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FILOSOFIA Apostila VOL. I Aluno(a): Nº.: Professor (a): Data: CURSINHO INTEGRADO Av. Irmãos Pereira, 670 Campo Mourão/PR – CEP 87301-010 FONE: 0xx 44 3523-1982

APOSTILA de FILOSOFIA M3 Vol I 2009pessoal.educacional.com.br/up/4380001/5787959/apostila de filosofia m3...Do Mito ao Lógos: O nascimento da Filosofia na Grécia antiga A Filosofia

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FILOSOFIA Apostila

VOL. I

Aluno(a): Nº.: Professor (a): Data:

CURSINHO INTEGRADO Av. Irmãos Pereira, 670

Campo Mourão/PR – CEP 87301-010 FONE: 0xx 44 3523-1982

UNIDADE 01 “Um homem, embora sábio, nunca deve se envergonhar de aprender mais, e deve abrir sua mente.”

(Sófocles)

HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA

Do Mito ao Lógos: O nascimento da Filosofia na Grécia antiga

A Filosofia é um acontecimento essencialmente grego! Não se pode negar que os primeiros filósofos da humanidade foram gregos. Embora tenhamos referências de grandes homens na China (Confúcio, Lao Tsé), na Índia (Buda), na Pérsia (Zaratustra), suas teorias ainda estão vinculadas à religião para que se possa falar propriamente em “reflexão filosófica”. A seguir, mostraremos o processo pelo qual se tornou possível a passagem da consciência mítica para a consciência filosófica na civilização grega, construída por diversas regiões politicamente autônomas.

A concepção mítica

As epopéias: Ilíada e Odisséia

Os mitos gregos eram recolhidos e transmitidos pela tradição e transmitidos oralmente pelos aedos e rapsodos, cantores ambulantes que davam forma poética aos relatos populares e os recitavam de cor em praça publica. Era difícil conhecer os autores de tais trabalhos de formalização, porque num mundo em que predomina a consciência mítica não existe preocupação com a autoria da obra, já que o anonimato é a conseqüência do coletivismo, fase em que ainda não se destaca a individualidade. Além disso,

não havia a escrita para fixar obra e autor. Há, portanto, controvérsia a respeito da época em teria vivido Homero, um desses poetas, e até mesmo se ele realmente teria existido (séc. IX a.C.?). Costuma-se atribuir-lhe a autoria de dois poemas épicos (epopéias): Ilíada, que trata da guerra de Tróia (Tróia em grego é Ílion), e Odisséia, que relata o retorno de Ulisses a Ítaca, após a guerra de Tróia (Odisseus é o nome grego de Ulisses). As epopéias tiveram uma importante função didática na vida dos gregos porque descrevem o período da civilização micênica e transmitem os valores da cultura por meio das histórias dos deuses e antepassados, expressando uma determinada concepção de vida. Por isso, desde cedo, era uma prática comum as crianças decorarem passagens dos poemas de Homero. As ações heróicas relatadas nas epopéias mostram a constante intervenção dos deuses, ora para auxiliar um protegido seu, ora para perseguir um inimigo. O homem homérico é “presa” do Destino (Moira), que é fixo, imutável, e não pode ser alterado. Até distúrbios psíquicos, como o desvario momentâneo de Agamemnon, são atribuídos à ação divina. O herói grego vive, portanto, na dependência dos deuses e do destino, faltando a ele a nossa noção de vontade pessoal, de livre-arbítrio. Mas isto não o diminui diante dos homens comuns. Ao contrário, ter sido escolhido pelos deuses é sinal de valor e em nada tal ajuda desmerece a sua virtude. A virtude do herói se manifesta pela coragem e pela força, sobretudo no campo de batalha, mas também na assembléia, no discurso, pelo poder de persuasão. Nessa perspectiva, a noção de virtude não deve ser confundida com o conceito moral de virtude como o conhecemos posteriormente, mas como excelência, superioridade, alvo supremo

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do herói. Trata-se da virtude do guerreiro belo e bom.

A Teogonia: a voz de Hesíodo

Hesíodo, outro poeta que teria vivido por volta do final do século VIII e princípios do VII. a.C., produz uma obra com características que apontam para a época que se vai iniciar a seguir, com particularidades que tentam superar a poesia impessoal e coletiva das epopéias. Mas mesmo assim, sua obra Teogonia (Theo: Deus; gonia: origem) reflete ainda a preocupação com a crença nos mitos. Nela Hesíodo relata as origens do mundo e dos deuses, e as forças que surgem não são a pura natureza, mas sim as próprias divindades: Gaia é a TERRA, Urano é o CÉU, Cronos é o TEMPO, surgindo ora por segregação, ora pela intervenção de Eros, princípio que aproxima os opostos.

A concepção filosófica É no período arcaico que surgem os primeiros filósofos gregos, por volta de fins do século VII a.C. e durante o século VI a.C.. Alguns autores costumam chamar de “milagre grego” a passagem do pensamento mítico (religioso) para o pensamento racional e filosófico. Atenuando a ênfase dada a essa “mutação”, no entanto, alguns estudiosos (helenistas, muitas vezes) mais recentes pretendem superar essa visão simplista e a-histórica, realçando o fato de que o surgimento da racionalidade crítica foi o resultado de um processo muito lento, preparado pelo passado mítico, cujas características não desaparecem “como por encanto” na nova abordagem filosófica do mundo. Ou seja, o surgimento da filosofia na Grécia não é o resultado de um salto, um “milagre” realizado por um povo privilegiado, mas a culminação de um processo que se fez através dos tempos e tem sua dívida com o passado mítico.

Algumas novidades surgidas no período arcaico ajudaram a transformar a visão que o homem mítico tinha do mundo e de si mesmo. São elas a invenção da escrita, o surgimento da moeda, a lei escrita, o nascimento da polis (cidade-estado), todas elas tornando-se condição para o surgimento do filósofo.

O advento da Pólis: a concepção de cidadão

Alguns helenistas e pensadores franceses, como Jean-Pierre Vernant, vêm no nascimento da pólis (por volta dos séculos VIII e VII a.C.) um acontecimento decisivo que “marca um começo, uma verdadeira invenção”, que provocou grandes alterações na vida social e nas relações entre os homens. A originalidade da cidade grega é que ela está centralizada na ágora (praça pública), espaço onde se debatem os problemas de interesse comum. Separam-se na pólis o domínio público e o privado: isto significa que o ideal de valor de sangue, restrito a grupos privilegiados em função do nascimento ou fortuna, se sobrepõe a justa distribuição dos direitos dos cidadãos enquanto representantes dos interesses da cidade. Está sendo elaborado o novo ideal de justiça, pelo qual todo cidadão tem direito ao poder. A nova noção de justiça assume caráter político, e não apenas moral, ou seja, ela não diz respeito apenas ao indivíduo e aos interesses da tradição familiar, mas se refere a sua atuação na comunidade.

A pólis se faz pela autonomia da palavra, não mais a palavra mágica dos mitos, palavra dada pelos deuses e, portanto, comum a todos, mas a palavra humana do conflito, da discussão, da argumentação. O saber deixa de ser sagrado e passa a ser objeto de discussão.

A expressão da individualidade por meio do debate faz nascer a política,

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libertando o homem dos exclusivos desígnios divinos, permitindo a ele tecer seu destino na praça publica. A instauração da ordem humana dá origem ao cidadão da pólis, figura inexistente no mundo coletivo da comunidade tribal.

Portanto, o cidadão da pólis participa dos destinos da cidade por meio do uso da palavra em praça pública. Mas para que isso fosse possível, desenvolveu-se uma nova concepção a respeito das relações entre os homens, não mais assentadas nas suas diferenças, na hierarquia típica das relações de submissão e domínio. Ou seja, “os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam por sua origem, sua classe, sua função, aparecem de certa maneira ‘semelhantes’ uns aos outros”. De início a igualdade existe apenas entre os guerreiros, mas “essa imagem do mundo humano encontrará no século VI sua expressão rigorosa num conceito, o de isonomia: igual participação de todos os cidadãos no exercício do poder.

O apogeu da democracia ateniense se dá no século V a.C., já no período clássico, quando Péricles era estratego. É bem verdade que Atenas possuía meio milhão de habitantes, dos quais 300 mil eram escravos e 50 mil metecos (estrangeiros); excluídas mulheres e crianças, restavam apenas 10% considerados cidadãos propriamente ditos, capacitados para decidir por todos. Portanto, quando falamos em democracia ateniense, é bom lembrar que a maior parte da população se achava excluída do processo político.

O nascimento do Filósofo! A intelectualidade grega não começa propriamente na Grécia continental, mas nas colônias: na Jônia (metade sul da costa ocidental da Ásia Menor) e na Magna Grécia (sul da península itálica e Sicília). Os primeiro filósofos viveram por volta do século VI a.C., mais tarde, foram classificados como pré-socráticos (a divisão da filosofia grega se centraliza na figura de Sócrates) e agrupados em diversas escolas. Por exemplo, a escola jônica (Tales, Anaximandro,

Anaxímenes, Heráclito, Empédocles); escola itálica (Pitágoras); escola eleática (Xenófanes, Parmênides, Zenão); escola atomista (Leucipo e Demócrito). Os escritos dos filósofos pré-socráticos desapareceram com o tempo, e só nos restam alguns fragmentos ou referências feitas por filósofos posteriores. Muitos deles escreveram em versos, mas que não mais exaltavam os feitos dos deuses, distanciando-se completamente das epopéias, dos relatos míticos. Enquanto Hesíodo, ao relatar o princípio do mundo (cosmogonia) e dos deuses (teogonia), refere-se a sua gênese ou origem, as preocupações dos primeiros pensadores levam à elaboração de uma cosmologia (origem do universo), pois procuram a racionalidade do universo. Isso significa que, ao perguntarem como seria possível emergir do Caos um “Cosmos” – ou seja, como da confusão inicial surgiu o mundo ordenado –, os pré-socráticos procuraram o princípio (a Arché) de todas as coisas, entendido este não como o que antecede o tempo, mas enquanto fundamento do ser. Buscar a arché é explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas. As respostas dos filósofos à questão do fundamento das coisas são as mais variadas. Cada um “descobre” (ou concebe!) a arché, a unidade que pode explicar a multiplicidade (das coisas): para Tales é a água; para Anaxímenes é o ar; para Demócrito é o átomo; para Empédocles, os famosos “quatro elementos”, terra, água, ar e o fogo, teoria aceita até o século XVIII, quando foi criticada por Lavosier. Em seguida, veremos alguns desses filósofos pré-scoráticos (também conhecidos como “físicos”, pois falaram sobre a phísis – natureza, isto é, sobre a física!) e quais foram as repostas que ofereceram a questão que inaugura o filosofar no ocidente: “Qual o princípio

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constituinte de todas as coisas no mundo?”.

Aplicação em Sala! 01 – A relação entre mito e lógos

(razão) pode ser ilustrada a partir do seguinte fragmento do poema Da Natureza de Parmênides.

“E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: ‘Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais, tu, que chegas até nós [nossa morada] transportado pelos corcéis, Salve! Pois não foi um mau destino que te induziu a viajar por esta via – tão fora da senda dos homens encontra-se ela –, mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender (...)’”. PARMÊNIDES. Da Natureza. Trad. de José Trindade Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 14.

Após ler o fragmento, escolha a alternativa que melhor respeitar a relação mito-lógos nas origens da filosofia.

A) A verdade aparece no poema de Parmênides como revelação divina e experiência mítica, que são incompatíveis com o pensamento racional. A deusa do poema mostra que o conhecimento supremo está fora do alcance da razão humana.

B) A verdade filosófica, no poema de Parmênides, é apresentada por meio de representações míticas que o filósofo retira de uma tradição religiosa. Essas imagens se transpõem, sem deixar de ser místicas, em uma filosofia do Ser que busca o objeto inteligível do lógos, ou seja, do pensamento racional e do Uno.

C) A verdade filosófica, por ser revelação da deusa, é obtida apenas pela experiência religiosa. As representações míticas do poema de Parmênides indicam que a filosofia grega do século V a.C. é irracional, pois não usa as categorias lógicas do rigor argumentativo.

D) A filosofia representa o pensamento estritamente racional, que busca uma

explicação de mundo somente por meio de princípios materiais. Por essa razão, o poema de Parmênides ainda não representa o pensamento filosófico do século V a.C., caracterizado pela ruptura como todas as imagens míticas da tradição cultural grega.

02 – Considere as alternativas:

I. Antes da filosofia, os gregos explicavam a realidade através dos mitos. II. O mito é uma narração sobre a criação. III. A mitologia grega é narrativa lógica. IV. Segundo a mitologia, os deuses não participam nos destinos humanos. Assinale a alternativa verdadeira:

A) I e II são corretas; III e IV são falsas.

B) I e III são corretas; II e IV são falsas.

C) II e IV são corretas; I e III são falsas.

D) I e II são falsas; III e IV são corretas.

03 (UEM/2008) – Os poemas de Homero serviram de alimento espiritual aos gregos, contribuindo de forma essencial para aquilo que mais tarde se desenvolveria como filosofia. Em seus poemas, a harmonia, a proporção, o limite e a medida, assim como os questionamentos acerca das causas, dos princípios e do porquê das coisas se faziam presentes, revelando-se depois uma constante na elaboração dos princípios metafísicos da filosofia grega. (Adaptado de: REALE, G. História da Filosofia Antiga. v. I. Trad. de Henrique C. de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994, p. 19.). Com base no texto e nos conhecimentos acerca das características que marcaram o nascimento da filosofia na Grécia, considere as afirmativas a seguir.

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I. A política, enquanto forma de disputa oratória, contribuiu para formar um grupo de iguais, os cidadãos, que buscavam a verdade pela força da argumentação. II. O palácio real, que caracterizava os poderes militar e religioso, foi substituído pela Ágora, espaço público onde os problemas da pólis eram debatidos. III. A palavra, utilizada na prática religiosa e nos ditos do rei, perdeu a função ritualista de fórmula justa, passando a ser veículo do debate e da discussão. IV. A expressão filosófica é tributária do caráter pragmático dos gregos, que substituíram a contemplação desinteressada dos mitos pela técnica utilitária do pensar racional. Estão corretas apenas as afirmativas: a) I e III. b) II e IV. c) III e IV. d) I, II e III. e) I, II e IV. 04 (UEM/2008) – “Os antigos, ou melhor, os antiqüíssimos, (teólogos), transmitiram por tradição a nós outros seus descendentes, na forma do mito, que os astros são Deuses e que o divino abrange toda a natureza ... Costuma-se dizer que os Deuses têm forma humana, ou se transformam em semelhantes a outros seres viventes ... Porém, pondo-se de lado tudo o mais, e conservando-se o essencial, isto é, se se acreditou que as substâncias primeiras eram Deuses, poderia pensar-se que isto foi dito por inspiração divina ...” (Aristóteles, Metafísica, XII, 8, 1074b, apud Mondolfo, O pensamento antigo, I, São Paulo: Mestre Jou, 1964, p.13). Com base nesse excerto e no seu conhecimento sobre a questão da origem da filosofia, assinale o que for correto. 01) Antes de fazerem filosofia, os gregos já indagavam sobre a origem e a

formação do universo; e as respostas a esse problema eram oferecidas sob a forma de mito, isto é, por meio de uma narrativa alegórica que descreve a origem ou a condição de alguma coisa, reportando a um passado imemorial. 02) Na Teogonia, Hesíodo descreve a gênese do mundo coincidindo com o nascimento dos deuses; as forças e os domínios cósmicos não surgem como pura natureza, mas sim como divindades: Gaia é a Terra, Urano é o Céu, Cronos é o Tempo, aparecendo ora por segregação, ora pela intervenção de Eros, princípio que aproxima os opostos. 04) Os primeiros filósofos gregos buscaram descobrir o princípio (arché) originário de todas as coisas, o elemento ou a substância constitutiva do universo; elaborando uma cosmologia, não se contentavam com doutrinas divinamente inspiradas, mas tentavam compreender racionalmente o cosmo. 08) Os gregos foram pouco originais no exercício do pensamento crítico racional; apropriaram-se das conquistas científicas e do patrimônio cultural de civilizações orientais com mínimas alterações. 16) É tese hoje bastante aceita que o nascimento da filosofia na Grécia não foi um “milagre” realizado por um povo privilegiado, mas a culminação de um processo lento, tributário de um passado mítico, e influenciado por transformações políticas, econômicas e sociais.

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Teoria do Conhecimento na Antiguidade

A escola Eleática

Eléia foi uma colônia grega

localizada na região da Magna Grécia, atual sul da península itálica. A filosofia aí desenvolvida não se volta mais aos problemas de qual seria o princípio (arché) do Universo, mas sim como essa substância original se transforma em coisas tão diferentes.

Parmênides de Eléia (515? 450?)

Parmênides é o primeiro e

principal filósofo eleata, e suas idéias direcionaram os rumos da filosofia eleata. À sua época, existiam várias conceituações sobre a physis (a natureza, o mundo natural tal como visto pelos homens) e sobre a arché (o princípio de todas as coisas); Parmênides buscou outra via de raciocínio que não se baseasse na coleta de dados através dos sentidos para posterior elaboração de explicações: ele aplicou outro método de investigação, praticamente dando início às reflexões sobre a lógica e a ontologia1. Quase tudo o que se sabe sobre o pensamento de Parmênides provém de seu poema Sobre a Natureza (Perí Phýsios).

A obra trata do caminho da verdade (alétheia) e do caminho da opinião (dóxa). Alétheia é o termo grego que equivale ao português verdade, e literalmente significa desvelamento, descoberta, o movimento pelo qual algo se mostra ao nosso conhecimento plenamente. Percorrendo o caminho da verdade, o homem guiado pela razão perceberia que o que é, é e não pode deixar de ser. A dóxa é algo desprezível,

1 A lógica diz respeito às possibilidades de conhecer qualquer coisa, ou seja, ela contém as condições necessárias para que o pensamento possa ser corretamente desenvolvido e para que o conhecimento seja seguro. A ontologia refere-se ao estudo do ser, isto é, sobre aquilo que as coisas e os seres vivos são e como se explica a sua existência.

um ponto de vista qualquer, individual2 e que nunca poderia corresponder à verdade. Ao escolher o caminho da dóxa, o homem se torna refém das opiniões, tendo seu pensamento impedido de chegar à verdade. Parmênides é o primeiro pensador a pôr em dúvida o conhecimento que obtemos a partir dos sentidos.

Através dos sentidos, os homens percebem os mais diversos fenômenos (fhainômena, aparição) naturais, constatam mudanças nas pessoas e nos seres vivos em geral; em resumo, testemunham um mundo que está em constante transformação. Segundo Parmênides, entretanto, o que é percebido pelos sentidos não permite que o homem conheça realmente a verdade, o Ser verdadeiro e universal. Por exemplo, ainda que um broto de árvore se transforme em uma frondosa árvore, ele sempre será uma árvore, sua essência não muda.

Para Parmênides, o ser é e o não-ser não é. Em outras palavras, o não-ser simplesmente não existe; é inconcebível para o pensamento, pois se pudesse ser pensado, existiria ao menos como idéia. Dessa maneira, uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo, como queria Heráclito, ou então ser hoje e amanhã não ser mais. O Ser parmenidiano tem como características a imutabilidade e a eternidade, pois, se sofresse alguma transformação, teria de deixar de ser o que é (ou seja, tornar-se não-ser) para tornar-se outra coisa (isto é, de não-ser, tornar-se ser), mas isso seria impossível: do nada, nada vem (não existe nada que possa surgir do não-ser).

A dóxa diz respeito ao modo como cada um exprime suas preferências, gostos, interesses, sentimentos, variando de pessoa para pessoa. Em uma assembléia, por exemplo, um argumentador defende a opinião de que “a guerra é boa para nós”, enquanto outro 2 O conhecimento verdadeiro é sempre sobre o Universal, nunca sobre o Particular.

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defende a opinião contrária. Vencerá aquele que melhor souber persuadir e conquistar a opinião alheia, e não a melhor idéia.

As opiniões mudam, ora afirmando, ora negando a mesma coisa; são instáveis e não nos permitem, realmente, saber o que as coisas são. A opinião seria mera aparência e, assim, faria parte do não-ser. Aquilo que corresponderia verdadeiramente ao Ser, simplesmente não poderia se transformar, deixar de ser.

Seu pensamento, portanto, é absolutamente oposto ao de Heráclito. O Ser não se moveria, não se transformaria: Eterno, Uno, único, imóvel, indestrutível. O Ser é pleno e indivisível. Do contrário, o que restaria dessa divisão? Outro ser? Mas seria o não-ser, já que o Ser é único.

Segundo Parmênides, os mortais tenderiam a tomar o Não-Ser pelo Ser, uma vez que guiavam seu pensamento pela opinião. Essa via seria a que acredita na existência de qualidades opostas (quente/frio, seco/úmido, claro/escuro), de quantidades opostas (maior/menor, perto/longe), e na pluralidade de seres feitos dessas mesmas qualidades e quantidades. A via da opinião prende-se à aparência e à multiplicidade das coisas, sem perceber o que é o Ser. Ser, pensar e dizer seriam a mesma coisa; não-ser, perceber e opinar seriam o significado oposto, nada representando perante o pensamento. Para Parmênides os sentidos nos oferecem uma visão enganadora do mundo, diferentemente da razão. A razão humana seria o verdadeiro caminho de conhecimento do mundo, e não os sentidos. Além de Parmênides podemos citar outros pensadores que se relacionam com a doutrina eleata, como Zenão de Eléia (495?-430? a. C.) e Melisso de Samos (V a. C.).

Zenão foi discípulo de Parmênides e sistematizou todo o conteúdo do pensamento parmenidiano e organizou suas teses, tendo elaborado

raciocínios bastante complexos para “provar” que o movimento não existe.

Um deles é paradoxo da flecha, o qual diz que uma flecha disparada jamais poderia atingir o alvo, pois para isso teria que percorrer metade da distância entre o atirador e o alvo antes de chegar à meta, e antes, a metade da metade, e assim por diante, até o infinito: como não é possível percorrer uma distância infinita no intervalo de tempo finito, a flecha estaria na verdade imóvel. Embora não fosse cidadão de Eléia, Melisso também foi um seguidor da doutrina de Parmênides; sabe-se que ele polemizou com os pitagóricos e com Empédocles, defendendo o pensamento eleata sobre o Ser.

Considerações específicas sobre a

doutrina de Parmênides:

O grande princípio parmenidiano, que é o próprio princípio da verdade, é este: o ser é e não pode não ser; o não-ser não é e não pode ser de modo algum. O Ser é e deve ser afirmado, o não-ser não é e deve ser negado, e esta é a verdade: negar o ser ou afirmar o não-ser é, ao contrário, a absoluta falsidade. Parmênides diz: Pois bem, dir-te-ei – e tu escutas e fixa o relato que ouvistes – quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar: um que é, que não é para não ser, é o caminho de confiança (pois acompanha a realidade); o outro que não é, que tem de não ser, esse te indico ser caminho em tudo ignoto, pois não poderás conhecer o não-ser, não é possível, nem indicá-lo [...] pois o mesmo é pensar e ser (PARMÊNIDES. Da Natureza. Trad. de José Trindade Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 14.).

O ser é o puro positivo e o não-ser é o puro negativo, ou melhor, o ser é o puro positivo absolutamente privado de qualquer negatividade e, ao contrário, o não-ser é o absoluto contraditório desse absoluto positivo.

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O ser é a única coisa pensável e exprimível: qualquer pensamento é pensamento sobre o ser – SER E PENSAR COINCIDEM NO SENTIDO DE QUE NÃO HÁ PENSAMENTO QUE NÃO EXPRIMA O SER; AO CONTRÁRIO, O NÃO-SER É DE TODO IMPENSÁVEL, INEXPRIMÍVEL, INDIZÍVEL e, portanto, IMPOSSÍVEL. Temos aqui a primeira formulação do “princípio da não-contradição”, que afirma a impossibilidade dos contraditórios coexistirem simultaneamente: se há Ser, não pode haver Não-Ser3.

A via da verdade é a via da Razão, do Lógos: é o Lógos, e só o Lógos, que afirma o Ser e nega o Não-Ser. Ao contrário, os sentidos parecem atestar o Devir, o movimento, o nascer e o morrer e, portanto, o Ser junto ao Não-Ser. Mas é justamente nos sentidos que os homens apóiam-se e, por isso, Parmênides denuncia o perigo de dar fé aos sentidos contra o Lógos ao afirmar que é preciso seguir apenas a Razão. Admitir o SER junto ao NÃO-SER significa substancialmente admitir o NADA; é por isso que Parmênides considerava ambivalentes as afirmações de que o NADA É e de que HÁ SER AO MESMO TEMPO QUE NÃO-SER4.

A via do erro consiste então na admissão do SER ao lado do NÃO-SER e na admissão da possibilidade da passagem de um ao outro e vice-versa. Mas de onde provém esse erro? Dos mortais, segundo Parmênides, pois eles erraram no princípio dos tempos ao tomaram duas formas superiores e absolutas (e contraditórias), “Dia e Noite”: o dia seria o Ser, o Positivo, a Vida, a Luz; a Noite seria o Não-Ser, o

3 Os três grandes princípios lógicos que guiaram o conhecimento humano até meados o século XIX são: 1° - Princípio da Identidade: o Ser é o que é; 2° - Princípio do 3° Excluído: o Ser é ou não é; 3º - Princípio da Não-Contradição: ou o Ser é ou o Ser não é. 4 A Filosofia de Parmênides “salva” o Ser, mas “perde” os fenômenos; Heráclito “salva” os fenômenos e “perde” o Ser.

aspecto negativo do Universo, a morte, a escuridão.

Após essa associação primitiva, operada pelos primeiros mortais, estaria toda a fonte de erros no que se refere á obtenção do conhecimento sobre o Universo: é na concepção do Dia e da Noite como contrárias entre si e coexistindo sucessivamente que os mortais afirmam que existe movimento do Ser na direção do Não-Ser e vice-versa.

Relações e implicações entre Heráclito e Parmênides

Heráclito de Éfeso

Heráclito leva o discurso

filosófico dos três milesianos à posições decididamente mais avançadas e em grande parte novas. Como já foi dito, os milesianos interessaram-se prioritariamente pelo problema do princípio das coisas e pela gênese do cosmo a partir da Arqué; ao fazerem isto, notaram o dinamismo5 universal da realidade, o dinamismo das coisas que nascem e perecem, o dinamismo da própria Arqué que dá origem a todas as coisas porque dotado de perene movimento. Todavia, eles não explicitaram e não tematizaram este aspecto preciso de toda a realidade, nem puderam refletir sobre as múltiplas implicações desse mesmo aspecto. Foi exatamente isso que fez Heráclito.

Em primeiro lugar, chamou a atenção para a perene mobilidade de todas as coisas que são: nada permanece imóvel e nada permanece em estado de fixidez e estabilidade, mas tudo se move, tudo muda, tudo se transforma, sem cessar e sem exceção. Para exprimir esta verdade, Heráclito valeu-se da imagem do fluir de um rio, em fragmentos que se

5(dínamis) – Movimento; Dinâmico: Aquilo que se move.

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tornaram célebres: Não se pode descer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, mas por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, dispersa-se e se recolhe, vem e vai6. O sentido é claro: o rio é aparentemente sempre o mesmo, mas na realidade é feito de águas sempre novas, que se acrescentam e se dispersam, por isso, à mesma água do rio não se pode descer duas vezes, justamente porque, quando se desce a segunda vez, já é outra a água que se encontra; e porque nós mesmos mudamos no momento em que completamos a imersão no rio, tornamo-nos diferentes do momento em que nos movemos para mergulhar.

Assim Heráclito pode dizer que “somos e não somos”, porque, para ser o que somos em dado momento, devemos não ser mais aquilo que éramos no precedente momento, assim como, para continuar a ser, deveremos logo não ser mais aquilo que somos neste momento. E isso vale, segundo Heráclito, para todas as coisas, sem exceção. Portanto, nada permanece e tudo devém; ou então, só o devir das coisas é permanente, no sentido de que as coisas não têm realidade senão, justamente, no perene devir: “tudo se move”. O devir é caracterizado por um contínuo fluir das coisas de um contrário a outro: “As coisas frias se aquecem, as coisas quentes se esfriam, as coisas úmidas secam, as coisas secas umedecem”. O devir é, pois, um constante conflito: � dos contrários que se alternam, é uma perpétua luta de um contra o outro, uma guerra. Mas como as coisas só têm realidade no perene devir, então, por conseqüência necessária, a guerra se revela como o fundamento da realidade das coisas: A guerra é mãe de todas as coisas e de todas a rainha.

6 Se pudéssemos estabelecer uma relação entre Heráclito e Parmênides com base no paradigma do rio, diríamos que para Parmênides o rio é “aparentemente” diferente a cada momento, mas “na realidade”, é sempre o mesmo.

Mas este conflito é, a um só tempo, paz, esse contraste é também harmonia; de modo que o fluir eterno das coisas e o universal devir revelam-se como harmonia ou síntese de contrários, como perene pacificar-se dos beligerantes, e conciliar-se dos beligerantes: O que é oposição se concilia e, das coisas diferentes, nasce a harmonia mais bela, e tudo se gera por via de contraste. E é por superior harmonia que os contrários, embora só podendo existir em oposição recíproca, dão um ao outro o seu sentido: A doença torna doce a saúde, a fome torna doce a saciedade e a fadiga torna doce o repouso.

Em conclusão: se as coisas só têm realidade enquanto devém, e se o devir é dado pelos opostos que se contrastam e, contrastando-se, pacificam-se em superior harmonia (de todas as coisas o um e do um todas as coisas.), então é claro que na síntese dos opostos está o princípio que explica toda a realidade, e é evidente, por conseqüência, que exatamente nisso consiste o Divino.

Este “Divino” heraclitiano, que governa este processo de contraste/síntese é o Lógos, a Razão, a própria síntese final de toda a realidade, que significa a regra segundo a qual todas coisas se realizam e lei comum a todas coisas e que todos governa: é a Inteligência Universal.

Aplicação em Sala! 01 – O fragmento seguinte é atribuído a Heráclito de Éfeso. “O mesmo é em [nós] vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes, tombados além, são aqueles e aqueles de novo, tombados além, são estes”. (Os Pré-Socráticos. Trad. de José Cavalcante de Souza, 1ª Ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 93. (Os Pensadores) A partir do fragmento citado, escolha a alternativa que melhor representa o pensamento de Heráclito.

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A) Não existe a noção de “oposto” no pensamento de Heráclito, pois todas as coisas constituem um único processo de mudança que expressa a concórdia e a harmonia do “fluxo” contínuo da natureza. B) A equivalência de estados contrários com “o mesmo” exprime a alternância harmônica de pólos opostos, pela qual um estado é transposto no outro, numa sucessão mútua, como o dia e a noite. Todas as coisas são “UM”, toda a multiplicidade dos opostos constitui unidade, e todos os seres estão num fluxo eterno de sucessão de opostos em guerra. C) Se o morto é vivo, o velho é novo, e o dormente é desperto, então não existe o múltiplo, mas apenas o “UM”, como verdade profunda do mundo. A unidade primordial é a própria realidade, a phýsis, e a multiplicidade, apenas aparência. D) A alternância entre pólos opostos constitui um fluxo eterno, regido pela “guerra” e pela “discórdia”, que ocorre sem qualquer medida e proporção. A guerra entre contrários evidencia que a phýsis é caótica e denota o fato de que o pensamento de Heráclito é irracional. 02 (UEM/2008) – Os filósofos pré-socráticos tentaram explicar a diversidade e a transitoriedade das coisas do universo, reduzindo tudo a um ou mais princípios elementares, os quais seriam a verdadeira natureza ou ser de todas as coisas. Assinale o que for correto. 01) Tales de Mileto, o primeiro filósofo segundo Aristóteles, teria afirmado “tudo é água”, indicando, assim, um princípio material elementar, fundamento de toda a realidade. 02) Heráclito de Éfeso interessou-se pelo dinamismo do universo. Afirmou que nada permanece o mesmo, tudo muda; que a mudança é a passagem de um contrário ao outro e que a luta e a harmonia dos contrários são o que gera e mantém todas as coisas.

04) Parmênides de Eléia afirmou que o ser não muda. Deduziu a imobilidade e a unidade do ser do princípio de que “o ser é” e “o não-ser não é”, elaborando uma primeira formulação dos princípios lógicos da identidade e da não-contradição. 08) As teorias dos filósofos pré-socráticos foram pouco significativas para o desenvolvimento da filosofia e da ciência, uma vez que os pré-socráticos sofreram influência do pensamento mítico, e de suas obras apenas restaram fragmentos e comentários de autores posteriores. 16) Para Demócrito de Abdera, todo o cosmo se constitui de átomos, isto é, partículas indivisíveis e invisíveis que, movendo-se e agregando-se no vácuo, formam todas as coisas; geração e corrupção consistiriam, respectivamente, na agregação e na desagregação dos átomos.

Exercícios:

I)- Há mudança na maneira de se entender o Universo segundo Heráclito e segundo Parmênides? Por quê? II)- O que significa afirmar que os sentidos não conduzem ao conhecimento verdadeiro? III)- De acordo com seu pensamento sobre o assunto, há uma maneira de se conciliar os “Universos” de Heráclito e Parmênides? IV)- Explique o paradoxo da flecha.

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OS PLURALISTAS

Demócrito de Abdera (460?-370?)

Demérito procura uma maneira de conciliar o pensamento de Heráclito e Parmênides7: um Universo em constante movimento, mas que fosse composto por um ser que comportasse todas as características do ser parmenidiano. O universo seria composto por átomos, partículas minúsculas e indivisíveis, que difeririam entre si apenas no tamanho. Os átomos estão sempre em movimento, em diversas velocidades e quando chocam-se entre si, agrupando-se e se dispersando, formam toda a imensa variedade de seres existentes.

Empédocles de Agrigento (490?-430?a.C.)

A resposta de Empédocles é a de

que o Universo seria formado por quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Cada qual era responsável pela formação de todas as coisas. Dessa maneira, nenhum deles seria mais importante do que os demais. Cada coisa seria definida de acordo com a proporção em que cada um dos quatro estivesse presente em sua composição. Para Empédocles, a verdade absoluta não pode ser encontrada, e por isso propõe uma “verdade proporcional ao entendimento humano”. Assim , não se pretende mais uma razão pura, inflexível, mas uma “razão aplicada”, uma “razão clara”, capaz de interpretar as informações recebidas pelos sentidos. É o primeiro a buscar um equilíbrio entre a razão e os sentidos: o Universo seria a mistura desses quatro elementos em quantidades diferentes. A união ou a separação dos elementos se daria através do Amor e do Ódio, forças em ação no 7 Estando estabelecida a primeira disputa no seio da Filosofia, alguns filósofos trabalharam para tentar sanar essa cisão, defendendo o pensamento de que o Universo seria constituído não por um, mas por vários elementos primordiais, que combinam e desagregam-se, constituindo o fluxo eterno.

movimento cósmico formado de tudo o que existe. O Amor agrega, constrói; o Ódio desagrega, destrói: esse processo é interminável, ora predominando um, ora o outro.

O RELATIVISMO SOFÍSTICO

No século V a.C. , Atenas estava no auge de seu poderio e sob um governo no qual os cidadãos livres decidiam os interesses comuns a todos os cidadãos. Através de discussões em praça pública (Ágora), os cidadãos decidiam como a cidade devia ser administrada. Cidadão era o homem ateniense que possuísse alguma propriedade, tivesse escravos e que não fosse estrangeiro (qualquer um que não fosse ateniense nato): as mulheres e as crianças estavam excluídas. Essa era a democracia ateniense, que mesmo extremamente excludente, representou um grande avanço para a humanidade, pois obedecia ao fundamento de que todo o homem pode ser o senhor de seu destino. As propostas que os cidadãos atenienses defendiam eram proferidas por meio de discursos na ágora; para obtenção da maioria, os discursos deveriam conter argumentos sólidos e persuasivos: falar bem e coerentemente expressar seus argumentos, portanto, era uma virtude muito valiosa.

Esse clima possibilitou o surgimento de uma grupo de pensadores conhecidos como Sofistas, que dominavam as artes da oratória e da retórica. Originários de diferentes cidades eles estudavam as obras filosóficas de seus antecessores, para viajar pelas cidades (Póleis) governadas por regimes democráticos, como Atenas, onde após discursar em público, ensinavam sua “sabedoria” em troca de pagamento.

Os sofistas não foram apenas professores, mas elaboraram uma corrente de pensamento própria. Sua preocupação era as relações do homem e

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a vida pública; as questões que ocuparam os pré-socráticos, acerca do ser e da substância, foram relegadas a um segundo plano. Dentre os sofistas se destacam Górgias (483?-376? a.C.) e Protágoras (485?-410? a.C.) a quem se atribui a frase “O Homem é a medida de todas as coisas.” É a relatividade do conhecimento, pois tudo deve ser examinado segundo os interesses do homem e de acordo com a forma como este vê a realidade. Segundo este pensamento, as regras morais, as posições políticas e os relacionamentos sociais deveriam ser guiados conforme a conveniência individual. Para este fim, qualquer cidadão poderia se valer de um discurso convincente, mesmo que falso ou sem conteúdo.

Os sofistas usavam complicados jogos de palavras, trocadilhos, raciocínios sem lógica, todos os recursos do discurso para demonstrar a “verdade” daquilo que se pretendia alcançar. Estes argumentos ganharam o nome de sofismas. Segundo a sofística, o que importava para o ser humano era obter prazer com a satisfação de seus instintos, e seus desejos individuais. Assim, até mesmo dominar outros cidadãos seria justificado se isso gerasse alguma vantagem pessoal.

Em resumo, a sofística destruía os fundamentos de todo conhecimento, já que tudo seria relativo e os valores seriam subjetivos, assim como impedia o estabelecimento de um conjunto de normas de comportamento que garantissem os mesmos direitos para todos os cidadãos da pólis. Foi nesse contexto que surgiu um pensador cuja doutrina se opunha profundamente à sofística: Sócrates.

Sócrates

Sócrates (470?-399 a.C.) nada escreveu e o que conhecemos dele e sobre o que falou provém de duas fontes: a maior e mais importante é Platão; a outra, um estudioso ateniense, Xenofonte. Sócrates era filho de Sofronisco, um escultor, e de Fenarete, que era parteira; nasceu e passou toda a sua vida em Atenas.

Certo dia, um amigo conta que ouviu do oráculo de Delfos que Sócrates era o mais inteligente dos homens. Ao saber do fato, Sócrates fica intrigado e passa a meditar profundamente sobre a mensagem do oráculo. Não possuindo nenhum conhecimento especializado, deduz que sua sabedoria só poderia resultar da percepção que tinha de sua própria ignorância e, seguindo a indicação de Apolo, ele passa a questionar todos aqueles que se diziam sábios. Desse seu “despertar” para a Filosofia, resulta a frase “Só sei que nada sei.”. O instrumento adotado por Sócrates para o exercício de sua atividade filosófica foi o diálogo, dividido em duas etapas sucessivas: a ironia, quando o filósofo, insistindo que nada conhece, leva o interlocutor a apresentar suas opiniões para, em seguida, envolvê-lo na estrutura confusa de suas próprias afirmações, terminando por trazer à tona toda a ignorância desse interlocutor a respeito daquilo que até então acreditava ser verdade.

A ironia, no sentido empregado pelo filósofo, era uma dissimulação: Sócrates fingia desconhecer o assunto tratado no diálogo e fazia perguntas ao interlocutor, supostamente desejando compreender o tema. A cada resposta, o filósofo encontrava uma falha no raciocínio da pessoa e formulava outras questões, até o interlocutor chegar a uma contradição e demonstrar a sua ignorância. Na segunda fase do diálogo socrático, denominada maiêutica, o

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interlocutor era levado a tentar elaborar as próprias idéias, ir ao encontro da própria alma e adquirir, a partir de então, uma existência autêntica e verdadeiramente original.

A Questão Socrática

Sócrates transmitia seus ensinamentos a qualquer homem, tivesse ele um intelecto especial pelo debate filosófico ou não. Ele aplicava o método da maiêutica (parto das Idéias) num sentido amplo, que não se restringia a sua doutrina específica. Por exemplo, em sua obra Mênon, Platão nos mostra Sócrates, por meio do diálogo, conduzindo um escravo – que normalmente era desprovido de qualquer instrução e considerado inferior em inteligência – à demonstração do Teorema de Pitágoras. Sua popularidade em Atenas era decorrente de sua atitude em relação à Filosofia.

Sócrates percorria a cidade com freqüência, dialogando com jovens e adultos nos espaços públicos. Essa atividade, aliás, era condizente com a cultura grega da época; afinal, a democracia se fundamentava justamente nos debates públicos.

As atitudes de Sócrates revelam o principal aspecto de sua filosofia: a busca pelo bem na vida em sociedade. Em outras palavras, a doutrina socrática chama a atenção por ter um notável conteúdo moral. A procura pela verdade implicava conseguir uma convivência honesta e digna entre os homens. Abaixo, um trecho do texto de Xenofonte (Ditos e feitos memoráveis de Sócrates) que recupera esse princípio socrático: À um tempo belas e boas são todas as ações justas e virtuosas. Os que as conhecem nada podem preferir-lhes. Os que não as conhecem não somente não podem praticá-las como, se o tentam, só cometem erros. Assim praticam os sábios atos belos e bons enquanto os que não o são só podem descambar em faltas. E se

nada se faz justo, belo e bom que não pela virtude, claro é que na sabedoria se resumem a justiça e todas as mais virtudes.

Para Sócrates, conhecer a verdade teria como conseqüência inevitável agir bem; quanto aos maus atos, só seriam cometidos por ignorância. O Bem e a Verdade estariam intimamente ligados, seriam mesmo inseparáveis: conhecer seria igual a conhecer o Bem. Agir conforme o bem seria decorrência do conhecimento. Pelo mesmo raciocínio, uma ação danosa a si ou a outros seria decorrência da ignorância. De acordo com o pensamento desse homem admirável, a finalidade da vida é a felicidade8, que estaria na capacidade humana de estabelecer para si mesmo, por meio do saber, suas próprias leis e regras de conduta.

SÓCRATES E OS SOFISTAS:

Adversários ferrenhos, existem coincidências e diferenças em suas doutrinas. Veja a seguir: Coincidências: a) Preocupação com a educação da juventude; b) Interesse pelos problemas práticos, refutando a especulação metafísica; c) preocupação com a conduta moral do homem; d) os problemas políticos têm primazia sobre os problemas puramente científicos. Diferenças: a) Sócrates orienta a juventude para a prática do bem, da justiça e da virtude: quer formar bons cidadãos; b) Sócrates quer a melhoria do indivíduo para melhorara a Pólis; d) Sócrates: “Só sei que nada sei.”; Sofistas: ”Perguntai!” 8 Felicidade (Eudaimonia ) = autarquia (de pensamento.

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MÉTODO SOCRÁTICO:

Sócrates adotou o diálogo como forma de ensino e de sua Filosofia. No ensino a comunicação é mais íntima com os discípulos e na controvérsia desconcerta o adversário. Sócrates não é um filósofo técnico ou sistemático. Não tem escola fixa, ensina nas casas de amigos, ruas, praças, etc. Dialética: Saber perguntar e responder. Sócrates usava o método dialético: consistia na conversação dirigida; de pergunta a pergunta, Sócrates levava seu interlocutor à conclusão desejada. O método socrático ergue-se sobre dois pilares: O raciocínio indutivo: processo pelo qual o pensamento vai dos casos particulares ao termo geral (universal) que os engloba; O conceito: Reunião dos traços comuns presentes em todos os casos particulares e que são os traços essenciais de todos eles; o conceito é uma síntese, uma unidade racional do diverso. Ex: o Conceito de Justiça é formado através da investigação sobre a ação justa ou injusta: não é justo roubar ou mentir a alguém; não é justo escravizar alguém; é justo que os condenados recebam e cumpram suas penas; é justo condecorar os bravos no combate ou os atletas olímpicos. O elemento comum que liga todos os casos é a noção de que não se deve furtar ninguém do que lhe é devido; logo: Justiça é dar a cada um o que lhe pertence. Sócrates procura chegar a conceitos gerais como: temperança, impiedade, justiça, valor, etc.

A MAIÊUTICA (“parto das idéias”): O método socrático para chegar ao conceito universal está expresso na Maiêutica: através de perguntas habilmente graduadas (vão crescendo em dificuldade, perícia, raciocínio, etc.), Sócrates conduz o seu interlocutor aos poucos até fazê-lo chegar ao

conhecimento da “verdade”, como se o conceito comum brotasse de sua própria “alma” (consciência).

“DOUTRINA SOCRÁTICA”: A reflexão do homem sobre si mesmo: insistente chamada à interioridade: o homem deve refletir sobre si mesmo; Sofistas: “Perguntai!”, Sócrates: “Só sei que nada sei.”; Princípios fundamentais da sabedoria: a) reconhecimento da própria ignorância; b) reflexão sobre o próprio eu para se reconhecer; c) Sócrates não se preocupa com o problema da Phisis e de Deus; d) a reflexão do homem sobre si mesmo quer dizer: curiosidade insaciável, ânsia ardente de saber; Antropologia: Conceito elevado e otimista da natureza humana e da dignidade do homem – ser privilegiado entre todos os seres do mundo. O homem tem o Lógos e, portanto, pode conhecer a Verdade. Distinção entre corpo e alma, sendo essa última a melhor parte do homem: é divina e imaterial. Epistemologia: são duas as classes de conhecimento: a) conhecimento pelos sentidos: percepção das coisas corpóreas e particulares, mutáveis; b) conhecimento pela Razão: conhece os conceitos universais. Pela razão o homem comunica-se com o divino, com a Razão Universal: é através dela que se pode refletir sobre sim mesmo e descobrir as causas que devem reger sua conduta. ÉTICA: Sócrates procurou racionalizar a conduta humana ajustando-a a normas fixas e universais (antes de Sócrates já existia na Filosofia a preocupação moral, como vemos em Pitágoras). O bem: Para Sócrates não há um Bem transcendente, como um ideal ao qual há que se subordinar a vida, mas muitos e diversos bens. O Bem é o conjunto de bens regido pela razão, de cujo conjunto resulta a vida feliz. A

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característica do bem em Sócrates é utilidade: não há bem que não seja bem para alguma coisa. Os bens são relativos: o que é bom para a saúde é mau para a fome. Utilitarismo: procurar o conjunto de bens superiores para assegurar a felicidade leva consigo à renúncia de muitos bens particulares e inferiores. A Virtude: Todos os homens aspiram à felicidade. Os bens que a asseguram são as riquezas, a saúde, a beleza, a nobreza, as honras, o valor, a sabedoria: mas a felicidade é fruto do “bom uso” dos bens, mais a SABEDORIA. Sócrates dá à virtude um sentido intelectualista, identificando-a com a ciência. Virtude e ciência chegam a ser a mesma coisa: tudo se reduz, em última análise, á sabedoria prática.

Do racionalismo socrático, que reduz a virtude à ciência, deriva-se também que a virtude pode ser ensinada, do mesmo modo que se ensina a ciência. Esta convicção socrática é revelada em sua “missão educativa”: Sócrates acredita que sem a educação as melhores disposições naturais não conseguem desenvolver-se nem chegam a dar bons frutos. Determinismo moral: A identificação socrática entre virtude e ciência tem como corolário9 um rígido determinismo moral. Assim como o entendimento não pode conhecer o não-ser absoluto, também a vontade não pode querer o não-bem, isto é, o mal, pois a vontade está determinada necessariamente ao bem. Portanto, os erros não são voluntários, pois procedem sempre de uma deficiência do conhecimento. Ao que erra não se deve castigar.

Aplicação em Sala!

01 – Considere a citação abaixo: “Sócrates – Tomemos como princípio que todos os poetas, a começar por Homero, são simples

9 Conseqüência.

imitadores das aparências da virtude e dos outros assuntos de que tratam, mas que não atingem a verdade. São semelhantes nisso ao pintor de que falávamos há instantes, que desenhará uma aparência de sapateiro, sem nada entender de sapataria para as pessoas que, não percebendo mais do que ele, julgam as coisas segundo a aparência? Glauco – Sim”. (PLATÃO. A República. Trad. de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997. p. 328). Com base no texto acima e nos outros conhecimentos sobre mímesis em Platão, assinale a alternativa correta. A) Platão critica a pintura e a poesia porque ambas são apenas imitações diretas da realidade. B) Para Platão, os poetas e pintores têm um conhecimento válido dos objetos que representam. C) Tanto os poetas quanto os pintores estão, segundo a teoria de Platão, afastados dois graus da verdade. D) Platão critica os poetas e pintores porque estes, à medida que conhecem apenas as aparências, não têm nenhum conhecimento válido do que imitam ou representam. E) A poesia e a pintura são criticadas por Platão porque são cópias imperfeitas do mundo das idéias. 02 (UEM/2008) – Sócrates representa um marco importante da história da filosofia; enquanto a filosofia pré-socrática se preocupava com o conhecimento da natureza (physis), Sócrates procura o conhecimento indagando o homem. Assinale o que for correto. 01) Sócrates, para não ser condenado à morte, negou, diante dos seus juízes, os princípios éticos da sua filosofia. 02) Discípulo de Sócrates, Platão utilizou, como protagonista da maior parte de seus diálogos, o seu mestre. 04) O método socrático compõe-se de duas partes: a maiêutica e a ironia.

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08) Tal como os sofistas, Sócrates costumava cobrar dinheiro pelos seus ensinamentos. 16) Sócrates, ao afirmar que só sabia que nada sabia, queria, com isso, sinalizar a necessidade de adotar uma nova atitude diante do conhecimento e apontar um novo caminho para a sabedoria.

PLATÃO

Platão10 (427 – 348 a. C.)

provinha de uma antiga família pertencente à nobreza da cidade e, como todos da mesma origem, tinha interesses direcionado à Política, até travar conhecimentos com Sócrates. A partir desse momento em diante Atenas perdia um político e o mundo ganhava um Filósofo que mudou os rumos do pensamento humano. Assistiu inconformado à sentença de morte do grande mestre e, como Sócrates, apostava na razão filosófica como o caminho que conduziria o homem ao exercício da justiça e à prática da virtude. Herdou de Sócrates as preocupações morais e a maior parte da sua obra tem como tema a boa convivência entre os homens em sociedade. O desprezo à razão conduz à valorização apenas das paixões pessoais, à agressividade, à imprudência, o que resulta em ação violenta contra o próximo. Segundo Platão, quando o homem se deixa levar pela paixão, pelos prazeres do corpo, pela busca sem limites das satisfações físicas, ele está exercendo violência contra si mesmo, porque age de maneira irracional. E ainda, se o homem age em sociedade desta mesma forma não leva em consideração as necessidades alheias, tende a se tornar um tirano e, conseqüentemente, provoca a infelicidade de todos. Essa doutrina está presente em toda a obra de Platão.

10 O nome de Platão era Arístocles, nome de seu avô, e seus pais eram Aristo e Perictona.

O Mundo das Idéias

Para compreender o pensamento platônico, o primeiro conceito a considerar é o de Mundo da Idéias. Segundo Platão, haveria um mundo imaterial, eterno e imutável, totalmente separado do mundo sensível11, ao qual só temos acesso através da razão. Nesse lugar acima do Céu estão as Idéias12, que não simples cogitações na mente dos homens: elas são realidades que existem per si e em si mesmas, independentes que alguém as pense; elas são a única realidade existente, totalmente independentes das coisas matérias. De maneira semelhante a Heráclito, Platão afirmava que o mundo sensível é um fluxo eterno.

Porém, não podendo negar o Ser parmenidiano, afirma a doutrina platônica que as coisas materiais são meras aparências, sempre se transformando, e que por isso não permitem chegar a um conhecimento verdadeiro13. Para alcançar a verdade, o homem deve dirigir sua inteligência para as Idéias, para além do mundo sensível: Platão intenta, ao longo da construção de seu pensamento, conciliar os pensamentos de Heráclito e Parmênides, sem excluir um ou outro. Muitas vezes, Platão se serviu de mitos e alegorias para ilustrar seu pensamento. Eram narrativas que ele criava especificamente para facilitar a compreensão de sua doutrina; dessa espécie de narrativa é a “Alegoria da Caverna”, localizada no Livro VII da República:

“SÓCRATES- Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à Ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagine os homens encerrados em uma morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz por toda a extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos

11 O Universo material, percebido através dos cinco sentidos. 12 O vocábulo “Idéia” é a tradução, ou melhor, transliteração dos termos gregos e essa transliteração não é feliz porque, na linguagem moderna, “Idéia” assumiu um sentido estranho ao sentido platônico: a tradução exata seria “Forma”. 13 Epistemé)- Conhecimento científico, a própria Ciência.

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de tal modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, à certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos, imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro, parecido com os tabiques que os titeriteiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que exibem. GLAUCO - Imagino tudo isso. SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele: figuras de homens e mulheres e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam silêncio. GLAUCO - Similar quadro e não menos similares cativos! SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira? GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis as cabeças durante toda a vida. SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras? GLAUCO - Não. SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que as representam? GLAUCO - Sem dúvida! SÓCRATES - E se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos? GLAUCO - Claro que sim. SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de verdadeiro fora das figuras que desfilam diante de si? GLAUCO - Necessariamente. SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te aprece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe

alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que os que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados? GLAUCO - Sem dúvida nenhuma. SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados? GLAUCO - Certamente. SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe-ia possível definir os objetos que o comum dos homens tem por serem ideais? GLAUCO - A princípio nada veria. SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior, primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas. Finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia. GLAUCO - Não há dúvida. SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é. GLAUCO - Fora de dúvida. SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e os anos, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões.

SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha a sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram? GLAUCO - Evidentemente. SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse as sombras dos objetos, que se recordassem com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, mais hábil em lhes predizer a aparição – cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que nos

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cativeiros eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia? GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos, de preferência a viver da maneira antiga. SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto: supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da luz para a obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas? GLAUCO - Certamente. SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa, porque bastante tempo passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade, tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é claro que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido às regiões superiores, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto? GLAUCO - Por certo que o fariam. SÓCRATES - Pois agora, meu caro Glauco, é só aplicar com toda exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o iluminava é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou antes, já que o queres saber, é este pelo menos o meu modo de pensar: que nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do Bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como Causa Universal de tudo o que é belo e bom14, criadora da luz e do sol no mundo visível, e, sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.

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Nessa narrativa, o mundo das idéias

corresponderia ao exterior da caverna, e o interior obscuro seria o mundo das aparências, o universo material tal como é conhecido pelos homens através dos cinco sentidos. Para Platão, a realidade última de tudo está no mundo ideal. Assim, haveria idéias correspondentes a todos os objetos, aos seres e coisas da natureza, virtudes, entidades matemáticas (linha, círculo, ponto, etc.), formas, cores,

14 Está presente a noção de Kalóskaiagathia.

características da matéria (dureza, mobilidade, calor, etc.), atividades e sentimentos. A idéia suprema é o Bem, que se identifica na alegoria com o Sol. O Universo, como nós o conhecemos, teria sido criado por um ente, um Theós, o Demiurgo, que teria modelado o mundo a partir das idéias, usando uma matéria preexistente e disforme. No entanto, essa cópia seria imperfeita e inferior ao mundo das idéias.

O Homem: Corpo e Alma

O ser humano é composto de corpo e alma, sendo a alma a parte mais importante e mais real do indivíduo. Ela seria imortal e eterna, existindo desde sempre, encarnando em um determinado momento num corpo, constituindo assim um ser humano. A alma, antes de reencarnar, conheceria as idéias15, pois estaria próximo a elas.

Ao encarnar-se, porém, esse conhecimento seria esquecido e ficaria latente nos homens. Uma vez encarnada, ela poderia lembra-se dos conhecimentos preexistentes através do processo da Anâmnese (reminiscência): por exemplo, quando uma criança vê um gato pela primeira vez e aprende o que é esse animal, na verdade, sua alma estaria reconhecendo a idéia de gato, presente no mundo das idéias. Assim, todo o aprendizado seria, na verdade, uma lembrança.

A concepção platônica de alma divide-a em três partes: a racional, localizada na cabeça, a emocional, alojada no peito, e a sensual, localizada no abdômen e partes adjacentes. A alma racional, guia da alma em si, conheceria a verdade e reuniria a inteligência, a moral e a lógica. A parte emocional conteria as emoções superiores, como a honra e o ódio à injustiça, e obedeceria fielmente à parte racional da alma.

15 Quanto mais tempo a alma passar contemplando as Idéias, mais notável é o ser humano resultante, indo de uma escala crescente de Tirano a Filósofo.

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Essa última seria rebelde e corresponderia aos desejos inferiores, carnais e, por isso, desordenada e inquieta. Platão exemplifica essa teoria com a Alegoria do Cocheiro: uma carruagem é conduzida por um cocheiro e puxada por dois cavalos: um dócil e bom, o outro furioso e indisciplinado. O condutor é a parte racional da alma; o cavalo dócil é a alma emocional; ambos teriam sérios problemas para controlar o cavalo selvagem, correspondente à alma sensual, a fim de que os três ajam em conjunto.

A Cidade dos Filósofos

Segundo alguns comentadores, a obra de Platão poderia ser classificada em um eixo político: as preocupações com o indivíduo seriam uma extensão da sua preocupação com a esfera pública. Ele procurou, de fato, delinear um projeto político no qual o governo da Pólis garantisse a felicidade de todos os seus habitantes.

No plano individual, a felicidade é alcançada quando as três partes da alma agem em conjunto na busca do Bem, impulsionado pelo Amor. Para essa finalidade, a parte racional precisa reinar, ajudada pela parte emocional, obediente às determinações da primeira; a parte sensual, também necessária à vida do homem, deve, no entanto, ser controlada, mas não suprimida, pois a satisfação da fome e da sede (atributos dessa parte da alma) é condição de sobrevivência do ser humano. O Bem, idéia suprema entre todas, leva à verdade, à beleza, à justiça. Em outras palavras, a alma tende à contemplação das idéias.

A política deve ser organizada de maneira análoga ao que ele entendia justo e correto na vida de cada um: Platão imaginou a Pólis como modelo de vida em grupo. Na cidade, os filósofos, conhecedores da Verdade através da contemplação do Mundo das Idéias, deveriam tomar as rédeas da

administração da cidade. Essa obrigação vem do fato de que, conhecendo o Bem, somente poderiam querer que este se estendesse a todos os homens: o cargo de “governador” da Pólis platônica deveria ser ocupado pelo Rei-Filósofo e, numa comparação à tripartição da alma, ele seria a parte racional da cidade.

Haveria também um grupo de guerreiros, que se caracterizariam por sua força, integridade e seu grande amor aos sentimentos, que Platão considerava-os mais nobres, como a fidelidade, a bravura e a aversão à torpeza. Esses homens corresponderiam à parte emocional da alma, e colaborariam obedientemente com os filósofos governantes. Defenderiam a Pólis de eventuais inimigos e seriam responsáveis pela aplicação da justiça entre os habitantes, conforme o Rei-Filósofo determinasse.

Finalmente, haveria os homens que, por meio de seus diferentes trabalhos, garantiriam o sustento da sociedade: os agricultores, pastores, artesãos, construtores e tecelões. Esse grupo estaria relacionado à parte sensual da alma, por ser movido pela ambição do lucro e não pelo desejo do bem. Embora necessário para a sobrevivência material de todas as pessoas, precisaria ser controlado pelos guardiões da Pólis, segundo as ordens do Rei-Filósofo, que ditaria as normas de comportamento, a distribuição dos alimentos e a realização de melhorias urbanas.

Aplicação em Sala! 01 – “Você está acompanhando, Sofia? E agora vem Platão. Ele se interessava tanto pelo que é eterno e imutável na natureza quanto pelo que é eterno e imutável na moral e na sociedade. Sim (...), para Platão tratava-se, em ambos os casos, de uma mesma coisa. Ele tentava entender uma ‘realidade’ que fosse eterna e imutável. E, para ser franco, é para isto que os filósofos existem. Eles não estão preocupados em eleger a mulher mais bonita do ano, ou os tomates mais baratos da feira. (Exatamente por isso nem sempre são vistos com bons olhos). Os filósofos não se interessam muito por essas coisas efêmeras e cotidianas. Eles

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tentam mostrar o que é ‘eternamente verdadeiro’ , ‘eternamente belo’ e ‘eternamente bom’”. (GAARDER. J. O Mundo de Sofia. Trad. de João Azenha Jr.. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 98.) Com base no texto acima e nos conhecimentos sobre a “Teoria das Idéias” de Platão, assinale a alternativa correta. A) Para Platão, o “mundo das idéias” é o mundo do “eternamente verdadeiro”, “eternamente belo” e “eternamente bom”, sendo distinto do mundo sensível no qual vivemos. B) Platão considerava que tudo aquilo que pode ser percebido diretamente pelos sentidos constitui a própria realidade das coisas. C) Platão considerava impossível que o homem pudesse ter idéias verdadeiras sobre qualquer coisa, seja sobre a natureza, a moral ou a sociedade, porque tudo é sonho e ilusão. D) De acordo com Platão, o filósofo deve preocupar-se com as coisas efêmeras e cotidianas do mundo, tido por ele como as mais importantes. 02 – “Quando é, pois, que a alma atinge a verdade? Temos de um lado que, quando ela deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questão que seja, o corpo, é claro, a engana radicalmente. - Dizes uma verdade. - Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser? - Sim. [...] – E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, esse objeto é, como dizíamos, a verdade”. (PLATÃO. Fédon. Trad. de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 66/7.) Com base no texto e nos conhecimentos sobre a concepção de verdade em Platão, é correto afirmar:

A) O conhecimento inteligível, compreendido como verdade, está contido nas idéias que a alma possui. B) A verdade reside na contemplação das sombras, refletidas pela luz exterior e projetadas no mundo sensível. C) A verdade consiste na fidelidade, e como Deus é o único verdadeiramente fiel, então a verdade reside em Deus. D) A principal tarefa da filosofia está em aproximar o máximo possível a alma do corpo para, dessa forma, obter a verdade. E) A verdade encontra-se na correspondência entre um enunciado e os fatos que ele ponta no mundo sensível. 03 (UEM/2008) – “Sócrates: Imaginemos que existam pessoas morando numa caverna. Pela entrada dessa caverna entra a luz vinda de uma fogueira situada sobre uma pequena elevação que existe na frente dela. Os seus habitantes estão lá dentro desde a infância, algemados por correntes nas pernas e no pescoço, de modo que não conseguem mover-se nem olhar para trás, e só podem ver o que ocorre à sua frente. (...) Naquela situação, você acha que os habitantes da caverna, a respeito de si mesmos e dos outros, consigam ver outra coisa além das sombras que o fogo projeta na parede ao fundo da caverna?”. (PLATÃO. A República [adaptação de Marcelo Perine]. São Paulo: Editora Scipione, 2002. p. 83).

Em relação ao célebre mito da caverna e às doutrinas que ele representa, assinale o que for correto. 01) No mito da caverna, Platão pretende descrever os primórdios da existência humana, relatando como eram a vida e a organização social dos homens no princípio de seu processo evolutivo, quando habitavam em cavernas. 02) O mito da caverna faz referência ao contraste ser e parecer, isto é, realidade e aparência, que marca o pensamento filosófico desde sua origem e que é assumido por Platão em sua famosa teoria das Idéias. 04) O mito da caverna simboliza o processo de emancipação espiritual que o exercício da filosofia é capaz de promover, libertando o indivíduo das

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sombras da ignorância e dos preconceitos. 08) É uma característica essencial da filosofia de Platão a distinção entre mundo inteligível e mundo sensível; o primeiro ocupado pelas Idéias perfeitas, o segundo pelos objetos físicos, que participam daquelas Idéias ou são suas cópias imperfeitas. 16) No mito da caverna, o prisioneiro que se liberta e contempla a realidade fora da caverna, devendo voltar à caverna para libertar seus companheiros, representa o filósofo que, na concepção platônica, conhecedor do Bem e da Verdade, é o mais apto a governar a cidade.

ARISTÓTELES: A sistematização do

conhecimento humano

Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu na cidade macedônica de Estagira, mudando-se para Atenas com 20 anos de idade e passando então a freqüentar as aulas da Academia, de lá saindo apenas quando Platão morreu. Foi convidado por Felipe II da Macedônia para ser preceptor de Alexandre, mais tarde conhecido como “Alexandre o Grande”. De volta a Atenas em 342 a.C., funda sua escola, chamada Liceu. Após a morte de Alexandre, os cidadãos de Atenas articulam sua prisão por causa de sua ligação com o grande conquistador, causando sua fuga; Aristóteles foge para que “...a cidade de Atenas não cometa outro crime contra a Filosofia...”.

O conhecimento do mundo

Embora tenha sido aluno de Platão por muito tempo, Aristóteles construiu uma teoria do conhecimento bastante diferente daquela formulada por seu mestre. Para Aristóteles, era possível conhecer o mundo por meio da

experiência sensorial, aplicando a razão sobre os dados fornecidos pelos sentidos, descobrindo assim a essência das coisas, ou seja, a verdade sobre os diferentes seres.

Conhecimento para Aristóteles é a abstração16 da natureza dos objetos e dos seres; isso resultaria num conceito, num pensamento, mas de maneira diferente da apresentada na doutrina platônica. Para Aristóteles, não há um mundo onde as idéias existam por si mesmas; as idéias são o resultado de um processo conduzido pelo intelecto.

Aristóteles sustentava que cada ser ou objeto possui uma substância (ousía) própria, que é o conjunto de todas as suas características fundamentais, como suas dimensões, qualidades, matéria de que é feito, etc.. Por meio da abstração, o ser humano conseguiria analisar esses atributos separadamente, mas que são inseparáveis no ser ou objeto em si. Por exemplo, podemos observar de modo isolado a liquidez da água, mas essa propriedade não pode ser colocada à parte no plano material. Os seres e objetos também são determinados por seus acidentes: opostas à substância, as características acidentais são aquelas que não alteram a essência daquilo que a coisa é. Assim, a substância humana é sempre a mesma num indivíduo, independentemente de sua cor de pele, altura e nacionalidade (esses são apenas alguns dos acidentes presentes no ser). Determinar a substância17 de algo é, portanto, conhecer.

16 Abstração provém do latim abstrahere, que significa “tirar algo de algum lugar, separar, roubar”. Em Filosofia, abstrair significa colocar à parte, mentalmente, as características e qualidades de um objeto de estudo, material ou não, para analisá-lo e conhecê-lo. 17 A palavra substância nos chegou através do verbo latino substare, que significa “estar sob, subsistir”. Aristóteles definia substância como a essência (to ti en einai - aquilo que era o ser) necessária do ser, aquilo que ele é, e que está relacionada com o que existe. Ao conceito de substância Aristóteles opunha o de acidente (symbebekós palavra que nos veio do latim accidens e que significa “casual, fortuito, inesperado”. Assim, uma qualidade acidental é aquela que não pertence à substância do ser, embora possa pertencer ao objeto a que se refere.

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A substância de um objeto é dada por suas Matéria e Forma: a Matéria consiste nos elementos físicos que constitui a coisa. Já a Forma18 tem um conceito mais complexo: ela é a estrutura interna na qual a matéria está organizada, que a modela, que a informa, de modo que a coisa seja reconhecida tal como é. Forma e Matéria juntas mostram-se a nós através das informações captadas pelos sentidos. A forma casa é o que possibilita que distingamos essa de outras construções, embora todas sejam feitas através dos mesmos materiais; através da visão, o mais excelente dos sentidos para Aristóteles, detectamos as características da casa e a reconhecemos como tal.

Todas as coisas, entretanto, podem mudar, deixando de ser o que são para se transformarem em outras. Como explicar essas transformações no ser? Através dos conceitos de POTÊNCIA e ATO19: a primeira é a soma de todas as potencialidades do ser, tudo aquilo que ele pode vir-a-ser (Devir): são as possibilidades de uma coisa, tal como ela é, se tornar outra coisa.

A árvore, ou a madeira da árvore, por exemplo, tem a potência de ser uma cadeira, uma mesa, uma cabana, etc, pois pode ser manipulada para se obter dela uma série de coisas. O ser humano tem a potência a gerar outro ser: pela gestação, um novo indivíduo será gerado. O ATO é a realização de uma POTÊNCIA; assim, uma espada é uma das potências do ferro posta em ato.

Para Aristóteles, tudo tende a passar da potência ao ato; tudo se move de uma para outra condição. Essa passagem sempre se dá pela ação de forças que se originam de diferentes motores, isto é, seres ou objetos que promoveriam essa mudança. No entanto, se todo o Universo sofre transformações, deve existir um Primeiro Motor, imóvel e 18 Não é, em hipótese alguma, como a Idéia de Platão: a Forma jamais existe sem a Matéria, como no Mundo das Idéias. Embora as duas sejam essência, ou substância, a Forma é mais excelente que a Matéria. 19 edýnamis e enérgeia).

imutável, que não seria nada em potência, mas ato puro, plenamente realizado. O Proto Kinoun, esse “Primeiro Motor” é, em última instância, aquilo de onde parte todo o movimento do Universo, todas as suas transformações.

Ainda sobre a passagem da potência ao ato, o Filósofo explicava que todos os seres são determinados por quatro causas, que explicariam como e por que cada coisa torna-se o que é: I) Causa Material: é a matéria de que o objeto é feito; II) Causa Eficiente: também denominada instrumental, é o ser (ou seres) que promove (m) a passagem do objeto inicial da potência ao ato; III) Causa Formal: é a forma que define a coisa, que lhe confere a sua identidade; IV) Causa Final: é o propósito, o objetivo, a finalidade do ser específico. Para ilustrar esses conceitos, suponhamos que um escultor decida esculpir uma estátua de Atena em mármore. O bloco de pedra que será usado para esse trabalho corresponde à causa material; o artista e seus instrumentos são a causa eficiente. Esse homem teria em seu intelecto a imagem da Deusa e como pretende retratá-la – a forma da estátua – que será transferida à matéria-prima, constituindo a causa formal; a escultura servirá para homenagear essa Deusa, e esta então será a causa final (a finalidade da estátua).

“O homem é um animal político”

Aristóteles dedicou boa parte de sua obra ao estudo de como o ser humano pode ser feliz vivendo em sociedade. Assim como Platão, esboçou um projeto político para solucionar os problemas que encontrava. “O homem é naturalmente um animal político.”, enunciado expresso no início d’ A Política, deve ser entendido como “aquele que participa da Pólis” : uma das condições essenciais do ser humano é o fato de viver agregado a outros seres humanos. Em outras palavras, para o

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Filósofo um indivíduo vivendo sozinho é inconcebível: alguém absolutamente solitário ou auto-suficiente deixaria de ser humano – seria um Deus ou uma fera – ou simplesmente não sobreviveria.

Além disso, a Pólis era para Aristóteles a melhor organização social possível, desde que fosse regida por critérios justos, que visasse ao bem comum. Para entender como o Filósofo julgava ser possível determinar esses critérios, vamos primeiro estudar a divisão das ciências que ele construiu. Essa Classificação das Ciências, segundo Aristóteles, obedece à finalidade de cada uma delas: I) Ciências Técnicas: grupo dos saberes relacionados com a produção de objetos ou a obtenção de resultados úteis ou estéticos, como a Construção (que visa proporcionar habitação) a Medicina (que recupera a saúde), a Escultura (que produz obras), a Estratégia (que aumenta as chances de se vencer uma batalha), etc.; II) Ciências Práticas: nesse caso, a finalidade buscada é o aperfeiçoamento do seu agente. A aplicação dessas ciências leva o desenvolvimento do ser humano na direção de uma existência melhor. São duas: A Ética e a Política; III) Ciências Teoréticas: essas ciências são fim em si mesmas, isto é, a finalidade se concretiza na medida em que o próprio saber é produzido; por exemplo, a Geometria (estudo das formas simples e das medidas) e a Matemática; a mais alta e mais excelente ciência é a Metafísica, que estuda o ser enquanto ser, ou seja, os seres enquanto substâncias.

Aristóteles definia a Ética20 como a ciência que trata do caráter e da conduta dos indivíduos, e a Política como sendo os estudos que regem a existência dos

20 O termo ética vem de palavra grega que significa comportamento, costume, tradição. É a parte da Filosofia que estuda a conduta humana para se atingir o bem-comum. Ela é também chamada de Filosofia Moral, ou simplesmente Moral. A palavra Moral vem do latim moralia, tradução para ethós. Nas obras de Platão e Aristóteles não há distinção entre os dois termos, mas Hegel (Séc. XIX) operou essa distinção: Moral trata das ações do indivíduo; Ética trata das ações do indivíduo em grupo.

homens vivendo em uma comunidade auto-suficiente, no caso, a Pólis.

A doutrina aristotélica afirma que as duas são inseparáveis21. Assim, a perfeição da personalidade individual (que se mostra através da honestidade, da honra, do respeito ao próximo, em suma, da Virtude) é a finalidade almejada pela vida comunitária a pelas leis - e estas seriam o meio pelo qual se obtém aquele fim. Para Aristóteles, a Felicidade não era apenas um estado emocional e passivo, mas sim uma atividade: o homem feliz é aquele que pratica incessantemente a virtude, sempre aperfeiçoando seu caráter. Esse seria o campo específico da Ética. No entanto, a conduta justa do indivíduo só teria sentido dentro da vida em sociedade22: por isso, a Política é tão importante para que o indivíduo possa ser virtuoso (ético e, portanto, feliz), é necessário haver uma organização política favorável para que essa finalidade seja atingida. Para Aristóteles, a Pólis deve ser governada democraticamente, onde todos os cidadãos se conheçam pessoalmente e façam parte de uma grande assembléia que a governa, determinado seus destinos e redigindo leis (Constituição) que garantam uma existência digna para seus habitantes.

As concepções políticas de Platão e Aristóteles divergiam grandemente: para Aristóteles, não deveria haver uma parcela apenas que governasse todos os restantes. Todos os homens livres teriam iguais condições de distinguir o que é bom, através do diálogo com os outros.

21 O trabalho de Maquiavel, na Renascença, é separar essas duas esferas do conhecimento, quando afirmava que o príncipe deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para manter o poder. 22 Aristóteles concebia o ser humano como criatura fundamentalmente social; essa natureza comunitária, por outro lado, não é como a das abelhas e outros animais que vivem em grupos organizados: o Estagirita afirmava que os laços que levam as pessoas a viverem em comunidade são provenientes da cultura. Os outros animais sociais apresentam constantemente as mesmas formas de se organizar; o homem, ao contrário, pode formar sociedades segundo diversas configurações de administração e poder; por exemplo: em um Regime Democrático, em uma Monarquia, ou em uma Tirania.

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Aristóteles empreendeu uma grande pesquisa sobre as legislações de dezenas de cidades gregas, a fim de compará-las e, assim, determinar uma síntese das normas mais adequadas para a vida em sociedade. Aristóteles também fez importantes contribuições às mais diversas ciências particulares hoje existentes, como a Física e a Biologia: é sua a divisão em Espécies e Gêneros, a divisão em reinos vegetal, mineral e animal, entre outras.

Na divisão da natureza, o Filósofo separou as coisas inanimadas, que não encerram em si a capacidade de movimento, das coisas animadas, que trazem em si a capacidade de movimento23. Desta distinção, Aristóteles traça uma divisão dos seres e dos três tipos de alma: Todos os seres naturais possuem a alma vegetativa, responsável pelo movimento natural de repouso, ou pelo crescimento, nutrição e multiplicação; os seres animais em geral e os seres humanos possuem a alma sensitiva, com a qual percebem o mundo e se relacionam com ele; finalmente, apenas aos seres humanos cabe a alma racional, que nos dá atributos como o pensamento, o intelecto e a intuição.

A Lógica

Aristóteles foi o primeiro pensador a dar atenção isolada e especial à Lógica, fundando-a como especialidade do conhecimento. O seu conhecimento expresso sobre o assunto foi reunido em uma obra chamada Organon. O Estagirita não incluía a Lógica em nenhuma divisão das ciências, pois considerava esse estudo pré-requisito básico e necessário ao aprendizado de todas as ciências, teoréticas, práticas e técnicas; em suma, Aristóteles declarava a Lógica necessária para a busca da verdade em todas as ciências, porque ela analisa o modo como

23 Para Aristóteles é a alma que dá ao ser o princípio do movimento: assim, as coisas inanimadas não têm potencialidade de movimento; as animadas, sim.

o pensamento é estruturado, indicando por isso a maneira correta de pensar.

Desde que um determinado raciocínio seja conduzido adequadamente – isto é, segundo os preceitos da Lógica -, garante-se que a conclusão a que ele chega será verdadeira. A lógica estuda o raciocínio por meio das análises das proposições, ou seja, das afirmações que são emitidas, escrita, ou simplesmente pensadas pelo indivíduo que estuda uma determinada ciência ou procura a verdade sobre algum fenômeno.

Quando se aplica o pensamento para se chegar a um novo conhecimento ou compreensão, as proposições são encadeadas de modo que delas seja possível extrair uma proposição nova, chamada de conclusão, que contém uma idéia que antes não estava expressa claramente, ou era mesmo desconhecida. Esses encadeamentos de proposições recebem o nome de Argumento. O Silogismo (união de proposições) é a forma mais adequada de estrutura lógica de pensamento, e esse conceito tem um significado bastante específico na doutrina aristotélica: é o encadeamento de duas premissas (uma maior e outra menor; ou geral e particular) que levam a uma conclusão necessária. Os termos maior e menor referem-se à amplitude da proposição: ela é geral quando diz algo sobre todos representantes individuais de um determinado conjunto. Por exemplo, a frase Todos os mamíferos respiram é uma proposição geral, porque comunica uma característica que pertence a cada um dos elementos do conjunto denominado mamíferos; portanto será uma premissa maior, ou premissa geral. A proposição particular é aquela que afirma alguma coisa sobre apenas um ou alguns seres ou objetos: Este elefante é um mamífero ou Estes elefantes são adestrados, são proposições particulares, pois elas informam um aspecto correspondente a determinado sujeito. No silogismo, tem de haver um relacionamento específico

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entre as premissas; de maneira abstrata, poderíamos anotar desta maneira:

Premissa 1: Todo A é B. Premissa 2: C é um exemplar de A. Conclusão: C é B.

Vejamos agora exemplos mais

concretos: Todos os homens (A) são mortais (B); Sócrates (C) é homem (A); logo, Sócrates (C) é mortal (B). Este é um silogismo válido e verdadeiro: válido, pois obedece às regras que definem o silogismo; verdadeiro porque também expressa a verdade do fenômeno; porém, o silogismo não tem que ser verdadeiro e válido, mas apenas válido: Todo animal é perigoso; O gato é um animal; logo, o gato é um animal perigoso. Este é um silogismo válido, pois o encadeamento de raciocínios está estruturado segundo a norma que Aristóteles demonstrou ser correta, mas a informação da primeira premissa está errada, pois nem todos os animais são perigosos.

A linguagem usada em um silogismo pode variar muito, mas sempre deverá ter a mesma estrutura básica. A frase seguinte é um exemplo de silogismo completo, mesmo que não esteja explicitamente dividida nas suas proposições elementares: A busca pela verdade é útil para o desenvolvimento humano, e a Filosofia, que é uma das formas desta procura, pode participar deste processo. Estes são exemplos de raciocínios dedutivos, quando se parte de uma premissa mais geral para uma menos geral. Aristóteles considerava o silogismo dedutivo a principal forma de aquisição de conhecimento por suas conclusões sempre serem verdadeiras, se as premissas também o forem. Entretanto, existe também o raciocínio indutivo, que parte de premissas menos gerais, ou particulares, rumo a uma conclusão que é sempre mais geral que a premissa. Por exemplo, se o morador de uma cidade litorânea decide medir a

temperatura em que a água ferve, e repete a experiência algumas vezes, digamos que ele encontre sempre o mesmo resultado, ou seja, 100º C. ele poderá dizer, então: “A água ferve, nesta cidade, a 100º C.”. Embora a indução permita atingir proposições mais gerais, ela não garante que a conclusão seja verdadeira, mesmo que todas as proposições iniciais sejam verdadeiras. Suponhamos que três indivíduos, João, Manoel e José, sejam maus. Se concluirmos que todos os homens são maus, obteremos uma conclusão obviamente falsa, sem sustentação.

Aplicação em Sala! 01 – “Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal disso é o prazer que nos proporcionam os nossos sentidos; pois, ainda que não levemos em conta a sua utilidade, são estimados por si mesmos; e, acima de todos os outros, o sentido da visão. (...) Por outro lado, não identificamos nenhum dos sentidos com a Sabedoria, se bem que eles nos proporcionem o conhecimento mais fidedigno do particular. Não nos dizem, contudo, o porquê de coisa alguma”. (ARSTÓTELES. Metafísica. Trad. de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, p. 36 e 38.)

Com base no texto acima e nos conhecimentos sobre a metafísica de Aristóteles, considere as afirmativas a seguir. I) Para Aristóteles, o desejo de conhecer é inato ao homem. II) O desejo de adquirir sabedoria em sentido pleno representa a busca do conhecimento em mais alto grau. III) O grau mais alto de conhecimento manifesta-se no prazer que sentimos em utilizar nossos sentidos. IV) Para Aristóteles, a sabedoria é a ciência das causas particulares que produzem os eventos. A alternativa que contém todas as afirmativas corretas é: A) I e II

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B) II e IV C) I, II e III D) I, III e IV E) II, III e IV 02 – “Ora, nós chamamos aquilo que deve ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa”. (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro e Gerard Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1987, 1097b, p. 15.)

De acordo com o texto e os conhecimentos sobre a ética de Aristóteles, assinale a alternativa correta: A) Segundo Aristóteles, para sermos felizes é suficiente sermos virtuosos.., B) Para Aristóteles, o prazer não é um bem desejado por si mesmo, tampouco é um bem desejado no interesse de outra coisa. C) Para Aristóteles, as virtudes não contam entre os bens desejados por si mesmos. D) A felicidade é, para Aristóteles, sempre desejável em si mesma e nunca no interesse de outra coisa. E) De acordo com Aristóteles, para sermos felizes não é necessário sermos virtuosos. 03 (UEM/2008) – Aristóteles considera que só o homem é um animal político, porque somente ele é dotado de linguagem na forma de palavra (lógos) e com ela pode exprimir o bem e o mal, o justo e o injusto. O fato de os homens poderem estabelecer em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política. Assinale o que for correto. 01) A retórica é a arte da eloqüência, de bem falar e argumentar. Foi utilizada na

Antiguidade Clássica como um dos principais recursos da política. 02) Os sofistas desenvolveram e ensinaram a retórica como instrumentalização da linguagem cujo objetivo era torná-la uma estratégia para vencer adversários nos embates políticos. 04) Para os gregos antigos, a palavra mito (mythos) significa narrativa, é a palavra que narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, da comunidade humana e da vida do grupo social. 08) A linguagem para os gregos antigos tem duas formas de expressão: o mythos e o lógos. O mythos desenvolve a palavra mágica e encantatória; o lógos, a linguagem como poder de conhecimento racional. 16) A obra filosófica de Platão é isenta de qualquer mito, é o que permite caracterizá-la como sendo absolutamente racionalista.

04 (UEM/2008) – Elaborando a teoria das quatro causas e a distinção entre ato e potência, Aristóteles busca explicar a realidade do devir e da mudança a que estão submetidas as coisas causadas. Assinale o que for correto. 01) Para Aristóteles, a mudança implica uma passagem da potência ao ato; o ato é o estado de plena realização de uma coisa; a potência, a capacidade que algo tem para assumir uma determinação. 02) Segundo Aristóteles, tudo o que acontece tem suas causas, essas são a explicação ou o porquê de certa coisa ser o que é. 04) Causa material, causa formal, causa eficiente e causa final são os quatros sentidos que Aristóteles distingue no termo causa. 08) Segundo Aristóteles, a causa material e a causa formal de uma coisa são, respectivamente, aquilo deque essa coisa é feita e aquilo que ela essencialmente é.

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16) Segundo Aristóteles, a causa eficiente e a causa final de uma coisa são, respectivamente, o agente que atua sobre essa coisa e o fim a que ela se destina.

FILOSOFIA HELENÍSTICA

Período ético Em meados do século IV a.C., Felipe da Macedônia conquista as cidades-Estado gregas, e, após sua morte, Alexandre Magno assume o trono e continua a expansão de conquistas macedônicas. Após sua morte, Roma conquista a Grécia no século I a. C.. Esse momento histórico ficou conhecido como “período Helenístico”24. Como as póleis (cidades) gregas de então não possuíam mais a autonomia de outrora, as correntes filosóficas então desenvolvidas giravam em torno da vida do “indivíduo enquanto indivíduo”, e não mais como cidadão (isto é, aquele homem que tinha uma participação política, moral e ética ativa na cidade). A pergunta então que se pode fazer é: Como o indivíduo, sem a orientação segura da polis, poderia agora se orientar para agir, em meio a tantas religiões e visões de mundo?.

O Ceticismo

O fundador do ceticismo foi Pirro de Elis (360-272 a. C.). Entrando em contato com Bramanismo hindu, e de volta à Grécia, Pirro funda uma escola que apresenta um pensamento radicalmente novo: é impossível conhecer verdadeiramente qualquer coisa. De acordo como os céticos, a realidade existe, mas nós não dispomos de qualquer meio para atingir a verdade de qualquer coisa. Assim, ao se depararem com uma situação em que é necessária 24 Os gregos se autodenominavam “helênos”.

uma tomada de posição sobre algum assunto, os céticos tomaram “dois caminhos”: O primeiro é a isostenía, isto é, a declaração de que ambos os lados de uma questão são igualmente refutáveis ou aceitáveis; Passo seguinte, a epokché, a suspensão do juízo, no qual o cético declara que, por não haver uma resposta certa para a questão, então não há porque se debater sobre o assunto; Conseqüentemente, sobrevém a ataraxia, a “tranqüilidade da alma”, quando cessam os conflitos que geram angústias e lutas na alma do indivíduo. O ceticismo é, portanto, uma corrente que propõe o “abandono” das discussões públicas, justamente porque não se pode chegar a uma verdade última sobre as coisas, ainda que o cético deva em sua vida continuar na sua investigação sobre as mesmas.

O Estoicismo

Escola fundada em Atenas por Zenão de Cicio (320-250 a. C.), que ensinava perto da porta de entrada da cidade25. O problema central dos estóicos é a busca da Felicidade, isto é, eles buscavam meios que pudessem auxiliar o individuo no momento de agir para viver bem, estando em acordo consigo e com a cidade. A felicidade para os estóicos era um estado de tranqüilidade plena, que só podia ser alcançada por meio da prática virtuosa; por sua vez, a virtude era definida pelos estóicos como “uma negação constante, uma indiferença dirigida a todas as experiências da vida, todas as paixões (páthos) da alma. O estado atingido e pretendido era definido por apathéia. O homem não deveria preocupar-se com questões relacionadas à morte, menos ainda esforçar-se pelo enriquecimento material, nem deveria sofrer com o cansaço. O único objeto de 25 “Porta” em grego se diz Stoá, de onde vem o nome da corrente filosófica.

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valor é a sabedoria, alcançada através do exercício do pensamento, que por sua vez é a única atividade em que vale a pena se empenhar: é uma indiferença em relação a toda forma de prazer e sofrimento. Tanto as experiências dolorosas quanto as prazerosas são irracionais por serem paixões, isto é, vícios e, portanto, mal supremo. Considerar “indiferente” qualquer paixão tornaria o indivíduo um ser virtuoso. O máximo da virtude seria o indivíduo viver em uma espécie de fortaleza interior. Na política, há uma espécie única idéia estóica relevante, a de que o homem não pertenceria a um país ou a uma cidade específicos, mas sim que ele seria cidadão do mundo. Essa idéia foi denominada de cosmopolitismo. O pensamento estóico teve uma longo duração, estendendo-se até o final do século II da era cristã, quando alguns pensadores romanos ainda cultivavam as idéias dessa corrente filosófica.

O Epicurismo

Corrente filosófica fundada por Epicuro (341-270 a.C.) em Atenas. Um dos princípios dessa escola é a idéia de que a filosofia deve servir para libertar o homem do medo do destino, da morte e dos deuses. De acordo com Epicuro, a alma seria composta por partículas imateriais, muito leves e imperceptíveis, os átomos. Com a morte, os átomos se dispersariam e alma se desfaria; portanto, não existiria vida após a morte, nem motivos para nos preocuparmos com o que poderia nos acontecer no além, pois tudo acabaria com a nossa morte. Somando-se a isso, Epicuro afirmava a existência de vários mundos e, entre eles, os intermundos, onde viveriam os deuses, completamente desinteressados dos homens. Como as divindades desprezam a vida humana, não a influenciando em nada, não seria necessário preocupar-se com as ações dos deuses.

Em suma, o epicurismo afirma que a finalidade da vida é o prazer; não um prazer buscado e obtido simplesmente por meio dos instintos e paixões, mas sim pela razão: o verdadeiro prazer estaria em superar todos os desejos, não ter necessidade de nada. A doutrina epicurista afirmava ainda que valores como a amizade, o pensamento, a apreciação das belezas naturais e das artes são formas de se obter essa satisfação. A felicidade – a paz espiritual – seria alcançada quando o homem atingisse o autodomínio , isto é, se libertasse de todos os medos e desejos, agindo somente segundo sua vontade.

Aplicação em Sala! 01 (UEM/2008) – O Período Helenístico inicia-se com a conquista macedônica das cidades-Estado gregas. As correntes filosóficas desse período surgem como tentativas de remediar os sofrimentos da condição humana individual: o epicurismo ensinando que o prazer é o sentido da vida; o estoicismo instruindo a suportar com a mesma firmeza de caráter os acontecimentos bons ou maus; o ceticismo de Pirro orientando a suspender os julgamentos sobre os fenômenos. Sobre essas correntes filosóficas, assinale o que for correto. 01) Os estóicos, acreditando na idéia de um cosmo harmonioso governado por uma razão universal, afirmaram que virtuoso e feliz é o homem que vive de acordo com a natureza e a razão. 02) Conforme a moral estóica, nossos juízos e paixões dependem de nós, e a importância das coisas provém da opinião que delas temos. 04) Para o epicurismo, a felicidade é o prazer, mas o verdadeiro prazer é aquele proporcionado pela ausência de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma. 08) Para Epicuro, não se deve temer a morte, porque nada é para nós enquanto

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vivemos e, quando ela nos sobrevém, somos nós que deixamos de ser. 16) O ceticismo de Pirro sustentou que, porque todas as opiniões são igualmente válidas e nossas sensações não são verdadeiras nem falsas, nada se deve afirmar com certeza absoluta, e da suspensão do juízo advém a paz e a tranqüilidade da alma.

UNIDADE 02

HISTÓRIA DA FILOSOFIA: PATRÍSTICA e ESCOLÁSTICA

(IDADE MÉDIA) A filosofia entra agora em um novo momento de sua história, bem distante da Atenas de Sócrates ou do mundo grego. Ela passará por um universo cultural diferente daquele onde nasceu. O contexto em que vamos nos inserir é eminentemente cristão. Nesta unidade, estudaremos como a filosofia, durante determinado período, teve como objetivo principal responder a questões ligadas à existência e à bondade de Deus através das idéias e convicções de dois representantes do pensamento religioso: Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino26.

O mundo medieval: formas sociais, elementos históricos e culturais

Ao longo do século V d. C., o império do Ocidente sofreu diversos ataques dos chamados povos bárbaros. O período medieval é fruto desse confronto, e a partir das muitas invasões foi-se constituindo uma nova organização social na Europa. Devido ao esfacelamento do 26 Esses dois pensadores cristãos não viveram na mesma época. Eles estão separados por 900 anos, estando Santo Agostinho no início da Idade Média e Santo Tomás de Aquino em seu apogeu.

Império Romano, a Igreja Católica passa a ocupar o poder na sociedade medieval e se mantém como a maior instituição social e política na Idade Média, acumulando muito poder e riqueza, consolidando sua organização religiosa e política, difundindo o cristianismo e mantendo muitos elementos da cultura greco-romana. A base da economia na Idade Média é o campo; há um enfraquecimento comercial, o modo de produção é o sistema feudal, e a sociedade permanece hierarquizada em clero, nobres e plebeus. No sistema feudal, as relações entre as classes era de vassalagem e suserania, a saber: Suserano – era quem dava um lote de terra ao vassalo, que deveria jurar fidelidade e ajuda ao seu suserano. Vassalo – oferecia ao senhor feudal, ou suserano, fidelidade e trabalho, em troca de proteção e um lugar no sistema de produção. As redes de vassalagem estendiam-se por várias regiões, sendo o rei o suserano mais poderoso. A sociedade tinha pouca mobilidade social. A nobreza feudal (senhores feudais, cavaleiros, condes, duques, viscondes) era detentora de terras e arrecadava impostos dos camponeses. O clero (membros da Igreja Católica), além de ser formado por senhores feudais, tinha um grande poder, pois era responsável pela proteção espiritual da sociedade e mantinha-se isento de impostos e arredava o dízimo. Presentes em todos os níveis de uma sociedade marcada pela religiosidade, os membros da Igreja Medieval fomentaram valores como a passividade e a subordinação dos homens comuns perante o senhor, tanto o senhor espiritual (clérigo), encarregado de proteger as almas, quanto o senhor feudal da terra (nobre), que protegia os corpos.

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Com o tempo, num mundo em que a minoria era alfabetizada, as igrejas, os mosteiros e as abadias converteram-se nos únicos centros da cultura letrada. Nesses mosteiros e abadias medievais, encontravam-se as únicas escolas e era lá que se preparavam e restauravam textos antigos da herança greco-romana. O poder religioso, entretanto, necessitava de suporte filosófico para sua vigência histórica. Motivados por esse intento, dois pensadores cristãos destacaram-se nesse período: Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Agostinho encontrou em Platão e Tomás de Aquino em Aristóteles, elementos da razão (grega) que pudessem auxiliar a compreensão “racional” da fé religiosa. Assim sendo, as soluções filosóficas para a questão do ser contaram com a mediação da doutrina religiosa católica. Mais que isso, a filosofia será um instrumento muito útil a serviço da teologia. O tema central é a tentativa de conciliar Fé e Razão. De maneira simplista, é possível dividir a filosofia medieval em dois grandes períodos, a saber: a Patrística e a Escolástica.

A PATRÍSTICA

A patrística precede a escolástica medieval, e sua principal característica reside no seu caráter apologético: é preciso defender os ideais cristãos perante os pagãos e convertê-los. Presencia-se a retomada da filosofia platônica, especialmente por Santo Agostinho, bem como do neoplatonismo por Plotino. Agostinho vai ser, de certo modo, o sistematizador da experiência cristã até o século V, assim como, anteriormente a ele, os autores cristãos (padres da Igreja – por isso , em termos de filosofia, esse período foi denominado de patrística) debateram-se no desejo de produzir uma organização da doutrina cristã. Foi um período muito polemico, tendo em vista

que uma doutrina nova, para se estabelecer, tem de agir e reagir em um meio que já tem práticas e concepções arraigadas a respeito do mundo e da vida. A organização da doutrina cristã debate-se com as formulações gregas cristalizadas. Assim, nesse contexto, os padres da tradição oriental ou grega esforçaram-se por harmonizar o pensamento grego com a nova doutrina, e os padres ocidentais ou latinos trabalharam no sentido de exorcizar o paganismo, isto é, toda a doutrina contrária à da religião católica, e firmar o valor da doutrina cristã. Entre os apologetas defensores da Igreja que viveram no século II da era cristã, pode-se contar com Justino, Taciano, Atenágoras, Marco Aurélio, Teófilo de Antioquia e Tertuliano de Cartago; Clemente e Orígenes, de Alexandria, viveram no século III e criaram a primeira escola catequética em sua cidade de origem, sendo mais suaves em sua oposição ao mundo pagão e mais construtivos doutrinariamente, procurando formular uma compreensão em que a fé e a razão pudessem se auxiliar mutuamente, no entendimento e no direcionamento da vida. Santo Agostinho é considerado o considerado o construtor da grande síntese filosófico-teológica da Igreja católica antiga. Ele meditou sobre as experiências vigentes em seu momento e em seu lugar.

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Santo Agostinho (354-430)

A vida de Santo Agostinho pode servir de paradigma27 ao que estava acontecendo em seu tempo. Nascido na África, mais precisamente na cidade de Tagaste, Numídia, Agostinho estudo em Cartago, onde entrou em contato com a filosofia greco-romana. Primeiro estudou Cícero, depois se tornou discípulo da filosofia maniqueísta28 por dez anos, até abandoná-la em 383, para, anos depois, descobrir o neoplatonismo29. Santo Agostinho converteu-se ao cristianismo em 386, com 32 anos. Isso que dizer que ele carregou dentro de si, assim como seu tempo, a filosofia e o cristianismo, procurando conciliar suas visões sobre o conhecimento de Deus e do homem. O ponto de partida da meditação filosófica de Agostinho é o homem, considerado sede de Deus, que mora no seu interior. À medida que o ser humano investiga a si mesmo, investiga Deus, pois que este reside nas profundidades do seu ser. Para ele, não há, então, como colocar o problema do homem sem pôr o problema de Deus. Já o mundo exterior só faz sentido nesse contexto do homem que tem Deus dentro de si. Ele tem uma fórmula que diz: “de fora para dentro e de dentro para Deus”, ou seja, o caminho é para o divino, tendo o ser humano como 27 Em termos filosóficos, paradigma é um “modelo” ou “exemplo” ideal. O uso desse conceito remete, portanto, à idéia de que os dois termos são semelhantes ou, no caso, que alguns aspectos do desenvolvimento de seu tempo ocorreram de forma parecida. 28 O maniqueísmo surgiu com o pensador persa Mani (215-376) e baseava-se na idéia de que o mundo é regido por dois princípios absolutos: o bem e o mal. Daí a expressão maniqueísta usada para definir pessoas que consideram tudo em seus opostos: ou uma coisa ou outra, sem meio-termo. 29 O neoplatonismo pode ser considerado como o último e supremo esforço do pensamento clássico para resolver o problema filosófico, que tinha encontrado um obstáculo intransponível no dualismo e racionalismo gregos – dualismo e racionalismo que nem sequer o gênio sintético e profundo de Aristóteles conseguiu superar.

mediador entre o mundo exterior e o divino, que mora dentro dele mesmo. A verdade, pois, está dentro de cada um; é preciso, pela meditação, pela conversa consigo mesmo (soliloquium), entrar em contato com a verdade. Agostinho acreditava, então, que o limite do homem era a medida de sua comunhão com Deus nesta vida terrestre. Segundo o pensador cristão, o mais próximo que as pessoas conseguem chegar de Deus será quando morrerem e forem para o céu. Se quisermos realmente conhecer Deus, teremos de esperar pelo fim de nossa vida, quando nossas almas poderão experimentar a realidade divina sem estar presas à realidade física. Essa visão põe as pessoas a certa distância de Deus e o faz parecer ainda mais perfeito e poderoso, enquanto faz as pessoas parecerem ainda mais fracas e pecadoras. Se as coisas não são como queremos, é por causa de nossa culpa. Eis o que Agostinho diz: “Mesmo assim, o fato de não podermos experimentar Deus plena e diretamente não significa que não devamos tentar compreender a verdade divina nesta vida.” Através destas palavras, percebe-se o quanto Agostinho estava preocupado com a relação entre Deus e a alma humana como uma chave para o entendimento da verdade divina. Santo Agostinho começou como cético, ou seja, não acreditava na unidade nem em muitas outras coisas. Ele lidou com seu ceticismo como o filósofo René Descartes faria séculos depois: voltou-se para dentro de si a fim de verificar se havia algo de que pudesse ter certeza. Concluiu que, mesmo que estivesse errado sobre todo o resto, poderia ter certeza de que Deus existia. Daí concluiu que a relação entre o eu interior e Deus era de suma importância. “Crer para compreender, compreender para crer”. Frase utilizada por Agostinho para demonstrar que a razão humana é limitada e necessita

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da ajuda (iluminação) divina, que se manifesta na forma de revelação pelas Sagradas Escrituras. Por outro lado, a razão auxilia a mente humana na compreensão da fé. No que se refere ao mundo, criado e contingente, Agostinho enfrenta o problema do mal. E esse era um dos grandes problemas que dificultavam a aceitação de agostinho em relação à idéia de divindade. Por que um criador divino e perfeito teria criado também o mal? O mal é visto do ponto de vista metafísico, o mal não existe, mas há apenas graus inferiores de seres se comparados a Deus; do ponto de vista moral, o mal nasce da vontade má que, em vez de se dirigir ao Sumo Bem, tende a bens inferiores; por fim, do ponto de vista físico, é uma conseqüência do pecado original, todavia, pode servir de purificação para a salvação. O homem é livre como um dom dado por Deus. Agostinho concebe, a partir de sua visão judaico-cristã, que o homem foi criado por Deus com dons sobrenaturais. O homem era livre e capaz de escolher entre o bem e o mal, com inclinação para escolher o bem. Para conservar esse bem, segundo Agostinho, Adão era ajudado pela graça divina; porém ele pecou e foi abandonado por Deus. Adão se corrompeu e, com ele, toda a humanidade; nele existia a natureza seminal (aquela que dá origem a todas as coisas por evolução). Assim, Adão perdeu a liberdade plena, restando-lhe a liberdade de escolha – o Livre-arbítrio. Em resumo, Agostinho foi responsável por uma espécie de sacralização de Platão, visto que admitiu que a alma, criada por Deus, habita o corpo e deve buscar sua perfeição, voltando-se para Deus, até atingir o estágio em que, auxiliado pela graça, possa exclusivamente escolher o bem. Aí, então, terá reencontrado Deus. Platão pensara na alma que retorna ao mundo das idéias perfeitas.

Aplicação em Sala! 01 (UEM/2008) – A Patrística foi a Filosofia Cristã dos primeiros séculos de nossa era. Consistia na elaboração doutrinal das crenças religiosas do cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e contra as heresias. Dado o encontro entre a nova religião e o pensamento filosófico greco-romano, o grande tema da Filosofia Patrística foi o da possibilidade ou impossibilidade de conciliar fé e razão. Santo Agostinho, expoente dessa filosofia, sobre a relação fé e razão, defendia a tese que se pode resumir nesta frase: “Credo ut intelligam” (Creio para entender). A esse respeito, assinale o que for correto. 01) Santo Agostinho retoma a célebre teoria platônica das Idéias à luz do cristianismo e formula a teoria da iluminação segundo a qual o homem recebe de Deus o conhecimento das verdades eternas: à semelhança do sol, Deus ilumina a razão e torna possível o pensar correto. 02) De acordo com Santo Agostinho, a razão é superior e precede a fé; pois, se o homem, ser racional, for incapaz de entender os ensinamentos religiosos, não poderá acreditar neles. 04) Segundo Santo Agostinho, a fé não conflita com a razão, esta última seria auxiliar da fé e estaria a ela subordinada. 08) Para Santo Agostinho, fé e razão são inconciliáveis, pois os mistérios da fé são insondáveis e manifestam-se como uma loucura para a razão humana. 16) A fé, para Santo Agostinho, não oprime a razão, mas, ao contrário, abre-lhe os olhos que a falta de fé mantinha fechados. A partir dos princípios da fé, a razão, por suas próprias forças, deduzirá conseqüências e tentará resolver os problemas que Deus deixou para nossas livres discussões.

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A ESCOLÁTICA

Até o século XIII, quando começa a formação das universidades, as escolas tinham por missão a transmissão dos ensinamentos religiosos. Só nos séculos XII e XIII formaram-se as primeiras universidades, com conseqüências notáveis, como a contribuição na formação de uma classe de intelectuais. Apesar de toda essa imagem de tempo de declínios, ou seja, da queda de Roma, da queda do comércio, da vida borbulhante nas cidades, enfim, a Idade Média, ou “idade das trevas”, também contou com uma vida cultural, que era exercida primordialmente por trás dos muros dos monastérios. Essa vida cultural, que podemos imaginar ligada ao cristianismo, incluía a atividade dos copistas, que eram monges dedicados a traduzir e a copiar textos antigos, o que garantiu a continuidade da existência dessas obras para a posteridade. A atividade dos copistas medievais foi, em parte, estimulada pelo ensinamento de São Bento (480-547), que idealizou a sentença: “ora et labora” (reza e trabalha). Sendo assim, enquanto as autoridades da Igreja procuravam em Platão sabedoria e discernimento, professores e acadêmicos das universidades voltavam-se para Aristóteles. E um exemplo clássico para ilustrar a efervescência intelectual dessa fase encontra-se na questão dos universais.

A questão dos universais

Pedro Abelardo foi o primeiro filósofo a discutir os universais. A grande questão a ser descoberta era: os universais têm existência real, independente das coisas que exibem? Por exemplo, o vermelho possui uma existência real fora de todas as coisas vermelhas? Para entendermos melhor, os

universais são conceitos aplicáveis a qualquer número de objetos particulares. Como resposta a essa questão podemos destacar três posições distintas: a primeira era o realismo, cujos pensadores acreditavam que os universais são reais e existem independentemente dos objetos particulares e das pessoas que pensam neles; a segunda era o nominalismo, que sustenta que os universais não passam de nomes que usamos para descrever objetos particulares; e a terceira era o conceitualismo, que corresponde à visão de que os universais existem como conceitos na mente.

Santo Tomás de Aquino “A filosofia tomista”

Tomás de Aquino (1225-1274) dedicou sua vida à religião e à educação. Estudou em Nápoles, Paris e Colônia, na atual Alemanha, e lecionou, dentre outras, na Universidade de Paris, em que se tornou doutor em teologia. Tomás é autor de diversas obras teológicas e, também, de comentários a livros bíblicos. Sua obra mais conhecida é Suma Teológica, na qual apresenta conceitos aristotélicos para comprovar a existência de Deus. Enquanto Agostinho sacralizou Platão, utilizando-se dos dados da revelação judaico-cristã, oficializada pela Igreja Católica, Tomás de Aquino, utilizando a mesma fonte religiosa, sacralizou Aristóteles. Mas ambos se opõem em seu modo de ver o mundo. Agostinho é mais coração, e Tomás mais razão, tanto é assim que, em Agostinho, importa “crer, para compreender” e, em Tomás, importa “entender, para crer”. Entre o fim do século IV e o século VIII, parece não ter havido um movimento significativo de produção cultural. É com o denominado “Renascimento Carolíngeo”, no século VIII, que há uma retomada construtiva da cultura. Muitos pensadores poderiam ser estudados nessa fase, como Erígena,

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Anselmo, Pedro Abelardo, Alberto Magno etc., porém, vamos nos ater a Tomás de Aquino, que foi o pensador de maior destaque da escolástica. A questão emergente enfrentada por Tomás foi a relação entre fé e razão. Esforçou-se para demonstrar que fé e razão não se opõem, pois que derivam de Deus; assim sendo, não haveria verdades discordantes entre dois níveis. Elas são distintas, mas integradas. A partir desse entendimento, colocou-se a filosofia, como pensamento racional, a serviço da teologia, que é uma forma de pensar a fé. Para Aquino, a filosofia deve oferecer uma compreensão racional das experiências da fé, de tal forma que a fé não pareça ser irracional. Caso haja discordância entre um argumento da teologia e um argumento da filosofia, esta última deve rever sua argumentação, desde que não possa contestar um argumento da fé, que é mais elevado que o da razão. Para Tomás de Aquino, razão e fé possuem domínios diferentes de tratamento; a filosofia trata das questões da verdade natural, a teologia trata da verdade sobrenatural; são verdades que não se contradizem, mas também não se confundem. A filosofia auxilia a compreensão da teologia e nela se inclui. E uma das demonstrações disso encontra-se em sua tentativa de provar a existência de Deus. Ao indagar-se sobre a existência de Deus, propôs, com seu estilo argumentativo, cinco vias (provas) da existência; “Respondo dizendo que a existência de Deus pode ser demonstrada por cinco vias:” “A primeira e mais evidente é a que toma por base o movimento. É certo, e está de acordo com a nossa experiência, que algo se move no mundo. Tudo que se move é movido por outra coisa, pois nada se move se não estiver em potência para aquilo para o que se move: porém, o que move deve estar em ato para aquilo que move, já que mover não é senão fazer algo passar de potencia para ato; ora, mas nada pode passar de potência para ato senão por meio de um ser que já está em

ato; por exemplo, o quente em ato, como o fogo, torna a madeira, que é quente em potência, em quente em ato, movendo-a e alterando-a. É impossível que a mesma coisa seja ao mesmo tempo em potência e em ato em relação ao mesmo, mas apenas em relação a diversas coisas: aquilo que é quente em ato não pode ser ao mesmo tempo quente em potência. É impossível que no mesmo sentido e do mesmo modo algo seja movente e movido, ou que se mova a si mesmo. Tudo que se move deve, portanto, ser movido por outra coisa. Mas, se aquilo pelo qual algo é movido também se move, é indispensável que seja movido por outra coisa, e assim sucessivamente. Se não houvesse um primeiro movente, cairíamos então em um processo indefinido ou, caso contrário, chegaríamos a algo que não seria movido, já que os segundos moventes só movem se forem movidos pelo primeiro movente, assim como a bengala nada move, se não for ela própria movida pela mão. Portanto, é necessário chegar a um primeiro movente que não seja movido por nenhum outro; e este todos entendem ser Deus. A segunda via baseia-se na causa eficiente. Encontramos nas coisas sensíveis (“materiais”) uma ordem de causas eficientes, já que nada pode ser causa eficiente de si mesmo, pois se assim o fosse existira antes de si mesmo, o que é impossível. Também não é possível proceder indefinidamente nas causas eficientes. Em todas as causas eficientes ordenadas, em primeiro lugar está a causa do que se encontra no meio, e o que está no meio é a causa do que está em último lugar, tanto se os intermediários forem muitos, quanto se for um só; tiradas as causas, tira-se o efeito; logo, se não for primeiro nas causas eficientes, não será nem em último, nem no meio. Se, porém, procedermos indefinidamente nas causas eficientes, não haverá primeira causa eficiente e, portanto, não haverá também nem efeito último nem causas intermediárias, o que é videntemente falso. Logo, é necessário admitir alguma causa eficiente primeira, à qual todos chamam Deus. A terceira via é baseada no possível e no necessário. Encontramos dentre as coisas algumas que podem ser ou não ser, já que encontramos algumas que são geradas e se corrompem, e por isso mesmo podem ser ou não ser. É impossível que todas essas coisas existam sempre, pois o que pode não ser alguma vez não é. Se todas as coisas podem não ser, alguma vez nada existiu. Se assim fosse na verdade, também agora nada existiria, pois o que não existe não começa a existir senão a partir de algo que existe; se, entretanto, nada existia, seria impossível que algo começasse a existir, e assim nada absolutamente existiria, o que é evidentemente falso. Portanto, nem todos os seres são possíveis,

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mas é indispensável que algum ser seja necessário. Todo o ser necessário ou tem a causa de sua necessidade como externa ou não. É impossível, porém, que procedamos indefinidamente em ralação aos seres necessários, que têm uma causa de sua necessidade, como também nas causas eficientes, da forma como provamos. Logo, é necessário admitir algo que seja necessário por si, não tendo fora dele a causa de sua necessidade, antes pelo contrário, que seja ele mesmo a causa da necessidade dos outros: a este ser todos chamam de Deus. A quarta via tem por base os graus que se encontram as coisas. Encontramos, com efeito, nas coisas, algo mais ou menos bom, verdadeiro, nobre, e assim por diante. O “mais” ou “menos” é dito acerca dos diversos seres conforme se aproximam de forma diferente daquilo que é o máximo, como o mais quente é aquilo que aproxima do quentíssimo. Existe algo que é verdadeiríssimo, ótimo, mobilíssimo e, por conseguinte, o ser máximo, pois as coisas que são verdadeiras ao máximo são os maiores seres, como é dito no livro II da Metafísica (de Aristóteles). O que é máximo em algum gênero é causa de tudo o que é daquele gênero, como o fogo, que é o máximo do quente, é a causa de todos os quentes, como é dito no mesmo livro. Logo, existe algo que é a causa da existência de todos os seres, e da bondade e de qualquer perfeição, e a este chamamos Deus. A quinta via é derivada do governo das coisas. Vemos que as coisas que não têm inteligência, como, por exemplo, os corpos naturais agem para uma finalidade (objetivo), o que se mostra pelo fato de sempre ou frequentemente agirem da mesma forma, para conseguirem o máximo, donde se segue que não é por acaso, mas intencionalmente, que atingem seu objetivo. As coisas, entretanto, que não têm inteligência só podem procurar um objetivo se dirigidas por alguém que conhece e é inteligente, como a flecha dirigida pelo arqueiro. Logo, existe algum ser inteligente que ordena todas as coisas que ordena todas as coisas da natureza para seu correspondente objetivo: a este ser chamamos Deus”. (MARCONDES, D. Textos Básicos de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 69-71.)

Aplicação em Sala! 01 (UEM/2008) – A Filosofia Medieval a partir do século IX é chamada escolástica. Ensinada nas escolas ou nas universidades próximas das catedrais, a filosofia escolástica tinha por problema fundamental levar o homem a compreender a verdade revelada pelo

exercício da razão, todavia apoiado na autoridade (Auctoritas), seja da Bíblia, seja de um padre da Igreja, seja de um sistema de filosofia pagã. Sobre a escolástica, assinale o que for correto. 01) O pensamento platônico, ou mais exatamente o neoplatonismo de Plotino, porque mais facilmente conciliável com as doutrinas cristãs, foi a única filosofia pagã aceita durante toda a escolástica. 02) A fermentação intelectual e o interesse pelo racional na escolástica evidenciam-se pela criação de universidades por toda a Europa; o método de exposição das idéias filosóficas nessas escolas era a disputa: uma tese era colocada e passava-se a refutála ou a defendê-la com argumentos retirados de alguma autoridade. 04) Representante do pensamento político da escolástica, o cardeal Martin Heidegger trata, em sua obra Ser e Tempo, do problema da subordinação do poder temporal dos reis e dos nobres ao poder espiritual do Papa e da Igreja. 08) Um tema recorrente na filosofia escolástica foi a demonstração racional da existência de Deus. Santo Anselmo (1034-1109) formula a prova tradicionalmente chamada argumento ontológico, no qual deduz a existência de Deus da própria idéia de perfeição de Deus. 16) O apogeu da escolástica acontece no século XIII com Santo Tomás de Aquino (1225-1274), que, retomando o pensamento de Aristóteles, fez a síntese mais fecunda da filosofia com o cristianismo na Filosofia Medieval.

REFERÊNCIAS: 1 - Referência Básica REALE. G. & ANTISERI. D. História da Filosofia. Tradução de Ivo Stomiolo. São Paulo, SP: Editora Paulus, 2005, 8 vols 2 - Referência Complementar ARANHA. M. & MARTINS. M. Filosofando. – São Paulo, SP: Editora Moderna, 2008, 3 edição. CHAUÍ. M. Convite à Filosofia. – São Paulo: Editora Ática, 2005, 13 edição.

COTRIM. G. Fundamentos da Filosofia: Histórias e grandes temas. – São Paulo,

Editora Saraiva, 2006, 16 edição.