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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ÀQUELES QUE TÊM NA PELE A COR DA NOITE Ensinâncias e Aprendências com o Pensamento Africano Recriado na Diáspora VANDA MACHADO Salvador, Ba 2006

Àqueles que têm na pele a cor da noite

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Ensinâncias e Aprendências com o Pensamento Africano Recriado na Diáspora. Vanda Machado Salvador, Ba. 2006.

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Page 1: Àqueles que têm na pele a cor da noite

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ÀQUELES QUE TÊM NA PELE A COR DA NOITE

Ensinâncias e Aprendências com o Pensamento

Africano Recriado na Diáspora

VANDA MACHADO

Salvador, Ba

2006

Page 2: Àqueles que têm na pele a cor da noite

i

VANDA MACHADO

ÀQUELES QUE TÊM NA PELE A COR DA NOITE

Ensinâncias e Aprendências com o Pensamento

Africano Recriado na Diáspora

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutora em Educação.

Professor Orientador: Dr. Augusto Dante Galeffi Co-orientadora: Professora Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Salvador, Ba

2006

Page 3: Àqueles que têm na pele a cor da noite

M149 Machado, Vanda. Àqueles que têm na pele a cor da noite: ensinâncias e aprendências

com o pensamento africano recriado na diáspora / Vanda Machado. – Salvador : V. Machado, 2006.

xi, 222f. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de

Educação. Programa de Pós-graduação em Educação. Orientador: Prof. Dante Augusto Galeffi. Co-orientadora: Profa. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. 1. Crianças negras - Educação 2. Negros - Educação 3. Negros –

Brasil – Identidade ancestral. I. Galeffi, Dante Augusto II. Silva, Petronilha Beatriz Gonçalves e III. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação IV. Título

CDD 379.81

Page 4: Àqueles que têm na pele a cor da noite

ii

TERMO DE APROVAÇÃO

VANDA MACHADO

ÀQUELES QUE TÊM NA PELE A COR DA NOITE Ensinâncias e Aprendências com o Pensamento Africano Recriado na

Diáspora

Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação,

Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte Banca Examinadora:

Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi – Orientador ________________________________ Universidade Federal da Bahia Prof. Dr. Eduardo David de Oliveira________________________________________ Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. Vilson Caetano de Souza Junior______________ Universidade Estadual da Bahia Prof. Dr. Roberval Marinho_______________________________________________ Universidade Católica de Brasília

Prof. Dr. Roberto Sidney Macedo__________________________________________ Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. Ubiratan Castro Araújo__________________________________________ Universidade Federal da Bahia Universidade Estadual da Bahia

Salvador, 21 de dezembro de 2006

Page 5: Àqueles que têm na pele a cor da noite

iii

inn memoriam

A Carlos Petrovich (Petrô) pelo companheirismo nesta

jornada, pela sabedoria na convivência e pela bonita

história de amor que tenho para contar.

A Luiz Felippe Serpa pelo encantamento acadêmico que

num momento de turbulência reconstruiu o sentido deste

meu fazer. Ambos têm em comum minha eterna

admiração

A Antonio e Idalina, ancestrais que me acolheram no calor

das suas entranhas, quando eu já trazia a marca e a

coragem de ter na pele a cor da noite.

Page 6: Àqueles que têm na pele a cor da noite

iv

CELEBRANDO ENCONTROS

Ao longo desta jornada fui descobrindo muitas pedras que encantaram o caminho de

muitos encontros. Encontrei presenças e afetos que revitalizam a alma e me dão

inteireza para continuar a caminhada heurística numa existência que considero singular.

Força vital que me autoriza reinventar outras prosas, outras histórias, outros caminhos e

outras celebrações.

Assim celebro:

As meninas e os meninos a comunidade Afonjá pela força e razão primeira deste

exercício acadêmico.

Na pessoa de Mãe Stela, a comunidade Afonjá e toda ancestralidade que cultivaram

tudo que herdaram dos antigos reinos da África, nos honrando com a guarda desse

importante legado cultural, histórico, filosófico e religioso.

A querida preceptora Ebome Detinha de Xangô, que não economiza a sua sabedoria na

compreensão e na transmissão dos valores herdados para a continuidade da tradição em

nossa família ancestral.

Celebro meus filhos Ana Regina, Cláudio Sérgio, Lívia Fernanda e Elcio, minhas irmãs,

Perpetua, Hermínia, Luciene e Edna, e meus netos Sergio, Marquinhos, Flavia e Fábio

Andréa e Binho, Junior, Ludmila, Victor, Pedro e Julinho que me renovam na alegria de

viver mais.

Celebro a presença amiga do mestre Dante Augusto Galeffi, companheiro polifônico no

engendramento das subjetividades e na construção vigorosa de uma ciência eivada de

sensibilidade.

Celebro Roberval Marinho por sua prosa que nos aproxima da sabedoria ancestral.

Os queridos mestres Petronilha Silva e Ubiratan Castro pela disponibilidade e incentivo

para esta pesquisa.

O queridíssimo professor Roberto Macedo e o acolhimento do Grupo de Pesquisa em

Currículo Complexidade e Formação (FORMACCE e SINPRO Bahia)

Page 7: Àqueles que têm na pele a cor da noite

v

Celebro o mestre Miguel Bordas, iniciador da minha interlocução acadêmica, e que

sempre confiou no meu trabalho.

Celebro a presença amiga de funcionários e funcionarias desta casa que nos partejam

facilitando o nosso desempenho e formação.

A Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC - 1998), que adotou o Projeto-

Político Irê Ayó, contribuindo para que a Escola Eugênia Ana dos Santos fosse

qualificada pelo MEC como Escola de Referência Nacional.

As educadoras da Escola Municipal Eugênia Ana dos Santos que se doaram

incondicionalmente para esta construção, muito especialmente Ana Paula Gonçalves e

Ana Lúcia, que incluíram em seus estudos monográficos a experiência vivenciada com

o Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó.

A Escola de Teatro, na pessoa da professora Eliene Benício que me acolheu como

pesquisadora convidada do Núcleo de Estudos de Teatro Popular Técnica de Espetáculo

e Cultura Afro-brasileira (NET POP).

Celebro Márcio Meireles, que emprestou a sua poesia ter na pele a cor da noite para

minha homenagem ao teatro negro como a utopia realizável de Carlos Petrovich.

Os meus irmãos Pai Geraldo Jinan e Pai Reginaldo Toripê, que me fizeram mãe de seus

filhos gerados pela ancestralidade.

Os queridos amigos Álvaro Cardoso e Risomar, Patrícia Reliana e Sabrina Gledhill,

pelo cuidado com as minhas composições textuais.

Celebro, com muita alegria, as presenças encantadas de Ana Célia, Vilson Caetano,

Lindinalva, Augusto Conceição, Gabriel, Eduardo Carvalho, Grazia, Ana Paula, Vivian,

Neguinho do Samba e todo povo da Didá Escola de Música, Merry, Ana Rita Ferraz,

Denise Guerra, Gideon, Marco Antonio, Marmo, Miguel Almir, Lívia Castro, Rafael e

Tânia, Lílian e Marcio, Anativo, Marcos Machado, Merry, André Mustafá e Marilia.

Finalmente, celebro meus padrinhos Nicolau Barbosa e Iaiá Pinheiro, que pelo exemplo

me ensinaram a esperança.

Page 8: Àqueles que têm na pele a cor da noite

vi

Ancestralidade

Ouça no vento O soluço do arbusto:

É o sopro dos antepassados. Nossos mostos não partiram.

Estão na densa sombra. Os mortos não estão sobre a terra.

Estão na árvore que se agita, Na madeira que geme, Estão na água que flui,

Na água que dorme, Estão na cabana, na multidão;

Os mortos não morreram... Nossos mortos não partiram:

Estão no ventre da mulher No vagido do bebê

E no tronco que queima. Os nossos não estão sobre a terra:

Estão no fogo que se apaga, Nas plantas que choram,

Na rocha que geme, Estão na casa.

Nossos mortos não morreram

Birago Diop – poeta africano

Page 9: Àqueles que têm na pele a cor da noite

vii

RESUMO Esta tese tem como objetivo investigar possíveis relações entre histórias de vidas - o

pensamento africano recriado na diáspora, mais precisamente na comunidade de terreiro

do Ilê Axé Opo Afonjá em Salvador-Bahia e a formação de sujeitos autônomos e

coletivos. Esta é uma abordagem de inspiração fenomenológica que atraiu uma escrita

etnográfica, dada a compreensão da importância de atores e interlocutores que construíram

comigo este trabalho. Trata-se de um intertexto polifônico, que não se pretende normativo,

muito menos prescritivo. Neste contexto, estamos considerando aspectos essenciais do

pensamento africano vivenciados tanto na comunidade do terreiro, como no que se

esparrama na sociedade que os contém numa existência fluida e dinâmica. Estes são

aspectos importantes de onde é possível florescer a base de uma educação rizomática para

a criança brasileira. O que se pretende de fato é a busca de uma realidade não fragmentada

pela necessidade nem sempre mítica, de ligar todas as coisas entre si, e o cotidiano na sua

instabilidade reestruturante. A realização deste estudo com o pensamento africano no

Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó enquanto construção coletiva, em sua complexidade,

articula a tradição, vivências pedagógicas e reflexões que se definem como estratégia

política que desvela uma realidade cotidiana silenciada embora criadora e humanizante.

Vivemos, portanto, a perspectiva de en-sinamentos de um mundo que continua sendo

construído onde o contexto humano se surpreende desvelando muito de si mesmo e de

uma história que está sendo escrita repleta de conflitos e subversão. Trata-se de exercitar o

pensamento sobre a questão, revisitando outros paradigmas para uma efetiva interferência

curricular. Inicialmente, nos apoiamos na metodologia da escuta em diferentes

comunidades negras, buscando sentir o universo cultural, afetivo imaginário,

comportamentos, sistema de conceitos, valores e crenças que contribuem para a

compreensão contextualizada da cultura e de aspectos da história do povo brasileiro. Nesta

perspectiva, pode-se perceber a idéia de categorias fundamentais a serem consideradas na

complexidade desta construção, entre outras: memória, autonomia, cotidiano, tradição,

oralidade e convivência solidária. Tais categorias aguçam a consciência histórica, para a

universalização dos saberes e a distinção do singular e do individual na coletividade. A

interferência curricular tende a manter os estudantes negros próximos aos mananciais das

ciências, da filosofia, da literatura e das artes, revertendo os argumentos coisificantes que

nos foram ensinados, sem perder de vista a identidade ancestral que alarga a consciência e

autoriza a reinvenção da história.

Palavras-chave: Crianças negras; Educação; Identidade Ancestral; Pensamento africano;

História de vida.

Page 10: Àqueles que têm na pele a cor da noite

viii

ABSTRACT The aim of this dissertation is to investigate the possible relationships between life stories

– African thinking recreated in the Diaspora, more precisely in the community of the Ilê

Axé Opo Afonjá Candomblé terreiro (temple, but literally “compound”) and the

formation of autonomous and collective subjects. This is a phenomenologically inspired

approach that led to an ethnographic treatment, given the understanding of the actors and

interlocutors who have built up this work along with me. It is a polyphonic intertext that is

not intended to be standardizing or prescriptive, but rather transcendent. In this context,

we are considering essential aspects of African thinking experienced both in the terreiro

community and the manner in which it spreads throughout society, which contains them in

a fluid, dynamic existence. These are important aspects of places where it is possible for a

rhizomatic basis for educating Brazilian children to flourish. The basic objective is to

unearth a reality that is neither fragmented by necessity nor always mythical; a way of

interconnecting everything; and the day-to-day realities of its restructuring instability.

Conducting this study of African thinking in the Irê Ayó Political-Pedagogical Project as a

collective construct in all its complexity brings together tradition, teaching experiences

and reflections that take shape as a political strategy that reveals a silenced, albeit creating

and humanizing day-to-day reality. Therefore we are experiencing the prospect of

education in a world that is still being built, in which the human context takes itself by

surprise, revealing much of itself; and of a story that is still being written, replete with

conflicts and subversion. This study deeply ponders these issues, revisiting other

paradigms in order to achieve an effective curricular interference. Initially, this study was

based on the method of listening in on different black communities, seeking to get a sense

of their cultural world, affective-imaginary dimension, behaviors, system of concepts,

values and beliefs that have contributed to the contextualized understanding of the culture

and aspects of the history of the Brazilian people. From this standpoint, one can perceive

the idea of the basic categories to be considered in the complexity of this construction,

including memory, autonomy, daily life, tradition, orality and compassionate coexistence,

among others. These categories heighten historical awareness of the universalization of

knowledge and the distinction of the singular and individual within the collective. This

interference in the curriculum keeps black students close to the sources of the sciences,

philosophy, literature and the arts while reversing the objectifying arguments we have

been taught, without losing sight of the ancestral identity that expands awareness and

authorizes the reinvention of history.

Key words: Black children; Education; Ancestral identity; African thing; Life Stories

Page 11: Àqueles que têm na pele a cor da noite

ix

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 1

2. NA CAMINHADA HEURÍSTICA: diálogo e com-vivência com a

natureza ancestral ...................................................................................................... 9

2.1 O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO IRÊ AYÓ: um caminho de alegria? .................................................................................................................. 10

2.2 OUVINDO VOZES DE TODOS OS MUNDOS ................................................. 12

2.3 NA AFIRMAÇÃO DO SER: memórias e histórias, o vivido e o encarnado ....... 13

2.4 É PRECISO TER CORAGEM PRA TER NA PELA A COR DA NOITE ......... 15

2.5 NEM SAGRADO, NEM PROFANO: vivendo a vida sem fronteiras.................. 17

2.6 ANTONIO SANTEIRO: canto, danço escutando o mundo e celebrando a vida, logo eu sou................................................................................................. 18

2.7 EDUCAR EN-SINANDO NA EXTRAORDINARIEDADE do cotidiano.......... 21

2.8 DESVELANDO O SAGRADO COM BONITEZA E ALEGRIA....................... 24

2.9 O CORTEJO: re-existência do poder real............................................................. 27

2.10 MITOS E OS RITUAIS: a chave que abre a memória de um povo ................... 31

2.11 RECONHECENDO AS MÚLTIPLAS VERDADES ........................................ 34

2.12 A ÁGUA VIDA E MÃE DA INTELIGÊNCIA PLANETÁRIA ....................... 37

2.12.1 Água: força que caminha em nós e no mundo.............................................. 37

2.13 O SAGRADO É REAL POR EXCELÊNCIA.................................................... 40

2.14 JOGANDO O JOGO NA VIDA ......................................................................... 43

2.15 JOGANDO O JOGO DE EXISTIR COMO NAVIO GUERREIRO ................. 47

2.16 SABER DE SI: mitologia como princípio para iniciação na vida ...................... 49

2.17 CAMINHOS ABERTOS: ou tecendo ensinâncias e aprendências..................... 51

2.17.1 Outras aprendências ...................................................................................... 55

3. AÇÃO, PESQUISA, ITINERRÂNCIA, APRENDÊNCIAS

E ESCRITA............................................................................................................... 58

3.1 DE VOLTA AO PRESENTE DO PASSADO ..................................................... 60

Page 12: Àqueles que têm na pele a cor da noite

x

3.2 EU SOU COMO NÓS SOMOS............................................................................ 62

3.3 TEM QUE TROCAR A MÚSICA E O TOM DA MÚSICA............................... 64

3.4 TRABALHO EXPLORATÓRIO OU VIVÊNCIA COMUNITÁRIA? ............... 66

3.5 SABEDORIA E SABERES: um jeito próprio de ser-no-mundo.......................... 68

3.6 O MUNDO COMO GEOGRAFIA SAGRADA .................................................. 69

3.7 EU ME VEJO, EU ME SINTO, EU ME ESCUTO E NÓS nos construímos ...... 72

3.8 QUEM CONTA UM CONTO PRESERVA A PALAVRA E TRADIÇÃO........ 73

3.9 APRENDENDO A APRENDER O CORPO CULTURAL ................................. 76

3.10 ABRINDO CAMINHOS NO MUNDO, CANTANDO E DANÇANDO.......... 78

3.11 ÁGUA SILENCIOSA E INSONDÁVEL: água início da vida .......................... 84

3.12 O PENSAMENTO AFRICANO COMO FUNDANTE PARA A

FORMAÇÃO E CAMINHADA HEURÍSTICA ................................................ 86

3.13 NO DIA EM QUE EU ME VI NASCENDO ..................................................... 87

3.14 O DIA DO NOME: de volta à ancestralidade..................................................... 89

3.15 EBOME DETINHA: en-sinando e desvelando a alma do outro......................... 92

3.16 A ESCUTA DA COMUNIDADE: dialogando com as falas e o não dito.......... 97

4. PROSA DE NAGÔ ................................................................................................. 100

4.1 COM A PALAVRA MÃE STELLA: ................................................................. 100

4.2 MISTÉRIO, FILOSOFIA, CIÊNCIA, ARTE E ALEGRIA............................... 101

4.3 SEXTA-FEIRA É DIA DE BRANCO ............................................................... 102

4.4 DESCAMINHOS DA ESCOLA: criando veredas e abrindo porteiras .............. 103

4.5 A FALA COM A COMUNIDADE AFONJÁ.................................................... 105

4.6 PROSA DE NAGÔ I........................................................................................... 110

4.6.1 O ferreiro da vida e dos caminhos ................................................................ 111

4.6.2 Outra história: ancestralidade, pensamento africano e formação de

seres autônomos e coletivos.......................................................................... 116

4.6.3 O dono de todos os caminhos ....................................................................... 119

4.6.4 A mãe da beleza e das artes........................................................................... 121

4.6.5 A mãe da vida e do ser adulto ....................................................................... 124

4.6.6 A dona dos ventos e do amor humano .......................................................... 125

4.7 SEM CENSURA................................................................................................. 128

4.8 PROSA DE NAGÔ II ......................................................................................... 131

Page 13: Àqueles que têm na pele a cor da noite

xi

4.8.1 Ossain, o senhor das folhas da saúde, do ara e do orí .................................. 134

4.8.2 O provedor das comunidades: o caçador de uma flecha só......................... 136

4.8.3 O criador dos homens e portador da sabedoria............................................. 141

4.8.4 O senhor da justiça e arrimo da comunidade Afonjá .................................... 148

4.8.5 Assim no orun como no aiyê ........................................................................ 150

5. RODA DE CONVERSA: um exercício na prática de educação com o

pensamento africano recriado na comunidade Afonjá ....................................... 154

5.1 MÃE ANINHA QUERO MEUS FILHOS DE ANEL NO DEDO E

AOS PÉS DE XANGÔ ....................................................................................... 175

6. A ENCRUZILHADA É AQUI: e agora para onde vai o caminho? .................. 186

6.1 ENCRUZILHANDO VIDAS E CAMINHOS DE SABER ............................... 190

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 197

ANEXOS.......................................................................................................................207

Page 14: Àqueles que têm na pele a cor da noite

1

1. INTRODUÇÃO

A pesquisa, ora apresentada, vincula-se ao Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal da Bahia. O objetivo é contar a história de uma

caminhada heurística percorrida à luz do pensamento africano recriado na diáspora, e

sua conseqüente escrita.

Parte desta construção retrata a minha auto-escuta e a interlocução das muitas

pessoas que existem em mim mesma. Trata-se de pessoas que na complexidade da suas

existências vivenciam todos os tempos e todas as minhas idades. Isto é o que nos ensina

Bâ (1982) quando, fundamentado em mitos cosmogônicos, aponta a iniciação como

desvelamento da relação da pessoa consigo mesma e no universo entre os vivos e os

ancestrais.

Entendendo desde modo, a iniciação de seres considerados filhos do universo na

sua totalidade passa pelo ensinamento de histórias para o cuidado com a natureza, no

sentido de como respeitar-lhe o equilíbrio e não perturbar as forças que a animam na sua

extraordinariedade, considerando que conhecemos apenas o aspecto do visível onde

estamos incluídos. Ainda nos diz o autor que, de todas as “histórias” a maior e a mais

significativa é a do próprio homem, simbiose de todas as Histórias na vida.

Page 15: Àqueles que têm na pele a cor da noite

2

Das aprendências da iniciação, portanto, é que se cria a relação com o mundo

das forças que animam a vida e que pouco a pouco conduzirá este ser ao

autoconhecimento e a condição de guardião do mundo vivo. Esta perspectiva é o que

explica o simbolismo do corpo feito de uma parcela de tudo que pré-existiu antes dele

no universo e a complexidade do psiquismo.

Por analogia, consideramos este estudo como iniciático que não tem o mesmo

sentido do pensamento ocidental. Pensamos iniciação como educação na vida. Daí que

os primeiros momentos da formação das educadoras para a realização do Projeto

Político-Pedagógico Irê Ayó são considerados como um ato de fazer a cabeça, um

preparar-se para; não necessariamente relacionado com a religião ancestral. Mas que

não se afasta de aspectos da tradição, da espiritualidade e da consciência de estar com-

vivendo num mundo que é multirreferencial. Esta é, portanto, uma escrita que atende a

complexidade da consciência histórica que se funda em idéias de pessoas, de

civilizações, instituições e comunidades, incluindo a tradição oral que constitui o

pensamento africano recriado na diáspora.

Durante a semana da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, em

agosto de 2006, ouvi do Cheikh Mbake Diop, historiador de Senegal, quando lhe falei a

respeito da minha pesquisa: há duas formas de pensar o pensamento africano, uma é

nascer na África e a outra é deixar a África nascer em você. Eu não nasci na África

nem precisei partejar o pensamento africano nascendo dolorosamente em mim mesma.

Compreendo o pensamento africano que nasceu da minha condição de filha da diáspora,

portanto pensamento da minha familia biológica, da gente pobre e negra dos subúrbios,

e da convivência com a minha familia de santo na comunidade Afonjá. A esses espaços,

com-vivências acrescento a intensa comunicação com Omidire1, irmão mais velho da

família ancestral, encontrada do outro lado do Atlântico, mais precisamente em Osogbo,

terra de Oxum na atual Nigéria.

Das minhas experiências nasceu a idéia deste estudo para compreender o

pensamento africano como fundante na construção do Projeto Político-Pedagógico Irê

Ayó. O Irê Ayó tenciona outras possibilidades para formação, numa perspectiva de en-

sinar colocando o que en-sina e o aprendente na mesma condição de desvelamento de

caminhos de autonomia e solidariedade. Neste caso, considera-se a sina, o odu ou o

1 Felix Ayoh’OMIDIRE é professor de línguas e culturas modernas na Obafemi Awlowo University, Ilê-Ife, Nigéria.Doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Nós nos encontramos por ocasião da 7th Orisa World Conference, realizada no Institute of Cultural Studies Obafemi Awolowo University. Nigéria.

Page 16: Àqueles que têm na pele a cor da noite

3

caminho não como uma predição fatalista. Trata-se de fazer emergir todas as

possibilidades criadoras que podem ser alcançadas pelo sujeito na sua condição de

aprendente e ensinante.

O Irê Ayó foi concebido, então, pela escuta das múltiplas vozes do cotidiano da

comunidade Afonjá, pelas memórias, pelas vivências repetidas que se fundamentam em

experiências de pensamentos migrados de lugares onde somente o cognitivo não

alcança. Lugar onde a complexidade abraça realidades ampliadas e projetadas a partir

de condições que incluem a ancestralidade, o corpo, tempo e espaço.

O estudo consiste no desafio de considerar a minha própria história de vida.

História implicada com a comunidade a qual pertenço pelo compromisso de ser-sendo e

na radicalidade do projeto criado, desenvolvido e implantado na Escola Municipal

Eugênia Anna dos Santos, na comunidade de terreiro Ilê Axé Opo Afonjá, que

acompanhei desde 1997 até o dia 8 de fevereiro de 2003.

Escrever sobre experiências e vivências que se realizaram sem o propósito de se

tornar uma pesquisa requer uma redobrada atenção. Escrever sobre uma coleta de dados

de uma com-vivência comunitária que vem se consolidando há mais de vinte e dois anos

é, no mínimo, abissal. Tem sido extraordinário lidar com acontecimentos cotidianos e

suas causas moventes sem análise documental nem entrevista estruturadas ou

propositais. Como feita, aprendi a mergulhar nos mananciais mais fundos do

pensamento africano em nossa comunidade fugindo de qualquer pretensão do meu

julgamento em particular ou de criar fronteiras no complexo mapa dos saberes dos meus

interlocutores.

Considero esta escrita da maior importância e cuidado. O que não afasta a

possibilidade do congelamento da memória que atende uma dinâmica que vai além do

visível, do pensável e do dizível. Sempre que possível, o dito foi escrito integralmente.

São falas que contam histórias com o tempo verbal sempre no presente. Como afirma o

tradicionalista Bâ: De maneira geral, a memória africana registra toda cena: o cenário, os personagens, suas palavras, até mesmo os mínimos detalhes. Todos os detalhes possuem sua importância para a verdade do quadro. Ou narra o acontecimento em sua integridade ou não se narra. Se lhe for solicitado resumir uma passagem ele (o tradicionalista) responderá: Se não tens tempo para ouvir-me, contarei um outro dia (BÂ, 1982, p. 215).

Para a escrita deste estudo, considerei a oralidade e a memória na sua riqueza

semântica e originante do pensamento africano recriado na diáspora. Assim, optei em

combinar a forma, o conteúdo e o texto etnográfico com tudo que escutei e vivenciei

Page 17: Àqueles que têm na pele a cor da noite

4

nesses últimos vinte e três anos de convivência na comunidade que me acolheu como

filha.

Esta tem sido a tarefa mais difícil de ser realizada. É como olhar-se num

caleidoscópio e selecionar uma única forma dentre tantas outras que se movem e se

iluminam; que se aproximam e se afastam e se misturam. Formas que se repetem e

resistem emaranhando-se sem deixar-se aprisionar separadas do todo que a contém..

Parece que esta é uma imagem que pode ser aplicada ao pensamento africano quando se

reflete na palavra dos generalistas, daqueles que contam e recontam as histórias na vida.

Bâ (1982) nos aponta o sentido da pertinência das suas falas que se repetem sem receio,

intrincando várias áreas do conhecimento na construção de sua narrativa. O mesmo

autor nos diz ainda que: Tudo isso pode parecer caótico para um espírito moderno, mas para os tradicionalistas, se existe caos, é uma maneira das moléculas da água que se mistura no mar para formar um todo vivo. Nesse mar eles se movimentam com a facilidade de um peixe (BÂ, 1982, p.216).

Este é o sentido da palavra que transmite o tradicional pensamento africano. Ao

longo desta escrita em vários momentos há afirmações e ou palavras que se repetem,

mas sempre com um sentido a mais. Esta é também a escrita do indizível, a escrita dos

silêncios. O silêncio que se torna visível através das obrigações rituais como princípios

de segredos e fundamentos da tradição. O silêncio é o portal da tradição oral: é preciso

olhar e escutar o silêncio antes da escrita. É a escrita da fala dos sentidos. Numa recente

exposição do João Reis2 sobre a escrita, ele nos contou de uma escrita com sangue.

Escrita de um homem malê contando a sua dor, o seu lamento por ter sido escravizado.

Diante da escrita do sentimento, como relacionar a dor e o acontecimento que a gerou?

Como relacionar a escrita com os acontecimentos do presente do presente, do presente

do passado do presente do futuro? Como encontrar linhas de fuga para que sejam

inseridas outras histórias cujos registros se fazem imprescindíveis pelo próprio contexto

com o qual estamos dialogando?

Que contexto é este, quando a tradição de matriz africana passa a ser algo

desejável por outros segmentos da sociedade? Desejável, mais como algo que se adquire

e se impõe intromissões espúrias às suas vivências originantes. Esta é uma realidade

ambivalente que alinha e desalinha os princípios das comunidades de matriz cultural

2 João José Reis é professor na Universidade Federal da Bahia e autor da Rebelião escrava no Brasil: história do levante Malê em 1835.

Page 18: Àqueles que têm na pele a cor da noite

5

africana. Isto significa também que o lugar atende a uma certa dinâmica. E dinâmica

para ser real, há de ser não linear, portanto reconstrutiva e estruturante.

É verdade que o empenho desta pesquisa foi antes de tudo escutar, vivenciar e

compreender o pensamento africano recriado na diáspora. Isto implica na compreensão

dos acontecimentos cotidianos no terreiro e de como estes afetaram a mim mesma, a

formação das educadoras da Eugenia Anna, as crianças e a comunidade Afonjá. A

compreensão se estabeleceu como reflexão teórica para uma epistemologia

contemporânea orientando este estudo que me conduziu aos fundamentos da

etnopesquisa num encontro significativo com a abordagem autobiográfica, o

pensamento africano e sua abrangência na construção do Projeto Político Pedagógico

Irê Ayó sua realização e ressonâncias.

A construção do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó atendeu a pressuposição

de espaços escolares como possibilidades polilógicos, polissêmicos e polifônicas.

Escola lugar onde todas as vozes podem ser ouvidas onde tudo é juntado e tem

significado incluindo uma perspectiva de reconfigurar o processo educativo para a

perspectiva de sujeitos autônomos, coletivos e solidários a partir da cultura local. Na

construção da pesquisa ressalto a importância da fala de Galeffi quando diz que: O modo de acesso ao conhecimento das estruturas que conformam historicamente nossos modos de ser no mundo é aquele da vida cultural ativa. Sem história e sem memória, o ser humano cai no esquecimento do seu peculiar poder-saber. A vida espiritual dos povos se define pelos seus modos de vida. A sabedoria humana tem sua gênese no modo de ser dos povos e nações ao longo de suas histórias reais. O conhecimento humano só se desenvolve pela acumulação de potência provinda da combustão do que é vivo e vital na memória do tempo presente (GALEFFI, 2003, p.121).

Ao longo deste estudo, considerei a relevância de tudo que se vive na

comunidade como princípios fundantes da com-vivência do grupo. A partir da

compreensão de valores comuns, é possível predizer algumas reações características e

cambiantes entre os indivíduos, em grande parte de situações conhecidas. São atores e

autores que particularizam um modo de vida, que está sempre se desvelando diante dos

fundamentos orientadores da crença do lugar. Isto significa dizer que a vida natural

tende a se aproximar dos valores considerados sagrados, que provêm da idéia da força

cósmica organizadora da natureza e suas manifestações.

Considerei também a tradição e a ancestralidade como fontes extraordinárias de

quem en-sina. Na comunidade, o ato de educar passa pela experiência de preparar a

construção de uma outra geração e a construção de cada um em particular.

Page 19: Àqueles que têm na pele a cor da noite

6

Ao invés de esquadrinhar um método para a pesquisa, a minha convivência no

terreiro é que foi indicando o caminho do método que acompanhou as possibilidades

deste estudo e sua conseqüente escrita. Escrita desafiante pela natureza da comunidade

que acumulou seus conhecimentos com o jeito próprio de aprender e de en-sinar

Aprende-se para en-sinar aos menos experientes. O ato de en-sinar é o que legitima a

maioridade e a iniciação dos membros da comunidade. Trata-se do saber vivido que não

se opõe ao saber intelectual. Ensina-se pelo emi, o sopro do encantamento da palavra e

do outro. Neste contexto é necessária a presença do outro que nos constrói. Eu preciso

do outro para en-sinar, para encantar, para ser colocado no seu caminho que é também o

meu caminho. Das aprendências do outro, depende a continuidade da tradição, da

redistribuição da força da espiritualidade gerada pela entrega de saberes necessários à

condição de ser e com-viver na comunidade.

Mulheres, homens, jovens e crianças foram meus interlocutores e ofereceram o

melhor das suas experiências nos caminhos da vida comunal onde a religião, a vida

social e a família não se separam. São pessoas que possuem um jeito de aprender, de

autoconhecer-se e de en-sinar. São pessoas que se entregaram ou nós nos entregamos

mutuamente numa relação distinta para o exercício da minha condição de ser, pertencer

e participar da comunidade Afonjá.

Dentre estas pessoas, destaco a Senhora Valdete Pimentel, que atende pelo

urukó3 de Oba Gesim Ebome4 Detinha ou simplesmente Dona Detinha de Xangô, orixá

dono da sua cabeça. Dona Detinha foi e continua sendo a interlocutora que me orientou

para os princípios míticos e comunitários que costuram as relações com as crianças, os

pais, a sociedade civil que muitas vezes tem se apresentado como um poder espúrio

contrariando necessidades reais da comunidade.

Na primeira parte do estudo, a fala de mim mesma revela o não simplificável

fenômeno do ser sendo na comunidade Afonjá. Um ser-sendo que se forma na vida.

Atentando para o alargamento deste estudo, levanto inquietações que de tão

complexas não seriam respondíveis numa única tese. Afinal, quem é este ser que

podemos ser? Mergulho no pensamento africano como possibilidade de uma

reconstrução para ensejar a continuidade geradora de identidades ancestrálicas.

Recolocando a memória do povo, de santo busco aflorar reminiscências celebrativas que

avivam a história e mantém a tradição juntando fragmentos e vivências dialógicas. Para

3 Nome ancestral que se recebe por ocasião da feitura. 4 Pessoa com mais de sete anos de feita.

Page 20: Àqueles que têm na pele a cor da noite

7

tanto, junto-me a interlocutores de todos os tempos numa polifonia que se aventura a

errâncias com a perspectiva de outros caminhos de en-sinar.

Na segunda parte, a fala é do lugar-terreiro num emaranhado que se quer

dialógico com seu entorno e com a academia. Uma fala que inclui idéias e ação,

pesquisa e itinerrância, ensinâncias e aprendências, espiritualidade e o desafio da

escrita. Esta construção coletiva carrega a proposta de compreender aspectos do

pensamento africano num contexto histórico-cultural atualizante, sem substituir uma

meta narrativa por outra, mas considerando-as nas suas concomitâncias, independente

de tempo e espaço. Insisto na atenção para complexidade do cotidiano. Também no

esforço para compreender os princípios da tradição que estão no fato de existir uma

cadeia de outras lógicas, outros sentidos e significados entre as próprias energias dos

fenômenos míticos repetidos e nas pulsões da comunidade.

A terceira parte está dividida em dois momentos. O primeiro se apresenta como

parte da transcrição do texto teatral criado e trabalhado na primeira formação na Escola

Eugenia Anna, portanto no início da construção do Irê Ayó. O texto criado com Carlos

Petrovich foi apresentado pela primeira vez no dia 17 de junho de 1999 com a

participação de atores estudantes da Escola de Teatro da UFBA, com a finalidade da

inserção de educadores e educadoras no enredado pensamento africano recriado nas

comunidades negras, mais precisamente na comunidade Afonjá. Neste contexto habita o

sentido de fazer cabeças como alargamento para percepção do mundo como

reaprendências, como florescimento do que nasce na profundeza do ser e como um jeito

de aprender encantando a vida.

No segundo momento da terceira parte, apresento as falas da comunidade

incluindo crianças, pais, educadores, educadoras e as assessoras da Secretaria Municipal

de Educação e Cultura. São falas que se entrelaçam com o pensamento africano e o

cotidiano da comunidade gestando ações pedagógicas consubstanciadas na perspectiva

de um currículo de muitas lógicas e outros sentidos. Falas que ganham um significado

importante pela articulação do ato de en-sinar na existência concreta do ser.

Finalmente, algumas considerações conclusivas incluindo como relato algumas

ressonâncias do Irê Ayó como estudo que continua fazendo caminhos. Caminhos que se

entrecruzam configurados por subjetividades conscientes e criadoras da metáfora de

revitalização da cultura na educação e na vida.

Page 21: Àqueles que têm na pele a cor da noite

8

A explosão não será hoje.

Ainda é muito cedo...

ou demasiadamente tarde.

Não trago verdades decisivas.

Laivos de genialidade

não atingem minha consciência.

Entretanto, com toda serenidade,

julgo necessário dizer certas coisas.

Estas coisas vou dizê-las, não gritá-las.

Pois há muito tempo

que o grito saiu de minha vida.

Há tanto tempo...

Por que escrever esta obra?

Ninguém me pediu.

Muito menos

aqueles a quem o livro se destina.

Pois, então?

... (FANON 1983, p. 11)

Page 22: Àqueles que têm na pele a cor da noite

9

2. NA CAMINHADA HEURÍSTICA: diálogo e com-vivência com a natureza ancestral

Não é possível compreender uma comunidade sem pensar nas referências da

sociedade que a contêm e suas influências nem sempre benfazejas. Muitos foram os

fatores que influenciaram o meu modo de pensar e de me relacionar com pessoas desde

as crianças iguais a mim nos engenhos de açúcar e nas casas de farinha, até mais tarde

quando atuei nos subúrbios como educadora, catequista e militante. Como acadêmica,

sou o resultado da turbulência e do equilíbrio possível em todas as instâncias da vida

familiar, comunitária, profissional, religiosa e afetiva; entretanto, parafraseando o poeta

Neruda, confesso que vivi, e me autorizo a falar desta vida que ora me embala ou me

atira nas encruzilhadas de onde faço escolhas entre os múltiplos caminhos; portanto,

sem nenhuma certeza, felizmente. Escolha de caminhos que implica em atravessar

frestas, buscando brechas, criando espaços pelo mundo acatando a conspiração cósmica

que me faz chegar até aqui do jeito como eu sou.

De fato, a qualidade de mulher negra não facilitou em nada meu trânsito no

mundo nem mesmo entre negros e negras quando se colocam em situação de comando.

O poder branco no seu impulso desestabilizante invade os terreiros com-fundindo o

passado com o presente via de regra numa reminiscência subalternizante. Sobre o efeito

Page 23: Àqueles que têm na pele a cor da noite

10

de uma alocação hierarquicamente desigual, a cultura negra, mais precisamente os

terreiros como territórios do sagrado podem ser olhados, admirados e consumidos como

mercadorias disponíveis para fácil aquisição ou numa troca sem volta por vezes

compensada pela solidariedade como efeito de poder.

Não rareiam entre nós arranjos sociais que têm como norma a consideração pela

presença branca. Esta é uma consideração que tem permitido avanços por vezes

ilegítimos sobre as comunidades negras, produzindo enredos onde seus membros podem

ser colocados diante de obstáculos nem sempre transponíveis. Ou, por vezes, sequer os

reconhece como tal, o que pode ser considerado ainda mais grave. A apropriação de

uma identidade ancestral coloca possíveis religiosos quase sempre numa condição de

superioridade no grupo que o acolheu.

Neste contexto, negros e negras são colocados à margem impedidos no caminho

da sustentação da intensidade de uma cultura que foi silenciada nos seus aspectos mais

importantes da autonomia e solidariedade. Em particular, ainda que paradoxalmente, o

fato de vivenciar alguns aspectos contraditórios aos princípios essenciais do pensamento

africano, sinto-me refazendo simultaneamente a atenção a tudo e a todos e o vigor para

continuar assumindo a identidade ancestral com a consciência da relação de dignidade

comigo mesma, com o grupo ao qual eu pertenço e com a sociedade. Concluo,

entretanto, que a minha formação enquanto educadora tem uma estreita relação com

todos os acontecimentos vivenciados, conforme a fala de Moita, Ninguém se forma no vazio. Formar-se supõe troca, experiência, interações sociais, aprendizagens, um sem fim de relações. Ter acesso ao modo como cada pessoa se forma é ter em conta a singularidade de sua história e, sobretudo o modo singular como age, reage e interage com os seus contextos. Um percurso de vida é assim um percurso de formação, no sentido em que é um processo de formação (MOITA, 1995, p. 115).

2.1 O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO IRÊ AYÓ5: um caminho de alegria?

Este é um estudo efetivado em grande parte por vivências comunitárias num

território que considero singular. Nesta perspectiva é que surge a necessidade de maior

zelo para que a sua realização não seja considerado apenas uma construção vivencial.

Os rituais vivenciados são autênticos e ultrapassam em muito, o já dito romance

5 Irê Ayó na língua iorubá significa Caminho de Alegria.

Page 24: Àqueles que têm na pele a cor da noite

11

platônico, envolvendo o pensamento africano como um fenômeno remoto na

considerada linearidade defendida pela ortodoxa cosmovisão ocidental.

Os rumos tomados pelo pensamento africano na sociedade confirmam o dizer de

Querino (1938) quando assevera que o negro escravizado foi de fato o colonizador do

Brasil produzindo riquezas, associações precursoras das instituições bancárias e outras

referências significativas que estão na raiz do pensamento e no comportamento do povo

brasileiro. O autor afirma ainda que, Uma vez removido para o lar doméstico, o escravo negro, de natureza affectiva, e, no geral de boa índole e com a sua fidelidade a toda prova, a sua inteligência, embora inculta, conquistava a estima dos seus senhores pelo seu sincero devotamento, e sua dedicação muitas vezes até ao sacrifício. Foi no lar do senhorio que o negro expandiu os mais nobres sentimentos de sua alma, colaborando com o amor dos pais, na creação da tenra descendência de seus amos e senhores, com o cultivo da obediência, do acatamento, do respeito a velhice inspirando sympatia, e mesmo amor a todas as pessoas da família. As mães negras eram thesouro de ternura para os senhores moços no florescimento da familia dos seus senhores (QUERINO, 1938, p.158).

Neste sentido, chamo a atenção para a necessidade de refletir sobre o que nossas

crianças e jovens precisam saber na vida apoiados pelo pensamento africano e que afeta

os costumes na sociedade brasileira. Sobre a possibilidade deste diálogo, Galeffi

anuncia que, No campo da cultura, são as novas idéias que movem a história. Mas, na ausência de pessoas educadas para produzirem idéias, como é possível que aconteçam transformações significativas em nossa história social? [...] Decidimos que esta é uma cultura para todos, desde quando todos se tornem únicos, mas não meros opositores. Apenas o indivíduo que chega a tornar-se pessoa livre pode acolher como seu, aquilo que é de todos (GALEFFI, 2001, p. 229- 230).

De fato, não se trata de uma nova idéia para a educação. O diálogo proposto e

defendido é sobre um pensamento milenar que dá sentido ao autoconhecimento como

uma forma de ser, de agregar-se e participar solidariamente. Daí, que pensar o processo

de educação de crianças do Opo Afonjá significou formar as educadoras dando atenção

especial à relação de um pensamento que herdamos na sua importância vital e criativa.

O africano é um contador de histórias por excelência. Contar histórias, portanto, é uma

ação fundamental para a tessitura de fatos e acontecimentos vivenciais, histórias de

vida, histórias interligadas e complementares.

Não foi difícil transformar a mim mesma e as educadoras da Eugênia Anna em

contadoras de histórias. As aulas deixaram de ser explicativas para serem narradas,

cantadas e dançadas. Contando histórias da comunidade, inventando cartas, narrativas e

poesia, enfeixando idéias, criando cortejos e dramatizando acontecimentos foi o

Page 25: Àqueles que têm na pele a cor da noite

12

caminho para elaborar conhecimentos com nossas crianças. Estas mesmas transposições

funcionaram também como indicativos da formação e da aprendizagem das crianças.

Mestras aprendentes, implicadas criaram diálogos religando significados

culturais e históricos refletidos no cotidiano da comunidade, quebrando as paredes que

separam disciplinas a partir da contribuição da aplicação da Arte-educação

comunitária. Esta foi uma proposta desenvolvida em parceria com Carlos Petrovich. O

processo de en-sinar com linguagens das artes sugeriu escutar, olhar, dialogar, atualizar

e transformar acontecimentos comunitários em vivências pedagógicas. Contamos

também com a participação de Viga Gordilho,6 que teve uma brilhante atuação no Irê

Ayó transformando com as crianças as histórias míticas do lugar em pinturas numa

mediação de re-encantacão na vida.

2.2 OUVINDO VOZES DE TODOS OS MUNDOS

Para o início do trabalho com o Irê Ayó na Escola Eugenia Anna se fazia

imprescindível conhecer o cotidiano da comunidade e sua relação com a história e a

cultura africana e afro-brasileira. A idéia era fazer valer desde o inicio, os princípios do

pensamento africano enquanto forma de aprender e ensinar. Muitas eram as indagações:

Como fazer para compartilhar outras histórias com as nossas educadoras? Seriam

palestras? Seminários? Como é que se aprende e ensina na comunidade? Olho fora da

escola e percebo vários grupos que conversam. Pessoas de idades diferentes que

conversam sobre os mais diversos assuntos da própria comunidade. Criei coragem, fui

me aproximando parcimoniosamente, quando ouvi uma voz no grupo: “Chegue

professora. A prosa aqui está boa. Chegue. É prosa de nagô. Está ouvindo?” Com

certeza nada melhor podia me acontecer naquela tarde. Não tive coragem de conversar,

mas escutei muito. Logo aprendi que ali se aprende e en-sina com muita prosa. É a fala

do hálito pura para ouvidos limpos. Assim nasceu a idéia do texto Prosa de Nagô que

trataremos adiante e que ressalta a importância de conhecer o lugar de onde se fala.

A minha convivência com a comunidade facilitou a elaboração do texto em que

a experiência da escuta corresponde ao próprio jeito de ser na comunidade que eu não

escolhi, mas que fui escolhida pela ancestralidade. Conforme a fala de Sodré, A reinterpretação nagô sempre foi ao mesmo tempo ético-religiosa e política, o que implica luta para instituir e fazer aceitar a realidade reinterpretada ou

6 Viga Gordilho é doutora .em artes pela Escola de Comunicação e Arte da UFBA.

Page 26: Àqueles que têm na pele a cor da noite

13

traduzida. O aspecto ético-religioso trabalhava a origem e os princípios, a fim de que se pudesse intuir politicamente os caminhos futuros. [...] Ao lado dos fenômenos mítico-religiosos alinham-se pulsões da afirmação grupal, reivindicações de reconhecimento identitário e práticas de poder (SODRÉ, 1999, p. 168-169).

Este é um legado real, o tesouro que continua alimentando o desejo de liberdade

que não pára de pulsar, que não se esgota, que não está nas palavras escolhidas. Os

caminhos do futuro são hoje os nossos caminhos. São entre-caminhos que nos dão

identidade, nos colocando numa ligação profunda entre o Orun e o Aiyê.

2.3 NA AFIRMAÇÃO DO SER: memórias e histórias, o vivido e o encarnado

Reporto-me à primeira vez em que visitei uma comunidade de terreiro. O

convite foi de Ana Célia7, para uma festa no Ilê Axé Opo Afonjá. Era festa de Oxum.

Oxum é um orixá da água doce, mãe ancestral, princípio da concepção, liderança e da

solidariedade na família. Imagine só o impacto para quem viveu toda meninice ouvindo

os louvores aos anjos e santos e cantando o Adeste Fidelis em cada Natal em São Filipe,

lugar onde nasci.

Vivi uma infância interfecundada com os ritos da igreja católica, bailes pastoris,

cordões de carnaval e os dramas. De tempos em tempos Antonio Machado, ou Antonio

Santeiro, meu pai, juntava jovens, crianças e adultos para os seus dramas. Era uma

forma de fazer teatro que incluía dramatizações, números de dança, canto e muita

poesia. Ele tinha predileção acentuada por Castro Alves. Também fui agraciada com a

experiência de ser cuidada na casa grande da Fazenda Copioba por minha madrinha Iaiá

Pinheiro e meu padrinho Nicolau Barbosa, onde passei os melhores dias da minha

meninice. Lá vivi empanturrada com as folias da casa de farinha, as alegrias do engenho

de açúcar, os banhos no rio e os brinquedos compartilhados com as crianças, filhas dos

trabalhadores da fazenda.

Essas crianças foram minhas companheiras na primeira comunhão na capela da

fazenda. Minha irmã Lucy participou vestida de anjinho, numa oportunidade única. Das

lembranças da casa da fazenda me impressiona ainda hoje a presença da minha

madrinha trabalhando entre os negros e negras, na arriscada função de seivar a

mandioca, atividade que por qualquer desatenção poderia custar-lhe os dedos. De vez

7 Ana Célia da Silva é Doutora em Educação, militante do Movimento Negro Unificado (MNU) em Salvador.

Page 27: Àqueles que têm na pele a cor da noite

14

em quanto eu ia à escola só por curiosidade. Terminei aprendendo as primeiras letras

com uma senhora a quem tratávamos por Minha Mestra.

Tenho ainda nos meus ouvidos o eco estridente das falas do povo da roça na

feira que era em frente a minha casa. Os sinos da matriz, as crônicas da Ave Maria lidas

por meu pai no alto-falante da igreja. O mugido dos animais, o trotar dos cavalos na

calçada, o piano, as poesias e muitas rezas. Eu aprendi alguns cantos da igreja com o

meu pai. O Oficio de Nossa Senhora, as ladainhas e a reza de Santo Antonio aprendi

com minha mãe. E se mergulho mais profundamente no meu tempo vou me encontrar

diante de negras velhas da roça. Elas cuidavam das pessoas fazendo rezas fervorosas.

Elas sabiam como aliviar dores e sofrimentos despachando o quebranto, animando

corpos e fazendo fluir novas possibilidades de energia para a vida.

Vivi um tempo mítico quando os rituais da igreja se mesclavam e se imbricavam

com as rezas, as benzeduras e os bailes pastoris numa cumplicidade atemporal. Eu me

sentia muito orgulhosa, quando meu pai cantava a missa em latim. No entanto, eu estava

ali no Afonjá vivenciando a festa de cinqüenta anos de feitura de Mãe Pinguinho. Um

tempo que se mostrava prenhe de novidades e que se construía entrelaçando o presente

com as minhas vivências de desde que me entendo por gente. Pessoas, cantos, danças,

cores e uma multiplicidade de sons enchiam o ambiente. Era uma lógica que pouco

compreendia e que me arremessava para todos os lados sujeita a movimentos

vivificantes que incitam o lúdico, o prazer, a alegria, a espiritualidade, o mitopoético,

numa conexão com todos os tempos.

Naquele momento, num emaranhado de lembranças, as imagens se misturavam

trazendo de volta o dia em que meu pai me tomou pela mão e fui entregue a dona

Augusta. A veneranda senhora, daquele dia em diante me conduziu como sua zelada no

Apostolado de Oração da Irmandade de Coração de Jesus. Isto significa que durante a

minha infância eu tinha quem cuidasse da confissão dos meus pecados e da comunhão

em cada primeira sexta-feira do mês. Em dias de festas, eu era levada para as

procissões.

Mas eu tinha um sonho bem guardado. Eu queria ser anjinho. Eu queria

participar da coroação de Nossa Senhora. A espera era pela a última noite do mês de

Maria. Esta seria uma noite maravilhosa. Dizendo de outro modo, podia ser uma noite

maravilhosa. Sonhava em ficar lá em cima do altar, vestida de anjo. Devia ser um

sensação maravilhosa. Eu sentia o movimento do meu corpo que se inclinava de um

lado para o outro recebendo e passando adiante a coroa da santa. Isso seria o

Page 28: Àqueles que têm na pele a cor da noite

15

maravilhoso. Todo mês de Maria era a mesma expectativa. Será que vou ser escolhida?

Chegava cedo para o catecismo. Sentava na frente. Cantava forte. Acho que eu queria

que a santa me ouvisse. Ela só me olhava com os olhos piedosos que o meu pai mesmo

havia pintado. A santa continuava me olhando sempre. Era um olhar triste.

Ela nunca me deu esperança. No seu olhar não havia esperança que um dia eu

fosse um anjinho na coroação de Maria. Eu ficava lá embaixo. Eu via a coroa passar de

mão em mão de cada anjinho. Eu ficava ali e insistia. A insistência nem sempre foi a

minha melhor companheira. Um dia eu levei um galho de hortênsia azul bem bonito. Eu

pedi no quintal de dona Maria Borges. Fui pensando: é hoje. Hoje eu vou ser um

anjinho. Tudo que eu pude conseguir foi ficar em frente do altar recebendo as flores das

outras crianças e colocando no jarro. Era longe da santa. Não considerei.

2.4 É PRECISO TER CORAGEM PRA TER NA PELA A COR DA NOITE

Ao longo da caminhada pela vida, aprendi, constatei e principalmente sinto que

as crianças negras carecem de um olhar diferenciado. Um olhar que contemple a sua

beleza do jeito como ela é. As crianças negras crescem tomando tapas na alma. Não

fomos rainha do milho. Não fomos rainha da primavera. Votávamos em rainhas que não

nos representavam: rainha do milho, rainha da primavera, rainha do grêmio. A eleita era

sempre uma menina que não tinha nenhuma obrigação de se incomodar com a nossa

agonia. Era uma situação naturalizada. Também eu nunca percebi que eu não podia ser

anjinho porque o meu cabelo não balançava.

No meu tempo de menina vivi uma intensa variação de cenários em transição

incluindo as feiras com muita gente da roça, romarias e procissões. Das procissões, a

que mais encantava era a de Corpus Christi, a festa da instituição da eucaristia. A

celebração de quando o Cristo se distribui como alimento para os homens. As portas das

casas eram enfeitadas com palmeirinhas. Na chegada da procissão diante da igreja

matriz, a multidão se ajoelhava e aplaudia o Ostensório com o Sacramento da Eucaristia

sob o pálio levado pelos homens importantes da cidade. Todos cantavam muito

contritos: Terra mater/ Tu foste a primeira onde a hóstia imortal se elevou/ Onde a cruz

gloriosa e altaneira... E o cântico glorioso seguia louvando a cruz que o colonizador fez

atravessar o atlântico e entregou para que os índios carregassem nos ombros. Mais tarde

em nome de Deus, o sinal e o peso da cruz foi divididos com negros e negras que, além

Page 29: Àqueles que têm na pele a cor da noite

16

de criar riquezas para os países colonizadores , esculpiram santos, compuseram musicas

sacras, construíram igrejas como obras de arte abarrotadas de ouro.

No Afonjá o ciclo de festas é aberto exatamente no dia de Corpus Christi com a

festa de Oxossi. Mistérios envolvem a relação do sincretismo ou a dupla pertença do

nosso povo. Sousa Junior (2003, p. 142) cita um trecho de uma cantiga que diz: “Ode

arole lo bi ewa” que é um canto de Axexê, um canto de vida e morte. .Segundo o autor

"Oxossi, para alguns grupos africanos, significa o grande corpo ancestral. Corpo

resultado do deslocamento de matérias ancestrais fornecidas pelos orixás, entendidos

como princípios universais, e pelos antepassados, princípios clânicos”. Acredita-se que

a integração dessas partes que se soltam e se juntam continuam formando o ará – o

corpo. O corpo dos homens, a morada dos deuses conceito que se estende ao corpo

comunidade. Oxossi é o provedor, o pai da comunidade.

Até o tempo de Mãe Senhora, antes das obrigações para Oxossi, todos iam à

missa. Só depois de cumprido esse preceito é que acontecia o encontro com os

orixás.Mãe Stella rompeu com esta forma sincrética de celebração na comunidade.

Ainda criança, assisti, garbosamente, a muitas missas do coro da igreja, porque

era o meu pai quem, aos domingos, tocava o órgão e cantava a primeira missa do dia na

igreja matriz. Quando não era ele, era a professora Flora ou a dinha Rita, também

professora. Eles se revezavam neste sacro ofício. Em dia de festa dos padroeiros, São

Filipe e São Tiago, algumas vezes o povo da terra foi surpreendido pela força da

oratória do Padre Gaspar Sadok. Este era amigo pessoal de Antonio Machado enquanto

paroquiano participante e companheiro de teatro na Igreja de São Cosme e Damião, no

bairro da Liberdade, onde moramos por algum tempo.

Um belo momento, quando todos paravam extasiados para o sermão que se

derramava do púlpito sobre o povo da cidade e o povo da roça. Eles nem sempre

entendiam o sentido de tanta falação, mas valia pelo desempenho do padre negro que se

parecia com agente negra da roça. Ouvir Padre Sadok era bem diferente de ouvir os

missionários brancos, frades capuchinhos falando com um sotaque não sei de onde,

fazendo as grandes missões. Os frades capuchinhos chegavam de tempos em tempos

distribuindo santinhos, brincando com as crianças em torno do cruzeiro plantado na

porta da igreja. Eles batizavam, crismavam e casavam o povo da roça

compulsoriamente para que não continuassem a viver em pecado.

Page 30: Àqueles que têm na pele a cor da noite

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2.5 NEM SAGRADO, NEM PROFANO: vivendo a vida sem fronteiras

No Natal, Antonio Santeiro fazia uma espécie de teatro bíblico; e nunca faltou a

encenação do Filho Pródigo integrando o baile pastoril. Entretanto, quando se

aproximava o carnaval, lá estava ele devidamente autorizado para a criação de cordões e

pranchas de carnaval. Compunha músicas para o deus Dioniso, que fazia a alegria

ingênua daquela época.

Ele criou e dirigiu, enquanto viveu, um coral masculino que ensaiava em nossa

casa mesmo. Os homens eram na maioria negros que moravam nos arrebaldes. Todos

amigos de meu pai. Era bonito de ouvir aquelas vozes masculinas que vinham lá da sala

de jantar e nos alcançava na calçada, onde brincávamos de capitão ou três marias. Em

tempo de lua era bem melhor. Mas quando a lua se ausentava daquele cenário que

deixava de ser prateado, aproveitávamos a turva luz da lâmpada de um poste

privilegiadamente colocado em frente à casa do santeiro e festeiro do lugar. Era muita

gente que buscava os serviços do santeiro e da santeira. Gente que vinha de longe,

geralmente negros, pequenos proprietários, gente da roça, arrendeiros das fazendas

próximas.

Durante as festas da igreja, na Semana Santa, dona Idalina, a minha mãe não

descuidava do povo da roça. Desde cedo era reservado tachos de barro assoberbados

com moquecas, caruru e vatapá para os amigos e fregueses que chegavam para a

cerimônia do Beija-pés do Senhor. Eles eram rápidos no cumprimento da obrigação

ritual. Chegavam, passavam uma água nós pés, ceiavam e corriam para o beijo no

esquife do Nosso Senhor e na fita azul que pendia da cintura de Nossa Senhora das

Dores. Ambos eram colocados entre duas bandejas que não parava de trincar com a

caída das moedas sob o olhar cuidadoso do sacristão.

A ceia era semelhante ao almoço do axexê como realizamos nos terreiros de

origem nagô. O axexê se configura como um conjunto de obrigações rituais que

acontecem por ocasião do falecimento de um membro da comunidade. Durante a

obrigação todos se juntam para uma dança que dura sete noites seguidas oferecendo-se

moedas que são depositadas como oferta numa metade de uma cabaça exposta no meio

da sala. No dia seguinte, todos são convidados a sentar-se à mesa para a última refeição

com o egun, o espírito do falecido.

Page 31: Àqueles que têm na pele a cor da noite

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No almoço e ceia da Sexta-feira Santa repetimos a vivência do presente do

passado. Presente vivenciado, enquanto memória na sua complexidade dinâmica. A

julgar pela semelhança do acontecimento, é possível que estejamos vivenciando na

Semana Santa o ritual do Axexê de Jesus Cristo, reinventado por negras escravizadas no

exercício civilizatório de culto aos ancestrais, conforme o pensamento africano da

diáspora.

2.6 ANTONIO SANTEIRO: canto e danço escutando o mundo e celebrando a vida, logo eu sou.

Alguns jovens de São Filipe estudavam em colégios com internatos que

atendiam a aristocracia retardatária interiorana. Eram os filhos de fazendeiros

interlocutores prediletos de Antonio Santeiro. Os seus contemporâneos achavam uma

heresia que ele fosse influenciado pelas vigorosas reportagens da revista O Cruzeiro.

Um absurdo acreditar-se que o homem faria viagens à lua.

Com seu jeito de fazer festas e elaborar as vozes que lhe davam notícias de

outros mundos, Antonio Santeiro ia construindo e recriando uma identidade para si e

para aquele lugar de muitas rezas e muitas festas. Identidade que rompia a imagem do

negro subjugado ao conectar a sua subversão às verdades contraditórias do seu tempo.

Ele continua sendo o meu modelo de ser gente. Ele encarnava os santos, verdadeiras

relíquias de família dos negros da roça. A noite mergulhava noutros mundos de suas

fartas leituras para a época. Nunca deixou de ouvir a Voz do Brasil e o Repórter Esso.

Com os ouvidos desesperadamente colados ao rádio segurava as noticias para que não

se afastassem de todo com as ondas sonoras que por vezes truncavam as novidades que

vinham de longe. Os negros eram seus melhores clientes. Constantemente lhe davam

agrados colhidos da roça em troca de belas cartas de amor com pedidos de casamento

ou notícias para parentes distantes. Também eram os negros que compravam a sua

produção de santos moldados em gesso ou esculpidos em madeira. Trocavam santos

como diziam talvez como uma referência ao escambo. Santo não se compra. Pensavam

eles. Acredito.

Todo sábado era aquela procissão de negros e negras portando seus vistosos

guarda-sóis e sombrinhas. Que diferença fazia aquele adereço para quem trabalhava de

sol a sol no campo aberto? Qual o significado do guarda-sol só para caminhar pela feira,

aos sábados, sofrendo o desconforto dos calçados não raramente em pés trocados?

Page 32: Àqueles que têm na pele a cor da noite

19

Estudos que abordam a estrutura de poder do povo iorubano discutem o guarda sol e o

seu valor simbólico. Atento para notícias que datam do século XIX, conforme descreve

Silva (1997, p.176) citando o Reverendo Samuel Johnson, diz que a questão do uso do

guarda-chuva merece atenção especial não no que diz respeito às maneiras e costumes,

mas na sua consideração como um objeto de toalete, símbolo do poder da herança

iorubana. Na dúvida indago: Qual seria o mito de origem daquele povo da roça? Que

valores teria o imaginário ou memória de sujeitos diversos de uma mesma raiz em

diferentes lugares? Em que medida é possível considerar estes símbolos e outros

aspectos da subjetividade das vivências negras como ponto de partida para uma reflexão

sobre identidades e memórias daquela gente onde eu me incluo?Não tenho respostas

para essas inquietações.

Quando falo de Antonio Machado ou Antonio Santeiro, falo de um quase

personagem, um autodidata que aprendeu a arte observando e imitando os mestres

locais. Não sei até quando ele estudou. Lembro que ela fazia comentários históricos

sobre o quarto centenário da cidade de Salvador. Sei também que ele veio a Salvador

para o centenário de Rui Barbosa. Falava inglês, razoavelmente. Lia o mundo com seus

conflitos e bonitezas. Nunca permitiu aprisionar-lhe a alma negra. Subvertendo a sua

condição de negro da cidade construiu o seu espaço com muita astúcia. Abriu o seu

próprio caminho mostrando-se e se com-fundindo com os espetáculos e cortejos que

criava.

Empenhava-se na realização da festa de São Filipe e São Tiago. Ocupava-se da

alegria da lavagem. Esse era o momento em que todo povo da roça e dos arrebaldes

chegava à cidade cantando, dançando, bebendo a cachaça dos barris que fazia a alegria

do povo de todos os becos. Aí acontecia a invasão das praças que só eram conhecidas de

passagem para a feira nos dias de sábado. Aqui e ali, o santeiro foi construindo e

legitimando a sua própria autorização como dono do seu destino, seguidor da sua sina.

Soube que às vezes o chamavam de negro metido a besta.. Eu nunca me

importei com esse desaforo, e até me soava como uma lisonja.. Ele era de fato um ator

social que se dava à extravagância de lidar tanto com o sagrado como com o profano

sem culpas. Decerto que ele não fazia esta distinção porque tudo começava na igreja.

Antonio Santeiro tinha a religiosidade e as linguagens das artes à flor da pele. Eu não

consegui distinguir qual a diferença que ele fazia entre os seus ternos de reis e os

cordões de carnaval. Como afrodescendente, ele fazia jus a esta fala de Santos quando

declara que,

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20

O africano seria uma criatura essencialmente religiosa, não importa qual seja a sua religião. Qualquer ato da vida do africano desde comer, ao vestir, de passear, de fazer amor, em tudo põe religião e está conectado com o sobrenatural com o transcendente (SANTOS, 1983, p. 25).

Em São Filipe, não me lembro de nenhum acontecimento que não passasse pela

igreja. Jocosos eram os versos cantados na porta da matriz numa romaria vinda de

Maragogipe homenageando um político que sempre ganhava as eleições: Terminada a

batalha cruenta/ Demos graças a Deus noite e dia/ João da Cruz o cristão foi eleito/

São Filipe sorriu de alegria. A cidade ainda hoje transborda de música e rezas e uma

política partidária insuportável.

Na casa havia uma sala muito especial, era a sala de visitas. Um pouco escura

pela escassa luz que entrava pelas vidraças da frente. As janelas estavam sempre

fechadas. Era um local pouco freqüentado a não ser por um amigo chamado Valfrido

Morais com quem meu pai estudava inglês. Com dinha Rita e professora Flora, ele

dividia as sonatas ao piano em momentos especiais. Na sala havia muitas revistas O

Cruzeiro, Manchete, Revista do Radio e Radiolândia. Livros, almanaques e outras

publicações de uma linha de auto-ajuda que tinha como fundamento o princípio: Hei de

vencer. Muitos livros de poesia, romances, um catecismo ilustrado e vidas de santos.

Das peças de teatro, lembro de uma em especial: Deus me chama, espetáculo encenado

sob a direção de Padre Sadok; Antonio Santeiro foi o personagem Gaspar. O

protagonista foi Costa Junior, nosso vizinho no bairro da Liberdade, um valoroso ator

de radio-novela na Rádio Sociedade da Bahia. No meio da sala, um piano coberto de

partituras que se espalhavam desordenadamente. Algumas de sua própria autoria. Uma

vitrola num canto da sala era ligada orgulhosamente aos domingos e dias de festas,

principalmente no Natal e São João. A vida foi sua melhor escola. Antonio Santeiro só

viveu trinta e cinco anos. Um câncer no estômago o levou para a ancestralidade. Eu

tinha onze anos. Herdei uma vigorosa história de confiança, alegria e cuidado com a

vida. Minha mãe o acompanhou cinco anos depois. Um dia tranqüilamente sentada no

seu quarto, o coração parou de bater. Isto foi no tempo em que o telefone era uma

raridade e a viagem para São Filipe durava dez horas. Eu viajei a noite toda. Quando

cheguei, o dia ainda estava clareando. Enterraram minha mãe antes de completar vinte e

quatro horas. Eu chorei de raiva. Naquele momento eu me tornei a mãe de minhas

quatro irmãs e de mim mesma.

Nessa fala de pessoas e de fatos, falo de um tempo que transcende o tempo que

escapa à mensuração mecânica. Tempo que se deixa tecer pela complexidade dos

Page 34: Àqueles que têm na pele a cor da noite

21

acontecimentos que me formaram como mulher negra, profissional de uma educação

que se reconhece como quase utópica. Uma utopia realizável. Convenhamos. E se o

faço deste modo é por sentir a necessidade de me considerar uma educadora aprendente

a partir do embricamento com as convivências familiares, comunais e memórias,

incluindo o cotidiano onde aprendi a ser. Apreendo que o meu desempenho enquanto

educadora se articula pela implicação e o distanciamento, a afetividade e a

racionalidade, o simbólico e o imaginário, a mediação e o desafio, a autoformação e a

heteroformação, a ciência e a arte. A este respeito, Galeffi faz a seguinte reflexão, Afinal quem é este ser que podemos ser? Entra aqui uma questão muito inquietante, especialmente porque ela coloca o sentido do ser de uma forma aprendente, isto é, não como conteúdo a ser assimilado pela memória, mas como atitude a ser praticada por cada um em particular e por todos em suas múltiplas relações com-outros. Toco sem duvida, em uma questão deveras abissal: o que é o ser, enquanto é cada um em particular e todos em geral? (GALEFFI, 2003, p. 80)

Falo de um ser educador aprendente considerando demandas essenciais e

comuns da sua errância e da condição humana que persegue um jeito de educar com a

consideração por outras vozes, outras lógicas, outros códigos, outros paradigmas. São

questões que se entrecruzam e dinamizam caminhos para a consciência de si mesmo,

para a consciência histórica e de um fazer ensinante de seres autônomos, solidários e

coletivos. Entendo que a adoção de um contorno dando relevância à pessoa como um

ser-sendo e a cultura do lugar cria uma outra idéia de educar. Significa ao mesmo tempo

uma abordagem sobre como compreendemos a nossa ação enquanto educadores

aprendentes e sobre o que somos numa certa forma de vida considerando uma outra

ética existencial. A cultura neste caso integra uma ação política de re-existência de

princípios e valores da tradição africana.

2.7 EDUCAR EN-SINANDO NA EXTRAORDINARIEDADE DO COTIDIANO

Naquela festa de Oxum, no Afonjá, Mãe Pinguinho se mostrava com toda alegria

festejando as suas bodas. Eutropia Maria de Castro, que atendia pelo nome religioso de

Iya Oxum Funmixê, continua sendo lembrada por suas ações enérgicas com seus filhos.

Mãe e mestra ela não precisava ensinar, bastávamos ficar atentos ao que ela fazia, falava

ou cantava. Era assim que ela en-sinava. Mãe Pinguinho foi Iya Kekerê no Afonjá por

quase quarenta anos. A Iya Kekerê é uma espécie de segunda pessoa da Iyalorixá, ou

Mãe de Santo. Mãe Pinguinho, não deixava passar nada. Esta é uma afirmação que

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22

ainda se pode ouvir na comunidade. Mãe Georgete, a nossa atual Iya Kekerê, aos 91

anos, com uma lucidez invejável. Ela mantém o mesmo cuidado, a mesma organização

de valores cujo significado e uso compartilhado conservam as marcas de códigos

específicos para a manutenção da tradição religiosa e de nossa essência negra. Neste

caso, parece que identidades são construídas e atendem à demanda de um chamado

espiritual, dentro de uma perspectiva do saber fazer o que está fazendo e por que está

fazendo.

O espaço do terreiro compreende um lugar atemporal e possui seus métodos de

aprender e de ensinar. Os nossos mais velhos aprenderam a fazer observando, imitando

e admirando os seus mais velhos nos seus saberes e fazeres. Como que obedecendo a

uma cadeia para a manutenção, continuidade e expansão da cultura do cabe-lhes ensinar

como aprenderam para que os mais novos possam dar continuidade à tradição. De fato,

o ato de en-sinar na comunidade de terreiro significa colocar o outro dentro do seu odu,

dentro da sua própria sina, do seu caminho do seu jeito de ser no mundo do jeito como

ele é. Entendemos que esta é uma singularidade que merece ser situada dentro do

pensamento de matriz africana. Estamos falando mais precisamente do pensamento

tradicional africano recriado nas comunidades de terreiro.

Entendemos este jeito de ensinar como um modelo de educação oportuna e

desveladora, porque a cada ensinamento corresponde a um desejo ou algo a ser

desvelado pela necessidade de aprender para ser o que se é sendo. Educar na vida. Esta

é a essência de uma forma de transmissão da sabedoria como patrimônio cultural e

religioso. É o que dá significado à vida cotidiana. No terreiro pela feitura nascemos

inseridos na sua cotidianidade.

A maioridade acontece quando adquirimos sabedoria e competência suficientes

na vida e na comunidade. Também são condições de maioridade autonomia e domínio

das relações de convivência com os mais novos e com os mais velhos. Esta forma

abrangente de en-sinar foi ainda o que me inspirou o Projeto Irê Ayó8 implantado na

Escola Eugênia Anna dos Santos na comunidade Afonjá. Forma de educar que considera

8 Projeto político-pedagógico inspirado na dissertação de Mestrado de Vanda Machado editado em 1999.

Page 36: Àqueles que têm na pele a cor da noite

23

sonhos, desejos e utopias. Considera também a necessidade de interligar todos os

acontecimentos vividos, todas as vivências cotidianas com a arte, as ciências, a filosofia

e a cultura.

Decerto que as vivências da comunidade estão lastreadas em princípios e valores

humanos que consideram a vida, o corpo e a ancestralidade na interdependência entre o

ser e tudo que pode ser considerado vida no planeta. Tudo que se move como uma teia

dinâmica em todas as direções. Inspirada nos princípios básicos que regem a

convivência na comunidade, encontramos outros paradigmas para se compreender a

educação como outra forma de en-sinar. Educação como possibilidade quando se

oportuniza aprender pela necessidade de ser, valendo-se dos acontecimentos cotidianos

considerados na sua extraordinariedade. Este é o sentido para que estejamos sempre

atentos a tudo que possa contribuir para a busca de ser antes de aprender para ter. Ser

numa comunidade de terreiro está associado também ao poder, aos postos, aos cargos

honoríficos. Aprender a ser, aprender a vida são valores básicos do povo de santo. A

cada tempo, o saber de cada tempo para ser, para cuidar de si, do outro e da vida. Cada

saber tem um efeito precípuo. No terreiro, pelas vivências, aprende-se ser-sendo

participando dos fazeres comunitários. Busca-se então compreender mais

profundamente ser. Esta é a condição para complementaridade entre os acontecimentos

e a condição do que se é essencialmente. No terreiro, aprende-se pela rememoração

vivenciada seguindo múltiplos códigos de comportamentos específicos para a vida

comunitária comprometida, inclusiva e solidária. Para Sodré, A perspectiva africana do terreiro, ao contrário, não surgiu para excluir os parceiros do jogo (brancos, mestiços, etc.) nem para rejeitar a paisagem local, mas para permitir a prática de uma cosmovisão exilada. A cultura não se fazia aí como efeito de demonstração, mas uma reconstrução vitalista para ensejar uma continuidade geradora de identidade (SODRÉ, 1988, p. 54).

Para a continuidade geradora de uma identidade brasileira, temos a considerar

que a compreensão do mundo é bem maior do que a compreensão ocidental do mundo.

Nas comunidades de terreiro, o mundo é singular e plural, pelas vivências mitológicas.

Cada um vive um cotidiano só compreensível por aqueles que passaram pela

experiência da feitura. São pessoas que foram inseridas num sistema de vivências onde

prevalece uma única regra, uma exigência - a continuidade e a expansão do grupo pela

preparação para a iniciação de outros filhos, outros membros para a comunidade .Ainda

é Sodré que afirma: As forças provém dessa continuidade. Se na sociedade ocidental moderna o indivíduo é socialmente escolhido porque tem força, na comunidade de arché.

Page 37: Àqueles que têm na pele a cor da noite

24

O indivíduo tem força porque é escolhido (por um Destino). A tradição entendida como conjunto de saberes transmitido de uma geração para outra é uma das vertentes do Arkhé. A herança cultural repassada, a tradição é uma forma de comunicação no tempo e faz dela um pressuposto da consciência do grupo e a fonte de obrigações originárias, que se reveste historicamente de formas semelhantes a regras de solidariedade (SODRÉ, 1988, p. 95)

A herança cultural, o conjunto de saberes, o mito, o canto, a dança, as diversas

narrativas vivenciadas ampliam a percepção que ajuda a compreender a vida em sua

interdependência como um enredo que permite dar significados a todos os

acontecimentos do mundo em todos os tempos. Este é o sentido que traspassa da

história para a solidariedade.

2.8 DESVELANDO O SAGRADO COM BONITEZA E ALEGRIA

Tomando como referência Mãe Pinguinho, respeitável líder que Oxum, o Deus

criador já levou para perto Dele, tudo isto teria que ser passado pela fala. A fala carrega

o emi , a essência vital do eu espiritual de indivíduo para indivíduo, o mesmo que axé e

vida. Daí que cantar só de ouvido, nada de caderninho. Gravador seria uma ofensa ao

Ori, parte divina da cabeça. Os seus ensinamentos eram presenciais e continham a força

da sua palavra. Impossível esquecer o seu olhar forte. Como religiosa, ela se distinguia

pela visão que tinha de si mesma. Mestra e senhora do que dizia, se autorizou como

líder dos diversos coletivos que compõem a comunidade de terreiro. Cada orixá tem sua

casa, seus filhos, seus mitos e seus ritos que diferencia de outros grupos. A Iya Kekerê é

quem produz o trânsito entre os filhos e as casas acolhendo as singularidades. É a que

ouve todas as vozes, ampara e separa o que não é para dizer. Cuida para que a fala de

cada um possa re-ligar o ser às dimensões mais profundas e originárias.

Mãe Pinguinho era a própria autorização, orgulhava-se de ter sido feita por Mãe

Aninha, a fundadora da comunidade Afonjá. Ele desfrutou de um prestígio indiscutível,

assumindo de direito e de fato a sua identidade de Iyalodê, ou de mulher importante

líder de outras líderes como acontece ainda entre o povo iorubano. Mãe Pinguinho de

Oxum continua sendo uma referência emblemática de liderança no Opo Afonjá. Nem

mesmo a diabetes que lhe tirou o movimento das pernas, conseguiu tirar-lhe a força do

olhar que aprovava ou desaprovava quase sem palavras.

No meu entender, a festa das bodas de Mãe Pinguinho me religava com a minha

ancestralidade negra adormecida. Eu entendia muito pouco do que via. Ana Célia ia

falando ao meu ouvido sobre o que estava acontecendo na celebração. Ela se esforçava

Page 38: Àqueles que têm na pele a cor da noite

25

para traduzir as múltiplas linguagens que desafiavam a minha percepção. Uma vivência

singular desafiava a compreensão de ações que se mostravam e se entrelaçavam como

uma teia envolvendo o presente e o passado como uma realidade contraditória de pólos

implicados e interdependentes. Penso que esta seria uma relação de integridade entre o

homem e o tempo e sua historicidade.

Serpa nos seus estudos sobre uma nova ciência, nos fala de: [...] uma historicidade entendida como a determinação do espaço-tempo pela distribuição de corpos materiais, pelo seu estado de movimento e pela totalidade das relações não lineares de desenvolvimentos desiguais, onde cada uma das relações contém a contradição (SERPA, 1991, p. 100).

Sendo assim, nos parece impossível a desconexão entre corpos, a festa,

ancestralidade, pessoas, história e a ação que se permite emergir num contexto de

muitas lógicas e muitos significados.

Eu vivi naquela festa de Oxum um momento de perplexidade e boniteza. O

ambiente do barracão, local destinado a festas públicas, por inteiro me seduzia. Era

bonito de se ver panos dourados que enfeitavam as paredes. Bandeirinhas no teto, flores,

muitas flores. O chão era um tapete de pitanga bem verdinho, que ia estalando e

perfumando com o pisar de homens, mulheres e crianças, que passavam deixando uma

marca, um cheiro, uma imagem inesquecível. O cheiro da pitanga tinha o mesmo cheiro

dos presépios de minha infância. Cheiro que se juntava a outros cheiros presentificando

acontecimentos escondidos na minha memória.

Como cheguei bem cedo, tive a oportunidade de ver a celebração desde o início.

Logo começou a chegar gente, muita gente. Chegaram visitantes ilustres de outros

terreiros. Gente dos diversos segmentos sociais, que se acomodava do melhor jeito para

participar da festa. Reparei atentamente na apreciada elegância das mulheres e dos

homens chegantes. Uma mulher alta e magra lembrava a minha madrinha Tatá, uma

parenta de meu pai que era rezadeira e madrinha de muitas crianças na cidade. A

madrinha Tatá não era feita, pelo menos que eu soubesse. Eu ainda quero compreender

por que se vestia como uma egbome, como as irmãs mais velhas da nossa religião? Ela

usava saia como eu uso no terreiro, usava ojá, cobrindo os cabelos e pano da costa

sobre o ombro esquerdo. Nunca a ouvi falar de orixás. Também não era possível. Quem

a escutaria com a devida consideração? A este respeito, diz Santos: [...] as classes médias negras não tinham maiores contatos com isso. Ao contrário, isso era escondido. Havia um silêncio. Mas quem guardava eram os pobres, o povo não éramos nós, da classe média. Talvez daí venha a força, porque a classe média não tem força. Então a força vem de baixo, e os

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26

guardiões dessa coisa eram os pobres. Eles não tinham discurso, exceto este (SANTOS, 1998, p. 11).

Qual seria a origem dessas mulheres que abriram caminhos para os filhos sem a

presença dos pais? Mulheres que beberam água de suas próprias barrigas, a exemplo

do mito de Ewá, Tatá e outras mulheres que conheci moradoras das ruas mais estreitas

do lugar. Elas pareciam com Ewá. A bela Ewá que perdida com seus filhos na floresta

escura faz sair água de sua barriga. Água que alimentou as crianças, a si mesma. Água

que se transformou num caudaloso rio, caminho de volta com seus filhos em direção à

aldeia, o seu lugar. Na casa de Tatá nunca ouvi falar de pai ou marido. No terreiro e nas

comunidades pobres também poucas mulheres têm maridos.

A festa de Oxum estava para começar. Mãe Pinguinho ainda não havia chegado,

mas já havia uma vibração indizível. Os homens iam chegando cerimoniosos e solenes

para a festa. Alguns portavam paletó e gravata. Outros vestiam belíssimas roupas

africanas que lhes davam um aspecto majestoso. Mas as mulheres feitas de santo, estas

superavam a beleza de todas as festas. Elas surgiam de todos os lados do terreiro, cada

uma trajada mais caprichosamente.

Vivi intensamente aquele momento como um sonho ritual encarnado pela fé,

alegria e beleza. A ancestralidade se fazia presente com a integração daquela gente

mantenedora e guardiã da religião e da cultura africanas reconstruída no Brasil.

Reconstrução que contou com o sentido da convivência de um conjunto de etnias numa

interação recíproca e complexa pela forma como foi produzido esse encontro no Novo

Mundo. Gente que se autorizava a presentificar vivências ancestrálicas

reterritorializadas. Vivências do que foi possível manter graças ao sentido agregador do

povo negro. Esta foi a possibilidade sustentada pela oralidade e adaptações exigidas

pelo contexto social e histórico. As tensões provocadas por um repertório de valores,

crenças, sentimentos entre as diversas etnias foi o que propiciou o surgimento de uma

nova identidade coletiva. Identidade com características próprias e estruturante do povo

afrodescendente. Uma identidade ancestrálica que continua sendo construída até por

conta da dinâmica dos diversos repertórios que ainda se entrelaçam e se imbricam como

uma rede que se alarga no espaço sagrado e revitalizado pelo sentido das tradições.

Eliade nos diz que; A manifestação do sagrado no espaço tem por conseqüência, uma valência cosmologica: toda hierofania espacial ou toda consagração de um espaço equivalem a uma cosmogonia. Uma primeira conclusão seria a seguinte: o mundo deixa-se surpreender como Mundo, como Cosmos, na medida em que se revela como mundo sagrado (ELIADE, 1956, p. 59).

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27

O terreiro é um lugar singular e plural que contém o mundo sagrado. Na

reconstrução de um mundo ao mesmo tempo divino e comunal, vive-se

ritualisticamente, mitologicamente um entre-lugar onde afrodescendentes, via de regra

como um segmento excluído, reconstroem significados fundados em valores

rizomaticamente africanos. Valores que podem ser definidos como uma contribuição

coletiva para conquistar a capacidade de se autorizar. É uma autorização que se faz

tanto pela individualidade preservada como pelo sentido como se inscreve a

comunidade nas suas verdades estruturantes. Verdades que transcendem ao que poderia

ser compreendido como símbolos ou imaginário do grupo.

Dentre as ações simbólicas que me chamaram atenção naquele xirê9, uma se

destaca sobremaneira: era o jeito, a nobreza como homens e mulheres adentravam o

barracão. Tudo me parecia surpreendente. Cada um que chegava tinha uma postura

alinhada da cabeça aos pés. Entravam olhando firme para frente, e só muito

discretamente olhavam para os lados. Com postura impecável, acomodavam-se em suas

cadeiras dispostas no barracão num movimento quase circular.

- A festa vai começar, informou Ana Célia. Um leve sussurro fora do barracão era o

indicativo de que a homenageada estava chegando. Entraram os alabês, os ogans que

tocam os atabaques. Eles tomaram os seus lugares e davam alguns toques como que

afinando os instrumentos sagrados ou chamando as pessoas para o xirê. O ogan10

Nezinho11, que também já foi chamado por Olorum, compenetrado sentou-se entre os

mais novos. Do seu lado acomodou-se o ogan Darinho e seu filho Bié12, de 6 anos de

idade. A orquestra sagrada estava formada.

2.9 O CORTEJO: re-existência do poder real

A assistência se levanta. Um toque especial do atabaque acompanha a entrada do

cortejo. Não era um toque de dança. Era um toque que anunciava a chegada de alguém

que se distingue que se autoriza ser a primeira. À frente do cortejo, caminhava Mãe

9 O mesmo que festa. 10 Titulo honorífico para homens. Pai na comunidade. 11 Nos terreiros é importante o nome civil ou o nome religioso pelo qual se é conhecido. Às vezes ninguém reconhece o nome próprio da mesma pessoa. 12 Idem Bié, hoje um jovem músico percursionista e estudante de Comunicação na Ucsal..

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28

Stella13, trazendo ao seu lado a filha de Oxum homenageada. A chegada daquelas

pessoas especiais no espaço sagrado eu entendi como uma experiência que retroage

sobre a história. O cortejo adentrava com toda singularidade de sua história. Dobraram

os atabaques e toda assistência se levanta respeitosamente. Decerto que não se tratava

de uma ressurreição do passado porque não havia passado. Tudo estava no presente. A

seguir, entraram os ogans ekedes,14 filhos e filhas-de-santo, mais velhos. Sentadas lado

a lado, as duas líderes, duas Iyalodês, cada uma no seu posto.

O passado enquanto memória não resiste entra no agora e se presentifica no

tempo sagrado. Indago sobre esta percepção e recebo a resposta instigante de Bergson: O que é, pra mim, o momento presente? É próprio do tempo decorrer; o tempo já decorrido é o passado, e chamamos presente o instante em que ele decorre. Mas não se trata aqui de um instante matemático. Certamente há um presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do futuro. Mas o presente real concreto, vivido, aquele a que me refiro quando falo de minha percepção presente, este ocupa necessariamente uma duração. Onde, portanto se situa essa duração? Estará além do ponto matemático que determino idealmente quando penso no instante presente? Evidentemente está aquém e além do tempo que chamo “meu presente” estende-se ao mesmo tempo sobre o meu passado e sobre o meu futuro (BERGSON, 1999, P. 161).

Na eminência do acontecimento ritual, a África dos nossos ancestrais estava

reterritorializada na sua atemporalidade. Ali se fazia exposta a cosmovisão do povo de

santo, no seu repertório simbólico, político e cultural. Havia todo um aparato

reconstruído que se mostrava na ornamentação do barracão, na postura daquela gente

que sabia o quanto aquele momento importava para as suas vidas e para a sua condição

de ser, pertencer e participar da comunidade. A comunidade Afonjá orgulhosamente

contemplava as duas guardiãs da nossa religião e cultura. Elas estavam ali dignas e

altivas, representando a ancestralidade da comunidade.

Naquela noite vivi um tempo desafiante das leis da normalidade. Com o tempo, a minha estranheza pela ignorância do ritual não me impedia de entender que eu estava participando de uma festa do meu inconsciente e do avivamento da minha ancestralidade negra. Eu estava participando de uma narrativa saída das profundezas da memória do lugar e afetava o meu jeito de ser e estar naquele espaço sagrado. Todos os meus sentidos estavam empanturrados do ambiente e de sua narrativa em forma da festa, gestos, canto, cores e dança numa recriação de fatos e histórias ritualizadas que não se perderam na travessia transcontinental.

13 Mãe Stella é Iyalorixá (Mãe de Santo) do Ilê Axé Opo Afonjá. Posto máximo numa comunidade religiosa de origem nagô. 14 Cargo feminino análogo a Ogan.

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29

Aquele momento significava, portanto, a entrada num mundo onde a

manifestação do sagrado tem como conseqüência uma valência territorial-cosmológica.

O território no caso tem inicio na porteira pela sua importância física e simbólica.

Silva15 entende como territórios a: A querência, o lugar de origem de nascimento de pessoas e culturas, reúnem dimensões do entendimento, entre africanos, do processo de construção das pessoas, situando-se aí as contribuições da educação escolar. Nesta busca de raízes, são também identificadas em territórios afro-brasileiros, sobrevivências de compreensões e atos da tradição africana reveladoras do pensamento em educação desse povo (SILVA, 2000, p. 78).

O terreiro é um território gerado por uma teia cultural que se apresenta como um

conjunto indissociável pela identidade grupal e solidariedade da educação na vida. Isso

não afasta suas contradições e sérios conflitos que afetam e desequilibram as vivências

comunais. A porteira é o início de tudo. É onde tudo se transforma numa natureza

humanizante, onde tudo e todos se interrelacionam numa dinâmica como Mãe Stella

costuma repetir: todo aquele que entra por aquela porteira se torna imediatamente um

irmão. Uma comunidade de terreiro se organiza como um egbé,uma familia no seu

sentido mais amplo.

A comunidade, o egbé, no seu significado matricial, estava reunida para a festa

de Mãe Pinguinho. Um egbé de muitos filhos, pais, mães e muitos irmãos como a

familia ancestral trasladada na memória do povo negro na diáspora. Um zelo primoroso

pela preservação do sagrado se mostrava na festa de extrema beleza e sensualidade.

Toda sensibilidade humana desordenadamente seduzia meus sentidos. Importante a

minha identificação com o evento eivado de dinamicidade que me fazia dançar pulsando

meu corpo e minha alma vigorosamente desvelando outras marcas do meu sistema

perceptivo. Ali estava eu naquele lugar encharcada de novidades como receptáculo da

dinâmica de um movimento que me levou para aquele acontecimento presente. Como

nos diz Santos16, Os eventos são todos presente. Eles acontecem em um dado instante, uma fração de tempo que eles qualificam. Os eventos são, simultaneamente, a matriz do tempo e do espaço [...]São eventos que criam o tempo, como portadores da ação presente (SANTOS, 2002, p. 145).

Os eventos, como vivenciamos ritualisticamente, falam de um mundo que não

está fora de nós.Cada um de nós estava ali carregando dentro de si o mundo ao qual

15 Silva/Petronilha Beatriz Gonçalvez e. Dimensões e Sobrevivências do pensamento em educação em territórios africanos e afro-brasileiros. 16 Milton Santos sobre tempo eventos e espaço.

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pertencemos desde sempre.Daí que, considerar o ser na comunidade incluindo seus

gozos e conflitos, significa. Afinal, o mundo e a comunidade somos nós. Para

compreender o mundo é preciso compreender a nós mesmos e nossas vivências

individuais e coletivas. Na comunidade de terreiro a memória tanto pode ser

considerada na presença do mais velho, como eventos que são repetidos no Odum,

período de festas como um jogo nos rituais sagrados. Na verdade, os eventos são muito

mais do que acontecimentos que se repetem.

Os eventos são também idéias que representam uma postura política de exercício

de liberdade de ser. São eventos organizados que se renovam no modo de se realizar e

de entender realidades pessoais e comunitárias. A intenção deve ser antes de tudo

compreender a nós mesmos na vivência presente. Decerto que tanto o gozo como as

turbulências do mundo também são nossos problemas. São fenômenos, são

acontecimentos que nos motivam a repor a memória e proceder à evocação restauradora

das lembranças da comunidade que se reconstrói a cada evento. E tudo nos afeta e nos

propicia o autoconhecimento.

A compreensão de nós mesmos e do lugar onde celebramos a ancestralidade

renova a vida de velhos e novos. Em outro contexto, a fala de Bosi indaga o que é ser

velho na sociedade capitalista? A resposta vem certeira como uma flecha no tempo: “É

sobreviver, impedido de lembrar e de ensinar sofrendo a adversidade de um corpo que

se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice que

não existe para si, mas somente para o outro. E este outro é o opressor” (BOSI, 1994, p.

18). Imagino a desventura quando o indivíduo é capaz de perder-se dentro dele mesmo.

Como falar das coisas sem integrar a este mundo que é um lugar, um cenário

memorável onde co-existem lembranças do lugar. Ainda é na fala de Bosi que

contraponteando o seu estudo que tensiona a questão da degradação senil a mesma nos

diz que: A memória das sociedades antigas se apoiava na estabilidade espacial e na confiança em que os seres da nossa convivência não se perderiam, não se afastariam. Constituíam-se valores ligados a práxis coletiva com a vizinhança (versus mobilidade), a família larga, extensa (versus ilhamento da família restrita) apego a certas coisas, a certos objetos biográficos ( versus objeto de consumo) Eis aí alguns dos arrimos em que a memória se apoiava (BOSI, 1994, p. 19).

Recolocando esta afirmativa no presente do presente, as memórias do povo de

santo transformam acontecimentos em coisas eternas que se repetem sempre nas suas

Page 44: Àqueles que têm na pele a cor da noite

31

diferenças. Como não falar dessas coisas eternas que se repetem pela memória

celebrativa cuja vitória é manter a nossa história e tradição? Somos esta história.

2.10 MITOS E OS RITUAIS: a chave que abre a memória de um povo

A festa de Mãe Pinguinho de Oxum me fez mergulhar numa experiência

inusitada. Eu tinha a sensação de que estava participando de um acontecimento

atemporal. E não seria razoável encontrar um paradigma para sobrepor ao que devia

simplesmente estar no presente do passado. Eu estava muito à vontade, como se toda

vida experimentasse aquele jeito de viver e de sentir. O cenário na sua composição

dinâmica trazia a marca da rebeldia recriadora e não me causava estranheza. Era como

se eu me desdobrasse em duas. Na verdade tenho vivido por muitas vezes esta sensação

que é indizível. Havia uma coerência muito grande em tudo que eu percebia em tudo

que sentia e pensava. Era uma percepção impregnada de um tempo não só do presente

como também de fatos históricos e de lembranças pessoais. Talvez lembranças de lutas

e de estratégias de sobrevivência inscritas no corpo e na alma. Lembranças de

sobrevivência ou simplesmente, lembranças memórias que na época julguei sem

explicação. Estaria o impacto daquele momento associado às memórias seculares das

festas de coroação de rainhas e reis da nossa procedência matricial? Quem sabe? Parece

que há uma parte escondida da memória pronta para se mostrar numa aproximação

possível. Na fala de Bosi, [...] A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também, ‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo ativa latente, penetrante, oculta e invasora (BOSI, 1994, p.64).

A experiência da festa foi como uma rememoração do que estava latente

juntando fragmentos e vivências de todos os tempos. Vivências que, religadas, invadiam

as fronteiras de um imaginário que seria mais tarde quando feita, parte do meu cotidiano

na comunidade litúrgica do Afonjá.

Hoje posso compreender e rever cada gesto daquele xirê na festa de Oxum.

Todos os gestos se presentificavam tão naturalmente que eu podia perceber que não

Page 45: Àqueles que têm na pele a cor da noite

32

havia nenhum esforço abstrato para recriar uma reminiscência de origem. Havia um

tônus vital que se encarregava de ativar outro jeito de estar no mundo.

Eu nunca havia visitado um terreiro e não conhecia uma só cantiga. Do meu

lugar dancei com alegria. Eu me sentia embalada, acariciada e acolhida por mim mesma

numa dança até então desconhecida. Recorro a Bergson quando diz:

Meu presente é, por essência, sensório-motor. Equivale dizer que meu presente consiste na consciência que tenho do meu corpo. Estendido “no espaço meu corpo experimenta sensações e ao mesmo tempo executa movimentos...Por isso meu presente parece ser absolutamente determinado, e que incide sobre o meu passado (BERGSON, 1999, p. 162).

Como feitos, com o corpo desvelamos o nosso jeito de ser essencialmente.

Contamos histórias de nós mesmos mostramos qualidades que emergem das

profundezas enraizantes da nossa filiação espiritual. Com o tempo aprendi observando

que não é difícil identificar uma filha de Iansã, por exemplo. Ela traz inscrito no seu

caminhar a leveza das borboletas. Os braços balançam como uma dança de movimentos

de quem pode voar. Ou o filho de Ogun que quando anda balança para direita e para

esquerda e com um pulsar interno remete ao abridor de caminhos. Aquele que segura o

facão e faz caminhos que transformam a vida com sua força da essência que ficou na

memória e no coração.Ou a filha de Oxum no seu caminhar ondulante como a dança que

dança o movimento de todas as águas.No terreiro, vive-se a memória de uma África

ancestrálica atualizada. A memória ancestral reorganizou a vida e a identidade coletiva

de negros e negras escravizados no Brasil, mas sempre com algumas ressalvas, que não

vamos considerar como perdas. Bergson fala que A memória do corpo, constituída pelo conjunto dos sistemas sensório- motores que o hábito organizou, é portanto uma memória quase instantânea a qual a verdadeira memória do passado serve de base....Em outras palavras é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde e é dos elementos sensório motores da ação presente que a lembrança retira o calor que confere a vida (BERGSON, 1999, p. 178-179).

A fala deste autor nos remete à idéia do calor que está na raiz, no sentimento e

no pensamento africano, e não atende à disciplinaridade nem da fragmentação que

mutila a vida. Atende sim aos princípios da tradição em suas peculiaridades tendo como

fundamento uma cosmovisão no presente e que se alarga plural. Do mesmo modo

acolhe o entendimento da complexidade da vida em suas dimensões mais íntimas onde

os fenômenos e os seres se encontram como princípios complementares.

Page 46: Àqueles que têm na pele a cor da noite

33

O pensamento africano não separa, não hierarquiza. Corpo, mente, memória,

tradição, sentidos, imaginário, símbolos, signos, espiritualidade e as vivências

cotidianas. Tudo faz parte de uma tradição na sua multidimensionalidade que não se

presta a explicações reduzidas a categorias que fragmentam sentidos.

A preocupação pela legitimidade da tradição é de fato uma preocupação notória

com a preservação da identidade. Sem a tradição não haveria identidade. É a tradição

que conta a história do pensamento africano, expondo a história da ancestralidade negra

na sua integralidade.

Na trajetória transversal da história do negro no Brasil vamos considerar alguns

desvios como arranjos para a re-existência. Trata-se, portanto, de uma forma de

atualização que podemos considerar legítima na essência que advém de uma experiência

que é coletiva e tem a sua própria lógica. Lógica que se faz pela re-existência, como

fenômeno de transformação cognitiva pela inter-relação de seres e saberes

compartilhados. Seres que, expatriados pela diáspora, re-significaram seus papéis,

organizando-se em torno de uma identidade ancestral. Saberes que se imbricaram e se

expressam nos enredos da história oral, nos mitos, cantigas, provérbios e falares que

anunciam um éthos epistemológico enraizado no pensamento africano na sua

atemporalidade.

Neste sentido, a matriz cultural africana vivenciada nos terreiros carrega na sua

gênese, um conteúdo nem sempre simbólico, com princípios e valores que vão se

reorganizando e nos organizam dialogando com entidades de todos os tempos para os

quais viver é um ato sagrado, e nós recebemos este legado.

Aprofundar no mistério, no sagrado e compreendê-lo é diferente de explicar.. O

mito é a forma escolhida para compreender o sagrado, também os pensamentos,

sentimentos e sonhos. O mito é o sonho coletivo. Como família de santo, vivemos a

memória de uma África, mãe ancestral atualizada e atualizante. Não viramos uma

estátua de sal. Falamos do lugar-terreiro, lugar ritualizado nas suas múltiplas verdades.

Um lugar que nos mantém em ligação com a terra. Lugar que nos preserva vivos e de

pé. Lugar que por sua força nos anima e nos faz viver plantados como sujeitos

universais e contemporâneos. A procura é para restabelecer o sentido da integridade

entre o homem, o conhecimento, a ancestralidade, a ética e as diversidades de todos os

tempos.

Page 47: Àqueles que têm na pele a cor da noite

34

2.11 RECONHECENDO AS MÚLTIPLAS VERDADES

Conta-se que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o Orun17 o Aiyê18, mundo material havia um espelho. Daí é que tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia exatamente no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas. Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade. O espelho ficava bem perto do Orun e bem perto do Aiyê. Naquele tempo vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia inadvertidamente perdendo o controle do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando O encontrou tranqüilamente deitado a sombra do Iroko19. Depois de ouvir suas desculpas com toda a atenção declarou que dado aquele acontecimento, daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade e concluiu: De hoje em diante quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade por que o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra. 20

Neste contexto, valho-me deste exercício acadêmico para pensar o fragmento

espelhado qualificante deste estudo com a perspectiva de pensar educação do povo

brasileiro na sua complexidade étnico-cultural integrada pelo pensamento africano.

Pensamento que considerando as sutilezas das diferenças, constrói e evidencia valores

oriundos da ancestralidade enraizante. Pensamento como força e princípio estruturantes

de convivências na comunidade que acolhe, cura e ampara. Convivência que me

possibilitou a compreensão do discurso silencioso do lugar - terreiro. Discurso que se

desvela e se projeta nas camadas mais internas e imanentes da minha

existência.Discurso de um lugar onde a fala pode ter sua correspondência no olhar

atento, na escuta ou nas respostas que se revelam sem o compromisso com uma única

verdade.

Falo do pensamento africano, uma das verdades deste meu lugar que é uno e múltiplo. Verdade que por sua própria condição de re-existência é resultante da complexidade de etnias que se imbricaram na formação de uma outra cultura, de um

17 Mundo espiritual 18 Mundo natural 19 Árvore considerada sagrada para os iorubanos. No Brasil foi substituída por gameleira branca. 20 História mítica adaptada por Vanda Machado e Carlos Petrovich para a Cartilha das religiões...

Page 48: Àqueles que têm na pele a cor da noite

35

outro povo africano na diáspora. Assim nasceu o povo afrodescendente que se esparramou pelo mundo, onde o presente o passado e o devir não se separam em categorias estanques.

Falo de um lugar que conheço e faz parte do mundo ao qual pertenço. Não por

escolha, mas por uma lógica de pertença ancestral que me envolve numa condição de

ser sendo. Compreendo esta relação como expressão ontológica da minha condição

humana essencial. O sentimento da pertença ancestral não autoriza a me separar de

outros fenômenos que vivencio enquanto indivíduo e ser social.

Sou feita21 de Oxum. Esta é uma condição que me autoriza a olhar o mundo

como parte do meu mundo interior. Considerando um jeito de pensar que vai além do

domínio do cognitivo acreditamos que estamos no mundo e carregamos o mundo dentro

de nós na multiplicidade de elementos da natureza que nos compõem.

As vivências do povo de santo se plasmam nos confins de um mundo arcaico

instaurado pela ancestralidade magnificada no seu caráter essencial e numinoso.

Compreendemos então que o mundo em que vivemos é uma realidade oriunda também

de nossas próprias percepções. Percepções que estão na razão dos sentimentos humanos

numa implicação do além do vivido. Com efeito, a nossa consciência apenas reflete à

maneira de um espelho a luz originária do mundo percebido. Pertencemos ao mundo de

intensas possibilidades criadoras. Mundo que nos contém e que nos enche das suas mais

diversas formas de energias vitais e interdependentes como uma trama que produz a si

mesmo. Bâ nos diz que Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas, postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo invisível e vivo constituído em forças em perpetuo movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário e o comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) pode se constituir como objeto de regulamentação ritual (BÂ, 1982, p. 186).

Estamos falando de eventos que acontecem num espaço-tempo multirreferencial

em que o estado e os movimentos dos corpos materiais e a distribuição desses corpos

determina configurações míticas envolvendo a invariância da matéria em suas

transformações que afetam vivências e o imaginário. Neste sentido, os rituais presentes

o tempo todo na comunidade sintetizam momentos importantes de todos os tempos que

constroem as pessoas e a comunidade. Como observa Heidegger (2002), o passado

21 Linguagem usual para pessoa que passou pela experiência de fazer o santo, fazer a cabeça, se tornar omo orixá, filho do orixá ou iniciado como se diz na linguagem antropológica.

Page 49: Àqueles que têm na pele a cor da noite

36

jamais segue o ser, mas o precede. É o passado que caminhando na frente vai

adaptando-se a realidade do presente como tradição. Pensando deste modo estamos

diante da complexidade de uma perspectiva dialógica. A matéria e o espírito se

reconhecem e formam uma unidade não linear num processo dinâmico repleto de

subjetividades. Por outro lado, entendemos que a ciência convencional sempre buscou

eliminar a subjetividade das suas explanações o que dificultaria compreender a nossa

própria subjetividade como objeto científico. Aí é que estabeleço um mergulho por

dentro de mim mesma e da minha comunidade no seu aspecto mais arcaico e

paradoxalmente atualizante. Mergulho, e ao emergir trago um outro tempo repleto de

novidades que só podem ser consideradas como transitórias.

E por não se tratar de recair em crenças puramente mágicas, a educação

inspirada nas subjetividades deste imaginário é mitopoético e polissêmico. Esta é uma

condição que sugere a fluidez, a descristalização e a transgressões do modelo cultural

instituído fechado no assujeitamento de pensamentos lineares. Por analogia, o que

prefiro chamar de feitura ao invés de iniciação é por entender que esse é o momento de

se fazer a cabeça, preparando aquele que está sendo feito para aprenda a aprender.

Neste caso cada um estaria voltado para a sua melhor forma de aprender. Aprender na

vida e no caminho da emoção de cada dia. Aprender na vida também como poesia.

Aprender descobrindo novas estruturas internas. Aprender percebendo o extraordinário

no cotidiano. Aprender nesta condição seria preparar-se para viver o cotidiano na sua

complexidade criadora gestando e germinando novas sensibilidades e sentidos.

Viver no terreiro sendo feito ou não é estar pronto para construir seus saberes a

partir de um novo espaço interno. Um espaço vivo e estimulado para aprender com

todos os acontecimentos. A aprendizagem inclui atos celebrativos que estimulam e

agregam tudo que dá vida à vida comunitária. As educadoras da Eugênia Anna

passaram por esta experiência vivenciando as possibilidades de compreender o mundo

como algo que se move dentro e fora de nós mesmos. É um lançar-se além de si para o

encontro de outras vivências, outras leituras e da compreensão de outros códigos

experienciais. No Afonjá vive-se um mundo africano tradicional onde tudo existe em

potência. Tudo está para acontecer ou dissipar-se. Vive-se o mundo das possibilidades.

Page 50: Àqueles que têm na pele a cor da noite

37

2.12 A ÁGUA VIDA E MÃE DA INTELIGÊNCIA PLANETÁRIA

O mundo africano tradicional tem como princípio uma geografia sagrada onde

os elementos da natureza interagem criando a paisagem ancestral do universo que se

move dentro e fora de cada um. Se uma poça de água contém o universo, somos um

fractal deste universo movente que produz equilíbrio interior e é possível mostra-se na

sua verdade poetizando a vida.

Água, que brota do lugar que nasce, vive e corre desconhecendo fronteiras. O

povo de santo se acredita como parte da natureza de Oxum a água encarnada que canta,

dança, rodopia, ou enfrenta obstáculos com destreza e sabedoria. Oxum a mãe ancestral,

água que dá vida a todos os seres deste planeta. Somos todos os filhos da água que nos

envolve como templo sagrado e nos faz nascer. Filhos da água que canta unindo numa

única dança os céus, os astros, os trovões as chuvas, as matas, o arco-íris, as montanhas,

as planícies e os oceanos. Nos terreiros, se diz que nada pode ser iniciado sem o poder, a

presença e os mistérios da água. Ou como nos lembra Bachelard, A água como se dizia nos antigos livros de química, “tempera os outros elementos”. Destruindo a secura – a obra do fogo - ela é a vencedora do fogo; tira do fogo uma paciente desforra; aplaca o fogo; em nós ela abranda a febre. Mais que o martelo, ela aniquila as terras, amolece as substâncias (BACHELARD, 1997, p. 108).

É certo que o mundo cartesiano não contempla a fluidez de sua presença. Águas

de múltiplas formas e lugares que se mostram nas enchentes que leva consigo o que está

no seu caminho. Nas barulhentas cachoeiras, na piscosidade dos rios que alimentam a

terra ou na transparência dos lagos e córregos tranqüilos. Oxum, água que engole as

sombras das arvores, tornando as paisagens risonhas e brilhantes deixando refletir o

brilhar do sol. Água lágrima, saliva, sémem, suor que refaz e reconstrói e que se coloca

como segredo nos espaços de si mesma e do outro. Oxum, água que se esparrama em

corpos distintos criando possibilidades de afetos e de outras vidas que vem e que voltam

renovando o mundo alternando sempre.

2.12.1 Água: força que caminha em nós e no mundo

Três pingos de água no chão, uma evocação respeitosa aos ancestrais e a todos

os orixás, está assegurada a possibilidade para o diálogo com o orixá. Assim quando

Page 51: Àqueles que têm na pele a cor da noite

38

dizemos: Oxum mo pe22. Oxum mo pe. Oxum mo pe. Está aberto o caminho para o

diálogo.E neste caso a água abre o caminho fazendo a mediação para a fala de Deus. A

água joga com agente como manifestação do sagrado. Através do jogo de búzios é que

se ouve a fala do sagrado. A este respeito, vale considerar o que nos diz Eliade: A manifestação do sagrado no espaço tem por conseqüência, uma valência cosmológica: toda hierofania espacial ou toda consagração de um espaço equivalem a uma cosmogonia. Uma primeira conclusão seria a seguinte: o mundo deixa-se surpreender como Mundo, como Cosmos na medida em que se revela como mundo sagrado (ELIADE, 1956, p.59).

Acreditamos que pertencemos a um mundo que é sagrado. Mundo que nos

constrói de partes deslocadas de materiais ancestrais nos fazendo erigir como seres

integrais e integrados com tudo que existe no mundo.

Vivemos no mundo onde a aleatoriedade é a regra. Um mundo onde a relação

tempo-espaço atende a uma interdependência de subjetividades onde os princípios da

incerteza se apresentam como forma de caminhar no mundo. Temos consciência da

instabilidade que caracteriza um dia depois do outro. Um tempo extraordinário que faz

com que o povo de santo viva num estado de alerta a todos os sinais imanentes.

O pensamento africano é regido pelo paradigma do diálogo e das possibilidades.

Assim, a percepção de mundo se abre e se ampara num jeito que nos mantém numa

trajetória dinâmica de possibilidades e relações complementares e de interdependências.

Isso faz com que cada momento seja singular e irrepetível na existência humana. É

preciso estar atento. Olhar o caminho significa estar atento às possibilidades e a todos

os sinais do cotidiano. Um iorubano não sai de casa sem olhar nos búzios os possíveis

acontecimentos do seu dia. Adesoji ( 1990, p.38), quando nos fala de o seu povo afirma

que: Todos os eventos são importantes na vida dos iorubás. Qualquer atitude é precedida pela Consulta a Ifá Oráculo, com o fito de garantir a paz de espírito para os tempos vindouros. De acordo com a orientação do Oráculo, fazem oferendas aos orixás. Muitas das oferendas que se lhe fazem são alimentos colocados acima de suas imagens. Ifá é consultado por ocasião de uma comemoração da qual todos participam (ADESOJI, 1990, p. 38).

Assim a vida é compreendida como uma rede de probabilidades que se plasma

ou se dissipa, considerando-se uma relação dialógica, interativa e criadora entre quem

olha, jogando búzios ou o jogo de Ifá e quem espera as respostas encaminhadas a mais

remota dinâmica do caminho ou odu 23 . Entidades se apresentam como conseqüência

22 Na língua Ioruba: Oxum eu te chamo 23 Conjunto de orientações oraculares. Wande Abimbolá e outros especialistas da tradição e da literatura iorubana dizem que os Odus estão para o povo iorabano Biblia está para o povo cristão. Segundo a

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39

das caídas dos búzios ou no jogo de Ifá re-encantando o destino com seus caminhos e

descaminhos nas realidades ontológicas.

O desejo de um jogo é via de regra o primeiro momento de aproximação com

uma comunidade de tradição e liturgia africana. Não raro ouve-se de alguém: eu

preciso fazer um jogo. Preciso saber se tenho caminho para esta viagem ou emprego,

por exemplo. Ter caminho é o mesmo que ter autorização no nível de proteção

espiritual.O jogo de búzios praticado no terreiro aponta caminhos para curas,

organização pessoal, autoconhecimento, escolhas, decisões e convivências

comunitárias.

Os filhos da casa são os primeiros a serem atendidos para o jogo na busca da

ajuda e orientação necessária, quando se sentem abalados por qualquer desconforto.

Seja este incômodo físico, emocional ou financeiro, ou se há dúvida para tomar decisões

importantes. O jogo atende ao princípio de flexibilidade e as realizações podem

acontecer como num conjunto de possibilidades. Para tanto o diálogo e as oferendas às

divindades se fazem imprescindíveis.

Considere-se que estamos falando de uma comunidade onde a vida social, a vida

religiosa se integram de maneira plena e inseparável. Todas as decisões se resolvem e

podem acontecer como no jogo. O jogo da vida vivida. Um jogo onde nada pode e tudo

pode, como no dizer dos mais velhos. Para Mãe Stella: tudo está a nossa espera. O jogo

é o próprio diálogo com as divindades com o caminho e com a possibilidade de cada

um e da comunidade

É preciso estar atento a tudo e a todos em todos os lugares. Neste sentido a

função dos mais velhos é lembrar, e aconselhar, religando os princípios da

ancestralidade ao presente e ao devir. Nos terreiros a condição do envelhecer está

comprometida com a sabedoria e a vida. O corpo e a mente em constante movimento

pelos rituais e pela dança não se desagregam do conhecimento e da memória que vai se

tornando cada vez mais viva. As lembranças são preservadas como um projeto pronto

para ser retomado sempre. O velho e a velha se tornam cada vez mais competentes pela

própria natureza da comunidade.

tradição ioruba, existem 16 Odus , cada um desses divididos em 16. Cada um desses ainda tem outras divisões, que vai dar um total de 256 Odus ou signos e cada pessoa tem o seu destino ligado a um deles. O Odu que se apresenta num jogo solicitado a um babalawo, Iyalorixá ou babalorixá. num momento de necessidade pode não ser necessariamente o Odu da trajetória pessoal de um indivíduo. Cada um desses olhadores deve saber de cor 256 Odus e ter o compromisso de não passar para quem não foi ainda iniciado para este mistér. O babalawo é, portanto o pai do segredo.

Page 53: Àqueles que têm na pele a cor da noite

40

No terreiro, vivem-se todos os tempos ritualisticamente e o passado é revisitado

nas suas lembranças importantes para a manutenção da herança ancestrálica

comunitária. A comunidade e a pessoa são uma coisa só. Um rebuliço com um membro

da comunidade e todos são afetados. Somos elos de uma mesma corrente. Galhos e

folhas de uma mesma árvore.

Para os mais novos é de bom alvitre manter-se atento e pouco perguntar. Escuta-

se muito para compreender e aprender a dialogar. De fato, o diálogo acontece de forma

parcimoniosa e só vai acontecer com os mais novos, no tempo certo na medida em que

estes sejam encaminhados para a compreensão dos códigos mais profundos que

fundamentam o pensamento do grupo. Ouve-se a fala do Tempo, fala muitas vezes

materializada na fala de uma pessoa que passa e diz algo inusitado

despropositadamente. Esta fala se torna importante justamente pela aleatoriedade.

Escutam-se as falas das próprias cabeças e a fala nem sempre apropriada dos vivos. As

falas ancestrais é o que orienta a comunidade através do jogo como interlocução e

presença nas realidades cotidianas.

2.13 O SAGRADO É REAL POR EXCELÊNCIA

No Afonjá, Xangô recebe a obrigação do osé semanalmente, sempre às quartas

feiras. Quarta-feira ou Ojo-Jacutá, dia da justiça na semana iorubana. Chamamos

obrigação os rituais individuais e coletivos que fundamentam e alicerçam os princípios

básicos da religião e das vivências comunitárias. O osé é uma obrigação interna,

quando todos os filhos de um mesmo orixá trocam panos, flores, movem todos os

objetos sagrados de seus lugares para uma limpeza cuidadosa do quarto do santo. É

quando são trocadas as águas das vasilhas rituais atendendo a uma dinâmica renovadora

do ará e do ori, renovação do corpo e da cabeça. Tudo volta para os mesmos lugares,

mas o cenário não é o mesmo.

No Afonjá desde 1910, a mesma cena se repete nas quartas-feiras, no mesmo

lugar, na mesma hora do mesmo jeito como uma novidade pontuada de detalhes

importantes. O lugar da espiritualidade é um lugar dinâmico, criado exatamente para o

encontro das diferenças. Cada um tem sua talha24, onde a água e a vida se renova num

ritual que afirma a individualidade, a autonomia e a proteção. Mas a obrigação só se

Page 54: Àqueles que têm na pele a cor da noite

41

realiza no coletivo. É um momento onde tudo se move, circula e volta a ser como

sempre foi. Entretanto, um discreto detalhe que não foi conservado como antes, ou um

muxoxo faz a diferença de fato. Mesmo um quarto do orixá não é um lugar congelado

pelos seus fundamentos.

Aliás, tudo se move ou é movido numa dinâmica que se configura em dimensões

de um cenário em transição. O cheiro de muitas alfazemas e roupas limpas impregna o

ar. Carregamos balde com água e lavamos tudo até o espaço sagrado ficar

completamente limpo e arrumado. Ficam incluídos também os arredores da casa

Renovando todas as esperanças, a casa de Xangô se abre logo depois do osé para

receber as pessoas que precisam de uma consulta através do jogo de búzios. Feito o

atendimento por Mãe Stela, em meio a um breve e intenso convívio entre os filhos da

casa e os visitantes, é servido o amalá para todas as pessoas indistintamente. Naquele

momento todos são filhos da comunidade. O amalá é uma comida dedicada a Xangô. É

a comida feita com quiabos cortados como caruru temperado com camarão, cebola

moída, pimenta e azeite de dendê cozido com pedaços de carne. Os quiabos são

cortados entre rezas e agradecimentos por mais aquela celebração com a comida que

será compartilhada com toda comunidade e visitantes.

Este é um acontecimento revivido mitologicamente e que se repete a cada

semana. Este é, portanto, um acontecimento que na sua repetição se constitui num

momento em que cada um se sente tocado particularmente no encontro com pais e

mães, irmãos e irmãs na comunidade.

É desse modo que continua acontecendo em Oyó terra de Xangô na atual Nigéria

onde tive a oportunidade de uma relativa convivência que apreciei na sua

atemporalidade. No Afonjá este ritual se repete pela necessidade de se cultivar

agregação da familia e o sentido individual de ser, pertencer e participar da

comunidade solidariamente.

Na metade da manhã de qualquer quarta feira do ano, o cheiro do amalá exala

pela casa cheia de gente de todas as origens. A comida feita sem pressa aproxima as

pessoas para a oferenda aos pés de Xangô. Durante todo tempo, fatos e casos foram

comentados pelos filhos da casa, numa linguagem quase sempre hermética. Gestos e

falas misturadas com vocábulos em iorubá propiciam o compartilhamento de saberes e

fazeres que fundamentam a religião na sua continuidade. Enquanto isso, os mais novos

24 A talha ou a quartinha é a representação do corpo de cada um que se protege e que se renova a cada osé.

Page 55: Àqueles que têm na pele a cor da noite

42

e ou estranhos escutam as prosas quase sempre de interpretação metafórica, por isso

mais sedutora, interessante e necessária.

Chegada a hora, espera-se por Mãe Stella. É ela quem vai fazer a oferenda e

proceder ao dialógo com Xangô através do jogo de búzios ou do orobô25. É a hora de

continuar o que foi iniciado desde o dia anterior assim que o sol se pôs. Prostrados

diante do patrono da comunidade, todos batem o paó, numa saudação ao orixá.. O paó é

uma seqüência de palmas ritmadas numa ordem de batidas que vão decrescendo e que

se repetem por três vezes. Mãe Stella reza, comunicando-se com orixá sobre a nossa

presença, nossos desejos e agradecimentos. Findo o jogo, a mãe transmite a orientação

para a semana que se inicia. Um silêncio acolhedor se espalha no ambiente. A resposta

positiva significa que cada um e a comunidade estão protegidos. Em caso de dúvida, o

melhor é poder contar com a ajuda do orixá.

Finalmente, ela mesma inicia o canto que é repetido pelos presentes.

Eni pá léérín ada ba lái

Bé ní je ni a pã bo

Je bi oo ni a! Pã bo.

Este canto tem como tradução metafórica: Comer (amalá) de quiabos cortados

dentro de uma gamela. Comer e nascer dele com satisfação de uma só vez, adorando.

Finalizando a obrigação, saudamos Xangô, saudamos a Mãe de Santo, saudamos

os mais velhos pedindo-lhes a bênção. Para prolongar o convívio, vamos ficando juntos

comendo o amalá com todos que estiverem no momento mesmo aqueles que não

possuem qualquer entendimento daquela obrigação. É uma cena que se faz nova a toda

quarta feira. A cada osé acontece este jogo como uma imersão atemporal.

Certo dia, ouvi de Tia Gilsete de Xangô: - Sempre foi assim, no tempo de Mãe

Senhora era todo dia. Nao passava um dia que ela não escutasse Xangô. Todo dia ela

estava lá pela manhã bem cedo, com os búzios na mão conversando com Xangô. Ela

dizia: - o que é bom fica o que não presta a gente despacha.

Esta não é uma prática isolada, ou uma aproximação de duas situações que

parecem antinômicas. Ayoh’Omidire nos relata pessoalmente que o povo iorubano mais

25 Noz de uma planta originaria da África, adaptada no Brasil e usada em obrigações rituais.

Page 56: Àqueles que têm na pele a cor da noite

43

precisamente em Osogbo, na terra de Oxum, a sua familia repete esta obrigação do

mesmo modo como fazemos no Afonjá. A cada quatro dias, as famílias se reúnem, o

patriarca faz o jogo divinatório de entrega do osé. Em seguida, distribui conselhos e

orientações para as famílias. Ainda é Omidire quem nos fala em mais uma de nossas

intermináveis conversas:

Este é um dia onde o tempo e o espaço de origem grego romano ocidental não trazem nenhuma influencia. É outro tempo e outro espaço que é ancestral e estruturante de convivências. Em Osogbo também um grupo de mulheres fazem e compartilham o omolocum26 Em seguida todos partem para as feiras e ficam por lá em Ibadan27 fazendo suas compras. É de lá que vem muito inhame e pimenta. A feira para o povo iorubano é um lugar de partilha. É na feira que se encontram os vivos, os que já se foram e os que hão de vir (Conversas com Ayoh'Omidire em 2004).

Olhando a história, na concretude do pensamento iorubano, no conjunto o que

conta não é propriamente o osé como um jogo ritual que se repete, mas a maneira como

esta obrigação foi concebida cobrindo possibilidades de partilha, agregação,

solidariedade, o cuidado, a convivência comunitária o aprender a ser e estar com o

outro.

2.14 JOGANDO O JOGO NA VIDA

Hoje, são muitos os significados atribuídos ao jogo. Busca-se um significado

para o jogo quando se estuda o papel atribuído pelas teorias contemporâneas. Estuda-se

o jogo no curso do movimento através da análise das mudanças do comportamento,

mudança de fase e alterações no padrão de informação. A ciência descobre no jogo, a

singularidade do singular e seu caráter de irreversibilidade entende-se que: o singular

nunca se repete exatamente igual ao anterior, apenas parcialmente.

Portanto, há sempre uma porta aberta para a novidade, para o que está em

imanência para o diferente. O jogo praticado enquanto divinatório pode ser considerado

de modo similar. Esta é como uma parte de um fenômeno que cobre todo campo do

pensamento africano com a função de olhar a vida. Olhar a vida significa ter acesso ao

processo fecundo do conhecimento de si mesmo que envolve o ser e a sua vida vivente.

26 Comida de Oxum feita com feijão fradinho, cebola ralada, camarão, azeite de dendê e ovos cozidos. 27 Cidade da Republica Federal da Nigéria. Capital do Estado de Oyó.

Page 57: Àqueles que têm na pele a cor da noite

44

Entendemos que cada cultura trata de aplicar ao jogo noções percebidas pelas

inúmeras formas de significados e interpretação da palavra ou pela inclusão da função

do jogo jogado e do jogo jogante. A percepção cientifica do jogo e do acaso tem

constatado que o conhecimento das ciências físicas existe desde os primórdios da

humanidade. Desse modo, o que está na interpretação da criação inventando as

cosmologias contemporâneas é que nos permitem fazer releituras do acaso, do tempo,

do espaço-tempo e do jogo.

Esta é uma consideração a partir das contribuições de Heisenberg (1981). Parece

que neste sentido é possível afirmar que o pensamento africano, destacadamente a

mitologia africana serve como reflexão para aproximação ou reconciliação da ciência

com a Filosofia e com a Psicologia moderna e a Educação.

Neste caso, o jogo pode ser compreendido como fenômeno da condição humana

e da cultura e comunga em geral com padrões de organização similares, relações,

tensões, inversões, irreversibilidades e regras particulares. Como acontecimento

singular, o jogo jogante transforma, permitindo fazer releituras do acaso e do espaço na

sua atemporalidade. O jogo no pensamento africano é indissociável da mitologia na

vida. A mitologia africana é pródiga na explicação do mundo como universo em

construção, como um jogo inacabado, repetível infinitamente.

Os elementos presentes no jogo divinatório preservam a idéia do jogo como um

universo de todas as probabilidades. Tanto o aspecto que está sendo desvelado, como o

que se encontra em imanência fazem parte de um fluxo imponderável do destino e das

escolhas de cada um ao longo da vida. Incluiu também o universo constituído de uma

multiplicidade de jogos que organizam e desorganizam o que está para se tornar um

acontecimento no cotidiano.

Esta é uma das funções do jogo divinatório enquanto comunicação com o

transcendente. Então o acontecimento é real a partir de possibilidades que estão em cada

movimento do jogo. Movimento e acontecimento que se apresentam de forma imanente

pela leitura das caídas e posição dos búzios ou de outros jogos divinatórios congêneres.

Isto significa que cada movimento tem em comum a potencialidade de

acontecimentos que são singulares. No jogo divinatório haverá sempre algo de

extraordinário onde estão contidas todas as possibilidades e orientações. Naturalmente

que estas serão transmitidas em forma de uma história a ser pensada, refletida e aplicada

à vida tanto pessoal como no sentido comunitário.

Page 58: Àqueles que têm na pele a cor da noite

45

Histórias como poesias que fazem a mediação entre intuição, sabedoria,

racionalidade e a compreensão da vida na sua transitoriedade. Histórias, espécie de

diálogo com a ancestralidade. Cada palavra da história mítica corresponde a um apelo a

uma necessidade. É uma resposta que só serve para o momento. Na verdade, o que

conta via de regra, o que transforma é o não dito, o não-respondido; é o que está na

relação do sujeito com a sua ancestralidade e com a vida. É o que só pode ser

respondido pelas entrelinhas. É a parte da história onde se configuram o repertório de

valores, crenças, sentimentos idéias e onde se descortina as condições essenciais do

indivíduo. A este respeito nos falou Carlos Petrovich: Compreendo o pensamento africano que tenho vivenciado como fundante de princípios, valores, crença e atitudes que se revelam para mim como sementes plantadas na carne da nossa memória e que florescem concomitantemente a todos os acontecimentos e tendem a orientar o sentido dos nossos atos como uma programação de vida. (Extraído do Memorial de Carlos Petrovich, 2003. Não publicado).

Falamos de um jogo implicado na mitologia que abre portas significativas para

ponderações que orientam, incitando ou inibindo acontecimentos. A cada odu ou

caminho corresponde um itan28.Insistimos que o itan é uma história mítica sempre

relacionada com a posição das caídas dos búzios. Impossível separar-se o jogo das

histórias míticas que orientam o sujeito e a comunidade. As histórias míticas foram

criadas desde o princípio, exatamente para fixar ensinamentos que estão no sentido da

indivisibilidade do tempo e do espaço, incluindo viventes e ancestralidade.

Conta-se que um ancião, percebendo a hora da sua viagem para a ancestralidade,

chamou todos os filhos para o último ensinamento. Assim, pediu que lhe trouxesse uma

vassoura. Abriu-a, entregando uma fibra para cada um de seus filhos pedindo que a

quebrasse. Todos repetiram o gesto sem dificuldade. O velho rejuntou as fibras restantes

e novamente solicitou que experimentassem quebrar o feixe. Ninguém conseguiu. Os

filhos e filhas compreenderam o desejo do velho que pensou um jeito de despedir-se da

familia lembrando o sentido da união como maior valor para a vida.

Este é uma forma de pensamento que não contempla uma linha divisória nem para o presente, nem para o passado, nem para o devir; portanto, o jogo é sempre jogante. Tudo está no presente. Todo ensinamento pela história está no presente para ser entregue em forma de vivências. Este não é um jogo prescritivo. Cada indivíduo é um ser suficientemente autônomo para compreender seu próprio caminho, sua conexão com a ancestralidade e imbricação com sua vida na comunidade.

28 O mesmo que mito sempre relacionado a posição das caídas do búzios.no jogo.

Page 59: Àqueles que têm na pele a cor da noite

46

O seu jeito de estar na comunidade é o que lhe dá a condição de um ser coletivo

neste espaço-tempo indivisível. Neste contexto é imprescindível aprender a jogar o jogo

na vida. É obrigação de cada um aprender e en-sinar. Esta é uma função precípua da

tradição no pensamento africano. À guisa de ilustração, conta-se que Exu saiu pelo

mundo em busca dos dezesseis coquinhos da sabedoria. Encontrando os coquinhos

continuou sua caminhada recolhendo as dezesseis histórias para cada coquinho que

representa cada odu, cada caminho. Quando aprendeu todas as histórias, ensinou aos

homens. Estes ganharam o poder de saber todos os dias qual a vontade dos deuses.

Estava criado o jogo do Ifá. Estava criado o diálogo entre os homens e os deuses.

Assim, a cada necessidade de diálogo com as divindades sobre acontecimentos,

há também oferendas necessárias para que as possibilidades do bem viver sejam

plasmadas ou para que sejam dissipados os acontecimentos que não trazem felicidade.

Isso importa para aquele que é feito e que se mantém nos princípios básicos para o

caminho de sua iniciação que atende a um tempo que é ilimitado.É imprescindível a

atenção para o princípio do Afanya, ou princípio de que Ifá sempre dirá o que fazer no

tempo e num espaço ponderável. Na relação de tempo-espaço, compreendemos

também como Bergson, quando diz que: [...] o espaço é de fato o símbolo da fixidez e da divisibilidade ao infinito. A extensão das qualidades sensíveis, não está nele; é ele que colocamos nela. O espaço não é o suporte sobre o qual o movimento real se põe: é o movimento real, ao contrário que o põe abaixo de si (BERGSON, 1999, p.255).

Daí que compreender o moderno através de sua antítese, o tradicional na relação

tempo e espaço tem provocado instigantes discussões. A bipolaridade tradicional-

moderna não se aplica ao pensamento africano como forma de existência nos terreiros

nem em outras comunidades tradicionais africanas remanescentes.

Ainda há de se considerar que o tempo sagrado, o tempo mítico também

estabelece um tempo existencial na história. Como apartar a história da civilização

africana, a escravização e a re-existência da tradição na diáspora? Trata-se de um jogo

de eterno retorno, num passado que é mítico sem, contudo, abandonar o tempo

histórico. A eterna repetição dos gestos exemplares revelados pelos ancestrais ab

origine não se opõe a nenhum tipo de progresso e não paralisa a espontaneidade

criadora.

O pensamento de matriz africana considera que o tempo sagrado é o que gera a

história dos homens. A dimensão do sagrado está na vida e na complexidade do

conhecimento. Para nós é impossível não desconectar o diálogo entre a ancestralidade, o

Page 60: Àqueles que têm na pele a cor da noite

47

cérebro e a ação do ser-no-mundo. Em meio a uma densa discussão sobre o

conhecimento, Bâ conclui que, Pode-se dizer que o oficio ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem. Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser (BÂ, 1982, p. 199).

Esta fala nos remete a uma fala mítica de um tempo mítico que pode ser

atualizado a exemplo do calendário das festas. São gestos que se repetem na sua

extraordinariedade e que presentifica toda existência humana contada, cantada e

dançada compatibilizando cultura, cérebro, alma, ancestralidade, corporeidade e

conhecimento. Este me parece o sentido do “caminhar para abertura do que está aberto”

Galeffi (2001, p. 303) ou ainda a afirmação de que “Trata-se de reaprender o sentido do

nosso ser-no-mundo-com pelo ato de reinventá-lo indefinidamente”.

O convite é para tornar-se aquilo que se é essencialmente. Com isso quero dizer

que um dos pontos de partida do Irê Ayó é a compreensão de formas e contornos que

nos faz existir integralmente, e a compreensão do que nos faz caminhar seguindo a

pulsão para o ato de en-sinar como seres renascentes da nossa própria condição

existencial, histórica e comunitária.

2.15 JOGANDO O JOGO DE EXISTIR COMO NAVIO GUERREIRO

No Natal de 2003, fui convidada para uma cerimônia tradicional africana aqui

mesmo em Salvador. Foi um Ikomojadê. Trata-se de ritual que é uma forma de

apresentação da criança a sua comunidade quando esta pela primeira vez será chamada

pelo seu próprio nome, até então, segredo de seus pais.

O nome de uma criança africana na tradicional familia africana é muito

importante e guarda aspectos da sua vida desde a sua ancestralidade até as condições do

nascimento. É uma cerimônia que guarda uma marcada semelhança com o dia do nome

do iaô29 .O povo iorubano, logo após o nascimento mãe e criança ficam recolhidas até o

dia do nome. Se for menino acontecerá no nono dia; se menina, no sétimo dia; e se

gêmeos, o ritual será no oitavo dia.

29 O dia do nome é um ritual que acontece no último dia da feitura do iaô , quando este é apresentado à comunidade, depois de alguns dias de recolhimento.

Page 61: Àqueles que têm na pele a cor da noite

48

Como parte da preparação é convidado um Babalawo para realizar Akoséjayé,

um ritual divinatório que tem por finalidade conhecer através do jogo de Ifá, o caminho

do recém-nascido, indagando sobre aspectos do seu futuro.

Participar do Ikomojadê da menina Olufikayó foi mais que um privilégio, foi

uma honra. O lugar foi uma casa que acolhe estudantes nigerianos, no bairro de Nazaré;

no momento, residência de Ruth e Félix pais da menina. O tempo é o tempo presente

do jogo jogante – ou seja, o passado que se conjuga com o presente. Dentre outras

pessoas amigas do casal iorubano de Osogbo, cidade nigeriana onde viveu o orixá 30

Oxum, estávamos Petrovich, e eu Juanita Elbein, o Mestre Didi, o Alapinin que é

reconhecido na sua originante realeza iorubana. Pertencente à família Asipá Mestre Didi

representava a mais remota ancestralidade masculina da família que nos recebia.

Omidire e Anike, que são batizados com o nome católico de Felix e Ruth não

abandonam os seus valores tradicionais e nos proporcionam uma vivência concomitante

entre dois mundos que se aproximam como num jogo atemporal.

Fui convidada a sentar-me ao lado dos pais. Mestre Didi e eu. Diante do

acontecimento e de cada ação do ritual que fui participando com a ajuda do Alapinin31

fui surpreendida com a revelação de que eu estava ali representando a ancestralidade

feminina da família como uma revelação que assentava sobre si mesma. Estivemos

diante de um desvelamento nutrido por um caminho movente que reunia todos os

tempos.

O acontecimento na sua significação extraordinária criou um movimento como o

próprio fundamento desvelado infinitamente até onde a razão não consegue mais

alcançar. Desinteressada em fazer o exercício da racionalidade, preferi compreender a

cerimônia considerando os códigos subjacentes. Caminhei na busca da compreensão das

razões históricas do ritual incluindo a fenômeno contido no jogo. Fenômeno que

interfere entre a ruptura e permanência que sustentam esta tradição esparramada pelo

mundo da diáspora. Nas suas repetições, a tradição se mantém e se faz re-existente na

busca do ser ancestral originante que se faz prodigiosamente novo pela volta, pelo

reviver o já vivido.

Entendo que é neste sentido que a África como o útero do mundo, fez nascer a

humanidade, humanizando entidades míticas, incluindo os ancestrais que caminharam

30 Cidade nigeriana, capital de Oxum State onde viveu o orixá Oxum. 31 Sacerdote supremo do culto dos ancestrais ou egunguns.

Page 62: Àqueles que têm na pele a cor da noite

49

na frente criando e abrindo caminhos para os homens e mulheres na diáspora

compulsória.

Insistimos que o universo no pensamento africano atende a um contexto

atemporal e aespacial. O tempo é o tempo que se faz ao jogar e o espaço se faz na

realização do acontecimento. O jogo se repete pela necessidade de repetir não como um

voltar a andar o mesmo caminho como nos chama a atenção Deleuze (1988).

Os mesmos acontecimentos em forma de obrigações e xirês como festas se

repetem se dissipam e se refazem num jogo jogante fora de leis e gramáticas anteriores.

Os acontecimentos no terreiro são repetidos numa dinâmica própria e infinita e serão

sempre acontecimentos novos, diferentes, sem perder a essência nem os princípios

fundantes da obrigação. No diálogo divinatório, a idéia do todo como um jogo está em

cada acontecimento.

Os acontecimentos criam ressonâncias gerando outros acontecimentos singulares

nas suas subjetividades e no seu jeito que tem de mostrar-se com outra lógica. A

possibilidade de cada ação do jogo está presente no acontecimento, mas nenhuma

dessas ações constitui o todo deste acontecimento. Cada parte que é desvelada mantém

outras tantas enquanto probabilidades. O jogo divinatório é o que nos mantém em

conexão com o mundo vivente, com o transcendente e com o nosso jeito de ser, nos

mantendo em alerta para a instabilidade da vida vivente, atentos a tudo e a todos.

Temos a consciência do universo em potência: entretanto, não o reconhecemos

como o jogo que constrói o acontecimento. Importante é considerar que mesmo tendo a

consciência da potencialidade do jogo, odu ou caminho, é preciso reconhecer

ontologicamente a necessidade de atenção ao seu próprio caminho existencial, uma vez

que cada um é conhecedor da complexidade da sua essência e dono do seu arbítrio.

Caminho que tanto pode se realizar na caminhada como a caminhada pode se realizar

através do caminho. O caminho é o caminho.

2.16 SABER DE SI: mitologia como princípio para iniciação na vida

O Omo orixá, aquele que é feito, ou o filho-de-santo depois da obrigação32 como

recém-nascido na comunidade, vai tomando conhecimento de suas potencialidades e de

32 Obrigação, nome genérico para as cerimônias internas com participação coletiva obedecendo ou não o calendário de celebrações da casa. Está de obrigação ou em obrigação, ou na obrigação, é está absolutamente envolvido com um fazer religioso, portanto indisponível para qualquer outra atividade dentro ou fora do terreiro.

Page 63: Àqueles que têm na pele a cor da noite

50

seus novos limites. A feitura do santo como se referem os mais velhos dos terreiros ao

que os estudiosos tratam como iniciação é um jogo do autoconhecimento numa

alteração de contextos e subjetividades. É uma experiência religiosa que busca o ser

imanente como ancestral divinizado. É um conjunto de atos e celebrações preparatórias

quando o iaô é recolhido para ser feito. Ou seja fazer a cabeça, implica numa intensa

preparação para compreensão das regras básicas, os valores e princípios da tradição

religiosa.. Esta é uma das condições que lhe proporciona a autonomia individual, numa

nova relação que lhe autoriza fazer parte da comunidade religiosa. Pela feitura do santo,

percebe-se e vivencia-se a complexidade de um ser que se desvela para sua

individualidade e na convivência mitológica comunitária.

Pela feitura, o que acontece é a convivência com a multiplicidade de

virtualidades de um sujeito. Isto é o que chamamos de transcendência, e é o que faz a

diferença entre a mitologia e a ciência . A ciência na sua perspectiva teórica é

reducionista e segue um padrão intelectual de erudição, analisando e descrevendo

fenômenos, muitas vezes criando explicações para o inexplicável. A mitologia convive

com a multiplicidade, com a possibilidade do ser e com a probabilidade de

acontecimentos. A mitologia é dialógica. A ressonância deste diálogo afeta

comportamentos e dissolve entre - lugares relativizando os pensares do cotidiano e a

vida vivida, onde a razão não é a senhora.

O diálogo com o Tempo se repete na sua novidade. É um diálogo como um

vento, como a vida que não se repete por igual. Um dia ouvi Mãe Pinguinho dizendo

que a vida é como um vento. Passa e nunca mais volta igual. Você já viu o vento voltar?

Se voltar não é vento é outra coisa.

Diante dessas considerações, entendo que falar de ciências é falar de uma lógica

que divide o ser humano em dois, como se corpo e alma não se reconhecessem. Ciência

que nos exibe e nos explica com uma estrutura serial, seletiva de causa e efeito sob a

égide da razão. Enquanto isso no jogo implicado com a mitologia, o diálogo revive a

ressonância entre Aiyê, mundo natural e do Orun, mundo ancestral, numa tessitura onde

todos os elementos são vivos numa complexidade dinâmica que se organizam e

desorganizam.

O conhecedor dos segredos do jogo divinatório joga com os deuses na sua

representação transcendente de solidariedade com seus filhos. Esta é uma expressão de

que uma pessoa feita habita uma dimensão que está além de si mesmo. A sua existência

diz respeito a algo que ultrapassa pelo seu pertencimento a uma realidade ontológica.

Page 64: Àqueles que têm na pele a cor da noite

51

Todo povo do Afonjá pertence a Xangô. Antes de tudo somos filhos de Xangô,

pertencemos a Xangô por conta de um passado enraizante plantado pela ação da

Iyalorixá Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha fundadora do terreiro Ilê Axé Opo

Afonjá.

Na transcendência do divino, o sentido de pertença a uma comunidade é

magnificada. Sentido que agrega e cria movimentos inter-relacionados, geradores de

uma forma particular de deliberar desde a vida individual até os princípios da

organização da vida comunal. Vale salientar, no entanto, que não é possível perder-se a

perspectiva da presença não acidental de portadores de uma outra uma ordem que tem

sua procedência no que está instituído. Desgraçadamente esta é uma presença capaz de

estabelecer o caráter manhoso, sorrateiro e ideológico de uma solidariedade imiscuída.

Paradoxalmente, esta é uma situação que não define o grupo. Por sua própria

complexidade o grupo se esquiva, negocia encontrando brechas para as tentadoras e não

raramente ofertas são soliciatadas.

Por outro lado, isto nos lembra quando Mãe Aninha se permite envolver com a

amizade de Osvaldo Aranha enquanto possibilidade de aproximação com o presidente

Getúlio Vargas para discriminalização da religião dos ancestrais. Há pau que traça pau.

Ou os meios muitas vezes justificam os fins, diz a sabedoria popular.

2.17 CAMINHOS ABERTOS: ou tecendo ensinâncias e aprendências

Não foi sem receios que em 1993, procurei Mãe Stella para desenvolver minha

pesquisa para o mestrado com as crianças da escola da comunidade. Tive dúvidas em

ser aceita por não ser uma pessoa de santo. Antes de qualquer decisão, ela convidou-me

a acompanhá-la ao quarto de Xangô. Sentadas em torno de uma pequena mesa, Mãe

Stella, concentrando-se com uma evocação aos orixás, começou a jogar os búzios para

uma resposta que eu esperava com ansiedade. Confesso que fiquei um tanto apreensiva

durante o acontecimento.

Enquanto ela jogava os búzios na sua conversa com Xangô eu não arriscava

olhar para o jogo que estava acontecendo. Preferia olhar pela janela. Do meu lugar

podia ver árvores, bichos, fontes e pessoas com seus trajes rituais. Tudo era novo e

parecia uma convivência que se aproximava da idéia de uma transtemporalidade. Em

pouco tempo pude perceber que tudo e todos tecem e entretecem caminhos de encontros

Page 65: Àqueles que têm na pele a cor da noite

52

e celebrações numa dinâmica vivificante. Encontros e celebrações que acolhem o que há

de mais diferente, de mais estranho à comunidade na sua vivência com os seus

ancestrais. Aquele momento transcendia a compreensão de tudo que havia vivido. Mas

em nenhum momento a minha atenção foi desviada da presença de Mãe Stella. Como

aquele punhado de conchinhas jogadas sobre a mesa a meio palmo de altura podia

decidir a minha vida acadêmica? Pensei. O movimento das suas mãos, seu rosto sério, o

subir e descer dos búzios, se constituía na representação de uma trama dinâmica inscrita

e edificante do nosso patrimônio espiritual como entendo hoje. Findo o jogo, Mãe Stella

sorriu levemente e anunciou: caminho aberto. Quem vai trabalhar com você? Quando

quer começar? Parecia animada. Eu gosto do seu projeto, disse-me e acrescentou:

Percebo que você não pretende tratar a nossa religião nem como desconsideração nem

como fanatismo. Aqui eu não quero fanáticos; estas crianças precisam saber como

viver lá fora e ganhar a vida (MACHADO, 2002, p. 22).

A sua declaração me pareceu suficiente para alimentar a minha autorização. Aos

poucos percebei que ali se fazia também o meu espaço: árvores centenárias, o vento

espalhando folhas pelo chão, a revoada de pombos, o silêncio cortado por vozes de

crianças brincando, tudo me parecia propício.

Na verdade, a integração de uma pessoa numa comunidade de terreiro como a do

Afonjá, é parcimoniosa. Sentindo-me encorajada, parti para conhecer melhor aquele

ambiente especial que gradativamente foi me revelando como um espaço misto, um

espaço híbrido, um composto de formas e conteúdos de todos os mundos. Um ambiente

místico, onde se vivencia uma interdependência fundamental de todos os fenômenos, de

todos os mundos sobre a natureza intrinsecamente dinâmica da comunidade. A

materialidade e a espiritualidade se cruzam sem obstruir o caminho do novo, do

emergente, pelas relações que se plasmam em contato com outros universos.

Espaço uno e múltiplo, a comunidade Afonjá contém uma paisagem percebida e

uma paisagem fenomenológica que se constituiu numa realidade singular e geradora de

novos espaços. Novos terreiros como espaços sagrados são gerados e se movimentam

como raízes subterrâneas geradoras para novas comunidades. Com a maioridade, é

possível a cada filho seguir a sua destinação pelo chamado da espiritualidade para uma

nova complexidade com estruturas próprias, mas sem perder sua identidade nascente,

sem perder a conexão com seu espaço originante, sem perder a essência.

Nesse outro lugar, nesse outro espaço de vivência do mistério, o passado se

projeta na transtemporalidade do agora. A essência se transforma em existência do

Page 66: Àqueles que têm na pele a cor da noite

53

presente. Novos espaços nascem da virtualidade de um real abstrato para o real

concreto. Desse modo, como espaços mais recentes nasceram o Ilê Odé e Axogun Ladê,

respectivamente sob a responsabilidade do Pai Geraldo e Pai Reginaldo ambos filhos

de Mãe Stella. Esses terreiros são como novos rebentos nascidos do movimento de

raízes moventes que florescem a distância. Lembram partes de um Iroko33 como fractais

vivos de redistribuição de axé como força criadora. Desse modo, caminhamos sempre

um caminho gerador de múltiplos espaços. Entretanto, vale salientar que esses novos

lugares comportam as diferenças contidas num novo jogo sem perder a qualidade de

suas raízes. Raízes compreendidas aqui como caminho revigorante de encontro com o

passado. Como dizem Morin e Le Moigne: É no encontro com seu passado que um grupo humano encontra energia para enfrentar o seu presente e preparar o futuro. Confrontar-se com o presente é também um ato de fé que permeia uma relação de complementaridade entre espaço – tempo onde os sujeitos plasmam suas existências singulares incluindo a natureza e suas subjetividades: sentimentos, valores e sua visão de mundo A idéia seria de compreender a realidade em sua integridade (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 77).

O encontro com o presente do passado não se disfarça numa comunidade de

terreiro. A cada movimento, em cada discurso outros textos implícitos são desveladores

de um conjunto de valores que alenta o povo do lugar fortalecendo laços e ações para

um futuro implicado pela ancestralidade em todas as suas nuances. No Afonjá vi muitas vezes Seu Júlio que hoje já se encontra no mundo dos ancestrais sair toda manhã, saudando todas as casas e árvores sagradas. Iniciava pela casa dos ancestrais, saudava cada casa de orixá, a fonte de Oxum. Por último ele abraçava o Iroko num abraço muito terno e respeitoso. Um dia ele se deu conta de que estava sendo observado, virou a cabeça lentamente quase num sussurro afirmou: é professora, eu amo este Iroko (MACHADO, 2002, p. 60).

A propósito, muitas vezes, foi necessário ter algumas folhas na sala de aula para

melhor observação e estudo. Durante minha primeira pesquisa ainda para a dissertação

de mestrado, eu não sabia como interagir com o espaço que é sagrado por natureza e

com a comunidade. Eu não sabia como fazer para tirar as folhas considerando que eu

estava num espaço sagrado. Recorri a Dona Detinha de Xangô.

Ela me ajudou fazendo-me refletir e agir como é do seu costume. Enquanto se

preparava para mostrar até onde eu podia ir com as crianças foi falando: “O mato é seu?

Você plantou alguma folha? Pois é. O mato não é seu. Você plantou alguma folha? Pois

é o mato não é seu. O mato é de Ossain. Se você precisa mesmo das folhas, vá até ali, 33 Planta africana morada do orixá do mesmo nome. No Brasil, a árvore sagrada foi substituída por gameleira branca. Nos terreiros, depois de consagrada a raiz , a arvore recebe um ojá branco igual ao que

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54

leve uma moeda, deixe lá no chão, peça agô (licença) e fale para o orixá dizendo que

precisa das folhas. Disse mais: Não pegue folhas no chão. Pedi-lhe a bênção como

agradecimento pelo que me foi ensinado.

Antes mesmo de sair do mato contei para as crianças a história do orixá Ossain.

Logo Bié, criança de seis anos na época fez a relação: “Aqui no terreiro tem gente que é

de Ossain”. É tia Honorina. A história de Ossain, como era de se esperar, propiciou

novas descobertas da paisagem material do terreiro. Constatei neste processo, que

conservar a qualidade do meio é principio básico do axé, e esta é uma prática conhecida

pelas crianças do terreiro. Todos são responsáveis pelo lugar. Compreende-se que a

conservação do espaço sagrado garante um clima, uma condição propícia ao axé e a

manutenção da vida de todos os seres do ambiente. No terreiro, o que é sagrado também

é natural. O que pertence ao orixá também pertence ao homem. Naquele dia ouvi de

Dona Detinha mais uma importante história do povo de axé: No princípio quando Orunmilá chegou para participar da construção do mundo procurou a ajuda de Ossain para trabalhar nos campos. Quando a primeira tarefa lhe foi dada, ele se recusou a cumpri-la. Cortar ervas? Onde já se viu? Argumentou: as ervas nasceram para cuidar do corpo e do espírito das pessoas.Ossain Saiu pelos campos nomeando todas as ervas e mostrando a sua importância para a vida dos seres e para conservação do planeta. Foi assim que cada erva tomou um nome especial para cumprir sua função no mundo (PETROVICH; MACHADO, 2004, p. 39-40).

Com este mito quero acentuar que a criança quando estimulada a observação do

seu ambiente, consegue estabelecer uma relação de pertença e cuidado. Tomando

conhecimento do mundo que a cerca com atitude de indagação a criança pode

redescobrir aspectos essenciais para formação do pensamento lógico através de cada

ação que é motivada a executar. A experiência de ver, comparar e dialogar sobre a

paisagem do terreiro amplia por cento a vivência no que diz respeito ao uso adequado

da linguagem e todas as suas possibilidades mentais. O mundo da criança do Afonjá é

um mundo complexo no seu universo material e imaterial. Daí que esta mesma

complexidade é propiciadora da organização do pensamento no processo de

aprendizagem significativa. A partir da observação do ambiente e das manifestações

concretas da comunidade, as crianças estabelecem relações com diversos elementos

potencialmente capazes de interferir no ato de aprender a aprender.

cobrimos nossas cabeças . Como na África recebe oferendas rituais

Page 68: Àqueles que têm na pele a cor da noite

55

2.17.1 Outras aprendências

Por ocasião do I Encontro das Folhas, Mãe Stella foi convidada para proferir

palestra no referido encontro. Impossibilitada por um compromisso firmado

anteriormente fora do Brasil e consciente da importância da sua presença no evento

desculpou-se com gentileza: Aos Senhores organizadores do I Encontro das Folhas, Fiquei muito contente quando soube do seminário I Encontro das Folhas, que trata da relação do homem com o meio ambiente. Para nós do candomblé, todos os elementos da natureza são sagrados, daí a grande importância que damos a este evento. Gostaria de dar minha mensagem pessoalmente, entretanto, um compromisso, também de ordem religiosa, me impossibilita de estar presente. Estou vibrando para que tudo dê certo. E para não deixar uma falha, escolhi uma filha-de-santo, Vanda Machado, filha de Oxum, para me representar neste momento. Creio que ela, como educadora, falará das vivências no axé, cumprindo o meu pedido. Esta é, portanto a minha mensagem de sucesso. E da próxima vez farei todo esforço para estar presente, com a bênção dos orixás. (março de 1996) (MACHADO, 1996, p. 53).

Impactada pela responsabilidade que estava assumindo solicitei que conversasse

comigo sobre o assunto. Sentada na sua varanda e foi com o mesmo sentimento, que

Mãe Stella fez sua declaração de amor à mesma árvore. Ela olhou para o Iroko, respirou

fundo e falou pausadamente: Veja esta árvore. As suas raízes são fortes e bem cravadas na terra. Você imagina por que as raízes são tão bem cravadas na terra?Ela foi falando e eu fui escutando. A sua fala que me tocava profundamente: esta árvore é a representação fiel da nossa comunidade. Veja as raízes, repare como elas são profundas. E às vezes elas não nascem todas no mesmo lugar. Às vezes elas caminham ao longo do terreiro e terminam nascendo num outra posição num outro lugar. As raízes, portando, são os nossos ancestrais. Elas são próximas e profundas ao mesmo tempo. Elas seguram este tronco forte que está ai. E esse tronco somos nós os mais velhos. Nós todos juntos, unidos pela nossa tradição e pela nossa cultura. Só assim somos capazes de conservar de fortalecer e até reconstruir positivamente o pensamento africano que nos foi legado também em forma de religião. Já as folhas são nossos filhos, são os nossos netos. É tudo que se renova com as gerações que estão por vir. Mas, veja bem... Para que esta árvore pudesse nascer e crescer, foi necessária uma base muito forte, foi necessária a terra. Essa mesma terra que é maltratada, poluída, danificada, mal utilizada, não se poupa de nos oferecer o que há de melhor de si. (MACHADO, 1996, p. 55)

De fato, o pensamento de matriz africana não separa a pessoa, os animais, o ar, a

água, o fogo, a terra nem as folhas. Uma árvore não é apenas uma árvore, uma unidade

biológica.A árvore é parte do ser nascida da terra mãe e de toda natureza.Não é sem

motivo que estamos sempre saudando a terra. Seja cantando, seja rezando ou quando

Page 69: Àqueles que têm na pele a cor da noite

56

nos apresentando diante dos orixás vamos ao chão saudando a terra. Eu mesma

muitas vezes me surpreendo caminhando e cantando Onile mo juba. Igba orixá, Igba

Onile34. Ao longo da minha iniciação tenho vivenciado uma nova relação com a terra.

Uma relação de amor, de afeto e de crescimento.

Enquanto iaô a terra me acolheu durante muitos dias, fazendo-me brotar do chão

como uma nova semente. Estamos sempre tocando com a cabeça do chão numa

reverência que transcende ao simples ato de prostrar-se. O obi35 é cortado e jogado no

chão. O osé ter que ser feito com os objetos e elementos rituais lavados no chão. Os

mais novos reclamam. Os mais velhos não. Eles sabem o que fazem e porque fazem.

Eles agüentam nas pernas, às vezes trôpegas. Fazem o seu osé no chão, com

tranqüilidade, sem reclamar. E quando Oxum nos chama para a ancestralidade é a terra

que nos acolhe no mesmo ventre que nos fez brotar mantendo a continuidade da vida e

da ancestralidade.

Entendemos que a terra, a água, a natureza são manifestações de princípios

ancestrais construtores dos seres humanos. A terra é mãe, é mulher; fêmea, é generosa, é

sedutora. A terra se enfeita e se aquece, e se oferece para receber a chuva, sêmen que

molha e deixa exalar um cheiro de vida. A terra é viva e abre suas entranhas para

receber novas sementes, novas folhas, novos frutos. A terra é próspera. A terra é

sagrada. Cada pedaço de terra, por menor que seja por certo é uma síntese do mundo,

uma referência de vida, assim como a água. Zahar vê na identidade africana uma estreita

correspondência entre o homem e o mundo: Estas duas entidades são como dois espelhos colocados face a face e transmitindo suas imagens recíprocas – o homem é um microcosmo que reflete o grande, o macrocosmo que reflete o grande mundo, o macrocosmo, e este, por sua vez reflete o homem (ZAHAR apud SODRÉ, 1988, p.62).

Decerto que antigos africanos, oriundos das mais diversas etnias desapareceram.

Entretanto, o universo cultural permaneceu. A tradição que é oral baseia-se na

concepção do homem e do seu lugar e do seu papel no seio do universo. Ela envolve

uma visão singular de mundo – um mundo concebido como um todo onde todas as

coisas se ligam e interagem. O pensamento africano não é, portanto, algo que possa ser

isolado da vida.

34 Cantiga de saudação a terra. 35 Noz de cola, semente de origem africana, usada para o jogo divinatório e oferenda aos orixás.

Page 70: Àqueles que têm na pele a cor da noite

57

Nós herdamos de nossos ancestrais o nosso próprio MÉTODO DE

CONHECIMENTO. O africano não estabelece distância entre ele e seu

objeto de estudo. Ele toca, ele vive, ele aspira, ele vive a realidade

dialeticamente. (SENGHOR, 1965 apud SIQUEIRA, 2006a).

Page 71: Àqueles que têm na pele a cor da noite

58

3. AÇÃO, PESQUISA, ITINERRÂNCIA, APRENDÊNCIAS E ESCRITA

O estudo é para compreender o pensamento africano na construção de uma

possível epistemologia para en-sinar as crianças na comunidade de terreiro do Ilê Axé

Opo Afonjá. Diante desta perspectiva, abre-se uma demanda para atenção especial à

relação objetividade-subjetividade na formação para a realização do Projeto Político-

Pedagógico Ire Ayó. Isto significa dar atenção especial à educação de um povo que

mantém encravado no seio da comunidade o pensamento africano recriado na diáspora,

ligando todos os fenômenos, todos os eventos sempre no presente costurado pela

memória ancestral. Trata-se da memória cultural que atualiza a existência da

comunidade, além de preservar individualidades. .Memória capaz de emancipar o

indivíduo, restabelecendo vínculos entre a comunidade e o mundo ancestral.

Eu cheguei ao Ilê Axé Opo Afonjá, nos idos 1986. Carregava comigo o objetivo

de operacionalizar um projeto de pesquisa de ensino e aprendizagem, enfocando o

universo cultural da criança afrodescendente na Escola Eugenia Anna dos Santos.

Consequentemente, levei também o propósito de vivenciar o cotidiano da comunidade.

Tratava-se da minha primeira pesquisa. Era a primeira vez que eu me aproximava de

Page 72: Àqueles que têm na pele a cor da noite

59

uma comunidade de terreiro. A convivência nessa comunidade me incitava na

percepção desveladora da consciência de mim mesma e de uma outra realidade que se

desenhava parcimoniosa a cada encontro ou celebração. Interessava-me participar de

todos os eventos possíveis. Inspirava-me o pensamento de Augras quando diz que: “a

consciência de si e consciência do mundo são dois enfoques do mesmo fenômeno”

(AUGRAS, 1986, p. 21). O desejo era compreender a relação cultural que me envolvia

e já teria envolvido, pelo menos cinco gerações naquele terreiro.

A cultura ali vivenciada fora herdada e transmitida numa cadeia viva e plena de

sabedoria. Sabedoria que era evidenciada no conhecimento que crianças, jovens e

adultos possuíam pela própria natureza da comunidade. Conhecimentos que emergiam

da evidencia cultural existente no entrelaçamento dos fenômenos de todos os mundos 36

vividos no terreiro, incluindo a influência da sociedade quase sempre adversa.

Enquanto dava início à minha cerimoniosa aproximação tanto na escola como no

terreiro fui aprendendo outros códigos, outras práticas de percepção para compreender

os diversos discursos do cotidiano e criar um caminho metodológico para o estudo. Fui

reparando na maneira ritualizada de viver ou no ato do não fazer e do não dizer nada.

Foi longa e lenta a caminhada para compreender que o silêncio das vigílias impostas

pelas obrigações rituais tem um sentido regenerador.

Enquanto recolhida para feitura, vivi o silêncio que sacia uma necessidade

interna indizível. É daí que emerge uma inteligência que não divide, não hierarquiza.

Uma outra inteligência que emerge do sagrado cheio de energia de vida. É a consciência

atenta, desperta que olha o instante presente vivendo o agora de todos os tempos. São

percepções que não se enquadram em nenhuma categoria que possa ser analisada sem o

contexto encharcado de uma intensa e múltipla dialogicidade.

São percepções do grupo que envolvem todas as vozes de todos os tempos em

sua origem, em sua essência, em seu segredo. Aí muitas vezes só o corpo fala num

ritmo marcado, captando o seu vínculo com a totalidade do ser porque só o corpo inteiro

nos serve de orientação. É comum ouvir-se das pessoas mais velhas: “antes de escutar

os outros, primeiro escute a sua cabeça”. É o momento do Corpo-território que na fala

de Sodré afirma que Todo indivíduo percebe o mundo e suas coisas a partir de si mesmo, de um campo que lhe é próprio e que se resume, em última instância, a seu corpo. O corpo, o lugar zero do campo perceptivo é um limite a partir do qual se define um outro, seja coisa ou pessoa (SODRÉ, 1988, p. 123).

36 O mundo da ancestralidade, o mundo dos vivos e dos que hão de vir.

Page 73: Àqueles que têm na pele a cor da noite

60

Percebe-se com o corpo a necessidade de qualquer aprendizagem para ser onde

o saber se faz oportuno. O saber que se realiza sem a fala de um mestre. O saber para

ser que supõe um limite para que o sentido do aprender não se torne inócuo. Todo saber

tem uma necessidade precípua. Esta foi a inspiração, outra forma de en-sinar com o jeito

de educar do terreiro. Uma educação que tem como fundamento a observação, a

compreensão da gênese dos acontecimentos, da inter-relação e interdependência de

todas as coisas e de todos os saberes. O diálogo pela escuta inclui todas as perguntas,

respostas e expectativas. Na comunidade do terreiro como a percepção é de uma

realidade que transcende, os sentidos se alargam, atravessando as fronteiras

disciplinares, conceituais criando um campo semântico ilimitado. O pensamento de

matriz cultural africana não comporta especialistas. Como generalistas vive-se a

necessidade da compreensão da totalidade dos seres.

3.1 DE VOLTA AO PRESENTE DO PASSADO

Em 1998, numa data que não sei precisar, atendi um chamado que vinha da casa

de Xangô. Era um chamado de Mãe Stella que sem muitos rodeios, numa fala rápida

indicava que a partir daquele momento eu deveria dar um jeito na Escola Eugênia Anna

dos Santos na comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá que sofria com uma crise

administrativa que influenciava todas as relações escolares. Já havia se passado mais de

dez anos da primeira intervenção curricular que resultou na dissertação de mestrado

editada em 1997, com o titulo de Ilê Axé – Vivencias e Invenção Pedagógica - As

crianças do Opo Afonjá.

Na contracapa Mãe Stella sintetiza a história do meu início antes mesmo de me

tornar filha da comunidade: No ano de 1986, na Segunda Contoc - Conferência da Tradição e Cultura dos Orixás em Nova Iorque conheci Vanda Machado que logo se integrou a meu grupo de trabalho. Aprendi a apreciá-la pela sensibilidade com que procedia, principalmente quando se tratava de assuntos de Orixá e suas variantes. Esta amizade perdurou. Quando encontrei com ela novamente, no Brasil a afinidade continuou. Isto porque trabalhávamos juntas nas reuniões subseqüentes sobre o mesmo tema. Soube então que era pós-graduanda de educação pela UFBA e pretendia dissertar sobre o tema de sua predileção. Pediu-me autorização e consenti que trabalhasse em nossa comunidade, onde temos a Escola Eugênia dos Santos. Apreciava a dedicação que dispensava aos alunos e o entusiasmo em que ficava ao ver o progresso dos mesmos. Sua sensibilidade levou-a a fazer um belo trabalho usando toda a essência da nossa cultura, transformando em ensinamentos, que seriam, nada mais , nada menos que uma amostra da magia espiritual que praticamos. Ao utilizar uma raiz de inhame,

Page 74: Àqueles que têm na pele a cor da noite

61

acompanhando desde a germinação, plantio até a colheita, usando facas e enxadas para realização do trabalho, valorizou cada palavra ouvida na comunidade e terreiro e cada vegetal do cotidiano. Abençôo este trabalho que já foi bem aceito pelos mestres e faço votos de sucesso. E que o mesmo sirva de parâmetro para todos aqueles que conseguem produzir educação com eficiência e carinho conseguindo conciliar a ciência com a fé e o prático com o teórico. “O ser crente sem ser fanático (MACHADO, 2002, contra capa).

A interferência solicitada por Mãe Stella faz ativar a absorção da minha

pertença, na afirmação de ser, pertencer e participar da convivência no terreiro. Agora,

na condição que ia além de um membro. Naquele momento eu já vivia o chamado como

filha da comunidade. Nascer numa comunidade de religião de matriz africana não é algo

provisório. É um nascimento que se renova a cada dia, a cada encontro, a cada

obrigação até a consciência de nascer definitivamente carregando os influxos da

identidade ancestral. Identidade que ganha implicações significativas na criação e no

processo de mediação pedagógica do projeto Ire Ayó, agora parte importante do estudo

em questão.

O objetivo deste trabalho, por certo não é discorrer sobre as religiões de matriz

africana. Até porque o pensamento africano não fragmenta a vida nem demarca as

subjetivadas das experiências cotidianas. Portanto não há o que religar. Dada a

complexidade do estudo a que me proponho, sinto como imperativo compor uma

tessitura de significados culturais produzidos pelo cotidiano do terreiro, incluindo o que

hoje chamamos de religião. São significados em reorganização permanente, condição

necessária à manutenção das vivências e das celebrações da comunidade como fluxos

nutridores e dialógicos incluindo a escola e a comunidade. Neste contexto, nos

apoiamos na fala de Moraes quando defende uma educação viva e solidária, afirmando

que Temos esperança de que a concepção das organizações sociais como sistemas autopoiéticos possa ajudar a melhor compreender a natureza complexa da escola e o funcionamento dos sistemas educacionais. Quanto mais complexa é a organização, mais rica e nutridora deverá ser sua relação com o seu entorno e com as circunstancias que envolvem. Transferindo este pensamento para o domínio das organizações sociais, percebemos que as relações escola/comunidade, escola/ cultura e escola/contexto deveriam ser realmente muito bem cuidadas, compreendidas e analisadas para que o sistema educacional possa dar respostas adequadas aos anseios da sociedade. (MORAIS, 2003, p. 253).

O enredamento, os desencontros que emergem da sociedade reverberam na

comunidade com os seus significados muitas vezes imprecisos e ambivalentes.

Entretanto, vale a pena sublinhar que o comportamento religioso cria um modo de vida

trans-humano, transcendente. Para esta reflexão, não se trata de desenterrar raízes

Page 75: Àqueles que têm na pele a cor da noite

62

porque tudo se mostra sem limites. Trata-se da concepção de que nenhum

acontecimento é único, e acredita-se mesmo que tudo pré-existe. O povo banto

considera que o mundo é um grande pacote feito por Zambi, o Deus criador. Nesse

pacote Ele teria colocado todos os problemas, todas as doenças, todos os males, também

todas as curas, todas as ervas, todos os remédios para todos os males. Cabe ao homem a

busca dos remédios para os seus males, porque tudo nasceu junto. Segundo o

pensamento banto, o homem não cria nada. Ao homem é concedido o poder de

desvelar, seja pela arte, pela ciência, pela filosofia ou pela religião. O homem tem o

poder da descoberta. Tem o poder de caminhar fazendo caminhos.

3.2 EU SOU COMO NÓS SOMOS

A vida de cada um imita a vida dos deuses na sua mais completa intimidade. Se

levamos em consideração o calendário religioso, o Odum, as festas religiosas trazem no

seu retorno periodicamente tudo que já existe incluindo o sentido festivo reatualizando

no tempo que é sagrado. Daí que os rituais estão presentes na renovação do tempo, na

construção da pessoa e da comunidade.

No trabalho de apreensão da comunidade foi preciso mesmo, a cada momento,

renunciar ao ato de julgar segundo critérios próprios para me aproximar do que parecia

um mundo novo. Foi preciso mesmo, a cada instante, lembrar a prudência recomendada

pelo tradicionalista Bokar. Esqueces o que sabes. Caso contrário estaria simplesmente

transportando os meus pré-conceitos, ao invés de manter-me a escuta.

Para o estudo da relação entre o pensamento africano na realização do Projeto

Político- Pedagógico Irê Ayó, sem pretender qualquer ação prescritiva nos inquietamos

com perguntas inevitáveis: Afinal, quem somos nós? Espelhados no pensamento

africano, como educar para co-existência, autonomia e solidariedade? Como reconstruir

uma educação inspirada também no brio afrodescendente com a tessitura da cultura e

ancestralidade como sentido na vida? Como vamos abordar a verdadeira participação do

negro na formação da nação brasileira? Qual o repertório de crenças e valores,

sentimentos e idéias que dão o contorno da nossa identidade ancestral e da nossa

memória coletiva? Qual é o cognitivo da sociedade em relação ao afrodescendente, no

que diz respeito à cultura e à religião? Como reverter os argumentos coisificantes da

Page 76: Àqueles que têm na pele a cor da noite

63

história que nos foi contada, e revelar a identidade ancestrálica que alarga a consciência

e autoriza a reinvenção da nossa própria história?Como identificar no cotidiano as

subjetividades que ocultam a não aceitação das nossas diferenças e colocá-las a favor de

estudantes negros e negras, ressignificando-as? Como mantê-los próximos dos

mananciais das ciências, da filosofia e da arte, transitando pelos meandros da sociedade,

vivenciando a tradição e memória sem amargar a vigilância da subalternização que nos

cala enquanto vozes instituintes?Como desvelar a alma negra na sua completa dignidade

ocultada pelo colonizador?Alma empanada pelo racismo e pela intolerância ou a

solidariedade com efeito do poder que se manifesta no cotidiano impedindo a nossa

indignação? Voltamos a indagar, quem somos nós e como vamos nos apresentar num

contexto histórico atualizante? Boff pondera que: Quando dizemos ser-no-mundo não expressamos uma determinação geográfica com estar na natureza, junto com plantas, animais e outros seres humanos. Isso pode estar incluído, mas a compreensão de ser-no-mundo é algo mais abrangente. Significa uma forma de ex-istir e de co-existir, de estar presente, de navegar pela realidade e de relacionar-se com todas as coisas do mundo. Nessa co-existência e com-vivência, nessa navegação e nesse jogo de relações, o ser humano vai construindo seu próprio ser, sua autoconsciência e sua própria identidade (BOFF, 2000, p. 92).

Acreditando na necessidade da manutenção do sentido agregador do povo negro,

indagamos como vamos en-sinar crianças e jovens contando-lhes histórias de com-viver

e co-existir solidariamente?Como vamos abordar histórias polifônicas, incluindo

histórias de conflitâncias e de reorganização? Como vamos contar história das histórias

que podem gerar inquietude e a mobilização para novas possibilidades e perspectivas de

transformações criadoras na sociedade?

Estas inquietações surgem quando é possível perceber o embate entre a

consciência histórica desafiante, a memória coletiva e um currículo conteudista e

modulado. Um currículo que não se abala para uma pedagogia que possa contemplar as

diferenças, ou para um fazer isento das ambigüidades curriculares. Ambigüidades que

têm sancionado políticas que conseguem oficializar a exclusão. De fato, são

ambigüidades que têm respondido com evasivas ao diálogo proposto pelas

subjetividades desafiantes de uma nação de maioria afrodescendente.

Estas reflexões surgem justamente quando entendemos que a universidade há de

denegrir-se para o diálogo efetivo com as comunidades negras. Diálogo com os

movimentos sociais e fazer valer outro senso ético, outra política, outra epistemologia

que possa nos acolher em nossas possibilidades de ser, não um vazio vivo, mas um ser

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64

potencialmente igual à totalidade dos seres do universo, soma das forças existentes de

todo conhecimento possível.

3.3 TEM QUE TROCAR A MÚSICA E O TOM DA MÚSICA

Para compreender a criação do Ire Ayó foi imprescindível a inclusão de histórias

individuais, incluindo a mim mesma. A essas histórias se juntaram outras ainda não

contadas ou que se dissipam no som das imprescindíveis sinetas que imprensam,

disciplinam hierarquizam e vigiam conteúdos fatiando informações e acanhando

caminhos do conhecimento. Práticas desfocadas na vida já não se justificam numa

sociedade que se diz globalizada. Esta é uma das práticas que tem criado rupturas na

educação. Que tem funcionado como uma estratégia perversamente consciente. Esta é

uma condição que tem impedido o estudante afrodescendente de articular e organizar

informações sobre o mundo, incluindo-se. Estas e outras ações compartimentalizantes

são identificáveis como obstáculos que impedem e parcelam o conhecimento, separando

o sujeito do seu mundo, da sua história e da sua cultura. Separando o mundo conhecido

do conhecimento, a educação tem produzido a catástrofe da perda do sentido da

totalidade da história e da memória coletiva do povo brasileiro. Enquanto isso, Munanga

anuncia que: O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente a branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos tiveram as suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a todos (MUNANGA, 2001, p. 9).

Diante da luta desmesurada pelo reconhecimento da existência histórica do povo

afrodescendente, parece imprescindível o esforço para repensar a mudança da música e

do tom da música que estamos cantando há tanto tempo, mesmo reconhecendo o

equívoco de uma lógica disjuntiva e coisificante. O mestre Felippe Serpa, de saudosa

memória, enquanto meu orientador neste estudo, costumava repetir: Tem que trocar a

música e o tom da música. Não adianta tocar a mesma música só trocando o tom. Para

Morin e Lê Moigne, A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva, reducionista quebra o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa aquilo que está unido, unidimensionaliza o multidimensional (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 208).

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Diante do currículo que fragmenta a vida no mundo em retalhos e porções

hierarquizadas, cabe-nos indagar: Como contar a história do passado acolhendo as

vivências do presente? O olhar é para os equívocos e os vazios da história. Trata-se de

encontrar as brechas que foram instituídas para criar invisibilidades e calar a voz negra

instituinte. Trata-se de contar a história incluindo a gente negra. História, memória e

vivências comunitárias do povo negro como ainda não foi contada. Só o olhar sobre a

realidade determina a própria realidade.

A volta para a escola, a pedido de Mãe Stella na condição de filha da

comunidade, fazia toda diferença e me criava muitas esperanças. Eu não só estava

imersa na cultura do lugar; era a própria cultura do lugar, implicada, objeto de estudo e

estudiosa. O mesmo Tempo que me fez nascer filha da comunidade me fez compreender

o sentido de ser-sendo em cada espaço. Implicada na multiplicidade de lugares, eu me

coloco numa relação dialógica frente a frente de mim mesma, da minha comunidade e

da academia, e da sociedade.

O tempo continua compondo a minha identidade ancestral no espaço-terreiro.

Desse modo, vivi a atemporalidade que incluía a participação em todas as obrigações

internas bem como as festas públicas. Assim foi acontecendo o meu encontro com o

presente, o passado e o devir pelas memórias desveladas por meus mais velhos e velhas.

No terreiro, sempre estive à vontade, como na Fazenda Copioba, no sítio de minha avó,

ou numa aldeia africana. Eu também estava aprendendo na vida, e fui percebendo que a

nova etapa do trabalho solicitado por Mãe Stella não seria realizada apenas como uma

maquinação intelectual.

Certamente que se fazia necessário compreender a relação com a minha

individuação, com a minha identidade que se construía naquele lugar. Um lugar onde

todos são distintos e potencialmente iguais. Como acadêmica, eu me punha a refletir

como transformar esta experiência numa forma de en-sinar como prática educacional

significativa?O distanciamento nunca foi um exercício fácil. Uma anotação de um

acontecimento não parava como um acontecimento a ser analisado ou inserido como

uma categoria a posteriori. A afirmação dos mais velhos de que aqui tudo pode e nada

pode é o suficiente para esperar também contradições que me levariam a compreender a

comunidade como síntese do mundo. Numa leitura multidimensional, me dei conta de

uma síntese complexa bem do jeito do pensamento iorubano recriado no terreiro.

Pensamento que se enreda a uma multiplicidade enleada de fatos concomitantes,

turbulências e valores paradoxais.

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66

3.4 TRABALHO EXPLORATÓRIO OU VIVÊNCIA COMUNITÁRIA?

Para o registro deste estudo como exercício acadêmico, como conciliação

teórica, ou como investigação, foi necessário deixar emergir a compreensão da

complexidade que nos afeta em alguns esquemas simbólicos no ato de ensinar e

aprender. Este é um dos sentidos que têm incentivado a redefinição do papel de um

outro jeito de pensar a educação. Na ação de en-sinar importa atentar para os princípios

das aprendências dos saberes e fazeres comunitários. Daí que é óbvio pensar no

encontro de pessoas que nas suas singularidades podem ser distinguidas falando de suas

vivências e exemplaridades cotidianas.

Dizendo de outro modo, a convivência na comunidade foi indicando uma

maneira de escutar e interagir com cada pessoa, com cada acontecimento. Insisto que

cada pessoa se distingue no grupo por singularidades bem marcadas. No terreiro, a

posição de mais velho lhe autoriza a manter-se num lugar que evidencia a sua

importância e considera a sua itinerância pessoal e religiosa. Mesmo incluindo possíveis

divergências e tensões, o mais velho é uma referência básica, elo entre o ancestral, o

presente e o devir. Pode parecer contrário, mas o ser velho neste caso implica na espera

de ouvidos para seus ensinamentos como ainda hoje em muitos cantos quase escondidos

no continente africano. Segundo uma expressão consagrada pelos tradicionalistas: “o

ensino só pode se dar de boca perfumada para ouvido dócil e limpo” Bâ (1982, p. 217).

Ou seja, é preciso encontrar quem esteja inteiramente receptivo.

No continente africano, a maior preocupação colonial era remover as tradições e

implantar as suas próprias. Tendo conseguido em grande parte. Como na África no que

concerne à tradição oral, estamos diante da última geração dos grandes depositários. E

estes para serem ouvidos caminharam para além dos grandes centros urbanos. Na guerra

de 1914, quando a maioria dos jovens foi combater na França, muitos não voltaram ou

foram exatamente no momento de serem iniciados pelos anciões. Por outro lado, as

pessoas importantes se obrigaram a enviar seus filhos para escolas de brancos. Os

anciões cada vez menos foram encontrando ouvidos dóceis.

Hoje em dia, o que se percebe na África é que o antes não passava de histórias

de velhos está sendo novamente considerada por uma parcela da juventude culta como

necessidade de se voltar para as tradições ancestrais. O retorno como está acontecendo é

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67

para reencontrar os valores fundamentais da tradição, a fim de encontrar suas próprias

raízes e o segredo da sua identidade mais profunda.

Nos terreiros, o apressamento, a não prioridade para o tempo das aprendências, o

saber livresco, embora frio, impessoal, via de regra com informações truncadas,

recheadas de conteúdos muitas vezes duvidosos, a grande presença de letrados

paradoxalmente tem afetado a transmissão de saberes genuínos, afastando ouvidos

dóceis de bocas velhas que resistem à espera de fazer os seus diletos continuadores na

tradição. São essas pessoas que continuam o conhecimento civilizatório africano.

Os mais velhos e as mais velhas possuem uma legitimidade que se fundamenta

nos valores que exercitam as suas capacidades de se tornar sujeitos de um jeito de ser

que abrange os seus saberes e fazeres. Esta é uma condição que faz valer a sua palavra

quando se trata do seu saber ancestral. Sem ser contemporâneo do acontecido, quem

relata basta acrescentar a sua fala: no tempo de minha Mãe Aninha e toda sua fala

adquire a veracidade de quem viveu o tempo da primeira Iyalorixá do Opo Afonjá que

por sua vez trasladou e repartiu os saberes de seus ancestrais dos tempos mais distantes.

O que se define essencialmente como hierarquia nas comunidades de terreiro

tem como fundante o ato de ensinar, a proteção e o cuidado com o outro. Esta é a

distinção que separa a concepção ocidental da superioridade entre pessoas e do jeito

solidário de viver. Esta é uma concepção intrusa, entretanto de muita serventia para

aqueles que desejam chegar grandes na religião.

É fácil perceber que os valores vivenciados diariamente na comunidade são

rizomaticamente africanos. São valores que espelham a forma como tem vivido cinco

gerações que se renovam sem perder a perspectiva da continuidade da herança ancestral

como manifestação da verdade do grupo. A herança mítica africana está imbricada

numa teia de vivências plurais que se repetem nas singularidades e nas diferenças do

jeito de ser do povo brasileiro. Vivências plurais que retomam da ancestralidade

estratégias míticas e simbólicas, expressões de significados sagrados, jogos ritualísticos

de linguagens diversas, repertórios culturais reterritorializados, transformando um jeito

de ser em formas de organização social e ritual.

Foi transformando transgressões da ordem escravista em formas ancestrais de

modo de vida em permanente superação, que nasceram as irmandades, as confrarias, as

associações, os terreiros e os quilombos. Até hoje estes lugares, como micro territórios,

fazem parte de um discurso indexalizado, complexo, originante de uma estrutura de

pensamento comunitário como um espelho africano na sua essência agregadora,

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68

presença vital do cuidado, solidariedade e convivência que abranda as dores da

humanidade negra ferida.

3.5 SABEDORIA E SABERES: um jeito próprio de ser-no-mundo

Das comunidades negras, das confrarias e mais precisamente dos quilombos e

dos terreiros, esparramou-se o legado ancestral vivência de raiz, força insurgente para

re-existência do pensamento africano na diáspora. Dos terreiros, recebemos como

legado ancestral um jeito próprio de ser e estar no mundo. Um jeito de ser e viver a vida

fundamentada na essência, nas profundezas da humanidade e um jeito de perceber o

mundo que remonta a origem da nossa existência. Essência que transcende a mera

condição psicológica do sujeito e o constitui em sua diferença.

O pensamento africano nos legou um sistema de estruturas simbólicas que está

na origem da ciência do saber racional e tecnológico. Quando afirmamos pensamento

africano não estamos homogeneizando a cultura do maior continente habitado do

mundo, nem estamos falando de uma mera reedição do passado. O pensamento africano

enquanto objeto desta pesquisa está circunscrito em aspectos da cultura iorubana, que

também é plural. Este pensamento que nos afeta diretamente pela origem ancestral da

comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá e que nos constrói como síntese de um

caleidoscópio cultural.

Da matriz cultura africana, herdamos múltiplas vivências culturais, aspectos de

uma tradição incorporada naturalmente em nossas práticas cotidianas. A questão que se

coloca é que nas escolas em todos os seus níveis, há uma depreciação dos conteúdos

africanos e da cultura negra, Depreciação enquanto assunto acadêmico, através de uma

estranheza explícita ou latente. Estranheza por não reconhecer o sentido da real

significação do conteúdo filosófico relacionado à vida, ciência, espiritualidade,

natureza, à relação entre pessoas e à história da humanidade. Estranheza que vem se

constituindo em uma forma de desconhecimento que é proposital revestido de uma série

de preconceitos, discriminações e negação de uma civilização tradicional que deu

origem à humanidade.

O que buscamos hoje, não se trata de romantizar um tempo olhando por uma

janela o cenário melancólico que ficou no passado. Reinos dizimados na sua existência

atemporal migraram na sua essência na memória de cada ancestral e foram

Page 82: Àqueles que têm na pele a cor da noite

69

reconstruídos como síntese da África iorubana, a exemplo do Ilê Axé Opo Afonjá.

Muitas Áfricas se esparramaram pelo mundo da diáspora, enraizando o sentido do

coletivo, base da tradição africana e que transcende até mesmo na sua ruptura. Ruptura

que paradoxalmente lhe confere dinamicidade ao que parecia inexistente ou já sem vida.

Silva, em artigo com resultados de pesquisas na África do Sul, afirma que: Nas sociedades africanas, a realidade do mundo comunal precede a realidade das histórias de vidas individuais. A primazia da comunidade advém do fato de que o compreender-se a si próprio se desenvolve gradualmente na experiência de cada um na comunidade humana. Precedência é dada ao que é comum. O individual cresce na conexão com quem convivemos. Assim o individual não está separadamente nem pode ser entendido distante da comunidade. Para entender, pois os seres humanos, é preciso entender sua “fusão com a comunidade” (SILVA, 2000, p. 80).

No mesmo trabalho a autora cita Tedla que diz que: Fusão não significa assimilação, desaparecimento do individual no todo da comunidade. Significa isto sim responsabilidade de cada um por todos. É por isso que todos os adultos são igualmente responsáveis pelas crianças da comunidade, sejam seus parentes consangüíneos ou não (TEDLA, 1995 apud SILVA, 2000, p. 80).

Vivemos, portanto, uma cultura como tradição reterritorializada numa

reinterpretação particular da civilização africana no território brasileiro e já não

necessariamente nos terreiros e quilombos. Estamos estabelecidos dentro do conjunto de

princípios e valores praticados por esses grupos de re-existência e tradição. Tradição,

memória viva de um povo onde nem o tempo nem o espaço se apresentam como um

limite. Os valores que garantiram a integridade, a vida e a dignidade de nossos

ancestrais escravizados, continuam a criar caminhos de libertação. São valores que há

muito transpuseram as porteiras das comunidades de terreiros e alimentaram o nosso

jeito de ser.

Jeito de ser e vivenciar valores ancestrais negros, que não nos obriga a sermos

necessariamente, nem ativistas nem iniciados na religião de matriz cultural africana.

Entende-se, entretanto, que não é possível interpretar nenhum comportamento deste

povo sem que não seja levado em consideração o seu lugar e enraizamento cultural.

3.6 O MUNDO COMO GEOGRAFIA SAGRADA

No terreiro, a condição de educadora e a singularidade da minha história

enquanto filha Oxum vai acrescida pela consideração à minha essência pela filiação

espiritual do orixá dona da concepção e do espaço das águas, portanto dona do espaço

Page 83: Àqueles que têm na pele a cor da noite

70

de todas as criações. Esta é uma das condições que aproximam a minha compreensão da

perspectiva dialógica de sistemas mais complexos, concebendo a co-criação como uma

forma de intervenção saudável entre o ser que sou e a natureza. Parece que corrobora

com este pensamento a fala de Moraes, quando afirma que: A acentuada perspectiva dialógica dos sistemas complexos concebe a co-criação de significados entre diferentes interlocutores que participam de um mesmo processo conversacional. Um diálogo entre diferentes formas de vida e de pensamento humano, reconhecendo o papel criativo e construtivo da diversidade da heterogeneidade, do acaso, da aleatoriedade e do “erro” no desenvolvimento de mundos possíveis. É um pensar que ressuscita o diálogo entre o humano e a natureza, e estimula novas formas de intervenções que sejam mutuamente vantajosas para todos (MORAES, 2003, p. 208).

Este me parece um dos aspectos significativos a ser considerado. A mediação

que constrói um fazer pedagógico implicado numa dinâmica autorizada ultrapassando a

compreensão da realidade do ser em seu meio físico. Um fazer que compreende o ser

como produto da interação entre todos os elementos da natureza, emoções, valores e

símbolos. São elementos que envolvem a totalidade do ser dando feição e base

ontológica à sua humanidade.

A este respeito o imaginário africano mais precisamente o pensamento iorubano

inclui o ser na criação do mundo como o próprio mundo. Ser e mundo que se

esparramam como fractais do universo. Este é o sentido que apóia a idéia do

entrelaçamento genético do ser com a cultura, com o contexto pela coexistência

comunitária e ambiental. Daí a atenção para este mito que foi adaptado para formação

dos educadores e educadoras do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô na Rede

Municipal de Educação em Lençóis na Bahia37: Conta-se que no princípio, Olodumaré criou o mundo que era apenas água e ar parados no tempo. Olodumaré olhou em torno e pensou na enorme solidão que o envolvia. Nenhum som, nenhum movimento que o acolhesse. Ele ficou se olhando no espelho d’água por um longo tempo. Ele e a água eram quase a mesma coisa. Encantado, Olodumaré, tira de si um pedacinho de cabeça e oferece a água. Em seguida um pedacinho de cada braço, outro pedacinho do seu próprio dorso, alguns pedacinhos de vísceras, pedacinhos dos pés e se põe a olhar como que mergulhando em si mesmo, sentindo o mundo que carecia de uma existência compartilhada. Um sopro misterioso, um intenso movimento de gozo e expansão nas entranhas das águas, as partes divinas se juntam no mistério da criação e todos os seres vivos se levantam das águas e buscam os seus domínios. As águas inquietadas a partir daquele momento ganham força e como parceiras de Deus na criação saem correndo pela terra adentro espalhando toda espécie de vidas (Extraído do Mito de PETROVICH e MACHADO. Não Publicado).

37 Mito adaptado por Vanda Machado, com Carlos Petrovich, para capacitação de coordenadores da Rede de Ensino Municipal de Lençóis, com Grãos de Luz Griô.

Page 84: Àqueles que têm na pele a cor da noite

71

O mundo africano tradicional tem como princípio uma geografia sagrada onde

os elementos da natureza interagem, criando a paisagem ancestral do universo que se

move dentro e fora de cada um. Se uma poça d’água contém o universo, somos um

fractal deste universo movente. Somos três quartos de água, somos Oxum que brota de

qualquer ponto do corpo ou da terra. Somos a água encarnada que canta, dança, rodopia,

ou enfrenta obstáculos com destreza e sabedoria. Oxum, a mãe ancestral que existe em

cada ser humano. Nós nos consideramos todos seus filhos. Filhos da água que canta

unindo numa única dança os céus, os astros, os trovões as chuvas, as matas, o arco-íris,

as montanhas, as planícies e os oceanos.

O mundo cartesiano não contempla a fluidez dessas presenças. Oxum, água de

múltiplas formas e lugares, se mostra nas enchentes que levam consigo o que está no

seu caminho, nas barulhentas cachoeiras, na piscosidade dos rios que alimentam a terra,

ou na transparência dos lagos e córregos tranqüilos.Água que engole as sombras das

árvores, tornando as paisagens risonhas e brilhantes, deixando refletir o brilhar do sol.

Oxum, água que se esparrama em corpos distintos, criando afetos e outras vidas.

Uma história mítica conta que um dia Oxum estava se sentindo sozinha e foi

justamente a solidão que a inspirou fazer a sua gente de quem ela seria o ancestral

primeiro.Iniciando uma galinha d’Angola como uma iaô, deu início ao povo de

santo.Os feitos de santo se fazem em barcos.Chama-se barco o grupo de iaôs feitos de

uma só vez. .Nesse tempo de feitura a pessoa e a natureza é uma coisa só. Daí que a

terra, a água e as folhas instituem a relação tanto do corpo físico como espiritual que

renasce para outra vida. A água é o caminho de ida e volta ao mundo ancestral. Não fora

a água criadora e criatura, primeiro alimento de todos os seres. Água que se oferece na

tepidez do ventre materno e no peito, primeiro desejo do ser humano, e que

metaforicamente vai abrigar os seres mais queridos. Oxum é nutridora de todas as

espécies saciando a sede do homem, da mulher e da terra. Quando a mulher se enche de

água é porque ela está mais próxima de sua natureza originante ou porque ela está a

recolher ou esbanjar a vida; Água, vida que se manifesta na profundidade da natureza

como mãe parideira do mundo. Oxum Opará38 segura a espada como brinquedo e

alegoria de preservação da vida; Oxum que usa o espelho, não para ver refletido a sua

própria beleza, mas para ver o entorno e o devir sem perder a perspectiva do tempo

presente, porque tudo é presente.

38 Oxum Apara ou Opará

Page 85: Àqueles que têm na pele a cor da noite

72

3.7 EU ME VEJO, EU ME SINTO, EU ME ESCUTO E NÓS NOS CONSTRUÍMOS

A feitura no santo é o que nos desvela, nos contempla e nos inclui revelando a

condição de convivência na comunidade religiosa. Esta é uma condição que vai além da

possibilidade de percepção da manifestação da entidade protetora que está em potência.

A espera é pelo acontecimento que está se efetivando, e este fenômeno é indescritível

por sua própria natureza seminal que religa o cérebro direito e o esquerdo, a razão e a

intuição, a mente e o corpo, incluindo ativamente todos os vivos, os ancestrais e os que

hão de vir. A materialização do que se plasma como num jogo com a espiritualidade

transita pelas dimensões mais profundas que presentifica todos que são chamados a

participar com a Iyalorixá e o Babalorixá. Tudo acontece quando um corpo se entrega

às rezas e ao acontecimento que é pré-existente.

O iaô se oferece totalmente para a sua feitura onde o corpo é o fundante. O

corpo inteiro e todas as suas potencialidades. Um corpo que assume sua potência, que se

rebela aos códigos comuns e que se distingue agora também como corpo dançante. Um

corpo que vivencia e narra histórias ancestrálicas repletas de complexidades numa

forma de linguagem da sua entidade protetora e dona da sua cabeça. No momento da

obrigação há uma enorme concentração para que haja o afloramento do que está como

semente desde sempre. É um mergulho num manancial infindável para se faça presente

o que sempre esteve como energia no corpo e no espírito.

A imanência do que está em potência se realiza plenamente, concomitantemente.

Esta imanência se realiza pelo mistério, pelo axé das cantigas, das rezas e pelo silêncio

que faz parte do jogo ritualístico da escuta e do pensamento que fala e se realiza na

essência humana. Fazemos nossas as palavras de Heidegger, quando diz que: “o

pensamento do ser no tempo das realizações é inseparável das falas e das línguas e da

linguagem com o respectivo silêncio” (HEIDEGGER, 2002, p.15). No ritual da feitura,

o silêncio e a linguagem gestual falam, criam respostas e vibrações que reanimam as

origens mais remotas. Nada acontece como uma simples estrutura simbólica. Estrutura

simbólica é uma abstração e a experiência do nascimento de um orixá e seu

partejamento é uma realidade indescritível. Neste contexto, histórias e mais histórias são

contadas aos neófitos em forma de narração, cantigas e danças contribuindo para o

desvelamento parcimonioso dos segredos, dos princípios e valores da religião do modo

como foi possível sua re-existência.

Page 86: Àqueles que têm na pele a cor da noite

73

3.8 QUEM CONTA UM CONTO PRESERVA A PALAVRA E TRADIÇÃO

A vida se traduz no ato de contar histórias. Contamos histórias para encantar,

convencer, para ser desculpado, para comunicar fatos, sentimentos, acontecimentos,

mágoas, alegrias. Somos partícipes de todas as histórias que contamos. Percebemos que

contar histórias implica em estar em consonância com a dinâmica fluente da vida com a

espontaneidade e com a leveza. Para justificar a necessidade de contar histórias da

história, me reporto principalmente aos tradicionalistas39 africanos. Diletos mestres da

vida comunal consideram a palavra como uma força fundamental que emana do próprio

ser. Palavra como materialização das vibrações das forças que constroem o universo. A

palavra considerada como instrumento de criação. Na tradição africana é a palavra que

diz o que é sendo. A palavra é um bem. É um dom de Deus. A palavra é vida, é ação. É

sopro que transforma. É a palavra que plasma o acontecimento que preexiste em

potência em cada movimento do universo. No pensamento africano, tudo fala, e pela

palavra tudo ganha força, forma e sentido, significado e orientação para a vida. A fala é

o que é. Insistimos que os mitos são constituídos de palavras organizadoras dos

caminhos e vivências de cada um em particular, e da comunidade.

Para os tradicionalistas, os mitos são ensinados e vivenciados ritualisticamente

no processo de iniciação e ao longo da vida. Em algumas regiões da África, o mito da

criação do universo e do homem é ensinado pelo iniciador, que imprime na sua narração

princípios e valores do conhecimento total da tradição em todos os seus aspectos.

Leituras nos dão notícias de que o conhecimento é entregue pela necessidade

aprendente, portanto, é um conhecimento desejado, conhecimento não-fragmentado. Na

fala de Bâ o “conhecer não é um ‘especialista’, ele é um ‘generalizador’. Ele joga o jogo

da natureza que reúne partes que contêm a totalidade das coisas” (1982, p. 187). A

tradição africana vivencia pela iniciação uma ciência da vida, uma ciência

eminentemente prática onde a palavra é reveladora tal como revela o que dela emana.

Os ensinamentos vivenciados nas comunidades de tradição e cultura afro-

brasileiras são inspirados nos mitos. São como dádivas recebidas. Parte de um

patrimônio, herança ancestral ligados a todos os acontecimentos da vida vivente. Os

ensinamentos são forças em potência que permanecem silenciosos na corporeidade.

Page 87: Àqueles que têm na pele a cor da noite

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Forças à espera do momento oportuno para a sua materialização pela palavra e ações

interfecundadas pela tradição e vida. A palavra é a força. É a que traduz o conhecimento

e resume a sabedoria. Palavra que dá a força é por extensão o que materializa. A palavra

é o veículo que desvela a tradição e a memória. Um tradicionalista africano exercita a

sua memória a ponto de obter resultados prodigiosos com a palavra. Ele possui

conhecimentos de seu tempo e conhecimentos históricos de todos os tempos. Bâ

assevera que: Na cultura africana tudo é “História”. A grande História da vida compreende a História da terra e das Águas (geografia) a História dos vegetais (botânica e farmacopéia), a História dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia metais,) a História dos astros (astronomia, astrologia), a História das águas e assim por diante.[...] Por exemplo, o mesmo velho conhecerá não apenas a ciência das plantas (as propriedades boas e más de cada planta), mas também ‘as ciências da terra’ (as propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes tipos de solo), a ciência das águas, astronomia, cosmogonia, psicologia, etc. Trata-se de uma ciência da vida, cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilização prática. E quando falamos de ciências ‘iniciatórias’ ou ocultas, termos que podem confundir o leitor racionalista, trata-se sempre, para a África tradicional, de uma ciência eminentemente prática que consiste em saber como entrar em relação apropriada com as forças que sustentam o mundo visível e que podem ser colocadas a serviço da vida (BÂ, 1982, p. 195).

Os mitos desnudam o indivíduo e o mundo até sua mais antiga roupagem,

buscando a sua totalidade psíquica, na qual o seu consciente esteja criativamente unido

ao conteúdo de seu inconsciente que segundo Neumann: Somente essa integração total do individuo pode tornar possível uma qualidade de vida melhor para a sociedade. (...) A assimilação do universo arquetípico leva a uma forma de vida interior de humanização que, por não ser um conhecimento de consciência, mas sim de vivência do ser humano total, mostrar-se-á ainda mais confiável do que a forma de humanismo que conhecemos (NEUMANN, 1974, p. 18).

Quando decidimos trabalhar a apreensão das realidades que se mostram no

pensamento africano, também a partir dos mitos na sua origem matricial foi

considerando a afirmação de que o mito escapa à consciência intelectual. Entretanto,

esta posição não o afasta da dimensão lógico-epistêmica, nem esconde a realidade com

os mistérios da fé. Sinto-me acolhida no pensamento de Morin, quando declara: Muitos trabalhos de inspiração bastante diversa (entre os quais os meus) convergem para sublinhar a presença oculta do mito no centro do mundo contemporâneo, mais profundamente, foi a partir do século XIX, que a filosofia descobriu a importância do mito e questionou o seu mistério (MORIN, 1999, p. 170).

39 Detentor do conhecimento transmitido pela tradição oral.

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75

Na escuta da comunidade, posso perceber que se tivermos a paciência de escutar

os mais velhos com as suas histórias, mitos e fundamentos desvelados

parcimoniosamente vamos mamar muita sabedoria. Ebome40 Detinha de Xangô, em

meio a uma animada conversa, eu lhe perguntei como é mesmo essa história do mesmo

orixá ser muitos orixás, tendo nomes e funções diferentes. Ela se ajeitou na cadeira, me

olhou sobre os óculos com seu jeito ensinante e disse:

“Olhe bem, eu tenho aqui na minha mão uma cabaça e quebro esta cabaça aqui no meio desta sala. Um pedaço fica aqui na sala. Um outro pedaço vai para a cozinha, outro cai no banheiro, um outro vai para o corredor. Imagine que cada pedaço deste seja um Ogun e que cada um vai ter sua função de acordo com o seu lugar, com o seu chão. Aí eu podia dizer este e Ogun da sala, este é Ogun da cozinha, ou Ogun do corredor... Mas se eu junto todos os pedaços de novo a cabaça fica inteira e é o mesmo Ogun”.

Esta senhora de quem eu estou falando faz parte de um segmento de mulheres

guerreiras, guardiãs de um patrimônio imaterial incomensurável. Antigas vendedoras de

mingau e quitandeiras da Ilha de Itaparica, são eternas contadoras de histórias míticas

acumuladas ao longo de suas vidas. A mitologia africana, recriada como afro-brasileira,

é pródiga na explicação do mundo sempre em construção e uma ciência que elas

próprias . A mitologia conta a grande história da vida, incluindo sempre o ser humano.

E a criação do mundo acontece segundo a cosmovisão africana da maneira mais humana

possível. A criação do ser humano com a participação de um homem e uma mulher.

Nanã e Oxalá, juntos, criaram o ser humano, conforme mito adaptado por Petrovich e

Machado: A mitologia nos conta que Olorun criou o mundo criando todas as águas, todas as terras e todos os filhos das águas e do seio das terras. Criou uma multiplicidade de plantas e bichos de todas as cores e tamanhos. Um dia, Olorun chamou Oxalá e ordenou que ele criasse o ser humano. Oxalá sem perda de tempo, deu início ao trabalho que lhe foi ordenado. Fez um homem de ferro, constatou que era rígido demais. Fez outro de madeira que também ficou muito sem jeito. Tentou de pedra, o homem ficou muito frio. Depois tentou de água, mas o ser não tomava uma forma definida. Tentou fogo, mas depois de pronto a criatura se consumiu no seu próprio fogo. Fez um ser de ar, depois de pronto o homem voltou a ser o que era no princípio apenas ar. Ele ainda tentou criar também com azeite e vinho de palma. Mas nada aconteceu novo. Preocupado, sentou-se à margem do rio observando a água passar. Das profundezas do rio surge Nanã, que indaga sobre a sua preocupação. Oxalá fala da sua responsabilidade naquele momento e das suas tentativas infecundas. Nana mergulha nas águas profundas e traz lama. Volta e traz mais lama e entrega para Oxalá para que ele cumprisse a sua missão.Oxalá constrói este outro ser e percebe com alegria que ele é flexível, que ele move os olhos, os braços, a cabeça ...então, sopra-lhe a vida. A criatura respira e sai cantando pelo mundo: ara aiyê modupé / Orumilá funfun ojo/ nilê ô. (Esta é uma cantiga de agradecimento criada por Mestre Didi) (PETROVICH; MACHADO, 2002).

40 Irmã mais velha na língua yorubá.

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76

Compreender o pensamento africano passa pela necessidade de apreensão de outras

realidades. O ser humano não foi construído de um único elemento da natureza. A

construção foi de um ser síntese do mundo, síntese de elementos cósmicos. A

cosmovisão africana, destacadamente a mitologia, serve como reflexão para

aproximação ou reconciliação da tradição com a ciência, com a filosofia, com a

psicologia moderna e com a vida numa outra perspectiva de mundo.

Para Merleau- Ponty “A verdadeira filosofia é reaprender o mundo, e nesse

sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’quanto

um tratado de filosofia” (1994, p.19). Vale considerar que a nossa linguagem não está

apenas nas falas. Se penso no vestuário feminino, por exemplo, tudo faz sentido: As

cores, a quantidade de anáguas, o tecido, a qualidade e cores das contas ou guias, o pano

da costa, na sua qualidade e jeito como é posto. O uso ou não de batas, a forma de como

o ojá prende os cabelos, tipo de calçado. Esta é uma linguagem que contém uma fala,

que é um texto inteiro sobre a filha de santo a partir do seu jeito de vestir-se e caminhar

no mundo. Um texto no hipertexto que é o cenário – comunidade.

3.9 APRENDENDO A APRENDER O CORPO CULTURAL

O mito da criação dos seres humanos no primeiro momento propiciou uma

intensa reflexão quando nos indagamos quem somos nós? Daí nós nos pensamos cada

um com o seu jeito de ser-no-mundo, a partir de elementos da natureza identificados,

sintetizados e relacionados com a complexidade de comportamentos humanos. Nós nos

percebemos nas nossas singularidades na mais profunda relação com vida pessoal e

comunitária. Esta foi uma reflexão vivenciada intensamente com ajuda de Graça

Viana41 , na formação e não há escrita capaz de retratar a emoção de tudo que foi dito e

escutado.

O mesmo mito inspirou práticas pedagógicas abrangendo tanto a perspectiva de

aproximação com as ciências, como motivação para compreender questões da saúde,

formação de atitudes, cuidado com a vida e com o outro.

Um vigoroso trabalho conjunto foi realizado com Dra. Mônica Nunes na

Faculdade de Odontologia da UFBA, envolvendo estudantes do primeiro semestre no

ano 2000. Os encontros também realizados na Eugenia Anna renderam um

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77

conhecimento singular, reunindo os saberes das folhas e da ciência numa conexão

importante para os dois grupos de pesquisa. Crianças e jovens estudantes produziram o

que foi chamado de árvore do conhecimento num respeitoso contato com as folhas e

com o meio ambiente do terreiro. Importante quando foi lançada a pergunta: o que é ter

saúde? Uma criança respondeu: ter saúde? É quando a gente está feliz. A resposta que

foi acolhida pela médica acatando o conceito acadêmico de saúde integral.

A seguir, a aproximação com as ciências aconteceu com a modelagem de órgãos

e partes do corpo com a argila e criação de várias histórias de diálogos entre os órgãos e

aparelhos no seu funcionamento solidário. Segundo os tradicionalistas africanos, é a

mitologia que faz a mediação que insere quem está sendo iniciado (que não tem o

mesmo sentido ocidentalizado) na grande história da vida. Assim, o africano conta uma

história e depois outra. Da mesma forma há uma história cosmológica no interior da

qual há uma outra história de vida, finalmente pode ser encontrada a nossa própria

história de vida vivente. Nas comunidades de religiões afro-brasileiras, vive-se

mitologicamente. Coll chama a atenção para o fato de que: Cada cultura e também cada civilização, repousa e fundamenta-se em mitos próprios que não são reduzíveis uns aos outros, o que não impede que possam existir semelhanças. Numa perspectiva transcultural, penso que é no nível dos mitos que devemos trabalhar: primeiramente para ver se há elementos com valor transcultural e, depois, independentemente desta constatação, mas levando-a em consideração, explorar como podemos entrar em comunhão mítica de nossos respectivos mitos, sem abandoná-los (COLL, 2002, p. 79).

Um bicho ou uma planta pode estar associado a uma história do orixá para que

não seja esquecido um só detalhe do jogo que se transforma em celebração de vida e

esperança de uma cultura viva e vivificante. Na caminho da aprendizagem, através de

narrativas que se repetem indefinidamente, há de se compreender que o sentido, a tração

e repulsão vivem no mesmo plano.

As práticas pedagógicas do pensamento africano se realizam como uma ação

poética de criação e auto-recriação, e o cuidado é o que mais importa. De onde surgem

essas idéias? Em Osogbo, na Nigéria, durante o festival de Oxum pude compreender

porque comer pato a até pegar no bicho é uma quizila, ou interdição dos filhos de Oxum.

No momento da oferenda no rio Oxum, em seguida a oferenda principal foi colocado

uma enorme quantidade de patos no rio Oxum. Espantada com a nossa relação com

patos, perguntei a Omidire sobre o que havia percebido. Ele respondeu com prontidão

usando códigos que fazem também do nosso universo religioso para uma revelação

41 Maria das Graças Viana, é ajoê de Iansã e mestra em psicologia.

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78

considerável. Daí compreendermos que nossos ancestrais nos legaram percepções e

interpretações fenomenológicas irrigados pelo vigor mitopoético como ação educadora.

A criação de histórias, portanto, é uma forma natural de mitologização, com uma função

de en-sinar.

O pato, no masculino mesmo, está associado à maternidade esta associada ao cuidado ao olhar não desviante da mãe. Oxum é mãe por excelência. E a que não desvia os olhos do filho. É a que anda atrás para prestar atenção ao caminho dos filhos. O pato é diferente da galinha. A galinha caminha na frente. Se um filho desviar ela pode até não se dá conta do acontecimento (Conversas com Ayoh'Omidire em 2003)

3.10 ABRINDO CAMINHOS NO MUNDO, CANTANDO E DANÇANDO

Naturalmente que o sentido de ser-sendo passa por todos os sentidos e a

compreensão fenomenológica dos mistérios e dos acontecimentos mitológicos que nos

constroem. Os animais como presença sagrada inspiradora para a comunidade também

se oferecem como alimento, não como predadores ou presas, mas como parte da

presença do divino que morre e partilha seu corpo para o fortalecimento e vida da

comunidade. Neste sentido, a aceitação do indeterminismo afugenta o fantasma da

ininteligibilidade ocidentalizante.

O sangue que molha a terra é regenerador e se esparrama em forma de axé que

alimenta a natureza originante. O animal, quando integrado aos outros elementos no

sacro - oficio é lavado previamente e considerado como um ser que compreende a sua

função naquele momento. A função de transitar pelos mais íntimos caminhos que fazem

os encontros dos deuses com os homens evidenciando as suas presenças míticas

Na trama sagrada que se faz no diálogo com as experiências ancestrais, a água

lava os bichos não apenas para limpar as impurezas do ambiente físico, mas como uma

forma de aproximação da oferenda com a energia que há de fluir animada pelas rezas,

cantos e danças durante a obrigação ritual. Como em outras práticas rituais, tudo vai

estar em concomitância com o acontecimento imanente. Reiteramos que só por uma

intensa concentração nas muitas atitudes individuais e coletivas é que se efetiva o

acontecimento que se encanta como se espera.

Cada obrigação envolve todo terreiro. Há os que estão envolvidos diretamente, a

Mãe de Santo, a Iya Kekerê, o BabalOssain, que cuida das folhas, a oganlá, responsável

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79

pelas cantigas, os alabês que tocam os atabaques entre outros que participam como suas

presenças para a redistribuição do axé. Os mais velhos têm sempre um papel ativo nas

obrigações. Eles podem não praticar ações visíveis. Podem estar simplesmente sentados

ou até cochilando, se for o caso. Para todos os efeitos estão juntos com os outros que se

movimentam vivenciando todas as ações rituais no mesmo grau de importância.

A primeira entidade a ser evocado é Exu com o canto de consideração pela sua

presença: Inã Inã mo juba aiyê/ Ina mo juba.Exu do fogo, peço licença. Exu do fogo eu

apresento meus respeitos. A evocação é para que o Exu do fogo que existe em cada ser

possa inflamar as palavras dos homens e das mulheres para que tomem o significado das

ondas e das danças que se movem em qualquer direção. Que as ações rituais possam se

esparramar em fluxos ressonantes e se transformar no mistério da comunicação.

Comunicação que nas religiões de matriz africana é da responsabilidade do orixá Exu.

Orixá que interfere nas louvações, tecendo tempos e espaços transcendentes,

envolvendo todo patrimônio espiritual disponível na capacidade mobilizante das rezas,

gestos, cantos, danças, mitos que infestam o universo de cada obrigação.

Para que se cumpra esta função comunicante, antes de qualquer obrigação

pública ou privada, a comunidade se reúne para o padê. Este é um ritual de encontro

entre o passado, o presente e o devir, devotado a Exu elemento dinâmico propiciador da

comunicação entre os seres humanos e as diferentes dimensões cósmicas. Padê ou ipadê

é um ritual que remete às percepções pessoais e coletivas numa polilógica de sentidos

regidos por memórias da comunidade. É um ritual que dá significado às relações

peculiares entre as entidades de todos os mundos, e de Exu com a comunidade. É um

ritual interno, com a finalidade de reiterar os respeitos e consideração pelos incontáveis

serviços que Exu presta a comunidade e a cada um, em particular.

Falamos anteriormente que em tempos remotos, Exu teria conquistado a

confiança dos homens, aprendendo e ensinando os segredos do jogo para que estes

pudessem dialogar com os orixás apresentando as suas queixas, buscando a cura para os

seus males e a realização dos seus mais íntimos desejos. Isto significa que os homens,

ao se darem conta dos acontecimentos imanentes pelo jogo dos búzios ou Ifá42, vão se

comunicando com os orixás, fazendo-lhes oferendas que alimentam as possibilidades, a

vida e o axé.

Seria esta a raiz do princípio do mobilismo heraclitiano de onde “tudo flui”?

Daquele que não diz nem oculta embocado nas suas diversidades e transtemporalidade?

Page 93: Àqueles que têm na pele a cor da noite

80

Exu não só está relacionado com os ancestrais femininos e masculinos, mas também

com tudo que existe e que se imagina existir no universo, porque tudo é vivo. Ele não

pode ser aprisionado em nenhuma categoria. Ele é parte da natureza, do ser humano e

da humanidade nas suas ambigüidades e contradições e em seus enigmas mais

imponderáveis.

O Padê é o momento em que os atabaques43 falam, evocam os ancestrais,

convocam entidades de todos os mundos, valendo-se de um código extraído da nossa

mais remota configuração de humanidade. Quem sabe, posso fazer minhas as palavras

de Galeffi quando, apoiado em Nietzsche (1987), nos fala de um fazer operante que tem

como sentido a própria construção da humanidade do homem, na mais lúdica expressão

do termo. Isto significa, entre outras possibilidades que o mundo é um jogo de possibilidades interpretativas, um infinito de jogos de possibilidades. E o infinito aqui não tem mais nada a ver com o mundo teologicamente acabado, mas pelo contrário, fala de um mundo em ebulição, mundo de infinitas formas, ofertadas ao perspectivismo humano (GALEFFI, 2001, p. 315).

Exu é o principio, o meio e o fim. Exu está na árvore, no rio, no peixe, no

pássaro, na pedra e em todo ser vivente. Como elemento energético dinamizador e

plasmador, ele é o que desenvolve, mobiliza, faz crescer transformar e comunicar no

incessante fluxo das vivências cotidianas entre o Orun e o Aiyê. Ele é o tudo e o nada.

Seu jeito buliçoso de existir encontra ressonância no pensamento filosófico de um

universo sem lógica. Um universo de lógicas infinitas, um universo polilógico. Mas

qual seria a relação entre esta prosa que pode até ser considerada sacrílega e o jeito

acadêmico de me fazer entender? Como é possível compreender os etnométodos

vivenciados na comunidade do Afonjá e a sua epistéme singular?

A tradição oral reúne um sem número de histórias míticas que o homem

apreende na sua existência, como adutor de valores que agem na atemporalidade.

Histórias, memórias de vivências ontológicas criadas para fixar ensinamentos para uma

educação iniciática de uma forma de educar para ser. Seria esta uma das premissas para

uma educação de sujeitos autônomos e coletivos?Buscamos resposta para mais esta

indagação.

Entendo que esta abordagem pode até melindrar a ortodoxia intelectual da razão

triunfante. Onde já se viu criar-se um diálogo filosófico para educação incluindo Exu?

Teria este diálogo caótico alguma possibilidade de favorecer a implicação formativa de 42 Orixá masculino, o senhor da adivinhação. Jogo divinatório.

Page 94: Àqueles que têm na pele a cor da noite

81

outra epistemologia para en-sinar o povo brasileiro? Adianto que esta disposição não

despreza nenhuma outra interpretação no caminho de compreensão do mundo, mas este

é o lugar de onde falo. Quando assumo esta mediação dialógica e estimulante para a

compreensão de princípios e valores da tradição e cultura afro-brasileira, é por acreditar

que este é um fato que não se realiza por legislação. Se uma Lei44 se impõe para educar

o afrodescendente na consideração pela sua cultura, mais importante ainda é a urgência

de criar-se uma linha de fuga que possa acolher outra epistemologia, um outro contorno

para um jeito de educar para ser-no-mundo, sendo diferente. Uma Pedagogia da

Diferença45 seria um caminho?Urge que sejam reabilitados e dinamizados valores

cosmológicos, vivenciais num mundo aberto e dialógico.

Acredito em caminhos, encontros e celebrações como afirmava Carlos

Petrovich. Caminhos que se constroem nos jogos ritualizantes no cotidiano quando o

extraordinário é o prosaico. Caminhos que se realizam também na emergência das

instabilidades e turbulências vivenciadas no mais profundo do ser. Instabilidades e

turbulências que se identificam metaforicamente com a evolução das estruturas sociais,

culturais e simbólicas. Estruturas que tencionadas coletivamente se movem, flexibilizam

e se intensificam nas suas possibilidades auto-organizativas alterando as regras do jogo

jogado. Seria esta uma filosofia exuniana no seu vigor originante? Ou uma pedagogia

que permite ao educador e educando perceber o seu entorno e a tessitura das suas

contradições?

Conta-se que certa vez um homem muito rico tratava mal os seus trabalhadores. Por conta de muitos desagrados, todos juntos resolveram fazer reivindicações. Para humilhar seus empregados, ele deu um pedaço de terra a cada um. Com a intenção de manter a subalternidade a que estava costumado, ofereceu-lhes milho torrado para semear nos seus próprios campos. Os seus trabalhadores plantaram e o local passou a ser vigiado dia e noite para garantir que a plantação não nasceria. Então, Exu se deu conta da maldade e não suportou a injustiça. Resolveu dar o troco àquele falso benemérito criando uma bela estratégia. Exu chegou ao centro da cidade e começou a fazer brincadeiras e travessuras. Somente isso. Nas suas divertidas pintanças, as vacas começaram a voar, cavalos falaram, a lua dançou e o sol rodopiou. Foi tanto movimento que não ficou quem não corresse para ver o que estava acontecendo. Mais rápido do que a luz Exu entregou novos e férteis grãos de milho aos empregados que se apressaram em plantar, e para o desespero daquele homem. Nunca se viu plantação mais próspera.

43 Instrumentos da orquestra sagrada do candomblé. 44Trata-se da Lei 10639 de 9 de janeiro de 2004, que obriga o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. 45 Pedagogia defendida por Dante Augusto Galeffi em Filosofar & Educar: inquietações pensantes.

Page 95: Àqueles que têm na pele a cor da noite

82

Daí pode-se compreender que este comunicador na sua missão de en-sinar

sinaliza que além de ficarmos atentos com tudo e com todos, é bom aprender a ser como

uma semente de milho fértil que rompe qualquer submissão e se põe fora do peso de

qualquer vigilância. Exu é um ser que desvela o que é para ser desvelado. Ele é livre

como o ar que o representa no espiral dos redemoinhos e se movimenta na sua

flexibilidade e mutabilidade constantes, jaculando o seu sopro transformante em

qualquer direção.

Com todo respeito a este precursor dos movimentos dinâmicos dos caminhos

virtuais, ele pode até ser comparado aos seres humanos. Mas nem a todos. Só queles que

jogam com o poder da imaginação e sabem onde, como e quando interferir. Aqueles que

correm de um lado para o outro criando caminhos para encontros e celebrações. Aqueles

que agem como cantou Raul Seixas como os olhos do cego ou como a cegueira da

visão46 Ou os que sabem tencionar poetizando e jogando com a vida. Os que se

entregam a uma ressonante gargalhada. Aqueles que não param de traçar caminhos

novos, e que cada dia fazem um traçado diferente do outro. Traçados que não

simplesmente se cruzam, mas que criam caminhos de encontros, mesmo que sejam

encontros transitórios.

Exu se desloca com a velocidade da luz ou com o cuidado protetor de uma dona

de casa. É ele quem desmancha com habilidade de artesão, o que precisa ser

desmanchado`, ainda na sua imanência. Ele constrói do nada o que precisa ser

construído. Se consideramos deste modo, é porque vivemos como tradição a

complexidade do cotidiano. Tradição que se alimenta dela própria. Os fundamentos da

tradição estão no fato de existir uma cadeia dialógica entre as próprias energias dos

fenômenos míticos repetidos e as pulsões grupais. Neste ponto, sou novamente

encorajada pela reflexão de Galeffi sobre o universo sem lógica ou um universo

polilógico, quando indaga... Assim todas as possibilidades são igualmente válidas ou ainda, haveremos de escolher, de decidir, de recortar, de fazer com que as infinitas possibilidades se tornem apenas um campo de força que caminha em sentido determinado? (GALEFFI, 2001.p. 316).

Este questionamento remete à compreensão arcaica que envolve uma

multitemporalidade numa perspectiva de transtemporalidade. Este é um aspecto onde a

complexidade do tempo e do espaço mítico pode regar a idéia de um universo em

construção. Este é um dos princípios da incerteza que é essencial para a criação de

Page 96: Àqueles que têm na pele a cor da noite

83

possibilidades e transformações. Possibilidades que também inclui a lógica do arbítrio

humano e a corporeidade como fundantes de infinitos caminhos para uma vida vivente

comunitariamente, solidariamente.

O pensamento africano se caracteriza pela idéia do corpo comprometido com os

fenômenos da natureza. Nessa perspectiva, nos colocamos na relação com as energias

da natureza do cosmo de modo a vivenciá-las também no próprio corpo. Exu Obará,

Exu, rei do corpo, o que anima, embeleza e revitaliza. Para cada conjunto de célula que

morre por dia, Obará faz nascer outras tantas que nos mantêm a vida. É ele que mantém

vivo nas pessoas o impulso para troca de afetos e o desejo de gozos para que jamais se

acabe a vida na terra. E quando o ser de cada um exulta o prazer e a vida, Exu se move

infinitamente sem a contagem inflexível do tempo que limitaria os movimentos do

corpo. Exu é o que faz o jogo do universo e nele estão contidas as infinitas

possibilidades como a aleatoriedade do movimento, a vagueza e a desorganização. Nele

está contida também a turbulência que o homem vive como um refazer contínuo da ação

e do pensamento.

No ritual do Padê, vive-se a trama do caos, como um mistério sagrado em

instâncias que fluem para todos os lados. Mistério sagrado que representa para o homem

a mais alta expressão daquilo que foge à idéia do que se chama lógica. São muitas

lógicas onde o bem e o mal é tudo igual. E aí, seria possível confiar neste orixá de todas

as possibilidades? A resposta é provisória: o arbítrio é do domínio do ser humano. Exu

faz o jogo do universo e do homem. É ele que encaminha pedidos; carregando as

oferendas, mobiliza todo o processo de restituição do que é retirado e ingerido da terra,

do rio, da floresta, do espaço urbano e das pessoas. Exu é um fractal que se integra. Ele

que se divide e fica inteiro em cada ser povoando todo o Aiyê e todo o Orun. Exu fez do

mundo inteiro o seu banquete cósmico, engolindo tudo que existe, para em seguida

vomitar renovado cada ser que é vivo. Isto justifica a compreensão de que Exu se firma

no princípio de todo ser. Toda matéria individualizada no Aiyê está acompanhada do seu

próprio Exu.

Pulsante, ele corre os caminhos do mundo, os caminhos da vida e o caminho dos

encontros amorosos.. Anfitrião que não se põe apenas diante das porteiras

convencionais Ele está diante da porta do gozo por onde se concebe a vida. Está na

porteira de onde brota a vida. Exu é a vida que brota em cada ser. É o que se divide,

derrama e junta o que precisa ser juntado. Exu é o que vivifica e movimenta tudo que há 46 Trata-se de um fragmento da canção GITA.

Page 97: Àqueles que têm na pele a cor da noite

84

no mundo. O que não se renova e não se recria continuadamente apodrece e morre. É

preciso mover-se e se aquecer sempre para manter aceso o pavio da vida. Ele é o

absurdo, é o sol que não deixa apodrecer o juízo.

No Ipadê, as entidades de todos os tempos são reunidas e consideradas.Os

ancestrais são convidados e se fazem tão presentes quanto nós os vivos. Nenhum ato

ritual se efetiva sem essa presença originante. Nenhum ato litúrgico se inicia sem a

invocação dos ancestrais como nos ensina Mestre Didi47 no seu escrito de Roda que diz

“Iyá me axéxe/ Baba mi axéxê/ Oxum me axéxê/ Gbobo axéxê ti nu ará mi/ Ki ntô bó

orixá aiyê” (RODA, 1997, p. 43), que significa: “Minha mãe é minha origem/Meu pai é

minha origem/ Deus é minha origem/ Todas as origens em mim/ Adorarei antes do que

qualquer orixá neste mundo”.

3.11 ÁGUA SILENCIOSA E INSONDÁVEL: água início da vida

É neste caminho que buscamos também compreender a relação entre nós e o

mundo, ou entre o ente e o mundo como quer Heidegger (2002). O mundo no seu

momento estrutural. A idéia de tempo vem antes do ser? Parece que é o tempo que

contém o mundo como um fenômeno. Ou é mundo que na sua atemporalidade, na sua

subjetividade contém os entes? Na fala de Felippe Serpa, no inicio da orientação a este

trabalho declarou que “esta concepção daria lugar a uma nova ciência baseada no

pensamento ecológico onde o todo está na parte, onde a essência está na relação, e

será a expressão de um novo homem e de uma nova sociedade, que serão determinados

historicamente pela superação do ter”. A busca do ser implica no que está na essência

originante, no que preexiste ao tempo. O pensamento africano compreende que quando

eu era apenas um sinal de vida nos primórdios da concepção eu já era essencialmente

um ser Oxum.

Ser feita de Oxum é uma conseqüência para ser distinguida e me fazer presente

na comunidade como um ser em plenitude. Eu sempre existi inteira na minha

instabilidade constituinte sem depender do jogo tensivo entre o existir e o não existir.

No caso do ritual de feitura, o corpo é entregue para se fazer emergir o novo e

imprevisível ser no seu estado essência de existir num tempo sem limite. Não há um

esquematismo espacial temporal para falar ou para compreender-se neste jogo

originante que se movimenta em espiral.. O povo de santo considera apenas a finitude

Page 98: Àqueles que têm na pele a cor da noite

85

do corpo. O que é espírito, o que sempre existiu vai para a ancestralidade, a fim de

conviver mais profundamente com a sua comunidade. Pensando a ancestralidade como

filha de Oxum, me permito sorver as palavras da realidade poética de Bachelard: Água silenciosa, água sombria, água dormente, água insondável, quantas lições materiais para uma meditação da morte. Mas não é a lição de uma morte heraclitiana, de uma morte nos leva para longe com a corrente. É a lição de uma morte imóvel, de uma morte em profundidade, de uma morte que permanece conosco, perto de nós, em nós (BACHELARD, 1998, p. 72).

Esta é uma condição que transcende ao que se compreende como existência

antes e depois da vida, o que transcende ao que se mostra na cotidianidade. E o axé se

faz presente no seu sentido dinamizante e coletivo. O conhecimento de si e do mundo é

um fenômeno reflexivo e trajetivo. Trajetivo no sentido de se desvelar no jogo do

cotidiano. O cotidiano seria este conjunto de situações que se repetem. E as ações mais

parecem atingir os limites dos conflitos entre pessoas que se experimentam, que se

exprimem e se expressam nas rotinas e até em momentos rituais que se repetem como

novidades. Isto é cotidiano.

O ritual da feitura, então acontece num coletivo onde estão juntas as entidades

ancestrais, entidades do presente e os orixás na sua nascença. Todos vivem a

concomitância e a complexidade da vivência fundamental para a existência da

comunidade e de seu povo e das suas entidades protetoras. Vive-se e magnifica-se o ser

na sua singularidade que deve emergir e conviver no grande coletivo constituído de

outros coletivos em toda sua complexidade. Coletivos que são magnificados pelas

singularidades e pela ausência de categorias artificializantes. O limite entre o que

poderia ser considerado como categorias seria tão tênue que não diferenciaria o

suficiente para a nossa compreensão. Tudo e todos se relacionam num jogo de

imprevisibilidades. A comunidade não se constitui em uma comum unidade. Uma

comunidade de terreiro não é homogeneizante. Assim um filho de Ogun vai conviver

com outros filhos de Ogun com suas singularidades e suas diferenças fundantes do

mistério do que é ser-sendo. É justamente a condição de irmão de cabeça que lhe dá a

condição de ser- sendo, um ser distinto. Esta diferença é irrevogável nas probabilidades

do ser humanidade e essência divina que somos.

Na primeira leitura deste texto, o professor Luiz Felippe Serpa declarou ainda

que: A coisa contemporânea mais fundamental desta reflexão é a concomitância do

coletivo, com o singular e com o que está em potencia. Ser na comunidade é uma

47 Deoscóredes M. dos Santos – Alapini- Coordenador Nacional INTECAB

Page 99: Àqueles que têm na pele a cor da noite

86

escolha. A bem da verdade cada um que chega numa comunidade de terreiro sabe o que

quer ser. No meu caso em especial eu escolhi começar do princípio.

3.12 O PENSAMENTO AFRICANO COMO FUNDANTE PARA A FORMAÇÃO E CAMINHADA HEURÍSTICA

Um ano depois que freqüentava a comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá, meu

companheiro Carlos Petrovich foi levantado Ogan. Preferi declinar do tratamento

especial que me cabia como esposa de Ogan para ganhar o direito de circular na

cozinha, lavar pratos, servir comidas ao invés de ser servida. Eu mesma escolhi ser

abian, espécie de aspirante ou noviça. Daí que comecei também participando das

obrigações rituais internas. Esta é uma co-existência que vai bem além da capacidade de

percepção do que está à vista. A convivência, o estudo, a pesquisa tudo foi se

transformando como uma memória viva que se altera através de processos vigorosos de

criação e re-criação. Neste contexto, a entrada para a vida acadêmica não é um ato

mágico. Contrariamente ao que possa parecer eu não estou me despindo das marcas da

minha ancestralidade. Também não as imponho como única referência. O que acontece

de verdade, é uma concomitância entre todos os acontecimentos que me constroem na

convivência comunitária..

De fato, o que buscava foi sendo encontrado na possibilidade do desvelamento

da cosmovisão ancestral como precursora de aspectos do desenvolvimento cientifico

como alicerce e ferramenta que sustentam a base filosófica contemporânea. Neste

contexto se inclui a compreensão de aspectos da psicologia moderna, complementares

do meu estudo. Se faço minhas as palavras do autor, é por considerar que o meu fazer

acadêmico tem contribuído também para a minha condição de ser religiosa. Ainda mais,

quando Sodré (1998) chama atenção para o traço peculiar daquele que é feito como

lugar do invisível. Vale considerar também a fala de Merleau Ponty (2000) afirmando

que o invisível não é o contraditório do visível. O visível possui, ele próprio, a

membrana do in-visível que é a contrapartida secreta do visível.

Por outro lado, parece que a nossa relação com o mundo pode ser melhor

compreendida considerando ao mesmo tempo a relação pessoa e a sua filiação

espiritual. Conhecer a alma do outro, cuidar do outro, portanto, são premissas que

fundamentam a inserção do novo filho na comunidade. Esta é uma forma de

comprometer-se dos mais experientes com os menos experientes.

Page 100: Àqueles que têm na pele a cor da noite

87

Hoje, após mais de vinte anos na comunidade me proponho a busca de outros

conhecimentos pelo distanciamento muito a gosto da academia. Paradoxalmente o

distanciamento não impede as implicações libidinais conscientes ou inconscientes nesta

construção. Por conta da convivência com a família ancestral, da necessidade de

aprender com os mais velhos e de en-sinar aos mais novos, quando me dei por conta já

havia aprendido os códigos da comunidade e a linguagem do grupo que se constitui

como um bem, um legado vivo da ancestralidade.

As relações foram se estreitando com os mais velhos. Todos e todas foram

incluídos. Extraordinária a relação com as crianças que se constituíram em

interlocutores de grande valia. Suas falas atingem a dimensão do mitopoético. Falas que

traduzem as vivências sedimentadas pela tradição que nos une e que se inscreve no

corpo e no escondido da alma da gente.

Enquanto isso, eu me punha a cultivar saberes e valores comunais adormecidos

em mim mesma. Toda minha existência veio à tona. Tudo faz sentido. As missas, rezas

das pretas velhas, as procissões, o povo da roça, as feiras, o engenho e a casa de farinha

dos meus padrinhos, os homens que cantavam na feira, as festas de Antonio Machado,

os presépios, os banhos de rio, a solidariedade do povo negro e pobre dos subúrbios. A

feitura, as festas da comunidade nas suas repetições. Esta foi a chave para a pedagogia

criada para o Projeto Ire Ayó noutra forma de en-sinar fazendo educação para o cuidado

com a vida.

3.13 NO DIA EM QUE EU ME VI NASCENDO

Fazer educação para o cuidado implicou em vivenciar e compreender o terreiro

como o lugar princípio da minha identidade, amparo espiritual, refúgio e célula mãe da

comunidade negra. A iniciação ou a feitura, como se fala nos terreiros, não se constitui

apenas num ritual de passagem para uma vida religiosa. A iniciação é outra vida que

brota da convivência com a comunidade e que se renova até o último dia de nossas

vidas. Para quem recebe o chamado para ser feito no santo, há de se permitir ser

envolvido pela comunidade numa gestação coletiva que dura o tempo certo sem nenhum

compromisso com marcação controladora do Chrónos.

Em cada dia, cada tempo acontece o que tem que acontecer. No tempo certo,

numa hora certa, toda ancestralidade se disponibiliza para acolher os novos filhos que

Page 101: Àqueles que têm na pele a cor da noite

88

compõem o barco48. Diante da aproximação do momento esperado vai aflorando

gradativamente o mistério da essência de cada um. Os sentidos se tornam mais

aguçados. Os sons e os cheiros enchem o ambiente sagrado. Tudo é mistério que se faz

no rebuliço do segredo: o caminhar das pessoas nos corredores, o bater das tampas nas

panelas, o moinho ligado, o burburinho da cozinha, o abre e fecha das portas e das

malas... A zoadinha das águas nas torneiras ou despejadas nos potes... Do lado de fora

vem o som das batidas do pilão preparando as folhas.

O pilão bate como batidas de coração. Uma batida maior e outra batida menor.

Impossível esquecer desse som e da magia das folhas que exala do pilão aromatizando a

casa de Oxalá. Casa mãe que nos acolhe do nascimento à morte. Enquanto seres

biológicos, somos criados com a cabeça bem junto ao coração da mãe. O primeiro som

que escutamos na vida parece com o som do pilão. Também enquanto nos preparamos

para a nossa re-existência negra, somos confortados pelo pulsar do coração da mãe

comunidade. O som que se repete cadenciado no silêncio da casa sinaliza a aproximação

da viagem ancestral. Está chegando a hora. Mães e pais pequenos, todos os mais velhos

e também os mais novos caminham de um lado para o outro juntando peça por peça os

inúmeros elementos necessários para ajudar nascerem novos filhos.

Os mais velhos vão ficando cada vez mais silenciosos, circunspetos e muito

ativos. Ouve-se apenas o ranger das bacias, os passos no corredor, o tampar e destampar

das panelas, o trincar de pratos. O cheiro de comida que vai nutrir e animar a intensa

noite de vigília, com muito trabalho e rezas.

O estado de gestação da comunidade fica ainda mais evidente. Toda comunidade

vigia o parto que dura dias e dias. O ambiente amniótico repleto do sagrado mostra sua

transparência numa festa de fé e muitos cuidados. Da despedida solene para a viagem

ancestral, guardo o olhar acolhedor de todos meus mais velhos. Enquanto me

abençoavam, um por um, eu pensei e agora para onde vou? O que me espera? Não

demorou muito, eu estava vestida com beleza e dignidade. O cheiro de banho de folha e

a roupa nova me faziam feliz e confortável. Eu estava sendo gestada pela comunidade.

De fato, nunca estamos completamente criados. Os mais velhos estarão sempre

vigilantes nesta caminhada sem fim. Esta não é uma história pessoal. É a história de

todos que passaram por essa mesma experiência religiosa.

48 Grupo de iaô.

Page 102: Àqueles que têm na pele a cor da noite

89

Durante o recolhimento, os dias passam lentos e com muitas surpresas pelos

rituais internos. O cuidado configura-se no que se traduz como tudo que pode ser

desvelado. Sobre o cuidado Sousa cita Makota Valdina quando diz que: O Nkisi, como é conhecido as entidades na nação Angola, é a vida, a essência invisível que se manifesta para nós através dos recipientes humanos, das pessoas por ele escolhidas, mas também são as pedras, o ferro ou qualquer objeto preparado para ser representação simbólica do invisível. Nkisi vem da raiz verbal Kinsa – tomar conta, cuidar: é o que toma conta da vida, cuida da vida. O termo Nkisi é sinônimo da palavra remédio. Ou cura (PINTO, 1997, apud SOUSA,JUNIOR 2003, p. 167)

Na minha experiência com a espiritualidade, a melhor hora é aquela horinha de

manhã, quando um leve burburinho nos desperta, o/a ojubonan está chegando. A cada

manhã, o pai ou a mãe derrama-se em cuidado sobre seus filhos. Escuta sonhos, vai

tirando dúvidas para a construção da nova identidade considerada na sua fluidez.

Sabiamente, essa é a hora escolhida para imprimir as marcas da espiritualidade. Marcas

de proteção e equilíbrio.

Durante os xirês fui protegida pelo grande útero comunitário, quando nada podia

me tocar. Minha ojubonan, minha mãe Vardinha, que Oxum já levou para perto Dele e

outras mulheres mais velhas no santo protegiam meu corpo com seu próprio corpo. Era

a comunidade encantada que me encantava para as vivências nos mistérios da nova

vida. Tudo estava e está no tempo presente: o corpo físico, emocional, racional

espiritual integral e integrado pela alegria, beleza e muito cuidado. Um corpo que ocupa

um espaço-território. Em outras palavras, este é um paradigma que inscreve no corpo

regras culturais reterritorializantes. De fato, a primeira experiência do corpo com o

sagrado cria uma parceria entre o ser e o território sagrado, o cosmo e a comunidade

numa relação de ser, pertencer e participar como membro solidário. O que não significa

ausência de conflitâncias e desencontros.

3.14 O DIA DO NOME: de volta à ancestralidade

Nas religiões de matriz africana, ter um nome ancestral é existir em plenitude.

No passado, os nossos ancestrais depois de seqüestradas e separados como peças

utilitárias tiveram seus nomes ancestrais substituídos por nomes cristãos. A perda do

nome era legitimada pelo batismo compulsório que tinha a importância do imposto e do

uso dos navios negreiros de propriedade da igreja parceira de uma missão salvadora de

Page 103: Àqueles que têm na pele a cor da noite

90

si própria. Era o corte, a ruptura com que o africano tinha de mais precioso: a sua

ancestralidade.

Durante o recolhimento para feitura, espera-se com ansiedade o dia do nome

quando de volta para comunidade os novos filhos, os iaôs serão apresentados com seus

nomes ancestrais. Decerto que esta é uma reparação significativa que contempla a

pessoa na sua ancestralidade e no sentido do filho da comunidade agora legitimado pelo

princípio do axé compartilhado. O dia do nome ou o dia da saída é como se fosse

precedida da volta do útero protetor da ancestralidade para o nascimento de um ser

inteiro. Já não somos apenas filhos e filhas da comunidade, somos também filhos do

mundo que nos recebe festiva e ritualisticamente.. Na comunidade, todos os velhos e

velhas e convidados ilustres de outros terreiros, todos esperam o momento E justamente

essa sabedoria matricial que nos devolve por inteiro os princípios básicos da

convivência comunitária deixadas do outro lado do Atlântico. A alma ancestral está de

volta. Chega a hora de tomar o nome do iaô. Tomar o nome de iaô é uma honra. É uma

honra concedida a religiosos importantes de outro terreiro ou da própria casa. Diante de

todo egbe49 reunido. O iaô é levado para o centro da sala. Perguntado o nome, primeiro,

ele/a responde baixinho, num quase sussurro. Perguntado novamente, ou melhor, numa

terceira tentativa, o iaô gira o corpo sobre si mesmo, pula e grita bem alto o nome que

está trazendo para que se ouça na cidade, nos palácios e no mercado e nas feiras. Ao

ouvir o nome, toda a assistência aplaude e tocam os atabaques. Os feitos de pouco

tempo e alguns convidados podem receber seus orixás. Ao reconhecer o nome que foi

revelado, os mais velhos lembram de ancestrais portadores do mesmo nome, suas

qualidades e seu prestígio. Lembram as suas disposições morais e espirituais e

explicarão aos mais novos o significado do nome ancestral recuperado.

O nome do meu orixá foi tomado pelo Pai Flaviano de Nanã. Nós nos

consideramos de modo especial. Ele é uma pessoa sempre pronta a me ouvir e dar suas

sabias respostas. Foi com grande alegria e com muita emoção que no dia seguinte fiquei

sabendo do meu nome religioso. “Oxum Tunxê este é o seu orukó , seu novo nome.

Daqui por diante as pessoas aqui vão lhe tratar por este nome". A pergunta foi

inevitável.- O que significa este nome? Mãe Stella me en-sinou com paciência de quem

conversa com alguém que está começando a crescer. Indizível o prazer de conhecer o

meu nome nagô significa para a reparação da minha alma ancestral e da compreensão da

minha cidadania dentro e fora do terreiro. Mais do que o término da obrigação, o

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91

momento vale como o início de uma nova existência na família ancestral. A partir

daquele momento se dá início ao processo da iniciação que dura toda vida.

Na Nigéria, cada orixá é cultuado pela família e seus descendentes. Conheci

algumas famílias iorubanas com seus cultos familiares. No Brasil, esta prática foi

abolida devido ao fato de que a família africana aqui era separada pelos seus donos.

Acredita-se que foi Iyá Nasô que reconstituiu essa família de santo com pessoas de

famílias diferentes e orixás também diferentes. No processo foram surgindo membros

mais experientes e com sabedoria para fazer re-existir a família ancestral. Como

conseqüência, surgiu a importante figura da mãe e do pai de santo ou a Iyalorixá e o

Babalorixá.

O iaô, o novo filho depois de feito se torna alguém especial. É um regresso

venturoso. O iaô tem uma nova família, sua família de santo, sua familia ancestral. Tem

um nome e começa um novo sonho, um projeto de vida, seja qual for a sua idade. Essa é

uma ação que acontece parcimoniosamente e envolve toda comunidade. Até que atinja a

maioridade com as suas obrigações de sete anos, o iaô estará sendo criado pela

comunidade que lhe en-sina nas regras e os valores do grupo junto com as

características que se espera decorrentes da proximidade com o seu orixá tutelar.

O regresso é de um outro para si mesmo e para a comunidade. A partir desse

momento, como filho passa-se a viver na comunidade a eterna condição de construir-se

a cada dia.. Agora sim, está começando a iniciação. Com a cabeça feita, o iaô está

pronto para desvelar e ser desvelado em todo seu ser. Ele está religado

magnificadamente com o seu ancestral de origem, o seu orixá. Ele agora pode se

mostrar com a sua real identidade que o desvela de corpo e alma. O regresso que traz

implícito o sentido do renascimento e o acolhimento necessário para o seu crescimento

na comunidade. O acolhimento dos mais velhos é o que fortalece e sustenta o sentido e

o sentimento de pertença. A sustentação desse acolhimento vai se evidenciando cada

vez mais pelo ensinamento desses mais velhos, pela redistribuição do axé, na

participação dos rituais internos e pela correspondência no comportamento de quem

busca e aceita os novos ensinamentos. O confronto também é uma realidade. O

confronto se faz presente pela necessidade de atenção quase absoluta especialmente nos

primeiros tempos quando todos os sentidos devem estar voltados para a manutenção de

um conjunto de regras nem sempre explícitas, mas necessárias para a manutenção dos

rígidos princípios da comunidade. Todos os mais velhos são responsáveis pelos mais 49 O mesmo que comunidade.

Page 105: Àqueles que têm na pele a cor da noite

92

novos. E os mais novos buscam os ensinamentos dos mais velhos. O ensinamento não

tem hora marcada. Todo saber está imanente em tudo que está para ser desvelado.

Insistimos que a escuta é o caminho para aprender a tornar-se efetivamente um ser

participante da comunidade. As histórias mudam de endereço, mas a força e a dimensão

da re-existência que recebemos pela feitura são as mesmas. O ato da iniciação se

constitui num processo de toda vida e é igual em todos os lugares. É um processo como

dádiva incondicional daqueles que como pais e mães de santo generosamente nos fazem

à sua própria imagem e semelhança.

3.15 EBOME DETINHA: en-sinando e desvelando a alma do outro

A convivência numa comunidade de terreiro não é simples. Somos todos muito

parecidos tanto nas virtudes como nas possíveis deformidades. Somos todos, uns

espelhos dos outros e temos consciência deste fenômeno. Então, com-vivência é a

palavra mágica de uma comunidade de terreiro. Aliás, de qualquer comunidade. Toda

com-vivência é desafiante. O aprendizado tem que ser rápido. Logo que cheguei à

comunidade esta foi a minha primeira lição com dona Detinha. Era assim que a tratava

logo que cheguei ao Afonjá. Com o tempo ela foi se tornando pra mim e para Petrovich

nossa Iansã, nossa irmã mais velha no seu significado iorubá.. Ebome Detinha de

Xangô com o seu jeito de líder natural nos olhou longamente. Olhou firme pra mim e

para meu companheiro Ossóbaró pela filiação espiritual e pela confirmação como Ogan

de Ogun algum tempo depois. Ela nos olhou por inteiro e afirmou: Que vocês sejam

benvindos à familia de Xangô. Agora que vocês foram chamados para esta familia vamos

ficando por aqui. É assim, a gente vai ficando, vai sentindo o cheiro do outro pra vendo se

gosta, se é isto mesmo. Este foi um dos primeiros ensinamentos desta preceptora que

sempre ouviu e entendeu as nossas dúvidas, nossos medos e ansiedades. Sentir o cheiro

do outro. Isso nunca me saiu da cabeça. Pra sentir o cheiro do outro não é necessário

nenhum movimento. Nem precisa dizer nada é só olhar e escutar. É só ficar perto e

escutar muito. Escutar é melhor que se tem a fazer. Não precisa perguntar nada,

porque todo saber chega na hora certa. Aqui ninguém fica ignorante é só ficar perto

dos mais velhos diz Ebome Detinha.

De vez em quando ela parava um pouco como se desse um grande mergulho

dentro de si mesma, e recomeçava com toda sabedoria e vitalidade que Xangô lhe deu.

Naturalmente que esta não foi à única voz que me deu educação no axé.

Page 106: Àqueles que têm na pele a cor da noite

93

Ebome Detinha é uma senhora que se distingue pela compreensão da realidade

complexa da comunidade de terreiro. Comunidade que se apresenta como um tecido

entrelaçando muitas histórias de vida. No terreiro, nós aprendemos a conviver porque

nós nos auto-conhecemos. Aprendemos quem somos de verdade. Assim, podemos nos

vigiar nos corrigir ou não. Quando cheguei ao terreiro Ebome Detinha estava sempre

sentada diante uma grande mesa na sala da casa de Xangô, cheia de retalhos de tecidos,

rendas fitas, palha da costa para vestir suas bonecas pretas como os orixás.

Ebome Detinha aduba as possibilidades do seu fazer entrelaçando a ciência,

filosofia, tradição, arte, o ordinário, o extraordinário com as história dos orixás

atualizando acontecimentos do presente do passado, com autoridade e consciência do

que está fazendo.Ebome Detinha me en-sinou a en-sinar. Esta senhora enquanto se

mostrar no seu fazer e se oferece como um ensinamento para uma forma de vida que

faz valer a sua qualidade de mais velha implicada no seu fazer sedutor. Fazendo suas

bonecas de pano vestidas como orixá, conta histórias de cada um tornando o implícito

explícito, trazendo a tona princípios e valores na perspectiva do subjetivo de uma

realidade objetivada: o sentido de ser-sendo na comunidade.

No terreiro, o uso exclusivo de critérios racionais na interpretação dos

fenômenos não daria conta da compreensão necessária para o auto-conhecimento que

afeta as relações das pessoas entre si e com a comunidade. Através de Ebome Detinha

aprendi a compreender sem interpretar ou julgar as minhas próprias observações. Foram

as suas prosas que me fizeram compreender as festas e os principais fatos míticos que

nos afetam. São as festas, as obrigações que tecem e costuram as nossas relações com os

orixás, com os mais velhos, com os mais novos e com a comunidade.

Com isso quero dizer também do meu reconhecimento pelo fato de que ao

mesmo tempo em que Mãe Stella me fazia filha de Oxum e Ogun, ebome Detinha me

ajudava a caminhar pela complexidade dos fundamentos da religião e da convivência na

comunidade. ebome Detinha de Xangô é uma educadora nata. Na sua casa abriga

princípios africanos de convivência compreendendo a religião nas suas objetividades e

subjetividades como um espelho ancestral. Os seus ensinamentos partem do que foi

importante na sua vida no seu trajeto, tanto como mulher negra, matriarca da respeitável

família Pimentel, quanto na sua convivência comunitário-religiosa.

Conhecer Ebome Detinha no seu jeito de ser e de en-sinar foi importante para

que eu me considerasse de fato uma mestra. Alguém que ensina porque conhece a alma

do outro. Esta mestra de quem falo tem toda uma história em torno da família e da sua

Page 107: Àqueles que têm na pele a cor da noite

94

condição de ser filha de Xangô que envolve inclusive sua relação mitológica com o

comportamento do cágado, bicho símbolo da cultura iorubá, que ela mesma associa a

longevidade e a sabedoria da convivência comunitária. O cágado anda lentamente

olhando a caminho e o que e quem está do seu lado. Ela se encolhe como o cágado a

qualquer sinal que possa lhe causar desagrado ou mal estar. Afirma que fala pouco para

não engolir o vento e enjoar. Os africanos escravizados segundo sua compreensão não

falavam durante a viagem para não enjoar. Diz ainda que é preciso de vez em quando

parar de falar para não perder o controle de si próprio. ,

Decerto que ela não se inspirou no pensamento deleuziano, quando subtende nas

suas teses que o homem permanecerá para sempre entre o silêncio e a palavra. Vivendo

um contexto cultural bem distinto do mundo globalizado ela se encarrega de fazer a

tradução histórica, cultural e religiosa tecendo a existência de dois mundos. Desconfiada

das verdades absolutas, reconhece na filiação espiritual uma infinidade de interpretações

pessoais que lhe oferecem o chão e o prumo.

Revendo as suas prosas, entendo que a comunidade de terreiro não artificializa

os acontecimentos. Todo acontecimento tem sua origem no cotidiano do lugar. Os

símbolos via de regra, não são símbolos representativos de entidades. Os símbolos são o

que representam. Assim o Afonjá não representa a terra de Xangô. O Afonjá é a terra de

Xangô. A terra do Afonjá é lugar sagrado.

Ebome Detinha se destaca das outras pessoas pelo fato de enquanto vai

construindo o seu artesanato de bonecas, vai compondo sua própria inteireza e

contribuindo para a construção de nossas identidades. No seu fazer, ela emite seus

pensamentos, suas memórias que vão bem, além do ato de comercializar suas bonecas

vestidas de orixá. Logo que a conheci ela foi aos poucos falando detalhadamente das

subjetividades dos elementos que compõem as vestimentas de seus bonecos à

semelhança da roupa do orixá. Destes encontros nasceu a inspiração para o texto Prosa

de Nagô para formação das educadoras da Escola Eugenia Anna na comunidade Afonjá.

Compartilhamos do seu silêncio desvelador. O silêncio que nos coloca dentro de

nossa própria essência. As suas bonecas nos ajudam na compreensão do viver

comunitário e de cada um de nós em particular. Percebe-se que há uma intencionalidade

velada nas suas narrativas míticas carregadas de ensinamentos motivados pelo jeito

africano de ser. O seu jeito contribui para o equilíbrio, para a motivação que se

apresenta neste meu estudo como motivação genuína. O seu fazer incluiu um jeito de

falar como um monólogo bem do estilo do povo velho no santo derramando saberes,

Page 108: Àqueles que têm na pele a cor da noite

95

fecundando novas possibilidades de estar no mundo para os que se aproximam da

religião. A sua fala detalhada está sempre a desvelar o ser humano na imagem e

semelhança dos orixás. Tecendo histórias de vidas, ela vai reunindo valores culturais

existentes em cada detalhe que compõe suas bonecas. Ebome Detinha comenta fatos do

passado e do presente, faz analogias para o autoconhecimento estimulando a

compreensão da essência de cada ser e da memória do grupo ao qual pertencemos.

Transitando pela memória do lugar trazendo suas narrativas míticas, ela talvez

não se dê conta que nas suas falas ou nos seus escritos há uma real necessidade de en-

sinar e autoconstruir-se.

Senhora de uma mestria particular, a fala de Ebome Detinha deixa significados

no seu objetivo de transmitir princípios da tradição que refletem o pensamento do grupo

que testemunha o mundo na sua dinâmica. Ela é personificação da memória coletiva.

Ela é consciente de suas formas de seus contornos e de seus equívocos. Constantemente,

ela afirma: - Os velhos também erram. Os novos precisam ficar atentos para lembrar aos

velhos quando eles estiverem esquecidos.

Assim, ela vai projetando em cada um a condição de um ser conseqüente na

comunidade. A fala de Ebome Detinha é atemporal, e só pode ser compreendida na sua

incompletude. A sua fala cria possibilidades e o desejo de interpretação aprendente do

movimento dinâmico dos acontecimentos comunitários que se organizam e se renovam

porque se repetem no cotidiano. Neste sentido sinto-me acolhida pelo pensamento de

Macedo quando afirma que: Como seres-no-mundo estamos, estamos encharcados de cultura, portanto, é mister lidar com a natureza ontológica do ser e a natureza epistemológica do conhecer, assunto caro a uma hermenêutica relacional. Uma conseqüência natural desta inserção hermenêutica de cunho relacional é a certeza de que o conhecimento é aquilo que criamos interativamente, dialogicamente, conversacionalmente, no âmago da nossa cultura e de todas as indexalidades sociais nas quais estamos implicados (MACEDO, 2000, p. 75).

Uma comunidade de terreiro funciona como um laboratório de conhecimentos e

de histórias. São muitas histórias, muitas biografias singulares que se cruzam criando

outras histórias que se juntam à memória coletiva do lugar. Dona Detinha não conta

história de sofrimento. Sua história é uma história de emancipação de quem continua se

formando, fazendo caminhos para si e para os outros. História de quem sabe o que faz e

porque faz. É alguém que se autoriza a falar e defender o pensamento do grupo ao qual

pertence. A sua vida pessoal está imbricada com a história representativa não somente

do Afonjá, mas representativa de outros segmentos da comunidade negra. Ela é ao

Page 109: Àqueles que têm na pele a cor da noite

96

mesmo tempo uma religiosa uma artesã uma ensinante, espécie de secretária da casa de

Xangô conselheira mãe, avó e bisavó. A sua história de vida confunde-se com a história

da comunidade, acumulando e condensando experiências particulares da memória

coletiva que passam por suas narrativas carregadas de acontecimentos e novidades.

O desafio do exercício a que me proponho inclui a decantação dessas suas

experiências alquímicas na sua relação com o povo da rua, com os visitantes

principalmente com os mais novos do terreiro além de seus pares quando se aconselham

mutuamente. A sua palavra transmite, transforma e põe cada um de nós numa prontidão

para os acontecimentos inesperados. Ebome Detinha consciente da sua importância na

comunidade, fala, escuta até compreender completamente o que escuta e nos instiga a

este exercício como forma de com-vivência.

É possível que ela mesma não se dê conta da sua importância na construção de

nossas identidades na relação com a comunidade e com os orixás. Como um ser

itinerante no terreiro já tem percorrido um longo caminho se consideramos que ela

viveu a presença de duas mães de santo. Foi ela com a Ebome Maria de Iansã que

acolheu Mãe Stella nos seus primeiros momentos de Iyalorixá.

Importante este direito de memória, que temos guardado pela fala que se repete

de geração para geração é o que define a nossa ancestralidade na comunidade de terreiro

como um bem comum. Memória que revive, que redimensiona positivamente a cultura

do lugar, a história, o território e suas realidades sociais e psicológicas acumuladas que

ficam como uma sucessão de narrativas que não se perdem.

Pela memória e pela tradição, compreendemos que o pertencimento a uma

comunidade de terreiro não é transitório nem eventual, nem necessariamente presencial;

mas é para sempre. Com Ebome Detinha aprendi a me pensar como matéria porosa ou

como a água matéria moldável plástica que se transforma com necessidades que se

apresentam. Sou filha de Oxum. Pela iniciação aprendi a cuidar do meu corpo como

morada do meu orixá sem fazer a diferença entre a matéria humana e o espiritual.

A maturidade religiosa passa então pelo cuidado de si do outro mesmo e pela

sensibilidade em aproveitar todo fragmento de saber que se projeta em forma de frases

ou palavras decerto não aleatórias. São sempre palavras desveladoras. São partículas de

sabedorias esparramadas e recolhidas ao longo da experiência religiosa. Assim cada

palavra de Ebome Detinha tem sido pra mim como miçangas preciosas que fui juntando

até se transformar num fio de contas de Oxum que carrego perto do coração porque é o

Page 110: Àqueles que têm na pele a cor da noite

97

que dá identidade e compõe o meu jeito de ser-sendo na minha comunidade e no

mundo.

3.16 A ESCUTA DA COMUNIDADE: dialogando com as falas e o não dito.

No princípio eram falas, e a escuta de pensamentos que assoberbavam os meus

ouvidos e todo meu ser. Falas expressão conjuntiva de sentimentos, pensamentos,

intuição, razão e sabedoria. Juntar tudo isso foi uma tarefa criadora na implicação do

sentido da comunidade na Escola Eugenia Anna. No próximo capítulo apresento o texto

teatral Prosa de Nagô. Para elaboração deste escrito utilizamos o artifício de

transformar pessoas da comunidade em personagens. Este foi o modo que encontramos

para abordar aspectos da história, tradição e da cultura afro-brasileira. A arte

teatralizante de Carlos Petrovich ganhou a inspiração de Freire, que afirma ao ser

comparado a um cantor famoso:

É no fundo sou um pouco isso. Um educador aprende a se mover no palco como artista. Não quero dizer com isso que fiquemos diante do espelho ensaiando a forma de mover as mãos... Isto surge a cada momento. Mas o educador deve atender a esta dimensão de se mover com seu próprio corpo, de quase cantar quando fala. Quando mais compreendemos isso, melhor podemos nos comunicar (FREIRE, 2004, p. 137).

Isto implicou em juntar à escuta, aspectos de princípios e práticas do pensamento

africano a com - vivência, ao fazer acadêmico, à investigação e docência. Portanto, na

efetivação do primeiro momento da formação, para o Irê Ayó foram consideradas as

vozes da comunidade interagindo com outras vozes numa espécie de síntese político-

cultural. A experiência nos proporcionou compreender o que ainda nos diz Freire: “A

síntese cultural não nega as diferenças entre uma visão e outra, pelo contrario, se funda

nelas. O que ela nega é a invasão de uma pela outra. O que ela afirma é o indiscutível

aporte que uma dá à outra” (2004, p. 215). Neste sentido, a escuta no terreiro é

atemporal e as falas podem responder a perguntas remotas, porque a cultura do lugar

também desconhece a fragmentação e a finitude do tempo. Pensar o sentido do ser é escutar a realidade nos vórtices das realizações, deixando-se dizer para si mesmo o que é digno de ser pensado como o outro. O pensamento do ser no tempo das realizações é inseparável das falas e das línguas da linguagem com o respectivo silêncio. E se dão muitas falas. A fala da técnica, a fala da ciência, a fala da convivência, a fala da fé, a fala da convivência,, a fala da arte (HEIDEGGER, 2002, p.15).

Page 111: Àqueles que têm na pele a cor da noite

98

O diálogo, a escuta, a escrita e a leitura dramática aproximou a cultura da

comunidade com a escola, incluindo técnicos da Secretaria Municipal de Educação e

Cultura, pais, crianças e observadores. O barulho do silêncio também se fazia presente

na escuta. Ou como assevera Heidegger: “a escuta é a dimensão mais profunda e o

modo mais simples de falar. O barulho do silêncio, o sentido do ser chega a um dizer”

(2002, p. 15).

Sem perder de vista a escrita criadora, a leitura dramática do Prosa de Nagô

aconteceu com grande curiosidade, silêncios e descobertas das pessoas da comunidade.

Cada um buscando as suas falas e jeitos interpretados por estudantes da Escola de

Teatro da UFBA, dirigidos por Petrovich. Emocionados, os membros da comunidade

revêem as suas ensinâncias e aprendências.

O povo de santo não esquece o que aprendeu com os seus mais velhos. Eles não

se afastam da tradição. Eles não aprendem olhando para fora de si mesmos.

Aprendemos lembrando conhecimentos dos ancestrais. Possuímos uma espiritualidade

enraizada na cultura africana tradicional. Isto significa que, enquanto participante da

comunidade, estaremos sempre aprendendo ao longo da vida. Aprendemos com nosos

pares ou com os mais experientes que se valem de histórias de vidas, provérbios e mitos

vivenciais e se constroem en-sinamdo os menos experientes. Formamos conhecimentos,

tecendo as prosas que vão se repetir infinitamente. Prosas de pessoas que são como

arquivos vivos. Suas falas ajudam na compreensão da história que pode ser conhecida

através dos mitos cotidianos que não se deixam aprisionar num passado estagnante. A

nossa busca, portanto, é dar um passo a frente do que é dito e nos en-sina. Santos nos

diz que: Falta o discurso coerente, pois o discurso incoerente, fragmentado e analiticamente indigente já existe. Os próprios intelectuais ainda buscam com as variáveis adequadas para escrever essa pedagogia do urbano que codifique e difunda, em termos didáticos e de maneira simples, o emaranhado de situações e relações com que o mundo da cidade transforma o homem urbano em instrumento de trabalho e não mais em sujeito. Entretanto, todos os dados estão praticamente em nossas mãos, para tentar reverter a situação (SANTOS, 1999, p. 133).

O texto Prosa de Nagô, uma construção coletiva de pensamentos e falas de

todos os tempos, que nos ajudou na possibilidade do reconhecimento de nós mesmos e

da pedagogia da comunidade. A palavra como um império universal nos retrata e nos

constrói. É aí que reside a perspectiva hermenêutica na educação que passamos a

exercitar e que se mostra no seu caráter dialógico e na sua radicalidade que não é linear

nem absoluta.

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99

Crianças em Osogbo- Nigeria e crianças da comunidade Opo Afonjá- Salvador na Bahia. É como se o Atlântico fosse um córrego unindo duas aldeias.

Page 113: Àqueles que têm na pele a cor da noite

100

4. PROSA DE NAGÔ

4.1 COM A PALAVRA MÃE STELLA

Inicio da Leitura dramática – Dia 17 de junho de 1999

“Atendendo a vontade da comunidade, a Secretária de Educação, Profa. Dirlene Mendonça e as professoras da nossa escola Eugenia Anna dos Santos, conversaram entre si e resolveram conversar conosco. Era o que esperávamos. Encarregamos dois educadores da nossa comunidade Vanda Machado uma olorixá e o ogã Carlos Petrovich para conversarem sobre o que e como poderia ser feito como educação para as nossas crianças. Eles se entenderam e compuseram este trabalho, Prosa de Nagô. Eles tratam da tradição cultural afro-brasileira, como modo de inserir aspectos de uma educação que a sociedade desconhece. Como construir a identidade e a cidadania brasileira, conferindo ao mesmo tempo, o conhecimento, o entendimento das ciências e a compreensão da nossa cultura? Com este trabalho acreditamos que os professores estarão capacitados para ampliar o currículo da escola, uma vez que o tema é tentadoramente fácil de ser posto em prática. Poderão também ajudar as crianças a compreender a sua identidade e até se definir profissionalmente, formando para isto uma consciência de projeto pessoal de vida.

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101

Os autores deste trabalho, duas pessoas sensíveis e iniciadas, foram inspirados por Olorum-Deus, para confecção do texto, onde dizem: o que está no Orun e no Aiyê, não está na educação sistêmica. Agora poderá estar. Este trabalho é “um ponto de partida”

Maria Stella de Azevedo

4.2 MISTÉRIO, FILOSOFIA, CIÊNCIA, ARTE E ALEGRIA

Compreendemos que o processo cultural no contexto do Ilê Axé Opo Afonjá é

afro-brasileiro e é transmitido pela oralidade. Oralidade que corresponde à natureza da

memória de arquivos vivos de gerações sucessivas. Cada geração transmite a mesma

força vital, em forma de relato, mitos, canto, dança, poesia, ritmo e emoção. É como se

a comunidade, não podendo voltar a África, recriasse uma África livre no Brasil,

continuando a história dos seus ancestrais. A cultura do Afonjá, portanto, não é algo que

pode ser isolado da vida. Também não se trata de nenhum conhecimento especializado

construído e mantido maquinalmente. São valores partilhados como parte de um

processo que se caracteriza, também, por procedimentos das ciências da vida.

Finalmente, a identidade dos indivíduos da comunidade está intimamente associada ao

mistério do pensamento africano, à filosofia, à ciência, à arte, a cultura local e à alegria

de viver. Alegria que atinge a sua culminância, porque as entidades protetoras da

comunidade celebram a vida cantando e dançando com seus filhos.

Por cultura local, entendemos formas de comportamento que a comunidade

unida por uma tradição comum, vem transmitindo a seus filhos. Tradição comum pela

memória coletiva que contém a religião e formas de relacionamentos pessoais, maneira

diferenciada de compreender o mundo, de lidar com a morte e com a ancestralidade.

Inclui também o cuidado com a educação dos mais novos hábitos e costumes do

cotidiano. Hábitos que se mostram no modo de preparar e consumir alimentos, modos

de dormir, formas de administração do tempo, sobrevivência econômica e celebrações

comunitárias. Isso significa que estamos diante de uma invenção pedagógica nascida da

nossa caminhada pessoal e dos encontros com pessoas nas suas vivências e celebrações

da comunidade Afonjá.

São vivências que compreendem a comunidade como um mundo de sujeitos.

Sujeitos carregando suas histórias como indicação de possibilidade de

autoconhecimento e consciência de seus saberes. Esta também é uma condição fundante

para a compreensão de entidades míticas que nos antecederam numa ocasião atemporal

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102

como homens e mulheres, criadores civilizatórios e parte da natureza como território

sagrado. As vivências pedagógicas reinventam a tradição cultural da comunidade,

identificando possibilidades de mediação para o cuidado, a solidariedade e relação entre

o sentido de ser, pertencer e participar dos acontecimentos comunitários. O processo de

concepção deste projeto pedagógico, portanto, deve emergir da elaboração de

experiências, tradições e saberes com a possibilidade de interferir na formação de

educadores considerando itinerâncias, caminhada heurística, o espaço-tempo histórico

que contém a tradição, a memória e a historicidade do lugar. Toda esta bagagem será

tomada como ferramenta para uma educação polifônica, polissêmica, e polilógica capaz

de dar significação a educação como um ato de aprender na vida.

4.3 SEXTA-FEIRA É DIA DE BRANCO

Início deste trabalho, sexta-feira, três horas da tarde; professores, pessoal de

apoio e, representantes da comunidade, em círculo na sala Odé Kaiodê, na Escola

Eugênia Anna, esperavam a reunião com Mãe Stella.

Não tardou, ela apareceu na casa de Xangô, dirigindo-se para a escola. Era uma

avaliação no final do ano letivo de 1997.

Antes de começar a reunião, aparece uma das professoras elegantemente vestida

de preto. Ela se desculpou pelo pequeno atraso, alegando ser o dia do seu aniversário.

Sentou-se perto da Ebome Luizinha de Oxalá, que vestida de branco fazia o contraste

ficar ainda mais acentuado. Mãe Stella falou pausadamente para a aniversariante:

Mãe Stella – Que dia é hoje professora.?

Professora. – Sexta-feira. Hoje é dia do meu aniversário, Mãe Stella.

Mãe Stella – Muito bem professora. Meus parabéns.Você está muito elegante.

Muito bonita mesmo. Mas você já reparou que às sextas-feiras, em nossa comunidade,

nós vestimos branco?

Professora – Sim Mãe Stella mas...

Mãe Stella – Mas desde criança ouvi um adágio popular que diz: "em Roma

como os romanos." Você não precisa ficar igual a gente. Entretanto, trabalhando numa

escola como a nossa, dentro de uma comunidade de terreiro, vestir preto, sexta-feira é,

no mínimo, destoante com o nosso ambiente. Qualquer cor que a senhora vista está

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103

aprovada menos preto ou vermelho. Agora professora, na festa de Oxalá, você está

devendo duas galinhas, está certo?

Professora - Sim Mãe Stella, sim Mãe Stella.

Esperamos a festa de Oxalá daquele ano, a professora não apareceu e nem

ofereceu as galinhas.

4.4 DESCAMINHOS DA ESCOLA: criando veredas e abrindo porteiras

Este diálogo aconteceu de fato. Nós não sabemos se a professora deixou de

vestir preto às sextas-feiras, mas entendemos que se fazia necessário o esforço para se

observar melhor a relação terreiro/escola.

Da frente da casa de Xangô podia observar que as professoras atravessavam a

porteira, incontinentes. Sem olhar para os lados, entravam na escola, rápidas como

flechas. Por certo a escola era compreendida como um texto sem contexto. Neste caso

era ignorada a riqueza de informações que o terreiro oferece com sua geografia, suas

narrativas, hábitos e costumes. Era ignorado tudo que poderia ser transformado em

referencial de motivação genuína para a mediação de aprendizagem significativa para

crianças que vivem sua identidade ancestral.

A relação entre a identidade ancestral dos indivíduos dessa comunidade, seu

orixá e seus elementos rituais, acontece em vários níveis. Se tomarmos como exemplo a

relação do orixá Ogun, seus filhos, o ferro ou sua árvore sagrada, podemos constatar o

seguinte: sendo Ogun também associado ao mistério, a determinado metal, a

determinada planta ou árvore, os seus filhos, com estes elementos, acreditam manter

sempre uma relação efetiva de confiança, proteção influindo inclusive nos seus projetos

de vida. Ogun é considerado o orixá protetor dos ferreiros, agricultores, cabeleireiros,

açougueiros, caçadores, pescadores, engenheiros, militares e médicos cirurgiões, e de

todos que trabalham com o ferro

Esta é uma relação identitária que pode ser considerada criativa e ou criadora.

Perdê-la, significa cair no vazio ou, no que Jung considera possível perda da alma.

Dizendo de outro modo, princípios e valores, símbolos divinizados, são passados dos

mais velhos para os mais novos como valores que fazem parte de uma herança imaterial

comum como memória coletiva implicando em alguns padrões de comportamento.

Deste modo, o trabalho proposto deve ser incluído e relacionado com o processo de en-

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104

sinar que dá ênfase à motivação, à imaginação criadora das crianças, com princípios de

autonomia, liderança e solidariedade como valores da cultura local. Por extensão

necessária, devem ser incluídos, também, conhecimentos e a participação do negro na

história e cultura no mundo da diáspora.

Com esta perspectiva, nos colocamos a caminho de promover a interação

comunidade/escola. Para tanto, se fazia necessário que os educadores compreendessem

a cultura do lugar. A questão, portanto, era encantar os docentes para esta mediação.

Instigá-los para buscar, procurar, e pesquisar e compreender com as crianças os

referenciais culturais da comunidade. Referenciais como motivações, tanto para

formação de objetivos atitudinais quanto para os cognitivos transformando a experiência

numa teia integrada de saberes incluindo os conteúdos das ciências.

Temos a nosso favor uma comunidade receptiva e o apoio de Mãe Stella que não

perde de vista uma educação que contemple as nossas crianças negras, moradoras do

terreiro ou não. Agora, é cuidar e buscar soluções! Como reverter o processo? Como

criar possibilidades para motivar adequadamente as nossas educadoras no caminho da

compreensão e mediação de en-sinar as crianças na sua cultura matricial? Agora é

caminhar fazendo outros caminhos.

A Escola Eugenia Anna abriga trezentos e cinqüenta estudantes e mantinha

convênio um com a Secretaria de Educação do Estado, e outro com a Secretaria

Municipal de Educação e Cultura. Denunciado o convênio com o Estado ficou

formalizado o apoio da Prefeitura. A instituição se manifestou aberta ao acolhimento do

projeto que contempla a consideração pelo ensino da História da África e cultura afro-

brasileira na Escola Eugênia Anna, nas perspectivas desejadas pela comunidade

considerando que a escola já se constitui como espaço de re-existência cultural pela sua

própria localização.

A Secretaria Municipal da Educação e Cultura (SMEC) da Cidade do Salvador

está municipalizando a Escola Eugênia Anna firmando uma parceria de cooperação

técnica com a Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opo Afonjá, na pessoa de Vanda

Machado e do arte educador comunitário Carlos Petrovich, com a finalidade de

participar com o fornecimento de materiais didático-pedagógico e necessários ao

desenvolvimento das atividades da unidade escolar bem como garantir um trabalho

articulado para definição de um currículo que atenda a realidade identificada na

comunidade, visando desenvolver uma ação transdisciplinar no currículo institucional

oferecido pela SMEC. Ação transdisciplinar que é fundamentalmente a transposição de

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105

referenciais da memória, história e cultura tradicional afro-brasileira através de

atividades mediadoras de alcance pedagógico.

Ao estudarmos o assunto, nos demos conta de que o trabalho da construção dos

instrumentos pedagógicos teria que caminhar ao encontro da identidade cultural

brasileira referencializada por valores da ancestralidade africana. A idéia era formar

educadoras de um jeito que elas próprias se percebessem no contexto como pessoa,

considerando a sua itinerância, as possibilidades de autoconhecimento e compreensão

das vivências com o povo da comunidade e .tudo que fosse possível relacionar com a

Escola Eugênia Anna.

A nossa função, portanto, foi escutar muito, o que é plenamente legitimo para o

povo de santo. Esta é uma prática legitima dos que se aproximam das comunidades de

terreiro. Finalmente, elaboramos uma seqüência de diálogos e cenas, onde personagens

como os diletos portadores da cultura local dialogam com as educadoras da Eugenia

Anna.

Esperamos com esta ação estabelecer uma ponte entre a cultura da comunidade e

a criação de vivências pedagógicas. Vivências pedagógicas que, ao mesmo tempo,

possam estar associadas à construção de uma identidade ancestral e à formação de

cidadãos autônomos coletivos e solidários.

A equipe de assessores e professores, que conosco divide a responsabilidade de

realizar a entrega ao terceiro milênio, de crianças e adultos com identidades verdadeiras,

é que dedicamos toda energia viva deste espaço sagrado. Depois de nós, histórias de

liberdade serão contadas durante longos e longos anos. E um dia, seremos nós, os de

hoje, os ancestrais dos que virão amanhã.

4.5 A FALA COM A COMUNIDADE AFONJÁ

Início da formação das educadoras na Escola Eugênia Anna dos Santos, da

comunidade de Terreiro do Ilê Axé Opo Afonjá no dia 17 de junho de 1999. Estão

reunidos, o pessoal de apoio, educadores e educadoras, representantes da comunidade,

da SMEC/PMS, pais, alunos e visitantes de outras escolas. As pessoas ajudam na

acomodação dos visitantes e do povo da comunidade. Atores convidados da Escola de

Teatro dão inicio ao trabalho teatralizado com a leitura do texto Prosa de Nagô:

Page 119: Àqueles que têm na pele a cor da noite

106

Narrador – (Entra solene e lê o Diário Oficial) - Primeira reunião do ano letivo de

1999.

A Prefeitura do Salvador acaba de municipalizar a Escola Eugênia Anna dos

Santos, e parte para realizar um projeto de ensino de cultura afro-brasileira, em

cooperação técnica com a Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opo Afonjá, representado

pelos educadores Vanda Machado e Carlos Petrovich. O documento assinado com a

SMEC tem como finalidade garantir um trabalho articulado, para definição de um

currículo que atenda à realidade identificada, articulando-se, também com o Núcleo de

Estudos de Teatro Popular Técnica de Espetáculo e Cultura Afro-brasileira - NET POP

da Escola de Teatro da UFBA, visando realizar o Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó

com arte e alegria.

Professora – (Aponta soletrando) O que? I iiirê Aaa ayó? O que é isto gente?

Será que vamos ter que falar em africano? Meu Deus.. Que língua é esta? É a língua que

o povo daqui fica cantando e falando aí pelo terreiro?

Diretora – Olha gente, antes de começar a discutir qualquer assunto, gostaria de

compartilhar uma conversa que tive com Mãe Stella. Um dia desses, ela me chamou na

casa de Xangô...

Professora – já sei! Avisou que vai fazer o seu santo. Hê parrêi ê50. Quem vai

ser a mãe pequena51? Todos (risos).

Diretora – Aceito a brincadeira. Mas aqui todo mundo sabe que Mãe Stella não

trata das coisas da religião desse jeito. Estou aqui, há quase vinte anos e, nunca fui

chamada para tratar desse assunto. Sempre tratamos de assunto da escola

Professora – Tudo bem. Então vamos lá. Vamos ao que se trata! Quanto

mistério!...

Professora – Já sei, então é a supervisora! Ora iê iê ô!, Vamos saudar

Oxum.Ora iê iê ie (Risos, risos).

Supervisora – Podem brincar à vontade, mas o certo é que Mãe Stella entende

muito bem o nosso lado profissional. E respeita a opção religiosa de cada um. Agora,

quando eu preciso vou lá mesmo. Ora se vou? Porque não!

Diretora – Olha aí, gente! Agora vamos voltar ao sério. Mãe Stella me

perguntou como vai a Escola? Como vai a questão do ensino? Se estamos considerando

50 Saudação a Iansã 51 Mãe criadeira, pessoa responsável pelo (a) iniciado (a).

Page 120: Àqueles que têm na pele a cor da noite

107

que a escola funciona dentro de uma comunidade de terreiro? Se estamos considerando

os acontecimentos da comunidade?

Professora – E daí? A escola não é da Prefeitura?

Todos (falam ao mesmo tempo num burburinho incompreensível).

Professora – (levantando-se) É da Prefeitura sim, mas a coisa está mudando, há

muita gente interessada em nossa cultura, quero dizer da cultura do terreiro. Tem hora

que o terreiro está assim de branco... Até o Ministro Welfor veio passear aqui. O que foi

mesmo que ele veio fazer aqui? ( risos).Ele comeu aqui na casa de Xangô, bebeu água

de côco, e tudo mais. Eu vi. Todo mundo viu. (risos) Foi ou não foi?

Professora – Espere aí, criatura. A conversa é outra.

Professora – Outra coisa? Oxente!...

Diretora – Mais ou menos! Vejamos! A Escola Eugênia Anna é do terreiro,

prestamos satisfação também à comunidade e à Sociedade Cruz Santa. Mas nós somos

pagos pela Prefeitura e, portanto, seguimos a orientação da Secretaria Municipal. Tem

que obedecer primeiro à prefeitura.

Vanda – Bem, a proposta é sermos de agora em diante um único grupo. Um

grupo de formação que pretende compreender o pensamento do povo do lugar, como

eles aprendem e como ensinam uns aos outros, e assim pensar melhor um outro jeito de

ensinar as nossas crianças.

Professora – Agora tem uma coisa que eu quero dizer logo. Eu sou católica.

Não sei nada desta religião. (Falando para o lado, um pouco mais baixo) E não quero

saber.

Vanda – Isto é compreensível, esta é a sua crença. Mas não é religião que vamos

ensinar as crianças.

Professora – Como não? Religião também é obrigatório no currículo. Continuo

afirmando, não sei nada de religião.

Supervisora – E tem uma coisa. Os terreiros são diferentes. Parece que este é de

origem Ketu não é mesmo? Há muitos outros e de outras nações; tem jêje, angola e até

umbanda. É muito estudo. Será que vamos dar conta de tanta coisa?

Vanda - É justamente por este um dos motivos para que não se trate de ensinar

religião. Nós vamos falar é de história e cultura afro-brasileira e principalmente das

raízes históricas que propiciaram o nascimento das religiões de matriz africana.

Petrô – Vamos conversar com as nossas crianças sobre a herança dos nossos

ancestrais que viveram há muito tempo no continente africano, criando civilizações e

Page 121: Àqueles que têm na pele a cor da noite

108

muitas histórias. Histórias daqueles que já se foram para Orun, daqueles que vieram da

África nos primeiros tempos e deram suas vidas na construção das riquezas do Brasil.

Professora – Aqui mesmo, Vanda já nos contou que houve príncipes e rainhas

que foram destronados pelo tráfico de escravos. História de negros que poupavam para

comprar suas alforrias. Histórias de negros pintores e escultores. E aquela história do

Egito ser também continente africano. Eu sempre soube que o Egito fica no Oriente

Médio. Onde é mesmo o Oriente Médio? Oriente Médio não é continente. Imagine

quanto problema para não dizer que o Egito como berço da civilização ffica no

continente africano. Não vou mentir, no princípio pensei que Vanda estava inventando

algumas coisas. (risos) Não tudo... Mas algumas coisas foi difícil ...compreender para

acreditar. (risos)

Vanda – A bem da verdade, nós vamos fazer muita coisa de modo diferente.

Primeiro, vamos saber quem eram nossos ancestrais antes dos europeus chegarem a

África. Outra coisa nova é tomar o próprio ambiente da comunidade com suas histórias;

seus sons, suas formas e cores, as árvores, e tudo o mais que nos cerca como coisas que

precisamos compreender para ensinar às nossas crianças.

Professora - Eu mesmo acho que vai ser fácil. Eu já ensinei a história da

escravidão, falei dos maus tratos dos senhores de engenho, dos navios negreiros, da

Princesa Isabel, comemoro a semana do folclore...

Vanda – Certamente que todos nós já trabalhamos um pouco com a história

desse jeito. Que tal a gente começar tudo pela história dos primeiros ancestrais desta

comunidade? (mostra onde tem uma cruz). Vejam bem ali esta Ilê Ibó Iku, a casa de

culto aos ancestrais. Eles que prestaram grandes serviços à comunidade.

Professora – O quê? Deus me livre (se benze), vocês vivem dizendo pra

ninguém ir lá. Lá não é o lugar dos mortos e dos defuntos? Eles estão lá, não é?

Supervisora - No Ibó é um lugar apenas de culto. Ali são prestados homenagens

e reverências aos eguns, que são os espíritos ancestrais. Lá estão as mães de santo e

todos que já foram para o Orun.

Professora . – Gente! Como nossa supervisora está sabida!

Professora – Já vi tudo! A vida dela é conversar com Maria de Iansã e com

Tutuca. (Risos).

Diretora – É isso mesmo. Elas são filhas desta comunidade e sempre me

ajudaram a compreender algumas coisas aqui do terreiro.

Page 122: Àqueles que têm na pele a cor da noite

109

Professora – Isso mesmo. Ainda tem Nidinha e Luizinha! Porque não escutar o

que eles sabem e podem nos ajudar?

Diretora – Muito bem. Já estamos melhorando as idéias. Vamos voltar ao

assunto, minha gente. O assunto é...

Professora – Já sei. Já vem mais trabalho...(Risos)

Supervisora – Quem sabe um trabalho mais interessante para as crianças e para

nós mesmas?

Vanda. – Isto mesmo. O esforço é para compreender a concomitância dos fatos,

é relacionar tudo que fizermos com a vivência e história da comunidade, com a nossa

história, a história do Brasil e a História da África. Assim, vamos estar sempre contando

uma história de bem perto de nós e outro de bem longe. Uma história que está

acontecendo agora e outras histórias que aconteceram há muito tempo.

Professora – Começo a entender que de agora em diante vamos estar sempre

com atenção a todo este espaço e com todos os acontecimentos. É isto que se chama de

motivação? Será que é isto?

Técnica da SMEC – Sim. Como motivação, ponto de partida para novas

aprendizagens. Como vocês percebem este jeito de trabalhar com as crianças? É bom

que cada um se posicione, tire suas dúvidas e dê a sua contribuição agora! O que

acham?!

Vanda – Acredito que já podemos começar pensando em um currículo com a

possibilidade de relacionar a cultura desta comunidade com vivências pedagógicas,

incluindo a história como também a matemática, ciência, geografia, linguagem,

incluindo todas as linguagens das artes... Então, vamos conversar sobre estas questões?

Narrador (lê a cartaz)

Ebome Luisinha – Eu não gosto de falar. Quando vou falar fico toda

emocionada. Mas quero ajudar em tudo que eu puder.

Professora – Começo a pensar que uma nova postura de nossa parte pode

contribuir para que se mantenha o respeito e a tradição deste lugar. Se a religião não for

respeitada; bem tratada, até nós vamos ser mal vistas. Vocês sabem do que estou

falando... Vocês sabem que tem gente que torce o nariz pra gente, não é? Que tem gente

na Secretaria que faz orações bem direcionadas. É só a gente aparecer nas reuniões. E

sabe o que eles pensam, de verdade? É que o povo aqui é bando de negros primitivos e

Page 123: Àqueles que têm na pele a cor da noite

110

de cultura inferior. Tenho muitas dúvidas. Quem nos apóia de verdade? E qual é mesmo

a verdadeira intenção?

Petrô – Ai é que está o problema. O sistema de ensino ainda não apresenta

informações significativas sobre os nossos ancestrais indígenas e negros e sobre

aspectos da nossa história e cultura que foram sonegados por estudiosos racistas e

etnocêntricos.

Professora – Pois é gente, eu até já li alguma coisa no livro da Professora Ana

Célia. É sobre o livro didático. No livro didático brasileiro o negro é desvalorizado,

desqualificado e subalternizado. Está sempre em último lugar ou simplesmente não

existe. Onde já se viu?

Professora – Está tudo bem, mas parece que temos um problema. Estou

estudando há muito tempo e nunca aprendi nada sobre o que está se falando ou fazendo

aqui. Nem nas universidades se ensina assim. Vamos enfrentar uma barra lá fora. Eu

ainda não sei como me defender. Não sei como defender este trabalho.

Professora – Nem eu. Mas vocês nem sabem como eu estou gostando deste jeito

de contar e descobrir a nossa história.

Vanda – Pois é. E não precisamos ir longe não, minha gente. A África começa

aqui no Ilê Axé Opo Afonjá. Nossa escola está dentro de um pedaço de terra que é um

território síntese do continente Africano. (Palmas de todos).

4.6 PROSA DE NAGÔ I

A primeira parte do texto foi elaborada como instrumento introdutório para

compreensão da necessidade de compreender o pensamento africano recriado na

comunidade com a finalidade de introduzir aspectos da cultura afro-brasileira na

educação das crianças da Eugenia Anna. No segundo momento o estudo incluiu a

história do negro antes do navio negreiro. História que precisa ser desvelada com

urgência ou continuamos vivendo a privação do entendimento histórico e cultural que

engenhosamente nos foi imposta.

Este escrito nos possibilitou o acesso de forma não preconceituosa à tradição da

comunidade, que é plena de significados próprios. Os diálogos não foram inventados e

sim recriados para o que se propõe. Quem já conversou pelo menos uma vez com um

dos nossos personagens não tem dúvidas da transposição criativa de suas falas,

Page 124: Àqueles que têm na pele a cor da noite

111

resultado da elaboração de saberes a partir de longas e pacientes escutas. Escutas não

necessariamente nesta ordem, neste mesmo dia, nem necessariamente apenas com estes

personagens. Neste contexto está embutida a possibilidade de presentificar uma parte

não cultivada da alma brasileira. Afinal, ainda estamos descobrindo quem somos nós e

qual é a nossa história. Com a Prosa de Nagô trazemos uma seqüência de diálogos e

cenas, onde os diletos portadores da cultura afro-brasileira falam aos professores da

escola da comunidade. Vejamos parte do texto que relaciona o mito à história, à ciência,

ao pensamento africano e à educação.

4.6.1 O ferreiro da vida e dos caminhos

Vanda – Conta-se que em tempos muito remotos Obatalá chamou Ogun e o

encarregou de continuar moldando os seres humanos conforme Oxalá e Nanã já haviam

iniciado. Os corpos são moldados e colocados no forno do ventre da terra. Tomando

vinho de palma, Ogun dança, canta e se distrai, retirando os copos antes que estes

estivessem prontos. Os corpos saem meio amarelados e ele os coloca em lugares bem

distantes no oriente bem perto de onde o sol nasce. Volta e coloca mais corpos no forno

do ventre da terra. Novamente ele sai canta e dança e pensa que o tempo foi suficiente.

Quando retira os corpos, percebe que estes estão esbranquiçados. Junta os corpos que

foram colocados no ocidente, portanto do lado oposto de onde o sol nasce. Voltando ao

forno para a realização da sua missão, finalmente encontrou o ponto certo para corpos

que deram origem a todo povo africano e que mais tarde foi espalhado em todo mundo.

Professora – Que história bonita. Quer dizer que somos todos filhos de Ogun.

Taí eu gostei da idéia. Fale mais dona Detinha. Fale mais de Ogun.

Dona Detinha – Também professora. Parece que compreendemos que não

estamos falando de santo assim como São José, como Santa Terezinha. É bem diferente

falar dos santos católicos e falar dos ancestrais assim como Ogun e os outros orixás.

Ogun foi e é muito importante lá na Nigéria como na África bem antiga. Ele é

considerado um rei enviado pelo Orun. Orun é como nós chamamos o mundo

espiritual.Ogun enquanto orixá se apresenta vestido sempre de azul escuro ou verde.

Como é um guerreiro, usa capacete, espada e não dispensa vestir tiras de mariô. Esta

parte de religião é mais prá gente saber do que se trata.

Professora – E a religião não é importante não, dona Detinha?

Page 125: Àqueles que têm na pele a cor da noite

112

Dona Detinha: É professora. É muito importante, mas a escola vai tratar mesmo

é da história e do pensamento do povo iorubano de quem somos seus herdeiros. Entenda

professora, como pessoa a senhora escolhe a religião que for do seu agrado. Agora

como mulher negra esta é sua história. Esta é nossa história. Tá entendendo professora.

Seu Moacir – Posso falar uma coisa Detinha? Não é porque ele é meu pai não.

Mas Ogun é considerado o pai da metalurgia, o inventor do ferro. Ogun inventou a

enxada que trabalha a terra, inventou a serra o martelo, os formões... Mas também é o

pai da espiritualidade. Ele é o que transforma porque soube se transformar. Eu gostaria

também de contar uma parte da história de Ogun pra vocês. Vocês aceitam?

Dona Detinha – Eu ia pedir justamente isto para você que é filho de Ogun.

Todos – Fazem um burburinho, com palavras de aceitação entusiasmada.

OGUN QUANDO QUERIA FICAR RICO52

Seu Moacir – Conta-se que Ogun queria ficar rico. O tempo estava passando e

ele sempre em suas andanças limpando os caminhos do mundo não conseguia nem

mesmo ter uma casa ou juntar qualquer coisa de seu.

Preocupado com a situação foi consultar o oluwo53. O oluwo olhou nos búzios e

depois de uma longa conversa, disse-lhe : Se todo seu problema for este, é fácil de

resolver. Amanhã mesmo vá ao mercado. Ande pelo mercado e com certeza seu desejo

será atendido. No dia seguinte, Ogun vestiu a sua melhor roupa e lá se foi apresentar-se

no mercado.

“Entrou solenemente no mercado. Acontece que ninguém notava a sua presença e ele foi ficando nervoso. De repente, um cachorro magro atravessou seu caminho, latindo, Ele não gostou, chutou o cachorro para um lado. Um bode estava berrando sem parar, ele não contou conversa, deu uma tapona no bicho que ele saiu rodando pelo mercado embaraçando-se nas pernas das mulheres. Uma mulher reclamou de tanta brutalidade; Ogun não gostou e ameaçou a mulher. Aí, todo mundo no mercado já estava apavorado com a desordem. E todos começaram a correr atrás daquele malcriado. Correram muito até alcançá-lo, bateram muito nele. Tomaram o pouquinho do dinheiro que ele tinha. Ogun corria de um lado para o outro sem ninguém o acolhesse. Correu, correu muito até embrenhar-se na floresta. A floresta o acolheu completamente nu e, machucado, Ogun ficou lá sozinho na floresta. Depois de muito caminhar floresta adentro, sentou-se embaixo

52Mito adaptado por Vanda Machado, com Carlos Petrovich, para o Projeto Político-Pedagógico Irê Ayó na Escola Eugenia Anna dos Santos. 53 Sacerdote que sabe ler os segredos dos búzios.

Page 126: Àqueles que têm na pele a cor da noite

113

de um igi opê, embaixo do dendezeiro Ele estava muito envergonhado. Foi aí que ele começou a refletir: Veja só o que eu fiz da minha vida. Eu desejei tanto ficar rico... E agora olha só o meu estado. Estou tão pobre que não tenho nem roupa para voltar para casa. Vou ficando por aqui pensando e vou o que posso fazer por mim mesmo. Ali no fundo da floresta, Ogun ficou meditando por dias e dias. Até que em dado momento ele olhou para cima e reparou que bem lá no alto do dendezeiro tinha umas folhas bem novinhas que é o mariô. Ele subiu com toda paciência retirou as folhas que precisava e começou a tecer uma roupa para voltar para casa. Enquanto isso, não parava de pensar Quando ele vestiu o mariô, ele se deu conta de como tinha maltratado as pessoas. E pensou: - Eu vou voltar ao mercado, vou me desculpar com aquelas pessoas. Não é justo. Foi muito feio o que eu fiz”.

Narrador – Dito e feito, ele saiu andando rumo ao mercado. Ao entrar no

mercado o seu corpo ficou reluzente. Ogun ficou tão iluminado que sua luz refletiu em

todo espaço e nas pessoas também. As pessoas não eram as mesmas. Ele também não

era o mesmo. Ele era tanta luz que quase nao se podia olhar. Enquanto entrava no

mercado com toda a calma, todos que estavam apreciando o que estava acontecendo

foram oferecendo comidas gostosas, jóias cauris54 e toda qualidade de presentes, e

assim aconteceu a transformação que fez com que Ogun se tornasse um ancestral, pai da

transformação e da espiritualidade

Professora – Nossa! Que história! Eu estou toda arrepiada. Olhe, eu não vou

mentir. Eu sempre pensei que estas coisas aqui do terreiro era só uma maluquice de

cantar e dançar no barracão.

Ebome Moacir – Pois é professora, a senhora tem toda razão de pensar assim.

Quem foi que educou a professora? Se lhe ensinaram assim. A senhora só tem que saber

assim... Pelo menos por enquanto.

Petrô – Ela aprendeu tudo do ponto de vista do colonizador. Nós fomos

educados pela cartilha europocêntrica. Fomos ensinados que só é bom o que veio da

Europa.

Mãe Stella – Isto é verdade. A nossa cultura... É sempre considerada subcultura.

Não é deste modo que vamos ensinar. Esta sempre foi a minha preocupação: É bom que

as nossas professoras entendam e tomem consciência da nossa história e da nossa

cultura. Só assim elas e nossas crianças podem se orgulhar de sua escola e da sua

identidade. É preciso estudar muito para entender e considerar a nossa tradição. As

54 Búzio da costa quando tinha valor de moeda.

Page 127: Àqueles que têm na pele a cor da noite

114

religiões de origem africana, por exemplo, não podem ser consideradas como folclore. É

religião que herdamos dos nossos ancestrais. Aliás, tem uma coisa quero falar uma vez

por todas. Eu não quero saber de crianças vestidas de orixás como nos grupos

folclóricos.

Seu Moacir – Eu também concordo plenamente, não vamos misturar as coisas.

Nao é assim que se valoriza a cultura negra. Mas quero falar só mais uma coisa. Uma

coisinha só: Ogun é o orixá da técnica. Já repararam que ele tem como símbolo uma

penca de ferramentas? Ele foi inventando o ferro e transformando o mundo. Tem até

muitos estudos sobre este assunto. E foi justamente a sua condição de ferreiro

civilizatório que lhe deu a posição de orixá. O ferro nasceu na África minha gente!

Professora – Esta parte aí é muito difícil. É muito cheia de magia. Histórias que

nunca ouvi contar. Histórias que não estão nos livros... Eu só aprendo o que está nos

livros.

Petrô – Ogun simbolizado pelo ferro continua transformando os caminhos do

mundo... Sempre atendendo as necessidades do homem. Veja o ferro, hoje não é só

enxada. E os metais não são apenas enfeites para as mulheres.

Tia Cantulina costuma dizer que cantiga que menino canta gente velha já

cantou. Pois é, tanta coisa que hoje ainda é nova, na África já existia. Bem antes do

europeu chegar na África, lá já existiam coletivos de trabalhadores ferreiros, artesãos de

madeira...mineradores. As associações fazem parte de uma herança dos nossos

ancestrais. O africano é coletivo por natureza Os europeus é que acabaram com tudo.

Destruíram a África todinha, só não destruíram o nosso ori, o pensamento do africano.

Eles mantiveram tudo na cabeça e no corpo todo.

Professora – É verdade... Quem diria?... E nós que aprendemos tudo diferente?

...Mas fale... Fale mais desta história....

Petrô – Hoje já se considera falsa a idéia que define um grego como o pai da

medicina, mas até hoje os médicos continuam fazendo o Juramento de Hipócrates.

Professora – Agora foi demais. Então não é Hipócrates, o pai da medicina?

Petrô – Sinto não poder concordar com a senhora professora. O pai da medicina

foi o cientista e clínico egípcio Imhotep, que há quase três mil anos a.C. praticava

grande parte das técnicas da medicina, incluindo a vacinação e a farmacologia.

Dona Detinha – Não está vendo Ogun? Ele mesmo era o caçador, o ferreiro, o

médico, e o alquimista. Ele ia juntando folhas diferentes e inventando remédios para seu

povo. Portanto, de Ogun, pode-se dizer, que dele partiu muita coisa. Aliás, quase tudo

Page 128: Àqueles que têm na pele a cor da noite

115

veio da África. A África é a mãe da civilização grego-romana. A África é mãe até do

cristianismo. Jesus Cristo nasceu no continente africano. Lembra que Nossa Senhora

fugiu para o Egito montado num burrinho? Onde fica o Egito minha gente? Mas tem

gente que não gosta disso não?

Professora – Mas por que dona Detinha?

Dona Detinha – Eles chamam de afri-co-cen-tris-mo. (Risos)

Petrô – A África deu ao mundo a matemática, a arquitetura, a ourivesaria, a

medicina, artes, tecnologia de extração de ouro e diamante e da agricultura tropical

entre outras coisas. O homem nasceu no Egito e desceu o rio Nilo. Importante, vamos

ficar atentos: temos uma herança que é monogenética. Nascemos todos de um único

tronco genético. Temos uma única origem. Portanto, somos todos potencialmente iguais

para fazermos coisas diferentes ou iguais. Pois bem, da África veio até o primeiro

homem, que, aliás, a ciência já diz que foi uma mulher... Imagine só.... Ainda bem que

eu não tenho o menor problema com a minha porção mulher. (Risos)

Dona Detinha – Pois é, pelo menos, nós aprendemos que foi Oxalá e Nanã que

criaram o primeiro ser humano, tem quem diga que foi um homem... Tem quem diga

que foi uma mulher... Tem quem diga que foi um homem e uma mulher.

Professora – Eu nunca podia imaginar uma coisa desta. Eu podia jurar até hoje,

que tudo tinha vindo de Portugal com Pedro Álvares Cabral. (Risos)

Seu Moacir – Pois é minha filha, nem tudo que reluz é ouro. Aliás, o europeu

nem sabia trabalhar com o ouro como o africano. Extração de ouro e diamante era da

competência dos africanos. E o ouro da Europa foi todo o ouro do Brasil e de outras

partes das Américas.

Professora. – Mas o que foi mesmo que aconteceu com Portugal? Por que

Portugal não está entre as grandes potencias do mundo?

Vanda – Pois é, o mais interessante é que o ouro do Brasil não ficou em

Portugal. Portugal continuou um país pobre mesmo. O ouro do Brasil serviu para

Portugal pagar suas enormes dívidas à Inglaterra. Ou melhor, dizendo, o ouro do Brasil

serviu em parte para iniciar a Revolução Industrial que transformou o ferro em

máquinas. Pra quem já contava com os campos de algodão nas Américas foi fácil, fácil.

Page 129: Àqueles que têm na pele a cor da noite

116

Seu Moacir – Imaginem só, as primeiras máquinas que revolucionaram o

mundo industrial foram frutos do suor e sangue dos negros - os nossos ancestrais. Ogun

nhê!.55..

Dona Detinha – Ah! Meu Deus. Minha mãe Stella faz cada uma com a gente...

Ela me faz ficar aqui na frente de vocês... Imagine, foi ela que mandou eu ficar aqui,

falando dessas coisas, com meus pros modes56. Não repare não, minha gente...

Professores aqui são vocês.

Petrô – Agora só nos resta saudar o ferreiro do mundo e vamos adiante. Ogun...

Nhê

4.6.2 Outra história: ancestralidade, pensamento africano e formação de sujeitos autônomos, solidários e coletivos

Professora – Meu Deus. Estas histórias que vocês contam, muda muita coisa na

cabeça da gente. África; ouro; ferro; revolução industrial... reis e rainhas africanas...

Realmente... Esta não é a África que me contaram.

Vanda A gente não imagina o que significou a descoberta do ferro para o

mundo. As enxadas eram os produtos mais importantes da época. Eram exportados pra

todo o mundo. Há muitas histórias, há muitos fatos importantes que ainda nao foram

contados. Vocês nem podem imaginar! (voltando-se toda atenção para as crianças

presentes). Vocês vão ouvir outras histórias da presença de negros, numa das primeiras

universidades que surgiram no mundo.

Professora – Universidade?

Petrô – Pois é, foi na Universidade negra de Sankore, no Shongai, na cidade de

Timbuktur. Lá, muitos negros estudavam advocacia, literatura ou história. Muitos deles,

depois de formados como mestres foram convidados para ensinar na Universidade do

Cairo, no Egito. Muitos gregos estudaram na África.

Professora – Negros da África, daquele tempo, na Universidade?! Quem diria?

Professora – O nosso trabalho de agora em diante é diferente. Nosso trabalho é

ensinar, ou melhor, trata-se de colocar a criança no seu destino histórico que é diferente

do que se tem pensado. Viu que eu estou aprendendo? É o caminho ser. Vamos fazer

tudo para que a nossa criança compreenda a tradição oral da comunidade. Vamos fazer

55 .Saudação a Ogun. 56 Modo de falar de pessoas não alfabetizadas..

Page 130: Àqueles que têm na pele a cor da noite

117

emergir a sua própria compreensão de um mundo que lhe pertence. Este será o nosso

jeito de fazer cabeças. Religião é outra coisa. É a escolha da família, ou de cada um

quando for adulto.

Mãe – Agora sim, eu quero falar. Eu estava quieta no meu canto, mas estava

pensando em tudo. Eu estava pensando... Será que eu vou ser filha de santo? E meus

filhos têm que ser do terreiro?

Mãe Stella – Fanáticos, não. Aqui não se pode perder de vista a cultura da

comunidade. Mas, é muito importante preparar estas crianças para serem integradas na

vida lá fora. Como cidadãos eles não devem ter vergonha de sua cor nem da nossa

religião, mesmo que esta não seja a sua escolha.

Narrador – Primeiro sábado do mês. Depois do osé de Oxum e Iemanjá. As

pessoas continuam andando de um lado para o outro, preparando o café coletivo na casa

de Xangô. Só depois de cumprir todo o ritual do encontro é que as pessoas foram

chegando para a reunião na Escola Eugênia Anna. Como sempre foram chegando

professores, pessoal de apoio, representantes da comunidade, pais e alunos. É um

burburinho alegre. Estamos chegando de novo. Da cozinha da escola já esta saindo um

cheiro bom de comida, que vai enchendo a escola, até sair porta afora. Assim como

agora.

Supervisora – Ta na hora gente. Quem falta chegar? Mãe Stella já vem. E a

pauta? Cadê a pauta?

Vanda – O que acham de manter a mesma dinâmica da roda de conversa?

Durante as falas vão surgindo naturalmente as nossas possibilidades, as nossas dúvidas,

as necessidades e idéias para a construção do Irê Ayó. Então vamos continuar nosso

trabalho? Dona Detinha que está aqui conosco, foi a primeira a chegar vai mostrar suas

bonecas vestidas como orixás e vai nos contar muita coisa que precisamos saber sobre a

cultura deste lugar. Seu trabalho tem caminhado pelo mundo.

Supervisora – Eu soube que tem até no outro lado do mundo, no Japão.

Professora – Ela deve estar, é rica.

Supervisora – Coitada! Só se for rica de trabalho...

Professora – Aí vem ela. Lá vem dona Detinha. Será que vamos ter amalá?

Professora – Que é isto gente? Todo dia é dia santo?

Page 131: Àqueles que têm na pele a cor da noite

118

Dona Detinha – Kaaró57, Kaaró, Nem todo dia é dia santo, mas, todo dia da semana, é consagrado a um santo, a um orixá. Hoje mesmo, é sábado, é dia consagrado a Oxum. É dia de saudar Oxum: ora iê iê iê ô. É dia também de saudar Iemanjá: Odô ia.

Professora – Vamos ter café gente?

Maria – Café não garanto não. Mas um omolocum vai sair com certeza.

Professora – Omolocum??? O que é omolocum?

Nidinha – É uma comida de Oxum. É a comida de hoje: Omolocum, ebô e

xinxim de galinha.

Professora – Eu vou querer a receita.

Dona Detinha – Eu não entendo de Omolocum, eu entendo é de amalá. Eu sou

de Xangô. Aí agora, só a turma da cozinha. Depois do almoço elas dão a receita.

Supervisora – Mãe Stella vem chegando. Já vamos começar.

Mãe Stella – Kaaró professoras! Kaaró, senhoras e senhores!

Professoras – Bença Mãe Stella. Bença Mãe Stella. Bença Mãe Stella.

Mãe Stella – Xangô abençoe a todos. Todos estão abençoados, principalmente

por este trabalho que estão fazendo na escola. Mas que cheiro é este? Bem não

começaram o trabalho já vão comer? (brincando) - O que é isto Maria?

Maria – Não, Mãe Stella (risos) não é isso não. Primeiro vamos trabalhar,

depois é que vamos comer.

Mãe Stella – É muito bom para mim e para o nosso axé, ver vocês trabalhando

assim, juntos e alegres. Fico muito contente mesmo. Precisamos sempre somar as

pessoas que podem fazer algo por nosso axé e por nossa cultura. Conforme o

combinado eu trouxe Detinha comigo. Ela vai conversar com vocês, vai contar histórias,

vai esclarecer dúvidas. Isto alem de meus filhos Vanda e Petrô que já estão aí mesmo.

Eu trouxe também o meu irmão Moacir, o Ogan Roberval e o meu filho Reginaldo,

todos de Ogun, que podem também nos ajudar nestas reflexões. Vamos Detinha? Mãos

à obra. (risos).

Dona Detinha – (arruma as bonecas e pede a bênção de Mãe Stella como é o

costume do lugar) - Ago58 Mãe Stella. Bença Iyá.

Mãe Stella – Ago ya. Xangô abençoe.

57 Forma de cumprimentar desejando bom dia na língua iorubá. 58 Pedido de licença na língua iorubá.

Page 132: Àqueles que têm na pele a cor da noite

119

Dona Detinha – Olhe minha gente, eu não sou professora. Professoras são estas

senhoras e estes senhores aí. Mas Mãe Stella pediu que viesse conversar com vocês. E

pedido de Mãe de Santo é ordem.

Mãe Stella – Deixe de conversa menina. Prossiga

4.6.3 O dono de todos os caminhos

Dona Detinha – Olhe aqui, eu trouxe Oxum Yemanjá e Iansã, orixás femininos,

as ayabás. E trouxe logo, também, Exu e Ogun. Que é para começar do começo.

Professora – Cruz credo D. Detinha, Exu não é satanás? Não é o diabo? A

televisão toda hora está falando disso. Nós vamos conversar também sobre isto. Ah!

Meu Deus!

Dona Detinha- – (dando uma gostosa gargalhada) - Nada disso, meus irmãos.

Exu é um orixá como outro qualquer. Aliás, ele é o Orixá mais parecido com os seres

humanos.

Professora – Como assim? Oxente!

Dona Detinha – Esta história de diabo começou com a Igreja Católica, nos

tempos da escravidão. Hoje é coisa das igrejas que se dizem evangélicas pra confundir

as pessoas. Para discriminar a nossa religião.

Mãe Stella – Vocês querem saber? A gente não fica chamando por ele toda

hora? Nós o respeitamos e pronto!

Professora – Como é esse negócio de respeitar Exu?

Dona Detinha – Exu gosta como qualquer pessoa gosta de atenção. Se tratado

com consideração ele pode dar boas ajudas. Caso contrário, ele faz como determinadas

pessoas. Fica de longe, doido prá ver o circo pegar fogo. Vou contar uma história pra

vocês. Veja aí, meninos!

Narrador - Conta-se que dois vizinhos muito amigos sempre saiam juntos para

trabalhar nos campos. Certo dia, de tão distraídos, passaram por Exu sem cumprimentá-

lo. Aí então ele resolveu brincar com os dois desatenciosos. Colocou um chapéu com

um lado preto e outro vermelho e passou ao longo do caminho. Ao fim de alguns

instantes um dos amigos fez alusão ao boné vermelho.

Vizinho 1 – Que boné vermelho rapaz?! O boné é preto.

Page 133: Àqueles que têm na pele a cor da noite

120

Vizinho 2 – Não é preto, não. É vermelho

Vizinho 1 – É preto.

Vizinho 2 – É vermelho.

Vizinho 1 – É preto.

Vizinho 2 – Você vai ver uma coisa.

Vizinho 1 – Eu ainda vou lhe dar o troco.

Dona Detinha – Ambos lutaram de boa fé até caírem estrompados quase mortos

um pela mão do outro.

Professora – Que coisa horrível dona Detinha. Que coisa horrível!

Dona Detinha - O que é horrível? Todo mundo gosta de ser cumprimentado.

Aqui, a gente saúda Exu, saúda todos os orixás, e saúda também, a Iyá. Saúda a todos os

irmãos. Eu mesmo fico ali, no Carrapicho59, quando vem uma pessoa, eu fico atenta. Se

for meu mais velho vou pedir-lhe a bênção. Se for meu mais novo vou ter que abençoá-

lo. Eu fico atenta a todos para responder bom dia ou boa tarde. Sabe por que eu faço

isso? Porque na vida tudo e todos merecem atenção. Assim, antes de qualquer cerimônia

ritual, cantamos pra ele e evitamos assim qualquer mal-entendido. Diga aí, se não é

assim Ebome Moacir?

Ebome Moacir – É isso aí Detinha Tem gente que assusta mais do que Exú. Ele

não é espírito. Ele é uma força existente na natureza, por isso agente tem que respeitar

mesmo. E depois, é ele que anda pra cima e pra baixo levando as nossas mensagens, os

pedidos para os outros orixás. É ele que atende em todas as nossas necessidades.

Professora – Deve-se dar atenção a tudo?!

Professora – Deve-se dar atenção a todos?!

Dona Detinha – É isso aí. Atenção a tudo... Atenção a todos. Todos os

problema, todas as soluções estão espalhadas pelo mundo. É por isso que precisamos

estar atentos para nossa própria organização.

Mãe Stella – E você Ogan Roberval? Fale alguma coisa.

Roberval – Bem, Mãe Stella, o que temos refletido é que o jeito deste orixá é o

mais fácil de encontrar em nossa sociedade onde proliferam pessoas de caráter

ambivalente... E interesseiro. Ao mesmo tempo elas fazem coisas boas e fazem coisas

horrorosas. São pessoas que têm inclinações tanto para desatinos quanto para dar bons

conselhos. Conselhos que podem ser dados com tanto zelo e ponderação quanto maior

for a recompensa esperada. No caso dele, é o arbítrio do homem que decide sua ação.

Page 134: Àqueles que têm na pele a cor da noite

121

Tudo depende também do ambiente que se cria e das intenções das pessoas. Em todos

os casos a responsabilidade é do ser humano.

Professora – Ah!... Eu não pensava assim não. Realmente eu precisava refletir mesmo sobre a tradição e cultura deste lugar. É incrível, era só eu falar a palavra orixá e já era uma confusão na minha cabeça. E já me dava medo.

Dona Detinha – Bem, vamos concluir este assunto? O dia deste orixá é

segunda-feira, suas cores são preto e vermelho. E a sua saudação è Laroiê! Eu

particularmente tenho um costume. Eu não pago nada na segunda-feira, no dia dele.

Seu Moacir – E de receber você gosta não é Detinha?

Dona Detinha – Ah receber, eu gosto. E gosto muito. (Risos)

Mãe Stella – Detinha, creio que já falamos o suficiente sobre este assunto.

Como introdução para começar a entender a nossa cultura, estas informações são

suficientes. Saber algo mais, é para aqueles que estão sendo iniciados, o que não é o

caso das nossas professoras. Prossiga Detinha.

Narrador ( Lê cartaz)

4.6.4 A mãe da beleza e das artes

Professora – Gente, eu já tenho uma pergunta. O que é ayabá?

Dona Detinha – Muito bem professora. Esta é uma boa pergunta?Ayabás são

todos os orixás femininos. Ayabás são também Nanã, Obá e Ewa. Vocês vão ver que as

comidas dos orixás femininos são as mais gostosas e fáceis de fazer.

Professora – Eu já estou pensando no que podemos fazer com estas prosas.

Seguindo a tradição do lugar, nós podemos fazer comidas com as crianças enquanto elas

estudam os ingredientes das mesmas.

Professora – Hum.. Pode ser. Também é possível fazer desenhos, recontos,

dramatizações...

Professora – Desculpe eu interromper, mas eu não podia deixar de perguntar:

como é feito o omolocum?

Dona Detinha – Eu já disse que eu entendo é de amalá. Fala aí Ebome Maria.

Dê a receita do omolocum.

59 Espécie de quitanda onde são vendidos objetos e elementos rituais.

Page 135: Àqueles que têm na pele a cor da noite

122

Maria de Iansã – É fácil. Primeiro cozinha o feijão fradinho. Depois se faz um

molho temperado com camarão seco, pilado, cebola e dendê. Mistura tudo, tá pronto.

Professora – E as medidas?

Maria de Iansã – (dando uma risadona) É tudo no olho: vai botando os

ingredientes e vai olhando e vai provando até a comida ficar gostosa.

Professora – E a comida de Iemanjá o ebô? Já sei também é no olho.

Maria – É, é tudo feito a olho mesmo. Tem uma diferença, o milho branco, vai

cozido, com menos dendê e pode-se enfeitar o prato com camarões secos inteiros. A

base é a mesma - cebola, camarão seco e dendê.

Professora – Até o xinxim de galinha, só tem isso? E o amalá? É somente isso?

Maria – Somente isso, muito axé e muita alegria quando se está fazendo. A

cozinha é o lugar mais alegre do terreiro.

Professora – Está tudo muito bem. Tudo muito bom, mas bem que eu gostaria

de saber mais sobre as ayabás.

Mãe Stella – É verdade. Vai-se falar agora dos orixás femininos. Elas são

fundamentalmente ligadas ao feminino da natureza e ao feminino das pessoas.

Dona Detinha – Primeiro vamos falar de Oxum. Oxum é orixá das águas doce,

mãe da gestação e da maternidade. Aquela que cuida da criança, desde a sua concepção

no ventre, até ela socializar-se. É, também, a mãe da beleza e das artes...

Aí vem Iemanjá. Falar de Iemanjá é falar da mãe de toda vida. Ela ajuda na

decisão dos comportamentos na vontade e crescimento pessoal. Já Iansã, a Senhora dos

Ventos se caracteriza por ser companheira dos seres humanos tanto no amor quanto na

guerra e até na morte.

Professora – É só isso que a senhora vai falar das ayabás?

Dona Detinha – (Rindo) Não, ainda tem umas coisinhas que eu vou falar. Sobre

Oxum: Oxum habita nas águas doces. Sua essência é a água doce.

Professora – Desculpe interromper Dona Detinha, mas outro dia eu reparei na

festa de Oxum que todos usam o abebé, não é assim que se chama aquele espelhinho?

Dona Detinha – É, o abebé.

Professora – Mas, reparei também, que umas levavam espadas de metais

diferentes: cobre e metal dourado. Tinha Oxum que levava lira. Como é isto mesmo?

Dona Detinha – Primeiro é preciso compreender que o orixá é uma energia que

se divide infinitamente. Outra coisa é que as mães têm filhos com idades e

temperamentos diferentes. Com o orixá também é assim. Seus filhos são diferentes uns

Page 136: Àqueles que têm na pele a cor da noite

123

dos outros. Tem Oxum guerreira, tem Oxum dona das artes. Umas são mais velhas,

outras mais jovens e assim por diante...

Professora – Meu Deus, como é que vamos aprender tanta coisa? É tudo muito

diferente. Não parece com nada que já estudamos.

Vanda – Quem quiser entender melhor Oxum, é só reparar os movimentos da

água doce. É só observar como andam as águas do rio. O jeito plácido e sinuoso que ele

corre, molhando o caminho, que ele mesmo faz. Observe os lagos, as correntezas, a

força e a beleza das cachoeiras. Pense nos rios que atravessam enormes florestas

enfrentando todo tipo de obstáculo, água que desce montanhas, até se transformar num

córrego acolhedor. Oxum é assim: flexibilidade, estratégia, paciência, persistência e

força para os grandes saltos. Talvez dona Detinha possa contar uma história que pode

também ajudar a compreender melhor esta mãe ancestral.

Dona Detinha – Vamos lá. As histórias ajudam a gente a compreender a gente

mesmo e o mundo. Vamos lá. Vamos a nossa história.

Oxum ama jóias. Todo mundo sabe disso. Certa vez dois homens roubaram todas

as suas jóias. Ela ficou desesperada, mas ponderou: como enfrentar estes homens tão

fortes? Pensou, pensou e logo decidiu. Fez uma panelona de abará e se pôs à caminho.

Quando eles apareceram, ela ofereceu a deliciosa comida.. Eles pensaram: que tola

tiramos as suas jóias que ela ama tanto, e ela ainda nos oferece comida!... Sentaram-se e

comeram. Refastelaram-se e desmaiaram um para cada lado, roncando no maior sono.

Oxum pegou suas jóias de volta, enfeitou-se e graciosamente, lá se foi, cantando pelos

caminhos da vida.

Professora – Nossa, que esperta! Nem se machucou!

Ebome Reginaldo – As mães ancestrais são cheias de sabedoria e nos ensinam a

viver melhor, e nos defender nas horas certas. O negocio é usar as armas que dispomos.

É só prestar atenção a tudo e a todos.

Pai Renato – Eu quero falar gente, as pessoas de Oxum parecem com o jeito

destes orixás. São pessoas que pensam muito antes de tomar qualquer atitude. São

persistentes e muito zelosas de tudo que fazem.

Mãe Stella – E não é só isso, as pessoas deste orixá não podem ser vistas só

como símbolo de charme e beleza. São reservadas e evitam chocar a opinião pública.

Sob a aparência plácida, sedutora e graciosa, escondem uma vontade muito forte. São

líderes por natureza.

Page 137: Àqueles que têm na pele a cor da noite

124

Roberval – Acredita-se que seu jeito está relacionado também com a profissão

de pesquisadora, a carreira da diplomacia, do planejamento e educadoras.

Tutuca Pronto, minha gente, agora o povo de Oxum não fecha mais os dentes.

Só quero ver o que vocês vão dizer de Iansã.

4.6.5 A mãe da vida e do ser adulto

Dona Detinha – Calma, ainda não vamos dizer nada de Iansã. Vamos primeiro

falar um pouco de Iemanjá. É talvez o orixá mais querido e conhecido em todo Brasil,

até pelas suas belas festas populares, os presentes da mãe d'água e festas no mar.

Professora – A Senhora também vai para o Rio Vermelho no dia 2 de fevereiro?

Dona Detinha – Não. Aqui nós não fazemos assim, não. A gente tem um dia no

calendário de festa que oferecemos presente, para Iemanjá. É tudo muito discreto.

Fazemos tudo sem nenhum alarde. É uma festa só da nossa comunidade. É assim a

nossa tradição. Ela é nossa mãe. Iemanjá é a mãe de quase todos os orixás. É a esposa

de Oxalá.

Professora – Eu ouvi dizer que Oxum é mãe de todos. Que tanta mãe é esta?

Dona Detinha – Você tem razão. A sua dúvida faz sentido. Como já dissemos

antes, nós acreditamos que Oxum é mãe, desde a gestação até a criança aprender a falar.

Daí a criança passa a ser cuidada por seu orixá de cabeça e por Iemanjá. Mas tem outra

coisa. A família africana é diferente. Todos os mais velhos de uma comunidade são

pais. Todas as mais velhas são mães. Todos os irmãos mais velhos são responsáveis

pelos mais novos. Vocês já repararam aqui no terreiro? Quantas mulheres são chamadas

de mãe pelos mais novos? E quantos homens são chamados de pais? Aqui também

somos muitas mães, muitos pais e muitos irmãos.

Professora – Afinal Iemanjá é mãe ou não é?

Dona Detinha – Olha, Iemanjá é mãe sim, só que Iemanjá não é mãe de dar o

peito para o nenê mamar. Ela é mãe do adulto. Ela é quem acompanha o ser humano por

toda a vida, mostrando o caminho equilibrando cabeças.

Professora – É, eu já vi Iemanjá dançar. Quando ela dança, dança embalando e

também parece mostrar o caminho. Será que é por isso?

Page 138: Àqueles que têm na pele a cor da noite

125

Dona Detinha – Pois é Iemanjá é o orixá que ajuda a pessoa a decidir sobre seu

comportamento, sobre o jeito de se conduzir na vida. Acredita-se que Iemanjá é quem

ajuda a pessoa a decidir sobre seu próprio destino. Podendo às vezes influenciar, e até

exigir insistentemente obediência de seus filhos.

Professora. – E Iemanjá também se parece com o mar? Fale do mar, como é o

mar?

Dona Detinha – Bem. Do mesmo jeito que as ondas acolhem, murmuram e

acariciam a terra, elas são capazes de grandes estrondos contra as pedras ou estende-se

para um infinito que ninguém sabe como alcançar.

Professora – Pôxa Dona Detinha, a senhora falou bonito sobre o mar. E os seus

filhos? Fale os filhos de Iemanjá.

Dona Detinha – Parecem com o mar, sim. As pessoas de Iemanjá às vezes

parecem ausentes. De repente elas voltam e querem conta de tudo. Mas tudo depende do

tempo, do lugar, e do tipo de relação que se tem com a outra pessoa. Comece cada um

de vocês a observar cada pessoa do mesmo orixá. As pessoas não são como peças

fabricadas em série. Isto não é como uma receita de bolo. Há que observar o

comportamento humano não pode ser repetitivo. Os filhos e filhas de Iemanjá podem ter

ou não ter algumas destas características... São pessoas protetoras, voluntariosas,

maternais, rigorosas assim com todas as virtudes e imperfeições dos seres humanos.

Professora –Dona Detinha. Gostaria de ver melhor esta boneca. Posso?

Dona Detinha Oxente, menina. Pode pegar. Ela está aqui para isto mesmo.

Professora – Nossa? Como é bonita! Tem espada... Tem coroa, a Senhora já

falou da comida?

Professora – Ah! Meu Deus! Já falei sim. Ebome Maria até deu a receita. É o

ebô.

Mãe Stella – Pelo visto ta quase todo mundo virando africano. Odoiá, odoiá!

Narrador ( Lê o cartaz)

4.6.6 A dona dos ventos e do amor humano

Tutuca – Oba! Finalmente Iansã! Não é sem tempo. É de hoje que eu espero.

Page 139: Àqueles que têm na pele a cor da noite

126

Dona Detinh a– Iansã! Epa hey Oyá! É assim que se saúda Iansã. Iansã é assim

como você mesma Tutuca!

Tutuca – como é que eu sou mesmo Detinha?

Dona Detinha – Valentona!!! Todas são valentonas!

Tutuca – Olha pra isso.... Vou já chamar minha irmãs pra gente se defender!

Dona Detinha – Não estou dizendo? É verdade ou não é? (Risos). Estou

brincando um pouco com vocês. Na verdade, às vezes a gente diz algumas palavras, que

podem não dão o sentido correto ao que queremos dizer. Acho que, as pessoas de Iansã

são de lutar, tanto pelos seus direitos como pelos direitos dos outros.

Professora – Quer ver uma coisa, às vezes as pessoas falam de Iansã e os seus

filhos como se fossem pessoas destemperadas, sem limites. Será que podemos falar

assim de um orixá ou de seus filhos?

Reginaldo – Claro que não. As pessoas não são somente filhos de um orixá.

Mas outras entidades estão dialogando entre si em nossas cabeças. As pessoas têm pai,

têm mãe, têm herança genética, têm amigos com quem andam. Têm a comunidade, têm

a educação que recebe na família, têm a educação que recebe na escola e na rua. E tem,

sobretudo, o livre arbítrio. Tudo isso concorre para a formação da pessoa, a formação do

caráter de cada cidadão.

Mãe Stella – A pessoa tem que cuidar primeiro do seu equilíbrio para que o

orixá possa ajudar.

Professora – Com licença Dona Detinha. Porque esta Iansã não se veste de

vermelho.

Dona Detinha – Esta é outra história. É como eu estou dizendo: Entre os orixás

também existem as suas diferenças. Tem as que se vestem de cor de rosa, as que se

vestem de branco e outras cores. As vermelhonas são muito raras aqui no terreiro.

Vamos reparar a boneca. Iansã também usa coroa. Carrega espada e dois chifres

de búfalos. Seu dia é quarta-feira... Agora suas contas são sempre vermelhas, quase

marrons.

Diretora – Na quarta-feira, não é dia de Xangô?

Dona Detinha – É, é verdade, é dia consagrado a Iansã e a Xangô. Aliás, para

continuar esta prosa, eu vou contar outra história. Vocês aceitam?

Era uma vez, no tempo antigo, Iansã vivia com Xangô. Com o passar do tempo ela se

desinteressou, e fugiu para o reino de Ogun, com quem passou a viver. Xangô não

agüentou ficar sem ela, invadiu o reino de Ogun em busca da amada. Iansã pediu a

Page 140: Àqueles que têm na pele a cor da noite

127

Ogun que guerreasse por ela e a guerra foi feita. Mas Ogun sugeriu que por mais

segurança, Iansã fosse se esconder no reino de Oxossi. Iansã se apaixona por Oxossi.

Com algum tempo, mais uma vez, ela foge. Desta vez para o reino de Omolu.

Professora – Gente! O que é isto quantos maridos: um, dois, três, quatro... Isto é

certo, Dona Detinha!

Dona Detinha – Bem. O que é certo ou que é errado? Para a moral cristã ela

estaria condenada. Casamentos sucessivos nunca foram bem vistos.

Reginaldo – Mas nós temos que considerar que estamos falando da cultura

nagô. Estamos falando de uma cultura de tempos remotos. Naquele tempo até a

poligamia era considerada um bem. Muitos filhos era sinal de riqueza. Muitos braços

para trabalhar na terra. Hoje ainda existe um homem com muitas mulheres. É como

marca de uma tradição que há está esmaecendo com o tempo.

Dona Detinha – Pois é, compreendendo como cultura e tradição milenar, Iansã

é aceita pela sua alegria, pela sua coragem de fazer escolhas e pela sensualidade.

Moacir – Repare como é a dança de Iansã. Vocês já viram? Ela dança com

energia, brandindo a espada. Ela é senhora dos ventos. Ela é guerreira.

Dona Detinha – As mulheres de Iansã são corajosas, ciumentas, amante de

desafios, rápidas, cuidadosas com as pessoas e amam as mudanças.

Reginaldo – E quer saber de uma coisa? Quando se propõe a agir com cautela

não se deixa levar por nenhuma ação intempestiva.

Dona Detinha – Como já falamos, a pessoa não é só orixá. A pessoa é também

livre arbítrio. E livre arbítrio só se consegue juntando a razão, o coração e a

espiritualidade.

Tutuca – É, até que a Senhora tem razão. O orixá não manda a gente fazer

bobagem. Ou como diz Ebome Maria: orixá não é tentação, orixá só está para ajudar.

Mas tudo depende muito de cada um .

Professora – E as pessoas de Iansã?

Dona Detinha – Pois é como estou dizendo, as pessoas de Iansã tem

pensamentos rápidos, são generosas. São capazes de realizar mais de uma tarefa por

vez, têm tendência para administrar qualquer empresa.

Professora – E Iansã come o que?

Diretora – Ah! Isso eu sei. A comida de Iansã é a comida mais gostosa que

existe - A comida é acarajé, minha gente!

Page 141: Àqueles que têm na pele a cor da noite

128

Professora – Por falar nisso não sei se já sentiram o cheiro. Será que vamos

comer acarajé?

Professora – Será que a receita do acarajé também é feita a olho

Dona Mundinha – Eu quero falar gente. Primeiro eu quero dizer que estou

adorando está aqui na escola. Depois quero dizer também que acarajé é feito a olho sim.

Eu sou de Ogun, mas entendo também de acarajé. Pega o feijão fradinho, aquele que já

se compra quebrado, põe de molho, lava-se tirando todas as casquinhas. Quem quer,

quebra em casa no pilão. E se passa no moinho também. Aí bate, bate, bate até a massa

ficar pronta. Acrescenta-se cebola ralada e sal. Quando fica parecendo uma pasta é só

fritar no epô, no azeite de dendê.

Petrô – Gente precisamos respirar. Agora vamos todos com papel e lápis na

mão. Vamos levantar uma lista de dúvidas. É melhor começar com um diálogo em

dupla. Em seguida façam grupos de oito. Com a síntese de cada grupo de oito, vamos

colocar no grupão, as questões que ainda tiverem dúvidas. Começando do orixá Iansã

até o primeiro. Muito bem, mãos à obra. Em seguida vamos fazer uma roda de conversa.

4.7 SEM CENSURA

Conversa na sala dos professores, dia 18 de junho de 1999 pela manhã antes do

reinício do trabalho. (Eu solicitei permissão para gravar as conversas)

Edna – Aquele francês que esteve aqui na Feira de Ciência e Cultura ele me fez

uma observação que, me pareceu muito importante. Então ele comentou que havia

assuntos relevantes porém nada que foi exposto lembrava a cultura do lugar. Ele disse

que não tinha encontrado nada novo. A gente precisa repensar e fazer uma coisa que

seja a cara desta comunidade.

Adriana – Ótimo, eu fico radiante com esta colocação porque a gente pode

juntar tudo novamente como Edna está dizendo. O ano passado Dona Detinha doou um

boneco vestido de Omolu e ficou solto porque não tinha uma história para que ele fosse

inserido na feira como cultura do lugar. Nao tinha nada. No final eu fiquei pra mim.

Diretora– Ela deu foi para arrecadar dinheiro para a feira. Não foi nada para

cultura.

Page 142: Àqueles que têm na pele a cor da noite

129

Meire – Sim, Vanda disse que Omolu é um orixá ligado a terra. Que é orixá

ligado à saúde e à solidariedade. Se agente tivesse já alguma coisa que falasse da terra,

por exemplo, podíamos ter dado melhor utilidade ao presente.

Vanda – No próximo encontro eu vou trazer um artigo que escrevi que fala da

relação do povo de santo com a terra. Penso que isso pode nos ajudar a pensar outras

compreensões, outras possibilidades de trabalho.

Meire – É uma boa idéia, um fica com a água. Água é ciência e cultura. Água e

Oxum é ciência. Água doce, água salgada, cuidados, tratamento, peixes, alimento,

transportes marítimos Tudo sobre orixás da água, vacinas. Formas da água. Ciclo da

água. Outro ficaria com a terra, as folhas tudo que é tão presente aqui o tempo todo.

Vanda – Podemos pensar numa outra estrutura para a próxima feira de ciência e

cultura?

Meire – Um dos momentos de estudo para nós deve ser no nosso AC60.Você

precisa está presente com sua palavra, uma idéia. Eu comentei com a turma sobre a feira

de ciência. Por que não trabalhar a próxima feira de ciência dentro da perspectiva deste

projeto. Podemos escrever a historia do axé. Não seria importante partirmos dos quatro

elementos básicos da natureza. O trabalho pode começar com a água que é o que mais

tem neste lugar.Cada turma ficaria com um elemento. Eu particularmente ficaria com a

água. Vai ser aquela culminância.

Edna – Ou é porque você é de Oxum? Sabida...

Vanda – Percebo que o que parecia tão confuso está se organizando.

Meire – Já pensou a nossa feira com este tema? Agora já tem quem acompanhe

a agente.E nem precisa mais ser na feira de ciências. Aqui tem tanta coisa...

Edna – Eu só sei Vanda, que estamos juntando vontade e criatividade e

podemos conseguir tudo.

Meire – Eu vou dizer uma coisa, eu estava decidida a tomar minha licença. Mas

você pode crer que depois desta capacitação para o Ire Ayó, eu fiquei pensando: Meu

Deus este projeto aqui sem minha participação. (Risos). Nao vou mais não. Eu já tinha

arranjado até uma pessoa pra ficar no meu lugar. (Risos)

Vanda – Fico muito feliz com a sua nova decisão.

Meire – Agora já quero trabalhar até depois de me aposentar. (Risos).

60 Atividades complementares. Em cada duas semanas uma sexta-feira era destinada a estudos e planejamentos.

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130

Eliene – Eu sou a caçula da escola, mas o melhor aqui é que a gente esta

fazendo com paixão.

Edna – Eu mesmo quando fui pra casa continuei ouvindo tudo. Petrô fazendo

aquele movimento. (Risos). Ele fazia a gente trabalhar um minuto e batia uma palma eu

ficava nervosa. Fazia tudo rápido pra não esquecer. Aí eu pensava que homem é este?

Teve uma hora que o mijo quase desceu. (Risos) Sai daqui... Passa pra cá... Rrisos). Eu

fiquei agoniada, mas tava bom. Isto tira a gente do cochilo por que tem treinamento que

eu cochilo mesmo, não vou mentir. Petrô e Vanda tiraram a minha vontade de dormir.

(Risos) Eu poderia ficar até seis horas, sete horas aqui.

Meire – Eu avisei em casa. Não me procure, não ligue pra mim que eu não vou

atender telefone. Não vi o tempo passar. Cheguei em casa tudo estava bem.

Vanda – Quanto ao AC eu já havia me comprometido. Eu vou participar de

todos por que agora é que vamos estudar tudo que estamos produzindo nas rodas de

conversas. Este primeiro momento foi mesmo de sensibilização e notícias do que será

operacionalizado como vivências pedagógicas. Foi dado o sinal de partida.

Diretora – Esta capacitação tem sido excelente. Em momento nenhum eu me

senti cansada. Uma reunião de duas ou três horas, volto com dor de cabeça, pressão

alta... Aquela confusão... Ninguém nos diz nada e tome apostilha. Leitura de apostilha é

um horror. Aqui não. Juntou a animação com os trabalhos de arte, a competência, o

talento dos atores, a vivacidade, a animação de Petrô, a tranqüilidade de Vanda. E eu

não me senti cansada porque eu estava feliz da vida que não tive tempo de ficar

cansada. Foi uma festa. Nossa capacitação foi uma festa. Todo mundo com a cabeça

aberta. Pelos comentários, o que todo mundo pensava sobre o que é um terreiro, e sobre

as religiões de matriz africana e sobre os orixás mudou. Agora sabemos como se formou

esta religião e que não é coisa do demônio. Veja Socorro que é muito católica, ela

participou ativamente. Tenho certeza que agora todos nós sabemos o que é a cultura

deste local e o que é religião. Todos com a cabeça aberta e os ouvidos atentos:

professores, pais, crianças, a secretaria, a coordenadoria, o povo da comunidade... Foi

10, 10, 10. Estou feliz da vida.

Estava nascendo o Projeto Político Pedagógico Irê Ayó, num trabalho inspirado

no pensamento africano recriado na diáspora. Exatamente neste momento eu começava

a julgar que a formação como um acontecimento singular estava dentro das

possibilidades e das potencialidades daquelas educadoras e das crianças do lugar. Era o

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131

nascer de um trabalho que foi afetando outros lugares como modelo a ser seguido. A

Escola Eugenia Anna dos Santos foi distinguida pelo MEC como Escola de Referência.

Escola Referência pela formação de educadoras e educadores e pelo desempenho das

crianças. A inspiração nascia do jeito africano de aprender e ensinar. O africano ensina a

aprende contando histórias. Aprende-se as ciências como a história dos filhos do seio da

terra. Dessas histórias vão saindo histórias de dentro da história, ciências de dentro das

ciências até que o sujeito encontre sua própria história. O sujeito está inserido na

história. Ele é a própria história. O sujeito vai sendo inserido na escola do mundo. Daí, a

decisão: vamos fazer assim com as crianças. Vamos contar histórias que aconteceram

na comunidade apontando para as diversas ciências. A missão continua sendo exercitar

uma epistemologia de en-sinar crianças afrodescendentes e não afrodescendentes,

porque é muito ampla a intenção de pensar para que serve este jeito de aprender com

ações que propiciem a transdisciplinaridade inspirada também no pensamento africano.

Enfim, isso é o que chamo de fazer cabeças bem feitas que é diferente de cabeças bem

cheias. Foi neste espírito que foi dado continuidade à leitura dramática da II parte da

Prosa de Nagô na formação para o Irê Ayó.

4.8 PROSA DE NAGÔ II

Diretora – Bom dia a todos. Vamos dar inicio ao nosso encontro de hoje.

Vamos dá continuidade a nossa reflexão para o ano letivo de 1999 e ao planejamento de

atividades, agora tendo como referência aspectos da cultura afro-brasileira vivenciada,

nesta comunidade. Também têm as Diretrizes da Escola Arte e Alegria, sintonizando

com o Ensino Municipal da Cidade do Salvador. Agradecemos a presença de todo

pessoal de apoio, representantes da comunidade e do pessoal da Secretaria Municipal de

Educação e Cultura (SMEC). Agradecemos a presença dos alunos e alunas, dos pais e

das mães. Vamos ao trabalho gente?

Vanda – Então, vamos começar? Quero mais uma vez agradecer a presença de

todos. Já conseguimos saber coisas importantes. Já conversamos com cinco orixás: Exu,

Ogun, Oxum, Iemanjá e Iansã. Já começamos a compreender melhor a comunidade e

sua gente Estamos ampliando o nosso conhecimento sobre a tradição e cultura do lugar.

Vamos preservar tudo que anotamos e que pode ser relacionado como referências da

tradição e cultura deste lugar, com as possíveis vivências pedagógicas que estamos

Page 145: Àqueles que têm na pele a cor da noite

132

buscando. Naturalmente, vamos desenvolver tudo que estamos aprendendo para as

crianças e, quem sabe, construir com elas o seu próprio caminho de atividades. Bem,

não vamos deixar sem falar quem tem muito mais a dizer do que eu. Quero fazer um

agradecimento especial aos nossos atores pela disponibilidade de estarem contribuindo,

se emprestando, se colocando literalmente de corpo e alma a serviço deste projeto.

Então, eu gostaria de começar o nosso dia com uma história. É uma história de coragem,

solidariedade, de justiça e muita inteligência. Então, vejamos este mito inspirador de

uma forma importante de democracia 61

Ossain é o orixá das folhas. E em tempos bem remotos, somente este orixá tinha o poder e o conhecimento das folhas. Somente Ossain, sabia todos os segredos das folhas. Somente este orixá sabia qual a folha que cura cada um dos males que afligem as pessoas. Fossem os males físicos, emocionais ou espirituais. A boa saúde e o bem estar, dependiam sempre de Ossain.

Para preservar este segredo, Ossain providenciou uma grande cabaça, encheu-a com todas as qualidades de folhas que existem no mundo. Depois procurou uma árvore bem grande e lá no galho mais alto pendurou o segredo que ficava vigiando dia e noite, noite e dia. Ele ficava vigiando e saudando. Ewe ô, ewe ô (Oh, minhas folhas!).

Cada vez que um orixá precisava de alguma folha para ajudar os homens a manterem sua vida ou sua saúde tinha que pedir a Ossain. Ele fazia sempre algumas exigências que até eram justas. Mas... Ele não atendia ninguém à tarde. À noite só se fosse com muita necessidade. Assim se alguém chegasse fora de hora, ela já ia falando: - Folha a esta hora? De que serve eu tirar folha a esta agora? Esta folha está cansada, empoeirada. A folha é viva. Quando amanhece o dia, bem cedinho, ela está banhada pelo orvalho. Assim que o sol começa a jogar a sua luz na terra, tudo se transforma em nova vida. E cada folha estará respirando a força do novo dia.

Tudo parecia bem. Mas um dia Xangô chamou Iansã e começaram a refletir: - Por que este poder centralizado só em Ossain? Não seria este conhecimento o direito de todos que prestam serviço para a vida. Vamos fazer um encontro para discutir o assunto.

Reuniram, conversaram, conversaram... Foram convencer Ossain.. E nada. Ele resistia e os outros orixás persistiam. Nova reunião foi marcada, desta vez com a liderança de Iansã.

Iansã marcou a hora. Todos deviam estar presentes. Ninguém podia faltar. Assim foi feito. Chegada a hora, ela que tem a força dos ventos, ficou bem em baixo da árvore do segredo. Ficou bem em baixo do galho que guardava a cabaça do segredo. E todos ficaram também ali bem juntos.

Neste momento Iansã começou a girar. Ela foi girando mais forte... Girou... Girou... Girou muito. Girou de um jeito que toda a natureza foi se transformando. Até as águas se encresparam com a força

61 Mito aprendido com os “arquivos vivos" do Ilê Axé Opo Afonjá, adaptado por Vanda Machado com Carlos Petrovich, para o Projeto Irê Ayo na Escola Eugênia Anna dos Santos.

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133

do vento. Todas as árvores começaram a fazer um movimento muito forte. Balançavam muito. A cabaça do segredo começou a sacudir muito. Debatendo-se contra o vento e a árvore, terminou por partir-se ao meio... E todas as folhas foram caindo enquanto cada orixá foi pegando a sua folha.

Quando Ossain viu todas as folhas espalhadas pelo chão, começou a correr de um lado para o outro gritando sempre: ewe ô, ewe ô.

E foi assim que todos conseguiram o que tinham direito e nem por isso Ossain ficou menos importante. Ele é a própria folha.

Finalmente Iansã feliz com o que conseguiu saiu cantando e dançando pelos caminhos do mundo, levando sempre novos ventos.

Aplausos

Depois de um breve silêncio....

Professora – Então gente, e agora? Qual e a prosa que estamos esperando?

Diretora – Hoje tem novos candidatos para ajudar Dona Detinha

Professora – Sim. E quais são os orixás que vamos conhecer hoje?

Dona Detinha – Hoje eu trouxe Ossain, o Senhor das Folhas, Oxossi, o Caçador

e provedor, e se der tempo, vamos falar do nosso pai Oxalá, e no final de tudo, de

Xangô, o senhor da justiça e o dono das terras e do axé do Ilê Axé Opo Afonjá.

(Aplausos de todos).

Supervisora – Além de Mãe Stella e de Dona Detinha, hoje temos Ebome

Genivaldo, Ebome Geraldo e Tia Honorina. (Aplausos de todos).

Dona Detinha – Minha Mãe Stella vai dar uma palavrinha

Mãe Stella – Não sei que critérios vocês usaram para fazer este trabalho. Mas...

Acertaram. Acertaram na escolha dos orixás do dia. Ossain e Oxossi juntos é perfeito.

Ossain é saúde, Oxossi é manutenção, Oxossi é o provedor, Xangô com seu

comportamento íntegro e ponderado por certo acolhe o nosso desejo de justiça e

também na educação. Finalmente Oxalá na sua sabedoria nos abençoa. E acertaram

desde o início quando buscaram a raiz da nossa cultura na África. Depois trabalharam

Exu, Ogun e as Ayabás. Sigam adiante. Que vocês tenham força e inspiração para

continuar o que começaram. Gostei da síntese da diretora e da fala de Vanda que já

falaram do currículo em andamento. Que Xangô abençoe a todos. (Aplausos).

Narrador (Lê cartaz)

Page 147: Àqueles que têm na pele a cor da noite

134

4.8.1 Ossain, o senhor das folhas da saúde, do ara62 e do orí63

Dona Detinha – Eu sei que temos uma surpresa para um convidado presente.

Mas não vou botar o caso no mato. Diga aí professoras!

Vanda – É um sonho dele. Estou falando de uma pessoa que é responsável por

todas as folhas que necessitamos em nossas obrigações rituais. Estou falando do Ebome

Genivaldo. Ele sempre diz que quando mais cedo se aprende sobre o poder das folhas é

62 Corpo físico. 63 Cabeça. Entidade míticaque habita em todas as cabeças.

Page 148: Àqueles que têm na pele a cor da noite

135

melhor. E que tudo tem que começar cedo, ainda criança. Assim como se fosse um

assunto de escola que serve para a vida. Foi ele mesmo quem deu esta idéia. Vejamos o

que dizem os nossos atores nesta leitura:

Ator 1 –

Na África me chamam Ixu Na mesa sou gostoso Meu nome parece estranho Sou alimento ferroso Sou próspero, cresço depressa Não sinto dificuldades Pulo pro mundo sem medo Só trago felicidade Comida de Ogun Xangô e Oxalá também come Sou Ipeté prá Oxum Vocês me chamam de inhame.

Ator 2 –

Curei o fígado de Joãozinho O estômago de Ribamar Sarei o rim do Alabê Com a força de Iemanjá Juntou-se capeba e mel Remédio que Oxum Tunsê Deu a seu filho Sérgio Também serve pra você Estômago, fígado e rins Tenho poder de sarar Me chamam folhas de Iyá Sou capeba de Iemanjá

Ator 3 – Sou das ayabás preferida Mas não gosto das anáguas Me dedicaram a Oxum Eu sou uma folha d'águas Quem já sentiu dor nos olhos Por certo chamou por mim Sou consagrada a Oxum O meu nome é Oririm

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136

Quem tiver dor de cabeça Ou cefaléia de paixão De Oririm não se esqueça Curo até seu coração

(Os três saem correndo em meio aos aplausos.– Voltam os três - agradecem e saem).

Genivaldo – Sim, sim este é meu sonho. Ver as crianças brincando com as

folhas verdes de Ossain. Escutando e contando histórias. Sim, este é o meu sonho

mesmo. Sempre sonhei em ajudar Mãe Stella na educação dessas crianças. Um dia a

gente morre. E aí vai levar tudo que sabe para as minhocas? Eu quero passar o que sei.

E sei que folha é sabedoria é também saber. E o mundo precisa muito desta ciência.

Dona Detinha Vejam agora, aqui está o boneco vestido com tudo que Ossain

tem direito.

Genivaldo – É isso Dona Detinha. Nosso pai Ossain é folha, é verde. Aliás,

Ossain não é o remédio. Ossain é a saúde do mundo. Agora se fala muito em fitoterapia.

Imagine vocês, que curar-se com folhas é a coisa mais antiga do mundo. E agora se fala

até em curar-se com flores, vejam só! E as flores também são de Ossain.

Professora – Olhem aqui gente, todo mundo sabe o que está acontecendo com

os remédios no Brasil. E não queremos entrar no mérito desta questão. O importante é

reconhecer que se agente não tivesse que encher os cofres de laboratórios

multinacionais as farmácias seriam reduzidas em mais de oitenta por cento.

Genivaldo – Mas nós devemos continuar fazendo a nossa parte, como o beija-

flor da historinha de Petrô na televisão. Vamos aprender como usar as folhas. Aqui na

roça, muita gente confia nas folhas. As folhas curam o ará, o corpo. As folhas curam o

ori, curam a nossa cabeça.

Professora – Oririm na minha terra, se chama afavaquinha de cobra ou folha de

vidro. Quando a gente tinha dor d'olhos, era só espremer aquela aguinha nas vistas e a

dor ia passando, até curar a inflamação. Não se comprava colírio não!

Professora –Agente podia fazer um livro: Saúde e folhas, que tal? Podemos

fazer com as crianças. Elas sabem de tanta coisa...

4.8.2 O provedor das comunidades: o caçador de uma só

Dona Detinha – Olha minha gente! Eu queria fazer uma proposta. Vamos sair

para conversar lá fora? Podemos ir até a casa de Odé... Ode é orixá do mato. Vamos

Page 150: Àqueles que têm na pele a cor da noite

137

sair destas paredes. Vamos para o tempo. Vamos para o mato, para o ar livre.

(Aplausos).

Supervisora – Que legal! Posso ir descalça? Faz anos que meus pés não se

encontram com a terra.

Dona Detinha – Fique à vontade professora. A senhora e quem mais tiver

vontade. Essa terra aqui é de todos nós e de quem mais quiser.

Narrador – Aos poucos, o grupo foi saindo da escola e tomando o espaço do

terreiro. Agora já parecem quase familiarizados com a roça. Diferente da primeira vez,

agora é conversa que não acaba mais. E muitos cumprimentos para quem passa.

Professora – Você já reparou que o povo aqui pede a bênção uns aos outros.

Quer ver? Preste atenção. Vanda também é assim. Quer ver repare.

Professora – Hum... Vou reparar. Vou reparar tudo. (Risos)

Professora – Olhe aí a casa de Ossain! É esta mesmo. Bem aqui em frente da

nossa escola. Sua cor é verde. E tem o nome bem na fachada. Olha lá, o Carrapicho! No

carrapicho tem de tudo. Tem contas, livros, esteira, banhos de folhas, acaçá. É Dona

Detinha que toma conta.

Professora – Vamos entrar na casa de Xangô agora?

Diretora – Isto já foi combinado. Primeiro vamos lá na casa de Oxossi. Vamos

andar. Ninguém se disperse por aí. O caminho é a casa do Caçador Ode.

Professora – Olha a fonte de Oxum. Podemos pegar na água? Olhe os

peixinhos... Olhe as plantinhas aquáticas. Será que são folhas de Oxum?

Professora – Ah minha filha, são tantas as perguntas que tenho agora... Antes

passava tudo despercebido... Eu não tinha atenção às coisas. Vamos andando o grupo já

vai longe. Olhas os pombos. Aqui também se cria pombos.

Professora – Longe nada, eu quero prestar atenção a tudo. E depois é só andar

mais rápido. Olha a casa de Iemanjá... É só esta parte. Daqui pra lá é a casa de Oxalá. É

tão simples. Gosto do jeito de tudo isto aqui... É tudo tão calmo. O tempo aqui não

corre, ele passeia devagar. Tem algumas velhas que moram nesta casa. Tem uma na

janela. Eu conheço, É a Iyá Kekerê, mãe Georgete.

Professora – Fale baixo. Será que vão gostar de serem chamadas de velhas?

Professora – Você quer saber? Aqui é diferente. Quanto mais se é velho mais se

é respeitado. Disseram que aqui, minha filha, Antigüidade é posto. É, é verdade! Aqui

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138

os velhos guardam muito conhecimento e cuidam dos mais moços. A Iyá ê Kekerê, por

exemplo, é ela quem ajuda, a Iyalorixá. É a segunda pessoa de Mãe Stella

Professor – Não me diga! Vamos andando... Esta casa verde é a de Ogun?

Porque é menor que as outras? Ah! Pensei. A casa de Xangô é tão grande! A de Oxalá é

mais ainda.

Professora – Vamos acompanhar os outros. Mas tudo aqui tem um fundamento.

A qualquer hora nós ficamos sabendo.

Professora – Ah! Como você tem pressa. Agora sou eu quem está curiosa. Você

nem reparou. Acabamos de passar pela casa de Iansã. É logo ali depois da casa de

Ogun. Ficou lá atrás.

Professora – Foi mesmo? E a de Oxum?

Professora – A casa de Oxum é esta amarelinha à direita. É a última, pertinho

da de Oxossi. Veja bem a casa de Oxossi, fica entre a casa de Oxum e a casa de Iansã. E

a casa de Iansã fica entre a de Oxossi e a de Ogun.

Professora – Gente, vamos parar de conversa e correr para onde estão os outros.

Professora – Espera aí, e a casa de Omolu. Nanã e Oxumaré? Onde fica?

Professora – Você não viu não? É aquela do lado esquerdo do barracão, de

frente para a cozinha da casa de Oxalá... E tem mais do lado direito do barracão, tem um

aviário... Tem cada ave diferente! Você precisa ver... Na volta agente dá uma olhada...

Agora vamos mesmo.

Professora – Vamos.

Professora – Êpa, finalmente chegamos.

Narrrador – A casa de Oxossi é simples e bem cuidada como todas as outras.

Quando chegamos Geraldo de Oxossi estava sentado na varanda sacudindo as pernas e

olhando para o mato. Parecia um caçador a espreita. Era tão introspectiva a sua postura,

que parecia ausente do nosso burburinho.

Geraldo – Bença Ebome..

Dona Detinha – Meu pai te abençoe. Vou botar na janela o boneco vestido de

Oxossi para que todos possam ver.

Geraldo – Desculpe, eu já ia saindo mesmo. Preciso conversar um pouco com

Mãe Stella.

Dona Detinha – Não vá não, meu irmão. Ela está vindo também com a gente.

Page 152: Àqueles que têm na pele a cor da noite

139

Geraldo – É verdade lá vem ela. Bença Mãe Stella!

Mãe Stella – Oh! Menino é você que está aí. Oxossi lhe abençoe... Este é Ebome

Geraldo. É um filho de Oxossi... Bem Geraldo, já que você estava aqui todo quietinho,

fale também um pouco sobre seu pai para estas professoras.

Geraldo – Oh! Mãe Stella! Meu Deus! Por esta eu não esperava agora.

Mãe Stella – Fale meu filho! Você é quem bem pode falar.

Narrador – O Ebome Geraldo se recompõe da surpresa e ainda emocionado

começou a falar.

Geraldo – Primeiro quero dizer que é muito bom que a escola reconheça o lugar

onde está plantada. Esta é nossa casa. É a casa do caçador. É a casa de Oxossi.

Professora – É linda. Tudo aqui é azul. Que azul bonito... E este arco e flecha o

que significam?

Geraldo – Este emblema é um ofá, é o símbolo de Odé, é o símbolo do caçador.

Oxossi é o provedor. Seu jeito de ser está associado a mata, a caça. Seu jeito é de uma

criatura que coloca toda atenção naquilo que faz. Oxossi é o protetor por excelência. É o

pai das comunidades. Não é a toa que é o Orixá da nossa mãe. É o Odé Kaiodê, o

Caçador da alegria. Oxossi é quem ajuda Xangô a manter a nossa comunidade.

Mãe Stella – Hoje, eu mesmo, quero contar uma história. É uma história bonita.

É uma história de coragem, fé, solidariedade e confiança em si mesmo. Penso que dá

também bom material para ensinar as crianças. É uma história que já está adaptada para

crianças, num trabalho de Vanda e Petrovich: Era uma vez, um rei africano que estava fazendo, como todo ano fazia, a festa dos inhames. De repente, um grande pássaro começou a voar de jeito que a asa direita cobria todo lado direito do palácio e a asa esquerda cobria todo o outro lado. As penas do seu rabo varriam o quintal. E a cabeça cobria todo portal da entrada. A tristeza invadiu o palácio. O rei chamou o caçador das vinte flechas. Ele não atingiu o pássaro, o rei o prendeu. O caçador das quarenta flechas teve o mesmo destino. Veio o de cinqüenta flechas, também não acertou. Aí chegou o de uma só flecha. A mãe dele ficou rezando para que tudo desse certo com seu filho. Ele atingiu o pássaro. A alegria voltou à cidade. O rei lhe deu a metade do reino. Os três caçadores foram soltos e lhe ofereceram muitos sacos de búzios. E todos dançaram e cantaram felizes, dizendo Oxossi!, o caçador mais querido do povo!”(PETROVICH, MACHADO, 2004, p.75.

(Aplausos)

Page 153: Àqueles que têm na pele a cor da noite

140

Geraldo – Okê Arô!64

Professora – A gente ouve falar tanta coisa, sem a menor noção da

realidade.Que bom que estamos estudando tudo isto, caminhando, escutando vendo tudo

como acontece. É tudo muito diferente da realidade que se cria lá fora. Nunca vamos

esquecer esta experiência. Vamos lembrar sempre de tudo e de todos. (Risos)

Vanda – Depois desta vivência, vamos pensando numa possível prática com

nossas crianças. Agora que aguçamos todos os sentidos vamos voltar para a escola.

Vamos experimentar e construir juntos um jeito de ensinar parecido com o jeito como se

ensina e como se aprende na comunidade de terreiro, considerando todas as falas que

escutamos nestes dias. A fala dos pais, a fala das crianças, a dos técnicos da SMEC,

enfim, tudo que ouvimos é importante para esta nossa formação.

Narrador – Em burburinho, começamos a andar de volta, seguindo Mãe Stella.

Todos falavam baixinho, sem desviar a atenção do caminho. Continuamos fazendo as

nossas descobertas...

Intervalo

A leitura é interrompida com a proposta de dividir o grupão em dois. Cada grupo

escolheu suas questões ou reflexões sobre o que ocorreu incluindo os orixás e os

aspectos culturais possíveis de serem trabalhados com vivências pedagógicas com as

crianças. Foi combinado que seriam considerados como temas: meio ambiente, as

pessoas, nutrição e saúde. Também foi proposto o resultado dos diálogos apresentados

em painéis ilustrados sem perder de vista como se ensina e como se aprende as coisas

do terreiro e a proposta de formação de sujeitos autônomos, coletivos e solidários. Tudo

foi cumprido conforme o combinado, e será mostrado no final desta próxima leitura.

(Recomeçando a leitura)

Narrador (lê cartaz)

64 Saudação a Oxossi

Page 154: Àqueles que têm na pele a cor da noite

141

4.8.3 O criador dos homens e portador da sabedoria

Diretora – Bom gente, Mãe Stella já vem para o início do trabalho.

Petrô – A idéia agora é começar pelo lado contrário. Vamos fazer uma

caminhada. O ponto de partida vai ser da casa de Omolu, ao lado esquerdo do barracão.

Vamos caminhar pela roça. Vamos caminhar com a percepção alerta. Esta será uma

viagem atemporal.

Professora – Ótimo. Gosto desta idéia. A nossa cultura está muito ligada aos

elementos da natureza: Ah! Água, vento... Encontrar estas pessoas... Ficar dentro da sala

é perda de tempo. Já perdemos muito tempo.

Professora – Olha gente! Quem foi Naninha?65! Vocês ouviram? A pró falou

nossa cultura.

Professora – O que estou fazendo aqui, se não buscando também saber da

minha origem?!

Mãe Stella– (Chegando) - Parece que estamos todos aqui, não é?! O que é que

estão rindo tanto? Aqui é um lugar muito interessante. É a esquina do fuxico, (riso

geral). Na nossa língua fuxico é ejó. Agora nós vamos fazer ejó sobre os orixás. Se for

sobre os orixás é coisa séria. Então não é fuxico. Toda esta conversa é para

compreender o que vemos todos os dias sem dar atenção.

Professora – Acho que foi Júlio Braga que lançou um livro sobre Fuxico no

Candomblé (1998).

Mãe Stella – E quem disse que é só nos terreiros que se faz ejó. Na

Universidade é o que mais se faz. Também nas igrejas e nos conventos. Fora dos

terreiros, a Bahia é também um fuxico só. (risos)

Professora – Agora gostaria de perguntar a Mãe Stella - Porque Oxalá é Senhor

do Bomfim.

Mãe Stella – Veja bem minha filha, Senhor do Bomfim tem toda importância

como santo da igreja católica, e nós o respeitamos muito. O Senhor do Bomfim está lá

na sua igreja. E Oxalá é Oxalá. Houve um tempo que este sincretismo até fazia sentido.

Era uma forma de camuflar a nossa religião para sobreviver à violência da imposição da

nova cultura do colonizador... Hoje, somos livres o suficiente e temos consciência para

não depender mais das muletas do cristianismo. Também há o caso da dupla pertença.

65 Expressão equivalente a quem te viu e quem te vê.

Page 155: Àqueles que têm na pele a cor da noite

142

Aqui mesmo tenho filhos e filhas que até se dizem católicos. Mas esta é ainda outra

conversa. Como o dia dedicado a Oxalá é sexta-feira, alguns negros iam à colina

sagrada com os seus senhores, e daí ficou o costume.

Professora – Pensando bem, o que pode ter a ver a Virgem Maria com Oxum? É

melhor ser assim mesmo - Cada um no seu lado. Se não, até o santo vai ficar

atrapalhado. (Risos)

Mãe Stella – É bom lembrar para vocês, que orixá não é espírito. Os orixás

estão associados a elementos da natureza, é uma outra energia. Eles são princípios

ordenadores da criação divina e dos comportamentos humanos. santo da igreja católica

é pessoa, espírito de gente que se distinguem pelos seus atos e obras perante a igreja.

Nós também temos negros tanto no Brasil quanto na África, que também se distinguem

pelos serviços prestados ao nosso povo. Mas afirmamos que eles são nossos ancestrais

e, não santos. Os orixás e ancestrais são exemplos a serem seguidos.

Deusimar –(Passando apressado) - Bença Mãe Stella.

Mãe Stella – Xangô abençoe. Soldado no quartel quer trabalho. Aproveite bem

o seu tempo aqui hoje. Vamos trabalhar com estas professoras. Seu trabalho hoje é

conversar com este pessoal sobre o seu pai Oxalá. Oxalá é o pai de todos os orixás e

criador dos seres humanos. Ele é o orixá do início e do fim. Sua cor é o branco. E

branca é a cor da ancestralidade.. Prossiga Deusimar. Comece do princípio. Quem sabe

pelas águas de Oxalá?

Deusimar – Bem gente, fazer o que?! Bença minha mãe. Vou começar pelo que

fica à vista de todos. A festa das Águas de Oxalá. A festa é um grande ritual que faz re-

existir um episódio muito significativo da vida de Oxalá.

Mãe Stella – Vamos entender melhor este período de festa. São dezesseis dias

que passamos aqui em obrigação. É um tempo muito importante, por que tudo é feito

para que aconteça um encontro mais profundo com a nossa espiritualidade. Este é um

momento que se repete cada ano. Muita coisa pode acontecer diferente, mas emoção é a

mesma.

Deusimar – Tudo tem início na quinta-feira que antecede a última sexta-feira,

do mês de setembro. Chegamos à tardinha. Cada um toma o seu banho de folhas para

limpeza e preparação espiritual. E se veste com a roupa de ração.

Professora – O que é roupa de ração?

Deusimar – A roupa de ração é feita de morim. Sem enfeite nenhum nem na roupa das mulheres nem dos homens.

Page 156: Àqueles que têm na pele a cor da noite

143

Décio – Eu quero dizer uma coisa, assim que chegamos aqui na roça o clima

ambiental e psicológico muda. Todos, naturalmente, começamos a falar mais baixo. E

tudo, desde o fim da tardinha, vai ficando muito quieto até o silêncio absoluto.

Deusimar – É isso mesmo. No início da noite, ainda cedo, cada um carrega sua

esteira, sua quartinha que vai carregar a água, um obi, um travesseiro, um ojá e um

lençol. Os homens vão dormir na casa de Xangô. As mulheres vão para casa de Oxalá.

Professora – Nossa! Eu tenho a maior curiosidade em conhecer a casa de Oxalá.

Deusimar – Podem ir entrando. A casa é nossa. Aqui é a casa do pai de todos.

Quando nascemos, nascemos aqui nesta casa. Quando vamos para a ancestralidade o

axexê é aqui. É aqui a despedida do mundo dos vivos.

Deusimar – Como já foi falado durante dezesseis dias nós vivemos

ritualisticamente a história da prisão e da volta de Oxalá para a comunidade. No

madrugada da sexta-feira, mais ou menos às três horas, todos nos reunimos aqui mesmo,

nesta sala. Minha mãe inicia o ritual. Aí se forma uma procissão que leva Oxalá para a

palhoça, lá fora, junto à casa de Omolu. Isto tudo no mais absoluto silêncio. Só se ouve

os passos das pessoas na areia nova colocada no caminho do balué66de Oxalá. Nenhuma

voz humana é ouvida. Só sentimos o cheiro de folhas e de roupa engomada. E a gente

vai batendo paó.É um dos dias mais bonitos e emocionantes nesta roça.

Professora – Na palhoça?!

Professora– Oxente! Do lado de fora, no chão? O que significa isto? Ele fica lá

sozinho isolado? À toa?

Mãe Stella – Professora você não prestou atenção a história mítica que foi

contada. É isso mesmo. Oxalá fica isolado de todos como ele ficou na prisão por sete

anos. Aqui ele fica sete dias lá fora. Continue Deusimar.

Ebome Deusimar – Voltando às águas. A esta altura, cada um cobrindo os

ombros com o lençol, e com a sua quartinha na mão, este vaso de barro aqui, (

mostrando o vaso)vão formar uma grande fila. Todos vão se encaminhando e se

colocando em ordem por tempo de feitura. E se dirigem à fonte de Oxum. Nós vamos

para lá agora. Vamos lá. Vamos fazer o mesmo caminho.

Vanda – A Água de Oxalá geralmente e a primeira obrigação que

participamos.É nossa primeira experiência com o coletivo, com a comunidade e com

cada um em particular.No nosso caso foi Tia Detinha que nos orientou, a mim e a

66 Lugar de banho.

Page 157: Àqueles que têm na pele a cor da noite

144

Petrovich. É inesquecível a primeira Água de Oxalá. Mãe Stella dá inicio ao cortejo em

fila indiana. Um cheiro de roupa branca se mistura com o cheiro de barro das quartinhas

e por causa da chuva vai subindo um cheiro de terra fresca. Mãe Stella caminha na

frente lentamente seguida das outras mais velhas. O toque do adjá67 anuncia o inicio da

obrigação quebrado o silêncio alegre do fim da noite. Ainda no escuro da noite que está

terminando, uma lua clara acompanha os filhos de Oxalá fazendo brilhar ainda mais o

branco da roupa de cada um. Uma chuva vai caindo fininha e fria. Ninguém arreda o pé,

nem os mais velhos, nem os mais novos.

Professora – Meu Deus! Deve ser emocionante!

Ebome Deusimar – É verdade. Tem hora que é preciso só sentir, só ver, só

escutar o que está acontecendo. Em nossa religião tudo tem um tempo e um sentido.

Ebome Décio – Quando chegamos na fonte de Oxum, assim como agora, nós

estamos fazendo agora, encontramos Darinho e Bié o seu filho e também alabê. Eles

tocam atabaque chamando os orixás. No ritual das Águas de Oxalá, eles vai enchendo as

quartinhas e nos entregando com todo cuidado.

Professora – E aí, vai entrar novamente na fila? Na mesma ordem? Segue para

onde?!

Deusimar – Quando chegamos à palhoça, passamos a quartinha para Mãe Stella

e ela vai banhando Oxalá de uma a uma. A Iyalorixá derrama água sobre Oxalá num

banho de renascimento da comunidade com a água que cada um carrega da fonte de

Oxum.

Professora – Dai em diante o que acontece?

Deusimar – Aí fazemos três viagens, sempre na mesma ordem da fila inicial. Na

segunda viagem, entregamos um obi que está conosco como oferenda de vida para

Oxalá reafirmando a presença de cada um como seus filhos. Como uma única familia.

Na terceira viagem, carregamos a quartinha com flores brancas e lá, a deixamos

ornamentando no ambiente que se torna sagrado pela presença de Oxalá.

Professora – Mas esta última viagem não fica parecendo com a lavagem do

Bomfim?

Deusimar.– Não é só parecido. A lavagem tem sua origem remota nesta

obrigação de Oxalá.

Luisinha – Neste momento, todos nós nos ajoelhamos em nossas esteiras para cantar e celebrar a volta do pai e o renascimento da comunidade. Nessa hora, pra mim é 67 Pequeno sino de metal .

Page 158: Àqueles que têm na pele a cor da noite

145

à hora mais bonita. A roça se transforma, parece um jardim de lírios. Eu fico muito emocionada. Me dá vontade de chorar.

Décio – Aí começa a hora mágica. A luz do sol vem chegando, bem

devagarzinho, iluminando a gente de corpo e alma... Cantamos... Dançamos e saudamos

Oxalá, celebrando mais um ano de nossas vidas. É lindo ver o dia amanhecendo e Oxalá

dançando e nos abençoando.

Ebome Noêmia – Meninos vejam lá. Eu nem sei se me lembro mais das

histórias do nosso pai. No tempo de Mãe Aninha... Bom, aí, eu tinha memória de

menina.

Ebome Elpídia – Oh minha irmã, comece a história que eu lhe ajudo.

Ebome Noêmia – Está certo. Então vamos lá. Epa Babá! Quanta gente bonita,

gente jovem. Cheguem mais pra perto, o velho também gosta da mocidade. São

professoras, não é? Ah!, São professoras... Prá mim é a profissão mais bonita do mundo.

Eu sempre digo a minha irmã Cantulina. - Se eu tivesse estudado mais, eu seria

professora. E ela aí fica chicanando de mim. Mas eu sei que seria uma boa professora.

Décio – Minha gente, vocês não se importam de sentar em esteiras não é?

Vamos deixar essas cadeiras para as ebomes e Elpídia e Noêmia. Aqui na casa de Oxalá

elas tem um lugar especial.

Ebome Noêmia – Bom vamos ver como nos saímos, eu e Elpídia. Onde já se

viu? (As duas riem).

Narrador – Era uma vez, Oxalá queria fazer uma viagem e avisou para o filho.

Oxalá – Meu filho vou viajar, vou visitar seu irmão.

Filho – Meu pai se lembre que o babalawo disse pro senhor não viajar por esses dias.

Oxalá – Eu quero viajar. Estou decidido. Vá lá e diga ao babalawo. Estou com saudade

de meu filho e vou lá de qualquer maneira.

Narrador – O filho foi ao adivinho e voltou muito preocupado. Ele voltou com três

recomendações:

Adivinho – Oxalá deve viajar sozinho, levando três mudas de roupa; Deve levar sabão

da costa. E deve atender a qualquer pedido sem se aborrecer.

Ebome Elpídia – E lá se foi Oxalá. Logo adiante encontra um homem,

carregando um grande barril nas costas, cheio de azeite de dendê.

Page 159: Àqueles que têm na pele a cor da noite

146

Narrador – Oxalá encontra com o desconhecido

Desconhecido velho, me ajude aqui!

Oxalá – Ajuda no quê?

Desconhecido – Ajude a arriar o barril no chão.

Oxalá – Vamos! Vamos ! Mais força. Atenção vamos pegar juntos.

Desconhecido – Ô velho fique com este barril pra você. É todo seu. (sai gargalhando).

Oxalá – Você deixou o óleo de dendê cair sobre mim. Volte aqui. Volte aqui.

Ebome Elpídia – E o sujeito saiu desembalado na carreira. Oxalá lavou–se

pacientemente. Trocou de roupa e despachou a roupa suja.

Narrador – Mais tarde outro sujeito lhe pediu ajuda para carregar um saco. Quando ele

foi ajudar, o saco era de carvão caiu e lhe sujou da cabeça aos pés. Mais uma vez,

pacientemente, Oxalá se limpou sem nada reclamar.

Ebome Noêmia – Aí, ele chegou de roupa branca, limpa e no reino de Xangô.

Mas, o que é que sucede aí? Foi logo encontrando um cavalo branco que ele mesmo

dera a seu filho como presente. E o cavalo foi seguindo os seus passos. Então não deu

outra, os criados de seu filho não o reconheceu e o perseguiram, bateram muito nele e o

jogaram numa prisão. E lá ficou durante sete e longos anos. Nesse período o reinado de

Oyó foi atingido por grandes secas. O gado morria e havia muita fome.

Ebome Elpídia – Naquele horror, seu filho Xangô consultou o adivinho, e ouviu

que tudo aquilo estava acontecendo, era por que um inocente se encontrava prisioneiro

no seu reino.

Ebome Noêmia – Mas, o que é que acontece, agora? Foi aí, que o grande Xangô

mandou vasculhar todas as aldeias até encontrar Oxalá numa prisão, todo sujo e

arrebentado pelo sofrimento. O rei carregou o velho Oxalá nas suas costas até o palácio.

Chegando ao palácio foi oferecida uma grande festa. Todo povo da aldeia foi convidada

para a festa dos inhames. E todos dançaram e cantaram com muita alegria pelo

aparecimento do nosso Pai.

(Todos aplaudem.)

Page 160: Àqueles que têm na pele a cor da noite

147

Professora – É essa a história que é lembrado pelas Águas de Oxalá?

Ebome Deusimar – É sim! Durante dezesseis dias nós vivemos esta história

ritualisticamente como se tudo fosse hoje.

Professora – E as águas de Oxalá ? Eu gostaria de saber mais desta relação com

a da Lavagem do Bomfim?

Mãe Stella – Ah! Meu Pai, já vem novamente o sincretismo. Vejam bem, vamos

continuar dando a cada um o valor que cada um tem. A festa das águas de Oxalá está

associada sim, à sua prisão, ao encontro com a comunidade quando celebramos a Festa

do pilão. Uma festa que se realiza no terceiro domingo depois das Águas. Tudo isso na

vida de Oxalá. Que é a grande festa pela sua volta ao convívio da família.

Professora – Oxalá foi um pouquinho teimoso, não foi?!

Ebome Noêmia – Um pouquinho só?! Ele foi muito teimoso. São assim as

histórias dos orixás. Tudo que acontece é pra gente aprender. Aliás, os filhos de Oxalá

geralmente têm inclinação para teimosia. Eles são também muito autoritários. Querem

mandar em tudo. Outros não. Nem parecem... e gostam de hábitos simples... Tudo muito

simples. E assim vão levando a sua vida.

Professora – Agora, outra coisa, ouvi falar que na África tem também festa do

Senhor do Bomfim. É verdade?!

Professora – Que história é esta?! Donde vocês tiraram isto?!

Vanda – Tem sim. Houve um momento no século XIX, que negros foram

obrigados a voltar para o seu continente de origem. Muitos também voltaram porque

sempre desejaram voltar para a terra dos seus ancestrais. Quando negros e negras

regressaram à África, levaram outros costumes do Brasil.Levaram a Festa do Bomfim e

o brinquedo das Burrinhas. .Eles influenciaram na arquitetura do lugar construindo

casas com sobrados e mesquitas parecidas com as nossas igrejas, sem as cruzes,

naturalmente. Com outros hábitos e valores, eles alteraram a cultura de lá do mesmo

jeito que quando eles vieram alteraram a cultura de cá. Vocês podem ver isso num vídeo

que temos aqui na escola. Mãe Stella e Ebome Detinha participaram deste vídeo. Muitos

negros já não queriam voltar para a África. O Brasil já era a sua pátria. O vídeo é

Atlântico Negro - Rota dos Orixá68. Ele conta a história do povo Agudá na sua volta

para Benin.

68 Vídeo produzido por Ricardo Barbieri

Page 161: Àqueles que têm na pele a cor da noite

148

Professora – Meu Deus! Ouvi tanto sobre as Águas de Oxalá e a minha cabeça

está pegando fogo. (risos)

(A leitura é interrompida para um breve intervalo).

Neste ponto, nós orientamos para que se formassem grupos de oito. O

encaminhamento foi para uma prosa coletiva quando todos estariam seriam instados a

expor as suas idéias e dúvidas. A seguir foram elaboradas vivências pedagógicas no

Projeto Irê Ayó, com atividades para um currículo com história e cultura afro-brasileira.

(Recomeçando a leitura)

Narrador (Lê o cartaz)

4.8.4 O senhor da justiça e arrimo da comunidade Afonjá

Vanda – Vamos continuar nossos estudos com mais um orixá. Agora com o

dono da comunidade.

Professora – Então, afinal será hoje o dia da tão esperada visita, a casa de

Xangô?

Professora – Vamos entrar lá?

Professora – Será? Logo hoje com tanta gente?

Dona Detinha – Nada, daqui a pouco vão todos embora, só fica mesmo o

pessoal do cozinhado.

Professora – Não entendi nada. O que é cozinhado?

Dona Detinha – Veja bem, a casa de Xangô é diferente de todas as outras casas.

Enquanto as outras casas de orixás o acesso é restrito a poucas pessoas, a casa de Xangô

tem as portas abertas para todos. A casa de Xangô é a antena do terreiro.

Professora – Olhe bem já que começamos agora, me informe as coisas direito.

O que a senhora quer dizer com antena do terreiro?

Dona Detinha –Tudo que chega à roça é através da casa de Xangô. Por esta

porta passam lágrimas, tristezas, apreensões, desesperos, descaminhos e tudo para ser

resolvido, pela orientação dos búzios. Por aqui também passam as alegrias, festas,

esperanças, novidades boas, vitórias individuais ou coletivas... Xangô é assim; portas

Page 162: Àqueles que têm na pele a cor da noite

149

abertas, braços abertos, seus ouvidos e seus olhos sempre atentos para seus filhos. Ele

vai transformando tudo que é necessário transformar.

Professora – E quem não é filho de Xangô?

Dona Detinha – Mãe Stella costuma dizer, que qualquer um que atravessa

aquela porteira, buscando proteção ou trazendo alegria, se torna, automaticamente, filho

de Xangô.

Ebome Celina – Gente, aqui é um lugar onde não existem órfãos.

Ebome Cida – Nesta casa entram músicos, políticos, artistas, pobres, ricos e até

de outras religiões, contanto que precise, e simpatize com a nossa religião. Ninguém sai

sem resposta.

Ebome Eurides – Aliás, na casa de Xangô é diferente. Chega-se e logo depois

de saudar os ancestrais imediatamente saúda-se Xangô e aí é que vamos saudar Mãe

Stella e a Iya Kekerê. Saúda-se a todos os mais velhos, pedindo-lhe a bênção. É assim....

Professora – Iya Kekerê? O que é Iya Kekerê? Ou melhor, quem é a Iya

Kekere?

Ebome Eurides – Ta vendo esta senhora que vem ali?

Professora – Onde?

Ebome Eurides – Ali, moça, lá vem ela. Aquela aí do cabelo todo branquinho.

Professora – Ah! Já sei? Ela é uma gracinha. Vejo-a sempre subindo e descendo

à roça.

Vanda – Bença Mãe Georgete?

Mãe Georgete – Agora que vem chegando não é? Você agora só vive socada

nesta escola... Oxum lhe dê juízo. Olhe, a mãe de santo quer todo mundo aqui domingo.

Não deixe de vir não, viu? Ela quer que vocês todas (continua falando e andando).

Ebome Eurides – Já sabe quem é a Iya Kêkerê?

Professora – Já entendi, Mãe Georgete é uma espécie de segunda pessoa da

Mãe de Santo. Isto eu já aprendi. Pelo jeito ela tem bastante autoridade sobre os filhos.

Jane – E não é só isso. Outro dia Mãe Stella falou que por tudo que ela é e por

tudo que faz, ela representa Oxum diante de nós. Nós lhe pedimos a bênção

respeitosamente.

Professora – Tem que ser assim mesmo? Meu Deus, nunca vi etiqueta mais

complicada, mais rígida.

Vanda – Nem tanto. Cada roca com seu fuso, cada roça com seu uso. Todo

grupo social, tem suas regras de convivência. Nós temos as nossas regras que temos

Page 163: Àqueles que têm na pele a cor da noite

150

consciência da sua rigidez, mas tudo tem que ser cumprida, como manda a tradição do

lugar.

Dona Detinha – Mas Xangô tem seu lado civilizador. Lembra quando nós

falamos de Ogun e o poder da invenção do ferro. Com a idade do ferro o mundo se

transformou.

Professora – Pois é, não podemos perder de vista a função do fogo neste

processo.

Professora – A relação de Ogun com o ferro e o fogo já entendi, mas onde

Xangô entra nesta história?

Petrô – Veja bem, Xangô está associado com a faísca, com o fogo e seu poder

de transformar. Vejamos hoje a energia elétrica; a eletrônica, a cibernética, o

computador.

Vanda – O mundo começou a mudar desde que o homem fez o primeira

fogueira. Foi talvez o primeiro sinal de aprendizado pela convivência de todos os seres

incluindo a natureza. Petrô – Isto mesmo, e parece que quando os homens se juntaram

em torno das fogueiras, muitas idéias foram socializadas proporcionando mudanças

significativas no pensar e no agir da humanidade. O fogo está dentro de nós, hoje!

Cida – (Aparecendo de repente) Ta na hora de arriar, o amalá pra Xangô.

Professora – Lá vem Mãe Cantulina.É verdade que ela foi iniciada por Mãe

Aninha?

Petrô – É verdade sim, Mãe Cantulina fez 9969 anos em março deste ano. Ela é

um símbolo de resistência da nossa religião, da nossa cultura, e da longevidade.

Vanda – Você vai ver depois do amalá. Aí ela canta, ela dança na frente de

Xangô. É um momento que dá gosto se ver. É simplesmente emocionante. Você vai

chegando perto, ela já vai contando uma história.

Narrador (Lê o cartaz)

4.8.5 Assim no orun como no aiyê

Professora – Aqui é um lugar de muitas histórias

69 Mãe Cantulina foi para a ancestralidade aos 104 anos.

Page 164: Àqueles que têm na pele a cor da noite

151

Vanda – Realmente ela é muito atenta. Outro dia ela nos encontrou e foi

perguntando?

Mãe Cantulina – Menina, qual é seu orixá?

Vanda – Respondi - Oxum.

Mãe Cantulina – Tia Cantulina - E o dele?

Vanda – Ogun Mãe Cantulina, Ogun.

Mãe Cantulina – Oh! Você é de Ogun não é? Eu pensava que você era de

Xangô. Mas vou contar uma história assim mesmo, pra você saber com quem está

tratando, sente aí. Ela não é de Oxum? Então a história serve muito bem pra vocês.

Vanda – Sentamos perto dela na sala de Xangô.

Tia Cantulina – Bem Ogun era casado com Iansã. Tudo ia bem até que Xangô

começou a aparecer todo fim da tarde em sua casa. Ele chegava bonito, cheiroso e

começou a olhar para Iansã com muito interesse. Não descansou até o dia que a

conquistou e levou-a consigo, casando-se sem prestar nenhuma satisfação a Ogun. Mais

tarde Xangô pensou que podia fazer o mesmo com Oxum, mas aí foi diferente. Com

Oxum ele teve que ficar prostrado a seus pés, esperando que ela concordasse com o seu

pedido de casamento. O que só veio depois que ela se despediu de Ogun.

Tia Cantulina – Viu meu filho. Com esta ayabá é diferente. Não é, vai

chegando, e tudo dá certo não. Viu?

Petrô – Sim mãe...

(Fim da Cena).

Professora – Por que as histórias dos orixás envolvem tantos conflitos quase

sempre paixões e muitos casamentos...O que significa isto?

Dona Detinha – Já falamos sobre isto. Hoje os orixás são energias. Mas um dia

eles todos foram gente como a gente. Eles nasceram, brigaram, guerrearam e amaram

muito... Depois foi que se encantaram como orixás.

Petrô – Mas me diga, tem coisa pra dar mais equilibro ao ser humano do que o

amor?

Dona Detinha – Os orixás sempre lutaram muito, principalmente pelo amor.

Professora – Bons tempos! (Risos).

Petrô – Pois é! Quem vive sem amor. Quando duas pessoas se amam,

experimentam o poder da vida, da criação e do fogo, que transforma até as pedras.

Page 165: Àqueles que têm na pele a cor da noite

152

Professora – Gente! O que foi que ela viu, porque está tão inspirado.

Mãe Stella – Vamos faladeiras. Está na hora de entrar mesmo. Desde o primeiro

dia vocês queriam visitar Xangô. Pois é o tempo é agora. Ele também quer ver vocês de

perto.

Narrador – Mãe Stella se põe na frente de Xangô e começa a fazer a oferenda.

Todos estão atentos. Toda semana os mesmos gestos são repetidos como se fosse a

primeira vez. Canta-se com fé e alegria. A dança é companheira desta alegria. Mãe

Cantulina levanta os braços, lá na frente, e grita com toda força do seu coração.

Cantulina – Kawo Kebyesile!70

Todos – Kawo Kabyesile!

Narrador – É a voz centenária de Mãe Cantulina que se espalha por todo o

Terreiro, saudando o pai Xangô. Mãe Stella reza pela comunidade, consciente da sua

missão, de olhar e proteger esta imensa prole que Xangô lhe confiou.

Aqui termina a leitura do texto dramático Prosa de Nagô, na sua versão

recriada, para compreensão da tradição e cultura da comunidade Afonjá.

Petrô pede dez minutos de meditação individual. Ao fim deste tempo é sugerido

ao grupo que se organize em grupos para elaboração de uma frase síntese. As frases

juntas foram organizadas como um texto para ser revelado na roda de conversa.

70 Saudação a Xangô.

Page 166: Àqueles que têm na pele a cor da noite

153

Árvore do Tempo. Foto Vanda Machado

Page 167: Àqueles que têm na pele a cor da noite

154

5. RODA DE CONVERSA: um exercício na prática de educação com o pensamento africano recriado na comunidade Afonjá

(Manhã de 17 de junho de 1999).

Finalizando a leitura, foi solicitado que cada participante dissesse uma palavra

sobre a história de Iansã e a democracia das folhas: As palavras foram compartilhar

socializar, autonomia, solidariedade, união e poder, descoberta, democracia,

democratização, repartir, segredo compartilhado.

A seguir, os participantes fizeram uma representação plástica sobre a mesma

história. A história foi narrada enquanto o grupo acompanhava com gestos. A

culminância da história foi quando aconteceu uma chuva de folhas sobre os presentes. E

assim foi iniciada a roda da prosa de nagô.

Petrô (UFBA- Afonjá) – Transpondo a cultura daqui e de outros lugares, foi

importante acompanhar este jeito como cada um conseguiu mostrar o que compreendeu.

Eu não vi ninguém dizer que não sabia o que fazer. Todos entraram num jogo

Page 168: Àqueles que têm na pele a cor da noite

155

intensamente criador. Então o que é isto? O que é que faz a gente agir assim. Gostaria

que uma pessoa de cada grupo fosse falando ou fazendo uma síntese do que aconteceu

no grupo. Um relator de cada grupo no primeiro momento, depois a gente entra num

diálogo mais amplo na roda de conversar.

Aída (Escola Eugênia Ana dos Santos-EEAS) – Bem estamos falando do

Projeto Político Pedagógico Irê Ayó. Eu não sei se está acontecendo também com

vocês. Eu tenho muitas dúvidas ainda principalmente quando falamos em pensamento

da matriz cultural africana. Também sobre os princípios e valores desta comunidade.

Tem umas coisas que eu percebo. Outras coisas eu preciso ainda de muita conversa.

Como incluir no currículo e na sala os acontecimentos, hábitos e costumes de vida desta

comunidade?

Vanda – Perfeitas suas observações. Quero chamar a atenção dos presentes para

esta próxima roda de conversa que envolve entre outras questões básicas sobre a

motivação para aprendizagem que é o referencial da comunidade de terreiro, sua

tradição, história, memória e o currículo que desejamos construir, o currículo básico

sistêmico e um planejamento que atenda os princípios de complexidade, flexibilidade e

o fazer coletivo.

Ana Rosa (Secretaria Municipal de Educação e Cultura – SMEC) – Eu sinto que

o trabalho que a gente apresentou foi exatamente tudo que aconteceu no grupo. É o

princípio de tudo. Testemunho que a mudança e a construção foram genuinamente

coletivas. A partir de uma motivação como vocês vêm propondo, o tempo inteiro, a

gente traz um sentimento, a gente traz uma idéia cada um vai colocando um pedacinho,

e este pedacinho que vai sendo colocado vai transformando a idéia do outro e criando

algo que é novo. Prá mim, esta vivência tem este sentido muito forte do grupo

transformar o próprio grupo, construindo e reconstruindo o conhecimento a partir daí.

Este é o sentimento que tenho em torno do processo que aconteceu. E a gente queria era

convidar as pessoas exatamente para este movimento.

Aída (EEAS) – Olha gente, é como se eu nunca tivesse conhecido o Afonjá.

Gente é tudo diferente mesmo. Como a gente está aqui todo dia não se dá conta de que

tudo é muito diferente. As pessoas, suas roupas, a maneira de cumprimentar, as

conversas, as brincadeiras. As falas das pessoas com palavras africanas, as cantigas. E

as festas então, nem se fala! Eu já vi uma festa e não vi. Da prá entender? Tenho a

impressão que estou aprendendo um caminho novo. Vamos aprender os caminhos.

Page 169: Àqueles que têm na pele a cor da noite

156

Caminhos das folhas, do espaço, dos ventos, da terra, das casas, das danças, dos orixás.

E o melhor ainda que é compreender de onde vem a alegria destas pessoas.

Edna (EAAS) – O que me chamou atenção é o fato de se acreditar que cada

orixá ter um jeito de ser e de ajudar os seus filhos com a possibilidade de cura de todos

os males. Ter a sua folha, a sua força, a sua essência, o seu poder. Foi lindo. Quem

prestou atenção à história que Vanda nos contou. Quem colocar esta história aqui na

cacholinha não se perde nunca mais.

Auxiliadora (EEAS) – Eu acho o seguinte o outro grupo pensou alguma coisa

diferente. Foram criativos, mas nós estamos nos conduzindo como pensamos em fazer

com as crianças. Pensamos em uma outra maneira de conduzir esta vivência. Não é,

que a ação mostrada não seja boa para as crianças. Eles vão adorar. Vai ser uma farra

espalhar todas estas folhas como fez Iansã.

Meire (EEAS) – Quando Vanda esteve em nosso grupo, ela tomou

conhecimento também do conteúdo que esta história pode motivar de uma forma de

ensino transdisciplinar. E nós queremos acrescentar agora o que nós escolhemos o que

poderá ser trabalhado com as crianças agora já no processo de aprendizagens

significativas. Ossain foi o mais explorado em nossa equipe. Nós fizemos uma lista.

Nós podemos trabalhar ecologia, meio ambiente, medicina alternativa, a importância

das folhas, já que as crianças convivem com tudo isto aqui.; os fenômenos da natureza,

os vegetais, as plantas, os alimentos vegetais, as raízes na alimentação. Nos estudos

sociais, a questão das regionalidades, a flora do nordeste que nos interessa mais

diretamente. A divisão política do Brasil questão das regionalidades mesmo. Idéia de

democracia ou socialização. Iansã fez com que o conhecimento e o poder das folhas

fossem divididos com todos. Importante perceber que Ossain continua com o poder de

ser a própria folha, mas o conhecimento foi distribuído com todos os orixás. Também é

possível pensar problematizações envolvendo a divisão. Importante ainda como

aprendizagem significativa o trabalho com espaço e forma e geometria.. O formato de

cada folha, tamanho cheiro e textura. Aparelho respiratório, circulatório e também o

digestivo que também foi falado nos versos. As crianças podem ter notícia e até ver a

mata atlântica que ainda tem um restinho aqui lá no fundo do terreiro. Não podemos

esquecer as folhas que servem para remédio. Aquela folhinha que é boa para os olhos, a

afavaquinha de cobra. Quando eu era menina a gente colocava nos olhos e rezava: Santa

Luzia passou pó aqui com seu cavalinho comendo capim... Alguém se lembra? (Risos)

Como é que vocês chamam?

Page 170: Àqueles que têm na pele a cor da noite

157

Vanda – Orinrin. É uma das folhas de Oxum. De fato há algumas

sincronicidades muito interessantes. Há uma qualidade de Oxum sincretizada como

Santa Luzia. Imagine...

Meire (EAAS) – Os versinhos falaram das folhas que curam o estômago. Isto

prá nós é um despertar. Foi a partir daí que o nosso grupo fez o inverso de vocês. Ao

invés de a gente lançar primeiro a proposta e que depois eles façam um trabalho de

conclusão como vocês apresentaram, nós fizemos o contrário. Nós faríamos uma

dinâmica para que identificassem princípios e valores contidos nas histórias. Seria o

inverso da apresentação de vocês. A representação seria após estes pontos serem

trabalhados. O nosso grupo pensa uma apresentação, e a partir daí eles diriam: olhe, nós

podemos saber mais sobre o vento as folhas ou porque cada orixá precisa ter as suas

folhas. Eles é que poderiam sugerir o que querem trabalhar e o que julgam mais

importante para o momento.

Ana Rita (SMEC) – Eu quero dizer um poema. Um poema de um amigo meu. É

um poema que eu gosto muito e que mudou muita coisa na minha vida. Eu só me

lembro de um pedacinho que diz assim:

Que distância existe entre a cabeça e a boca?

Que abismo intransponível haverá entre a boca e o coração?

Quantas légua e mais léguas, estradas quase sem fim?

Estarão mesmo a ligar nossas bocas a nossas mãos?

Então, eu não sou professora de crianças como vocês e acho fantástico como vocês

conseguem rapidinho estabelecer estes vínculos, esta teia e fazer estas associações entre

os mitos, as leituras sobre a cultura, o conteúdo que está sendo apresentado e a forma de

realização de tudo dentro de um outro processo de uma educação transdisciplinar. Aí, eu

vejo as professoras fazendo isto com uma criatividade, com uma força. Eu não tenho

esta habilidade. Mas eu vejo que existe uma outra coisa que a gente não pode

desconsiderar como coisa menor que é o próprio movimento que se estabelece dentro da

sala de aula.

Eu tenho estado em muitas escolas que o discurso é o discurso do

construtivismo. Mas aí eu fico perguntando, qual a distância real que existe entre este

discurso e o que efetivamente minhas mãos fazem? e como eu estou diante do meu

grupo enquanto grupo também? apenas como uma pessoa que tem uma história

diferente do outra e se permite a abertura de construir coletivamente?. Então, quando a

gente faz isto, que eu acho que antes de tudo vem a partir deste sentimento da

Page 171: Àqueles que têm na pele a cor da noite

158

necessidade de experimentar esta construção, porque é verdadeiramente, a gente

construiu alguma coisa significativa. Foi muito legal pra mim, foi muito legal a fala de

Petrô, quando ele diz: eu sou o alimento, quando a gente se sentia muito integrado a

tudo isso. O anterior ao conteúdo ou talvez o não anterior é tão essencial como conteúdo

que a gente pensava na distância que a gente empreende, porque a gente está aqui junto,

compartilhando; porque quando eu me abro para o outro e posso construir. Eu estou

abrindo mão de uma relação de poder, estou abrindo mão de crenças, estou abrindo mão

de um lugar para o qual estou querendo sair e aí sim a gente constrói de verdade

coletivamente. Então, quando a gente chama a atenção e fala dos meninos poder

elaborar, que a criança pode soprar folhas e resgatar o prazer, diminuir certas distâncias

entre a boca e o coração e as mãos. É mais ou menos isto que eu sinto em relação ao que

a gente construiu no grupo, e pra mim foi muito forte fazer isto. E diante de tudo isto, da

flexibilidade da mudança do convite a compartilhar e construir juntos. Porque não é

fácil não. É fácil a gente falar sobre isto, mas muito difícil é a gente fazer. É um

exercício democrático, e que pouquíssimas pessoas têm a ousadia que Iansã teve.

Porque pra mim antes de tudo o ato dela foi de muita ousadia de chegar a desafiar o que

está instituído e promover uma mudança. Vamos mudar mais a mudança só acontece de

dentro para fora, quando a gente se propõe a sair do que está posto, rasgar papel e

soprar, sair sujando tudo e depois limpar, reorganizar como você estava falando.

Adriana (EEAS) – Na verdade, o que a gente fez foi transformar o prazer em

aprendizagem significativa. O mito que Vanda nos contou, a história de Ossain, como

ele guardou o segredo das folhas. Outra coisa é como a pessoa se prepara para preparar

alimentos para depois compartilhar. Precisamos pensar muito na nossa preparação para

depois compartilhar. Isto é fazer a cabeça. Precisamos pensar muito na nossa

preparação antes de entrar na sala de aula para dividir o que sabemos do jeito como

aprendemos. Isto foi a síntese do que aprendemos neste pedaço de manhã.

Aldir71 – É muito importante mesmo que cada um possa pegar o que é da sua

competência. Eu acho que isso é importante para quem educa. Educar é ter o que

realmente o que dividir. Quando eu divido o que sei, eu cresço.Este mito nos faz pensar,

nos faz compreender o poder que o professor tem na sala de aula.

Ana Célia72(UNEB) – No nosso caso, o trabalho aconteceu na hora em que nós

íamos discutir que apresentação nós iríamos fazer, considerando que este planejamento

71 Ogan do terreiro da Casa Branca, visitante do Afonjá. 72 Doutora em Educação, professora da UNEB e iniciada.

Page 172: Àqueles que têm na pele a cor da noite

159

acontece de fato num processo contínuo. E não podemos perder de vista o que

aconteceu no início da aula de hoje, quando discutimos a importância do planejamento.

Na hora não falei por que na universidade eu tenho dificuldade de fazer o planejamento

no processo. Na universidade, o planejamento é solicitado antes de conhecer os

estudantes. Antes de conhecer a capacidade, o potencial e a dificuldade. Todo semestre,

eu tenho o mesmo problema. Eu vou construindo da maneira como o aluno se porta.

Pela exigência institucional, eu apresento um planejamento prévio que seria o

equivalente a conteúdos programáticos. O planejamento acontece na sala de aula, ou

seja, o que vale aqui é o que chamamos de motivação, aqui é tudo tão natural. Este é o

verdadeiro currículo. Isto é bem diferente de um esquema que prevê um aluno como a

universidade me obriga a fazer, e não tem nada a ver com as pessoas que têm outras

culturas e está vivendo por trás da experiência. Daí eu faço um de verdadeiro

malabarismo, enquanto aqui vocês são livres.

Vanda – O currículo em uma escola não é tudo, mas deve ter a ver com tudo e

com todos. Como construir uma prática que desconhece o lugar de onde se fala? Que

desconhece para quem se fala? O currículo deve considerar: a história, a cultura, as

possibilidades e itinerância do outro e a sua própria. Sendo assim, o planejamento

deverá contemplar aspectos que expressem, traduzam, compreendam a forma de ser do

lugar e das pessoas para quem foi construído, para quem é, e para onde foi pensado.

Petrô (UFBA - Afonjá) – O que importa é a consciência da responsabilidade do

saber e para onde estamos indo com a nossa criança. Que tipo de criança estamos

considerando? Uma criança que vai passar de ano? Ou um ser que estamos preparando

para ser en-sinado na vida? Se voltarmos o pensamento para o jeito como se aprende

aqui na roça, en-sinar faz outro sentido. É preciso ser de fato aprendente e desejar muito

este conhecimento. Cada educador na sua sala de aula tem a sua autonomia. Mas tem

também o princípio que caracteriza a escola que pode ser o princípio do poder instituído

ou não. Aí, o educador tem que tomar uma posição. Não pode ter medo de fazer a

educação da liberdade. A palavra é também como um sopro de vida. A gente ouve

muita coisa que não significa que não é um sopro de vida. É preciso escolher a palavra

certa. Palavra com vida!

Ana Tedesco (SMEC) – E a gente que começa a apensar que até agora a

deixamos as crianças dentro de uma sala de aula querendo botar as coisas muito bem

enquadradas encaixotadas sem considerar que elas são capazes de criar e construir sem

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160

deixar fluir esta criança livremente porque esta criança espontânea está viva em cada

um desses alunos e em cada um dos adultos que vivem à mercê das leis da verdade.

Corina73 (SMEC) – Acompanhei o grupo e percebi toda liberdade de criar

orientado por Vanda e fiquei admirada do tamanho da riqueza que estamos construindo.

Então, nós, o grupo quando entrou ali para discutir cada um lançou uma questão em

torno dos elementos formadores do meio ambiente, do ar, do fogo da água e da terra.

Observamos a combinação das cores do ambiente natural e o construído. Vimos

também que há coisas que só a cultura explica, conforme conceito elaborado pelos

nossos capacitadores. Pensamos também nas informações históricas que recebemos

sobre as culturas africanas. Então, cada um, na verdade, contribuí numa tempestade de

idéias. Todos foram ouvidos todos os elementos do grupo, e cada um ia se colocando

como achava o que deveria ser dito daquela imagem que deve reunir o pensamento do

grupo. Então nosso grupo quis representar a surpresa com o surgimento do projeto que

estava aqui e era uma realidade e que ainda não tinha sido despertado totalmente.

Ana Rita (SMEC) – Eu fiquei aqui encantada com alegria da mãe pequena de

Vanda, a alegria de D. Raimunda e o prazer que ela estava a demonstrando no olhar

percebia-se que ela estava satisfeita. Ela estava partilhando a sua alegria, o seu saber.

Aqui não têm só professores. Aqui têm seres humanos com um potencial imenso para

contribuir para somar a nível de suas experiências, processo de vida e cultura.

Edna (EEAS) – Nós trabalhamos em nosso grupo, o meio ambiente o equilíbrio

da natureza e o contexto cultural de nossas crianças. Lembramos de como as diferenças

podem formar a unidade, considerando o saber destas crianças e da comunidade.

Ana Rita (SMEC) – O que chama a atenção neste trabalho é a construção dos

grupos de trabalho. A roda de conversar é talvez a melhor imagem deste trabalho

porque a gente poder estar sentado e dialogando cada uma apresentando os seus pontos

de vista e os seus sentimentos em relação ao que a gente vivenciou; e enquanto nós

produzimos os diversos movimentos neste espaço. A gente ia e voltava cada um

buscando um movimento próprio, mas também atento ao movimento do outro. Estou

falando de sintonia, estou falando da harmonia do equilíbrio, mas também de um

dinamismo muito grande.

Meire (EEAS) – Eu conheço algumas pessoas e aqui, mas esta integração, esta

falta total de vergonha, digamos assim, (risos) me impressionou. Este construir alguma

73 Coordenadoria da Regional Cabula

Page 174: Àqueles que têm na pele a cor da noite

161

coisa sem pensar se a outra pessoa vai achar engraçado ou não. Realmente eu achei

interessante. Aquela coisa de explorar lugares e espaços sendo interessada e autêntica e

fazer o trabalho sem medo, sem ansiedade, sem nenhum constrangimento é muito

agradável.

Adriana (EEAS) – Nós todos temos notícias do que é a violência nas escolas.

Quando saímos por aí circulando pelo terreiro eu me dei conta que aqui se pode ter

contato com o verde, com água, com o som das arvores, com o som do ar com a água da

fonte... Eu pergunto para minhas companheiras vocês conhecem outras escolas, onde é

possível trabalhar deste jeito? Independente de ser ou não de religião de matriz africana,

aqui se tem um lugar especial para trabalhar, ou melhor dizendo para nos valorizar. Em

primeiro lugar, esta é uma proposta viável. Se nós fomos capazes, imagine as crianças

com a imaginação que elas têm. A gente é quem pensa que elas não conseguem.

Quando saímos e fomos lá até o fim do terreiro foi com se estivéssemos chegando aqui

pela primeira vez. Constatei o que esta ação é capaz de transformar. Para mim, a grande

palavra aqui dentro é transformação. A gente sempre transforma, e aqui tem um outro

ponto-chave que e a motivação.

Meire (EEAS) – Temos que continuar mostrando a criança este espaço. As

crianças vivem aqui diariamente, mas não se dão conta do acervo cultural que existe

aqui para aprendizagem significativa. Tudo está aí exposto o tempo todo. Não

precisamos passar para elas neste nível que estamos falando aqui, mas no nível do que

já entendem, no nível da convivência e valorização daquilo que é nosso. É para poder

dizer um para outro não suje a fonte, que é nossa também. Percebo como é fácil falar da

importância destas plantas. Quantas vezes chegamos aqui com uma dor de cabeça,

pressão alta e eles mesmos dizem: professora àquela folha ali é boa, vamos fazer um

chá? Podemos mostrar para eles a importância de tudo isto porque nós somos

privilegiados com toda esta riqueza. Quando cheguei na fonte quase chorei porque não

pude encostar na fonte. Estavam limpando a fonte. Eu passo todos os dias ali, mas hoje

eu tive muita vontade e curiosidade de ir lá, bem de perto.

Edna (EEAS) – Foi bom, foi maravilhoso o passeio da gente pelo terreiro. Foi

bom para mim e para meu filho que hoje me acompanhou para esta escola. Sempre

andei aqui dentro do terreiro e nunca tinha ido lá embaixo. A notícia que temos é que

num terreiro tem muita coisa feia escondida pelo mato. Eu encontrei muita coisa que eu

nunca tinha visto. A natureza aqui é diferente, estas árvores que há muitos anos estão

aqui e ninguém toca. Tudo é bonito e é importante demais.

Page 175: Àqueles que têm na pele a cor da noite

162

Ana Tedesco – Quando Petrô trouxe inicialmente a pergunta: o que é que nós

somos capazes de fazer a partir da experiência que vivemos aqui hoje? Então me veio a

constatação do quanto somos criativos e quanto nós podemos fazer a partir do momento

em que a gente permita nossa própria transformação. Penso no mito de Ogun que nos

foi contado por Vanda. E a professora afirma que nossas crianças não conhecem todo

este acervo que possuem. Eu me questiono, será que nossos alunos não conhecem ou

são vocês que não conhecem porque estão aqui fechados, congelados? Por que a coisa

social tenta sempre congelar professores e alunos que são tão espontâneos, que são tão

criativos? E a gente começa a fechar eles dentro de uma sala de aula, querendo botar as

coisas muito mais enquadradas encaixotadas, tornando-as incapazes de criar e construir.

E preciso deixar fluir esta criança livre. Esta criança espontânea que vive cada um dos

alunos e cada um de nós adultos também.

Corina (SMEC) – Primeiro, gostaria de externar a satisfação nossa da Regional

do Cabula, em ter uma escola como a Eugênia Anna. Escola que já venho

acompanhando há certo tempo e conheço a equipe pedagógica e administrativa, e sei da

competência e do avanço que esta escola tem. Eu nunca andei por este terreiro. Sempre

que eu venho aqui e me dirijo para escola e o máximo que cheguei foi ali perto da

árvore sagrada e da fonte. Acompanhei o grupo e ouvi atenta os esclarecimentos de

Vanda. Fiquei admirada de tudo, do tamanho da riqueza de tudo que temos exatamente

porque somos negros. O nosso grupo quando entrou ali para a roda de conversar cada

um lançou uma questão em torno dos elementos formadores do meio ambiente.

Considerando o ar, o fogo a água, da terra vimos a questão da flora da fauna, vimos

também o conceito de cultura, conforme foi elaborado pelos nossos capacitadores.

Ana Tedesco – Passamos também pelas informações históricas que recebemos

sobre as culturas africanas. Então cada um na verdade contribuiu numa tempestade de

idéias. Foram ouvidos todos os elementos do grupo e cada um ia se colocando como

achava que devia. O que deveria ser dito da imagem que cada um construiu e na

imagem que deve reunir o pensamento grupo. Então nosso grupo quis representar o

vento quando nós entramos aqui com movimento e alegria. A questão do surgimento de

um projeto que estava aqui na verdade e bem maior do que já havia despertado. Esta

integração, união e o que vai fazer com que tudo possa florescer e dar bons frutos.

Anativo (Escola de Teatro) – Eu vejo que uma coisa vai entrelaçando com outra,

a agente fica vivendo e percebendo que todo nascimento precisa de cuidado. Aqui,

precisamos de cuidado, mas também de muito conhecimento para a evolução da força

Page 176: Àqueles que têm na pele a cor da noite

163

para aprender vivenciando e para en-sinar como vivenciar. A sugestão da palavra axé no

final da apresentação foi minha e tem a ver. Tem a ver com a união de mãos se

refazendo. Porque deste processo caótico que toda a sociedade vive todo mundo

querendo matar todo mundo eu acho muito legal esta comunidade ter sua escola, por

estar preocupada com uma educação diferenciada para suas crianças.

Eu trabalho num local em que o primeiro contato com o lugar foi pavoroso

porque todo lugar que eu vou tem muitos cadeados tem portas-trancadas tem menino

trancado. E aqui eu fico pensando e se eles tivessem um espaço assim se eles tivessem a

oportunidade de estar em contato com a natureza com certeza teria um caminho para ser

outra pessoa. Eu fico muito gratificado que dentro do processo de construção do grupo

deu para sintonizar também com a idéia dos outros grupos. Foi uma idéia que foi se

identificando com outra e com o que deveria ser feito no momento.

Meire (EEAS) – Eu mesma fui artista principal (risos) fiquei só de olho e depois

foi que eu fui (risos). Foi dez, tudo foi dez. Todos mereceram um beijo cada um fez

melhor. (Risos) Aplausos por tudo que fizemos!

Petrô – Muito bem, é isto aí. Esta roda de conversa é muito importante. Percebe-

se auto-valorização da pessoa e do grupo que começa a perceber a sua identidade que é

complexa, que se forma, disforma e transforma como ser que sabe quem é .Um ser que

pertence e que participa da sua comunidade. O que vocês estão traduzindo para nós é o

que eu acho que é o maior bem desta escola. Esta escola tem identidade. Identidade que

não é privilégio do brasileiro em muitos momentos. O brasileiro muitas vezes age como

quem não tem identidade. Se você diz isto é coisa de índio. Índio? Deus me livre, eu não

tenho nada a ver com índio. Isto é coisa de negro. Eu não tenho nada a ver com negro,

isto não é comigo. Então você é como os brancos, os escravocratas. Deus me livre, eu

escravocrata? Então de onde vem isso? Quem somos nós? Bem, quer dizer então que só

então um psiquiatra para ajudar a definir a identidade de quem não é negro, de quem

não é branco escravocrata, muito menos índio. (risos) Então penso que aqui está a

afirmação da identidade do afrodescendente. Uma parte significativa da identidade do

povo brasileiro está preservada aqui neste lugar Uma identidade ancestral, uma

identidade de matriz cultural africana. Identidade que não é excludente com nada que

existe na sociedade brasileira. Estamos juntos nesta construção. É negra esta semente do

continente africano que floresce aqui e que poderá quem sabe, um dia contribuir com

quem está cuidando da etnia indígena e branca para completar o espelho da nossa

ancestralidade como brasileiros.

Page 177: Àqueles que têm na pele a cor da noite

164

Moacir de Ogun (Afonjá) – A senhora Eugênia Anna dos Santos, filha de

Xangô que o nosso pai e patrono desta comunidade, lá da eternidade deverá estar muito

satisfeita muito lisonjeada pelo que talvez ela não pudesse ter feito naquela época.

Deste modo, a senhora Eugênia Anna uma mulher negra de pulso e criadora

desta riqueza toda que aqui temos e hoje estamos reconhecendo. Tudo foi acontecendo

de década em décadas; mas um dia ela pôs no mundo da espiritualidade uma criatura

que se chamou Mãe Senhora. Mãe Senhora fez nascer Maria Stella, hoje, mãe Stella.

Foi ela quem fez o descortino. Ela começou isto para que hoje nós tenhamos

principalmente esta escola. Está entendendo? Com uma equipe formada de gente

trabalhadora, bem inserida, que está mostrando todo este valor aqui dentro quando tudo

parecia escondido. Vanda e Petrô são seus filhos e ajudantes para que este colégio seja

o que é.

Ana Rita – Neste trabalho e nesta pequena manhã no comportamento de todos

na fala de todos na programação pensada, refletida, esmiuçada, no esforço para cada

pedacinho de coisa que se fez e a gente sente que há uma coisa da paixão mesmo. Eu

amo quando com pequenas coisas podemos fazer grande coisa. Eu estava mostrando

para Gabriela: Olha como é fácil fazer coisas tão a sérias. Às vezes se cria muitas

dificuldades. Aqui não se tem grande material. Tudo é muito simples assim estamos

conseguindo uma proposta efetiva para esta comunidade. Não estamos num grande

teatro, mas tivemos um grande espetáculo com atores maravilhosos. Uma grande aula

com materiais simples, com a proposta de cada um. Acho que essa é uma riqueza

imensa que nós estamos desenvolvendo aqui. São tantas as lições, as informações que

vão sendo passadas, e aí a gente vai sentindo a intencionalidade de quem está à frente da

condução do processo de um trabalho singular. Então não foi à toa que Vanda e Petrô

apresentaram o vídeo You e contaram o mito da Transformação de Ogun. Acho que o

mito põe a gente para refletir sobre o que é a vida e vai fazendo com que a gente

pensando uma só maneira de resolver o problema. Mas, vejam o que a vida vai fazendo

a gente, mas a gente pode se transformar a qualquer momento e transformar para

melhor. Transformar corajosamente. A gente nasce corajoso espontâneo, natural

pescador de descobertas e tão querendo aprender... De repente, a vida e a escola vão

fazendo isso com a gente. A gente vai se permitindo também anular uma série de

potencialidades. É preciso mergulhar em si mesmo, como Ogun mergulhou na mata e

voltar não só com roupas novas, mas completamente novo. Quando Petrô e Vanda

provocam esta discussão é para mostrar que nós não podemos deixar apagar este talento

Page 178: Àqueles que têm na pele a cor da noite

165

e esta possibilidade. A gente tem que fazer este processo acontecer com nossos alunos

como Vanda e Petrô estão conduzindo esta o formação, nos estimulando pela

curiosidade. Descobrimos muitas atitudes e hábitos de origem africana que precisam ser

formados e orientados na escola. Não se pode mais ficar naquela do conteúdo, mas é

essencialmente nesta construção de seres. Agora entendemos que a missão é muito

maior do que formar um cidadão ou cidadã. A gente quer formar pessoas para que a

gente tenha outra sociedade. Eu acho que nenhum de nós está satisfeito com o mundo

que estamos vivendo. Um mundo individualista, mundo fragmentado um mundo

violento e a gente tem que acreditar no que Petrô nos abriu os olhos nesta reunião e

neste processo, nesta consideração pelas diversas formas de saberes que cada um traz

em suas experiências. Eu fico aqui pensando que dificuldade teria que se romper para

que a agente seja agente mesmo

A gente sabe às vezes o que dizer, mas fica pensando será que eu posso? Será

que eu devo dizer? A gente fica se policiando a gente mesmo e deixamos de ser

espontâneos e transformantes. A gente não é natural então a gente perdeu o jeito de ser

como se sente. Então a gente precisa retornar muita coisa. Eu estava dizendo no grupo:

na verdade nós todos aqui teremos que ser aprendizes de um novo processo uma nova

construção um novo rumo a um novo papel de educador e de uma nova forma de fazer

educação. Acho que aqui não necessitamos ir muito longe. Com a competência de todos

e a participação efetiva de Petrô e Vanda, cada um botando a sua vontade, certamente a

gente vai levantar. Temos que acreditar. A esperança tem que ser uma coisa muito

significativa na vida da gente para ser comunidade para ter uma mãe presente neste

trabalho. Tudo isto representa. Representa um segmento significativo que tem que estar

mesmo dentro da escola partilhando desta comunidade. O que estamos fazendo aqui

com a participação dos pais significa que esta escola é importante para o filho e ele

pensa: Esta escola é importante para mim. É minha esta escola eu tenho que participar

eu tenho que colaborar.

Petrô – E aí ogan Adriano como foi fazer teatro? Eu queria chamar atenção

ainda para outras pessoas e para Gabriel que também é ogan e Iraildes que é

coordenadora do AJA da Associação da Juventude Afonjá74 Moacir que é babalorixá,

ogan Wellington, ekede Nivalda, esposa de Adriano. Outros filhos do terreiro

trabalham nesta escola. Temos a ebome Luisinha, tem a ebome Maria de Iansã, tem

74 Associação criada por Carlos Petrovich no Ilê Axé Opo Afonjá em 1999.

Page 179: Àqueles que têm na pele a cor da noite

166

ebome Nidinha e ebome Tutuca. Aqui temos também ebome Detinha de Xangô que é

bem conhecida. Para mim o que uma surpresa muito grande esta participação de todos.

Ana Tedesco – Impressionante a participação do grupo que está aqui e que tudo

observa. É possível que eles estejam aí com um relatório esperando a oportunidade de

se colocar. Mas eu queria que ela desse uma palavra que ela dissesse que também o que

percebe.

Veja bem, nós estamos aqui com todos os níveis de representação: a secretária

representada pela Assessoria, pela Coordenadoria. Eu fiquei muito satisfeita com a fala

de Corina porque este segmento não pode ficar isolado. Precisamos ficar todos muito

unidos com o olhar voltado para o que é mais importante na realidade da escola. A

realidade da escola é o pedagógico. E o meu menino, é o que estou fazendo com ele? Na

fala de Corina foi um motivo de satisfação da nossa companheira Ana Rita que trabalha

na Assessoria quando leu e do projeto ela disse: que eu quero ir. Esta escola dá muita

satisfação à comunidade. Na fala do seu Moacir percebe-se como ele sente o papel desta

escola. Ele não fica diariamente na escola mais ele percebe a responsabilidade a vontade

de acertar na luta diária. Isso passa pela educação que se faz no exemplo. Eu saio daqui

satisfeita. Eu não posso ficar o tempo todo. Estou viajando hoje à tarde com a secretária.

Mas já ganhei este dia inteiro apresentando novas coisas que podem ser trabalhadas no

Brasil inteiro. Mas eu tenho certeza e a segurança que tudo está se fazendo aqui é

totalmente positivo. A leitura dramática da Prosa de Nagô pode ser a primeira etapa, o

primeiro momento. Mas vão ter muitos outros que vão acrescentando mais informações

ao nosso conhecimento revendo posturas revendo atitudes. Vamos nos sentir mais

seguros e mais competentes para o trabalho. Tudo isto me dá prazer me dá satisfação

Gabriela, agora você.

Gabriela – Meu Deus! Eu estou tão acostumada a ficar copiando como ela disse

que não sou muito mais de falar. Bem, mais desde que comecei a trabalhar na Secretaria

de Educação, eu costumo dizer a Ana que estou virando pedagoga por osmose. Que o

negócio é tão apaixonante na educação até porque eu gosto muito do ser humano. Gosto

de gente e vejo que esta é uma séria preocupação de fazer a escola melhor e mais

humana. Afinal a preocupação é que estamos conduzindo o destino de seres humanos.

Então isto não é uma coisa quadrada, cartesiana Não existe uma fórmula. Então, para

mim, um trabalho como este é muito importante. Isto que está acontecendo aqui é a cara

da gente é a cara da cidade é o que a gente vivencia no dia-a-dia. Eu torço para que esta

Page 180: Àqueles que têm na pele a cor da noite

167

experiência possa ser divulgada. Este projeto que eu tenho certeza vai ser muito legal.

Eu estou aprendendo aqui todo dia.

Ana Rita – Quando eu cheguei à Secretaria, o primeiro projeto que me chegou

às mãos foi este. E eu tinha que arrumar tudo correndo para conseguir o material para

capacitação. Quando eu comecei a ler, primeiro fiquei extremamente emocionado que

tem muito a ver com a minha vida, esta vida de todos os brasileiros baianos, essa

relação mística com uma ligação tão grande com a cultura. E fiquei muito apaixonada,

isto foi o que a leitura do projeto me despertou, foi uma emoção muito grande e uma

tomada de consciência de como eu era ignorante a respeito da minha própria história.

Tenho necessidade de retomar a questão do mito também a necessidade de experimentar

para conhecer e só assim é possível transformar. Quando a gente andou pelo terreiro e

foi pedido para construir a frase eu não conseguia pensar numa frase estruturada mais eu

pensava em palavra que tem a ver com minha experiência que não é de experimentar é

de experimentação.

Eu queria chamar de experimentação que tem a ver com o momento mais ativo

de busca. Uma outra palavra que havia também era religar o sentido de estabelecer

vínculos com todas as coisas do mundo. A gente fala de natureza não é só de meio

ambiente, mas de religar também com o outro também. E uma outra palavra ficava na

minha cabeça era reflexão. Não era só experimentação mas à reflexão sobre

experimentação que para mim a palavra refletia, tinha um sentido de, se eu for

experimentar volto sobre mim mesmo. E neste momento eu sou diferente porque o real

significou a minha vida. A minha ida para o outro, então este momento é muito especial

neste sentido por quem está me provocando e me propiciando este momento de

experimentar cada um de vocês. Experimentar o que está de fora e ver coisas diferentes

do que eu não tenho contato habitualmente. E que está sobre mim e vai me religar de

forma diferente ao mundo. Importante é também a forma como foi proposta a gente está

sentado, no circulo que é uma figura geométrica perfeita, sem princípio nem fim. É o

sinal que estamos todos eqüidistantes de um centro, e que a gente pode olhar cada um

neste momento. Se olhamos e se nos ouvimos acho que é fundamental para nos

revermos como seres humanos. É basicamente isto que eu quero dizer e me causa uma

emoção muito grande. Achei fantástica a explicação de Vanda porque a criança não é

aluno, não e um ser sem luz ela é uma criança a ser educada na vida. A escola não está

separada da vida. Neste momento eu não consigo ver a criança com um numero de

matrícula nesta escola. Eu só consigo ver crianças que convivem nesta comunidade.

Page 181: Àqueles que têm na pele a cor da noite

168

Vejo também que enquanto a gente não se entregar a outros momentos de reflexão

como este, a rede vai perder, e esta criança também perde sem esta forma de estar nesta

capacitação. Então, agradeço por estar aqui agora. Eu também fiquei realmente

emocionada de ver a possibilidade que nós temos de nos colocar em lugar das nossas

crianças. Aqui, em muitos momentos, nós deixamos de ser os mestres os que sabem, os

que têm a luz para nos colocar como a criança aquela que tenta, que cai, que levanta e

tem entusiasmo conforme o filme You no início do trabalho. No grupo de trabalho todos

merecem dez. Há uma criatura entre nós muito especial. Quando uma mãe escolhe uma

escola para seu filho é porque ela tem critérios ela escolhe porque ela tem uma

consciência que somente ela sabe.

Vanda – Aqui na escola, a gente tem pensado isso. Há mães que substituem a

merendeira que estamos em falta. Aqui, temos uma senhora especial é Eliana. Eu

gostaria que todos nós aplaudíssemos, Eliana é uma mãe, é uma pessoa que está sempre

conosco que está aqui procurando compreender a proposta da escola. (Aplausos)

Sabemos que temos ainda muito caminho pela frente. Porque até agora tivemos contato

com a motivação e com um lugar com a beleza. Vejam bem ainda temos ali o conceito

de cultura para estudar e compreender. Este é um caminho enorme onde encontraremos

em contato com a arte, a filosofia, a oralidade, os hábitos e os costumes, do cotidiano e

isto tudo constitui um modo de vida que não é adequado somente para as pessoas

iniciadas ou para pessoas que moram no terreiro. É isto tudo que constitui a nossa

cultura, as nossas vivências. Vamos saber mais um pouco hoje à tarde, amanhã, e depois

a gente vai ficar a vida inteira aprendendo a aprender com tudo que tem a ver com cada

um de nós e, principalmente, com a aprendizagem de nossa criança, e nós vamos com

certeza descobrir o potencial da arte e da ciência que trouxeram os nossos ancestrais.

Nossos ancestrais não foram um bando de negros fugidos, de famintos que foram

jogados no fundo de um navio depois de batizados com um nome cristão. Só estudando

e pesquisando muito a nossa história, a nossa memória é que podemos ter orgulho de

nós mesmos e dos nossos ancestrais.

Retomo as palavras de Rita quando fala do círculo, da roda como símbolo

perfeito que é o símbolo desta comunidade nas relações com os seus sem se afastar da

sociedade. É a forma do xirê da roda do circulo sagrado no Brasil por que na África não

existe esta religião com esta estrutura que foi recriada para cultuar e homenagear os

ancestrais. Esta é uma forma de religião no novo mundo é a forma de religião dos

Page 182: Àqueles que têm na pele a cor da noite

169

orixás, mas vamos pensar no nosso fazer de acordo com a presença de mãe Stella vamos

tirar nossas dúvidas.

Adriano – A minha pergunta vai para Petrô mesmo. Que história é esta desta

religião como não existiu na África?

Mãe Stella – Na África, no continente africano cada etnia cultuava o seu orixá

separadamente como Petrô falou. Depois do tráfego dos escravos para o novo mundo

teve gente que de Benin de Angola da Nigéria e de outras culturas.

Chegando aqui, eles ficaram isolados. Vamos imaginar quinhentas pessoas do

Benin mais duzentas de Angola mais cinqüenta e oito iorubanos. É claro que seria

impossível juntar-se para fazer seus cultos separados. Não havia condições para isto.

Propositadamente os grupos eram separados e isolados pessoa a pessoa ou peça a peça

como eram chamados pelos senhores. Mas o que acontece? Unidos pelo sofrimento e

pela necessidade de cultuar seus antepassados faziam tudo escondido nas senzalas como

se tudo fosse uma África só. Depois de libertos, agora mais livres, juntaram-se num

espaço comum para o culto a seus antepassados. Só mais tarde cada grupo se apresenta

considerando a sua origem. Daí você vê hoje no Brasil que tem terreiro jêje, tem terreiro

ketu, angola e outros de igual importância. Foi com o tempo que cada grupo se reuniu e

criou o seu espaço sagrado o então alguns antropólogos dizem que a palavra candomblé

significa barulho muita coisa junto. Outras denominações foram criadas: batuque no Rio

Grande do Sul, Xangô em Pernambuco, Tambor no Maranhão. Jarê aqui no Município

de Lençóis, aqui na Bahia.Assim por diante.

Adriana – Sinto que começo entender melhor. Falar de religião, cultura e

história deste jeito é tudo muito novo.

Petrô – Aliás, esta primeira etapa correspondia muito mais a um momento de

sensibilização. No futuro próximo, a professora Vanda deve mostrar inclusive vários

autores que tratam do assunto explicando cientificamente através, por exemplo, de

Pierre Verger na sua obra Fluxo e Refluxo e de outros autores, para que tudo fique em

bem compreendido que o um orixá que era cultuado no continente africano, aqui ou

acolá tudo o que mudou para se adaptar ao novo mundo.

Mãe Stella – Nós estamos falando da realidade brasileira sem esquecer que tudo

começou bem antes e bem longe....Bem, é muito assunto...Com o tempo tudo se

aprende.

Vanda – Só para fechar esta questão provisoriamente, gostaria de lembrar que

no dia em que nós conversamos sobre este assunto, refletimos e dramatizamos como

Page 183: Àqueles que têm na pele a cor da noite

170

nossos ancestrais foram separados em grupos e qualificados como peças. Refletimos

como homens e mulheres negras foram transformados numa massa caótica de negação

da condição humana. Procuramos compreender também como estes sujeitos foram

fragmentados e destituídos daquilo que possuíam de essencial: sua família, seus

antepassados, suas crenças e um jeito próprio de ser e estar no mundo. Imagine que um

fosse oriundo de Irê em outro grupo cultural de Osogbo, outro de Ilê Ifé onde estão

contidas outras etnias. Então foi necessário encontrar um outro jeito para continuar os

rituais, para continuar as celebrações os cultos aos ancestrais. Tudo foi pensado pelo

colonizador para que a cultura matricial fosse esquecida. Nós conversamos sobre

algumas questões quando assistimos do filme Atlântico Negro. O Atlântico Negro conta

que antes do negro sair da África, antes de entrar no navio o africano escravizado dava

três voltas em torno da arvore que era chamada árvores do esquecimento. Era uma

espécie de ritual que acontecia para que o africano esquecesse toda sua vida espiritual, o

seu passado histórico, a sua memória. Em seguida, antes de entrar no navio era batizado

e tomava o nome cristão, o nome do santo do dia, do santo católico, naturalmente. Ao

lado do padre, havia quem anotasse a notícia do batizado que correspondia ao imposto

que a igreja receberia pelos serviços, até por que a igreja era proprietária dos navios

negreiros. Este é um dos fatos que acentuam a conotação política econômica da igreja e

sua influência na colonização. Nossos ancestrais encontraram um jeito de preservar a

memória e a cultura trazida, inscrita no próprio corpo como único suporte do contexto

deixado do outro lado do oceano. E como Deus escreve certo em linhas tortas, graças

àquela tirania que nós podemos ter uma África matricial inteirinha dentro do Opo

Afonjá. Uma África diaspórica.

(Por alguns instantes se fez um silencio impressionante. Uma professora

emocionada chora)

Petrô – Agora vamos bem devagarinho, é muita coisa, é muita reflexão para esta

viagem. Tenham calma.

Mãe Stella – É verdade. Eu também fico impressionada com tudo que está

acontecendo. Um trabalho deste seria para pelo menos seis meses e estamos fazendo em

dois dias.

Petrô – Eu estou há quinze anos no Afonjá batendo a cabeça aos pés da minha

mãe Stela e estou aqui agora com vocês aprendendo devagarinho. Outras pessoas têm

Page 184: Àqueles que têm na pele a cor da noite

171

até muito mais tempo que eu e estamos aprendendo. Outro grupo, quem tem outra

questão?

Ana Célia – Ago75 Mãe Stella. Ago a todos. Eu tenho uma curiosidade e me

parece que este é o momento que eu precisava para entender outras coisas que não

parece, mas eu penso que tudo está bem relacionado. Então quando uma pessoa tem

dois orixás um masculino e outro feminino como fica a personalidade desta pessoa?

Também ouço falar de pessoas que têm três orixás no mesmo nível. Por exemplo, há

pessoas que dizem que eu tenho Ogun como dono de minha cabeça, tem Oxum, tenho

Iansã no lado esquerdo como fica esta cabeça.

Mãe Stella – É preciso compreender o que a gente é. Quem é o orixá que é o

dono da nossa cabeça. Eu sou de Oxossi e tenho Iansã muito forte comigo. Agora eu sei

quando é que eu sou de Oxossi ou quando eu sou de Iansã. Oxossi é o dono da minha

cabeça agora sei que Iansã me acompanha. Deve ser quando eu dou pra gritar e para

brigar com todo mundo. (risos). Quando eu fico quieta deve ser porque Oxossi está

comigo Agora a nossa religião é uma religião onde cada casa pode colocar suas normas.

Como diz Detinha, cada casa tem seu tempero. Então tem pessoas que têm suas casa e

cada pessoa pode ter até dois ou mais seus orixás. Recebem Iemanjá à tarde, Ogun à

noite, no outro dia já recebeu outro. Como fica esta cabeça? Você que é iniciada ponha

na sua cabeça que é preciso se concentrar na energia do dono do seu eledá, da dona da

sua cabeça. Ele passará para você toda energia do jeito que ele é. A personalidade a

gente adquire do dono da nossa cabeça do nosso pai ou da nossa mãe espiritual.

Petrô – Adiante, outro grupo, outra questão.

Aline – É sobre a comida que se faz nos terreiros, como que se estabelece a

quantidade e os ingredientes para as cerimônias rituais ou mesmo para os orixás e para

as pessoas que são apenas visitas? Na verdade a pergunta vai para Mãe Stella.

Mãe Stella – O que se pode perceber sobre a comida você faz, é que seja para o

orixá para a nossa família ou para um visitante tem que levar um ingrediente muito

especial. Tem que levar um sentimento uma energia que é gente põe com muito amor e

boa vontade. Quando você faz para sua família você faz com todo amor porque esta é a

família que você tem. Isto vale também para as visitas. Para o orixá a energia é dupla,

você tem que botar além do seu amor o melhor das suas energias porque elas vão

retornar para a vida de cada um e da comunidade. Em toda casa há alguém que é

75 Pedido de licença.

Page 185: Àqueles que têm na pele a cor da noite

172

responsável pela cozinha. Então esta pessoa não pode chegar de viagem ou de sua casa e

entrar na cozinha e começar a fazer comida do orixá. Para tudo aqui há uma preparação.

Iyabasse é a pessoa responsável pela comida. É mesmo desaconselhável que alguém vai

fazer uma oferenda de acarajé para e chegue na primeira esquina e compre o acarajé no

tabuleiro da baiana. Não adianta. Você não sabe com que intenção ela fez-se aquele

alimento. Como ela estava de corpo. Nós temos cuidados especiais nestas ocasiões

quando estamos nos dedicando ao orixá. Temos que estar puros e limpos pelos nossos

banhos de folhas. Todos nós temos restrições a determinados alimentos. Temos algumas

interdições que são pessoais ou coletivas. Quando fazemos comidas para o orixá não

fazemos só o pouquinho que vamos oferecer. Ou fazer de um jeito para o orixá e outro

diferente para o povo. Nós comemos com o orixá, nós comungamos com o orixá. Então

a iyabasse que é a pessoa responsável pela cozinha deve estar preparada para fazer a

comida que é também um momento ritual. Aquela comida é consagrada ao orixá no

momento em que ela põe na vasilha do orixá oferece com as suas palavras, com a sua

energia com o joelho no chão. Se a festa é de Oxum ninguém sabe o que ela comeu

mais todos comerão da mesma comida.

Marcos Machado – (Ator convidado). A minha pergunta é sobre a língua falada

aqui no terreiro, é um dialeto? Como fazemos para conhecer as palavras?

Mãe Stella – A primeira coisa que você precisa saber é que o iorubá que

falamos nos terreiros é o iorubá arcaico. É uma fala de mais 300 anos trazida pelos os

nossos ancestrais. Muitas das palavras que nós falamos aqui, se você está em Lagos na

Nigéria e falar o que falamos aqui eles não vão compreender nada, porque na própria

África no continente africano em cada cidade fala-se muitas línguas. Em Lagos mesmo,

na Nigéria, são quase duzentas línguas que são faladas, aqui, quem quer falar e entender

melhor pode tomar um curso para ocasiões sociais falar o seu iorubá moderno que é

outra coisa. Mas eu acho que uma pessoa antiga vai ficando com este iorubá mesmo do

jeito como falamos aqui porque é uma fala ritual, é uma fala sagrada nos serve muito

bem prá gente falar com o orixá. É a nossa fala com o orixá. Quando eu digo Xangô ba

mi ô sendo esta fala aprendida com meus mais velhos e que eles já aprenderam com os

seus mais velhos passa a ser uma linguagem ritual, uma linguagem sagrada, ou seja,

Xangô segure minha cabeça ou valha-me Xangô. Agora, para quem quiser aprender o

ioruba moderno, é só ir ao CEAO76.

76 Centro de Estudos Afro Orientais.

Page 186: Àqueles que têm na pele a cor da noite

173

Adriana – Sempre nos referimos tanto a orixá feminino como a orixá masculino

precedido do artigo masculino o. Dizemos o orixá Oxum e eu pergunto por que não se

fala a orixá Oxum. Aí eu pergunto se é uma palavra comum de dois. Uma só palavra

para os dois gêneros, é preciso saber por que com certeza as crianças vão me perguntar

na sala de aula.

Mãe Stella – Veja como você costuma falar dos santos da igreja. Quando você

diz santo de casa não faz milagres. O santo pode ser do gênero masculino ou feminino.

Nós fazemos uma diferente na hora de falarmos dos orixás quando dizemos orixá ocorin

e orixá oberin. orixá ocorin são os orixás masculinos e os orixás oberin são os orixás

femininos.

Meire – Como se explica várias pessoas receberem o mesmo orixá ao mesmo

tempo. Por exemplo, várias pessoas recebem o orixá Oxum. Desculpe, não sei se é

pertinente esta pergunta.

Petrô – Tudo é pertinente. A pergunta está feita mãe.

Mãe Stella – Está tudo muito bem, e depois eu vou ganhar quanto e quando?

(Risos). Veja bem orixá é energia, esta energia não se dirige para o único canal. Nós

somos depositários desta energia. Então quando toca para Oxum está invocando Oxum.

Oxum é uma energia. Esta energia pode ser uma só pessoa ou pode se multiplicar por

mil pessoas. Portanto na festa de Oxum, todas chegam por que esta energia não é

canalizada, é uma energia fluida.

Petrô – É bom que a gente possa compreender que existe uma unidade na

diversidade e também uma diversidade na unidade. Oxum está em todos os lugares em

todas as pessoas. Por que todas as pessoas têm Oxum.

Mãe Stella – Todos os seres têm sua espécie de energia. Vocês viram na leitura

dramática que todo orixá tem suas características. Vamos falar um pouco de Iansã. Tem

a que só veste vermelho. Tem Iansã que só se veste de branco. São como filhos de uma

mesma família, de um mesmo pai de uma mesma mãe, e tem filhos com características

diferentes.

Edna – Cada pessoa tem o seu orixá, o que serve de base para identificar?

Mãe Stella – Esta é uma coisa tão polêmica porque a pessoa que olha para você

e diz, você é de Oxum. Você vai comprar um acarajé a baiana olha para você e fala você

precisa agradar o seu Xangô. Só que eu Stella não tenho esta capacidade porque só

enxergo as coisas por outro ângulo, e já que Deus me deu o consentimento, a graça de

me comunicar com os orixás, eu só vejo através do jogo de búzios. Uma coisa é certa,

Page 187: Àqueles que têm na pele a cor da noite

174

durante o dia temos as mais estranhas reações. É como se fôssemos vários dentro de nós

mesmos.

Elizete (Secretária - EEAS) – É pertinente dizer que os orixás são deuses da

natureza ou são orixás?

Mãe Stella – Os orixás são seres superiores porque na realidade no panteão

orixás existe um só Deus que é Oxum. Os orixás são seqüências de Olorum. Eu

considero os orixás como ajudantes de Olorum. Ele é o Deus supremo. Ogun, Oxossi,

Iemanjá se tornaram orixás por seus feitos e por seus méritos na terra.

Ana Célia – Considerando que Oxum e Iemanjá são orixás da água estes orixás

têm características diferentes de Ogun, por exemplo. Porque uma recorre a beleza e a

outra não? Esta é a minha dúvida. Uma outra dúvida é sobre a leitura, de que forma

Iemanjá influencia no comportamento social das pessoas?

Mãe Stella – Isto aí é o que se poderia chamar de vocação porque você tem

filhos cada filho seu tem uma característica que você acha que vai seguir uma profissão

definida. Você acha que João será um médico. Maria vai ser enfermeira o por causa das

características que eles emanam e você sente. Isto também se passou com os orixás,

porquanto Olorum enviou todos os orixás para terra ele já colocou cada o orixá com sua

característica. Ele chamou Exu e disse: você vai dar todo movimento à terra, vai abrindo

os caminhos do mundo. Mesmo que seja, às vezes, seja um inconseqüente ele quer abrir

o caminho. Ele chamou Ogun e mandou para organizar os caminhos. Podemos

considerar o facão com um símbolo de Ogun. Ele chamou afinal Oxum para ser a dona

da criação da beleza e da felicidade e da liderança. Então todos os orixás juntos formam

um ser humano. Em cada um ser humano existe uma partícula de cada orixá em seu

corpo. Cada um ser humano tem no seu corpo o ar que respira e da vida, tem água das

lágrimas, temos pele os ossos cada um desses elementos é uma partícula de fez orixás

assim todos nós somos parte do orixá. Mas só através dos búzios é que sabemos quem é

o dono do nosso eledá, da nossa cabeça, do nosso ori. Mas com Iemanjá é diferente,

mesmo que ela não seja a dona do eledá, ela acompanha o indivíduo por toda a vida.

Oxum cuida das crianças desde a gestação até quando ela aprende a falar. Iemanjá não é

assim, ela acompanha o adulto até o fim. Ela é a mãe por excelência. É como se Ela

ajudasse a firmar a vocação de cada um.

Page 188: Àqueles que têm na pele a cor da noite

175

5.1 MÃE ANINHA QUERO MEUS FILHOS DE ANEL NO DEDO E AOS PÉS DE XANGÔ

Primeira formação para realização do Projeto Ire Ayó na Escola Eugênia Anna

dos Santos na Comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá.

Avaliação do segundo dia na manhã de 18 de junho de 1999.

Jaqueline (SMEC) – Eu nunca tinha ouvido nada deste gênero. E desde que nós

vimos pra cá, estávamos conversando com Aninha que isto é uma coisa muito boa e

vocês são muito receptivos assim, muito abertos. Vocês foram mostrando a gente um

jeito novo de ensinar novas coisas. Quando a gente entrou aqui na sala, a primeira coisa

que nós vimos foi a mensagem em iorubá - kaabó ou bem-vindos.A professora nos

informou que aqui é como se cada sala pertencesse a uma entidade pela representação

de cada mãe de santo que já partiu mas inclui Mãe Stella como homenageada da sala

principal. Também nos chamou a atenção as palavras de mãe Aninha: Quero meus

filhos de anel no dedo e aos pés de Xangô. E o fato de a gente está trabalhando aqui a

gente pensa que todas as pessoas têm que estar mesmo com anel no dedo e aos pés de

Xangô.

A gente tem mesmo que estudar a nossa cultura. Cheguei aqui encontrei todo um

contexto muito novo. Eu não tinha nenhum conhecimento, nenhuma experiência deste

contexto cultural tão rico para aprendizagem.

Rose (SMEC) – Eu sou Rose. Eu achei muito interessante a forma como vocês

abordaram este tema aqui. Ocorreu aqui tudo que precisa ocorrer em todo processo de

educação. Ocorreu a transdisciplinaridade que a gente fala e não vê a prática. E aqui a

gente viu que esta prática é possível. Outra coisa é o espaço aberto para a discussão de

um assunto tão novo. Tudo foi colocado sem crítica, mas buscando a compreensão. Nós

estamos tão ligados, estamos tão formatados, que a gente não consegue ver a árvore

como ela nem o sol como ele é. É como se a gente tivesse limitado a nossa criatividade.

Realmente, aqui eu vi através da fala de cada um que as professoras desta escola, elas

tendem a deixar um formato de um lado para colocar também a sua criança. Eu acho

tudo muito interessante. É uma transgressão.

Petrô – O mundo todo é transgressão. O mundo precisa de transgressores. O

interessante é que quem já está na universidade não pode voltar pra casa; o sujeito

Page 189: Àqueles que têm na pele a cor da noite

176

transgride e se responsabiliza pela sua condição de ser negro e estar na universidade.

Isto é uma transgressão. É algo que o sistema não prevê.

Rose (SMEC) – Temos uma colega que é a Vera Lazaroto. Interessante é que a

comunidade que ela está é uma invasão. É uma comunidade altamente pobre. E tudo

que acontecia na escola os pais estavam presentes participando das atividades. Vai

pintar a escola os pais estão lá. Eles participaram da mudança do currículo. São pessoas

muito pobres. No Calabar, também as pessoas são muito pobres Vivem numa casa onde

se vê tudo que acontece na outra e a participação dos pais é efetiva. Antes era assim,

agora eu não sei mais. Pobre é a ausência dos pais na escola. Me parece que a ausência

dos pais na escola não pode ser relacionada à pobreza nem à carência. Este é um

problema da escola mesmo. É bom que os pais discutam o mesmo com a escola. Agora

estou voltando para esta escola de educação mais que formal. Eu gosto de contar com

estas comunidades onde já trabalhei por quase dez anos. Nestas escolas eu posso ajudar

a aprender.

Meire (EEAS) – Na verdade aqui também o pai e a mãe participam da escola,

mas existe uma participação em que muitas vezes a família se sente impotente sem

poder dar assistência a seu filho. Ela não sabe os conteúdos transmitidos pelo professor.

Ele não tem embasamento nenhum. Ele se sente impotente diante de tantas novidades

pedagógicas. Nós complicamos muito. Muitas vezes ele não se envolve nesta parte

pedagógica porque ele não entende. A mãe é assim, o pai, o tio tudo a mesma coisa. Isso

dificulta. Isso dificulta para a professora, a criança que só aprende na sala de aula. Ele

não pode se expandir muito mais do que o que aprende no dia-a-dia da escola

Petrô – Podemos perceber que existe no processo de educar um discurso de

sucesso e um discurso de fracasso que se confrontam . Pode-se perceber estratégias que

levam ao fracasso e estratégias que levam ao sucesso. Eu fazendo ou não fazendo eu

estou deixando que as coisas aconteçam. Tudo está sempre acontecendo. Que eu

participe ou não tudo está acontecendo. Eu pego uma criança de uma família que

considero um bando de idiotas e a educo, considerando a imagem e semelhança do que

eu penso. Ela vai atender exatamente a minha expectativa e vai neste caminho que tento

fazer ou não fazer e o resultado será sempre o fracasso. Fracasso porque já se convenceu

de que o pai e a mãe são incompetentes para educar filhos, e que só quem sabe educar

são os professores de escolas públicas. Então, nós vamos encontrar famílias que se

julgam incompetentes e analfabetas. Destas que não sabem que foram convencidas de

que não sabem educar seus filhos. Estamos convivendo com uma forma de educar que a

Page 190: Àqueles que têm na pele a cor da noite

177

primeira coisa que fazem é uma espécie de lavagem cerebral. A fala de Ana Célia nos

põe diante da denúncia da ausência do negro no livro didático ou a sua presença com

caráter distorcido. A mãe não sabe ensinar mais nada. E aí meu Deus acabou a

educação. Educação neste sentido que queremos fazer. Educação considerando também

o saber da família, o saber da comunidade, o saber ancestrálico que essa criança carrega.

O professor passa um tempo com a criança não é a vida toda. É chegado o

momento de dialogar com a família na perspectiva de criar formas efetivas de

comunicação para este triângulo afetivo: escola- criança –família? Quem sabe

incentivar a família perguntar a criança apenas como foi seu dia? O que aconteceu de

bom na escola hoje? Quando isto acontece, a mãe está fazendo a coisa mais importante

na educação de seus filhos. Ela está fazendo a mediação entre a escola, o saber da

família e a construção do saber da sua criança. Isto possibilita a criança pensar em tudo

que acontece. Pensar em síntese. Pensar em crescimento. E nós agora vamos pensar em

alguma coisa também muito importante. Onde está este onjé77. Soube que hoje é acaçá

de leite de Nidinha. (risos) todos saem para a sala ao lado.

Após um breve intervalo para a merenda, os grupos que dialogaram sobre a

proposta do currículo para o Projeto Ire Ayó voltam a reunir-se novamente com a

presença de Mãe Stella. Apresentado uma frase-síntese expõe o pensamento do

grupo sobre a sua aplicabilidade.

Petrô – Neste momento que começamos a concluir nosso segundo dia de

reflexão, ainda estamos com o gosto da sua fala de ontem quando nos disse que o dia 17

de junho de 1999 marca a realização de um grande encontro, quando a senhora diz que

o que está no aiyê e no orum está na educação sistêmica. Este é um ponto de partida.

Hoje, esta Escola Eugênia Anna dos Santos é a escola que a senhora mantém e que estes

professores lhe ajudam. Hoje, esta sendo concluída a plantação de uma semente que é o

ensino de crianças tendo como base a cultura deste lugar, a tradição de matriz cultural

africana. Este pessoal que esteve conosco, juntos, todos de coração abertos fizemos o

que era possível. Eu e Vanda, Vanda e eu nos sentimos satisfeitos de ter caminhado até

aqui para esta avaliação do grupo depois destas 20 horas intensas de trabalho para que a

senhora perceba também o que aconteceu e o que não aconteceu e possa condenar a

77 Comida na língua iorubá.

Page 191: Àqueles que têm na pele a cor da noite

178

gente a passar sete dias e sete noites aqui comendo o seu pirão. (risos)

Mãe Stella – Só se for comendo acaçá (risos).

Petrô – Bem, quem vai começar? Vamos falando, não é necessário nenhuma

ordem.

Adriana (EEAS) – O projeto é isto. Eu não acredito que alguma coisa possa

acontecer sem que a gente conheça para trabalhar com o outro. Pela primeira vez eu

pude ter a liberdade de questionar um projeto para aprender a trabalhar com ele. Ontem,

Mãe Stella esteve conosco para tirar as nossas dúvidas. Há tanto tempo que estou aqui e

só agora tenho vontade de realmente querer saber um pouco mais. Pela primeira vez eu

senti estar mais próxima da cultura afro-brasileira. Aprender também considerando o

lado das ciências e querendo buscar mais. Querendo saber mais. Quando está se

tratando de um projeto como o Ire Ayó, a gente questionava como é que a gente vai

colocar em prática uma coisa que a gente não tem conhecimento.A gente vai

simplesmente deturpar. Vai passar para a criança uma coisa que nem a gente conhece.

Chega Vanda e Petrô com esta proposta clareou com estes dois dias de capacitação na

verdade muita coisa mudou. Precisamos de muito e muito mais. Mas foi um bom início.

Fizeram as nossas cabeças. (Risos) Dessa forma aqui hoje, tem que se fazer uma análise

uma avaliação do que ficou. E eu acho que ficou da árvore a semente. Ela foi lançada e

a partir de agora, Creio que todas nós estamos imbuídas, estamos querendo e

agradecendo de coração pela oportunidade de ontem. Que a gente não se deixe levar

pelas crenças pessoais. Que a gente possa falar de ciências e tradição com a mesma

responsabilidade. Tem que afastar as questões pessoais. Pode até ser difícil para quem

tem outra crença, para quem tem outro credo vir trabalhar aqui. Mas tudo aqui é bonito,

é puro, é cientifico. Nossa missão não pode envolver crenças pessoais. A gente mesmo

quer trabalhar em cima deste projeto, em cima da cultura, construir este conhecimento, e

o principal se não souber tem que buscar. Na dúvida não passar. Que a gente possa ter

mais encontros destes com outros especialistas. A meu ver, a semente foi lançada. É um

projeto pioneiro no Brasil, espero que abra portas e caminhos para outros projetos

verdadeiros que possam ser levados adiante neste país. Esta é uma escola que tem tudo

para dar certo. Nós como professoras temos mais este amparo, este auxilio que melhora

o nosso cabedal de conhecimentos para levar às nossas crianças. Estou bastante contente

e satisfeita com o que aprendi aqui e quero contribuir com a dos orixás para a aceleração

destas crianças.

Page 192: Àqueles que têm na pele a cor da noite

179

Luizinha78 – Eu gostei muito. Foi o tempo válido com todos juntos, unidos,

fiquei muito satisfeita. Que Xangô proteja este trabalho que vá cada vez mais

aumentando.

Francinete (SMEC) – Estou aqui pela SMEC. Acho que é um desafio. O maior

desafio para o técnico da Secretaria de Educação foi a nova aprendizagem que os

técnicos tiveram que aprender in loco. Onde há uma cultura própria e que pode ser

disseminada. Como colaboradora hoje eu vejo a concretização de uma idéia que surgiu

da cultura local e que é tão rica.

Auxiliadora (EEAS) – Eu acho o seguinte ele é a resposta para aqueles

questionamentos que nós professores sempre fizemos desde o primeiro dia que

entramos nesta escola onde já viu vários projetos fantasmas não é? Que na verdade eram

maravilhosos, lindos e mirabolantes e que não atendiam às nossas necessidades, muito

menos de nossas crianças. O que nós estamos vendo é um projeto belíssimo. Uma idéia

fantástica, natural e viável, é bem pé no chão mesmo. Um projeto que nós podemos

realizar sem fórmulas, sem maiores tecnologias, sem muita pretensão... Tudo que está

previsto pode ser realizado porque está no nosso cotidiano. É bonito porque estamos

aprendendo a nossa própria cultura. Cultura que é da nossa comunidade e que no fundo

as crianças podem morar onde morar, mas elas estão aqui que é a casa delas também..

Eu só tenho a agradecer a oportunidade de como profissional estar presente num

momento como este.

Eliete (EEAS) – Eu também tenho que agradecer a Deus e a todos os presentes

por esta oportunidade, porque até na terça - feira eu perguntava. Meu Deus que projeto é

este? Perguntava a um, perguntava a outro. Eu me sentia por fora. Eu tinha uma visão

que hoje eu não tenho mais, entendeu? Eu tinha uma visão que a partir de ontem eu

adquirir outra visão e prá mim foi maravilhoso. Isso aqui é uma familia. Eu sempre

percebi este lugar e as pessoas como uma familia. Quando estou aqui dentro eu me sinto

num paraíso.

Edna (EEAS) – Aproveitando o que Eliete colocou, a princípio quando fui para o projeto eu perguntei pra mim mesma. O que é que vou fazer? Como é que vou fazer?O que é que vou realizar? Nos anos anteriores, existiram outros projetos, mas sempre o principal a definição do que era o projeto, nós não sabíamos. De repente, quando me deparo com a prática da proposta de Petrovich e Vanda. A prática no sentido de nos esclarecer de levar a gente assim a uma reflexão que tira as nossas dúvidas e nos

78 Funcionário da Escola Eugenia Anna dos Santos.

Page 193: Àqueles que têm na pele a cor da noite

180

prepara para trabalhar na sala de aula. Como ser um novo professor sintonizado com a Secretaria de educação, com os parâmetros e o resgate da cultura, o autoconhecimento e as nossas raízes culturais? Precisava saber o estou fazendo.

Marcos Machado79 – Bem, eu não fazia parte do projeto, agora eu me sinto

dentro do projeto, digamos assim porque o que eu achei interessante e exatamente a

idéia de resgatar através da cultura do terreiro, material rico que pode servir de apoio

significativo para o professor. Agora, como participante deste projeto, como ator, eu

posso dizer que foi um momento de aprendizado mesmo. Recebi grandes ensinamentos.

Sou muito grato a todos.

Eliene (EEAS) – Eu penso assim, que cada momento a gente está aprendendo. E

estes dois dias foram de aprendizagem total. Para transmitir alguma coisa a alguém a

gente tem de conhecer, e eu não sei tudo com certeza e com certeza ninguém aqui sabe

tudo, mas o pouquinho que eu aprendi aqui percebi também que para construir cada

coisa você precisa ir aos poucos. Bebe um gole aqui, um gole acolá prá poder construir.

No princípio, do Ire Ayó eu pensei: Meu Deus, eu não vou acertar a fazer nada. E agora,

não. Eu sinto que posso fazer alguma coisa porque a palavra-chave é estudo

Dalva (EEAS) – Eu sou Dalva, eu estou muito feliz por estar aqui e eu tinha

uma visão muito diferente de uma comunidade de terreiro, das pessoas, dos orixás, de

tudo e a partir de ontem eu já tenho uma visão diferente para passar para os meus

educandos. Eu estou muito feliz por fazer parte desta família.

Aída (EEAS) – Meu nome é Aída. Quando se começou a falar do projeto eu

comecei a ficar preocupada... Meu Deus do céu, lá vem mais trabalho (risos) que projeto

é este? Mas a partir da leitura da Prosa de Nagô fui me identificando com vários

personagens. E eu pensava: eu sou aquela personagem ali. Eu faço parte desta história.

Aí no caso de ontem e hoje, eu era uma aluna com os ouvidos atentos, os olhos atentos e

aprendendo muita coisa com bastante emoção. Foi quando a atriz falou que.... ( a

professora chorou e parou de falar.)

Petrô – Fique um pouco mais perto dela.

Técnica da SMEC80 – Deixa chorar. Isto é emoção mesmo. Não é a toa que eu

também estou aqui. Segunda feira eu vou agradecer a Clara porque ela teve que viajar ás

seis e meia, Zelice disse pra mim. Clara vai viajar e você não vai para as escolas da orla.

Você vai para a Eugenia Anna. Eu não poderia estar num lugar melhor.

79 Ator convidado para leitura dramática do Prosa de Nagô 80 Não foi possível identificar o nome.

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181

Nidinha (EEAS) – Eu, como merendeira, mesmo andando de lá pra cá eu estou

assistindo tudo.Que Deus dê muita força, muito axé. E estou aqui também para ajudar

para dar força. Estou contente, muito contente, muito, muito contente.

Vanda – Duas palavras ficaram muito presentes. Uma foi emoção e outra foi

esperança. Esperança de que neste momento estejamos plantando a semente de

transformação porque como já foi falado, a educação que está prevista em todos os

níveis da educação não é exatamente o que se pretende como possibilidade de

transformação. Mas quando nos apropriamos do que é a nossa história, da nossa cultura,

isto é muito importante. Então, esta semente, acredito que bem regada, ela pode chegar

a ser aquela árvore frondosa que esperamos. Que a gente possa vivenciar daqui prá

frente uma sociedade também mais justa e melhor também no que diz respeito à nossa

herança cultural.

Aldir81 – Meu nome é Aldir. Todo dia 17, prá mim tem sido muito significativo.

Dia 17 foi meu contato com o orixá há 3 anos atrás. E ontem mais uma vez, dia 17, pude

participar de uma coisa que gente ouve falar e pode constatar como o Ilê Axé Opo

Afonjá realmente é.A cada vinda minha aqui nesta casa, eu fico de queixo caído, de

boca aberta. Quando vou tomar a bênção de Mãe Stella fico mudo né, por que a coisa é

muito mais superior do que a gente ouve dizer. O fato de estar aqui resgatando uma

coisa tão pisada e tão colocada de forma errada na sociedade eu acho que tudo isto é

ponto fundamental para o crescimento coletivo e importante para o nosso

autoconhecimento. Então o que se discutiu aqui é justamente a forma da gente trazer

isto, acreditar nisto e principalmente divulgar isto.Isto é nossa gente, nosso povo, nossa

cultura, a cara da gente. Temos que cortar os padrões ou coisas mal explicadas que a

gente acaba assumindo. Temos que assumir o que é nosso, a nossa verdade.E o que

pude perceber é que esta verdade está sendo colocada com bases históricas muito

seguras. E a tendência é que a coisa estoure para fora. Eu tenho que agradecer por esta

oportunidade que eu sei que é única, me colocando à disposição para estas crianças que

estão crescendo por aí.

Meire (SMEC) – Um dia eu por acaso encontrei a diretora desta escola que me

convidou porque aqui havia carência de uma professora. Depois que estava aqui a

algum tempo eu soube que algumas colegas disseram: é lá mesmo que eu quero ela.

Quero dizer que cheguei por acaso. E ontem no relato que eu disse que já fizemos várias

81 Aldir é Ogan da Branca visitando o Opo Afonjá.

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182

viagens aqui dentro. Mas este passeio de ontem foi como se fosse a primeira vez. Foi

uma ação diferente. Ainda hoje eu já conversei que de ontem prá cá eu comecei e me

relacionar com cada casa, com cada orixá, com cada pedacinho desde chão, com cada

criança de modo diferente. Quando Vanda começava a cantar eu ia lembrando de cada

uma das crianças. Foi uma emoção tão diferente que eu chorei por várias vezes. Hoje

mesmo foi um rio de lágrimas. Eu não sou iniciada, mas senti uma forte energia.

Durante estes dias uma energia singular circulou por este ambiente. Quando Vanda

contou a história de Ossain e Iansã socializando o poder das folhas, eu senti como que

estivesse aqui nesta sala. Foi tudo muito perto da realidade. Eu senti que as folhas

mexeram lá fora. No momento que os atores narraram o texto, As águas de Oxalá eu

senti realmente quando ele disse a fala de Dona Luizinha. Dava pra sentir uma energia

de paz. Que esta energia que senti estes dias de coração aberto possa passar para os

meus meninos como eu os chamo. E eu quero que sempre que a gente pisar lá fora e

chegar nesta porta que esta paz seja irradiada para todos que cruzarem em nosso

caminho. Não só aqui mas também na Secretaria, no dia-a-dia em cada tchau que a

gente dá.É como já foi dito aqui por Vanda, Petrô e agora por Mãe Stella ninguém

precisa mudar de religião para entender e ensinar as crianças a partir de um currículo

com sentido do auto-conhecimento, o cuidado, solidariedade e convivência. Que

também tem tudo a ver com o sentido de ser, pertencer e participar da comunidade.

Temos que começar já. Já perdemos muito tempo. Mas que esta porta esteja aberta a

cada momento. Esta porta que abriu em mim, eu acho que é a mesma que abriu em

todos nós.

Marcos Machado – Eu estive refletindo a respeito de cada um e isso me faz

pensar em outras palavras que eu acho que é bem oportuno. Desculpe, eu não posso

ficar calado. Na verdade o que eu quero dizer para todos os senhores aqui presentes

mais em especial quero dirigir estas palavras para Mãe Stella, a Vanda e ao mestre

amado Petrô que é um pensamento que diz que o homem ele se expande de duas

formas, para dentro e para fora. E quando ele entra neste processo de expansão para

dentro é como se ele se expandisse como uma árvore, onde as raízes se aprofundam

tanto na terra, tanto que a profundeza das raízes chega a ser maiores que a altura dos

galhos, então eu acho bastante oportuno por conta deste momento, deste projeto que

está nascendo aqui agora, esta arvore frondosa que na verdade é um trabalho para dentro

mesmo. É isto que eu queria falar.

Page 196: Àqueles que têm na pele a cor da noite

183

Petrô – Um dia eu fui suspenso ogan da casa de Ogun. Na ocasião eu procurei

saber o que é ser ogan. Logo fiquei sabendo que ogan é uma espécie de pai, ajudante e

protetor da comunidade. Eu fiz disso uma proposta do meu caminho. Hoje, eu sinto na

realidade sou ogan do Ilê Axé Opo Afonjá, porque eu sou pai de criança que ainda não

conheço pela nossa tradição eu sou pai de muitas coisas que ainda vão acontecer aqui,

mas confio que serão maravilhosas. Eu agradeço primeiramente aos orixás porque no

dia que eu pedi que me arranjasse uma mulher negra eu falei abertamente para o Tempo

e a mulher negra chegou. No dia em que a mulher negra chegou, ela me ajudou a

realizar aqui a o Congresso de Tradição dos Orixás e Cultura - CONTOC - Um

congresso de Pais e Mães de Santo de todo Brasil e eu dizia, meu Deus que coisa

fantástica este é congresso de feiticeiros, de repente o orixá me levantou ogan e agora?

As coisas começaram acontecer, fui confirmado ogan e sempre me envolvi, trabalhei

para encontrar meu caminho e hoje esta roda, esta roda de conversa, ela me sagrou na

realidade ogan do Ilê Axé Opo Afonjá. Agradeço ao pessoal da SMEC que contribuiu

para esta oportunidade. Agradeço a Vanda por me acolher perto dela, agradeço a todos

os atores que comigo aqui estiveram, agradeço aos professores que estão, as pessoas que

eu nem conheço e que confiam nesta proposta. Agradeço a minha mãe de todo coração e

é por causa dela e com ela que estou no Ilê Axé Opo Afonjá. É por isso que estou

construindo a minha identidade, a partir da minha idade de agora, aos 63 anos.Agora

que percebo melhor a minha missão o meu caminho de en-sinar as pessoas nos seus

caminhos e projetos de vida. Agradeço novamente a Mãe Stella, a Ode Kaiodê. Ontem,

à noite, já em casa, cansadíssimo soube que era também aniversário de sua gestão como

Iyalaxé e Iyalorixá desta comunidade. Ontem dia 17, foi também o aniversário de sua

posse como zeladora deste povo e desde lugar de Xangô. Então, este nosso

acontecimento e a minha participação me dão muita alegria por duas razoes por

estarmos começando um caminho novo na educação e por ser aniversario da gestão de

Mãe Stella e nada mais sei e me calarei até a próxima.

Vanda – Agradecer prá mim é pouco. Sei que Oxum e Xangô vão me dar muita

saúde e vou poder continuar este trabalho prá ajudar a vocês professoras pioneiras.

Verdadeiras heroínas da educação. Estou falando de vocês mesmo, educadoras das

séries iniciais. Eu levei muito tempo namorando esta escola paquerando, e sem chegar

muito perto, porque parecia que o amor maior era o meu e que a recíproca não era

verdadeira. Até o dia em que Mãe Stela disse: Demorou um pouco, mais agora é você

que vai cuidar da escola. De fa,to demorou. Fiz uma dissertação aqui mesmo que ficou

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184

por dez anos empoeirando na minha gaveta. Como povo de santo eu acredito que tenho

um caminho, um destino referenciado pela minha condição de filha de filha de Ode

Kaiodê.82 Eu posso conversar com o meu caminho e ele pode me ajudar no tempo exato

das minhas realizações.Conforme já disse Mãe Stella no seu livro: O meu tempo é

agora.

Mãe Stella – Meu Deus o que é que vou dizer pra vocês? Apenas eu quero dizer,

eu quero deixar claro a minha alegria quando eu vejo sendo realizada esta formação

com as nossas professoras. Eu sei que independente desta capacitação o trabalho já

começou faz tempo. O africano costuma dizer que ninguém muda o destino. Só Deus,

só Olorum, não tem padre, não tem pastor, não tem mãe de santo, não Igreja Universal.

Mas a gente pode dar uma mãozinha. A gente procura sempre os bons exemplos e os

procedimentos positivos que é a mesma coisa que se preparar para que os bons

pensamentos nos acompanhem. Pensar positivamente, pensar para o alto e para frente e

vamos sempre vencer. Vencer não é superar o outro. A gente só pode vencer assim

todos juntos, com o mérito de todos. Vocês já são abençoados por Xangô que é o dono

desta casa e por Oxossi que é o dono de minha cabeça. Eles fizeram com que a

Professora Dirlene ajudasse nessa semente. Tanto que desejamos que aconteceu, não é

Vanda? A semente estava na mão do casalzinho aqui, meus filhos Vanda e Petrô. Agora

vocês todos são responsáveis. As professoras serão sempre as jardineiras que vão regar

esta semente até se tornar uma árvore bem frondosa e que suas raízes cheguem a todo

Brasil e que todos saibam que ela nasceu aqui nesta Eugenia Anna. Ossain com certeza

vai estar ao lado de vocês. Também tenho que dizer que gostei do que aconteceu aqui e

eu também aprendi. Acho que quem mais aprendeu fui eu. Peço a vocês que continuem

me ensinando e me ajudando porque antigamente era uma batalha. Agora sinto que já

podemos falar de igual para igual sobre nossa cultura ou já podemos fazer até melhor.

82 Nome religioso de Mãe Stella.

Page 198: Àqueles que têm na pele a cor da noite

185

Dançando com as folhas. Foto Vanda Machado

“Eis pois o Negro-africano, o qual simpatiza e se identifica, o qual morre para si a fim de renascer no outro. Ele não assimila, ele se assimila. Ele vive com o outro em simbiose, ele co-nhece o outro... Sujeito e objeto são, aqui, dialeticamente confrontados no ato mesmo do conhecimento, que é ato de amor. 'Eu penso, então eu existo', escrevia Descartes. A observação já foi feita, pensa-se sempre alguma coisa. O Negro-africano poderia dizer: 'Eu sinto o Outro, eu danço o Outro, então eu sou.' Ora, dançar é criar, sobretudo quando a dança é dança do amor. É este, em todo o caso, o melhor modo de conhecimento”.

Leopold Senghor (apud MANCE, 1995)

Page 199: Àqueles que têm na pele a cor da noite

186

6. A ENCRUZILHADA É AQUI: e agora para onde vai o caminho?

Neste momento sinto a necessidade de deixar cair o pano. Talvez não finalize,

mas possa escolher outros caminhos a fim de nao interromper o espetáculo da vida.

Uma lágrima teimosa desce pelo rosto cansado na madrugada que se aproxima. A

menina Vanda de tranças mal feitas e corpo desajeitado, abraça a mulher madura que

caminha com a coragem de quem carrega na pele a cor da noite. As duas correm juntas

com o Tempo de todas as esperanças.

É chegada a hora, e não gostaria de falar de perdas. Todos os caminhos foram

transformados em caminhos de esperanças. Falo, portanto, do que considero

interrupção. Talvez a mais doída tenha sido o afastamento compulsório da Escola

Eugenia Anna, na minha comunidade, meu berço ancestral, ainda no meio desta

jornada. Estanquei no meio da encruzilhada a espera de outros passantes errantes como

eu mesma. A viagem para ancestralidade do querido Professor Serpa, mais tarde se

fazendo acompanhar de Carlos Petrovich, deixou um vazio inconcebível. Petrô,

companheiro e interlocutor, parceiro que encantou a sua arte, fecundando saberes,

transformando sentidos e abrindo outros caminhos que caminhamos juntos.

Page 200: Àqueles que têm na pele a cor da noite

187

Como em todo espetáculo, em que os atores se juntam e celebram o ultimo ato,

nós nos juntamos e nos agradecemos, mutuamente. Nós nos abraçamos numa grande

roda, como no xirê encantado com todas as presenças. Nós nos acompanhamos. Nós nos

construímos. Nós nos dançamos. Não há espectros em nenhum destes caminhos.

Estamos todos encharcados de vidas. Eu me vejo, eu me sinto, eu me abraço e me

danço. Nada é mais humano, mais sagrado e mais objetivo que dançar, lançando-se com

formas em qualquer espaço. Os movimentos do meu corpo contam todas as minhas

histórias. Eu me danço e me indago: Quais os sentidos que se movem em mim na hora

desta quase despedida?

Siqueira nos fala da “teoria de Senghor que inclui em seus pressupostos a

existência de uma força vital entre os negros africanos; ele encontrou meios de

descobrir, que esta forca é animada pela razão” (SIQUEIRA, 2006a, p. 29). De fato, não

se trata da razão descrita pela realidade ocidental. É um outro olhar sensível sobre uma

razão que é capaz de apreender outras realidades e interpretar fenômenos que só existem

no mais escondido da consciência humana. Falo da razão do pensamento africano e suas

subjetividades. Falo de uma razão que abriga o desejo cheio de pregnância que ativa na

participação irrestrita do sujeito em todo seu processo de ensinâncias e aprendências. Há

de se perceber ainda uma razão para o conhecimento que junta a lógica e a intuição, o

distanciamento e a sensibilidade, a imersão, a leveza, a acuidade e o pensamento.

Como em outras instâncias, o conhecimento nascido das subjetividades do

pensamento africano está na raiz da ciência contemporânea. Muito das subjetividades

deste pensamento na sua condição arcaica tem sido legitimada pelo consenso científico,

gerando conhecimentos antes associados apenas ao encantamento e à adivinhação, a

exemplo dos conhecimentos médicos.

A respeito desta afirmação, considerando a imagem do povo negro relacionada

com a inferioridade, jamais seria vinculada a sua história qualquer atividade filosófica

ou intelectual. Nascimento (1996) chama atenção para o fato de que quando se atribui a

um povo supostamente branco, não africano o progresso civilizatório da África

subsaariana, afasta o protagonismo do povo negro na construção de civilizações e

avanços filosófico-científico-tecnológicos. Mesmo diante de qualquer outra reflexão,

insisto: eu me danço, girando por todos os espaços não sem destino.

Olho para trás na busca de um passado não muito remoto. O que mudou? O que

este estudo tem potencializado? Compreender o pensamento africano na formação e no

Page 201: Àqueles que têm na pele a cor da noite

188

ensino de crianças da comunidade Afonjá resultou em viver intensamente a ação de

aprender e en-sinar.

No início, foram apenas dois dias intensos com o propósito de fazer cabeças.

Naquele momento foi dada a partida à idéia de iniciar as educadoras para a

cotidianidade do Afonjá como lugar da Eugenia Anna. Foi levado em consideração a

localização da escola e a sua importância para a comunidade. Nos dias, meses e anos

que se seguiram foi se construindo outros caminhos que se cruzavam numa teia de

poesia, ciência, sabedoria, natureza, o sagrado, o cuidado e a ancestralidade en-sinando

e nos inserindo na vida como o ser coletivo que somos.

Ser coletivo que ficou evidenciado pelo sentido do pensamento africano recriado

no cotidiano dos terreiros, onde todos são aprendentes do ato de educar. Concordamos

com Serpa, quando prefaciando Galeffi, diz que: “aprender passa a ser o mesmo que

aprender a viver junto, aprender a fazer, aprender a pensar, aprender a ver, aprender a

falar, aprender a escrever, aprender a aprender” (SERPA, 2003, p. 9)

São muitas as representações do ato de aprender a estar juntos, nas vivências

ritualísticas comunitárias. Dentre estas, é possível distinguir o dia celebração de

Iyamasê83 solenizado sempre no dia 11 de julho. Depois da primeira cerimônia ritual do

dia consagrado a mãe de Xangô, cada um caminha individualmente para receber da

mãe-de-santo uma pena de galinha conquen aos pés de Xangô o dono da comunidade

Afonjá. Este é um sinal do coletivo e da individualidade magnificadas e preservadas.

Tomamos a pena e prendemos nos cabelos. Os homens põem no bolso mesmo, contanto

que esteja a mostra. Durante todo dia nos mostramos uns aos outros ratificando nossa

individualidade no coletivo. À noite, saímos em procissão para o barracão de festas

numa dança que re-une. Tudo que se mostra ao tempo está sendo mostrado aos

ancestrais. No barracão, todos nós entregamos as penas a Iya Kekerê, que junta num

único feixe e põe de volta no quarto de Xangô.

Também, para reafirmar o sentido agregador dos nossos ancestrais, neste mesmo

dia, cada um dos filhos oferece um ojá a Iyamasê. Ojá é um pano com o qual cobrimos

as nossas cabeças em momentos rituais ou não. Numa arrumação significativa, os panos

são enlaçados deixando perceber mais uma vez a importância do sentido agregador do

povo negro e as individualidades preservadas. O arranjo que chamamos de okó

acompanha a procissão solenemente. Quando retorna é posto em frente de Iyamasê até

83 Qualidade de Iemanjá mãe de Xangô

Page 202: Àqueles que têm na pele a cor da noite

189

o próximo ano quando tudo se renova e se repete. Assim como as penas, as escamas na

sua disposição imbricada que cobrem um corpo também marcam o sentido do coletivo e

o individual que se distingue inconteste. Em qualquer circunstância, a comunidade é

sempre a representação de um corpo. As folhas que se esparramam ligadas ao tronco

sustentado pelas raízes que firmam e mantém a vida são também representações do

coletivo sustentado pela ancestralidade.

Em alguns terreiros mais precisamente no Terreiro Mukambo, o coletivo é

representado também pela árvore do Tempo enlaçada com um grande pano branco.

Segundo o Tata Anselmo84 (em conversa em 2006) o pano branco abraça o tronco como

um abraço em toda a comunidade protegendo-a. Entretanto, cada galho do tronco ganha

o seu pano, o seu laço, representação simbólica da proteção individual.

Na comunidade religiosa é a feitura que se constitui e define o pleno

acolhimento do indivíduo aos olhos do grupo. Por analogia, as educadoras da Eugenia

Anna antes isoladas não existiam no campo afetivo da comunidade até vivenciar

diálogos, espaços e saberes do lugar. O fato de estarem juntas fazendo um caminho,

olhando para o pensamento africano e terem demonstrado o desejo de participar da

comunidade como parte desse coletivo, foi o sinal para um outro tempo, uma outra

forma de ser sendo das educadoras do lugar. Estava sendo iniciado um jeito de parceria

implicada pela presença integradora do jeito africano de viver na escola como na vida.

Importava, portanto, efetivar o diálogo onde outros saberes também seriam

compreendidos para elaboração de uma forma de en-sinar contemplando a criança no

seu crescimento e formação de corpo e alma para enfrentar a vida lá fora carregando o

legado da sua ancestralidade. Daí por diante não havia dúvida. Era como se vivêssemos

numa comunidade africana ou simplesmente vivendo os princípios que regem a

comunidade religiosa Afonjá.

Este comportamento nos lembra o pensamento de Santos (1977), quando atenta

para o sentido da prática religiosa como possibilidade de convivência, acomodações e

reelaborações por reagrupamentos institucionalizados na diáspora , transformando em

re-existência dos cultos tradicionais africanos. Importava, portanto estar juntos nas

irmandades, nas confrarias e mais tarde nos terreiros, o que se constituía também numa

postura de afirmação política.

Conscientes da responsabilidade política e pela manutenção do pensamento

84 Tata Anselmo, o pai Anselmo é pai de santo e mestrando em educação pela UNEB.

Page 203: Àqueles que têm na pele a cor da noite

190

africano na educação das crianças da Eugênia Anna continuamos ouvindo a comunidade

e nos indagávamos sempre: o que mudou ou o que está mudando entre nós? É possível

que o relatório do grupo de educadoras sinalize para alguns acontecimentos importantes.

6.1 ENCRUZILHANDO VIDAS E CAMINHOS DE SABER

O estudo em questão continua caminhando para o encontro de outros indicadores

de legitimidade considerando o pensamento africano recriado na diáspora. Estudo

iniciado oficialmente com a dissertação de mestrado: Formação de conceitos a partir do

universo cultural de crianças da comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá. Ano 1986.

Ao longo deste tempo o estudo vem potencializando ações tais como:

• Convênio de Cooperação Técnico - Cientifica Cultural e Financeira entre o

Município de Salvador com a interveniência da Secretaria Municipal de

Educação e Cultura – SMEC e a Sociedade Cruz Santa do Axé Opo Afonjá –

Escola Eugenia Anna dos Santos.

• Municipalização da Escola Municipal Eugenia Anna dos Santos

Publicações:

• Vivência e invenção Pedagógica - Crianças do Opo Afonjá . 1ª Edição em 1998,

a 2ª em 2004. A leitura desse livro (dissertação de mestrado) se tornou básica

para a introdução de uma outra proposta de en-sinar a crianças do Afonjá.

• Prosa de Nagô (1999) texto base para a formação no início deste processo.

• Ilê Ifé – O sonho do Iaô Afonjá (2000)

• Ajaká: O menino no caminho de rei( 2001)

• Irê Ayó: Mitos Afro-brasileiros (2004), todos em parceria com Carlos Petrovich.

• Intolerância Religiosa: Vigiando e Punindo (2001, p.449) - Anais Seminários

Preparatórios para Conferencia Mundial contra o racismo discriminação racial,

xenofobia e intolerância correlata para o Ministério da Justiça, Secretaria de

Estado dos Direitos Humanos.

Estimo que produzimos e ou contribuímos com mais de uma centena de

participações considerando apresentação de trabalhos em Congressos, conferências,

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191

artigos e capítulos em livros, reportagens e em revistas especializados reconhecidas

nacional e internacionalmente:

• Participação na 7th Orisa World Conference, in colaboration with Institute of

cultural Studies Obafemi Awolowo University Commnitication Yorubá

Pedagogy: the importance of orisa mythology in education. Ile Ifé . Nigeria

August 2001.

• Participação na qualidade de palestrante no 8o. Congreso Mundial de la

Tradicion y Cultura Oricha 2003. Habana- Cuba Julio 2003.

• Participação na coletânea do original alemão: SCHAEBER, Petra. Irê Ayó- der

Weg der Freude zu einem anderem Lernen. In HABERKORN, Rita (Hrsg)

Anstiftung; Auf dem Spuren ungewohnlichen Lernens; Festschrift fur Jurgen

Zimmer. Weiheim, Basel, Berlim: Beltz Verlag, 2003.

• Participação no catálogo original espanhol: Assujetissement CALVETE,

Consuelo (2002).

• Participação em programas educacionais a exemplo de Salto para o Futuro por

três vezes, no programa AÇÃO entre outros.

• O Irê Ayó tem inspirado monografias

• O vídeo-documentário Reparação editado em português, inglês e espanhol

aborda basicamente a metodologia do Irê Ayó e sua repercussão. Na época entre

outras nos chegou a noticia que: Na reunião realizada em Brasília, o prefeito Antonio Imbassahy conversou com o secretario executivo Samuel Pinheiro Guimarães e com os Embaixadores Rui Pereira, responsável pelas relações com a África, e Élio Vitor Ramos designado para o atendimento dos estados e municípios brasileiros. [...] Os executivos do ministério conheceram projetos como o desenvolvido na Escola Eugênia Anna, localizada na área do Terreiro Ilê Axé Opo Afonjá, O material audiovisual “Reparação” mostra a didática da escola, que trabalha com lendas, aspectos religiosos e expressões idiomáticas africanas na educação convencional dando espaço a atividades que incentivam a oralidade, marca da cultura daquele continente. Atualmente Salvador mantém relações com diversos paises africanos e é cidade-irmã de Pemba (Moçambique) Abuja (Nigéria) e Librevilhe (Gabão). (BRASIL. Diário Oficial do Município, 10 de julho de 2003). NAO TEMOS ESTE

Como conseqüência recebemos na Eugenia Anna as visitas do Dr Ernesto

Muianga, diretor de Educação de Moçambique, Professor. O visitante comparou a

escola a uma caixa de jóia que continha uma parte significativa da África.

Ava Wiliams finalizando a sua estadia em nossa comunidade no ano 2000,

colheu da professora Paula Gonçalves o pensamento que se segue:

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192

“Eu trabalho na Prefeitura há um ano e meio. Eu trabalho numa outra escola que tem uma outra visão de educar. Eu trabalho em outra escola. É uma escola católica e não tem esta preocupação com o afrodescendente. O que lamento é que se trata de uma escola católica, mas que está em Salvador. Nem se percebe quando se está diante de uma criança afrodescendente. Enquanto na Eugenia Anna é dada toda importância a esta origem da criança. Eu percebo que aqui com toda dificuldade financeira que se tem o aluno aqui se torna um negro livre, porque conhece quem ele é.

A criança de outra escola que não tem este referencial histórico ele é um ser reproduzido e reproduzível. É o aluno que vai continuar se mantendo no lugar que foi criado para o afrodescendente e onde ele via de regra já se mantém. A maioria das crianças são brancas e a menoria que é afrodescendente não conhece a sua história . Esta ali de espectador da história. É muito difícil e necessário que o próprio professor se identifique.pra que ele se forme e ensine a cidadãos que vão transformar o Brasil que possa dar outra atenção para o seu povo.

O professor precisa formar a sua identidade para depois levar isto para a escola.. A pessoa só ama aquilo que conhece. Pra mim a diferença básica é conhecer a historia dos ancestrais. Nunca ouvi falar na África na escola a não ser como um continente derrotado. A criança da Eugenia Anna tem outra visão de África. A criança daqui não tem vergonha de assumir a sua etnia. Percebo fora daqui uma criança quando vai reproduzida. Aqui as nossas crianças não vão ser reproduzidas

Eu hoje percebo que não buscaram as minhas respostas. Nunca me perguntaram nada. Me davam as coisas prontas.Acho que um problema muito sério no nosso país no que diz respeito ao preconceito é esta forma fingida, esta forma dissimulada de como acontece. O racismo acontece e as pessoas fingem não compreender, não saber por que não querem discutir. Eu acho que nada que é escondido, que não é mostrado não se resolve. Nunca é falado porque as pessoas têm medo de falar para se mostrarem racistas. Mas essas pessoas têm consciência do seu jeito de ser racista no cotidiano delas.

O preconceito se apresenta na escola, quando trabalhamos a pluriculturalidade, principalmente quando enfatizamos a cultura afro-brasileira. Quando uma pessoa afrodescendente não é respeitada no mercado de trabalho, quando vai numa loja e é visto como algum que oferece perigo para a sociedade por conta da sua cor. O preconceito se mostra nas piadas, nas brincadeiras que parecem inocentes, mas que colocam a pessoa numa condição de inferioridade.

O que é África pra mim? África é história que não me foi contada. A história, não do meu pai ou da minha mãe, mas história de antepassados que não me foi contada. Hoje eu tenho necessidade de descobrir esta história escondida, principalmente depois que vim trabalhar aqui com Vanda no Irê Ayó. Nós trabalhamos com a mitologia africana recriada aqui no terreiro. Nós construímos todo trabalho coletivamente nos ACs (atividades complementares). Nós contamos histórias. Ensinar para nós é estar sempre narrando histórias com a participação das crianças.

Page 206: Àqueles que têm na pele a cor da noite

193

Toda criança gosta de escutar histórias. Mostramos as crianças que elas fazem parte das histórias que são as histórias dos nossos antepassados. Descobrimos com as crianças os princípios e valores da história. Levamos esta história para o estudo das ciências, para outras áreas do conhecimento, para a matemática e tudo que possa evidenciar a importância do negro no Brasil para composição do povo brasileiro.

Estamos sendo falando com a criança, fazendo ela se sentir importante. Não. Aqui nós não ensinamos que Oxum salva.Nos não dizemos que Ogum salva.Falamos de Ogum associado a invenção do ferro, da alquimia e dos remédios. A criança aprende a nossa história e aprende a respeitar a religião como religião e não como folclore. A religião aqui para nós tem que partir de cada um buscar este conhecimento ou esta experiência. Eu defino negritude como uma forma de ser de pensar de representar de conhecer o que é seu. Eu defino minha negritude como uma forma de conhecimento, uma postura política”.

Dentre as muitas demandas que vão surgindo ao longo do estudo penso na

possibilidade de um esforço coletivo para reverter os argumentos coisificantes da

história que nos foi contada e revelar a identidade ancestrálica que alarga a consciência

e autoriza a reinvenção da nossa própria historia.

O Projeto Político Pedagógico Irê Ayó foi acolhido na FACED-UFBA como um

esforço investigativo para um currículo multirreferencial inicialmente com orientação

do professor Ubiratan Castro, mais tarde, o professor Luis Felipe Serpa e finalmente o

professor Dante Galeffi.

Num esforço multidisciplinar tenho hoje a co-autoria da comunidade cientifica

tanto da FACED, como de inúmeros intelectuais e atores sociais que dialógica e

colaborativamente tem participado da elaboração e compreensão de pensamentos e

saberes desenvolvidos ao longo da história e a memória negro-africana.

O projeto em questão, por experimentação e transferência, evidenciou a

possibilidade de vivenciar a sua metodologia em outras comunidades, a exemplo de

escolas de orientação católica na periferia de Salvador quando com Carlos Petrovich

realizamos trabalho de formação a convite na Pastoral do Menor. Também no sistema

municipal de ensino de Lençóis convidados pelo Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô.

Tendo como base o estudo em questão, estou contribuindo com a formação de

educadores e educadoras para operacionalização da lei 10.639 a convite da Secretaria

Executiva de Educação do Estado de Alagoas.

Durante dez meses com o pensamento africano no Ire Ayó participamos do

Grupo de Estudos na Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade

Page 207: Àqueles que têm na pele a cor da noite

194

(SECAD) para a Inserção das Diretrizes Nacionais para Educação das Relações Étnico

Raciais e Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.

Na Secretaria Municipal de Educação e Cultura em Salvador contribuímos com

texto: Mitos Afro-brasileiros e Vivências educacionais. Pasta de Textos da

Professora e do Professor (2005).

Finalmente participei com o texto Tradição oral e vida africana e afro-

brasileira no livro: Literatura Afro-brasileira, organização Florentina Souza, Maria

Nazaré Lima- Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasiléia: Fundação Cultural

Palmares, 2006.

Orientamos monografias inspiradas no pensamento africano entre outras O

Ensino da Historia da África e Afro-Brasilera na Educação Infantil, de Gonzaga e outros

(2006).

Facilitamos pesquisa para monografias e estágios de dezenas de estudantes das

UNEB e da UFBA. Acolhemos as pesquisadoras Maria Paula Fernandes Adinolfi,

Mestranda da USP, e Márcia Theodorico Mezzano da Universidade do Rio Grande do

Sul.

Recebemos Bernd Reiter – Research Associated, Howard Samuels State

Management and Policy Center Graduate School and University Center – City

University of New York.

Participamos dos programas de intercambio internacional da PUC-Rio com

importantes universidades americanas.

Estes estudantes e suas respectivas instituições de origem são: Ava Williams

(2002) do Programa de Relações Internacionais de Notre Dame University; Edith

Saldivar (2002) do Programa de Relações Internacionais da Califórnia State University;

JacobWeiler (2003) do Programa de Antropologia de Notre Dame University; Jay T.

Price (2003) do Programa de Sociologia da Utah e Sukmeet Angali Kaur (2003) do

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais e Economia da Johns Hopkins

Universty e bolsista da Comissão Fulbright.

Por carta a professora Denise Fonseca nos informa dizendo que: Até onde fomos informados pelas instituições de origem, ou pelos próprios estudantes soubemos que a jovem Ava Williams foi imediatamente aceita em um programa de pós graduação, a partir de um projeto de pesquisa que adotou o Projeto Irê Ayó para o tratamento da questão racial nos Estados Unidos. Além disso, a jovem Edith Saldivar transformou a sua experiência em uma reflexão sobre comunidades latinas nos Estados Unidos, sob a forma de um vídeo documentário, como monografia de graduação e foi aceita no

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195

Programa de Mestrado em Relações Internacionais, imediatamente após a sua formatura, na mesma instituicao na qual se graduou (FONSECA, 2006 carta).

Neste contexto, é óbvio compreender que a proposta não foi concebida apenas

para uma comunidade de terreiro, para crianças negras e praticantes das religiões afro-

brasileiras. O pensamento africano que fundamenta as vivências pedagógicas no Ire Ayó

reúne valores criadores de identidades e fecundantes de comportamentos solidários e

coletivos.

Na formação de fevereiro de 2003, esteve presente a professora Denise Guerra

que demonstrou interesse em compreender melhor o Irê Ayó enquanto intervenção para

o processo de ensino-aprendizagem de ciências, tendo como fundante o pensamento

africano. Vimos como resultado a brilhante defesa de sua dissertação de mestrado na

Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, com o titulo: Cabeças (bem)

feitas -Ciências naturais num contexto pedagógico de afirmação cultural.

Denise conclui seu trabalho dizendo: “A “cabeça bem cheia” está dividida em

compartimentos depositários de conteúdos desprovidos de sentidos e significados. Uma

ambiência fria em que a transmissão, o deposito, produz o arquivamento dos seres

humanos”.

Para Denise:

O currículo de ciências na Eugenia Anna se mostra na perspectiva da cabeça bem feita. Um lugar de intercruzamento, de tessitura de saberes, um ambiente natural e cultural pulsante, ressonante, no qual a arte de indagar, de instigar, de estimular, do estimular, do fazer coletivo produz simultaneamente a duvida e o vigor para responder as questões locais e globais e assim se iniciar na comunidade e no mundo.

De fato, o Projeto Político Pedagógico Irê Ayó inspirado no pensamento

africano recriado na diáspora, chamou atenção pela sua utopia pedagógica acreditável.

Utopia criada pelas possibilidades e conseqüências de uma consciência histórica na

diversidade e pela criação de ações educativas de combate ao racismo e valorização dos

contrastes e diferenças.

Assim, vislumbro a possibilidade de continuar contribuindo com esta

interlocução incluindo-me entre outras experiências e em outros estudos que atendam ao

chamado nacional para compreensão da pluralidade e da singularidade da nação

brasileira como fractal da re-existência do pensamento africano recriado na diáspora

sem perder a perspectiva do pensamento em que Mãe Aninha nos en-sina: de anel no

dedo e aos pés de Xangô..

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O intenso diálogo com a academia não exclui a compreensão de mim mesma

como ponto de partida, meio e fim de toda esta jornada. O meu lugar continua sendo o

lugar do pensamento africano recriado na diáspora. Agora, da casa de Xangô, olho pela

janela o caminho de repouso do sol já cantado pelo poeta Caetano. Enquanto a estrela

do dia se deita no infinito, esparramando seu brilho sedutor, junto-me às outras

mulheres aguardando o momento de arrumar a gamela de amalá para o ritual que

reafirma a nossa condição de filhos da comunidade. A sabedoria da ancestral primeira

do Afonjá nos dá como herança a festa da Quarta-feira de Xangô. Esse é o dia de uma

grande festa que se repete e nos agrega mesmo antes da travessia do Atlântico.

É tardinha, corro os olhos pela casa de Xangô e encontro a escultura que o artista

faz ressaltar o machado, seguro pelas mãos do rei de Oyó e dono do terreiro Afonjá. Um

dia, Xangô sentindo-se ameaçado pelos inimigos, sobe num monte bem alto e bate com

o machado de ferro na pedra com todo vigor de seus músculos. As chispas que saltam

vão afastando os inimigos que fogem. Xangô no seu papel civilizador é o dono das

organizações políticas e sociais. É o que desconstrói injustiças e valores inadequados e

hipócritas. O seu oxê, o machado de duas lâminas, une a comunidade na sua origem

ancestrálica e na história que ora narramos ritualisticamente em forma de dança. Na

metade da festa, o poder das ayabás se mostra, quando orgulhosamente trazemos a

grande gamela que colocamos no centro do barracão com o amalá que Xangô e todo

povo come pela mão das mulheres. Finalmente a comunidade é abraçada pelo ojá

abalá85. Eu me abraço me acolho e me junto aos outros. Nós nos abraçamos e nos

acolhemos. O ojá levado com o canto e a dança convoca a comunidade a unir-se e a

juntar-se num abraço que vai juntando todos os corpos num grande círculo no centro do

barracão. É o próprio Xangô que nos abraça, alimentando o fogo do pavio que acende a

vida, e a coragem daqueles que tem na pela a cor da noite.

85 Pano velho ou pano antigo na língua iorubá. Tira de pano vermelho semelhante ao que nos cobre a cabeça para obrigações rituais.

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REFERÊNCIAS

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198

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ANEXOS

REPORTAGENS E NOTÍCIAS SOBRE O PROJETO

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