visam a tutela dos Direitos Humanos.
Podemos destacar entre outros, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Polticos14
, da ONU, de 16 de dezembro de 1966, que consagra expressamente no artigo
14, n.3, alnea g) o seguinte: In the determination of any criminal charge against him,
everyone shall be entitled to the following minumum guarantees: () not to be compelled
to testify against himself, or to confess guilt15
.
No mesmo sentido, a Conveno Americana sobre Direitos Humanos, ou Pacto de
Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, estabelece no seu artigo 8., n.2, al. g), que
pessoa acusada de um delito assegurado o direito de no ser obrigada a depor contra si
prpria, nem a confessar-se culpada.
Ainda podemos referir o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional,
adotado em 17 de julho de 1998, que contm nos seus artigos, 55., n.1, al. a), e n.2, al. b)
e 67., n.1, al. g), manifestaes do nemo tenetur.
13
JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. , p.38. 14
Aprovado para ratificao por Portugal pela Lei n. 29/78, de 12 de Junho. 15
Qualquer pessoa acusada de uma infrao penal ter direito, em plena igualdade, pelo menos s seguintes
garantias: () a no ser forada a testemunhar contra si prpria, ou a confessar-se culpada.
13
Pelo contrrio, a Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 10 de
dezembro de 1948, no comtempla de forma expressa o princpio nemo tenetur, embora
reconhea o princpio da presuno de inocncia, e o seu artigo 11. refere que devem ser
concedidas ao acusado todas as garantias necessrias de defesa.
Do mesmo modo, a Conveno Europeia dos Direitos do Homem16
, de 4 de
janeiro de 1950, tambm no contm a inscrio do princpio. No entanto, a jurisprudncia
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a defender que o direito ao
silncio e o direito no-autoincriminao constituem standarts internacionais, que esto
no corao da noo de processo equitativo, os quais se destinam a proteger o acusado
contra o exerccio abusivo de poderes coercivos pelas autoridades, a evitar o perigo de
adulterao da justia e, nesse sentido, a realizao plena do artigo 6. da Conveno.17
2. A importncia da Jurisprudncia do TEDH
Na verdade, a jurisprudncia do TEDH, considerada a suprema instncia judicial
europeia no mbito dos direitos humanos18
enquanto intrprete da CEDH, assumiu um
papel importante na definio e delimitao do princpio. Por isso mesmo, consideramos
fundamental olhar para algumas das suas decises. Por razes de brevidade, apenas
traremos tona os casos que consideramos mais marcantes e decisivos na concretizao do
princpio.
Principiamos, porm, por nos debruar sobre uma deciso do Tribunal de Justia
da Comunidade Europeia, de 18 de outubro de 1989, que ops a sociedade annima Orkem
contra a Comisso das Comunidades Europeias19
. O TJCE defendeu que a Comisso tem
o direito de obrigar a empresa a fornecer todas as informaes necessrias relativas aos
factos de que possa ter conhecimento e, se necessrio, os documentos correlativos que
16
Aprovada para ratificao por Portugal pela Lei n.65/78, de 13 de Outubro. 17
JOS MACHADO DA CRUZ BUCHO, Sobre a recolha de autgrafos do arguido: natureza, recusa, crime
de desobedincia v. direito no autoincriminao (notas de estudo), Outubro 2013, disponvel em:
http://www.trg.pt/ficheiros/estudos/sobre_a_recolha_de_autografos_do_arguido.pdf. 18
JNATAS MACHADO E VERA RAPOSO, O Direito no autoincriminao e as pessoas colectivas
empresariais, in Revista Brasileira de Direitos Fundamentais e Justia, ano 3, n. 8, Julho/Setembro de
2009, p. 31. 19
Processo n. 374/87, que se encontra disponvel em:
http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95715&pageIndex=0&doclang=EN&mode=lst&dir=&
occ=first&part=1&cid=460447.
14
estejam na sua posse, mesmo que estes possam servir, em relao a ela ou a outra
empresa, para comprovar a existncia de um comportamento anticoncorrencial. E
conclui, observando o sumrio da deciso o seguinte: ainda que, no respeitante a
infraces de natureza econmica nomeadamente no domnio do direito da concorrncia,
no seja possvel reconhecer, relativamente a uma empresa, a existncia de um direito a
no testemunhar contra si prpria, () a comisso no pode impor empresa a
obrigao de fornecer respostas atravs das quais seja levada a admitir a existncia da
infraco, cuja prova cabe Comisso20
.
Desta forma, apesar de no estender o princpio da no autoincriminao s
empresas, a deciso veio admitir que as empresas no estavam obrigadas a confessar factos
que as incriminassem. Neste sentido, a jurisprudncia Orkem aparece como uma das
primeiras decises a ter em conta o princpio nemo tenetur, ainda que apenas na vertente
do direito ao silncio e de forma muito limitada.
Relativamente jurisprudncia do TEDH, s em 1993 que o princpio veio a ser
afirmado, no Acrdo21
de 25 de fevereiro desse ano, que ops Jean-Gustave Funke,
cidado alemo, ao Estado francs. Neste caso, e de forma muito sucinta, o Tribunal de
Estrasburgo foi chamado a pronunciar-se sobre a legitimidade de uma condenao, no
sistema judicial francs, em multa e sano pecuniria compulsria, do senhor Funke, que
se tinha recusado, na sequncia de uma busca ao seu domiclio em que foram descobertos
livros de cheques de contas bancrias suas localizadas no estrangeiro, a fornecer
administrao fiscal francesa extratos dessas contas, que poderiam eventualmente
comprovar a existncia de infraes criminais. Face situao, o TEDH determinou
categoricamente que a aplicao de sanes penais com o objetivo de obrigar entrega de
provas documentais viola o direito no autoincriminao22
.
No pargrafo 44 do citado Acrdo pode ler-se: The Court notes that the customs
secured Mr Funkes conviction in order to obtain certain documents which they believed
must exist, although they were not certain of the fact. Being unable or unwilling to procure
them by some other means, they attempted to compel the applicant himself to provide the
20
Sumrio disponvel em portugus:
http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95665&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&
occ=first&part=1&cid=372972. 21
Ac. Funke vs. France, que pode ser consultado em:
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57809#{"itemid":["001-57809"]} . 22
VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.142.
http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95665&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=372972http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95665&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=372972http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57809#{"itemid":["001-57809"]}
15
evidence of offences he had allegedly committed. The special features of customs law (see
paragraphs 30-31 above) cannot justify such an infringement of the right of anyone
"charged with a criminal offence", within the autonomous meaning of this expression in
Article 6 (art. 6), to remain silent and not to contribute to incriminating himself. There has
accordingly been a breach of Article 6 para. 1 (art. 6-1).23
Com efeito, o artigo 6. da CEDH consagra o direito a um processo equitativo no
seu n. 124
, e a garantia da presuno de inocncia, no seu n.225
. E, nestes preceitos que o
TEDH encontra o fundamento do princpio da no autoincriminao, sustentando que se
trata de um direito mais amplo que o mero direito ao silncio26
.
Outro Acrdo que merece a nossa referncia aborda a questo que contende com
o valor que assume o silncio do arguido num processo penal. No caso Murray27
, o
tribunal veio afirmar que o princpio nemo tenetur no absoluto, e que suscetvel de ser
limitado. A histria envolve um caso de terrorismo e a seguinte: o senhor Jonh Murray
foi detido pela polcia quando estava a descer as escadas de um prdio onde foram
encontrados os sequestradores, militantes do Exrcito Republicano Irlands, e o
sequestrado. Ora, durante todo o processo o arguido recusou-se a prestar declaraes. No
entanto, acabou por ser condenado, tendo o tribunal construdo a sua sentena valorando o
silncio do arguido. O TEDH chamado a pronunciar-se, veio reafirmar o princpio da no
autoincriminao como princpio estruturante de um processo equitativo28
. O tribunal
comeou por afirmar a proibio de valorao do silncio do arguido, no entanto entendeu
que tambm essa proibio no teria carcter absoluto29
.
23
Sublinhado nosso. 24
Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo
razovel por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidir, quer sobre a
determinao dos seus direitos e obrigaes de carcter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusao
em matria penal dirigida contra ela. 25
Qualquer pessoa acusada de uma infraco presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade no tiver
sido legalmente provada. 26
VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.143. 27
Tratado no Ac. Jonh Murray vs. Reino Unido, de 8 de Fevereiro de 1996, disponvel em:
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57980#{"itemid":["001-57980"]} 28
No pargrafo 45 pode ler-se: Although not specifically mentioned in Article 6 (art. 6) of the Convention,
there can be no doubt that the right to remain silent under police questioning and the privilege against self-
incrimination are generally recognised international standards which lie at the heart of the notion of a fair
procedure under Article 6 (art. 6) 29
No pargrafo 47 podemos ler: On the one hand, it is self-evident that it is incompatible with the
immunities under consideration to base a conviction solely or mainly on the accuseds silence or on a refusal
to answer questions or to give evidence himself. On the other hand, the Court deems it equally obvious that
these immunities cannot and should not prevent that the accuseds silence, in situations which clearly call for
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57980#{"itemid":["001-57980"]}
16
E, por isso, considerou, que nem o julgamento tinha sido injusto, nem o princpio
da presuno de inocncia tinha sido violado, j que a presena do acusado no prdio e a
sua falta de explicao para o facto eram bastantes para a sua condenao com base no
simples senso comum30
.
Esta deciso suscetvel de crticas, tendo em conta que a regra prevalecente
nesta matria defende a proibio de valorao do silncio do arguido. Neste sentido,
manifestaram-se alguns juzes, votando vencido sustentando que o Tribunal no pode
retirar do facto de o arguido ter permanecido em silncio qualquer indcio incriminatrio.
A pessoa acusada livre para assumir o risco da sua escolha, tal como livre de confessar
ou no, o que uma forma de respeito da dignidade humana31
.
O caso que se segue, assumiu importncia fundamental para a jurisprudncia do
TEDH, sendo frequentemente citada. Falamos do caso Saunders32
. A questo que se
levantava neste Acrdo era a de saber se, podem ser valoradas num processo criminal,
declaraes incriminatrias prestadas anteriormente, sob coero. Com efeito, o caso relata
uma investigao num caso de fraude de uma OPA, feita por uma equipa de inspetores do
Ministrio do Comrcio e Indstria Britnico, empresa Guinness, dirigida pelo senhor
Saunders, em que os responsveis e trabalhadores estavam obrigados a colaborar na
investigao, fornecendo inclusive documentos relativos atividade da sociedade. Se no o
fizessem poderiam ser punidos a ttulo de desobedincia qualificada. Sucede que as provas
assim obtidas foram utilizadas no processo criminal que correu contra o senhor Saunders,
servindo de base para a sua condenao.
Chamado a pronunciar-se sobre esta questo, o TEDH decidiu que tinha havido
violao do princpio do processo equitativo, violando assim o artigo 6., n. 1 da
Conveno. Alm disso, pronunciou-se tambm no sentido de que tinha sido violado
igualmente o n.2 do mesmo preceito, que consagra o princpio da presuno de
an explanation from him, be taken into account in assessing the persuasiveness of the evidence adduced by
the prosecution. 30
PAULO DE SOUSA MENDES, O dever de colaborao, ob. cit. , p.19. 31
VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p. 144, nota 37. A autora acaba por concordar com a deciso do Tribunal,
uma vez que no caso em concreto, o arguido no teria sido condenado apenas com base no seu silncio. 32
Ac. Saunders vs. Reino Unido, de 17 de dezembro de 1996, disponvel em:
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58009#{"itemid":["001-58009"]}.
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58009#{"itemid":["001-58009"]}
17
inocncia33
, argumentando que no que respeita matria penal cabe acusao provar que
o arguido praticou efetivamente o facto criminoso de que acusado.
No entanto, este Acrdo tem vindo a ser citado inmeras vezes, no tanto pela
questo central, mas porque o Tribunal, veio delimitar negativamente o princpio nemo
tenetur afirmando o seguinte: o direito no autoincriminao concerne, em primeiro
lugar, ao respeito pela vontade de um acusado em manter o silncio. Tal como
interpretado na generalidade dos sistemas jurdicos das partes contratantes da
Conveno, o mesmo no abrange a utilizao, em quaisquer procedimentos penais, de
dados que possam ser obtidos do acusado recorrendo a poderes coercivos contanto que
tais dados existam independentemente da vontade do suspeito34
, tais como, inter alia, os
documentos adquiridos com base em mandado, as recolhas de saliva, sangue e urina, bem
como os tecidos corporais com vista a uma anlise de ADN35
.
Outro Acrdo que mereceu a nossa ateno prende-se com a questo sensvel das
operaes encobertas, em que se discutiu se as mesmas constituam uma violao ao artigo
6. da Conveno. Falamos agora do Acrdo de 5 de novembro de 2002, que decidiu o
caso Allen versus Reino Unido36
. Os juzes tiveram de aferir a legitimidade de uma deciso
do Tribunal Britnico que condenou Allen a pena de priso perptua, com base em prova
obtida atravs de sistemas de captao de som e imagem, colocadas no interior da esquadra
onde o arguido se encontrava detido, com o objetivo de extrair declaraes que
comprovassem a sua autoria no crime de homicdio de que estava acusado. Allen tinha sido
detido, juntamente com outro suspeito, por causa de um crime de roubo. Entretanto, devido
a uma denncia annima, passa a ser suspeito de ter assassinado um gerente de loja. Nos
interrogatrios o arguido optou pelo direito ao silncio.
Por isso, de forma a obter declaraes do arguido, foram filmadas as conversas
que ele manteve com a sua mulher durante o perodo de visitas, e tambm aquelas que ele
estabeleceu com o seu colega de cela, com quem tinha sido detido. Posteriormente, os
33
Pargrafo 68: ()The right not to incriminate oneself, in particular, presupposes that the prosecution in
a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through
methods of coercion or oppression in defiance of the will of the accused. In this sense the right is closely
linked to the presumption of innocence contained in Article 6 para. 2 of the Convention (art. 6-2). 34
Sublinhado nosso. 35
PAULO DE SOUSA MENDES, O dever de colaborao, ob. cit. , p. 21. E, pargrafo 69 do Acrdo
Saunders vs. Reino Unido. 36
Disponvel em:
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-
58009#{"languageisocode":["ENG"],"appno":["25424/09"],"documentcollectionid2":["GRANDCHAMBER
"],"itemid":["001-122859"]}
18
agentes policiais, responsveis pela investigao, decidiram introduzir na cela de Allen, um
informante, dando-lhe instrues para extrair do queixoso toda a informao que
conseguisse. Foi com base no depoimento deste informante, e na respetiva gravao, que o
tribunal fixou a sua convico que culminou com a acusao do arguido.
Chamado a pronunciar-se, o TEDH considerou ter existido violao do direito
autoincriminao, concluindo que a informao conseguida atravs da utilizao do
informador fora obtida contra a vontade do acusado e que o uso da mesma feito em
julgamento havia atingido o direito no auto-incriminao, em termos incompatveis com
a garantia do processo equitativo consagrado no art. 6. da Conveno37
.
Segundo o TEDH, apesar de o direito ao silncio e o privilgio da no
autoincriminao se encontrarem concebidos, em primeiro lugar, para prevenir o risco de
uso imprprio pelas autoridades de mtodos de opresso ou coero directamente
incidentes sobre a pessoa do acusado para dele obter prova contra sua vontade, o
respectivo escopo estende-se ainda aos casos em que a coao exercida indirectamente
sempre que a vontade do acusado haja sido por isso directamente forada de alguma
forma38
.
Depois de feita esta abordagem jurisprudencial do TEDH, possvel retirar alguns
critrios e princpios fundamentais presentes nas decises. Assim, desde logo resulta da
jurisprudncia analisada, que o direito no autoincriminao relaciona-se com o respeito
pela vontade do acusado de permanecer em silncio e em no facultar outros meios de
prova, o que decorre da estrutura acusatria do processo, que impe acusao fazer prova
que leve condenao do arguido, sem o recurso a mtodos coercivos violadores da
vontade deste sujeito processual. E, desta forma, o princpio encontra-se intimamente
relacionado com o processo equitativo e com a presuno de inocncia consagrados no
artigo 6., n.1 e n.2 da CEDH39
.
Podemos ainda retirar a concluso de que o direito de no contribuir para a sua
prpria incriminao, no um direito absoluto, mas admite ponderaes e restries no
confronto com outros interesses juridicamente tutelados, desde que se garanta o ncleo
essencial daquele direito40
.
37
JOANA COSTA, O princpio nemo tenetur na Jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, in Revista do Ministrio Pblico, n. 128, Outubro/Dezembro 2011, p. 164. 38
Idem, p. 162. 39
Idem P. 119. 40
PAULO DE SOUSA MENDES, O dever de colaborao, ob.cit., p.22.
19
3. Fundamentos jurdico-constitucionais
Depois de apresentada uma breve abordagem histrica, e de expostas algumas das
concretizaes do princpio desenvolvidas pela jurisprudncia europeia, atravs das
decises do TEDH, cumpre-nos agora explorar de forma mais aprofundada o contedo e os
fundamentos do princpio em questo.
O princpio nemo tenetur s ganha sentido prtico no mbito de um processo
penal de estrutura acusatria. Ao contrrio do que sucedia nos processos de estrutura
inquisitria, em que o processo penal dominado exclusivamente pelo Estado, pois o
juiz o dominus do processo, cabendo-lhe inquirir, acusar e julgar, e o arguido visto
como mero objecto de inquisio41
, o sistema acusatrio procura a igualdade de poderes
de actuao processual entre a acusao e a defesa42
.
Como nos ensina FIGUEIREDO DIAS, estrutura acusatria significa na
verdade duas coisas: por um lado, reconhecimento da participao constitutiva dos
sujeitos processuais na declarao do direito do caso; por outro lado, reconhecimento do
princpio da acusao, segundo o qual ter de haver uma diferenciao material entre o
rgo que institui o processo e d a acusao e o rgo que vai julgar.43
Desta forma, temos dois interesses distintos: por um lado, a descoberta da verdade
material e a consequente punio dos crimes, e por outro, a proteo do arguido, que
protegido por garantias de defesa procura afastar qualquer restrio sua liberdade.
Neste plano, o arguido surge como verdadeiro sujeito processual e por isso, ser-
lhe- assegurada uma posio jurdica que lhe permita uma participao constitutiva na
declarao do direito do caso concreto, atravs da concesso de autnomos direitos
processuais, legalmente definidos, que ho-de ser respeitados por todos os intervenientes
do processo penal44
.
verdade que o processo penal tem como finalidade primria a realizao da
justia, que passa pela descoberta da verdade material. Visando-se, deste modo, que
41
FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Lies coligidas por Maria Joo Antunes, Seco de textos
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1988-9, p. 39. 42
GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Vol. I, 6. Ed., Lisboa, Verbo, 2010, p. 72. 43
FIGUEIREDO DIAS, A Nova Constituio da Repblica e o Processo Penal, in Separata da Revista da
Ordem dos Advogados, Lisboa, 1976, p. 9. 44
FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1974, p. 429-430.
20
nenhum responsvel passe sem punio, e que nenhum inocente seja condenado45
. S
assim, se consegue o desejvel restabelecimento da paz jurdica comunitria, perturbada
com a prtica do crime. No entanto, de fundamental importncia num Estado de Direito
assegurar os direitos fundamentais das pessoas. Assim, necessrio que a deciso final
tenha sido lograda de modo processualmente vlido46
. Isto significa que no decorrer do
processo as garantias de defesa do arguido tero de ser respeitadas. Uma vez que ele,
enquanto sujeito processual, tem o poder de conformar os trmites de todo o processo.
Alis, defendemos que no h verdade material onde no tenha sido dada ao
arguido a mais ampla e efectiva possibilidade de se defender da suspeita que sobre ele
pesa47
. E esta afirmao implica que as medidas probatrias que sejam exercidas sobre o
arguido no podem traduzir-se na extorso de declaraes ou de qualquer forma de
autoincriminao, pois, nestas condies, todos os actos processuais do arguido devero
ser expresso da sua livre personalidade.48
Posto isto, constitui pressuposto essencial do processo penal dos modernos
Estados de Direito a existncia de um verdadeiro privilgio contra a autoincriminao que
assiste ao arguido, e que no poder sem mais ser afastado49
. Importa contudo advertir que
este direito no deve ser entendido na sua mxima amplitude de recusa de qualquer forma
de cooperao com a justia, mas sim como direito a no colaborar para a sua prpria
incriminao.50
Entre ns, assim como no ordenamento jurdico alemo, e ao contrrio de outros
pases51
, o princpio contra a autoincriminao do arguido no encontra consagrao
expressa na Constituio. No entanto, isso no significa que o princpio no tenha natureza
constitucional. Alis, pacfico o entendimento entre a doutrina e a jurisprudncia que se
trata de um princpio constitucional no escrito52
.
45
Curso, Vol. 1, ob. cit. , p. 39. 46
FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Lies ,ob. cit., p. 22-23. 47
FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Vol. I, , ob. cit., p. 429. 48
Idem, p. 430. 49
Na esteira de GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Processual Penal Portugus, Noes Gerais, Vol.
I, Lisboa, Universidade Catlica Editora, 2013, p. 73-74, este direito traduz-se numa forma de defesa pessoal
negativa, que aquela em que o arguido se recusa a dar qualquer contribuio para os actos probatrios. 50
VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p.133. 51
Na Constituio Americana, na Brasileira e na Espanhola. 52
Cfr., MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, ob. cit. , p. 125; JORGE FIGUEIREDO DIAS
E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. , p. 39; VNIA COSTA RAMOS, Corpus Juris 2000 -
Imposio ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare, in Revista do
Ministrio Pblico, n.109, Jan/Mar 2007, p. 59, e tambm, SNIA FIDALGO, Determinao do Perfil
21
Como afirma COSTA ANDRADE, no que ao direito processual portugus
especificamente concerne, a vigncia do princpio, nemo tenetur se ipsum accusare
afigura-se-nos unvoca53
. O prprio Tribunal Constitucional j reconheceu em diversos
acrdos que inquestionvel que o princpio nemo tenetur tem consagrao
constitucional54
.
Mais controversa a questo de saber qual a concreta determinao do contedo
do direito no autoincriminao. No entanto, para responder a este problema,
necessrio que em primeiro lugar se definam quais os fundamentos constitucionais do
princpio nemo tenetur. E, para a resoluo desta querela, h, desde logo, uma diviso que
tem sido apresentada, proveniente da doutrina germnica, onde, como referimos, o
princpio tambm no tem assento constitucional expresso.
Para alguma doutrina, o princpio assenta num fundamento material ou
substantivo, enquanto para outra parte da doutrina, o privilgio contra a autoincriminao
tem uma matriz processualista ou adjetiva. Importa realar, desde j, que no indiferente
a resposta que damos a esta primeira questo. Como afirma VNIA COSTA RAMOS,
um direito que emana directamente da dignidade da pessoa humana no ser passvel de
sofrer as mesmas restries que um direito decorrente de garantias processuais. Enquanto o
primeiro ser um direito de natureza tendencialmente absoluta, j o direito fundado em
garantias processuais poder ser sujeito a certas limitaes55
.
Importa por isso, debruar-nos sobre as duas correntes, e perceber qual o
alcance que as mesmas comportam.
Assim, para a primeira das correntes, que designamos de substantiva ou material,
o fundamento do privilgio contra a autoincriminao assentaria diretamente na dignidade
da pessoa humana, proclamada pela nossa CRP no seu artigo 1.. Dentro desta perspetiva,
existem autores, que veem esta prerrogativa como corolrio dos direitos integridade
pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados nos artigos 25. e 26. da
Constituio56
.
Gentico como Meio de Prova em Processo Penal, in RPCC, Ano 16, N.1, Janeiro-Maro 2006, Sep.,
p.140. 53
Sobre as proibies , ob. cit. , p.125. 54
Podemos apontar entre outros, os Acrdos do TC. n.s 695/95, 542/97, 304/2004, 181/2005, 461/2011,
340/2013 e 418/2013, disponveis em www.tribunalconstitucional.pt. 55
Ob. cit. , 2007, p. 58. 56
Cfr. JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. , p. 40.
22
Esta corrente tem expresso na doutrina germnica pela voz de Rogall que
defende que contra o instinto bsico de sobrevivncia do ser humano atuar contra si.
Assim, para este autor, qualquer violao do direito de uma pessoa actuar em seu prprio
favor, de pertencer a si mesmo, constituiria uma violao da rea intangvel do direito de
personalidade57
.
No entanto, entendemos, na esteira de VNIA COSTA RAMOS que essa
fundamentao se mostra insuficiente () por o prprio egosmo auto-favorecedor do
arguido que segue o seu instinto de sobrevivncia, no parece encaixar-se na dignidade da
pessoa humana. Alis, reconhecer-se que estes direitos processuais so um meio ou
forma de concretizar um determinado direito fundamental no implica que este seja o seu
fundamento directo e imediato. Desde logo se aponta que o prprio conceito de dignidade
humana recobre de forma mediata toda a matria penal e processual penal de um Estado
de Direito58
. E, por isso, o fundamento do princpio h de, ao invs, procurar-se noutros
direitos com dignidade processual, mas que no deixam de refletir uma dimenso
material59
.
Assim, acompanhamos o entendimento da corrente processualista, que
corresponde ideia prevalecente na doutrina portuguesa, segundo a qual o direito ao
silncio e no autoincriminao teriam a sua fonte jurdico-constitucional nas garantias
processuais reconhecidas ao arguido no texto constitucional60
. Dentro desta corrente
podemos observar algumas diferenas entre a doutrina.
Alguns autores fazem assentar o princpio nemo tenetur na estrutura acusatria do
nosso processo penal, e nas garantias de defesa do arguido61
, uma vez que o acusado
visto como verdadeiro sujeito processual, capaz de influenciar a deciso final da sua
condenao, e no como mero objeto do processo. Reafirma-se o entendimento segundo o
qual o direito de defesa constitui uma categoria aberta qual devem ser imputados todos
os concretos direitos de que o arguido dispe, de co-determinar ou conformar a deciso
57
VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , 2007, p. 62. 58
FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit. , p.41 59
Idem, p. 63. 60
Idem, p. 40. 61
PAULO DE SOUSA MENDES, Os direitos..., ob. cit. , p. 819; neste sentido, v. tambm MARIA DE
FTIMA REIS, ob. cit. , p. 50, que afirma: o direito no autoincriminao, ou princpio nemo tenetur se
ipsum accusare , tradicionalmente um dos direitos de defesa dos acusados.
23
final do processo62
. Assim, dotado na sua esfera jurdica de verdadeiros direitos
processuais, o arguido assume a veste de pessoa, cuja dignidade humana inviolvel, e
despe os trajes tpicos do processo inquisitrio que o reduziam a mero instrumento. Alis,
o TC63
, j teve oportunidade de referir que O princpio nemo tenetur se ipsum accusare,
uma marca irrenuncivel do processo penal de estrutura acusatria, visando garantir que
o arguido no seja reduzido a mero objecto da atividade estadual de represso do crime,
devendo antes ser-lhe atribudo o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os
direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente.
Como afirmam FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE: No princpio nemo
tenetur espelha-se a essncia de um processo penal em que se reconhecem e tutelam as
garantias inerentes qualificao do arguido como um autntico sujeito processual 64
.
Outros ainda65
veem a prerrogativa do direito no autoincriminao como um
corolrio do fair trial, ou do processo equitativo, consagrado no artigo 6., n.1 na
CEDH, e no artigo 20., n.4 da Lei Fundamental.
Para outros, o privilgio contra a autoincriminao decorre do princpio da
presuno de inocncia, consagrado entre ns no artigo 32., n.266
, da CRP. Com efeito, o
princpio da presuno de inocncia encontra-se, entre outros diplomas, proclamado na
Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1798, no seu artigo 9., n.267
, e na
CEDH, no seu artigo 6., n.2, e constitui um direito fundamental do arguido, que lhe
reconhecido num Estado de Direito Democrtico. Este princpio significa que, por um
lado, o acusado presumivelmente inocente at o trnsito em julgado da sentena que o
condene, e, por outro, que no cabe ao arguido participar na produo de prova contra a
sua vontade, uma vez que, a presuno de inocncia, contrariamente de culpa, significa
uma inverso do nus da prova. Por isso, cabe ao Estado provar que o arguido o autor
do crime que est a ser investigado, e, no deve o arguido ser coagido a contribuir para a
sua prpria condenao68
. Alis, como afirma FIGUEIREDO DIAS, O princpio da
presuno de inocncia, ligado agora directamente ao princpio da dignidade pessoal,
62
FIGUEIREDO DIAS, Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Cdigo de Processo Penal, in Jornadas de
Processo Penal O novo Cdigo de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1988, p.27-28. 63
Ac. n. 340/2013. 64
Ob. cit. , p.41. 65
V. VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., 2007, p. 69-72. 66
Todo o arguido se presume inocente at ao trnsito em julgado da sentena de condenao. 67
Cuja formulao a seguinte: sendo todo o homem presumido inocente at ser declarado culpado. 68
LILIANA DA SILVA S, O dever de cooperao versus o direito no auto-incriminao, in RMP, Ano 27,
N.107, Jul-Set 2006, p. 133.
24
conduz a que a utilizao do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo
integral respeito pela sua deciso de vontade69
.
Desta forma, somos levados a concluir, na linha do que o Tribunal Constitucional
tem defendido70
, e no seguimento da doutrina citada, que de forma imediata o direito no
autoincriminao encontra o seu fundamento jurdico-constitucional nas garantias
processuais de defesa do arguido, nomeadamente, no princpio da presuno de inocncia,
inerentes e existentes num processo penal de estrutura acusatria, que se destinam a
assegurar ao arguido um processo equitativo nos termos atrs explanados. E, que de forma
mediata, o princpio reflexo do direito fundamental da dignidade humana e da liberdade
de ao. Pois, s no exerccio de uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir
se e como deseja tomar posio perante matria que constitui objecto do processo71
.
4. Direito no autoincriminao e direito ao silncio
Parece-nos importante desde j defender que direito no autoincriminao e
direito ao silncio no so conceitos sinnimos. Efetivamente, como atrs ficou dito
quando definimos o princpio, o direito no autoincriminao desdobra-se no direito ao
silncio, que se traduz na liberdade que o arguido tem em no prestar declaraes que o
incriminem, e, tambm no direito que ele tem de no oferecer meios de provas72
. Sendo
certo porm que os dois direitos andam normalmente de mos dadas, os seus contedos
no so totalmente coincidentes, mas, por vezes, chegam a sobrepor-se e a confundir-se.73
A confuso pode suscitar-se, na medida em que o direito ao silncio assume a
manifestao mais evidente do princpio nemo tenetur74
. No entanto, no podemos deixar
69
69
FIGUEIREDO DIAS, Sobre os Sujeitos ob. cit., p.27e ss.. 70
No Acrdo n. 695/95, o TC declarou inconstitucional o n.2 do artigo 342. do CPP, fundamentando que
a imputao ao arguido do dever de responder a perguntas sobre os seus antecedentes criminais formulada
no incio da audincia de julgamento viola o direito ao silncio, enquanto direito que integra as garantias de
defesa do arguido. Itlico nosso. 71
71
FIGUEIREDO DIAS, Sobre os Sujeitos, ob. cit., p. 27-28. 72
Ac. TC n. 340/2013, Este princpio, alm de abranger o direito ao silncio propriamente dito, desdobra-se
em diversos corolrios, designadamente nas situaes em que estejam em causa a entrega de documentos
autoincriminatrios, no mbito de um processo penal. 73
VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p. 132. 74
Neste sentido, CRUZ BUCHO, ob. cit., p. 29; Ac. do TC n.418/2013, Ac. do TEDH Saunders V. Reino
Unido; AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, p. 20-21: O direito ao silncio constitui assim o
ncleo quase absoluto do nemo tenetur.; tambm PAULO SOUSA MENDES, O dever de colaborao, p.
15, que define o princpio segundo o qual ningum deve ser obrigado a contribuir para a sua prpria
incriminao, que engloba o direito ao silncio e o direito de no facultar meios de prova;
25
de frisar que o princpio nemo tenetur pretende conferir ao arguido, mais do que o direito
de no declarar contra si atravs de manifestaes verbais, o autntico direito de no
oferecer provas que contribuam para formar a convico no juiz de que ele autor do
crime. unnime entre a doutrina, e a jurisprudncia que as manifestaes verbais no
so as nicas formas em que se apresenta o princpio contra a autoincriminao, pois,
atravs de outras condutas possvel produzir prova de carter incriminatrio, utilizvel
contra quem a produziu75
.
Daqui resulta que o princpio implica, por um lado que ningum est obrigado a
declarar contra si mesmo, e, por outro, que ningum obrigado a produzir prova contra a
sua defesa. Assim, alm das declaraes do arguido, o princpio atinge a produo de
provas () em que o arguido seja convocado a participar76
.
Defendemos por isso, uma conceo ampla do princpio ao invs de uma
conceo restritiva77
segundo a qual o princpio apenas abrange a vertente negativa da
liberdade de declarao.78
Cremos que o princpio perde a importncia que merece se o
olharmos nesta perspetiva, diminuindo consequentemente as garantias de defesa do
arguido. De que serve ao arguido o direito de no prestar declaraes, se por outras formas
for obrigado a fornecer meios de prova que o incriminam? Sustentamos que o arguido tem
no s o direito ao silncio, como tambm o direito a no participar na formao da sua
prpria culpabilidade, fornecendo prova contra si.
Alguns autores79
defendem, ao invs, que o direito no autoincriminao uma
componente do direito ao silncio. Neste sentido, perspetivando o direito ao silncio em
sentido amplo, defendem que este abrange no s as declaraes do arguido (aqui
estaramos apenas no mbito do direito ao silncio em sentido estrito), mas qualquer tipo
de declarao, que se pode traduzir na entrega de documentos, na indicao da localizao
75
CARLOS HADDAD, Contedo e contornos do princpio contra a auto-incriminao, tese de doutoramento
apresentada na Faculdade de Direito de Minas Gerais, a 13 de Outubro de 2003, disponvel em:
http://www.bibliotecadigital.ufmg.brp, p. 43. 76
ADRIANA RISTORI, Sobre o Silncio do Arguido no Interrogatrio No Processo Penal Portugus,
Coimbra, Almedina, 2007, p.98. 77
Este tambm o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Norte-Americano. 78
Como nos afirma MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, p. 120-121, atravs de ESSER:
esta liberdade analisa-se numa dupla dimenso ou funo. Pela positiva, ela abre ao arguido o mais irrestrito
direito de interveno e declarao em abono da sua defesa. () Pela negativa, a liberdade de declarao
ganha a estrutura de um autntico Abwehrrecht contra o Estado, vedando todas as tentativas de obteno por
meios enganosos ou por coaco de declaraes auto-incriminatrias. 79
Cfr. JNATAS MACHADO E VERA RAPOSO, ob. cit., p. 17.
http://www.bibliotecadigital.ufmg.brp/
26
dos meios de prova, ou atravs de uma atuao. Nesta vertente, o direito ao silncio
significa o direito a no ser obrigado a fornecer prova da sua culpabilidade80
.
Ora, na senda da autora LARA SOFIA PINTO, defendemos que este no deve ser
o entendimento a seguir. Pelo contrrio, acolhemos uma conceo minimalista do direito
ao silncio, abarcando este apenas as declaraes verbais do arguido sobre os factos que
lhe so imputados. Nesta linha, o direito ao silncio um dos corolrios do direito no
autoincriminao, que em sentido amplo, se traduz no direito a no facultar quaisquer
meios de prova para a sua prpria autoincriminao.
Como se v, os conceitos assumem significados e alcances distintos. O direito ao
silncio, por razes histricas e pela sua consagrao normativa, assume uma importncia
que permite a sua autonomizao dentro do princpio no autoincriminao. No entanto,
no pode deixar de ser visto como um corolrio do nemo tenutur, uma vez que a liberdade
de no declarar ela mesma uma forma de no autoincriminao, mas no a nica.
Consideramos que o direito ao silncio, mesmo perspetivado numa viso
maximalista, nunca seria capaz de acolher casos mais complexos e fronteirios em que o
arguido submetido a medidas de investigao que incidem sobre o seu corpo. Olhemos,
por exemplo, para a extrao de amostras de sangue, cabelo ou saliva para determinao do
perfil de ADN, na realizao de uma cirurgia para a remoo de um projtil ou a utilizao
de emticos para recuperar drogas, ou para a colaborao forada numa recolha de
autgrafos para comparao de caligrafia81
. Estes casos cairiam, sem qualquer hesitao,
fora das malhas de proteo do direito ao silncio, mesmo encarado numa perspetiva
maximalista. Por este motivo, defendemos essencialmente que o privilgio contra a
autoincriminao confere ao arguido o direito a no contribuir, por qualquer forma, para a
formao da convico do juiz de que ele o autor do crime de que acusado. Com isto,
no queremos dizer que o princpio absoluto, e que no pode sofrer quaisquer restries.
Pelo contrrio, admitimos que sendo esta a regra, ela comportar as devidas excees nos
termos em que as mesmas forem permitidas.
80
LARA SOFIA PINTO, ob. cit., p.109. 81
Cfr. SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido Como meio de Prova contra si mesmo: consideraes em
torno do princpio Nemo Tenetur se Ipsum Accusare, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade
do Porto, X, Porto, 2013, p. 362.
27
5. Critrios delimitadores do princpio nemo tenetur
Sustentmos j, neste trabalho, que o direito no autoincriminao tem um
contedo abrangente, no coincidindo exclusivamente com o direito ao silncio. Alis, este
ltimo apenas uma das manifestaes daquele, ainda que a mais evidente. Podemos
mesmo dizer que a extenso do princpio foi-se paulatinamente ampliando82
. Com efeito,
se no incio as questes que se colocavam visavam sobretudo defender que o arguido no
fosse obrigado a confessar a prtica do crime, passando por isso pelo direito ao silncio,
atualmente, e com a evoluo da cincia, as questes tornam-se mais complexas, uma vez
que o corpo do arguido pode fornecer provas que de outra forma no seriam obtidas. E,
nestas situaes, entramos na zona de fronteira, entre os casos em que o arguido assume
a posio de sujeito processual e aqueles em que a lei permite o seu estatuto como meio de
prova83
. Nestas situaes no fcil decidir: quando se est ainda no mbito de um
exame, revista, acareao ou reconhecimento, admissveis mesmo se coactivamente
impostos; ou, quando, inversamente, se invade j o campo da inadmissvel auto-
incriminao coerciva84
.
Face a esta dificuldade de traar uma linha que separe as situaes que caiem nas
malhas de proteo do princpio nemo tenetur, daquelas que no se situam na sua esfera, a
doutrina e a jurisprudncia tm-se apoiado em critrios.
Um desses critrios foi elaborado pelo TEDH, no caso Saunders versus Reino
Unido, que j tivemos oportunidade de tratar, mas que importa aqui relembrar. Falamos do
critrio da dependncia ou independncia da vontade do arguido, segundo o qual o
princpio no abrangeria as prestaes pessoais do arguido, ainda que exigidas sob ameaa
de sano, desde que estas fossem independentes da vontade do sujeito85
. Como refere o
clebre Ac. do TEDH, o mesmo (o princpio nemo tenetur) no abrange a utilizao, em
quaisquer procedimentos penais, de dados que possam ser obtidos do acusado recorrendo a
poderes coercivos contanto que tais dados existam independentemente da vontade do
suspeito.86
82
Neste sentido, CARLOS HADDAD, ob. cit., p.17. 83
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, 127. 84
Idem. 85
AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit. , p. 24. 86
Sublinhado nosso.
28
Importante tambm nesta matria, entre outros87
, o Ac. do TEDH, que decidiu o
caso Jalloh versus Alemanha88
. Com efeito, aqui, estava em causa a administrao forada,
atravs de uma sonda nasal, de substncias indutoras do vmito, atravs da qual se operou
a recuperao da cpsula de cocana que o suspeito engolira quando foi detido em flagrante
delito pela polcia. Neste acrdo, o TEDH voltou a afirmar o critrio seguido no caso
Saunders, e alm disso, indicou tambm os critrios que devem estar presentes para decidir
se determinada situao viola ou no o princpio nemo tenetur em concreto. Segundo o
TEDH, para determinar se o direito autodeterminao do queixoso foi violado, o
Tribunal, por sua vez, ter de considerar os seguintes factores: a natureza e o grau de
coero empregado para obter a prova, a importncia do interesse pblico na
investigao e punio da infraco em apreo, a existncia de garantias relevantes no
processo e a utilizao prevista dos meios de prova obtidos dessa forma. No caso em
apreciao, o TEDH conclui que o interesse pblico em assegurar a condenao do
queixoso no podia justificar o recurso a to grave interferncia na sua integridade fsica e
mental89
.
Contra este critrio argumenta-se que, nesta perspetiva, o princpio ficaria cingido
s declaraes orais, fazendo-o coincidir com o direito ao silncio. Alm disso, no
aceitvel defender que s as declaraes orais dependem da vontade do arguido, enquanto
outras diligncias probatrias, como a colheita de ar expirado ou de urina, no esto na
dependncia da sua vontade. Defende-se, por isso, que quem forado (sob ameaa de
sano), a prestar declaraes, a entregar documentos ou a ceder ar, saliva ou urina, no s
se torna objecto de prova como pode produzir prova contra si mesmo90
.
Para outros autores, o critrio de delimitao assentar na distino entre conduta
ativa e tolerncia passiva do arguido, e neste sentido, s no primeiro caso estaria a violar-
se o princpio nemo tenetur. Este critrio adotado pelo Tribunal Constitucional Alemo, e
acolhido pela doutrina tradicional alem91
. Segundo este entendimento, quando a
87
Ver por exemplo, o Ac. Quinn vs. Irlanda, de 21 de dezembro de 2000 e o Ac. P.G. et J.H. vs. Reino
Unido, de 25 de setembro de 2001, o critrio foi reafirmado, disponveis em http://hudoc.echr.coe.int. 88
De 11 de julho de 2006. Disponvel em:
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-76307#{"itemid":["001-76307"]}. 89
JOANA COSTA, ob. cit., p. 158 e ss.. 90
AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p.24-25, e ainda, p. 32 e ss.. 91
Cfr. KARL-HEINZ GOSSEL, As proibies de prova no direito processual penal da repblica federal da
Alemanha, Trad. de Manuel da Costa Andrade, in RPCC, Ano 2, Janeiro-Maro 1992, p. 423, Tais
medidas s so, de todo o modo, permitidas se e na medida em que o arguido as sofra de modo meramente
passivo, no podendo ser compelido a participar activamente na sua realizao. Isto porquanto tal
29
colaborao do arguido consubstancie uma ao, esta ser inexigvel, podendo o arguido
opor-se92
. Implicando, a contrario, que a conduta passiva do arguido, traduzindo-se numa
sujeio, j ser exigvel ao acusado93
. Entende esta parte da doutrina que s atravs de
uma atividade ou de uma ao o arguido produz prova, e s quando produz prova est
protegido pelo princpio94
.
Entre ns, este critrio parece ter sido acolhido pelo TC, no AC. n. 155/2007, que
comeando por referir a citada jurisprudncia dos juzes de Estrasburgo, esclarece ()
essa colheita (no caso, de saliva para efeitos de realizao de anlises de A.D.N.) no
constitui nenhuma declarao, pelo que no viola o direito a no declarar contra si mesmo
e a no se confessar culpado. Constitui ao invs uma percia de resultado incerto, que,
independentemente de no requerer apenas um comportamento passivo, no se pode
catalogar como obrigao de autoincriminao.95
Contra este pensamento no faltam crticas96
, nomeadamente da doutrina alem
mais recente, que, na voz de WOLFSLAST contesta este critrio, alegando que pode haver
uma violao da dignidade da pessoa humana tambm nos casos de colaborao passiva e
no apenas nos casos de colaborao ativa97
. Alis, servindo-nos das palavras da autora, o
tormento, a humilhao de ter de ser instrumento contra si prprio podem, em caso de
passividade forada e verificadas certas circunstncias, ser maiores do que em caso de
colaborao activa98
.
Tambm entre ns, a doutrina, acompanhado o pensamento da autora alem,
considera este critrio insatisfatrio, simplista e de difcil aplicao prtica99
, reconhecendo
configuraria () uma afronta inadmissvel dignidade humana. O arguido no pode, por isso, ser, v.g.,
obrigado a participar em testes, reconstituio dos factos, provas grafolgicas ou lingusticas.. nesta
distino entre colaborao activa e mera passividade, que na Alemanha se vem entendendo que o arguido
no pode ser obrigado a soprar nos testes de controlo de alcoolmia, v. MANUEL DA COSTA ANDRADE,
Sobre as Proibies, ob. cit., p. 129. 92
V. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Anotao ao Acrdo do TC n. 340/2013, in Revista de
Legislao e de Jurisprudncia, N.3989, Nov/Dez de 2014, p. 143, Brevitatis causa tomaremos aqui o
privilgio contra a auto-incriminao pelo seu contedo nuclear. A significar que ningum pode ser
coactivamente obrigado a contribuir activamente para a sua prpria condenao em processo penal. 93
LARA SOFIA PINTO, p. 97. 94
Neste sentido, CARLOS HADDAD, ob. cit., p.64. 95
Itlico nosso. 96
Contra a excessividade das crticas que so colocadas ver CARLOS HADDAD, ob. cit., p. 60-68. 97
GABRIELE WOLFSLAT apud MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, ob. cit., p.127-128. 98
Idem 99
Entre outros, v. MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibies, ob. cit., p. 127-131; SNIA
FIDALGO, ob. cit., p. 141; LARA SOFIA PINTO, ob. cit., p. 97-98.
30
que difcil traar a linha que delimite os comportamentos que traduzem uma ao e os
que, pelo contrrio, espelham uma sujeio100
.
De facto, a doutrina101
e jurisprudncia102
portuguesas tm optado por outro
critrio: pelo critrio da concordncia prtica ou da ponderao dos bens. Seguimos, por
considerarmos ser este o melhor critrio, o entendimento protagonizado por FIGUEIREDO
DIAS E COSTA ANDRADE, que reconhecendo que o direito ao silncio e o direito no
autoincriminao, constitucionalmente consagrados, assumem importncia fundamental
num processo penal acusatrio como o nosso, admitem igualmente que estes direitos
podem ser restringidos. E assim, afirmam que para que no restem dvidas sobre a
constitucionalidade destas restries, parece seguro que elas devem obedecer a dois
pressupostos: devem estar previstas em lei prvia e expressa, de forma a respeitar a
exigncia de legalidade; e devem tambm obedecer ao princpio da proporcionalidade e
da necessidade, previsto no artigo 18., n.2, da CRP103
.
Em sntese, para que o afastamento do princpio nemo tenetur seja legtimo
imprescindvel que exista uma lei que expressamente imponha ao arguido um dever de
colaborao. Socorrendo-nos das palavras de COSTA ANDRADE, defendemos
veementemente que todo o atentado liberdade dos cidados carece de expressa
legitimao legal104
. No entanto, para que essa lei exista, ela tem de resultar de um juzo
de ponderao que confronte os valores que esto em causa.
Do mesmo modo, SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS invocam o critrio
da concordncia prtica, quando afirmam que o modo de dirimir essa coliso , no
atravs de um critrio all or nothing, mas por meio de uma compatibilizao ou
concordncia prtica que visa aplicar todos os princpios colidentes, harmonizando-os
entre si na situao concreta105
.
Neste sentido, o princpio nemo tenetur ter de ceder face a outros valores que a
ordem jurdica reconhece serem superiores, ou, ento, que s dessa forma se salvaguardam
100
WOLFSLAT invoca como exemplo, a hiptese em que para se reconhecer o arguido, este fisicamente
obrigado a manter a cabea erguida, ou a assumir uma determinada expresso facial; ou, nos casos de recolha
de sangue, quando se pede ao arguido que cerre os punhos; ou ainda, quando o arguido obrigado a
administrar uma substncia emtica. 101
Ver neste sentido, JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., p. 45;
AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p. 23 e ss; LARA SOFIA PINTO, ob. cit., p. 111; e
tambm, FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Lies, ob. cit., p. 24-26. 102
Ver AC. TC n.155/2007. 103
Ob. cit., p. 44-45. 104
Ob. cit., p. 130. 105
Ob. cit., p.23
31
interesses de igual importncia. O indispensvel , que estando reconhecida essa
necessidade de afastar o princpio, haja uma lei expressa que derrogue o princpio
constitucional da no autoincriminao do arguido. At porque, jamais podemos renunciar
ao valor essencial que defende que todo o atentado liberdade dos cidados carece de
expressa legitimao legal.106
Assim, este critrio permite, por um lado, fazer um juzo de constitucionalidade
do dever de colaborao que imposto ao arguido; e, por outro, possibilita aferir da
legalidade da restrio que for feita ao nemo tenetur107
.
6. Consagrao do princpio nemo tenetur na ordem jurdica
portuguesa - evoluo histrica (breve aluso)
Como vimos, embora unanimemente reconhecido como vigente na ordem
jurdico-processual penal portuguesa, o princpio nemo tenetur no tem consagrao
expressa, nem na Constituio, nem no Cdigo de Processo Penal.
Mas, ficou j demonstrado que o nemo tenetur constitui um princpio
constitucional no escrito, assente de forma imediata nos artigos 32. e 20., n.4 da CRP e
de forma indireta nos artigos 1., 24. e 25. da Lei fundamental. O princpio s aparece
positivado, entre ns, na vertente do direito ao silncio, no CPP.
Antes de olharmos para a consagrao que o mesmo assume na legislao atual,
vamos debruar-nos sobre as suas primeiras aparies na nossa ordem jurdica.
Como j tivemos oportunidade de referir, as questes iniciais do princpio nemo
tenetur, relacionavam-se em primeira linha com o direito ao silncio. por este motivo,
que este direito assume uma importncia que outros corolrios do princpio no detm.
Recuando mais de dois sculos atrs, podemos constatar que as questes
relacionadas com o princpio, j se colocavam. Com efeito, as primeiras origens do direito
ao silncio parecem remontar ao Projeto do Cdigo Criminal de 1789 e s Instituies de
Direito Criminal. J nesta poca, Pascoal de Melo Freire defendia que o ru no deveria ser
constrangido a responder num processo criminal, sob pena de ser levado a confessar o
106
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as proibies, ob. cit., p.130. 107
CRUZ BUCHO, ob. cit., p. 48.
32
crime ou a incorrer em perjrio108
. Posteriormente, a Nova Reforma Judiciria de 1841,
que implementou no nosso pas o modelo acusatrio continental veio acolher o direito ao
silncio109
.
Em 1910, pelo Decreto-Lei de 28 de dezembro este direito vem assumir
consagrao legal expressa. Efetivamente, o diploma veio declarar que nenhum ru em
processo penal podia ser obrigado a responder em audincia de julgamento, com exceo
das perguntas relativas sua identidade. Alm do mais, o julgador devia inform-lo desse
direito e devia orientar o seu interrogatrio como exerccio do direito de defesa, e no
como comprovao da acusao.
Posteriormente, surgindo da necessidade de codificar a imensa legislao
processual penal avulsa, o CPP de 1929110
, que vigorou durante o regime do Estado Novo
at 1987, veio consagrar de forma expressa, esta vertente do direito no
autoincriminao, tendo como limitao a obrigao de responder com verdade quando
questionado sobre a identificao pessoal e os antecedentes criminais. Porm, podemos
dizer que, durante este perodo o direito ao silncio no tinha uma concretizao real, uma
vez que o silncio do arguido podia ser valorado contra si, como indcio da sua
culpabilidade. Alm disso, se o arguido tivesse confessado o crime numa fase anterior ao
julgamento, essa confisso poderia ser usada, mesmo que fosse obtida contra a sua
liberdade. Neste contexto de Ditadura Militar, o processo penal, designado de mitigado ou
acusatrio formal, que na realidade se aproximava mais do modelo inquisitrio, visava
primacialmente a descoberta da verdade material. Fruto da ideologia antidemocrtica e
antiliberal, os direitos de defesa do arguido eram deixados para segundo plano,
prevalecendo o interesse da comunidade jurdica em condenar o acusado111
.
Posto isto, somos levados a afirmar que s com o CPP de 1987112
o direito ao
silncio obteve, na prtica, efetiva consagrao. Com a Revoluo de 25 de Abril de 1974
e com a entrada em vigor da Constituio de 1976, surge a necessidade de uma reforma do
108
AUGUSTO SILVA DIAS, O Direito no auto-inculpao no mbito das contra-ordenaes do CVM, in
Revista de Concorrncia e de Regulao, Coimbra, N.1, 2010, p. 243. 109
V. AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p. 10 e ss.. 110
Decreto-Lei n. 16489, de 15 de Fevereiro de 1929. 111
AUGUSTO SILVA DIAS E VNIA COSTA RAMOS, ob. cit., p. 13. 112
Decreto-Lei n.78/87, de 17 de Fevereiro de 1987.
33
sistema processual penal, para que este se adequasse aos princpios do Estado de Direito
material, de raiz democrtica e social113
.
Entre ns, o direito ao silncio aparece consagrado no artigo 61., n.1, alnea d)
do nosso CPP, onde se diz expressamente que o arguido goza, em especial, em qualquer
fase do processo e salvas as excees da lei, do direito de no responder a perguntas feitas,
por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o contedo das
declaraes que acerca deles prestar.
titular do direito ao silncio, em primeira linha, o arguido. Mas no s. Nos
termos do artigo 132., n.2, do CPP, o mesmo direito conferido testemunha, desde que
esta alegue que da resposta s perguntas formuladas resulta a sua responsabilizao penal.
E, este direito protege o arguido desde o momento em que ele aparece no processo
enquanto suspeito114
. O suspeito, no sujeito processual, mas pode adquirir os direitos de
defesa previstos no artigo 61., desde que requeira a constituio de arguido, como resulta
do artigo 59., n.2, do CPP. Este direito complementado com outras disposies legais,
que regulam especificamente o exerccio deste direito durante as vrias fases do processo.
A partir do momento em que assume o estatuto de arguido, recai sobre a
autoridade judiciria ou sobre o rgo de polcia criminal a obrigao de lhe indicar e
prestar as devidas informaes e explicaes sobre os direitos e deveres processuais
referidos no artigo 61. da CPP, como dispe o art.58., n.2 do CPP.
Nesta linha declarou o TC no Ac. n. 695/95, que o arguido deve ser informado,
antes de qualquer interrogatrio, de que goza do direito ao silncio (141., n.4, al. a),
143., n.2, 144. n.1 e 343., n.1 do CPP), devendo tambm ser esclarecido de que o seu
silncio no pode ser interpretado desfavoravelmente aos seus interesses, no podendo,
por isso, o arguido ser prejudicado por ter exercitado o seu direito a no prestar
quaisquer declaraes (o silncio no pode ser interpretado como presuno de culpa).
Desta forma, optando pelo silncio, este comportamento do arguido no o pode
desfavorecer, alis, o tribunal no o pode valorar contra aquele sujeito processual, nem no
113
FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Lies, ob. cit., p. 55. 114
Suspeito toda a pessoa relativamente qual exista indcio de que cometeu ou se prepara para cometer
um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar, artigo 1., al. e) do CPP. Arguido todo
aquele contra quem for deduzida acusao ou requerida instruo num processo penal, artigo 57., n.1, do
CPP.
34
sentido de ele valer com indcio ou presuno de responsabilidade criminal do arguido,
nem como factor de determinao concreta da pena.115
6.1. A transmissibilidade das declaraes anteriormente prestadas
pelo arguido para a audincia de julgamento
Desde ento, at ao presente, o CPP j foi objeto de vrias alteraes e revises
fundadas na prossecuo de objetivos poltico-criminais. Alis, podemos afirmar com
SOUSA MENDES que O aperfeioamento da legislao processual penal nunca ,
porm, uma questo meramente tcnica, axiologicamente neutra116
. O processo penal
mesmo o instrumento que leva a cabo os objetivos traados nos horizontes da poltica
criminal, que hoje visa uma maior eficcia do sistema processual penal, que passa, em
primeiro lugar, pela defesa da descoberta da verdade material.
Ora, algumas dessas alteraes vieram contender diretamente com os direitos
conferidos ao arguido, e, concretamente com o direito no autoincriminao do arguido,
na vertente do direito ao silncio. A mais recente foi operada pela Lei n.20/2013, de 21 de
fevereiro, que veio proceder vigsima alterao do CPP.
No que respeita s declaraes do arguido, o referido diploma introduziu uma
alterao significativa ao artigo 141., n.4, cuja al. b) dispe agora o seguinte: o juiz
informa o arguido de que no exercendo o direito ao silncio as declaraes que prestar
podero ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausncia, ou no preste
declaraes em audincia de julgamento, estando sujeitas livre apreciao da prova. Isto
s ser vlido, desde que o arguido seja assistido por defensor e seja claramente advertido
desta possibilidade, nos termos da alnea b), do n.1, do art. 357. do CPP.
Antes desta alterao legislativa, a leitura de declaraes anteriormente feitas pelo
arguido s era permitida em dois casos. Em primeiro, quando fosse solicitada pelo prprio
arguido, nos termos da al. a) do referido preceito. Em segundo, quando prestadas perante o
115
MARIA JOO ANTUNES, Direito ao silncio, ob. cit., p.26; no mesmo sentido, HELENA MONIZ,
Os problemas Jurdico-Penais da criao de uma base de dados genticos para fins criminais, in RPCC,
Coimbra, Coimbra Editora, Ano 12, Jan/Mar 2002, p. 263. 116
A questo do aproveitamento probatrio das declaraes processuais do arguido anteriores ao
julgamento, p.9, disponvel em:
http://www.idpcc.pt/xms/files/Noticias_e_Eventos/Sousa_Mendes_Aproveitamento_das_declaracoes_do_arg
uido_anteriores_ao_julgamento.pdf.
35
juiz, houvesse contradies entre elas e as feitas em audincia, nos termos da al.b) com a
redao que lhe era dada antes da entrada em vigor da Lei 20/2013. Ora, at aqui, a regra
era a da intransmissibilidade probatria das declaraes anteriores ao julgamento, hoje a
regra a da transmissibilidade.
Estas alteraes foram feitas com base no argumento de que tal permitir dotar
o processo penal portugus de maior eficcia, suplantando-se desse modo as dificuldades
probatrias que emergem da circunstncia de o arguido muitas vezes se remeter ao
silncio na audincia de julgamento, embora tendo anteriormente prestado declaraes
confessrias perante autoridade judiciria e tendo sido assistido por advogado117
.
Ou seja, visa-se o reforo da descoberta da verdade material, mas em
contrapartida ficam beliscados os direitos de defesa do arguido, comprometendo o sistema
processual penal de estrutura acusatria, e os princpios em que o mesmo assenta, como o
princpio da oralidade, da mediao, do contraditrio, e da livre apreciao da prova. Alm
do mais, o que esta alterao vem implicar, concretamente, que desta forma o arguido
exercer o direito ao silncio desde o incio de todo o processo, deixando de fornecer
qualquer indicao que ajudasse a investigao na descoberta de provas necessrias
acusao118
.
Apesar de tudo, e de entendermos que esta alterao ao CPP deveria ter sido mais
refletida e ponderada, a verdade que ela veio lanar a discusso sobre as efetivas
garantias de defesa do arguido e sobre os princpios em que assenta o nosso processo
penal.
Defendemos que o direito no autoincriminao um princpio materialmente
constitucional, e que tem vigncia no nosso ordenamento jurdico, no entanto, na verdade,
so cada vez mais as restries que se verificam ao mesmo. E, se, algumas dessas
limitaes se justificam face a outros interesses prevalecentes e reconhecidos pela
comunidade jurdica, outras parecem surgir merc dessa ponderao, contribuindo para a
incongruncia do sistema processual penal. Ora, se por um lado defendemos que o arguido
um verdadeiro sujeito processual e que, num Estado de Direito, assente na dignidade da
pessoa humana jamais pode ser reconduzido a mero objeto do processo, por outro lado, na
realidade atual caminhamos no sentido de dar primazia eficcia do sistema e descoberta
da verdade material, atravs da reduo dos direitos de defesa do arguido.
117
PAULO DE SOUSA MENDES,A questo do aproveitamento, cit., p.1. 118
Idem p. 14.
36
7. Restries legais ao princpio
Apesar de tudo, e como j referimos anteriormente, defendemos que o princpio
nemo tenetur no um princpio absoluto. Alis, nesta matria, seguimos o pensamento de
MARIA ELISABETH QUEIJO, quando afirma que a inexistncia do dever de colaborar,
em todos os casos redundaria em uma conceo do nemo tenetur se deteregere como
direito absoluto, aniquilando, em determinadas situaes, por completo, a possibilidade de
desencadeamento da persecuo penal ou de dar seguimento a ela.119
Deste modo, existem no nosso ordenamento jurdico-penal algumas limitaes ao
direito no autoincriminao, expressamente contempladas120
.
Quanto ao direito ao silncio, este restringido, desde logo, porque o arguido est
obrigado a responder com verdade s perguntas sobre a sua identidade, de acordo com o
art. 61., n.3, al. b), do CPP121
.
Por seu turno, os art.s 152. e 153. do Cdigo da Estrada sujeitam os condutores
a realizar exames, de alcoolemia ou de substncias psicotrpicas, por exemplo.
A Lei n. 45/2004, de 29 de Agosto, no seu art. 6., impe a obrigatoriedade de
sujeio a exames no mbito das percias mdico-legais, quando ordenadas pela autoridade
competente.
Alm destes, existem deveres de cooperao122
perante a administrao
tributria123
, perante a autoridade da concorrncia124
, e ainda perante a CMVM125
.
119
O Direito de no produzir prova contra si mesmo: o princpio do nemo tenetur se detegere e as suas
decorrncias no processo penal, 2Ed., Editora Saraiva, 2012, p. 364. 120
H outras situaes, que tambm constituem verdadeiras restries ao direito no autoincriminao. Por
exemplo, os meios ocultos de investigao, que, entre ns, so admitidos dentro de determinados
pressupostos, e que redundam invariavelmente na recolha de declaraes auto-incriminatrias de arguidos e
suspeitos. V. JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., p. 45. 121
Antes da ltima alterao legislativa ao CPP, o arguido tambm estava obrigado a responder sobre os seus
antecedentes criminais, quando a lei o impusesse. 122
Neste mbito, levantam-se vrias questes, que por razes de brevidade, no poderemos abordar no nosso
excurso. 123
Impostos pela Lei Geral Tributria e pelo Regime Complementar de procedimento de Inspeo Tributria,
aprovado pelo DL n. 413/98, de 31 de dezembro. 124
Lei da Concorrncia, n. 18/2003, de 11 de junho. 125
Impostos pelo Cdigo dos Valores Mobilirios.
37
8. Consequncias da violao do nemo tenetur
Como vimos, o princpio nemo tenetur no tem carcter absoluto, e adotando
como critrio delimitador aquele que impe a ponderao entre os valores e interesses que
se visam proteger, resulta claro para ns que existem casos em que o direito do arguido
no autoincriminao tem de ceder, estando desta forma o arguido sujeito aos deveres de
colaborao. No entanto,