Apresentação Do Dilema Brasileiro

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  • 7/24/2019 Apresentao Do Dilema Brasileiro

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    Existe um aspecto pertencente disparidade brasileira, aqui discutida, quecostuma ser depreciado ou pouco aprofundado: nossa prpria constituio scio-cultural. Sob a gide dos trabalos do antroplogo brasileiro !oberto "a#atta, $"pela %ni&ersidade de 'ar&ard, gostaria de tra(er baila sua an)lise antropolgicasocial do *dilema brasileiro+, isto , a origem da desarmonia entre a legalidade e arealidade no nosso pas.

    bser&ando todas as constituies que /) ti&emos, percebemos que elas sealterna&am entre uma mais liberal e outra mais autorit)ria. $or exemplo: a 0onstituiode 1234, a mais democr)tica do seu tempo, que logo foi substituda pelacentrali(adora de 1235, aps o 6olpe de Estado de 6et7lio 8argas, at que 1249, umano&a constituio resgatou os princpios da de 1234.

    companando essas mudanas esta&am, no s, o go&erno e seus interesses,mas tambm fortes influ;ncias de constituies estrangeiras. lguns exemplos so: ados Estados %nidos da mrica, que influenciou a nossa de 1 a democr)tica 0onstituio de ?eimar, dalemana, que influenciou a brasileira de 1234> a constituio seguinte, de 1235, foiat camada de *polaca+, se baseou na 0onstituio $olonesa. Essas influ;nciasdemonstram um dos primeiros traos da nossa formao como pas: a apropriao demodelos estrangeiros prontos para alicerar o Estado e pautar pensamento social.0omo consequ;ncia, como afirma&a lceu moroso @ima, a formao do Estadobrasileiro precedeu a da nao.

    Se contextuali(armos isso na poca da formao dos Estados-naes, no sculoABA, &eremos exemplos na prpria Europa de pases, como a Crana, em que a&iaum Estado formado, mas no uma nao. 0omo 'obsbaDm demonstra no seu li&ro *

    Era das !e&olues+, os pases europeus e os Estados %nidos passaram por&erdadeiras re&olues sociais para a construo dos seus respecti&os Estados-naes. Coram essas re&olues que criaram naes aonde s a&ia Estados.

    o caso do =rasil, assim como &)rios outros pases, entre eles os latino-americanos em geral, no passaram por esse processo> no ou&e uma re&oluocriadora da nossa nao> somos *indefinidos+ at o/e. $or muito tempo, o =rasil note&e Estado, porque era apenas uma colFnia> a $roclamao da !ep7blica tratou dacriao do Estado, mas e a naoG S a&ia: o que restara dos ndios que forammassacrados e no tinam uma uniformidade cultural> a&ia os brancos portugueses,que, ob&iamente, detinam o poder e eram subordinados ao seu pas de origem> e os

    negros escra&os que carrega&am diferentes aspectos da sua cultura africana. Huandoo Estado foi criado, a populao nem soube. o ou&e nenuma participao dopo&o nesse e&ento. E depois dele, qual re&oluo popular ocorreu para criar a nossanao, unificando as suas di&ersidadesG enuma.

    ssim carregamos at o/e um Estado afastado do seu po&o. lm daquelamarginali(ao popular que &imos e at o/e reconecemos, ainda existia, comotambm ainda existe, a influ;ncia da cultura estrangeira moderna. pas, no sculoABA, no perodo da Bndepend;ncia, era incontesta&elmente atrasado> mas elite tinaligaes com a Europa, com a cultura e pensamento tambm dos Estados %nidos, /)com um desen&ol&imento consider)&el na poca> ento, ob&iamente, por mais

    des&inculado que fosse ao contexto brasileiro, seria nos moldes europeu e americanoque se baseariam para criar nosso Estado e tentar organi(ar a sociedade.

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    Se isso ou&esse se restringido apenas ao incio da formao do pas, noa&eria problema, pois depois poderia acontecer a re&oluo social que nos falta&apara que pudssemos criar, realmente, nosso Estado-nao, como fi(eram oseuropeus> mas isso no aconteceu. 0arregamos ainda essa depend;ncia das ideiasmodernas, como &imos nas nossas constituies. Bsto le&a, a uma disparidade entre oEstado e a sociedade. $ara ilustrar um pouco mais essa questo, podemos ter comoexemplo a tecnocracia da poca da ditadura militar. $ara tratar da economia, porexemplo, se trabala&a com os melores economistas: formados na Europa,entendendo sobre a economia de l), a sociedade deles, suas ati&idades econFmicasetc. Ira(iam essas ideias para c) como se fossem uni&ersais, acreditando que numpas moderno apenas no Jmbito formal pudesse aplicar aquelas medidas. K claro queo resultado foi pssimo e os demais go&ernos ti&eram que lidar com asconseqL;ncias. Iambm /) ti&emos constituies muito modernas, liberais,igualit)rias, como a de 1 a atual, de uma curiosa dicotomia:a exist;ncia, de um lado, da modernidade igualit)ria indi&idualista e, do outro, opatriarcalismo ier)rquico relacional personalista.

    lado moderno se caracteri(a, principalmente, por uma igualdade formalmenteassegurada atra&s da imparcialidade, o que no anula o indi&idualismo comum ao

    capitalismo odierno. Iemos, portanto, pases em que o Estado se preocupa ematender as necessidades de todas as camadas sociais em geral, garantindo o mesmotratamento b)sico para todos atra&s de instituies formali(adas e impessoais. essemesmo contexto, o desen&ol&imento indi&idual estimulado, principalmente para segarantir o crescimento do pas como um todo sob os ditames capitalistas.

    outro lado o tradicional, aquele que mantm a sociedade ierarqui(ada, comcamadas sociais bem definidas, que no se misturam, o que gera a desigualdade.!oberto "a#atta demonstra que nos estudos antropolgicos em geral, se reconecenas sociedades tradicionais o patriarcalismo, isto , a &alori(ao do omem emdetrimento da muler. o *@i&reiro de 0abul+ &imos isso exausti&amente. utro

    aspecto importantssimo dessas sociedades a super&alori(ao dada s relaespessoais. s sociedades antigas, em geral, eram pequenas, &)rios grupos dispersos,

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    como em tribos indgenas. esses pequenos grupos, as relaes pessoais eram muitoimportantes, /) que todos se coneciam naquele pequeno espao. &anando notempo, reconecemos como que em cidades pequenas do interior, na *roa+, como secostuma camar, todos se conecem, se falam, o que le&a a uma consequente&alori(ao das relaes pessoais. partir disso, &em o personalismo, que torna quemantes era apenas mais um indi&duo em uma pessoa distinta. ra, se todos seconecem e se relacionam, o outro passa a ter nome, caractersticas, se torna umapessoa especfica> no se trata de mais um num todo, como comum em grandescidades, onde existem muitas pessoas e os rostos se apagam na multido.

    $elo que &imos at agora, esses dois lados, o moderno e o tradicional, soabsolutamente opostos. $or isso, podemos considerar esses extremos, num primeiromomento, como uma dicotomia. "a#atta considera&a o romance *"ona Clor e seusdois maridos+, de Oorge mado, como uma perfeita met)fora do =rasil e, portanto, danossa dicotomia.

    Bnteressa-nos quanto essa obra apenas saber qual a representao de "onaClor, e quem so seus dois maridos: 8adino e Ieodoro #adureira. 8adino foi seuprimeiro esposo, que faleceu em pleno dia de 0arna&al. Ele o retrato de um&erdadeiro malandro: bo;mio, praticante de /ogos de a(ar, que arruma um */eitino+para tudo e &i&e rodeado de amigos e muleres. Ele tina o que dese/a&a de "onaClor para continuar tendo a sua *&ida f)cil+. Ela que se submetia s &ontades dele,aturando suas infidelidades e pJndegas. Ieodoro #adureira era seu segundo marido eo oposto do primeiro: um farmac;utico, omem comedido, sossegado, inteligente,toca&a fagote. seu lema, pendurado na farm)cia, era: P%m lugar para cada coisa ecada coisa em seu lugarP.Enquanto noi&o da "ona Clor, mante&e um casto noi&ado,

    nem fica&a a ss com ela> agora, quando ela se casou com 8adino, usou um &estidoa(ul na cerimFnia porque no te&e coragem de usar um branco.Huando "ona Clor comea a ser perturbada pelas aparies sobrenaturais de

    8adino, que a fica&a tentando, curiosamente, sempre nu, acaba sofrendo um certoabalo, sente saudade do falecido, fraque/a... #as tambm no consegue sedes&incular de Ieodoro que le d) uma &ida to boa, feli( e tranquila. K a que comeao dilema de "ona Clor: melor ficar com o malandro do 8adino, ou com o metdicoIeodoroG Ela at se en&ol&e com o candombl para tentar se li&rar de 8adino, numapassagem do li&ro que trata da mistura entre este credo e o catolicismo europeu nanossa sociedade. #as, no final, /) conecemos a deciso: ela no fica nem com um

    nem com o outro> escole os dois.ssim o =rasil. qui, aquele princpio dos pases modernos desen&ol&idos *dopreto no branco+, *ou uma coisa ou no +, no funcionam. s extremos se tocam, ea modernidade con&i&e com o tradicionalismo> a impessoalidade, com o personalismo>a igualdade, com a ierarquia. gora, /) no de&emos mais utili(ar o termo*dualidade+, mas sim o *dilema brasileiro+, como "a#atta cama essa armFnicacontradio em que &i&emos.

    esfera da igualdade impessoal indi&idualista camado pelo antroplogo de oespao da *rua+> o lado tradicionalista em que as relaes pessoais imperam, oespao da *casa+. K f)cil de reconecer como *na rua+, isto , na faculdade, por

    exemplo, de&emos nos portar com formalidade, tratando, principalmente, osprofessores com muita polide(, nos &estindo de forma mais comedida, estudando os

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    pensadores europeus e nos portando como liberais. Iambm assim no trabalo,como no lado dos nossos prprios professores> e no diferente no Estado, onde tudo moderno no papel, nos discursos e nas &estimentas. #as por baixo dos panos,quando &oltamos para *casa+, para o seio familiar, os sapatos do lugar s sand)lias'a&aina, a polide( abre espao para os pala&res e grias, &oltamos a &i&er com osnossos preconceitos e deixamos de lado a roupagem liberal igualit)ria> em *casa+, a7ltima pala&ra a do omem N o que at tem mudado com o ad&ento mais forte daindepend;ncia da muler moderna> entrega-se ao futebol, cer&e/a, ao racismo. Kdentro dela que nos sentimos confort)&eis para fa(er tudo que a *rua+ condena.

    K exatamente pelo desconforto que ela causa, que muitas &e(es a *casa+ ain&ade. Bsto , pura e simplesmente, a in&aso do espao p7blico pelo espao pri&ado>isto o incio da in/ustia poltica. que o nepotismo seno um familiar dando umaforcina para o outroG ada mais comum e /usto no nosso cotidiano do que um paitentar arrumar um emprego para o filo na mesma firma em que ele trabala. E oclientelismo no go&ernoG Existem &)rios empregados em ser&ios p7blicos queconseguiram o cargo atra&s de fa&ores de candidatos polticos, e por isso trocamseus &otos. E a corrupo como um todoG Huantos brasileiros t;m sua energia eltricaatra&s de *gatos+, ?indoDs pirateado nos seus computadores, carro caindo aospedaos passando pela &istoria porque o funcion)rio seu conecido, ou quesonegam o imposto de rendaG $ara tudo se d) um */eitino brasileiro+. Iodas asdiscrepJncias que &emos e apontamos no Estado so apenas as pr)ticas a n&elnacional do nosso cotidiano.

    Bsso demonstra que o abismo entre o Estado e a realidade brasileira algo muitomais profundo do que um Estado moderno repleto de corruptos numa sociedade com

    traos tradicionalistas. problema do Estado na &erdade o problema de toda asociedade brasileira.esse ponto, alguns podem estar pensando: mas como isso se sustentaG Se

    duas coisas opostas &i&em em constante atrito, ento em algum momento eles &o seanular, a&er) uma re&oluo e essa condio ser) superada. =em, como /) disse, algica dos modernos ocidentais no funciona aqui> entre os alemes, franceses, ouingleses, duas coisas opostas no podem coexistir> realmente, entram em conflito, seanulam, e cada coisa &ai para o seu de&ido lugar. #as no =rasil existe mais do que umcinismo: uma tolerJncia armFnica. qui, ns preferimos muito mais um acordo a umconflito. K dessa maneira que ) mais de QMM anos as coisas continuam, na base, as

    mesmas coisas. espao da *rua+ pode incomodar o da *casa+, mas tambmprecisamos de um Ieodoro #adureira para &i&er em pa(.Esses opostos se entrelaam, e mesmo que por &e(es se coquem, no final, tudo

    fica bem, ou, como di(emos: *acaba em pi((a+. ssim, o abismo entre a prprialegalidade e a realidade se torna ainda mais profundo, mesmo com os opostos setocando. K dessa maneira tolerante e acomodada que a in/ustia continua, acorrupo /unto dela, a &iol;ncia &indo logo em seguida, /) que quando o */eitino+ nofunciona, s batendo para se conseguir o dineiro que se precisa. "eixando comoest), continuaremos da mesma maneira de sempre, mas reconecendo o nossoprprio dilema, podemos dar incio bem distante tentati&a de mudar o lado triste e

    pobre do nosso pas.