45
Apostila de Literatura Material complementar Prof. Fabrício César

Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

  • Upload
    lenhu

  • View
    225

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

Apostila de Literatura Material complementar

Prof. Fabrício César

Page 2: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

2

Literatura – Prof. Fabrício César

Análise de textos do Gênero Lírico

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é,

Sentir, sinta quem lê!

Fernando Pessoa

O cravo brigou com a rosa

O cravo brigou co’a rosa,

Debaixo de uma sacada,

O cravo saiu ferido,

E a rosa despedaçada.

O cravo ficou doente,

A rosa foi visitar,

O cravo teve um desmaio,

E a rosa pôs-se a chorar.

A rosa fez serenata

O cravo foi espiar

E as flores fizeram festa

Porque eles vão se casar.

Cantiga popular

A Árvore da Serra

- As árvores, meu filho, não têm alma!

E esta árvore me serve de empecilho...

É preciso cortá-la, pois, meu filho,

Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!

Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!

Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...

Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:

"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"

E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,

O moço triste se abraçou com o tronco

E nunca mais se levantou da terra!

Augusto dos Anjos

Contrabando

Os alfandegueiros de Santos

Examinaram minhas malas

Minhas roupas

Mas se esqueceram de ver

Que eu trazia no coração

Uma saudade feliz

De Paris.

Oswald de Andrade

Na poça da rua

O vira-lata

Lambe a Lua.

Millôr Fernandes

Amar é um elo

Entre o azul

E o amarelo

Paulo Leminski

Os grilos cantam apenas

do meu lado esquerdo

estou ficando velho.

Paulo Franchetti

Page 3: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

3

Literatura – Prof. Fabrício César

Cantigas trovadorescas

Cantigas de Amor

Cantiga da Ribeirinha

No mundo non me sei parelha,

mentre me for como me vai,

ca ja moiro por vós e ai!

mia senhor branca e vermelha,

queredes que vós retraia

quando vos eu vi en saia.

Mao día me levantei,

que vos entón non vi fea!

E, mia senhor, des aquelha

me foi a mí mui mal di'ai!,

E vós, filha de don Paai

Moniz, e ben vos semelha

d'haver eu por vós guarvaia,

pois eu, mia senhor, d'alfaia

nunca de vós houve nen hei

valía d’ua correa.

Paio Soares de Taveirós

Tradução da Cantiga da Ribeirinha

No mundo ninguém se assemelha a mim

enquanto a minha continuar como vai,

porque morro por vós, e ai!

minha senhora, de pele branca e faces rosadas,

quereis que vos retrate quando vos vi sem manto.

Maldito dia que me levantei

que não vos vi feia!

E, minha senhora, desde aquele dia, ai!

Tudo me foi muito mal,

e vós, filha de bom Pai

Moniz, e bem vos parece

de ter eu por vós guarvaia,

pois eu, minha senhora, como mimo

de vós nunca recebi algo,

mesmo sem valor.

Senhora minha, desde que vos vi,

lutei para ocultar esta paixão

que me tomou inteiro o coração;

mas não o posso mais e decidi

que saibam todos o meu grande amor,

a tristeza que tenho, a imensa dor

que sofro desde o dia em que vos vi.

Afonso Fernandes

Ai Deus, que grave coita de sofrer!

Desejar mort'e haver a viver

com'hoj'eu viv', e mui sen meu prazer.

Con esta coita que me ven tanta,

desejo mort'e quería morrer,

porque se foi a Raínha franca!

[...]

Ai coitado, con quanto mal me ven,

porque desejo mia morte, por én

perdí o dormir e perdí o sén,

e choro sempre quand'outren canta,

e máis desejo morte doutra ren,

porque se foi a Raínha franca!

Pero Garcia Burgalês

Cantigas de Amigo

- Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo!

Ai Deus, e u é?

Ai, flores, ai flores do verde ramo,

se sabedes novas do meu amado!

Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,

aquel que mentiu do que pos comigo!

Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado

aquel que mentiu do que mi há jurado!

Ai Deus, e u é?

-Vós me preguntades polo voss'amigo,

e eu ben vos digo que é san'e vivo.

Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,

e eu ben vos digo que é viv'e sano.

Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san'e vivo

e seerá vosc'ant'o prazo saído.

Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv'e sano

e seerá vosc'ant'o prazo passado.

Ai Deus, e u é?

Dom Dinis

Page 4: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

4

Literatura – Prof. Fabrício César

Cantigas de escárnio

Ai, dona fea, fostes-vos queixar

que vos nunca louv’en meu trobar

mais ora quero fazer un cantar

em que vos loarei toda via

e vedes como vos quero loar

dona fea, velha e sandia!

Dona fea! se Deus me perdon!

e pois havedes tan gran coraçon

que vos eu loe, en esta razon,

vos quero já loar toda via;

e vedes qual será a loaçan:

dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei

em meu trobar, pero muito trobei;

mais ora ja un bon cantar farei

en que vos loarei toda via;

e direi-vos como vos loarei:

dona fea, velha e sandia!

Juan Garcia de Guilhade

Roi Queimado morreu con amor

en seus cantares, par Sancta Maria,

por ũa dona que gran ben queria:

e, por se meter por mais trobador,

porque lhe ela non quis ben fazer,

feze-s'el en seus cantares morrer,

mais resurgiu depois ao tercer dia!

Esto fez el por ũa senhor

que quer gran ben, e mais vos en diria:

por que cuida que faz i maestria,

e nos cantares que faz, a sabor

de morrer i e des i d'ar viver;

esto faz el que x'o pode fazer,

mais outr'omem per ren' nono faria.

E non á já de sa morte pavor,

senon sa morte mais la temeria,

mais sabe ben, per sa sabedoria,

que viverá, des quando morto for,

e faz-[s'] en seu cantar morte prender,

des i ar vive: vedes que poder

que lhi Deus deu, mais que non cuidaria.

E, se mi Deus a mim desse poder

qual oj'el á, pois morrer, de viver,

já mais morte nunca temeria.

Pero Garcia

Cantigas de maldizer

Martim jogral, que defeita,

sempre convosco se deita

vossa mulher!

Vedes-me andar suspirando;

e vós deitado, gozando

vossa mulher!

Do meu mal não vos doeis;

morro eu e vós fodeis

vossa mulher!

Juan Garcia de Guilhade

Ben me cuidei eu, María García,

en outro dia, quando vos fodi,

que me non partiss'eu de vós assi

como me parti já, mão vazia,

vel por serviço muito que vos fiz;

que me non deste, como x'omen diz,

sequer un soldo que ceass' un dia.

Mais desta seerei eu escarmentado

de nunca foder ja outra tal molher,

se m'ant'algo na mão non poser,

ca non hei por que foda endoado;

e vós, se assí queredes foder,

sabedes como: ide-o fazer

con quen teverdes vistid'e calçado.

Ca me non vistides nen me calçades

nen ar sej'eu eno vosso casal,

nen havedes sobre min poder tal

por que vos foda, se me non pagades;

ante mui ben e mais vos en direi:

nulho medo, grad’a Deus e a el-Rei,

non hei de força que me vós façades.

E, mia dona, quen pregunta non erra;

e vós, por Deus, mandade preguntar

polos naturaes deste logar

se foderan nunca en paz nen en guerra,

ergo se foi por alg'ou por amor.

Id'adubar vossa prol, ai, senhor,

c'havedes, grad'a Deus, renda na terra.

Afonso Eanes do Coton

Page 5: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

5

Literatura – Prof. Fabrício César

Classicismo Português - Camões

Camões épico

Segue abaixo um trecho do Canto II, da obra “Os

Lusíadas”, no qual a deusa Vênus implora a

Júpiter que ajude os Portugueses, visando

protegê-los:

―Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso

Que, pera as cousas que eu do peito amasse,

Te achasse brando, afabil e amoroso,

Posto que a algum contrairo lhe pesasse;

Mas, pois que contra mi te vejo iroso,

Sem que to merecesse nem te errasse,

Faça-se como Baco determina;

Assentarei, enfim, que fui mofina.

Este povo, que é meu, por quem derramo

As lágrimas que em vão caídas vejo,

Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,

Sendo tu tanto contar meu desejo,

Por ele a ti rogando, choro e bramo,

E contra minha dita, enfim, pelejo,

Ora pois, porque o amo, é mas tratado,

Quero-lhe querer mal: será guardado.‖ (Os Lusíadas. Canto II - Estrofes 39 e 40)

Camões lírico

Medida nova

Soneto

Busque Amor novas artes, novo engenho

Para matar-me, e novas esquivanças,

Que não pode tirar-me as esperanças,

Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!

Vede que perigosas seguranças!

Que não temo contrastes nem mudanças,

Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto

Onde esperança falta, lá me esconde

Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde,

Vem não sei como, e dói não sei por quê.

Soneto

Amor é um fogo que arde sem se ver;

é ferida que dói e não se sente;

é um contentamento descontente;

é dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Ainda que eu falasse línguas,

as dos homens e dos anjos,

se eu não tivesse o amor,

seria como sino ruidoso

ou como címbalo estridente.

[...]

se eu não tivesse o amor,

eu não seria nada.

Apóstolo Paulo (I Coríntios 13: 01-02)

Medida velha

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar

No mundo graves tormentos;

E pera mais me espantar,

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

O bem tão mal ordenado,

Fui mau, mas fui castigado.

Assim que só para mim

Anda o Mundo concertado.

Page 6: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

6

Literatura – Prof. Fabrício César

Quinhentismo

Trechos selecionados da Carta de Pero Vaz de

Caminha:

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma

que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos

traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos

sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que

pousassem os arcos. E eles os pousaram.

[...]

A feição deles é serem pardos, maneira de

avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-

feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem

estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas;

e nisso têm tanta inocência como em mostrar o

rosto.

[...]

O Capitão, quando eles vieram, estava

sentado em uma cadeira, bem vestido, com um

colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés

uma alcatifa por estrado. [...] Entraram. Mas não

fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão

nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no

colar do Capitão, e começou de acenar com a mão

para a terra e depois para o colar, como que nos

dizendo que ali havia ouro. Também olhou para

um castiçal de prata e assim mesmo acenava para

a terra e novamente para o castiçal como se lá

também houvesse prata.

[...]

Ali andavam entre eles três ou quatro

moças, bem moças e bem gentis, com cabelos

muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas

vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas

das cabeleiras que, de as muito bem olharmos,

não tínhamos nenhuma vergonha.

[...]

E uma daquelas moças era toda tingida, de

baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-

feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não

tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da

nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera

vergonha, por não terem a sua como ela.

[...]

Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta

aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e

setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas

também compridas e os ferros delas de canas

aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns

que – eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.

[...]

Andavam já mais mansos e seguros entre

nós, do que nós andávamos entre eles.

[...]

Parece-me gente de tal inocência que, se

homem os entendesse e eles a nós, seriam logo

cristãos, porque eles, segundo parece, não têm,

nem entendem em nenhuma crença.

[...]

Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja

acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua

salvação. E prazerá a Deus que com pouco

trabalho seja assim.

[...]

Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou

oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se

foram meter debaixo dela, para nos ajudar.

[...]

E quando veio ao Evangelho, que nos

erguemos todos em pé, com as mãos levantadas,

eles se levantaram conosco e alçaram as mãos,

ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-

se a assentar como nós. E quando levantaram a

Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se

puseram assim todos, como nós estávamos com as

mãos levantadas, e em tal maneira sossegados,

que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita

devoção.

[...]

Porém a terra em si é de muito bons ares,

assim frios e temperados como os de Entre Douro

e Minho, porque neste tempo de agora os

achávamos como os de lá.

Águas são muitas; infindas. E em tal

maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,

dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

[...]

Porém o melhor fruto, que nela se pode

fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta

deve ser a principal semente que Vossa Alteza em

ela deve lançar.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa

Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum

pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo

que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr

pelo miúdo.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera

Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de

1500.

Pero Vaz de Caminha

Page 7: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

7

Literatura – Prof. Fabrício César

Barroco

Gregório de Matos

Poesia Satírica:

Soneto

A um nobre que insistentes vezes lhe pedia um

soneto e de quem o poeta nada tinha a dizer.

Um soneto começo em vosso gabo;

Contemos esta regra por primeira,

Já lá vão duas, e esta é a terceira,

Já este quartetinho está no cabo.

Na quinta torce agora a porca o rabo:

A sexta vá também desta maneira,

na sétima entro já com grã canseira,

E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?

Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,

Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.

Nesta vida um soneto já ditei,

Se desta agora escapo, nunca mais;

Louvado seja Deus, que o acabei.

Soneto

Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:

Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:

Com sua língua ao nobre o vil decepa:

O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:

Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;

Quem menos falar pode, mais increpa:

Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa;

Bengala hoje na mão, ontem garlopa:

Mais isento se mostra, o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazio a tripa,

E mais não digo, porque a Musa topa

Em apa, epa, ipa, opa, upa.

Aos vícios (fragmentos)

Eu sou aquele que os passados anos

Cantei na minha lira maldizente

Torpezas do Brasil, vícios e enganos.

E bem que os descantei bastantemente,

Canto segunda vez na mesma lira

O mesmo assunto em pletro diferente.

[...]

De que pode servir calar quem cala?

Nunca se há de falar o que se sente?!

Sempre se há de sentir o que se fala.

Qual homem pode haver tão paciente,

Que, vendo o triste estado da Bahia,

Não chore, não suspire e não lamente?

[...]

E quando vê talvez na doce treva

Louvado o bem, e o mal vituperado,

A tudo faz focinho, e nada aprova.

Diz logo prudentaço e repousado:

__ Fulano é um satírico, é um louco,

De língua má, de coração danado.

[...]

Se souberas falar, também falaras,

Também satirizaras, se souberas,

E se foras poeta, poetizaras.

A ignorância dos homens destas eras

Sisudos faz ser uns, outros prudentes,

Que a mudez canoniza bestas feras.

Há bons, por não poder ser insolentes,

Outros há comedidos de medrosos,

Não mordem outros não - por não ter dentes.

Quantos há que os telhados têm vidrosos,

E deixam de atirar sua pedrada,

De sua mesma telha receosos?

[...]

Todos somos ruins, todos perversos,

Só os distingue o vício e a virtude,

De que uns são comensais, outros adversos.

Quem maior a tiver, do que eu ter pude,

Esse só me censure, esse me note,

Calem-se os mais, chiton, e haja saúde.

Page 8: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

8

Literatura – Prof. Fabrício César

Poesia Lírica-Religiosa:

Soneto

A Cristo S. N. crucificado estando o poeta na

última hora de sua vida

Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,

Em cuja lei protesto de viver,

Em cuja santa lei hei de morrer

Animoso, constante, firme e inteiro:

Neste lance, por ser o derradeiro,

Pois vejo a minha vida anoitecer,

É meu Jesus, a hora de se ver

A brandura de um Pai, manso Cordeiro.

Mui grande é vosso amor e meu delito:

Porém, pode ter fim todo o pecar,

E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,

Que, por mais que pequei, neste conflito

Espero em vosso amor de me salvar.

Soneto

A Jesus Cristo Nosso Senhor

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,

Da vossa piedade me despido,

Porque quanto mais tenho delinqüido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,

A abrandar-vos sobeja um só gemido,

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada

Glória tal, e prazer tão repentino

vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada

Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Poesia Lírica-Amorosa:

Soneto

Rompe o poeta com a Primeira Impaciência

querendo declarar-se e temendo perder por

ousado.

Anjo no nome, Angélica na cara,

Isso é ser flor, e Anjo juntamente,

Ser Angélica flor, e Anjo florente,

Em quem, senão em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que não a cortara

De verde pé, de rama florescente?

E quem um Anjo vira tão luzente,

Que por seu Deus, o não idolatra?

Se como Anjo sois dos meus altares,

Fôreis o meu custódio, e minha guarda,

Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,

Posto que os Anjos nunca dão pesares,

Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

Soneto

Retrata o poeta as perfeições de sua senhora a

imitação de outro soneto que fez Felipe IV a uma

dama traduzindo-o na língua portuguesa.

Se há ver-vos, quem há de retratar-vos,

E é forçoso cegar, quem chega a ver-vos,

Sem agravar meus olhos, e ofender-vos,

Não há de ser possível copiar-vos.

Com neve, e rosas quis assemelhar-vos

Mas fora honrar as flores, e abater-vos:

Dois zéfiros por olhos quis fazer-vos,

Mas quando sonham eles de imitar-vos?

Vendo, que a impossíveis me aparelho,

Desconfiei da minha tinta imprópria,

E a obra encomendei a osso espelho.

Porque nele com Luz, e cor mais própria

Sereis (se não me engana o meu conselho)

Pintor, Pintura, Original, e Cópia

Page 9: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

9

Literatura – Prof. Fabrício César

Arcadismo

Cláudio Manuel da Costa

Soneto

Quem deixa o trato pastoril amado

Pela ingrata, civil correspondência,

Ou desconhece o rosto da violência,

Ou do retiro a paz não tem provado.

Que bem é ver nos campos transladado

No gênio do pastor, o da inocência!

E que mal é no trato, e na aparência

Ver sempre o cortesão dissimulado!

Ali respira amor sinceridade;

Aqui sempre a traição seu rosto encobre;

Um só trata a mentira, outro a verdade.

Ali não há fortuna, que soçobre;

Aqui quanto se observa, é variedade:

Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!

Soneto

Torno a ver-nos, ó montes; o destino

Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;

Onde um tempo os gabões deixei grosseiros

Pelo traje da Corte rico e fino.

Aqui estou entre Almendro, entre Corino,

Os meus fiéis, meus doces companheiros,

Vendo correr os míseros vaqueiros

Atrás de seu cansado desatino.

Se o bem desta choupana pode tanto,

Que chega a ter mais preço, e mais valia,

Que da cidade o lisonjeiro encanto;

Aqui descanse a louca fantasia;

E o que té agora se tornava em pranto,

Se converta em afetos de alegria

Soneto

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,

Em meus versos teu nome celebrado;

Por que vejas uma hora despertado

O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,

Fresco assento de um álamo copado;

Não vês ninfa cantar, pastar o gado

Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias

Nas porções do riquíssimo tesouro

O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planeta louro

Enriquecendo o influxo em tuas veias,

Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.

Vila Rica

Canto X

[...]

Vê-se o outro mineiro, que se ocupa

Em penetrar por mina o duro monte

Ao rumo oblíquo, ou reto; tem defronte

Da gruta, que abre, a terra que extraíra;

Os lagrimais das águas que retira

Ao tanque artificioso logo solta;

Trazida a terra entre a corrente envolta,

Baixa as grades de ferro; ali parados,

Os grossos esmeris são depurados,

Deixando ao dono em prêmio da fadiga

Os bons tesouros da fortuna amiga.

Por entre a pedra est’outro vai buscando

As betas de ouro; aquele vai trepando

Pelo escabroso monte, e as águas guia

Pelos canais, que lhe abre a pedra fria.

Não menos mostra o gênio a agricultura

Tão rara do país, aonde a dura

Força dos bois não geme ao grave arado;

Só do bom lavrador o braço armado

Derriba os matos, e se ateia logo

Sobre a seca matéria o ardente fogo.

[...]

Soneto

Estes os olhos são da minha amada:

Que belos, que gentis, e que formosos!

Não são para os mortais tão preciosos

Os doces frutos da estação dourada.

Por eles a alegria derramada,

Tornam-se os campos de prazer gostosos;

Em zéfiros suaves, e mimosos

Toda esta região se vê banhada;

Page 10: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

10

Literatura – Prof. Fabrício César

Vinde, olhos belos, vinde; e enfim trazendo

Do rosto de meu bem as prendas belas,

Dai alívios ao mal, que estou gemendo:

Mas ah delírio meu, que me atropelas!

Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo,

Eram (quem crera tal!) duas estrelas.

Soneto

Não vês, Nise, brincar esse menino

Com aquela avezinha? Estende o braço;

Deixa-a fugir; mas apertando o laço,

A condena outra vez ao seu destino?

Nessa mesma figura, eu imagino,

Tens minha liberdade; pois ao passo,

Que cuido, que estou livre do embaraço,

Então me prende mais meu desatino.

Em um contínuo giro o pensamento

Tanto a precipitar-me se encaminha,

Que não vejo onde pare o meu tormento.

Mas fora menos mal esta ânsia minha,

Se me faltasse a mim o entendimento,

Como falta a razão a esta avezinha.

Soneto

Não vês, Nise, este vento desabrido,

Que arranca os duros troncos? Não vês esta,

Que vem cobrindo o céu, sombra funesta,

Entre o horror de um relâmpago incendido?

Não vês a cada instante o ar partido

Dessas linhas de fogo? Tudo cresta,

Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,

O raio a cada instante despedido.

Ah! não temas o estrago, que ameaça

A tormenta fatal; que o Céu destina

Vejas mais feia, mais cruel desgraça:

Rasga o meu peito, já que és tão ferina;

Verás a tempestade, que em mim passa;

Conhecerás então, o que é ruína.

Tomás Antônio Gonzaga

Marília de Dirceu – (parte I)

Lira I

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,

Que viva de guardar alheio gado;

De tosco trato, d’ expressões grosseiro,

Dos frios gelos, e dos sóis queimado.

Tenho próprio casal, e nele assisto;

Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;

Das brancas ovelhinhas tiro o leite,

E mais as finas lãs, de que me visto.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte,

Dos anos inda não está cortado:

Os pastores, que habitam este monte,

Respeitam o poder do meu cajado.

Com tal destreza toco a sanfoninha,

Que inveja até me tem o próprio Alceste:

Ao som dela concerto a voz celeste;

Nem canto letra, que não seja minha,

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Mas tendo tantos dotes da ventura,

Só apreço lhes dou, gentil Pastora,

Depois que teu afeto me segura,

Que queres do que tenho ser senhora.

É bom, minha Marília, é bom ser dono

De um rebanho, que cubra monte, e prado;

Porém, gentil Pastora, o teu agrado

Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,

A quem a luz do Sol em vão se atreve:

Papoula, ou rosa delicada, e fina,

Te cobre as faces, que são cor de neve.

Os teus cabelos são uns fios d’ouro;

Teu lindo corpo bálsamos vapora.

Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,

Para glória de Amor igual tesouro.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Page 11: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

11

Literatura – Prof. Fabrício César

Leve-me a sementeira muito embora

O rio sobre os campos levantado:

Acabe, acabe a peste matadora,

Sem deixar uma rês, o nédio gado.

Já destes bens, Marília, não preciso:

Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;

Para viver feliz, Marília, basta

Que os olhos movas, e me dês um riso.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Irás a divertir-te na floresta,

Sustentada, Marília, no meu braço;

Ali descansarei a quente sesta,

Dormindo um leve sono em teu regaço:

Enquanto a luta jogam os Pastores,

E emparelhados correm nas campinas,

Toucarei teus cabelos de boninas,

Nos troncos gravarei os teus louvores.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Depois de nos ferir a mão da morte,

Ou seja neste monte, ou noutra serra,

Nossos corpos terão, terão a sorte

De consumir os dois a mesma terra.

Na campa, rodeada de ciprestes,

Lerão estas palavras os Pastores:

―Quem quiser ser feliz nos seus amores,

Siga os exemplos, que nos deram estes.‖

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Lira II

Pintam, Marília, os poetas

A um menino vendado,

Com uma aljava de setas,

Arco empunhado na mão;

Ligeiras asas nos ombros,

O tenro corpo despido,

E de Amor ou de Cupido

São os nomes que lhe dão.

Porém eu, Marília, nego,

Que assim seja Amor, pois ele

Nem é moço nem é cego,

Nem setas nem asas tem.

Ora pois, eu vou formar-lhe

Um retrato mais perfeito,

Que ele já feriu meu peito:

Por isso o conheço bem.

Os seus compridos cabelos,

Que sobre as costas ondeiam,

São que os de Apolo mais belos,

Mas de loura cor não são.

Têm a cor da negra noite;

E com o branco do rosto

Fazem, Marília, um composto

Da mais formosa união.

Tem redonda e lisa testa,

Arqueadas sobrancelhas,

A voz meiga, a vista honesta,

E seus olhos são uns sóis.

Aqui vence Amor ao céu:

Que no dia luminoso

O céu tem um sol formoso,

E o travesso Amor tem dois.

[...]

Tu, Marília, agora vendo

De Amor o lindo retrato,

Contigo estarás dizendo

Que é este o retrato teu.

Sim, Marília, a cópia é tua,

Que Cupido é deus suposto:

Se há Cupido, é só teu rosto,

Que ele foi quem me venceu.

Lira XXX

Junto a uma clara fonte

A mãe de Amor se sentou;

Encostou na mão o rosto,

No leve sono pegou.

Cupido, que a viu de longe,

Contente ao lugar correu;

Cuidando que era Marília,

Na face um beijo lhe deu.

Acorda Vênus irada:

Amor a conhece; e então,

Da ousadia que teve

Assim lhe pede o perdão:

―Foi fácil, ó mãe formosa,

Foi fácil o engano meu;

Que o semblante de Marília

É todo o semblante teu.‖

Page 12: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

12

Literatura – Prof. Fabrício César

Lira XIV

Minha bela Marília, tudo passa;

A sorte deste mundo é mal segura;

Se vem depois dos males a ventura,

Vem depois dos prazeres a desgraça.

Estão os mesmos deuses

Sujeitos ao poder do ímpio Fado:

Apolo já fugiu do céu brilhante,

Já foi pastor de gado.

[...]

Ornemos nossas testas com as flores,

E façamos de feno um brando leito;

Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,

Gozemos do prazer de sãos Amores.

Sobre as nossas cabeças,

Sem que o possam deter, o tempo corre;

E para nós o tempo que se passa

Também, Marília, morre.

Com os anos, Marília, o gosto falta,

E se entorpece o corpo já cansado:

Triste o velho cordeiro está deitado,

E o leve filho, sempre alegre, salta.

A mesma formosura

É dote que só goza a mocidade:

Rugam-se as faces, o cabelo alveja,

Mal chega a longa idade.

Que havemos de esperar, Marília bela?

Que vão passando os florescentes dias?

As glórias que vêm tarde, já vêm frias,

E pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.

Ah! Não, minha Marília,

Aproveite-se o tempo, antes que faça

O estrago de roubar ao corpo as forças

E ao semblante a graça!

Marília de Dirceu – (parte II)

Lira XV

Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,

fui honrado Pastor da tua Aldeia;

vestia finas lãs e tinha sempre

a minha choça do preciso cheia.

Tiraram-me o casal e o manso gado,

nem tenho, a que me encoste, um só cajado.

Para ter que te dar, é que eu queria

de mor rebanho ainda ser o dono;

prezava o teu semblante, os teus cabelos

ainda muito mais que um grande Trono.

Agora que te oferte já não vejo,

além de um puro amor, de um são desejo.

Se o rio levantado me causava,

Levando a sementeira, prejuízo,

Eu alegre ficava apenas via

Na tua breve boca um ar de riso.

Tudo agora perdi; nem tenho o gosto

De ver-te ao menos compassivo rosto.

Propunha-me dormir no teu regaço

as quentes horas da comprida sesta,

escrever teus louvores nos olmeiros,

toucar-te de papoilas na floresta.

Julgou o justo Céu que não convinha

que a tanto grau subisse a glória minha.

Ah! minha bela, se a fortuna volta,

se o bem, que já perdi, alcanço e provo,

por essas brancas mãos, por essas faces

te juro renascer um homem novo,

romper a nuvem que os meus olhos cerra,

amar no céu a Jove e a ti na terra!

Fiadas comprarei as ovelhinhas,

que pagarei dos poucos do meu ganho;

e dentro em pouco tempo nos veremos

senhores outra vez de um bom rebanho.

Para o contágio lhe não dar, sobeja

que as afague Marília, ou só que as veja.

Se não tivermos lãs e peles finas,

podem mui bem cobrir as carnes nossas

as peles dos cordeiros mal curtidas,

e os panos feitos com as lãs mais grossas.

Mas ao menos será o teu vestido

por mãos de amor, por minhas mãos cosido.

Nós iremos pescar na quente sesta

com canas e com cestos os peixinhos;

nós iremos caçar nas manhãs frias

com a vara enviscada os passarinhos.

Para nos divertir faremos quanto

reputa o varão sábio, honesto e santo.

Nas noites de serão nos sentaremos

c'os filhos, se os tivermos, à fogueira:

entre as falsas histórias, que contares,

lhes contarás a minha, verdadeira:

Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,

ainda o rosto banharei de pranto.

Page 13: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

13

Literatura – Prof. Fabrício César

Quando passarmos juntos pela rua,

nos mostrarão c'o dedo os mais Pastores,

dizendo uns para os outros: — Olha os nossos

exemplos da desgraça e sãos amores.

Contentes viveremos desta sorte,

até que chegue a um dos dois a morte.

Marília de Dirceu – (parte III)

Soneto III

Enganei-me, enganei-me – paciência!

Acreditei às vezes, cri, Ormia,

Que a tua singeleza igualaria

A tua mais que angélica aparência.

Enganei-me, enganei-me – paciência!

Ao menos conheci que não devia

Pôr nas mãos de uma externa galhardia

O prazer, o sossego e a inocência.

Enganei-me, cruel, com teu semblante,

E nada me admiro de faltares,

Que esse teu sexo nunca foi constante.

Mas tu perdeste mais em me enganares:

Que tu não acharás um firme amante,

E eu posso de traidoras ter milhares.

Soneto X

Adeus, cabana, adeus; adeus, ó gado;

Albina ingrata, adeus, em paz te deixo;

Adeus, doce rabil; neste alto freixo

Te fica, ao meu destino consagrado.

Se te for meu sucesso perguntado,

não declares, rabil, de quem me queixo;

não quero que se saiba vive Aleixo

por causa de uma infame desterrado.

Se vires a pastor desconhecido,

lhe dize então piedoso: "Ah! vai-te embora,

atalha os danos que outros têm sentido.

Habita nesta aldeia uma pastora,

de rosto belo, coração fingido,

umas vezes cruel, e as mais traidora."

Romantismo

Gonçalves Dias

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas tem mais flores,

Nossos bosques tem mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar - sozinho, à noite -

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu'inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá. Coimbra - 1843.

Se se morre de amor

Se se morre de amor! — Não, não se morre,

Quando é fascinação que nos surpreende

De ruidoso sarau entre os festejos;

Quando luzes, calor, orquestra e flores

Assomos de prazer nos raiam n'alma,

Que embelezada e solta em tal ambiente

No que ouve, e no que vê prazer alcança!

Simpáticas feições, cintura breve,

Graciosa postura, porte airoso,

Uma fita, uma flor entre os cabelos,

Um quê mal definido, acaso podem

Num engano d'amor arrebatar-nos.

Mas isso amor não é; isso é delírio,

Page 14: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

14

Literatura – Prof. Fabrício César

Devaneio, ilusão, que se esvaece

Ao som final da orquestra, ao derradeiro

Clarão, que as luzes no morrer despedem:

Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,

D'amor igual ninguém sucumbe à perda.

Amor é vida; é ter constantemente

Alma, sentidos, coração — abertos

Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos,

D'altas virtudes, té capaz de crimes!

[...]

É ter o coração em riso e festa;

E à branda festa, ao riso da nossa alma

Fontes de pranto intercalar sem custo;

Conhecer o prazer e a desventura

No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto

O ditoso, o misérrimo dos entes;

Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, e não saber, não ter coragem

Para dizer que amor que em nós sentimos;

[...]

Sentir, sem que se veja, a quem se adora,

Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,

Segui-la, sem poder fitar seus olhos,

Amá-la, sem ousar dizer que amamos,

E, temendo roçar os seus vestidos,

Arder por afogá-la em mil abraços:

Isso é amor, e desse amor se morre!

Se tal paixão porém enfim transborda,

Se tem na terra o galardão devido

Em recíproco afeto; e unidas, uma,

Dois seres, duas vidas se procuram,

Entendem-se, confundem-se e penetram

Juntas — em puro céu d'êxtases puros:

Se logo a mão do fado as torna estranhas,

Se os duplica e separa, quando unidos

A mesma vida circulava em ambos;

Que será do que fica, e do que longe

Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?

Pode o raio num píncaro caindo,

Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;

Pode rachar o tronco levantado

E dois cimos depois verem-se erguidos,

Sinais mostrando da aliança antiga;

Dois corações porém, que juntos batem,

Que juntos vivem, — se os separam, morrem;

Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,

Se aparência de vida, em mal, conservam,

Ânsias cruas resumem do proscrito,

Que busca achar no berço a sepultura!

Esse, que sobrevive à própria ruína,

Ao seu viver do coração, — às gratas

Ilusões, quando em leito solitário,

Entre as sombras da noite, em larga insônia,

Devaneando, a futurar venturas,

Mostra-se e brinca a apetecida imagem;

Esse, que à dor tamanha não sucumbe,

Inveja a quem na sepultura encontra

Dos males seus o desejado termo!

I-Juca Pirama I

No meio das tabas de amenos verdores,

Cercadas de troncos - cobertos de flores,

Alteiam-se os tetos d'altiva nação;

São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,

Temíveis na guerra, que em densas coortes

Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória,

Já prélios incitam, já cantam vitória,

Já meigos atendem à voz do cantor:

São todos Timbiras, guerreiros valentes!

Seu nome lá voa na boca das gentes,

Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,

As armas quebrando, lançando-as ao rio,

O incenso aspiraram dos seus maracás:

Medrosos das guerras que os fortes acendem,

Custosos tributos ignavos lá rendem,

Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro,

Onde ora se aduna o concílio guerreiro

Da tribo senhora, das tribos servis:

Os velhos sentados praticam d'outrora,

E os moços inquietos, que a festa enamora,

Derramam-se em torno dum índio infeliz.

[...]

Entanto as mulheres com leda trigança,

Afeitas ao rito da bárbara usança,

O índio já querem cativo acabar:

A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,

Brilhante enduape no corpo lhe cingem,

Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.

II

Em fundos vasos d'alvacenta argila

Ferve o cauim;

Enchem-se as copas, o prazer começa,

Reina o festim.

Page 15: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

15

Literatura – Prof. Fabrício César

O prisioneiro, cuja morte anseiam,

Sentado está,

O prisioneiro, que outro sol no ocaso

Jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo,

Mostra-lhe o fim

Da vida escura, que será mais breve

Do que o festim! [...]

III

"Dize-nos quem és, teus feitos canta,

"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa

O índio, que ao redor derrama os olhos,

Com triste voz que os ânimos comove.

IV

Meu canto de morte,

Guerreiros, ouvi:

Sou filho das selvas,

Nas selvas cresci;

Guerreiros, descendo

Da tribo Tupi.

Da tribo pujante,

Que agora anda errante

Por fado inconstante,

Guerreiros, nasci;

Sou bravo, sou forte,

Sou filho do Norte;

Meu canto de morte,

Guerreiros, ouvi.

[...]

Andei longes terras,

Lidei cruas guerras,

Vaguei pelas serras

Dos vis Aimorés;

Vi lutas de bravos,

Vi fortes - escravos!

De estranhos ignavos

Calcados aos pés.

E os campos talados,

E os arcos quebrados,

E os piagas coitados

Já sem maracás;

E os meigos cantores,

Servindo a senhores,

Que vinham traidores,

Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo

Meu último amigo,

Sem lar, sem abrigo

Caiu junto a mi!

Com plácido rosto,

Sereno e composto,

O acerbo desgosto

Comigo sofri.

Meu pai a meu lado

Já cego e quebrado,

De penas ralado,

Firmava-se em mi:

Nós ambos, mesquinhos,

Por ínvios caminhos,

Cobertos d'espinhos

Chegamos aqui!

[...]

Então, forasteiro,

Caí prisioneiro

De um troço guerreiro

Com que me encontrei:

O cru dessossego

Do pai fraco e cego,

Enquanto não chego,

Qual seja - dizei!

Eu era o seu guia

Na noite sombria,

A só alegria

Que Deus lhe deixou:

Em mim se apoiava,

Em mim se firmava,

Em mim descansava,

Que filho lhe sou.

Ao velho coitado

De penas ralado,

Já cego e quebrado,

Que resta? - Morrer.

Enquanto descreve

O giro tão breve

Da vida que teve,

Deixa-me viver!

Não vil, não ignavo,

Mas forte, mas bravo,

Serei vosso escravo:

Aqui virei ter.

Guerreiros, não coro

Do pranto que choro;

Se a vida deploro,

Também sei morrer.

Page 16: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

16

Literatura – Prof. Fabrício César

V

Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba;

Os guerreiros murmuram: mal ouviram,

Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!

Brada segunda vez com voz mais alta,

Afrouxam-se as prisões, a embira cede,

A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.

[...]

__ És livre; parte.

__ E voltarei.

__ Debalde.

__ Sim, voltarei, morto meu pai.

__ Não voltes!

[...]

__ Mentiste, que um Tupi não chora nunca,

E tu choraste!... parte; não queremos

Com carne vil enfraquecer os fortes.

[...]

Curvado o colo, taciturno e frio,

Espectro d'homem, penetrou no bosque!

VIII

"Tu choraste em presença da morte?

Na presença de estranhos choraste?

Não descende o cobarde do forte;

Pois choraste, meu filho não és!

Possas tu, descendente maldito

De uma tribo de nobres guerreiros,

Implorando cruéis forasteiros,

Seres presa de vis Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra,

Sem arrimo e sem pátria vagando,

Rejeitado da morte na guerra,

Rejeitado dos homens na paz,

Ser das gentes o espectro execrado;

Não encontres amor nas mulheres,

Teus amigos, se amigos tiveres,

Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia,

Nem as cores da aurora te ameiguem,

E entre as larvas da noite sombria

Nunca possas descanso gozar:

Não encontres um tronco, uma pedra,

Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,

Padecendo os maiores tormentos,

Onde possas a fronte pousar.

[...]

"Um amigo não tenhas piedoso

Que o teu corpo na terra embalsame,

Pondo em vaso d'argila cuidoso

Arco e frecha e tacape a teus pés!

Sê maldito, e sozinho na terra;

Pois que a tanta vileza chegaste,

Que em presença da morte choraste,

Tu, cobarde, meu filho não és."

IX

[...]

Era ele, o Tupi; nem fora justo

Que a fama dos Tupis __ o nome, a glória,

Aturado labor de tantos anos,

Derradeiro brasão da raça extinta,

De um jacto e por um só se aniquilasse.

__ Basta! clama o chefe dos Timbiras,

__ Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,

E para o sacrifício é mister forças. __

O guerreiro parou, caiu nos braços

Do velho pai, que o cinge contra o peito,

Com lágrimas de júbilo bradando:

"Este, sim, que é meu filho muito amado!

"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,

"Corram livres as lágrimas que choro,

"Estas lágrimas, sim, que não desonram."

X

Um velho Timbira, coberto de glória,

Guardou a memória

Do moço guerreiro, do velho Tupi!

E à noite, nas tabas, se alguém duvidava

Do que ele contava,

Dizia prudente: __ "Meninos, eu vi!

"Eu vi o brioso no largo terreiro

Cantar prisioneiro

Seu canto de morte, que nunca esqueci:

Valente, como era, chorou sem ter pejo;

Parece que o vejo,

Que o tenho nest'hora diante de mim.

"Eu disse comigo: Que infâmia d'escravo!

Pois não, era um bravo;

Valente e brioso, como ele, não vi!

[...]

Assim o Timbira, coberto de glória,

Guardava a memória

Do moço guerreiro, do velho Tupi.

E à noite nas tabas, se alguém duvidava

Do que ele contava,

Tomava prudente: "Meninos, eu vi!"

Page 17: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

17

Literatura – Prof. Fabrício César

Álvares de Azevedo

Lembrança de morrer No more! O never more!

SHELLEY

Quando em meu peito rebentar-se a fibra

Que o espírito enlaça à dor vivente,

Não derramem por mim nem uma lágrima

Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura

A flor do vale que adormece ao vento:

Não quero que uma nota de alegria

Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio

Do deserto, o poento caminheiro

— Como as horas de um longo pesadelo

Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh'alma errante,

Onde fogo insensato a consumia:

Só levo uma saudade — é desses tempos

Que amorosa ilusão embelecia.

[...]

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,

Se um suspiro nos seios treme ainda,

É pela virgem que sonhei!... que nunca

Aos lábios me encostou a face linda!

Ó tu, que à mocidade sonhadora

Do pálido poeta deste flores...

Se vivi... foi por ti! e de esperança

De na vida gozar de teus amores.

[...]

Descansem o meu leito solitário

Na floresta dos homens esquecida

À sombra de uma cruz, escrevam nela:

– Foi poeta – sonhou – e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha,

Que minh’alma cantou e amava tanto,

Protejei o meu corpo abandonado,

E no silêncio derramai-lhe um canto!

Mas quando preludia ave d’aurora

E quando à meia noite o céu repousa,

Arvoredo dos bosques, abri os ramos...

Deixai a lua pratear-me a lousa.

Meu Sonho

EU

Cavaleiro das armas escuras,

Onde vais pelas trevas impuras

Com a espada sangüenta na mão?

Por que brilham teus olhos ardentes

E gemidos nos lábios frementes

Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?

Do corcel te debruças no dorso...

E galopas do vale através...

Oh! da estrada acordando as poeiras

Não escutas gritar as caveiras

E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,

Cavaleiro das armas escuras,

Macilento qual morto na tumba?...

Tu escutas... Na longa montanha

Um tropel teu galope acompanha?

E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? – que mistério,

Quem te força da morte no império

Pela noite assombrada a vagar?

O FANTASMA

Sou o sonho de tua esperança,

Tua febre que nunca descansa,

O delírio que te há de matar!...

Soneto

Os quinze anos de uma alma transparente

O cabelo castanho, a face pura,

Uns olhos onde pinta-se a candura

De um coração que dorme, inda inocente.

Um seio que estremece de repente

Do mimoso vestido na brancura,

A linda mão na mágica cintura,

E uma voz que inebria docemente.

Um sorrir tão angélico! Tão santo

E nos olhos azuis cheios de vida

Lânguido véu de involuntário pranto!

É esse o talismã, é essa a Armida,

O condão de meus últimos encantos

A visão de minh’alma distraída!

Page 18: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

18

Literatura – Prof. Fabrício César

Namoro a cavalo

Eu moro em Catumbi: mas a desgraça,

Que rege minha vida malfadada,

Pôs lá no fim da rua do Catete

A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde

Um cavalo de trote (que esparrela!)

Só para erguer meus olhos suspirando

A minha namorada na janela...

Todo o meu ordenado vai-se em flores

E em lindas folhas de papel bordado...

Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,

Algum verso bonito... mas furtado.

Morro pela menina, junto dela

Nem ouso suspirar de acanhamento...

Se ela quisesse eu acabava a história

Como toda a Comédia — em casamento...

Ontem tinha chovido... Que desgraça!

Eu ia a trote inglês ardendo em chama,

Mas lá vai senão quando... uma carroça

Minhas roupas tafues encheu de lama...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote

No Rossinante erguendo a larga espada

Nunca voltou de medo, eu, mais valente,

Fui mesmo sujo ver a namorada...

Mas eis que no passar pelo sobrado,

Onde habita nas lojas minha bela,

Por ver-me tão lodoso ela irritada

Bateu-me sobre as ventas a janela...

O cavalo ignorante de namoro,

Entre dentes tomou a bofetada,

Arrepia-se, pula e dá-me um tombo

Com pernas para o ar, sobre a calçada...

Dei ao diabo os namoros. Escovado

Meu chapéu que sofrera no pagode...

Dei de pernas corrido e cabisbaixo

E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa

Rasgou-se no cair de meio a meio,

O sangue pelas ventas me corria

Em paga do amoroso devaneio!...

É ela! É ela! É ela! É ela!

É ela! é ela! — murmurei tremendo,

E o eco ao longe murmurou — é ela!

Eu a vi... minha fada aérea e pura –

A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro

Eu a vejo estendendo no telhado

Os vestidos de chita, as saias brancas;

Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido

Nas telhas que estalavam nos meus passos

Ir espiar seu venturoso sono,

Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!...

Tinha na mão o ferro do engomado...

Como roncava maviosa e pura!

Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso...

Palpitava-lhe o seio adormecido...

Fui beijá-la... roubei do seio dela

Um bilhete que estava ali metido...

Oh! De certo ... (pensei) é doce página

Onde a alma derramou gentis amores;

São versos dela... que amanhã de certo

Ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre! Venturosa folha!

Quem pousasse contigo neste seio!

Como Otelo beijando a sua esposa,

Eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo;

Mas cantou nesse instante uma coruja...

Abri cioso a página secreta...

Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota

Dando pão com manteiga às criancinhas,

Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro

Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh’alma,

A Laura, a Beatriz que o céu revela...

É ela! é ela! — murmurei tremendo,

E o eco ao longe suspirou — é ela!

Page 19: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

19

Literatura – Prof. Fabrício César

Castro Alves

O Navio Negreiro (Tragédia no mar)

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço

Brinca o luar — dourada borboleta;

E as vagas após ele correm... cansam

Como turba de infantes inquieta.

[...]

Donde vem? onde vai? Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora

Sentir deste painel a majestade!

Embaixo — o mar em cima — o firmamento...

E no mar e no céu — a imensidade!

[...]

Esperai! esperai! deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia,

Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,

E o vento, que nas cordas assobia...

[...]

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas, Leviathan do espaço,

Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus!

Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!

[...]

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

Qual um sonho dantesco as sombras voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!

[...]

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d'amplidão!

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...

VI

[...]

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Page 20: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

20

Literatura – Prof. Fabrício César

A Canção do Africano

Lá na úmida senzala,

Sentado na estreita sala,

Junto ao braseiro, no chão,

Entoa o escravo o seu canto,

E ao cantar correm-lhe em pranto

Saudades do seu torrão...

De um lado, uma negra escrava

Os olhos no filho crava,

Que tem no colo a embalar...

E à meia voz lá responde

Ao canto, e o filhinho esconde,

Talvez pra não o escutar!

"Minha terra é lá bem longe,

Das bandas de onde o sol vem;

Esta terra é mais bonita,

Mas à outra eu quero bem!

[...]

"Aquelas terras tão grandes,

Tão compridas como o mar,

Com suas poucas palmeiras

Dão vontade de pensar ...

"Lá todos vivem felizes,

Todos dançam no terreiro;

A gente lá não se vende

Como aqui, só por dinheiro".

O escravo calou a fala,

Porque na úmida sala

O fogo estava a apagar;

E a escrava acabou seu canto,

Pra não acordar com o pranto

O seu filhinho a sonhar!

O escravo então foi deitar-se,

Pois tinha de levantar-se

Bem antes do sol nascer,

E se tardasse, coitado,

Teria de ser surrado,

Pois bastava escravo ser.

E a cativa desgraçada

Deita seu filho, calada,

E põe-se triste a beijá-lo,

Talvez temendo que o dono

Não viesse, em meio do sono,

De seus braços arrancá-lo!

Boa noite

Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.

A lua nas janelas bate em cheio.

Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde...

Não me apertes assim contra teu seio.

Boa-noite!... E tu dizes — Boa-noite.

Mas não digas assim por entre beijos...

Mas não mo digas descobrindo o peito

— Mar de amor onde vagam meus desejos.

Julieta do céu! Ouve... a calhandra

Já rumoreja o canto da matina.

Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira...

... Quem cantou foi teu hálito, divina!

Se à estrela-d'alva os derradeiros raios

Derrama nos jardins do Capuleto,

Eu direi, me esquecendo d'alvorada:

"É noite ainda em teu cabelo preto..."

E noite ainda! Brilha na cambraia

— Desmanchado o roupão, a espádua nua —

O globo de teu peito entre os arminhos

Como entre as névoas se balouça a lua...

É noite, pois! Durmamos, Julieta!

Recende a alcova ao trescalar das flores,

Fechemos sobre nós estas cortinas...

— São as asas do arcanjo dos amores.

A frouxa luz da alabastrina lâmpada

Lambe voluptuosa os teus contornos...

Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos

Ao doudo afago de meus lábios mornos.

Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos

Treme tua alma, como a lira ao vento,

Das teclas de teu seio que harmonias,

Que escalas de suspiros, bebo atento!

Ai! Canta a cavatina do delírio,

Ri, suspira, soluça, anseia e chora...

Marion! Marion!... É noite ainda.

Que importa os raios de uma nova aurora?!...

Como um negro e sombrio firmamento,

Sobre mim desenrola teu cabelo...

E deixa-me dormir balbuciando:

— Boa-noite!, formosa Consuelo!...

Page 21: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

21

Literatura – Prof. Fabrício César

Parnasianismo

Olavo Bilac

Fragmento de “Profissão de fé”

Não quero o Zeus Capitolino

Hercúleo e belo,

Talhar no mármore divino

Com o camartelo.

Que outro - não eu! - a pedra corte

Para, brutal,

Erguer de Atene o altivo porte

Descomunal.

Mais que esse vulto extraordinário,

Que assombra a vista,

Seduz-me um leve relicário

De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:

Imito o amor

Com que ele, em ouro, o alto relevo,

Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara

A pedra firo:

O alvo cristal, a pedra rara,

O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me;

Sobre o papel

A pena, como em prata firme

Corre o cinzel.

[...]

Torce, aprimora, alteia, lima

A frase; e, enfim,

No verso de ouro engasta a rima,

Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,

Dobrada ao jeito

Do ourives, saia da oficina

Sem um defeito.

[...]

Assim procedo. Minha pena

Segue esta norma,

Por te servir; Deusa serena,

Serena Forma!

[...]

A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,

Beneditino, escreve! No aconchego

Do claustro, na paciência e no sossego,

Trabalha, e teima, e lima, e sofre e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego

Do esforço; e a trama viva se construa

De tal modo , Que a imagem fique nua,

Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício

Do mestre. E, natural, o efeito agrade,

Sem lembrar os andaimes do edifício.

Porque a beleza, gêmea da Verdade,

Arte pura, inimiga do artifício,

É a força e a Graça na simplicidade

A Cigarra da Chácara

Volta a cantar no tronco da mangueira,

Mais corpulenta agora e mais sombria,

Esta mesma cigarra cantadeira,

Que o ano passado em tanta vez ouvia.

Ébria dos quentes raios da soalheira,

A pompa sideral do meio dia

Celebra, e enquanto a luz abrasa, e cheira

O mato verde, chia! chia! chia!

Canta, alma de ouro! Teu verão radiante

Tornou, tornou teu sol glorioso e lindo;

O meu declina, não quer mais que eu cante.

Oh! Como invejo este hino alto e canoro

Que, reiterado, entoa ali, zinindo,

A cigarra da chácara onde moro.

Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura:

Ouro nativo, que na ganga impura

A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.

Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o tom e o silvo da procela

E o arrolo da saudade e da ternura!

Page 22: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

22

Literatura – Prof. Fabrício César

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: ―meu filho!‖

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Nel Mezzo del Camin...

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada

E triste, e triste e fatigado eu vinha.

Tinhas a alma de sonhos povoada,

E alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada

Da vida: longos anos, presa à minha

A tua mão, a vista deslumbrada

Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida

Nem o pranto os teus olhos umedece,

Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,

Vendo o teu vulto que desaparece

Na extrema curva do caminho extremo.

Alberto de Oliveira

Vaso Chinês

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,

Casualmente, uma vez, de um perfumado

Contador sobre o mármor luzidio,

Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,

Nele pusera o coração doentio

Em rubras flores de um sutil lavrado,

Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,

Quem o sabe?... de um velho mandarim

Também lá estava a singular figura.

Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a,

Sentia um não sei quê com aquele chim

De olhos cortados à feição de amêndoa.

Simbolismo

Cruz e Sousa

Antífona

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras

De luares, de neves, de neblinas!

Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...

Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,

De Virgens e de Santas vaporosas...

Brilhos errantes, mádidas frescuras

E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,

Harmonias da Cor e do Perfume...

Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,

Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

[...]

Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,

Soluçando nas trevas, entre as grades

Do calabouço olhando imensidades,

Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza

Quando a alma entre grilhões as liberdades

Sonha e, sonhando, as imortalidades

Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas

Nas prisões colossais e abandonadas,

Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,

que chaveiro do Céu possui as chaves

para abrir-vos as portas do Mistério?!

Violões que choram

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,

Soluços ao luar, choros ao vento...

Tristes perfis, os mais vagos contornos,

Bocas murmurejantes de lamento.

[...]

Sutis palpitações a luz da lua,

Anseio dos momentos mais saudosos,

Page 23: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

23

Literatura – Prof. Fabrício César

Quando lá choram na deserta rua

As cordas vivas dos violões chorosos.

[...]

Harmonias que pungem, que laceram,

Dedos Nervosos e ágeis que percorrem

Cordas e um mundo de dolências geram,

Gemidos, prantos, que no espaço morrem...

[...]

Vozes veladas, veludosas vozes,

Volúpias dos violões, vozes veladas,

Vagam nos velhos vórtices velozes

Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos violões ecoa

E vibra e se contorce no ar, convulso...

Tudo na noite, tudo clama e voa

Sob a febril agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhos

São ilhas de degredo atroz, funéreo,

Para onde vão, fatigadas do sonho

Almas que se abismaram no mistério.

[...]

Tudo isso, num grotesco desconforme,

Em ais de dor, em contorções de açoites,

Revive nos violões, acorda e dorme

Através do luar das meias noites!

Plangente: que chora, triste, lastimoso.

Sutil: delicado, hábil.

Dilacerar: rasgar em pedaços.

Caveira

I

Olhos que foram olhos, dois buracos

Agora, fundos, no ondular da poeira...

Nem negros, nem azuis e nem opacos.

Caveira!

II

Nariz de linhas, correções audazes,

De expressão aquilina e feiticeira,

Onde os olfatos virginais, falazes?!

Caveira! Caveira!!

III

Boca de dentes límpidos e finos,

De curva leve, original, ligeira,

Que é feito dos teus risos cristalinos?!

Caveira! Caveira!! Caveira!!! Audazes: audaciosas

Aquilina: recurvada (como bico de águia)

Falazes: que enganam, que iludem

A Ironia dos Vermes

Eu imagino que és uma princesa

Morta na flor da castidade branca...

Que teu cortejo sepulcral arranca

Por tanta pompa espasmos de surpresa.

Que tu vais por um coche conduzida,

Por esquadrões flamívomos guardada,

Como carnal e virgem madrugada,

Bela das belas, sem mais sol, sem vida.

Que da Corte os luzidos Dignitários

Com seus aspectos marciais, bizarros,

Seguem-te após nos fagulhantes, carros

E a excelsa cauda dos cortejos vários.

[...]

Que os potentes canhões roucos atroam

O espaço claro de uma tarde suave,

E que tu vais, Lírio dos lírios e ave

Do Amor, por entre os sons que te coroam.

[...]

Que o teu corpo de luz, teu corpo amado,

Envolto em finas e cheirosas vestes,

Sob o carinho das Mansões celestes

Ficará pela Morte encarcerado.

Que o teu séquito é tal, tal a coorte,

Tal o sol dos brasões, por toda a parte,

Que em vez da horrenda Morte suplantar-te

Crê-se que és tu que suplantaste a Morte.

Mas dos faustos mortais a regia trompa,

Os grandes ouropéis, a real Quermesse,

Ah! tudo, tudo proclamar parece

Que hás de afinal apodrecer com pompa.

Como que foram feitos de luxúria

E gozo ideal teus funerais luxuosos

Para que os vermes, pouco escrupulosos,

Não te devorem com plebéia fúria.

Para que eles ao menos vendo as belas

Magnificências do teu corpo exausto

Mordam-te com cuidados e cautelas

Para o teu corpo apodrecer com fausto.

[...]

Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,

Imaginária e cândida Princesa:

És igual a uma simples camponesa

Nos apodrecimentos da Matéria!

Flamívomos: que cospem fogo

Page 24: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

24

Literatura – Prof. Fabrício César

Excelsa: sublime, elevada

Atroar: fazer grande estrondo

Féretro: caixão

Séquito: cortejo

Faustos: que têm grande pompa

Ouropéis: ligas metálicas que imitam ouro

Atroz: desumana, cruel

Vida obscura

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,

Ó ser humilde entre os humildes seres.

Embriagado, tonto dos prazeres,

O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste num silêncio escuro

A vida presa a trágicos deveres

E chegaste ao saber de altos saberes

Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,

Magoado, oculto e aterrador, secreto,

Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos

Sei que cruz infernal prendeu-te os braços

E o teu suspiro como foi profundo!

Sorriso Interior

O ser que é ser e que jamais vacila

Nas guerras imortais entra sem susto,

Leva consigo esse brasão augusto

Do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila

Ele os vence sem ânsias e sem custo

Fica sereno, num sorriso justo,

Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza

Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,

Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...

E para ironizar as próprias dores

Canta por entre as águas do Dilúvio!

Augusto dos Anjos - (inclassificável)

Monólogo de uma Sombra

―Sou uma Sombra! Venho de outras eras,

Do cosmopolitismo das moneras...

Pólipo de recônditas reentrâncias,

Larva de caos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Da substância de todas as substâncias!

[...]

Com um pouco de saliva quotidiana

Mostro meu nojo à Natureza Humana.

A podridão me serve de Evangelho...

Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques

E o animal inferior que urra nos bosques

E com certeza meu irmão mais velho!

[...]

Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,

Trazendo no deserto das idéias

O desespero endêmico do inferno,

Com a cara hirta, tatuada de fuligens

Esse mineiro doido das origens,

Que se chama o Filósofo Moderno!

Quis compreender, quebrando estéreis normas,

A vida fenomênica das Formas,

Que, iguais a fogos passageiros, luzem...

E apenas encontrou na idéia gasta,

O horror dessa mecânica nefasta,

A que todas as coisas se reduzem!

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,

Sobre a esteira sarcófaga das pestes

A mostrar, já nos últimos momentos,

Como quem se submete a uma charqueada,

Ao clarão tropical da luz danada,

O espólio dos seus dedos peçonhentos.

[...]

E o que ele foi: clavículas, abdômen,

O coração, a boca, em síntese, o Homem,

- Engrenagem de vísceras vulgares -

Os dedos carregados de peçonha,

Tudo coube na lógica medonha

Dos apodrecimentos musculares!

A desarrumação dos intestinos

Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos

Dentro daquela massa que o húmus come,

Numa glutoneria hedionda, brincam,

Como as cadelas que as dentuças trincam

No espasmo fisiológico da fome.

Page 25: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

25

Literatura – Prof. Fabrício César

É uma trágica festa emocionante!

A bacteriologia inventariante

Toma conta do corpo que apodrece...

E até os membros da família engulham,

Vendo as larvas malignas que se embrulham

No cadáver malsão, fazendo um s.

[...]

Est’outro agora é o sátiro peralta

Que o sensualismo sodomista exalta,

Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...

Como que, em suas células vilíssimas,

Há estratificações requintadíssimas

De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbedas o beijam.

Suas artérias hírcicas latejam,

Sentindo o odor das carnações abstêmias,

E á noite, vai gozar, ébrio de vício,

No sombrio bazar do meretrício,

O cuspo afrodisíaco das fêmeas.

[...]

Míngua-se o combustível da lanterna

E a consciência do sátiro se inferna,

Reconhecendo, bêbedo de sono,

Na própria ânsia dionísica do gozo,

Essa necessidade de horroroso,

Que é talvez propriedade do carbono!

[...]

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,

Abranda as rochas rígidas, torna água

Todo o fogo telúrico profundo

E reduz, sem que, entanto, a desintegre,

À condição de uma planície alegre,

A aspereza orográfica do mundo!

Provo desta maneira ao mundo odiento

Pelas grandes razões do sentimento,

Sem os métodos da abstrusa ciência fria

E os trovões gritadores da dialética,

Que a mais alta expressão da dor estética

Consiste essencialmente na alegria.

Continua o martírio das criaturas:

- O homicídio nas vielas mais escuras,

- O ferido que a hostil gleba atra escarva,

- O último solilóquio dos suicidas -

E eu sinto a dor de todas essas vidas

Em minha vida anônima de larva!‖

[...]

Eterna mágoa

O homem por sobre quem caiu a praga

Da tristeza do Mundo, o homem que é triste

Para todos os séculos existe

E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga

Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.

Quer resistir, e quanto mais resiste

Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe

E que essa mágoa infinda assim não cabe

Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;

E quando esse homem se transforma em verme

É essa mágoa que o acompanha ainda!

Versos Íntimos

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão - esta pantera -

Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

Solitário

Como um fantasma que se refugia

Na solidão da natureza morta,

Por trás dos ermos túmulos, um dia,

Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia

Não era esse que a carne nos conforta...

Cortava assim como em carniçaria

O aço das facas incisivas corta!

Page 26: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

26

Literatura – Prof. Fabrício César

Mas tu não vieste ver a minha Desgraça!

E eu saí, como quem tudo repele,

Velho caixão a carregar destroços.

Levando apenas na tumbal carcaça

O pergaminho singular da pele

E o chocalho fatídico dos ossos!

Ermos = vazios.

Incisivas = afiadas; pontiagudas.

Tumbal = de tumba, de túmulo.

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênesis da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

A Esperança

A Esperança não murcha, ela não cansa,

Também como ela não sucumbe a Crença.

Vão-se sonhos nas asas da Descrença,

Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;

No entanto o mundo é uma ilusão completa,

E não é a Esperança por sentença

Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,

Sirva-te a Crença de fanal bendito,

Salve-te a glória no futuro - avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,

Também espero o fim do meu tormento,

Na voz da Morte a me bradar; descansa!

Manietar = amarrar as mãos

A Árvore da Serra

- As árvores, meu filho, não têm alma!

E esta árvore me serve de empecilho...

É preciso cortá-la, pois, meu filho,

Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!

Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!

Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...

Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:

"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"

E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,

O moço triste se abraçou com o tronco

E nunca mais se levantou da terra!

O martírio do artista

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,

A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,

Busca exteriorizar o pensamento

Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a idéia! A inspiração lhe tarda!

E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,

Como o soldado que rasgou a farda

No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...

E como o paralítico que, à míngua

Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos

Para falar, puxa e repuxa a língua,

E não lhe vem à boca uma palavra!

Page 27: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

27

Literatura – Prof. Fabrício César

Semana de arte Moderna

Os sapos

Enfunando os papos,

Saem da penumbra,

Aos pulos, os sapos.

A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,

Berra o sapo-boi:

— ―Meu pai foi à guerra!‖

— ―Não foi!‖ — ―Foi!‖ — ―Não foi!‖.

O sapo-tanoeiro,

Parnasiano aguado,

Diz: — ―Meu cancioneiro

É bem martelado.

Vede como primo

Em comer os hiatos!

Que arte! E nunca rimo

Os termos cognatos!

[...]

Vai por cinqüenta anos

Que lhes dei a norma:

Reduzi sem danos

A formas a forma.

Clame a saparia

Em críticas céticas:

Não há mais poesia,

Mas há artes poéticas...‖

Urra o sapo-boi:

— ―Meu pai foi rei‖ — ―Foi!‖

— ―Não foi!‖ — ―Foi!‖ — ―Não foi!‖

Brada em um assomo

O sapo-tanoeiro:

— ―A grande arte é como

Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.

Tudo quanto é belo,

Tudo quanto é vário,

Canta no martelo.‖

[...]

Lá, fugindo ao mundo,

Sem glória, sem fé,

No perau profundo

E solitário, é

Que soluças tu,

Transido de frio,

Sapo-cururu

Da beira do rio...

Manuel Bandeira

Manifesto Pau-Brasil

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão

e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul

cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da

raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os

cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A

formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério.

A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

[...]

A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e

neológica. A contribuição milionária de todos os

erros. Como falamos. Como somos.

Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há

só fardas. Os futuristas e os outros.

Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos:

Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de

exportação.

[...]

Oswald de Andrade (Correio da Manhã, 1924)

Manifesto Antropofágico

Só a Antropofagia nos une. Socialmente.

Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de

todos os individualismos, de todos os

coletivismos. De todas as religiões. De todos os

tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

[...]

Oswald de Andrade (Revista de Antropofagia,

1928.)

Page 28: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

28

Literatura – Prof. Fabrício César

Modernismo – I fase

Oswald de Andrade

Erro de português

Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português

Senhor feudal

Se Pedro Segundo

Vier aqui

Com história

Eu boto ele na cadeia

Medo da senhora

A escrava pegou a filhinha nascida

Nas costas

E se atirou no Paraíba

Para que a criança não fosse judiada

Pronominais

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro

Vício na fala

Para dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mió

Para pior pió

Para telha dizem teia

Para telhado dizem teiado

E vão fazendo telhados

O capoeira — Qué apanhá sordado?

— O quê?

— Qué apanhá?

Pernas e cabeças na calçada

Relicário

No baile da corte

Foi o conde d’Eu quem disse

Pra Dona Benvinda

Que farinha de Suruí

Pinga de Parati

Fumo de Baependi

É comê bebê pitá e caí

Contrabando

Os alfandegueiros de Santos

Examinaram minhas malas

Minhas roupas

Mas se esqueceram de ver

Que eu trazia no coração

Uma saudade feliz

De Paris

Canto de regresso à pátria

Minha terra tem palmares

Onde gorjeia o mar

Os passarinhos daqui

Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas

E quase que mais amores

Minha terra tem mais ouro

Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas

Eu quero tudo de lá

Não permita Deus que eu morra

Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra

Sem que volte pra São Paulo

Sem que veja a Rua 15

E o progresso de São Paulo.

As meninas da gare

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis

Com cabelos mui pretos pelas espáduas

E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas

Que de nós as muito bem olharmos

Não tínhamos nenhuma vergonha.

Page 29: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

29

Literatura – Prof. Fabrício César

Mário Andrade

Artista

O meu desejo é ser pintor — Lionardo,

cujo ideal em piedades se acrisola;

fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola

do sonho ilustre que em meu peito guardo...

Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo

da vida, a cor da veneziana escola,

dar tons de rosa e de ouro, por esmola,

a quanto houver de penedia ou cardo.

Quando encontrar o manancial das tintas

e os pincéis exaltados com que pintas,

Veronese! teus quadros e teus frisos,

irei morar onde as Desgraças moram;

e viverei de colorir sorrisos

nos lábios dos que imprecam ou que choram!

Acrisola = purifica

Penedia = rocha

Cardo = espinho

Imprecam = praguejam

Aceitarás o amor como eu o encaro?...

Aceitarás o amor como eu o encaro?...

...Azul bem leve, um nimbo, suavemente

Guarda-te a imagem, como um anteparo

Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro

Vive em teu corpo nu de adolescente,

A perna assim jogada e o braço, o claro

Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo

Também mais nada, só te olhar, enquanto

A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo

Que nasce das imperfeições. O encanto

Que nasce das adorações serenas.

Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel

o burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo!

O homem-curva! O homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques

zurros!

Que vivem dentro de muros sem pulos,

e gemem sangue de alguns mil-réis fracos

para dizerem que as filhas da senhora falam o

francês

e tocam os "Printemps" com as unhas!

[...]

Morte à gordura!

Morte às adiposidades cerebrais!

Morte ao burguês-mensal!

Ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!

Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!

"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?

— Um colar... — Conto e quinhentos!!!

Más nós morremos de fome!"

[...]

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos,

cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

Moça Linda Bem Tratada

Moça linda bem tratada,

Três séculos de família,

Burra como uma porta:

Um amor.

Grã-fino do despudor,

Esporte, ignorância e sexo,

Burro como uma porta:

Um coió.

Mulher gordaça, filó,

De ouro por todos os poros

Burra como uma porta:

Paciência...

Plutocrata sem consciência,

Nada porta, terremoto

Que a porta do pobre arromba:

Uma bomba.

Coió = tolo; palerma

Plutocrata = rico e poderoso

Page 30: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

30

Literatura – Prof. Fabrício César

Inspiração Onde até na força do verão havia

tempestades de ventos e frios de

crudelíssimos invernos

Frei Luís de Souza

São Paulo! comoção de minha vida...

Os meus amores são flores feitas de original!...

Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...

Luz e bruma... Forno e inverno morno...

Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...

Perfumes de Paris... Aryz!

Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...

São Paulo comoção de minha vida...

Galicismo a berrar nos desertos da América.

Paisagem n° 1

Minhas Londres das neblinas finas!

Plenos verão. Os dez mil milhões de rosas

[paulistanas.

Há neve de perfume no ar.

Faz frio, muito frio...

E a ironia das pernas das costureirinhas

parecidas com bailarinas...

O vento é como uma navalha

nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...

Há duas horas queimou Sol.

Daqui a duas horas queima Sol.

[...]

Paisagem n° 2

Escuridão dum meio-dia de invernia...

Marasmos... Estremeções... Brancos...

O céu é toda uma batalha convencional de confetti

[brancos;

e as onças pardas das montanhas no longe...

Oh! para além vivem as primaveras eternas!

[...]

Deus recortou a alma de Paulicéia

num cor de cinza sem odor...

[...]

São Paulo é um palco de bailados russos.

Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os [crimes

e também as apoteoses de ilusão...

[...]

Paisagem n° 3

Chove?

Sorri uma garoa de cinza,

Muito triste, como um tristemente longo...

A Casa Kosmos não tem impermeáveis em

[liquidação...

[...]

As rolas da Normal

Esvoaçam entre os dedos da garoa...

[...]

De repente

Um raio de Sol arisco

Risca o chuvisco ao meio.

Paisagem n° 4

Os caminhões rodando, as carroças rodando,

rápidas as ruas se desenrolando,

rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...

E o largo coro de ouro das sacas de café!...

Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway...

Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!...

As quebras, as ameaças, as audácias superfinas!...

Fogem os fazendeiros para o lar!... Cincinato Braga!...

Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados...

Oh! as indiferenças maternais!...

[...]

Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente!!!

Cincinato Braga: presidente do Banco do Brasil na década de

1910

Quando eu morrer

Quando eu morrer quero ficar,

Não contem aos meus inimigos,

Sepultado em minha cidade,

Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,

No Paissandu deixem meu sexo,

Na Lopes Chaves a cabeça

Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem

O meu coração paulistano:

Um coração vivo e um defunto

Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido

Direito, o esquerdo nos Telégrafos,

Quero saber da vida alheia,

Sereia.

O nariz guardem nos rosais,

A língua no alto do Ipiranga

Para cantar a liberdade.

Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá

Assistirão ao que há de vir,

O joelho na Universidade,

Saudade...

As mãos atirem por aí,

Que desvivam como viveram,

As tripas atirem pro Diabo,

Que o espírito será de Deus.

Adeus.

Page 31: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

31

Literatura – Prof. Fabrício César

Manuel Bandeira

Renúncia

Chora de manso e no íntimo... Procura

Curtir sem queixa o mal que te crucia:

O mundo é sem piedade e até riria

Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.

Aprende a amá-la que a amarás um dia.

Então ela será tua alegria,

E será, ela só, tua ventura...

A vida é vã como a sombra que passa

Sofre sereno e de alma sobranceira

Sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira.

E pede humildemente a Deus que a faça

Tua doce e constante companheira...

Desencanto

Eu faço versos como quem chora

De desalento... de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa... remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

_ Eu faço versos como quem morre.

Consoada

Quando a indesejada das gentes chegar

(Não sei se dura ou caroável),

Talvez eu tenha medo.

Talvez sorria, ou diga:

_ Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.

(A noite com os seus sortilégios.)

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,

A mesa posta,

Com cada coisa em seu lugar.

Poética

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto

[expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr.

diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no

[dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos

[universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de

[exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora

[de si mesmo.

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do

[amante exemplar com cem modelos de cartas e as

[diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é

[libertação.

Nova poética

Vou lançar a poesia do poeta sórdido.

Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.

Vai um sujeito,

Sai um sujeito de casa com a roupa de brim

[branco muito bem engomada, e na primeira

[esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó

[de uma nódoa de lama:

É a vida.

O poema deve ser como a nódoa do brim:

Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas,

[as virgens cem por cento e as amadas que

[envelhecem sem maldade.

Page 32: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

32

Literatura – Prof. Fabrício César

Tragédia Brasileira

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de

idade.

Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída,

com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança

empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a

num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista,

manicura... Dava tudo o que ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca

bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma

surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso:

mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado,

Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete,

Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso,

Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói,

Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio,

Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do

Mato, Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael,

privado de sentidos e de inteligência, matou-a

com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em

decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

O Bicho

Vi ontem um bicho

Na imundice do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa;

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Poema do Beco

―Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha

[do horizonte?

__ O que eu vejo é o beco‖.

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira-livre e

[morava no morro da Babilônia num barracão

[sem número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e

[morreu afogado.

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

— Diga trinta e três.

— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . .

— Respire.

...............................................................................

— O senhor tem uma escavação no pulmão

[esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

— Então, doutor, não é possível tentar o

[pneumotórax?

— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango

argentino.

Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:

— "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais

[triste!

Passei a vida à toa, à toa . . .

Neologismo

Beijo pouco, falo menos ainda.

Mas invento palavras

Que traduzem a ternura mais funda

E mais cotidiana.

Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.

Intransitivo:

Teadoro, Teodora.

Page 33: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

33

Literatura – Prof. Fabrício César

Arte de Amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a

[tua alma.

A alma é que estraga o amor.

Só em Deus ela pode encontrar satisfação.

Não noutra alma.

Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Debussy

Para cá, para lá...

Para cá, para lá...

Um novelozinho de linha...

Para cá, para lá...

Para cá, para lá...

Oscila no ar pela mão de uma criança...

(Vem e vai...)

Que delicadamente e quase a adormecer o balança

_ Psiu... _

Para cá, para lá...

Para cá e...

_ O novelozinho caiu.

Trem de ferro

Café com pão

Café com pão

Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim

Café com pão

Agora sim

Voa, fumaça

Corre, cerca

Ai seu foguista

Bota fogo

Na fornalha

Que eu preciso

Muita força

Muita força

Muita força

Oô...

Foge, bicho

Foge, povo

Passa ponte

Passa poste

Passa pasto

Passa boi

Passa boiada

Passa galho

Da ingazeira

Debruçada

No riacho

Que vontade

De cantar!

Oô...

Quando me prendero

No canaviá

Cada pé de cana

Era um oficiá

Oô...

Menina bonita

Do vestido verde

Me dá tua boca

Pra matar minha sede

Oô...

Vou mimbora vou mimbora

Não gosto daqui

Nasci no sertão

Sou de Ouricuri

Oô...

Vou depressa

Vou correndo

Vou na toda

Que só levo

Pouca gente

Pouca gente

Pouca gente...

Momento num café

Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraídos

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida Confiantes na vida.

Um, no entanto, se descobriu num gesto largo e

demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem

finalidade

Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.

Page 34: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

34

Literatura – Prof. Fabrício César

Modernismo – II fase

Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

Cota zero

Stop.

A vida parou

ou foi o automóvel?

A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas,

Vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e

espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem

ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do

[tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas [da

tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas

[em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo

[e o ódio.

José

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, Você?

Você que é sem nome,

que zomba dos outros,

Você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

[...]

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

Page 35: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

35

Literatura – Prof. Fabrício César

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse,

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse....

Mas você não morre,

você é duro, José!

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja do galope,

você marcha, José!

José, para onde?

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu

[coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é serio, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo. Gauche: adjetivo francês que aqui significa “sem jeito”;

“torto”;

Cidadezinha Qualquer

Casas entre bananeiras

mulheres entre laranjeiras

pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.

Um cachorro vai devagar.

Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

Infância

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala – e nunca se

esqueceu

chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha

café gostoso

café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:

- Psiu... Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Page 36: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

36

Literatura – Prof. Fabrício César

As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,

Não precisas ser amante,

e nem sempre sabes sê-lo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça

e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,

é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários

e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo

bastante ou demais a mim.

Porque amor não se troca,

não se conjuga nem se ama.

Porque amor é amor a nada,

feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,

e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor.

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para o Estados Unidos, Teresa para o

convento, Raimundo morreu de desastre,

Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto

Fernandes que não tinha entrado na história.

Consideração do poema

Não rimarei a palavra sono

com a incorrespondente palavra outono.

Rimarei com a palavra carne

ou qualquer outra, que todas me convêm.

As palavras não nascem amarradas,

elas saltam, se beijam, se dissolvem,

no céu livre por vezes um desenho,

são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

[...]

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes

[pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão

[infenso à efusão lírica.

[...]

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te

[provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e

[concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a

[chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em

[desprezo.

Page 37: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

37

Literatura – Prof. Fabrício César

Vinícius de Moraes

Soneto de fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Soneto de separação

De repente do riso fez-se o pranto

Silencioso e branco como a bruma

E das bocas unidas fez-se a espuma

E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento

Que dos olhos desfez a última chama

E da paixão fez-se o pressentimento

E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante

E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante

Fez-se da vida uma aventura errante

De repente, não mais que de repente.

A rosa de Hiroxima

Pensem nas crianças

Mudas telepáticas

Pensem nas meninas

Cegas inexatas

Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

Pensem nas feridas

Como rosas cálidas

Mas oh não se esqueçam

Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroxima

A rosa hereditária

A rosa radioativa

Estúpida e inválida

A rosa com cirrose

A anti-rosa atômica

Sem cor sem perfume

Sem rosa sem nada.

Poema enjoadinho

Filhos... Filhos?

Melhor não tê-los!

Mas se não os temos

Como sabê-lo?

Se não os temos

Que de consulta

Quanto silêncio

Como os queremos!

Banho de mar

Diz que é um porrete...

Cônjuge voa

Transpõe o espaço

Engole água

Fica salgada

Se iodifica

Depois, que boa

Que morenaço

Que a esposa fica!

Resultado: filho.

E então começa

A aporrinhação:

Cocô está branco

Cocô está preto

Bebe amoníaco

Comeu botão.

Filhos? Filhos

Melhor não tê-los

Noites de insônia

Cãs prematuras

Prantos convulsos

Meu Deus, salvai-o!

Filhos são o demo

Melhor não tê-los...

Mas se não os temos

Como sabê-los?

Como saber

Que macieza

Nos seus cabelos

Que cheiro morno

Na sua carne

Que gosto doce

Na sua boca!

Chupam gilete

Bebem shampoo

Ateiam fogo

Page 38: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

38

Literatura – Prof. Fabrício César

No quarteirão

Porém, que coisa

Que coisa louca

Que coisa linda

Que os filhos são!

A Casa

Era uma casa

Muito engraçada

Não tinha teto,

Não tinha nada

Ninguém podia

Entrar nela, não

Porque na casa

Não tinha chão

Ninguém podia

Dormir na rede

Porque na casa

Não tinha parede

Ninguém podia

Fazer pipi

Porque penico

Não tinha ali

Mas era feita

Com muito esmero

Na rua dos bobos

Número Zero.

Samba da benção

É melhor ser alegre que ser triste

Alegria é a melhor coisa que existe

É assim como a luz no coração

Mas pra fazer um samba com beleza

É preciso um bocado de tristeza - bis

Senão, não se faz um samba não.

[...]

Fazer samba não é contar piada

E quem faz samba assim não é de nada

O bom samba é uma forma de oração

Porque o samba é a tristeza que balança

E a tristeza tem sempre uma esperança - bis

De um dia não ser mais triste não

[...]

Ponha um pouco de amor numa cadência

E vai ver que ninguém no mundo vence

A beleza que tem um samba, não

Porque o samba nasceu lá na Bahia

E se hoje ele é branco na poesia - bis

Ele é negro demais no coração.

Cecília Meireles

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço, —

não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

Romanceiro da Inconfidência (1953)

“Das Idéias”

A vastidão destes campos.

A alta muralha das serras.

As lavras inchadas de ouro.

Os diamantes entre as pedras.

Negros, índios e mulatos.

Almocafres e gamelas.

Os rios todos virados.

Toda revirada, a terra.

Capitães, governadores,

Padres, intendentes, poetas.

[...]

Sinos. Procissões. Promessas.

Anjos e santos nascendo

Em mãos de gangrena e lepra.

[...]

Pátios de seixos. Escadas.

Boticas. Pontes. Conversas.

Gente que chega e que passa.

E as idéias.

“Dos Ilustres Assassinos”

Ó grandes oportunistas

Sobre o papel debruçados

Que calculais o mundo e vida

Em contos, doblas, cruzados,

Page 39: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

39

Literatura – Prof. Fabrício César

Que traçais vastas rubricas

E sinais entrelaçados

Com altas penas esguias

Embebidas em pecados!

Ó personagens solenes

Que arrastais os apelidos

Como pavões auriverdes

Seus rutilantes vestidos

- todo este poder que tendes

Confunde os vossos sentidos:

A glória, que amais, é desses

Que por vós são perseguidos.

Levantai-vos dessas mesas,

Saí das vossas molduras,

Vede que masmorras negras,

Que fortalezas seguras,

Que duro peso de algemas,

Que profunda sepulturas

Nascidas de vossas penas,

De vossas assinaturas!

Considerai no mistério,

Dos humanos desatinos

E no pólo sempre incerto

Dos homens e dos destinos!

Por sentenças, por decretos

Pareceríeis divinos:

E hoje sois, no tempo eterno,

Como ilustres assassinos.

Ó soberbos titulares,

Tão desdenhosos e altivos!

Por fictícia austeridade,

Vãs razões, falsos motivos,

Inutilmente matastes:

- vossos mortos são mais vivos;

E, sobre vós, de longe abrem

Grandes olhos pensativos.

"Os Inconfidentes"

Toda vez que um justo grita

Um carrasco o vem calar

Quem não presta fica vivo

Quem é bom, mandam matar

Quem não presta fica vivo

Quem é bom, mandam matar

Foi trabalhar para todos

E vede o que lhe acontece

Daqueles a quem servia

Já nenhum mais o conhece

Quando a desgraça é profunda

Que amigo se compadece?

Modernismo – III fase

João Cabral de Melo Neto

Psicologia da Composição

II

Esta folha branca

me proscreve o sonho,

me incita ao verso

nítido e preciso.

Eu me refugio

nesta praia pura

onde nada existe

em que a noite pouse.

Como não há noite

cessa toda a fonte;

como não há fonte

cessa toda a fuga;

como não há fuga

nada lembra o fluir

de meu tempo, ao vento

que nele sopra o tempo.

VI

Não a forma encontrada

como uma concha, perdida

nos frouxos areais

como cabelos;

não a forma obtida

em lance santo ou raro,

tiro nas lebres de vidro

do invisível;

mas a forma atingida

como a ponta do novelo

que a atenção, lenta,

desenrola,

aranha; como o mais extremo

desse fio frágil, que se rompe

ao peso, sempre, das mãos

enormes.

O engenheiro

A luz, o sol, o ar livre

envolvem o sono do engenheiro.

O engenheiro sonha coisas claras:

superfícies, tênis, um copo de água.

Page 40: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

40

Literatura – Prof. Fabrício César

O lápis, o esquadro, o papel;

o desenho, o projeto, o número:

o engenheiro pensa o mundo justo,

mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos

ao edifício. A cidade diária,

como um jornal que todos liam,

ganhava um pulmão de cimento e vidro).

A água, o vento, a claridade,

de um lado o rio, no alto as nuvens,

situavam na natureza o edifício

crescendo de suas forças simples.

“A palo seco”

1.1. Se diz a palo seco

o cante sem guitarra;

o cante sem; o cante;

o cante sem mais nada

[...]

1.3. O cante a palo seco

é um cante desarmado;

só a lâmina da voz

sem a arma do braço

[...]

Graciliano Ramos

Falo somente com o que falo:

com as mesmas vinte palavras

girando ao redor do sol

que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,

resto de janta abaianada,

que fica na lâmina e cega

seu gosto da cicatriz clara.

* * *

[...]

Falo somente com o que falo:

quem padece sono de morto

e precisa um despertador

acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,

e contra-pêlo, imperioso,

e bate nas pálpebras como

se bate numa porta a socos.

* * *

Catar feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:

jogam-se os grãos na água do alguidar

e as palavras na da folha de papel;

e depois joga-se fora o que boiar.

Certo, toda palavra boiará no papel,

água congelada, por chumbo seu verbo:

pois para catar feijão, soprar nele,

e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão, entra um risco:

o de entre os grãos pesados entre

um grão qualquer, pedra ou indigesto,

um grão imastigável, de quebrar dente.

Certo não, quanto ao catar palavras:

a pedra dá à frase seu grão mais vivo:

obstrui a leitura fluviante, flutual,

açula a atenção, isca-a com o risco.

Tecendo a manhã

1.

Um galo sozinho não tece uma manhã:

Ele precisará sempre de outros galos.

De que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe esse grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

2.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, freqüentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

Page 41: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

41

Literatura – Prof. Fabrício César

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

lições de pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.

*

Outra educação pela pedra: no Sertão

(de dentro para fora, e pré-didática).

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

e se lecionasse, não ensinaria nada;

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

uma pedra de nascença, entranha alma

Cemitério Pernambucano

(Nossa Senhora da Luz)

Nesta terra ninguém jaz,

pois também não jaz um rio

noutro rio, nem o mar

é cemitério de rios.

Nenhum dos mortos daqui

vem vestido de caixão.

Portanto, eles não se enterram,

são derramados no chão.

Vêm em redes de varandas

abertas ao sol e à chuva.

Trazem suas próprias moscas.

O chão lhes vai como luva.

Mortos ao ar-livre que eram,

hoje à terra-livre estão.

São tão da terra que a terra

nem sente sua intrusão.

Morte e vida Severina (Auto de Natal Pernambucano) 1954-1955

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É

E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,

Não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,

já finados, Zacarias,

vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas,

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

[...]

Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.

[...]

Page 42: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

42

Literatura – Prof. Fabrício César

Poesia Concreta

Décio Pignatari

Augusto de Campos

Augusto de Campos

Augusto de Campos

Pedro Xisto

Page 43: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

43

Literatura – Prof. Fabrício César

Pedro Xisto

vai e vem

e e

vem e vai

José Lino Grünewald

V V V V V V V V V V

V V V V V V V V V E

V V V V V V V V E L

V V V V V V V E L O

V V V V V V E L O C

V V V V V E L O C I

V V V V E L O C I D

V V V E L O C I D A

V V E L O C I D A D

V E L O C I D A D E

Ronaldo Azeredo

José Paulo Paes

Décio Pignatari

Philadelpho Menezes

Page 44: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

44

Literatura – Prof. Fabrício César

Poema/processo

Poema Código

FOME

José de Arimatéia

Poesia Social

Não há vagas

O preço do feijão

não cabe no poema. O preço

do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

a luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,

está fechado:

"não há vagas"

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

O poema, senhores,

não fede

nem cheira

Ferreira Gullar

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café

Nesta manhã de Ipanema

Não foi produzido por mim

Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro

E afável ao paladar

Como beijo de moça, água

Na pele, flor

Que se dissolve na boca. Mas este açúcar

Não foi feito por mim.

Este açúcar veio

Da mercearia da esquina e

Tampouco o fez o Oliveira,

Dono da mercearia.

Este açúcar veio

De uma usina de açúcar em Pernambuco

Ou no Estado do Rio

E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana

E veio dos canaviais extensos

Que não nascem por acaso

No regaço do vale.

Page 45: Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do

45

Literatura – Prof. Fabrício César

Em lugares distantes,

Onde não há hospital,

Nem escola, homens que não sabem ler e morrem

de fome

Aos 27 anos

Plantaram e colheram a cana

Que viraria açúcar.

Em usinas escuras, homens de vida amarga

E dura

Produziram este açúcar

Branco e puro

Com que adoço meu café esta manhã

Em Ipanema.

Ferreira Gullar

Poesia Marginal

Papo de Índio

Veiu uns ômi di saia preta

cheiu di caixinha e pó branco

qui eles disserum qui chamava açucri

aí eles falarum e nós fechamu a cara

depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo

aí eles insistirum e nós comemu eles.

Chacal

cansei da frase polida

por anjos da cara pálida

palmeiras batendo palmas

ao passarem paradas

agora eu quero a pedrada

chuva de pedras palavras

distribuindo pauladas

Paulo Leminski

Descartes Não há

no mundo nada

mais bem

distribuído do que a

razão: até quem não tem tem

um pouquinho

Cacaso

Pega ladrão

Alguém tirou

um pedaço

do meu

P ~

O

Kátia Bento

Amor, então,

também acaba?

Não, que eu saiba.

O que eu sei

é que se transforma

numa matéria-prima

que a vida se encarrega

de transformar em raiva.

Ou em rima.

Paulo Leminski

moinho de versos

movido a vento

em noites de boemia

vai vir o dia

quando tudo que eu diga

seja poesia

Paulo Leminski

o pauloleminski

é um cachorro louco

que deve ser morto

a pau a pedra

a fogo a pique

senão é bem capaz

o filhodaputa

de fazer chover

em nosso piquenique

Paulo Leminski

Rápido e Rasteiro

Vai ter uma festa

que eu vou dançar

até o sapato pedir pra parar.

aí eu paro

tiro o sapato

e danço o resto da vida.

Chacal

saber é pouco

como é que a água do mar

entra dentro do coco?

Paulo Leminski

esta vida é uma viagem

pena eu estar

só de passagem

Paulo Leminski