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__________________________________ CIÊNCIA POLÍTICA _________________________________ (I) A Política e o Estado (1) Política Derivado do adjetivo politikós, que significa tudo o que se refere à cidade (polis) e, conseqüentemente, ao que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo "política" se expandiu graças à influência de Aristóteles. Sua obra Política pode ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, bem como sobre as várias formas de governo. O termo "política" adquire então a significação de arte ou ciência do governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, sobre as coisas da cidade. Ocorreu assim desde a origem uma transposição de significado, do conjunto das coisas qualificadas de um certo modo pelo adjetivo "político", para a forma de saber mais ou menos organizado sobre esse mesmo conjunto de coisas (uma transposição não diversa daquela que deu origem a termos como "física", "ética" e "economia"). O termo Política foi assim usado durante séculos para designar principalmente obras dedicadas ao estudo daquela esfera de atividades humanas que se refere de algum modo às coisas do Estado. Na época moderna, o termo perdeu seu significado original, substituído pouco a pouco por outras expressões como "filosofia política", "teoria do Estado" ou "ciência política". O termo "política" passa então a ser comumente usado para indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de referência a polis, ou seja, o Estado. Dessa atividade o Estado é, por vezes, o sujeito. Neste caso, referem-se à esfera da política atos como o ordenar ou proibir alguma coisa com efeitos vinculadores para todos os membros de um determinado grupo social, o exercício de um domínio exclusivo sobre um determinado território, o legislar através de normas válidas universalmente para todos, o tirar e transferir recursos de um setor da sociedade para outros, etc. Outras vezes o Estado é o objeto dessa atividade política, quando são referidas à esfera da política ações como a conquista, a manutenção, a defesa, a ampliação, o robustecimento, a derrubada, a destruição do poder estatal, etc. (1.1) Poder O conceito de Política, entendida como forma de atividade (praxis) humana, está estreitamente ligado ao de poder. Do grego kratos, "força", "potência", e arché, "autoridade" nascem os nomes das antigas formas de governo. Assim, "aristocracia", "democracia", "monarquia", "oligarquia" e todas as palavras que gradativamente foram sendo forjadas para indicar formas de poder, "fisiocracia", "burocracia", "partidocracia", etc. Não há teoria política que não parta de alguma maneira, direta ou indiretamente, de uma definição de "poder" e de uma análise do fenômeno do poder. Por longa tradição o Estado é definido como o portador da summa potestas e a análise do Estado se resolve quase totalmente no estudo dos diversos poderes que competem ao soberano. A moderna teoria do Estado apóia-se sobre a teoria dos três poderes (o legislativo, o executivo, o judiciário) e das relações entre eles. Já o processo político é usualmente definido como "a formação, a distribuição e o exercício do poder". Se a teoria do Estado pode ser considerada como uma parte da teoria política, a teoria política pode ser por sua vez considerada como uma parte da teoria do poder.

Apostila - Ciencia Politica & Teoria Do Estado (Prof Guilherme Andrade) [2012-01]

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__________________________________ CIÊNCIA POLÍTICA _________________________________

(I) A Política e o Estado

(1) Política

Derivado do adjetivo politikós, que significa tudo o que se refere à cidade (polis) e, conseqüentemente, ao que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo "política" se expandiu graças à influência de Aristóteles. Sua obra Política pode ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, bem como sobre as várias formas de governo. O termo "política" adquire então a significação de arte ou ciência do governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, sobre as coisas da cidade.

Ocorreu assim desde a origem uma transposição de significado, do conjunto das coisas qualificadas de um certo modo pelo adjetivo "político", para a forma de saber mais ou menos organizado sobre esse mesmo conjunto de coisas (uma transposição não diversa daquela que deu origem a termos como "física", "ética" e "economia"). O termo Política foi assim usado durante séculos para designar principalmente obras dedicadas ao estudo daquela esfera de atividades humanas que se refere de algum modo às coisas do Estado.

Na época moderna, o termo perdeu seu significado original, substituído pouco a pouco por outras expressões como "filosofia política", "teoria do Estado" ou "ciência política".

O termo "política" passa então a ser comumente usado para indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de referência a polis, ou seja, o Estado. Dessa atividade o Estado é, por vezes, o sujeito. Neste caso, referem-se à esfera da política atos como o ordenar ou proibir alguma coisa com efeitos vinculadores para todos os membros de um determinado grupo social, o exercício de um domínio exclusivo sobre um determinado território, o legislar através de normas válidas universalmente para todos, o tirar e transferir recursos de um setor da sociedade para outros, etc. Outras vezes o Estado é o objeto dessa atividade política, quando são referidas à esfera da política ações como a conquista, a manutenção, a defesa, a ampliação, o robustecimento, a derrubada, a destruição do poder estatal, etc.

(1.1) Poder

O conceito de Política, entendida como forma de atividade (praxis) humana, está estreitamente ligado ao de poder. Do grego kratos, "força", "potência", e arché, "autoridade" nascem os nomes das antigas formas de governo. Assim, "aristocracia", "democracia", "monarquia", "oligarquia" e todas as palavras que gradativamente foram sendo forjadas para indicar formas de poder, "fisiocracia", "burocracia", "partidocracia", etc. Não há teoria política que não parta de alguma maneira, direta ou indiretamente, de uma definição de "poder" e de uma análise do fenômeno do poder.

Por longa tradição o Estado é definido como o portador da summa potestas e a análise do Estado se resolve quase totalmente no estudo dos diversos poderes que competem ao soberano. A moderna teoria do Estado apóia-se sobre a teoria dos três poderes (o legislativo, o executivo, o judiciário) e das relações entre eles. Já o processo político é usualmente definido como "a formação, a distribuição e o exercício do poder". Se a teoria do Estado pode ser considerada como uma parte da teoria política, a teoria política pode ser por sua vez considerada como uma parte da teoria do poder.

Uma vez reduzido o conceito de Estado ao de política e o conceito de política ao de poder, o problema a ser resolvido torna-se o de diferenciar o poder político de todas as outras formas que pode assumir a relação de poder. A teoria política de todos os tempos dedicou-se a este tema com infinitas variações.

Nas chamadas teorias substancialistas, o poder é concebido como uma coisa que se possui e se usa como um outro bem qualquer. Típica interpretação substancialista do poder é a de Hobbes [1651], segundo a qual "o poder de um homem consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro", ou ainda como os "meios adequados à obtenção de qualquer vantagem". Que estes meios sejam dotes naturais, como a força e a inteligência, ou adquiridos, como a riqueza, não altera este significado do poder entendido como qualquer coisa que serve para alcançar aquilo que é o objeto do próprio desejo. Análoga é a conhecida definição de Bertrand Russell [1938], segundo a qual o poder consiste no "conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados".

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O poder pode ser definido como uma relação entre dois sujeitos (que podem ser indivíduos, empresas, classes sociais ou Estados), dos quais um impõe ao outro a própria vontade e lhe determina o comportamento. Para encontrarmos qual o elemento específico do poder político, pode ser apropriado utilizar como critério os distintos meios de que se serve o sujeito ativo da relação para determinar o comportamento do sujeito passivo. Amplamente utilizado, este critério permite estabelecer uma tipologia ao mesmo tempo simples e iluminadora: a tipologia dos três poderes — ideológico, econômico e político. Ou seja, dos poderes cujos meios são o saber, a riqueza e a força.

O poder ideológico se baseia na influência que as idéias (formuladas de um certo modo, expressas em certas circunstâncias, por uma pessoa investida de certa autoridade e difundidas mediante certos processos) exercem sobre a conduta dos indivíduos. Deste tipo de condicionamento deriva a importância social daqueles que sabem, sejam eles os sacerdotes nas sociedades tradicionais, ou os literatos, os cientistas, os técnicos, os assim chamados "intelectuais", nas sociedades secularizadas. Isto porque é por eles, conhecimentos por eles difundidos ou pelos valores por eles afirmados, que se consuma o processo de socialização necessário à coesão e integração do grupo.

O poder econômico é o que se vale da posse de certos bens, necessários ou considerados como tais, numa situação de escassez, para induzir aqueles que não os possuem a adotar uma certa conduta, consistente normalmente na execução de algum tipo de trabalho. Na posse dos meios de produção reside uma enorme fonte de poder por parte daqueles que os possuem contra os que não os possuem: o poder do empresário deriva da possibilidade que a posse ou disponibilidade dos meios de produção lhe oferece de poder comprar a força de trabalho a troco de um salário. Em geral, todo aquele que possui abundância de bens é capaz de determinar o comportamento de quem se encontra em condições de penúria, mediante a promessa e concessão de vantagens.

Finalmente, o poder político se baseia na posse dos instrumentos mediante os quais se exerce a força física (as armas de toda a espécie e potência): é o poder coator no sentido mais estrito da palavra. Definir o poder político como o poder cujo meio específico é a força ajuda a entender porque ele sempre foi considerado como o sumo poder, isto é, o poder cuja posse distingue em toda sociedade o grupo dominante. De fato, o poder coativo é aquele de que todo grupo social necessita para defender-se dos ataques externos ou para impedir a própria desagregação interna.

Nas relações entre os membros de um mesmo grupo social, não obstante o estado de subordinação que a expropriação dos meios de produção cria nos expropriados, não obstante a adesão passiva aos valores transmitidos por parte dos destinatários das mensagens emitidas pela classe dominante, apenas o emprego da força física serve para impedir a insubordinação e para domar toda forma de desobediência. Nas relações entre grupos sociais, não obstante a pressão que pode exercer a ameaça ou a execução de sanções econômicas para induzir o grupo adversário a desistir de um comportamento tido como nocivo ou ofensivo (nas relações entre grupos os condicionamentos de natureza ideológica contam menos), o instrumento decisivo para impor a própria vontade é o uso da força, isto é, a guerra.

Todas estas três formas de poder fundamentam e mantêm uma sociedade de desiguais, isto é, dividida em sábios e ignorantes com base no poder ideológico, em ricos e pobres com base no poder econômico, em fortes e fracos com base no poder político. Genericamente, uma sociedade dividida em superiores e inferiores.

Esta distinção entre três tipos principais de poderes sociais, embora expressa em formas diversas, é um dado quase constante nas teorias contemporâneas, nas quais o sistema social em seu conjunto aparece direta ou indiretamente articulado em três subsistemas: a organização das forças produtivas, a organização do consenso, a organização do poder coativo.

Uma teoria realista do poder político como forma de poder distinta de qualquer outra forma de poder constitui-se através da elaboração, devida aos juristas medievais, do conceito de soberania ou summa potestas. A filosofia política grega e romana conhece não mais que uma sociedade perfeita, o Estado, que abarca todas as demais sociedades menores. Na sociedade medieval, porém, apresentam-se duas diversas sociedades com tal característica: o Estado e a Igreja. A secular disputa sobre a preeminência de um ou de outra exige uma delimitação das duas esferas de competência e portanto de domínio. Conseqüentemente, torna-se necessária a determinação dos caracteres específicos das duas potestates. Torna-se opinião comum a distinção entre a vis directiva, que é prerrogativa da Igreja, e a vis coactiva, que é prerrogativa do Estado.

Na contraposição à potestade espiritual e às suas pretensões, os defensores e os detentores da potestade temporal tendem a atribuir ao Estado o direito e o poder exclusivo de exercer a força física sobre um determinado território e com respeito aos habitantes deste território. Deixam à Igreja o direito e o poder de ensinar a verdadeira religião e os preceitos da moral, de salvaguardar a doutrina dos erros, de dirigir as consciências para o alcance dos bens espirituais, acima de tudo a salvação da alma. O poder político vai-se assim identificando com o exercício da força e passa a ser definido como aquele poder que,

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para obter os efeitos desejados, tem o direito de se servir da força (embora em última instância, como extrema ratio). Aqui, o critério de distinção entre poder político e poder religioso é o meio empregado. O poder espiritual serve-se principalmente de meios psicológicos mesmo quando se serve da ameaça de penas ou da promessa de prêmios ultraterrenos. O poder político serve-se da constrição física, como a que é exercida mediante as armas.

No início da idade moderna, o tema da exclusividade do uso da força como característica do poder político será o tema hobbesiano por excelência. Em seu De Cive [1642] Hobbes divide o poder em três partes: religio, libertas e potestas. Eles correspondem respectivamente ao poder espiritual, ao qual cabe uma tarefa essencialmente de ensinamento, à esfera da liberdade natural, onde se desenrolam as relações de troca (pode-se ver no estado de natureza hobbesiano uma prefiguração da sociedade de mercado) e ao poder político, que detém as duas espadas da justiça e da guerra.

Hobbes afirma que a segurança dos súditos é o fim supremo do Estado, e portanto da instituição do poder político. Para isso é necessário que alguém, não importa se pessoa física ou assembléia, "detenha legitimamente no Estado o sumo poder" [1642]. Isolados e temendo por suas vidas e propriedades, os indivíduos delegam ao Estado a exclusividade do uso da força. A passagem do estado de natureza ao Estado civil será representada pela passagem de uma condição na qual cada um usa indiscriminadamente a própria força contra todos os demais a uma condição na qual o direito de usar a força cabe apenas ao soberano. Assim, o poder por excelência é o poder político, o qual mantém subordinados tanto o poder espiritual quanto o econômico.

A partir de Hobbes o poder político assume uma conotação que permanece constante até hoje. Weber, por exemplo, define o Estado como o detentor do monopólio da coação física legítima. Também para Kelsen o Estado será um ordenamento coercitivo: "o Estado é uma organização política porque é um ordenamento que regula o uso da força e porque monopoliza o uso da força".

(2) Estado

A palavra "Estado" se impôs através da difusão e pelo prestígio do Príncipe [1513] de Maquiavel. A obra começa, como se sabe, com estas palavras: "Todos os Estados, todos os domínios que imperaram e imperam sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados".

Isto não quer dizer que a palavra tenha sido introduzida por Maquiavel. Minuciosas e amplas pesquisas sobre o uso de "Estado" na linguagem dos séculos XV e XVI mostram que a passagem do significado corrente do termo status de "situação" para "Estado" no sentido moderno da palavra, já ocorrera, através do isolamento do primeiro termo da expressão clássica status rei publicae. O próprio Maquiavel não poderia ter escrito aquela frase exatamente no início da obra se a palavra em questão já não fosse de uso corrente.

Com Maquiavel o termo "Estado" vai pouco a pouco substituindo, embora através de um longo percurso, os termos tradicionais com que fora designada até então a máxima organização de um grupo de indivíduos sobre um território em virtude de um poder de comando. As únicas palavras do gênero conhecidas pelos antigos para designar as várias formas de governo eram civitas, que traduzia o grego polis, e res publica, com o qual os escritores romanos designavam o conjunto das instituições políticas de Roma. O longo percurso até a afirmação definitiva do termo "Estado" é demonstrado pelo fato de que ainda no século XVII Hobbes usará predominantemente os termos civitas em suas obras latinas e commonwealth nas obras inglesas, com todas as acepções em que hoje se usa "Estado".

O termo "Estado" passa de um significado genérico de situação para um significado específico de condição de posse permanente e exclusiva de um território e de comando sobre os seus respectivos habitantes. No próprio trecho de Maquiavel o termo "Estado", apenas introduzido, é imediatamente assimilado ao termo "domínio".

A introdução do novo termo "Estado" nos primórdios da idade moderna por sua vez corresponde à necessidade de encontrar um novo nome para uma realidade nova: a realidade do Estado precisamente moderno, a ser considerado como uma forma de ordenamento tão diverso dos ordenamentos precedentes que não podia mais ser chamado com os antigos nomes. Com Maquiavel não começa apenas a fortuna de uma palavra, mas a reflexão sobre uma realidade desconhecida pelos escritores antigos, da qual a palavra nova é um indicador. Neste sentido, seria oportuno falar de "Estado" unicamente com relação à formação dos grandes Estados territoriais a partir da dissolução e transformação da sociedade medieval, e não com respeito às formações políticas precedentes. O nome novo nada mais seria do que o sinal de uma coisa nova.

No Estado moderno temos o processo de concentração do poder de comando sobre um determinado território bastante vasto. Isso acontece através da monopolização de alguns serviços

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essenciais para a manutenção da ordem interna e externa. Tornam-se centralizados a produção do direito através da lei (que à diferença do direito consuetudinário é uma emanação da vontade do soberano), o aparato coativo necessário à aplicação do direito contra os renitentes, bem como a imposição e o recolhimento fiscal, necessário para o efetivo exercício dos poderes aumentados. Quem descreveu com extraordinária lucidez este fenômeno foi Max Weber, que viu no processo de formação do Estado moderno um fenômeno de expropriação por parte do poder público dos meios de serviço como as armas, fenômeno que caminha lado a lado com o processo de expropriação dos meios de produção possuídos pelos artesãos por parte dos possuidores de capitais. Desta observação deriva a concepção weberiana, hoje tornada opinião comum, do Estado moderno definido mediante dois elementos constitutivos: a presença de um aparato administrativo com a função de prover à prestação de serviços públicos e o monopólio legítimo da força.

(3) Origem e Fundamento do Estado

(3.1) Estado e Sociedade

Durante séculos a organização política foi o objeto por excelência de toda reflexão sobre a vida social do homem. Na tradição clássica, desde Aristóteles, o homem é visto como animal social, como politikón zoon. Em politikón estava compreendido sem diferenciação o moderno dúplice sentido de "social" e "político". Porém o mundo moderno, com as revoluções burguesas, traria à reflexão sobre o problema do Estado uma completa inversão na relação entre Estado e sociedade.

Com isto não se quer dizer que o pensamento antigo não tenha relevado a existência de formas associativas humanas diferentes do Estado. A família foi considerada por Aristóteles como primeira forma embrionária e imperfeita da polis e o seu tratamento foi colocado no início da Política. Quanto às demais formas de sociedade ou koinoniai, constituídas por acordo ou por necessidade pelos indivíduos com o objetivo de atingir fins particulares, são tratadas por Aristóteles no capítulo da Ética a Nicômaco dedicado à amizade. Precisamente por serem formadas para o alcance de fins particulares — a navegação por parte dos navegantes, a vitória na guerra por parte dos homens de armas, o prazer e a distração por parte dos que se reúnem para banquetear — estão subordinadas à sociedade política, que visa não a uma utilidade particular ou momentânea mas à utilidade geral e duradoura capaz de envolver toda a vida do homem. A relação entre sociedade política (que é a societas perfecta) e as sociedades particulares é uma relação entre o todo e as partes, na qual o todo, o ente englobador, é a polis, e as partes englobadas são a família e as associações.

Com o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade de mercado, muda completamente a relação entre Estado e sociedade. Adam Smith e a economia política afirmam a descoberta das leis econômicas que permitem ao homem uma convivência harmoniosa com uma necessidade mínima de aparato coativo e portanto de poder político. A emancipação da sociedade civil-burguesa em relação ao Estado inverte a relação entre instituições políticas e sociedade. Pouco a pouco a sociedade nas suas várias articulações torna-se o todo, do qual o Estado, considerado restritivamente como o aparato coativo com o qual um setor da sociedade exerce o poder sobre o outro, é reduzido a parte. Se o curso da humanidade desenrolou-se até então das sociedades menores (como a família) ao Estado, passará a se desenrolar através de um processo inverso que vai do Estado opressivo à sociedade libertada.

A reviravolta ocorre no início da idade moderna, com a doutrina dos direitos naturais que pertencem ao indivíduo singular. Estes direitos precedem à formação de qualquer sociedade política e portanto de toda a estrutura de poder que a caracteriza. Diferentemente da família ou da sociedade senhorial, a sociedade política começa a ser entendida como um produto voluntário dos indivíduos, que com um acordo recíproco decidem viver em sociedade e instituir um governo. Johannes Althusius [1603] define a política do seguinte modo: "A política é a arte por meio da qual os homens se associam com o objetivo de instaurar, cultivar e conservar entre si a vida social. Por este motivo é definida como simbiótica". Althusius parte dos "homens" e procede através da obra dos homens em direção da descrição da comunidade política. Ponto de partida exatamente oposto ao de Aristóteles, para quem "é evidente que o Estado existe por natureza" (e portanto não é instituído pelos homens) "e é anterior a cada um dos indivíduos".

Esta inversão do ponto de partida, iniciando dos indivíduos livres e não da sociedade natural, traz conseqüências radicais. Ela comporta uma atenção a problemas políticos completamente diversos daqueles tratados até então: a liberdade dos cidadãos (de fato ou de direito, civil ou política, negativa ou positiva) e não o poder dos governantes; o bem-estar, a prosperidade, a felicidade dos indivíduos considerados um a um, e não apenas a potência do Estado; o direito de resistência às leis injustas, e não apenas o dever de obediência (ativa ou passiva); a articulação da sociedade política em partes inclusive contrapostas (os partidos não mais vistos como facções que dilaceram o tecido do Estado), e não apenas a

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sua compacta unidade; a divisão e contraposição vertical e horizontal dos diversos centros de poder e não apenas o poder na sua concentração e na sua centralidade; o mérito de um governo devendo ser procurado mais na quantidade de direitos de que goza o singular do que na medida dos poderes dos governantes.

A mais alta expressão desta inversão são as Declarações dos Direitos americana e francesa, nas quais é solenemente enunciado o princípio de que o governo é para o indivíduo e não o indivíduo para o governo. Este princípio exerceu grande influência não apenas sobre todas as constituições que vieram depois mas também sobre a reflexão a respeito do Estado, tornando-se assim, ao menos em termos ideais, irreversível.

Ao longo da história do Ocidente, dois grandes modelos sucederam-se na explicação da origem e do fundamento do Estado: um modelo naturalista, cuja tradição remonta à Política de Aristóteles, e um modelo contratualista, consolidado a partir do Leviatã de Hobbes.

(3.2) O Modelo Naturalista: Aristóteles

É na Política que Aristóteles formula sua famosa definição: o homem é um animal político (zôon politikon), um animal social. Para chegar a ela, Aristóteles parte de uma análise genética da polis. A vida gregária do homem nasce da natural incapacidade humana para a auto-suficiência individual. A vida em comunidade, portanto, é estabelecida "por natureza" (ton phÿsei), deriva de uma necessidade natural.

O primeiro tipo de comunidade é composto pela unidade doméstica (oikos: família), o núcleo comunitário básico que visa suprir as necessidades materiais quotidianas. Da união das várias famílias nasce o segundo tipo de comunidade, a aldeia (ou o clã). Da união das várias aldeias nasce a polis, a qual atinge um grau mais elevado de auto-suficiência. A partir desta reconstrução genética, Aristóteles poderá então afirmar que a polis existe "por natureza", uma vez que as primeiras comunidades, das quais ela deriva, também deviam a sua existência a uma necessidade natural. Assim, «a comunidade que é a mais importante de todas e que compreende em si todas as outras» será «aquela que é chamada cidade (polis) ou comunidade política (politikê koinônia)».

A cosmologia aristotélica é essencialmente teleológica, de modo que em todos os âmbitos de sua filosofia (a física, a biologia, a ética) a natureza de uma coisa é a sua finalidade. Em outras palavras, o que uma coisa é, quando plenamente desenvolvida, é a sua phÿsis, a sua essência. Sendo a forma plena e mais desenvolvida, a polis é a finalidade das outras formas anteriores de comunidade.

A finalidade da polis vai além das meras necessidades básicas (às quais responde a oikos), a sua finalidade é garantir ao homem a melhor vida possível. A finalidade do homem é o "bem viver" (eu zên), e o exercício de uma vida virtuosa é o modo para atingir a felicidade (eudaimonia). Na ordem lógico-normativa das finalidades «o todo precede as partes». As coisas são definidas pela função que cumprem e pela sua potência. O corpo, por exemplo, precede logicamente e define os membros, estes sem aquele não podem cumprir sua função, perdem o seu sentido. Do mesmo modo, «a polis é anterior ao indivíduo». Sem ela o indivíduo não é nem auto-suficiente, nem muito menos virtuoso e feliz.

A vida em comunidade não chega a ser algo de especificamente humano. De fato, vários outros animais são politikon, possuindo em certo modo uma vida social. Os animais políticos «são aqueles cujo trabalho conjunto (ergon) é uma só coisa em comum», o que incluiria as abelhas, as vespas e as formigas. Mas o homem é um tipo muito particular de animal político, ele é um zôon politikon logon echon, um animal político que possui o dom do logos (razão e fala).

Esta razão discursiva lhe permite revelar o útil e o danoso, e portanto também o justo e o injusto. Assim, só o homem possui a noção do bem e do mal. Ele nasce como que aparelhado para a sapiência e predisposto para o exercício da justiça. Mas a justiça (dikaiosÿne) é o verdadeiro fundamento da comunidade política, ela se desvela aos homens num ethos que a tradição viva constitui. É no seio da comunidade que a virtude humana da justiça pode realizar-se em atos de justiça, isto é em leis (nomos) e sentenças, que determinam o que é justo para cada um. Portanto, é só na polis que o homem se realiza enquanto homem.

Assim, a polis surge para possibilitar a vida, a auto-suficiência, e subsiste para possibilitar a "vida boa", justa e virtuosa. Com a polis o homem recebe, para além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. O homem deve por natureza (por sua finalidade: a vida boa) viver na polis. Por isso ele é "por natureza" um zôon politikon, um animal político. Deste modo, "humano", "falante", "racional" e "político" são atributos humanos intercambiáveis. A natureza humana é uma natureza racional-falante, essencialmente dependente da comunidade discursiva dos cidadãos. Por isso o juízo de Aristóteles é categórico: «quem, por natureza, não vive na polis, ou é um ser inferior ou é mais que um homem». Quem «de nada precisa, bastando a si mesmo», ou é um animal, ou é uma divindade.

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(3.3) O Modelo Contratualista: Hobbes

A imagem clássica aristotélica irá reinar soberana por muitos séculos. É com a filosofia política de Hobbes que ela começa a sofrer a transformação simbólica que afinal conduzirá à moderna concepção do Estado.

Hobbes vê a sociedade não como um dado natural, mas como um artifício humano. Se Aristóteles abria sua Política declarando que a polis existe por natureza, no Leviathan [1651] vemos Hobbes oferecer uma explicação completamente diversa da origem da comunidade política: «por arte é criado aquele grande Leviatã chamado common-wealth, ou estado, (...) o qual nada mais é que um homem artificial».

Se em Aristóteles o complemento da essência natural da polis é a idéia do homem zôon politikon, em Hobbes à artificialidade do Estado corresponde uma categórica negação ao homem de qualquer sociabilidade natural. O homem hobbesiano é anti-social ou, na melhor das hipóteses, a-social. Não possui nenhum impulso em direção à vida em comunidade. A sociedade civil vai contra, e não a favor, do caráter da natureza humana.

De fato, para Hobbes a necessidade de um soberano, de um poder absoluto, deriva da «experiência por todos conhecida, e por ninguém negada, de que as tendências dos homens são naturalmente tais que, a menos que sejam refreados pelo medo de algum poder coercitivo, todo homem sempre suspeitará e temerá todos os outros». Ele demonstra plena consciência de quão estupefatos ficarão os leitores, ao vê-lo logo de início ousar «negar que o homem seja nascido pronto para a vida em sociedade». Para ele, no entanto, tal impressão deriva de um mero hábito mental. Pensamos assim somente porque há várias gerações somos nascidos e criados em sociedade. Mas nenhuma ilusão pode ocultar o fato de que no estado de natureza, sem um poder instituído, «o homem é lobo do homem».

Os vínculos humanos aristotélicos de auto-suficiência, justiça, virtude, felicidade, desaparecem completamente: a comunidade hobbesiana é forjada pelo medo. Para ele é «indubitável» que, «se todo o medo fosse removido, os homens, com sua ganância, seriam por sua natureza muito mais levados a conquistar o domínio do que a obter a sociedade». Para Hobbes, os homens entram em sociedade civil somente porque temem uma morte violenta, calculando que suas vidas (e propriedades) estarão mais seguras sob a proteção soberana do Estado. Para isso estabelecem um pacto (covenant) uns com os outros, de modo a estabelecer uma sociedade em comum (commonwealth). Se empenham a apoiar seu governo com suas riquezas e forças contra qualquer inimigo externo, bem como contra qualquer outro cidadão que ameace não cumprir o contrato pactuado.

Na verdade, a instituição da comunidade política não significa em Hobbes qualquer salto de qualidade na sociabilidade humana, qualquer preocupação com o bem-estar coletivo. O impulso desagregador permanece. A virtude cívica, ou justiça, resume-se para Hobbes tão somente à disposição estável a obedecer as leis do próprio Estado. Ao mesmo tempo, porém, é preservado o pleno direito do indivíduo de defender a todo custo a própria integridade corporal, e isto inclui o direito de resistir violentamente à sentença (mesmo legítima) de encarceramento. Assim, o homem hobbesiano nunca chega a adquirir plena confiança em seus semelhantes. A comunidade política é perenemente composta por inimigos em potencial, mantidos em estado de subordinação pelo poder absoluto do soberano.

Bibliografia

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BOBBIO, Norberto "O Modelo Jusnaturalista"

in BOBBIO, Norberto & BOVERO, Michelangelo Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna São Paulo: Brasiliense, 1986

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_________________________________ TEORIA DO ESTADO __________________________________

(II) Os Elementos Essenciais do Estado

(1) Povo

População é a totalidade das pessoas que se acham, num dado momento, em determinado Estado. Tal conceito inclui toda e qualquer pessoa, independentemente de nacionalidade, idade, situação política etc. Por isso dizemos que o Brasil tem uma população de cento e sessenta milhões de habitantes, ou seja, os que no momento habitam o território, independente de qualquer vínculo com o Estado brasileiro. População é conceito eminentemente numérico, quantitativo, demográfico e, portanto, não interessa, de imediato, ao Direito. Povo, todavia, é termo que pode revelar um conceito jurídico um conceito político. São conceitos análogos, porém inconfundíveis.

Com efeito, a palavra povo sugere pluralidade de sentidos análogos, sendo, portanto, plurívoco-analógica. Em sentido vulgar, ela pode designar as pessoas residentes num bairro qualquer ou uma comunidade unida pela religião, pelo idioma ou pela etnia. Pode, até, ser empregada pejorativamente, ao designar a parte menos instruída da sociedade, aquela colocada numa posição hierarquicamente inferior das categorias sociais. Por exemplo, na França pré-revolucionária, havia três estamentos, pela ordem, clero, nobreza e povo, o célebre Terceiro Estado.

A democracia grega, quando se referia à assembléia do povo, indicava uma minoria seleta que, pelos dotes intelectuais e pela origem, podia deliberar politicamente durante todo o dia. Tal atividade era denominada ócio, bastante respeitada então e longe de sofrer o sentido pejorativo de hoje. Aqueles que não tinham o direito de deliberar, que não podiam nem mesmo residir na cidade, eram os nec ócio, isto é, os negociantes, escravos e estrangeiros.

Montesquieu afirmava que o povo não podia ser confundido com a ralé, o populacho, devendo ser proibido o direito de voto àqueles que se encontrassem num estado demasiadamente profundo de baixeza. Dizia este notável pensador que, mesmo no governo do povo, o poder não poderia cair nas mãos do baixo povo... Madame de Lambert, discípula de Montesquieu, chegou a definir o povo: "Chamo povo todos aqueles que pensam de maneira baixa e vulgar".

Da diversidade de sentidos que a palavra apresenta, interessam ao Direito e à Teoria do Estado os sentidos jurídico e político. Povo, no sentido jurídico, é o conjunto de indivíduos qualificados pela nacionalidade. Nele não se incluem, já se vê, estrangeiros e apátridas. Todavia, o sentido político é ainda mais restrito, pois exclui não só estrangeiros e apátridas, como também os menores de dezesseis anos (CF, art. 14, §§ 1°, II, c e 2º), estando o povo político, tido como o conjunto dos cidadãos do Estado, vinculado à idéia de cidadania.

Como se vê, não basta ser nacional para se obter a cidadania. A nacionalidade é pressuposto, condição necessária, mas não suficiente para alcançar o status de cidadão. A idade do nacional se mostra o grande empecilho à obtenção da cidadania (como se observa no art. 14, §§ 1°, I e 3º, VI a a d, da Constituição Federal). Todavia, há outras restrições, como aquelas impostas aos militares (no art. 14, § 8°) e a cassação de direitos políticos (nas hipóteses do art. 15).

A nacionalidade, então, é vínculo meramente jurídico, pertinente a direitos civis, em razão do local de nascimento ou da ascendência paterna (nacionalidade originária). Ou, ainda, de manifestação de vontade do próprio interessado (nacionalidade secundária, obtida da mediante naturalização). Nacional, portanto, é o brasileiro nato ou naturalizado, que integra o conceito jurídico do povo, ao passo que cidadão é o nacional no gozo dos direitos políticos.

Há dois critérios para a determinação da nacionalidade: o jus soli e o jus sanguinis. O jus soli leva em conta o local de nascimento do indivíduo, o solo, enfim. Trata-se de um critério normalmente adotado por Estados de forte contingente imigratório, isto é, que recebem imigrantes, estimulando-os a se radicarem, para compensar a rarefação demográfica.

Por outro lado, o jus sanguinis é um critério determinativo da nacionalidade que considera a ascendência, o sangue paterno do indivíduo, para conferir-lhe a nacionalidade. Trata-se de critério típico de Estados de forte emigração, com o que se busca preservar a nacionalidade mediante a consangüinidade.

A Constituição do Brasil adota um critério intermediário, pois faz concessões ao jus soli (art. 12, I, a), e ao jus sanguinis (art. 12, I, b e c).

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Pode ocorrer que o indivíduo não tenha nacionalidade, sendo então apátrida (sem pátria). Em tal caso, estará submetido à Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, adotada em 1954 pelas Nações Unidas. Se tiver mais de uma nacionalidade, o indivíduo será polipátrida.

Os critérios atributivos da nacionalidade decorrem da própria soberania do Estado, não da vontade dos interessados. Quanto à naturalização (CF, art. 12, II), é forma de aquisição secundária ou derivada da nacionalidade. Pode ser expressa ou tácita. A naturalização expressa é aquela que resulta de pedido do interessado (CF, art. 12, II, a e b); a tácita, aquela que se confere ao indivíduo por iniciativa do próprio Estado (CF, art. 12, § 1º).

O conceito político de povo liga-se, de imediato, ao conceito de cidadania. Com efeito, sendo proveniente do latim civitas (de cives, cidadão), o termo cidadania denomina o vínculo político que liga o indivíduo ao Estado, fruindo o cidadão de direitos e deveres de natureza política.

O termo povo contido no art. V, parágrafo único, da Constituição Federal confunde-se com o conceito de cidadania, pois congrega exclusivamente os nacionais dotados de direitos políticos, nas diferentes gradações apontadas pela Constituição (art. 14, §§ 1º a 9º). Portanto, ao declarar que "todo poder emana do povo", a Constituição Federal refere-se ao conceito político de povo, excluindo estrangeiros, apátridas, menores de idade, e (nos termos do art. 14, §§ 2º) os conscritos durante o período do serviço militar (do latim conscriptu, recrutado, alistado, recruta).

(2) Território

A palavra território apresenta uma etimologia à primeira vista estranha; não provém, conforme se poderia pensar, de nada ligado à terra , espaço geográf ico, mas do verbo lat ino terreo . Daí terr i to , isto é, "causo medo, receio, int imido". O Estado exerce o seu poder antevendo a possibilidade de, a qualquer momento utilizar a força (coerção) para ver suas determinações cumpridas pelos súditos. Diga-se o mesmo no âmbito externo, quando o Estado, para manter íntegra a soberania sobre seu território, procura, na força das armas, impor respeito àsdemais sociedades políticas.

Por isso, diziam os romanos: "Território é a universalidade das terras dentro dos limites de cada Estado; alguns o chamam assim porque o magistrado desse lugar tem o direito de, dentro destas terras, aterrorizar, isto é, de afugentar". Diziam, também: "se queres paz, prepara-te para a guerra". Mesmo no mundo moderno permanece um estado de tensão política que lateja entre os Estados contemporâneos. Os Estados se mantém permanentemente em atitude de defesa ou ataque, sempre com o intuito de intimidar, impor-se às outras sociedades políticas, seja para conservarem-se íntegros, seja para expandirem-se às custas de seus vizinhos.

Então, o conceito de território é jurídico-político, não simplesmente geográfico. Kelsen, por exemplo, o define como "o âmbito de validade da norma jurídica".

Conceito geográfico é o de país, a base física de uma sociedade política. Assim, quando nos referimos à influência do solo, do clima, sobre os homens de determinada região, estamos referindo-nos a um país e não a um território propriamente dito.

Pode o território ser definido como a área física na qual o Estado exerce, com exclusividade, seu poder de império ou seu direito de propriedade sobre pessoas e coisas. O território pode ser uma parcela do solo, na qual o Estado exerce seu poder soberano. Pode ser um espaço aéreo. Um navio militar, mesmo em águas territoriais pertencentes a um Estado diverso, faz parte do território do Estado cuja bandeira ostenta. Também as embaixadas são considerados partes integrantes do território do Estado.

Navios ou aviões civis que se encontrem em águas ou espaço aéreo internacionais, estarão sob jurisdição do Estado de onde se originam, sob cujas leis sua propriedade está registrada. Caso tais navios ou aviões estejam em águas ou ares pertencentes a outro Estado, deverão respeitar a soberania do mesmo. Navios ou aeronaves militares, ao contrário, encontrar-se-ão sempre sob a jurisdição do Estado a que pertençam, independentemente do local em que se encontrem.

Dados os vínculos jurídicos e políticos que o ligam ao Povo, o Estado exerce jurisdição também sobre pessoas (possuindo "poder de império" sobre seus nacionais e cidadãos), bem como o direito de propriedade sobre seus bens. O Estado manifesta esse seu poder de império mesmo sobre seus súditos que se encontrem em outros Estados. Isso configura a chamada extra-territorialidade das leis: sua validade permanece mesmo além do território de origem.

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Dois elementos do território apresentam, modernamente, importância muito grande: o espaço aéreo e o mar territorial.

Sobre o espaço aéreo, a soberania do Estado alcança uma altitude que justifica um interesse público que possa reclamar a ação do poder político. No espaço aéreo predomina a soberania plena do Estado, devendo, entretanto, ser reservada uma zona de passagem inocente do território às aeronaves estrangeiras. Desta forma, os aviões civis de natureza pública usufruem de intangibilidade ao sobrevoam ares estrangeiros, bem como de isenções fiscais, normalmente não conferidas às aeronaves particulares.

Quanto ao mar territorial, vem a ser a faixa marítima que acompanha, numa largura variável, as sinuosidades da linha litorânea, e que integra o território do Estado. Em outras palavras, é a faixa marítima que banha as costas de um Estado e que se acha sob o poder de império deste. Normalmente, a largura do mar territorial é calculada a partir da linha de baixa-maré (baixa-mar), que é a altura mais baixa atingida pela maré. O mar territorial brasileiro compreende uma faixa de 12 milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular.

O espaço cósmico fica sob o império do direito internacional. Em 1961 a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou a extensão, ao espaço exterior e aos corpos celestes, dos princípios do direito internacional e da Carta das Nações Unidas. Afirma-se o direito de todos os Estados levarem a cabo explorações cósmicas e a inapropriabilidade jurídica dos corpos celestes.

Vale, agora, distinguir entre fronteira territorial e limite territorial no território do Estado. A palavra fronteira vem do latim frons, frontis (fachada, frente). A fronteira territorial é uma faixa interna de largura considerável, que corre paralela à linha de limite territorial. O limite territorial é a linha que separa o território de um Estado do território pertencente a outro Estado. Fronteira é faixa, limite é linha. Entre dois Estados vizinhos existem, portanto, duas faixas de fronteira opostas e divididas por uma linha divisória, a linha de limite.

O conceito de fronteira tem caráter estratégico (defesa do território do Estado), ao passo que o conceito de limite tem caráter jurídico-político (validade das normas jurídicas do Estado). No Brasil, a fronteira considerada área indispensável à segurança nacional ocupa uma faixa interna de 150km de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional.

Portanto, o território, tomado como a expressão do poder de fato do Estado, constitui um elemento essencial do Estado, pois não há Estado sem poder soberano, e a soberania pressupõe a força necessária à sua auto-conservação. O território, ao lado do elemento humano e do poder soberano, integra a própria essência do Estado. Sem território, portanto, Estado sucumbe.

(3) Soberania

Poder é a capacidade (os meios) de impor obediência. Poder, então, é possibilidade, é potência, potencialidade para a realização de algo. O poder não é ação, é potência. A força é inerente ao poder. O poder do Estado é a força pública organizada a fim de impor o cumprimento de um ordenamento jurídico-político. O poder público é a capacidade de se fazer obedecer exercida pelo Estado. Daí a distinção entre poder público e governo. O poder é potência, o governo é ação. O governo é a dinâmica do poder. Governar é ativar o poder, exercer o poder.

Embora essencialmente sustentado pela força, o poder público somente se legitima quando seu exercício é consentido por aqueles que lhe obedecem. O assentimento, o consenso social, enfim, é pressuposto para a legitimação da idéia que anima aqueles que encarnam o poder. O poder amparado pela força nem sempre disporá do assentimento social, da reverência dos governados, do respeito que estes, eventualmente, lhe votariam. Faltará, se for o caso, autoridade. O vocábulo autoridade, do latim auctoritas, deriva do verbo augere, que significa aumentar, vale dizer, algo que se acrescenta, contingencialmente, ao poder. Autoridade é possibilidade de suscitar obediência espontânea e consciente, sem recurso à força. O direito público romano já fazia uma distinção entre imperium e auctoritas: aquele era a força em potência, a qualquer momento desencadeada, esta era a tradição e o respeito.

O termo soberania deriva do latim medieval superanus e, mais recentemente, do francês souveraineté. As duas palavras latinas das quais parece derivar, realmente, o vocábulo souveraineté são, com efeito, superanus e supremitas.

No Estado da Antigüidade, desde a época mais remota até o fim do Império Romano, não se encontra qualquer noção que se assemelhe à soberania. Entre os romanos, os termos majestas, imperium e potestas, usados em diferentes circunstâncias como expressões de poder, podem

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indicar poderio civil ou militar, revelar o grau de autoridade de um magistrado, ou ainda externar a potência e a força do povo romano. Nenhuma das expressões, po rém, indica poder supremo do Estado em relação a outros poderes ou para decidir sobre determinadas matérias.

O fato de a Antigüidade não ter chegado a conhecer o conceito de soberania tem como fundamento histórico o fato de que faltava ao mundo antigo o único dado capaz de trazer à consciência o conceito de soberania: a oposição entre o poder do Estado e outros poderes. De fato, as atribuições muito específicas do Estado, quase que limitadas exclusivamente aos assuntos ligados à segurança, não lhe davam condições para limitar os poderes privados. Sobretudo no âmbito econômico as intervenções verificadas eram apenas para assegurar a ordem estabelecida e arrecadar tributos, não havendo, pois, a ocorrência de conflitos que tornassem necessária a hierarquização dos poderes sociais.

Durante a Idade Média, sobretudo depois do estabelecimento de inúmeras ordenações independentes, é que o problema iria ganhar importância. As próprias atividades de segurança e tributação iriam dar lugar a freqüentes conflitos, desaparecendo a distinção entre as atribuições do Estado e as de outras entidades, tais como os feudos e as comunas.

Até o século XII a situação continua mal definida, aparecendo simultaneamente referências a duas soberanias, uma senhorial e outra real. Já no século XIII o monarca vai ampliando a esfera de sua competência exclusiva, afirmando-se soberano de todo o reino, acima de todos os barões, adquirindo o poder supremo de justiça e de polícia, acabando por conquistar o poder legislativo. Assim é que o conceito de soberano, inicialmente relativo, pois se afirmava que os barões eram soberanos em seu senhorio e o rei era soberano em todo o reino, vai adquirindo o caráter absoluto, até atingir o caráter superlativo, como poder supremo.

Este processo de afirmação da soberania dos reis se dá em dois planos simultâneos. No plano interno visa tornar clara sua superioridade em relação aos senhores feudais. No plano externo, visa afirmar a independência dos reis relativamente ao Papa.

Ao final da Idade Média os monarcas já detêm supremacia, ninguém lhes disputa o poder, sua vontade não sofre qualquer limitação. Torna-se patente o atributo que os teóricos logo iriam perceber, a soberania. No século XVI este atributo do poder político aparece como um conceito plenamente amadurecido, recebendo um tratamento teórico sistemático e praticamente completo.

De fato, em 1576 temos o aparecimento da obra de Jean Bodin, "Os Seis Livros da República", onde a expressão República equivale ao moderno significado de Estado. Inicia-se o Livro I com a conceituação da República como um direito de governo do monarca com um poder soberano. O capítulo VIII do Livro I é totalmente dedicado ao esclarecimento do conceito de soberania. Diz Bodin: "É necessário formular a definição de soberania, porque não há qualquer jurisconsulto, nem filósofo político, que a tenha definido e, no entanto, é o ponto principal e o mais necessário de ser entendido no trabalho da República". Para Jean Bodin a soberania é o "poder absoluto e perpétuo de uma república".

O poder soberano é um elemento essencial do Estado. Não há Estado sem poder soberano. A soberania é um atributo essencial, uma qualidade suprema do poder estatal. É ela que distingue este poder daquele observado nos grupos sociais condicionados pelo Estado. Conclui-se disso que, onde houver poder de decisão em última instância, haverá soberania.

Antes do surgimento do Estado, a sociedade humana era nômade (homo vagus). Com a fixação do homem ao solo, em virtude da atividade pastoril e da agricultura, surge o homem sedentário (homo manens) surgindo o elemento faltante para a aparição do Estado: o território ou base física da sociedade política. O poder social cede lugar ao poder político, sendo a soberania atributo deste, apenas. O Estado torna-se uma sociedade condicionante, ao passo que as sociedades menores tornam-se condicionadas pelo Estado.

Quanto às características da soberania, praticamente a totalidade dos estudiosos a reconhece como una, indivisível, inalienável e imprescritível.

A soberania é una porque não se admite num mesmo Estado a convivência de mais de um poder soberano. O adjetivo "soberano" significa "supremo", "superior", significa que o Estado é poder incontrastável, é sempre poder superior a todos os demais que existam na sociedade. Não é portanto concebível a convivência de mais de uma entidades "soberanas" numa mesma sociedade política.

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A indivisibilidade da soberania é corolário de sua unidade. A soberania é indivisível porque se aplica à universalidade dos fatos ocorridos no Estado. Assim é inadmissível a existência de várias partes separadas da mesma soberania.

Assim, a moderna "divisão de poderes" deve ser entendida, na verdade, como uma distribuição de funções. O poder soberano delega atribuições, reparte competências, mas não divide a soberania. Neste sentido, não deveríamos falar em poderes do Estado, segundo a célebre tripartição de poderes de Montesquieu. Não há, em verdade, três poderes, mas três órgãos, cada qual atuando, de forma soberana, na esfera de sua competência.

A soberania é inalienável, pois não pode ser transferida. A soberania é parte essencial e constitutiva do Estado, que a exerce sobre seu povo e seu território. Numa suposta alienação, aquele que detém a soberania desapareceria ao ficar sem ela.

Finalmente, a soberania é imprescritível porque, novamente, sua existência está vinculada à existência mesma do Estado. Neste sentido, a soberania só desaparece quando desaparece o Estado. Todo poder soberano aspira a existir permanentemente e jamais seria verdadeiramente superior se tivesse prazo certo de duração.

Do alto de sua soberania, porém, pode o Estado autolimitar-se. De fato, o Estado, desde que o entenda conveniente, pode assumir obrigações externas. Pode também fixar regras jurídicas para aplicação interna, sujeitando-se voluntariamente às limitações impostas por ele próprio. Essas auto-limitações não implicam diminuição da soberania, uma vez que o Es tado se sujeita a elas no seu próprio interesse.

A soberania é o atributo do poder do Estado que o torna independente no plano interno e interdependente no plano externo. No âmbito interno, o poder soberano reside nos órgãos dotados do poder de decidir em última instância. No âmbito externo, o poder soberano mantém, com os demais poderes soberanos, uma relação em que a igualdade se faz presente. Isso o deixa livre para acolher ou não o direito internacional.

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Formas de Estado, Formas de Governo Regimes de Governo, Regimes Políticos

Na análise do Estado e de suas configurações históricas, é possível distinguir as formas de Estado, as formas de governo, os regimes de governo e os regimes políticos.

A expressão forma de Estado indica a maior ou menor irradiação do poder político. Um Estado politicamente centralizado e descentralizado apenas administrativamente é um Estado unitário. Se é politicamente descentralizado, teremos o Estado federal (que, obviamente, também é descentralizado administrativamente). Em face disso, as expressões Estado unitário e Estado federal indicam formas de Estado.

Já a expressão forma de governo revela se o poder é exercido temporária ou vitaliciamente. No primeiro caso, teremos como forma de governo a República; no segundo, a Monarquia.

Quando no Estado moderno se estabelece a divisão de poderes, desenvolve-se um peculiar relacionamento entre as funções executiva e legislativa. Tal relacionamento é chamado regime de governo, de modo que esta expressão afere qual o órgão que exerce a função governamental. Neste caso, o regime de governo pode ser parlamentarista ou presidencialista.

Já o regime político expressa o grau de participação da vontade do povo na tomada das decisões de Estado. Segundo este critério, o regime político pode ser autoritário ou democrático.

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(III) Formas de Estado

As formas de Estado podem ser resumidas a duas, uma simples e uma composta. A forma simples de Estado é representada pelo Estado unitário. As formas compostas de Estado correspondem às federações, que são: a confederação de Estados e o Estado federal.

(1) Estado Unitário

Esta forma de Estado mostra-se politicamente centralizada, embora dotada de descentralização meramente administrativa. O poder central irradia-se por todo o território, sem limitações de natureza política. Caracteriza-se o Estado unitário, portanto, pela unicidade do poder.

O Estado unitário é aquele que apresenta um governo único de plena jurisdição nacional, sem divisões internas que não sejam simplesmente de ordem administrativa. No Estado unitário, todos os cidadãos estão sujeitos a uma autoridade única, ao mesmo regime constitucional e a uma ordem jurídica comum.

O Estado unitário pode dividir-se em departamentos e comunas, que gozam de relativa liberdade de ação (auto-gestão) quanto aos serviços de seu interesse. Trata-se, porém, de mera delegação do poder central. Certo grau de competência é atribuído aos agentes das entidades administrativas, mas persiste a dependência hierárquica.

(2) Estado Federativo

A palavra "federação" se origina do latim foedus, que significa aliança, pacto. A primeira federação que a história conheceu foi a Confederação Helvética, em 1291, que contava apenas com quatro cantões. Em 1815 esta já contava com 25 cantões. Em 1848 foi promulgada sua constituição, e em 1979 ganhou mais um cantão, totalizando 26 cantões.

A doutrina federalista foi elaborada em grande escala por teóricos americanos na época da independência, no final do séc. XVIII. Os principais teóricos do federalismo foram Alexander Hamilton, James Madison, John Jay e Thomas Jefferson.

(2.1) Confederação

Trata-se de uma espécie de federação cujas partes mantém sua soberania. A base jurídica em geral é um tratado, pacto ou aliança. A confederação congrega centros de poder político autônomos e independentes.

No mundo moderno, temos como exemplo a Confederação Helvética (Suíça). A unidade do Estado suíço é realizada salvaguardando as diversidades de suas partes. O Estado é formado hoje por 26 cantões soberanos. Sua estrutura federalista concede uma parte considerável de liberdade, de decisão política e de autonomia em matéria administrativa aos cantões, nas suas qualidades de Estados Confederados.

Cada um deles possui sua própria Constituição e suas próprias leis (isto vale também para frações e municípios). As competências da Confederação são expressamente enumeradas na Constituição. Ela assegura a segurança interna e externa, garante as Constituições cantonais e mantém relações diplomáticas com os Estados estrangeiros. Alfândegas, correios e telégrafos, telefones, moeda e organização militar são igualmente de sua competência. Ela arma as tropas, cria um direito uniforme (direito das obrigações, direito civil, direito penal), controla o tráfego e as estradas de ferro, a economia florestal, a caça, a pesca e a utilização das forças hidráulicas. Toma as medidas necessárias para assegurar o desenvolvimento econômico do país (proteção da agricultura) e o desenvolvimento da prosperidade geral (segurança social, etc.).

Nos seus vários domínios, a Confederação se limita a legislar e controlar as execuções de incumbência dos cantões. O tipo de governo previsto pela Constituição é a República Democrática, dita democracia semi-direta. Os órgãos da Confederação são o povo e os cantões, a Assembléia Federal (parlamento), o Conselho Federal (governo) e o Tribunal Federal.

(2.2) Estado Federal

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O Estado federal constitui uma espécie do gênero federação. Surgiu com a Revolução norte-americana do século XVIII, que resultou no aparecimento dos Estados Unidos da América do Norte, mediante a Constituição de 1787.

As treze colônias libertas do domínio inglês inicialmente uniram-se em confederação. A fragilidade deste tipo de união, levaria George Washington a dizer: "A Confederação não passa de uma sombra sem substância, o Congresso, de um órgão inútil". Era vetado à Confederação impor tributos aos Estados confederados, de modo que se exauriam os cofres daquela, empenhada em gravames financeiros para sustentar a frágil união. A situação mostrava-se insustentável.

Para solucionar o impasse, reuniram-se os representantes dos Estados confederados para rever os Artigos de Confederação, na célebre Convenção da Filadélfia, de 1787. Neste mesmo ano havia sido publicado o clássico O Federalista, de Hamilton, Madison e Jay. O livro consolida a doutrina do federalismo, esclarecendo a natureza e as vantagens do Estado federal. A Constituição terminou por ser ratificada pelos Estados, que exigiram fosse mantida a denominação Estado para cada uma das colônias integrantes do pacto federativo. Daí a tradicional epígrafe Estados Unidos da América.

A partir de então o Estado passa a ser um só. Não mais os treze Estados de logo após a Independência. Era um Estado constituído por Estados que se haviam federalizado. Os doutrinadores norte-americanos que inicialmente costumavam dizer: "The United State are... " passaram empregar o verbo no singular: "The United States is... ". No caso norte-americano, portanto, o nome "Estado" aplicado a uma entidade não soberana explica-se em virtude das circunstâncias históricas.

Não assim no caso brasileiro, quando se começou a chamar de Estados às antigas províncias do Império, tal foi o furor imitativo dos primeiros homens da República. O Brasil havia sido sempre um só Estado, desde os primórdios da colonização, salvo a malograda e efêmera experiência das capitanias. A Argentina, apesar de Estado federal, adota a denominação províncias para as unidades federadas. Tanto no caso do Brasil como no da Argentina, chegou-se ao Estado federal partindo da unidade para a multiplicidade, ao passo que no caso dos Estados Unidos partiu-se da unidade para chegar à unidade, através de uma confederação em seguida à qual surgiu o Estado federal.

Pois bem, o Estado federal é uma espécie de federação, composta por unidades que, embora dotadas de capacidade de auto-organização e de auto-administração, não são dotadas de soberania, submetendo-se a uma Constituição Federal. Com efeito, o Estado federal não se confunde com a confederação, porque esta é formada por Estados propriamente ditos, vale dizer, entidades políticas dotadas de poder soberano, incondicionado. Num Estado federal, ao contrário, os Estados-Membros renunciam à sua soberania em prol do Estado federal.

O Estado-Membro ou Estado federado é entidade integrante do Estado federal. É dotado de poder de auto-organização e de auto-administração, limitado pela Constituição federal. Tal poder de auto-organização chama-se autonomia (do grego, autos = por si só + nomos = norma, lei) e se submete ao poder soberano do Estado federal. Possui também autonomia financeira, pois de nada valeria a autonomia política sem a necessária autonomia financeira (concedida também aos municípios).

Os Estados federados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados federados. Porém os Estados federados não têm o direito de secessão, vale dizer, o poder de se separar da União (que é uma união indissolúvel). Qualquer tentativa de separação ensejará a intervenção federal, promovida pela União. É célebre a Guerra da Secessão, deflagrada nos EUA entre 1861 e 1865, quando a Carolina do Sul separou-se da União, seguida nesta atitude por outros Estados-Membros.

O Estado Federal é representado pela União, pessoa jurídica de direito público que representa o Estado federal. A União é o governo comum a cujo cargo fica confiado, os assuntos de difícil ou impossível gestão pelos Estados-Membros isoladamente, com vantagem para eles e para a comunhão (relações exteriores, forças armadas, comércio internacional, dívida pública nacional etc.). O Estado federal conta com a participação dos Estados federados na formação da vontade nacional. Esse é o papel do Senado Federal, no qual cada Estado federado possui, em geral, o mesmo número de representantes.

No Estado federal brasileiro há três ordens de competências: a da União, a dos Estados federados e a dos municípios. Nenhuma destas entidades federadas poderá invadir a competência das demais, sob pena de inconstitucionalidade, com ressalva da competência comum a todos e da intervenção federal da União nos Estados-Membros, e destes nos municípios. Mesmo aqui, entretanto, as entidades interventoras não atuam em nome próprio, e sim com vistas à integridade do próprio Estado federal como um todo. Vale lembrar, aliás, que a intervenção federal é uma exceção à regra da não-intervenção.

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(IV) Formas de Governo

(1) Monarquia

Monarquia (do grego monos, um, e arché, autoridade) é a forma de governo vitalícia em que apenas uma pessoa exerce o poder político.

Quando a monarquia é exercida visando ao bem comum, deve ser chamada realeza, mas, quando serve apenas de instrumento para os interesses do governante, denomina-se despotismo. Exercida sob a égide da legalidade, a monarquia chama-se realeza constitucional. Todavia, se o monarca faz tábua rasa da lei, tornando-se arbitrário, porém visando ao bem comum, deve ser denominada realeza absoluta. Quando o governante, sem o justo título de monarca, toma o poder pela intimidação ou pelo favorecimento de um estamento social, a forma de governo chama-se tirania.

De modo geral, classifica-se as monarquias em absolutas ou constitucionais. A monarquia absoluta caracteriza-se pela concentração do poder e pelo arbítrio do rei, que governa desvinculado de qualquer limitação jurídica (solutos legibus). Por outro lado, a monarquia constitucional mostra-se limitada pela lei. A monarquia constitucional, a seu turno, divide-se em monarquia constitucional pura e monarquia constitucional parlamentar. Na primeira o rei exerce plenamente a função governamental, na condição de chefe de Estado e chefe de governo, consagrado, porém, o princípio da separação e independência dos poderes; na segunda, o monarca é apenas chefe de Estado, pois a chefia de governo é exercida pelo gabinete ou conselho de ministros.

Sem dúvida a mais antiga das formas de governo, a monarquia é tida por muitos como instintiva, sendo peculiar aos agregados de animais complexos, como o das abelhas, em que uma tendência inata impele estes insetos a viver em função de uma abelha-rainha. Ao longo da história, a monarquia teria passado por quatro estágios: o familiar ou patriarcal, o guerreiro, o teocrático e o civil.

Quanto à forma de sucessão, na monarquia há três: hereditariedade, eleição e cooptação. Monarquia eletiva encontramos na história de Roma, durante o período monárquico (753-509 a.C.), até o rei Túlio Hostílio. Exemplo contemporâneo de monarquia eletiva temos na eleição do Papa, efetuada por um colégio cardinalício. Quanto à cooptação, trata-se de uma forma de investidura em que o sucedido escolhe, livremente, o próprio sucessor. Como exemplo, o de Nerva, senador romano, fundador da dinastia, que escolheu como sucessor Trajano, um de seus generais. Também na história dos Incas, reis peruanos que criaram vasto império na América do Sul pré-colombiana, temos exemplo de cooptação na escolha aleatória, pelo rei Huayna Capac, de seus filhos Huáscar e Ataualpa, que deveriam governar um império fragmentado em duas metades. Os herdeiros, mutuamente enciumados, ocasionaram sangrenta guerra civil, que ensejaria a fácil conquista do Peru pelos espanhóis comandados por Francisco Pizarro.

(2) República

Do latim res publica (literalmente "coisa pública", aquilo que pertence ao povo), o termo república indica, do ponto de vista semântico, o próprio interesse público, ou seja, tudo o que é inerente à sociedade. O romano Cícero delimitou com precisão o sentido mais autêntico de res publica, ao afirmar que "a república é coisa do povo, e povo não é mero ajuntamento de pessoas postas lado a lado, mas uma convivência consciente de pessoas que se torna sociedade pelo reconhecimento de um direito e de um objetivo comuns" (Da república, Livro I, § XXV). Elementos essenciais da república são, então, o interesse comum e o consenso sobre uma lei comum, mediante a qual uma comunidade afirma sua idéia de justiça.

A república é um governo do povo e para o povo. Quando a república é democrática, é também um governo pelo povo. O que caracteriza a república é a temporariedade e a eletividade do governo. Por não ser vitalícia, como a monarquia, a república é uma forma de governo em que os cargos políticos são preenchidos periodicamente. Estes cargos políticos são preenchidos conforme a vontade do povo, que normalmente se manifesta por eleições. Como vimos, porém, existe a possibilidade de monarquias eletivas, como o Papado. Então, a essência da república não reside, propriamente, no fato de ser eletiva, mas no fato de seus cargos políticos serem não vitalícios.

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(V) Regimes de Governo

A expressão regime de governo diz respeito ao modo pelo qual os poderes Executivo e Legislativo se relacionam.

(1) Separação de Poderes

A separação de poderes (ou divisão funcional do poder) visa restringir a amplitude de cada um dos poderes legítimos do Estado, tradicionalmente apontados pela doutrina como Executivo, Judiciário e Legislativo. Dessa forma, eles são descentralizados e suas tarefas e funções são divididas, isto é, delimitam-se as respectivas competências.

A separação de poderes originou-se na revolução constitucional da Inglaterra (a chamada "Revolução Gloriosa"). A Declaração de Direitos (Bill of Rights, de 1689) limitou os poderes do rei aos atos de governo, tornou exclusiva do Parlamento a atividade legislativa e reconheceu a independência do Judiciário. A partir dessa experiência histórica, as funções do Estado passaram a ser tradicionalmente classificadas em executiva, legislativa e judicial, conforme expresso na clássica obra de Montesquieu, "O Espírito das Leis" [1748].

Reconhece-se que o poder, exercido de forma concentrada e ilimitada, acarreta males tais como arbitrariedades contra os indivíduos, corrupção e atentados à democracia. Por estas razões considera-se necessário que esse mesmo poder deva ser delimitado e funcionalmente repartido. Neste sentido, a separação de poderes estabelece um "sistema de freios e contrapesos" (checks and balances) pelo qual o poder político é exercido por vários órgãos autônomos. Dessa forma, a nenhum deles é permitido agir de forma isolada, sem ser submetido a controle por outro órgão de poder, com isso prevenindo o arbítrio.

(2) Parlamentarismo

O parlamentarismo é o regime de governo em que a chefia de governo (administração) é confiada ao próprio parlamento, sendo exercida por um primeiro-ministro que comanda um gabinete formado por ministros auxiliares. A chefia de Estado é confiada ao presidente da República ou, se a forma de governo for a monárquica, ao rei.

O protótipo do regime parlamentarista é o parlamentarismo britânico, que apresenta uma longa evolução histórica. As instituições políticas medievais européias evoluíram de maneira diversa no continente e na Inglaterra. Na França, por exemplo, a monarquia feudal cederia lugar à monarquia absoluta, enquanto na Inglaterra ocorreu o inverso, com a monarquia absoluta se enfraquecendo paulatinamente, até tornar-se monarquia parlamentar.

No século XVI a monarquia inglesa tentou restaurar seu poder, sobrepondo-se ao parlamento, mas Jaime II acabou deposto. Com a promulgação da Declaração de Direitos (Bill of Rights), a monarquia tornou-se, em definitivo, limitada. A partir do Bill of Rights, o rei não poderia mais governar sem o apoio parlamentar, pois do próprio parlamento dependeria a administração das Forças Armadas e a cobrança de impostos.

Ora, havendo duas facções bem determinadas no parlamento, não haveria outra alternativa para o rei a não ser buscar apoio do grupo majoritário para criar tributos e controlar o exército, de tal sorte que ele passou a formar um conselho (gabinete) junto aos membros mais eminentes do partido majoritário. O surgimento do gabinete antecede, portanto, o surgimento da figura do primeiro-ministro, acelerada por circunstâncias históricas.

Com efeito, a chegada ao trono de Jorge I, alemão de origem, ligado à Dinastia de Hannover, traz consigo um problema. O novo rei não falava o inglês e, por isso, desinteressou-se de participar das reuniões do gabinete. Diante do impasse, o próprio gabinete passou a governar. A prática prosseguiu com Jorge II, que, se entendia o inglês, não o falava, continuando o gabinete a assumir a responsabilidade pela atividade governamental. O rei, entretanto, desejando conhecer as deliberações do gabinete, passou a escolher, dentre seus membros mais ativos, um que atuasse como intérprete. Surge, então, a figura do primeiro-ministro. O Ato do Estabelecimento, no início do século XVIII, vem formalmente confirmar que ao gabinete compete a função governamental. Com isso, ao monarca restará apenas uma função representativa: a figura do chefe de Estado. Daí a sugestiva expressão de Bertrand Russell: "O Primeiro-Ministro tem mais poder do que glória, e o rei mais glória do que poder".

No parlamentarismo, sendo o gabinete formado por membros do próprio parlamento, recebe deste uma moção de confiança. Esse mesmo parlamento pode retirar a confiança no governo, resultando na queda

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do gabinete. Caso não se consiga formar uma nova maioria (e com ela um novo governo), pode o chefe de Estado (o presidente ou o rei) dissolver o parlamento, dando fim à atual legislatura e ao mandato dos parlamentares. O mesmo chefe de Estado convoca então o povo para eleger seus novos representantes. Inicia-se uma nova legislatura a um novo processo de formação de gabinete.

O regime parlamentarista é propício aos sistemas bipartidários, ou ao menos com poucos partidos. Não ocorrendo grande fragmentação das bancadas parlamentares, a estabilidade ministerial é maior. É o caso do parlamentarismo inglês, onde os dois principais partidos efetivamente decidem as eleições.

(3) Presidencialismo

O presidencialismo é o regime de governo em que a chefia de Estado (representação do Estado) e a chefia de governo (administração) são encarnadas num só órgão, o presidente da República.

A origem do presidencialismo será encontrada na formação dos EUA. Independentes as colônias, formada a federação, os norte-americanos não romperam, abruptamente, com as instituições da Inglaterra, sua pátria-mãe. Criaram, por assim dizer, uma espécie de monarquia temporária (um aparente paradoxo, pois a forma monárquica de governo é sempre vitalícia). De modo similar, quando os reis de Roma foram expulsos, a monarquia foi, de certa forma, preservada na figura dos cônsules, cujo possível arbítrio era severamente reduzido pela temporariedade e pela colegialidade do cargo. A relativa frieza demonstrada pelos Estados europeus quanto ao regime presidencialista é devida sem dúvida à ideologia liberal da Revolução Francesa, realizada justamente para derrubar o poder pessoal, no caso, do monarca. A figura do presidente norte-americano evocaria o monarca inglês, mas seu poder seria limitado no tempo e pela lei. A vitaliciedade e a hereditariedade peculiares à monarquia foram substituídas pela temporariedade dos mandatos e pela eletividade para os cargos públicos.

O sistema inglês assimilado pela Convenção de Filadélfia não é o de hoje, mas o de 1787, bem diferente. Na época, o regime parlamentar inglês ainda não se achava definitivamente estabelecido, e as instituições britânicas muito se assemelhavam, então, a uma simples monarquia limitada por um parlamento, com separação integral de poderes. Os norte-americanos perceberam que seria difícil transplantar, pura e simplesmente, a monarquia inglesa para o Novo Mundo, e nem por isso deixaram de adaptá-la, com vantagens, às novas circunstâncias.

O Poder Executivo no presidencialismo é monocrático, vale dizer, compete a um só órgão (mono = um), no caso, o presidente da República. As figuras de chefe de Estado e de chefe de governo confundem-se no presidencialismo, o que não ocorre no regime parlamentarista. Incumbido das funções de administração e de representação, o presidente é auxiliado por ministros de Estado. O Poder Executivo é uno, isto é, encarnado apenas pelo presidente. Os ministros de Estado dele não fazem parte, são meros auxiliares no âmbito puramente administrativo. Não respondem, portanto, por atos do presidente. Isto não ocorre no parlamentarismo, regime no qual os ministros do gabinete encarnam coletivamente o Poder Executivo.

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(VI) Regimes Políticos

A vontade do Estado não pode ser uma vontade psicológica, deve ser uma vontade política e jurídica. Coloca-se, então, a questão do regime político, do modo de formação da ordem política e jurídica.

Dois tipos de regime político são possíveis: a autocracia e a democracia. Esta distinção tem como fundamento a idéia de liberdade política. Politicamente livre é o indivíduo que se encontra submetido a uma ordem jurídica de cuja criação tenha participado. Um indivíduo é livre se aquilo que deve fazer coincide com aquilo que deseja fazer.

A democracia significa que a vontade representada na ordem legal do Estado é idêntica à vontade dos cidadãos (a vontade geral, segundo Rousseau). A forma oposta à democracia reside na servidão imposta pela autocracia. Nesta forma de governo, os súditos se acham excluídos da criação da ordem jurídica, razão pela qual não há garantia de que esta se harmonize com a vontade popular.

(1) Autoritarismo

No regime político autoritário, determinado grupo governante exerce o poder dentro de um regime de legalidade preexistente, por eles estabelecido e imposto à sociedade, com pouca ou nenhuma participação popular nas decisões.

(2) Democracia

No Estado Democrático, é o próprio povo quem deve governar, é preciso então estabelecer os meios para que ele possa externar a sua vontade. Dependendo dos meios adotados, diretos ou indiretos, teremos os diferentes tipos de democracia.

(2.1) Democracia Direta

Democracia direta é a forma de organização política na qual todos os cidadãos partilham o exercício do poder, participando diretamente dos processos decisórios dos assuntos públicos. É aquela em que o povo, entendido como o conjunto dos cidadãos, decide diretamente, nas assembléias, os rumos e as diretrizes do Estado. É nas próprias assembléias que são recrutados os governantes e demais ocupantes de cargos públicos.

As primeiras democracias da antiguidade foram democracias diretas, quando de seu surgimento na polis da Grécia antiga. Nestas cidades (cujo exemplo mais célebre era Atenas) o povo se reunia nas praças e ali tomava as decisões políticas, relativas ao interesse público.

Em regime de democracia direta, os cidadãos não delegam o seu poder de decisão, que é exercido diretamente nas assembléias. Se por acaso precisam de um representante, este só recebe os poderes que a assembleia quiser dar-lhe, os quais podem ser revogados a qualquer momento. Assim, na democracia direta, o representante recebe dos cidadãos um mandato restrito, sem autonomia para tomar decisões em nome do povo.

Democracia direta pura, como tal, não existe em nenhum país moderno a nível nacional. No mundo atual o sistema que mais se aproxima dos ideais da democracia direta é a democracia semidireta da Suíça.

(2.2) Democracia Representativa

Nos dias atuais, o conjunto da cidadania é composto por um número enorme de indivíduos, na casa de milhões. Além disso, as decisões de interesse público são muito freqüentes, exigindo uma intensa atividade legislativa. Essas decisões também possuem caráter extremamente técnico, dada a complexidade da sociedade moderna. Neste sentido, é difícil conceber a hipótese de constantes manifestações do povo, para que se saiba rapidamente qual a sua vontade.

A impossibilidade prática de utilização dos processos da democracia direta, tornaram inevitável o recurso à democracia representativa. Na democracia representativa o povo concede um mandato político a alguns cidadãos, para, na condição de representantes, externarem a vontade popular e tomarem decisões em seu nome, como se o próprio povo estivesse governando.

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Embora o mandato seja obtido mediante um certo número de votos, ele não está vinculado a determinados eleitores. O mandatário, apesar de eleito por uma parte do povo, expressa a vontade de todo o povo (de toda a circunscrição eleitoral onde foi candidato), podendo tomar decisões em nome de todos os cidadãos. O mandatário, não obstante decidir em nome do povo, tem absoluta autonomia e independência, não havendo necessidade de ratificação das decisões.

(2.3) Democracia Semidireta

Democracia direta pura, como tal, não existe em nenhum país moderno a nível nacional. Entretanto, existem sistemas mistos, onde democracia direta e indireta coexistem. A democracia semidireta consiste em um sistema basicamente representativo, onde representantes eleitos tomam a maior parte das decisões em nome do povo. Porém, ao contrário da democracia puramente representativa, na democracia semidireta são também adotados mecanismos que permitem a participação popular imediata na tomada de determinadas decisões. Assim, paralelamente à natureza majoritariamente representativa de sistema político, são também admitidas formas de intervenção direta dos governados em algumas das deliberações importantes.

Os institutos representativos da democracia semidireta, através dos quais se dá a participação direta dos cidadãos, são: o plebiscito, o referendo, o veto popular, o recall, a iniciativa popular.

O plebiscito ocorre quando uma proposição é levada diretamente para decisão dos eleitores. Ele permite a manifestação direta da vontade do povo sobre questões consideradas de grande relevância. Decisões referentes, por exemplo, a modificações territoriais (agregações ou desagregações), alterações da forma de governo, instauração de nova forma de governo, bem como mudanças na estrutura do Estado.

O referendo acontece quando uma proposição já aprovada indiretamente por representantes é levada aos eleitores para confirmação ou rejeição. Trata-se de uma consulta à vontade pública, que aprova ou não um ato normativo (seja ele uma lei ordinária ou a própria Carta Constitucional). A origem do referendo se encontra nas antigas confederações germânicas e helvéticas, quando todas as leis eram aprovadas ad referendum do povo. As constituições de alguns Estados modernos exigem que se faça o referendo sempre que haja emendas constitucionais (como, por exemplo, a adesão de um país à União Européia).

O veto popular é um instituto que guarda certa semelhança com o referendo, sendo por vezes denominado de mandatory referendum (referendo obrigatório). Pelo veto popular, após a aprovação de um projeto pelo Legislativo, dá-se aos eleitores um prazo, geralmente de sessenta a noventa dias, para que requeiram a aprovação popular. A lei não entra em vigor antes de decorrido esse prazo. Havendo solicitação de um número suficiente de eleitores, ela poderá permanecer suspensa até as próximas eleições, quando então o eleitorado decidirá sobre sua entrada ou não em vigor.

O revogatório de mandato (recall) é uma instituição norte-americana, na qual o mandato de um representante legalmente eleito é novamente submetido ao escrutínio dos eleitores. Um certo número de cidadãos requisita uma consulta para que o conjunto do eleitorado possa se manifestar, por meio do voto direto, pela manutenção ou pela cassação desse mandato.

A iniciativa popular permite a um certo número de eleitores apresentar proposição para aprovação do órgão legislativo. Ela confere aos cidadãos o direito de diretamente propor uma emenda constitucional ou um projeto de lei. A iniciativa popular formulada é aquela apresentada em forma de lei, contendo a assinatura de um número mínimo de eleitores, e pronta para ser apreciada pelo órgão legislativo competente. A iniciativa popular não-formulada é aquela apresentada de modo não articulado, consistindo em documento descrevendo o objeto da manifestação e a reivindicação dos proponentes, cabendo ao órgão legislativo a redação do texto, em forma de lei, para apreciação.

Um bom exemplo de democracia semidireta é a Suíça, com o sistema representativo coexistindo com um uso intensivo de instâncias de democracia direta, como referendos e plebiscitos. Mais da metade (52%) dos referendos realizados a nível nacional no mundo entre 1900 e 1993 tiveram lugar na Suíça.

No cantão de Glarus e no semicantão Appenzell Innerrhoden a democracia é praticamente direta, com a realização das Landsgemeinde (assembleia provincial), uma das mais antigas e mais puras formas de democracia direta. Introduzida em 1231, a Landsgemeinde é uma assembléia aberta a todos os cidadãos, que devem, obrigatoriamente, comparecer e votar quando de sua reunião ordinária (uma vez por ano, na primavera) e também durante as reuniões extraordinárias. Nela os eleitores se reúnem ao ar livre e votam erguendo suas mãos. A contagem de votos é aproximada; baseando-se mais numa estimativa que na contagem efetiva das mãos erguidas. É nessa ocasião que se elegem os governantes,

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os juízes e os representantes na câmara alta do parlamento federal. É também o fórum de decisão sobre assuntos cantonais.

Também o Brasil tem experimentado em anos recentes alguns instrumentos de democracia direta. No plano federal, tivemos um plebiscito sobre a forma (monárquica ou republicana) e o regime (parlamentarista ou presidencialista) de governo. Tivemos ainda um referendo sobre o Estatuto do Desarmamento, lei aprovada pelo poder legislativo. O próprio Estatuto previa uma consulta aos eleitores quanto ao seu artigo 35, que proibiria a comercialização de armas de fogo e munições em todo o território nacional. No plano municipal tivemos algumas experiências do chamado "orçamento participativo", em que assembleias comunitárias de bairro permitem aos cidadãos uma participação direta na deliberação sobre o uso dos recursos públicos.

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(3) Partidos

(4) Sufrágio

(4.1) Restrições ao Sufrágio

(4.2) Sistemas Eleitorais

(A) Sistema de Representação Majoritária

(B) Sistema de Representação Proporcional

(C) Sistema de Representação Distrital

(D) Sistema de Representação Distrital Misto

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Bibliografia

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CRETELLA JÚNIOR, José & CRETELLA NETO, José & 1.000 Perguntas e Respostas Sobre Teoria Geral do Estado Rio de Janeiro: Forense, 2006

DALLARI, Dalmo de Abreu Elementos de Teoria Geral do Estado São Paulo: Saraiva, 1998

FERREIRA, Fabio Paino L. Resumo de Ciência Política e Teoria Geral do Estado São Paulo: W4 Endonet, 1999