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9 Fez 40 anos hoje – mais semana, menos semana. É Julho de 2011 e Ravi Shankar está a recordar o Concerto Para o Bangladesh. Aos 91 anos, frágil mas vivaço e com uma magnífica barba prateada, as suas memórias são frescas e claras como o ar da montanha. “Tornou-se algo tão grande que eu não podia acreditar”, diz o maior músico clássico indiano da era moderna. “Foi”, sorri, “uma coisa importante”. Poucos discordariam. Importante não só musical e culturalmente – em- bora tenha sido ambos – e importante não só para os milhares de refugiados e crianças de guerra cuja condição recebeu reconhecimento mundial e que, mais tarde, ganhou um magro conforto material graças à música tocada nes- se dia. Foi também um marco importante para o homem a quem Shankar chama “meu irmão, meu amigo e meu filho, tudo junto”. O primeiro acto massivo de filantropia da música rock foi a cúspide sim- bólica da carreira de George Harrison – a solo ou não. Os dois concertos, que tiveram lugar no Madison Square Garden na tarde e noite de Domingo, dia 1 de Agosto de 1971, e com a presença de Harrison, Shankar, Bob Dylan, Eric Clapton, Leon Russell, Billy Preston e Ringo Starr, foram a síntese perfeita de tudo aquilo que o antigo Beatle representava na sua máxima po- tência. Através do seu nóvel impulso humanitário, a sua tentativa ousada de alogamia cultural, a sua sub-corrente de espiritualismo benevolente e o seu genuíno e pioneiro desejo de abrir corações, olhos e mentes para o Leste, o concerto abarcou tanto as paixões pessoais de Harrison como procurou perpetuar, sem grande alarido cósmico, o idealismo mais vasto dos anos Ses- senta. E depois havia a música, uma mistura borbulhante que ainda reflectia mais a análise expansiva de Harrison, colocando os sons da sitar, do sarod, da tabla e do tamboura juntamente com uma mistura cinética de rock, blues, soul, folk, pop, gospel e R&B. Ao fazê-lo, o Concerto Para o Bangladesh foi uma Prólogo Aqui e Agora Nova Iorque, 1 de Agosto de 1971

Aqui e Agora Nova Iorque, 1 de Agosto de 1971 · diminuídas por um humilde dedilhar folk. Ao fazê-lo, reconheceu o legado maciço dos Beatles com um toque suave, juntando o seu

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Fez 40 anos hoje – mais semana, menos semana. É Julho de 2011 e Ravi Shankar está a recordar o Concerto Para o Bangladesh. Aos 91 anos, frágil mas vivaço e com uma magnífica barba prateada, as suas memórias são frescas e claras como o ar da montanha. “Tornou-se algo tão grande que eu não podia acreditar”, diz o maior músico clássico indiano da era moderna. “Foi”, sorri, “uma coisa importante”.

Poucos discordariam. Importante não só musical e culturalmente – em-bora tenha sido ambos – e importante não só para os milhares de refugiados e crianças de guerra cuja condição recebeu reconhecimento mundial e que, mais tarde, ganhou um magro conforto material graças à música tocada nes-se dia. Foi também um marco importante para o homem a quem Shankar chama “meu irmão, meu amigo e meu filho, tudo junto”.

O primeiro acto massivo de filantropia da música rock foi a cúspide sim-bólica da carreira de George Harrison – a solo ou não. Os dois concertos, que tiveram lugar no Madison Square Garden na tarde e noite de Domingo, dia 1 de Agosto de 1971, e com a presença de Harrison, Shankar, Bob Dylan, Eric Clapton, Leon Russell, Billy Preston e Ringo Starr, foram a síntese perfeita de tudo aquilo que o antigo Beatle representava na sua máxima po-tência. Através do seu nóvel impulso humanitário, a sua tentativa ousada de alogamia cultural, a sua sub-corrente de espiritualismo benevolente e o seu genuíno e pioneiro desejo de abrir corações, olhos e mentes para o Leste, o concerto abarcou tanto as paixões pessoais de Harrison como procurou perpetuar, sem grande alarido cósmico, o idealismo mais vasto dos anos Ses-senta. E depois havia a música, uma mistura borbulhante que ainda reflectia mais a análise expansiva de Harrison, colocando os sons da sitar, do sarod, da tabla e do tamboura juntamente com uma mistura cinética de rock, blues, soul, folk, pop, gospel e R&B. Ao fazê-lo, o Concerto Para o Bangladesh foi uma

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Aqui e AgoraNova Iorque, 1 de Agosto de 1971

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George Harrison: À Porta Fechada

encarnação em carne e sangue da procura por iluminação e levantamento espirituais que tinha feito do seu primeiro álbum a solo, All Things Must Pass, uma declaração tão fortemente impressionante no ano anterior. Em disco, e agora no palco, Harrison parecia uma nova raça de músico rock, emocional-mente evoluído para uma nova era.

Tal coisa teria sido altamente improvável mesmo doze meses antes. Har-rison era históricamente o Beatle mais desprentensioso. Ele nunca foi O Mais Sossegado – esse era um rótulo superficial e simplístico – mas era o menos espampanante, o menos impetuoso, aquele menos atraído pelas lu-zes da ribalta. Depois de a banda se separar oficialmente em Abril de 1970, não faltaram nunca observadores que de alguma maneira esperavam que ele desaparecesse para um ashrami e nunca mais voltasse. Em vez disso, em Agosto de 1971 ele gozava como nunca do seu período mais fértil como músico. Um álbum triplo, All Things Must Pass, foi lançado no final de 1970 e manteve-se no número um no RU e nos EUA por perto de dois meses. Na mesma altura, o single principal, «My Sweet Lord», foi também número um em ambos os lados do Atlântico. Tornar-se-ia a canção mais vendida na Grã-Bretanha em 1971, mas as estatísticas são uma gota de água no oceano. Eram discos colossais, imbuídos de uma poderosa corrente espiritual que apelava aos impulsos idealísticos mais generosos, transferidos do final dos anos Sessenta.

Uma observação mais atenta permitirá ver que a ascensão silenciosa de Harrison até a proeminência faz sentido. Ele foi o Beatle que, durante a vida da banda, se separou mais das suas origens prosaicas e se tornou no primeiro a questionar e desafiar seriamente a sua relação gestaltii. Os quatro experi-mentaram uma evolução altamente acelerada – os anos Fabulosos equiva-liam a anos caninos: um era igual a quatro ou cinco do seu correspondente humano – mas como o mais jovem e inicialmente o menos mundano, Har-rison “fez a maior viagem de todos os Beatles”, diz Bill Harry, fundador da influente revista pop de Liverpool do final dos anos Sessenta, Mersey Beat, e amigo íntimo de Harrison e dos outros membros nos seus anos de formação. “Ele tornou-se mais abrangente que os outros”. No final dos anos Sessenta estava completamente expandido, ainda nos seus vinte-e-poucos e viajando rapidamente, tendo final e inequivocamente dado-se conta do seu potencial e determinado em aproveitá-lo. Harrison acabou a década em grande. Tendo gravado duas das suas maiores canções, «Here Comes The Sun» e «Some-thing» durante as últimas sessões dos Beatles para Abbey Road, ele era o único

i Ashram: ermo espiritual ou mosteiro. Hoje em dia, o termo denota um centro de actividade cultural indiana, tal como ioga, estudos musicais ou instrução religiosa. (N. do T.)ii Gestalt: Termo empregue na psicologia para designar um todo visto como organizado que é mais do que a soma das suas partes. Psicologia Gestalt, que defende tais percepções. (N. do T.)

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membro da banda de quem se podia razoavelmente dizer ter-se separado do grupo com as suas capacidades de escritor e com o perfil em ascensão. Du-rante os dias obscuros de 1970 e 1971 ele parecia manter-se calmo - sendo também o seu melhor conselheiro – enquanto Lennon e McCartney se des-pedaçavam em público. Foi o único Beatle que, pelo menos para o público em geral, entrou nos anos Setenta ainda embalado pelo seu campo de forças único de idealismo, optimismo e calor inato.

Por um curto espaço de tempo, parecia mais fácil a Harrison ser um Beatle fora da banda que dentro dela. Isso mudaria, mas por agora, o legado da banda aclamou-o como artista a solo sem impôr nenhuma das restrições que ele tivera de suportar na década anterior. “Eu acho mesmo que ele foi ofuscado pelo John e pelo Paul na banda, mas destacou-se realmente quando eles se separaram”, diz Glyn Johns, que praticamente produziu sozinho Let It Be em 1969 e trabalhou com Harrison em vários álbuns da Apple. “Pensei que a maneira como ele encarou a sua carreira e a si próprio nesse momento foi assombrosa, e tornei-me um grande fã. Tinha a cabeça tão erguida como qualquer um dos outros como artista a solo, após a separação dos Beatles. Agiu fora do estabelecido e da sua zona de conforto e teve um enorme su-cesso, mais poder para ele”.

O ímpeto por detrás do Concerto Para o Bangladesh era demasiado ur-gente para que este fosse uma mera coroação, mas ainda assim foi o momen-to fulcral para uns notáveis doze meses. Ele tinha sido feito para o papel: uma grande barba, extravagantemente desgrenhado, a emanar graça. A vestir uma simples camisola de lã e um colete durante o discurso introdutório, Harrison parecia um nobre trabalhador da terra retirado de alguma obra da literatura russa do final do século XIX; mais tarde, embelezado um pouco para a ac-tuação, estava brilhante num fato branco, benevolentemente messiânico para aqueles que esperavam que as suas estrelas de rock – e ex-Beatles – o fossem, e muitos esperavam.

Crucialmente, a música foi rica e andrajosamente poderosa. Ele tocou três das suas mais famosas canções dos Beatles, gravadas em 1968 ou 1969: «Something», «While My Guitar Gently Weeps» e «Here Comes The Sun», diminuídas por um humilde dedilhar folk. Ao fazê-lo, reconheceu o legado maciço dos Beatles com um toque suave, juntando o seu passado ao contex-to mais largo do seu próprio trabalho a solo sem ser sufocado por ele. Teria dificuldades em conseguir executar essa manobra de novo, mas por agora, essas canções simplesmente faziam parte dele, fundindo-se ilimitadamente com a sua nova música a solo.

Tudo parecia poderoso e alegre. Uma canção de frustração criativa e emancipação derradeira, «Wah Wah» foi uma emoção em ascensão, quase fora de controlo, com os dois bateristas Jim Keltner e Starr marcando o ritmo atrás de fileiras juntas de vocalistas, e a banda indolente: as trombetas

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George Harrison: À Porta Fechada

a soarem, o órgão a improvisar, as guitarras a brilharem. «My Sweet Lord» já era um clássico, um hino de necessidade e humildade desnudadas traduzido na fogueira de uma sinfonia de rápidas guitarras acústicas. A fresca e fluida beleza de «Beware Of Darkness», o rock-gospel de «Awaiting On You All». Cada uma se ligava ao momento, ao homem e à mensagem. E o centro de tudo isto era um artista que parecia finalmente ter encontrado o seu lugar no mundo, contente em recolher-se enquando Billy Preston e Leon Rus-sell roubavam a atenção desavergonhadamente, ou apoiando decorosamente Bob Dylan no seu maravilhoso mini-set. Se o Concerto Para o Bangladesh foi, como observou aparentemente sem se rir, Jon Landau da Rolling Stone, “o rock a tentar atingir a maioridade”, também era claramente o amadureci-mento pessoal de Harrison.

Mas as aparências iludem. O simples acto de tocar no concerto foi um teste duro de coragem. Tendo ficado a desprezar e temer actuações ao vivo desde que os Beatles deixaram de fazer digressões, o Bangladesh foi a sua primeira aparição principal e oficial desde Agosto de 1966. Segundo Pat-tie Boyd, que conheceu Harrison em Abril de 1964 e esteve casada com ele entre 1966 e 1977, ele estava “extremamente nervoso. Ele tinha de se endurecer para o conseguir fazer”. Shankar recorda que “ele parecia estar um pouco preocupado, especialmente após tanto tempo”, enquanto a sua segunda esposa, Olivia Harrison, me disse em 2009 que “foi muito corajoso da parte do George tocar no Bangladesh. Essa foi verdadeiramente a sua contribuição, superar a sua timidez para o fazer”. Foi uma dádiva generosa, mas na narrativa mais vasta da sua carreira foi apenas um triunfo fugaz e não a nova página corajosa que parecia ser. A sua dúvida acabaria por reclamá-lo.

Uma razão pela qual, a simples ideia do Concerto Para o Bangladesh cativou a imaginação do público e ressoou muito para lá das paredes do Ma-dison Square Garden, foi o facto de unir esses dois estandartes do idealismo dos anos Sessenta – Bob Dylan e, na forma de Starr mas mais significativa-mente Harrison, os Beatles – numa altura em que ambos já tinham deixado as trincheiras. Podia ser 1971, mas os anos Sessenta ainda não tinham termi-nado como fenómeno cultural. O filme Woodstock tinha assegurado que o espírito dessa época transbordava para a nova década, e a música rock ainda era – à justa – vista como uma força suficientemente poderosa para desafiar as ortodoxias em vigor. O Bangladesh, ao princípio, parecia ser o cume de uma onda para os ícones dos anos Sessenta, oferecendo uma nova perspectiva sobre a vida repleta de possibilidades. Na realidade, estava mais próximo do grito derradeiro da promessa dessa década e, de muitas maneiras, da breve carreira de Harrison enquanto super-estrela a solo. A tristeza que enquadra o brilho do Concerto Para o Bangladesh é o conhecimento de que Harrison nunca mais se ligaria tão directa e poderosamente com os tempos.

A promessa do seu primeiro ano como artista a solo decorreu num abrir

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e fechar de olhos. Emprestou ímpeto suficiente para outro – mais austero – álbum de sucesso, bem como mais um single de enorme sucesso, mas a sua energia já se estava a desvanecer. A sua azarada digressão aos EU no final de 1974 foi a confirmação final de que Harrison já não era um candidato genuíno. De facto, se fôssemos traçar um gráfico mostrando o progresso da sua carreira nos dez anos pós-Bangladesh, pareceria uma descida muito pronunciada nuns Alpes muito íngremes: processos, álbuns cada vez mais apáticos, tristeza, doença, bebida e drogas duras, disputas domésticas, conflito espiritual, retiro. No final da década ele era, criativa e culturalmente, irrele-vante. Um velhote nos seus trintas, totalmente desencantado com a indústria de que ele tinha feito parte durante quase vinte anos, que quanto maior era o seu desgosto pelo reboliço do meio, mais inevitável se tornava a sua car-reira vir a ser definida pelo seu tempo nos Beatles, um dilema que o levaria a períodos de profunda amargura. Actuar ao vivo não era uma opção, e ele estava mais à vontade em casa a cuidar do seu jardim do que a fazer discos. Com excepção de um renascer animado no final dos anos Oitenta e e uma breve digressão ao Japão em 1991, continuaria a ser assim até à sua morte, em 2001. Pouco depois do Concerto Para o Bangladesh, Harrison tornou-se no equivalente musical do agricultor cavalheiro, sem saudades das luzes da ribalta e nenhuma vontade real de encontrar a grandeza.

Não se tratou apenas de um lento declínio musical, embora o fosse sem dúvida. Mais obviamente, foi um muito consciente e deliberado virar de costas. Um dos factores determinantes foi o rescaldo do Concerto Para o Bangladesh, que além de sublinhar a sua falta de apetite para actuar ao vivo foi um negócio complexo e frustrante; organizar o álbum, o filme e angariar o dinheiro daí resultante consumiu muito do seu tempo, e deixou-o ainda mais desiludido com os maquiavélicos conluios da indústria da música.

Mas houveram muitas outras causas para a sua saída da linha da frente do rock and roll. Ele lutou contra o legado de ser um antigo Beatle (“Beatle em recuperação” seria uma descrição mais apta; como um alcoólico com a garrafa, nenhum Beatle se libertava alguma vez totalmente do abraço dos Quatro Magníficos) e isso acarretava suspeitas, raiva, e uma necessidade de privacidade muito arraigada. Ele viria a descrever o seu período na banda como “um pesadelo, uma história de terror. Nem sequer gosto de pensar sobre isso”1. Só que ele tinha de pensar sobre isso, porque era forçado a falar sobre isso de cada vez que punha a cabeça por cima do parapeito.

Se os Beatles acabaram por se tornar numa corrente grandemente nega-tiva afastando Harrison da música, também existiram forças positivas por de-trás do seu retiro. Muitas tiveram origem no homem que inspirou Harrison a criar o Concerto Para o Bangladesh em primeiro lugar, e que faleceu em

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George Harrison: À Porta Fechada

Dezembro de 2012. Embora se relacionasse com vários gurusiii e professores, Ravi Shankar permaneceu o guia espiritual de Harrison no decurso de mui-tas das suas explorações. “Foi uma relação muito importante para o George”, disse Olivia Harrison. “Por vezes eram como irmãos, por vezes como pai e filho. Estavam sempre a tocar música e a discutir ideias sobre coisas que poderiam fazer juntos”.

O impacto de Shankar em Harrison foi o de um seixo atirado ao rio, as ondas espalhando-se por toda a sua vida. “Algo no Ravi abriu uma porta no George”, diz Pattie Boyd. “E acho que ele não sabia onde se estava a meter, realmente”.

Os dois conheceram-se no Verão de 1966 e mantiveram uma ligação extraordinária até à morte de Harrison. O músico indiano entrou na sua vida numa altura em que o Beatle percebeu “que já nada mais me estimulava verdadeiramente. Queria algo melhor. Lembro-me de pensar que gostaria de conhecer alguém que realmente me impressionasse. E então conheci o Ravi…”2 Quase 50 anos depois, a sua fome de conhecimento e mudança permanece palpável.

A sua relação era fluída e complexa, e ricamente recompensante. Na-quele dia de Julho, quando lhe perguntei porque é que achava que Harrison tinha passado a segunda parte da sua vida sob o domínio da cultura e filo-sofia espiritual do Leste, Shankar disse, com modéstia suficiente, “Talvez eu seja uma das causas. Foi através da minha música que ele veio até mim e nos conhecemos. Depois, fomos à Índia. Estivemos juntos algumas semanas em Caxemira e Bombaím e comecei a ensiná-lo, e esse foi o período em que ele se interessou verdadeiramente não só pela música, mas também pelos livros que lhe dei juntamente com a música. Através da minha música e da sua visi-ta, ele ficou profundamente interessado no nosso caminho. Não só a religião, mas a antiga filosofia védica. Ficou profundamente interessado e continuou a ler cada vez mais e a ligar-se à Índia e à nossa música”.

A música indiana foi o catalisador das explorações de Harrison que du-raram uma vida, e foi Shankar quem lhe colocou a chave na mão. A partir daí, porta após porta levavam a quartos incontáveis, ao ioga Bhakti e à me-ditação transcendental, a Rishikesh e ao Maharishi Mahesh Yogi, Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada e Krishna e o próprio Con-certo Para o Bangladesh, ao vislumbre de momentos de felicidade, unidade e transcendência, mas também a períodos de dúvida, confusão, dor e medo, aos ritmos irregulares da fama escaldante seguidos de retiro, o pêndulo eter-no do excesso privilegiado e da negação devota. E cada passo levava-o para cada vez mais longe não só dos Beatles, mas também das certezas da infância

iii Guru: palavra em sânscrito para “professor”, especialmente em religiões indianas. (N. do T.)

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e muito frequentemente, dos que lhe eram mais próximos. “Tornou a vida mais complicada”, diz Boyd. “Quando se abre qualquer porta que deixe entrar mais informação sobre a vida e porque estamos aqui, seguimos isso e abrimos outras portas, e é interminável: conhecimento antigo, história, tudo o que existe. E, na verdade, há muito para aprender, e quando se começa a ir por aquele caminho e se abriu aquela porta já não pode fechá-la. O mistério e a intriga estão sempre presentes, e temos que segui-los.

Ele seguiu. Seguiu e encontrou algo mais enriquecedor, duradouro e complexo que a fama, os concertos pop e as tabelas. Com o tempo, tornou-se claro que o Beatle George e aquela estrela solo reluzente que encabeçava um elenco de lendas no Madison Square Garden eram pálidas reflexões de um homem compostas por várias partes, muitas das quais eram quase cómi-camente contraditórias. Os paradoxos rotineiros evidentes na maioria dos humanos pareciam quase amplificados em Harrison, tal como o sucesso dos Beatles era separado por extremos. Aquele que procurava, olhando para o Oriente e para dentro em busca de simplicidade, paz e iluminação, tinha ga-ragens cheias dos carros mais rápidos e caros do planeta. A grandeza excên-trica e extravagante da sua casa de Friar Park em Henley-On-Thames alter-nava por vezes entre o ascetismo seco de um retiro monástico e os excessos mundanos mais próprios do Chateau Marmont. Tão provavelmente seguia o circuito do Grand Prix enquanto este acelerava pelo mundo de maneira nada espiritual como passava tempo de joelhos a cuidar das plantas. O natural de Liverpool com uma língua impiedosa e um sentido infantil de maldade, o homem que de boa vontade participou no coro dos Monty Python, onde fez o papel de lenhador, podia ser também encontrado a apoiar a Meditação Transcendental como política chave nas eleições gerais de 1992.

Quando o produtor dos Beatles, George Martin, adoeceu, Harrison che-gou para o ver no seu McLaren desportivo F1, novinho em folha, que podia atingir velocidades de 370 quilómetros por hora. No leito de Martin, presen-teou o antigo produtor dos Beatles com uma pequena estátua do deus hindu Ganesh. Boa saúde e sabedoria, disse Harrison, resulta de encontrar prazer nas coisas mais pequenas e simples. Depois, foi-se embora no seu carro a jacto de um milhão de dólares, a qualquer coisa parecida com a velocidade do som, deixando a contradição cósmica bem para trás.

Algures no espaço entre estas verdades, jaz a essência de um homem complexo. “Acho que as suas obrigações e responsabilidades crescentes cho-caram dramaticamente com o tipo de austeridade associado a um caminho espiritual, especialmente um caminho indiano”, diz John Barham, amigo e encarregue dos arranjos de cordas nos seus primeiros e melhores discos a solo. “Por um lado, ele queria passar do mundo material para o mundo espiritual, e por outro lado, foi apanhado na rede da sua grande riqueza e posses. Penso que passou por angústia”.

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George Harrison: À Porta Fechada

A sua vida não foi simples. O caminho para a transcendência estava re-pleto de obstáculos deveras terrenos: luxúria, ego, tentação, ciúme, orgulho e raiva. Irascível e temperamental, Harrison estava familiarizado com a noção de direito que todas as estrelas de rock transportam como um cruzamento entre uma medalha e uma cicatriz, mas era também sensível, consciente, pensativo perante uma falha para com os amigos, engraçado, esperto, preo-cupado por natureza, e um homem que descobriu que a fama limitava as oportunidades de desfrutar do mesmo tipo de interacção humana por que ele tantas vezes ansiava. Ele acreditava que o homem tinha a capacidade para uma iluminação profunda, para conter o céu na sua consciência, mas ainda assim permaneceu imensamente receoso e suspeito da sua capacidade de ferir e destruir. E, como se viu, com razão.

Ele estava, em última análise, peculiarmente mal equipado para a fama, sem falar do super-estrelato. Embora por vezes voltasse ao papel do Beatle George, tentado pela facilidade e pelo acesso que este oferecia, passou uma parte significativa da sua vida adulta tentando escapar às limitações da sua pessoa física e pública, olhando para dentro, em vez disso. Enquanto John Lennon, por vezes, saltitava freneticamente de causa em causa na esperança de que se mudasse o mundo talvez tivesse uma hipótese de se mudar a si mesmo, Harrison abordou a realização pessoal do outro lado do telescópio: acreditava que, se conseguisse mudar apenas a si próprio, já teria mudado o mundo. Isso tornou-se – admiravelmente, talvez – o trabalho da sua vida, e muito provavelmente, o trabalho da sua próxima vida também. Podia ser di-vertido, e interessante, e ele geralmente mantinha uma apreciação perspicaz sobre o absurdo da existência e o seu lugar na mesma. Mas raramente foi uma viagem suave.

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Em meados dos anos Setenta, George Harrison estava à porta do edifí-cio onde nascera, e pensou: “Como é que eu entrei nesta família, nesta casa, naquela altura – e quem sou eu afinal?”1 Parecia ser, à primeira vista, um conjunto estranho de perguntas. A maior parte das pessoas que revisitavam a sua casa de infância, seriam propensas em reparar que os novos moradores tinham pintado a porta de púrpura, ou que tinham posto janelas novas. Me-ditações elevadas sobre “passear no plano astral”2, contudo, estavam comple-tamente de acordo com o homem em que Harrison se tinha tornado quase trinta anos após ter vivido no número 12 de Arnold Grove, Wavertree, no sudeste de Liverpool.

Ele foi atirado para a fogueira do super-estrelato após uma educação definida por uma completa normalidade, e parecia sempre um tanto suspeito quanto à sua transacção. Ao contrário do seu amigo Bob Dylan, que viu nos seus começos convencionais uma tela em branco que podia pincelar com todo o tipo de lendas coloridas e mitos, e em derradeira análise, pintar-se de novo, Harrison viria simplesmente a contemplar as suas energias com es-panto. Nos anos imediatamente após a Beatlemania ter virado a sua vida de pernas para o ar, várias vezes lutou para conciliar a sua infância trivial com a posição de extraordinário gabarito em que agora se encontrava.

A questão dava lugar a perguntas essenciais: Porquê eu? Porquê ago-ra? E sim, quem sou eu, afinal? “Ele não conseguia realmente compreender porque é que era um músico tão famoso mundialmente”, diz Pattie Boyd. “Sempre foi um pouco confuso para ele. Começou a olhar para ele próprio e começou a questionar porque é que ele, um rapaz de Liverpool que prova-velmente estava destinado a um trabalho humilde, tinha sido lançado lá para fora para ser tão conhecido”.

No pós-fama, a urgência destas questões intensificou-se. Depois, após ter

CAPÍTULO 1

Há Tantos Anos

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George Harrison: À Porta Fechada

bebido largamente das leis do karma, destino e encarnação, compreendeu que, independentemente de onde tivesse entrado fisicamente neste mundo em particular, nesta altura em particular, “não havia hipótese de não vir a estar nos Beatles, apesar de eu não o saber. Em retrospectiva, vejo o que isso foi - uma preparação”.3

Este facto consumado confortou um pouco um homem que toda a vida procurara um sentido. Também serviu para o distanciar mais das suas raízes. Fisicamente, Harrison deixou Liverpool para trás cedo na vida; primeiro em 1963, com vinte anos de idade, quando se mudou para Londres com os res-tantes Beatles, muito embora desde a primeira visita a Hamburgo, em 1960, tenha vivido uma existência cada vez mais peripatética. Como membro mais jovem da banda e com a família mais unida, “[inicialmente] ele provavel-mente ia mais a casa do que os outros”, diz Tony Bramwell, um amigo de infância que mais tarde trabalhou com os Beatles. “Regressava muito para ver o pai e a mãe”. A família Harrison mudou-se de Liverpool para a vizi-nhança de Warrington em meados dos anos Sessenta, e tão cedo como em 1966, Harrison, pelo menos mentalmente, também se mudara. “Sinto-me esquisito quando regresso a Liverpool”, disse ele. “Sinto-me triste, porque as pessoas lá estão a viver num círculo – está-lhes tanta coisa a passar ao lado. Gostaria que eles soubessem de tudo – tudo aquilo que eu aprendi por sair do pré-estabelecido”4. Um ano depois, Pattie Boyd notaria que “o George não tem saudades de ninguém”5. Um ano após isso, ele declararia que as suas verdadeiras raízes estavam na Índia.

Cortou com as raízes ainda mais profundamente em 1970, o ano em que a sua mãe faleceu. Mudou os seus dois irmãos (a sua irmã mais velha estava a viver há vários anos na América) para que estes vivessem em e à volta da sua propriedade de Friar Park en Henley-On-Thames. “Ele voltava para ver a sua mãe, mas após a morte dela acho que ele não voltava tanto quanto isso”, diz Chris O’Dell, antiga empregada da Apple e mais tarde amiga ín-tima que viveu em Friar Park com os Harrison no início dos anos Setenta. Ela é o tema da sua canção «Miss O’Dell». “Ele podia ir ver o pai, mas eram maioritariamente os outros que vinham ter com ele nesta altura”. Durante os últimos trinta anos da sua vida, o seu contacto com Liverpool foi esporá-dico – levou a sua namorada e futura esposa Olivia Arias para uma digressão nostálgica em meados dos anos Setenta, mas física, espiritual e emocional-mente, encontrou muito pouco dele próprio.

“Crescia-se a querer ir para outro lado”, disse Paul McCartney da atitude colectiva dos Beatles em relação ao amadurecimento em Liverpool6. Har-rison foi talvez mais honesto do que os outros em honrar esse sentimento na idade adulta. Enquanto viveu, não houveram encontros de camaradas nas antigas escolas, concertos nostálgicos no The Cavern nem cerimónias de inauguração vistosas. Recusou a cidadania honorária em meados dos anos

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Há Tantos Anos

Oitenta, e não existiram monumentos póstumos. Ele não tem um aeroporto com o seu nome. De todos os Beatles, é o que mais teimosamente resistiu à deificação pela sua cidade natal. Também há muito pouco de Liverpool na sua música. Quando se começa a procurar, há uma falta de sentimento, muito forte nas suas canções, pelo sítio que o viu nascer: não há uma «Penny Lane», uma «In My Life» ou «Strawberry Fields Forever», nem sequer uma «Liver-pool8». A sua opinião sobre a cidade e infância lá passada nunca deu azo a nostalgia fácil, ou a muita discussão. “Liverpool foi sempre porreiro”, era o máximo que lhe arrancavam7. À medida que o seu eu espiritual desenvolvia, os laços das suas origens físicas tornavam-se cada vez menos significativos. Ele veio a acreditar que a sua casa estava muito longe, que ele não era mesmo “de” Liverpool; o seu espírito eterno, nascido e renascido vezes sem conta, simplesmente reentrou “num corpo” naquele lugar e altura particulares. “Era muito claro para mim que ele acreditava que noutra vida tinha sido indiano”, diz Chris O’Dell. Quando Harrison canta sobre estar “tão, tão longe de casa” em «World Of Stone», de certeza absoluta não está a falar de Merseyside, nem de outro lugar terreno.

O que levanta a questão: quanto do homem podemos ver no rapaz de Liverpool? E quanto do Beatle?

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As infâncias dos artistas mais globalmente bem-sucedidos ou verdadei-ramente pioneiros são frequentemente definidas por aquilo que Tom Waits uma vez descreveu como “uma espécie de ferida inicial”8. Adaptam-se co-mummente a um de vários arquétipos: aqueles que são marcados por au-sência ou perda paternais, aqueles que são privilegiados mas sós, sem amor e a sofrer miseravelmente, e aqueles que são caóticos e peripatéticos, em que adultos e jovens trocam de papéis periodicamente até que ninguém sabe bem quem é quem. Raramente são absolutamente sólidos, calorosos e indistintos. Harrison tinha de longe os alicerces domésticos mais sólidos de todos os Beatles; dos quatro, o seu era o único núcleo familiar tradicional que continuou intacto na idade adulta. John Lennon, criado pela sua tia Mimi, lutou toda a vida com o legado de um pai ausente e uma mãe que o abandonou e depois foi morta quando ele tinha dezassete anos e tinha aca-bado de começar a criar laços com ela. Os pais de Ringo Starr separaram-se quando ele tinha três e mal conheceu o seu pai. A mãe de Paul McCartney morreu quando ele tinha catorze anos. Em contraste, Harrison fazia parte de uma família que oferecia amor e apoio incondicionais. A sua avó materna vivia pertíssimo de Arnold Grove. Ao ser o mais novo era o mais mimado, e foi sempre o menino de ouro incontestável. Nos Beatles, o menino de ouro não era uma posição tão vantajosa; em casa, ganhava certos privilégios. “O

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George era completamente adorado pela mãe e pelo pai por ser o mais novo, como acontece em muitas famílias”, diz Boyd. A sua mãe recordaria, “O George nunca foi impertinente, mas estava sempre perto de nós”9.

A sua música também acabaria por muitas vezes – demasiadas vezes, tal-vez – soar tão sólida e pouco excitante como a sua educação. Ele não tinha o tipo de energia e ambição tantas vezes transmitidas a artistas por uma infância definida por uma vida familiar instável ou com um progenitor de-saparecido. Como músico, era determinado e consciencioso mas nunca foi, admitiu-o, “de natureza competitiva”10. Como Beatle desejava mais contri-buição criativa, mas nunca procurou a maior fatia das luzes da ribalta; como artista a solo estava sempre mais à vontade sendo parte importante de um conjunto do que o elemento principal. Desde o dia em que nascera já con-seguira, sem sequer ter tentado, a atenção condescendente dos que lhe eram mais próximos, e tinha pouca dessa vontade demoníaca de procurar adulação ou aprovação noutra fonte.

O último de quatro crianças, George Harrison nasceu a 25 de Fevereiro de 1943 (muito, muito mais tarde, disse à revista Billboard que tinha nascido muito tarde no dia 24). Os seus pais tinham-se casado em 1930. A sua mãe era de linhagem irlandesa, de Wexford, e católica praticante embora nunca devota. Trabalhou numa mercearia local antes dos filhos começarem a che-gar: primeiro Louise, em 1931, depois Harold em 1934, Peter em 1940, e finalmente George em 1943. Na altura em que os dois rapazes mais novos tinham nascido o seu pai, Harold, já há muito tinha regressado do mar, onde tinha trabalhado como ajudante de primeira classe no White Star Line entre 1926 e 1936. De volta a terra seca, arranjou trabalho primeiro como condu-tor de autocarro, e depois como motorista.

Dinheiro e luxos eram sempre escassos. Harrison nasceu no auge da Se-gunda Guerra Mundial e cresceu em alturas de racionamento, uma medida de austeridade que não terminaria completamente no RU senão em 1954; cada xelim contava, e era contado. Nenhum dos Beatles, talvez com excepção de Lennon, tinha uma atitude tão particularmente despreocupada com o di-nheiro, e nos primeiros dias de sucesso da banda era Harrison quem vigiava quanto é que ganhavam e para onde é que esse dinheiro ia. Foi um fascínio que mais tarde levou a um, por vezes azedo, sentido de injustiça, expresso em «Taxman» ou «Only A Northern Song». “Eles compreenderam o valor do que os seus pais tinham feito”, diz Tony Bramwell. “O George sabia que o seu pai só ganhava umas poucas de libras [por semana], por isso não havia razão para que alguém que trabalhasse para ele ganhasse mais do que isso. Nenhum deles era muito gastador”.

A escola primária de Harrison, o venerável Liverpool Institute, foi re-cordado pelo seu colega Paul McCartney como “um velho lugar Dicken-siano”11, e sem dúvida que a Liverpool da sua infância está tão longe de nós,

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como a altura de Dickens estava dos anos Quarenta e Cinquenta. Era uma cidade e um tempo definidos pelo rescaldo imediato da guerra. As bombas que caíram no porto vieram muito cedo para que Harrison se lembrasse; do que ele se lembra era dos sítios das bombas que assombraram a cidade nas décadas seguintes, as travessas pavimentadas escuras com matadouros no fim, o humor perspicaz e as humilhações selvagens, os misteriosos dramas da calçada: escapologistas nas ruas, mulheres e homens a encenarem barulhentas e por vezes indecentes pantomimas, os empurrões, a azáfama, o barulho, a poeira e o clamor de um porto enorme, eléctricos a cortarem o passo aos peões, barcos a vapor, balsas e navios de carga reunidos na água.

Muitas das casas que serviam de pano de fundo a tudo isto ainda estão de pé, embora a cidade e os tempos se tenham alterado incomensuravelmente. O número 12 de Arnold Grove não mudou tanto assim. Parte de um cul-de-saciv antiquado de casas com terraço tradicionais com um beco – ou “jigger” – atrás, eis como era uma casa pequena situada no fim da fila, encaixada fir-memente de cada lado por propriedades idênticas. De frente para o terraço a partir da estrada há uma porta à direita, uma janela à esquerda e outra em cima. Pode-se ir de uma ponta à outra em quatro passos. Lá dentro, o espaço era pequeno, assustadoramente frio, sem banheira nem casa de banho e sem aquecimento à excepção de um pequeno lume a carvão na cozinha, onde toda a gente costumava juntar-se. A sala de estar em frente, por contraste, era gelada e nada acolhedora, reservada para ocasiões especiais. A casa era um espaço apertado para dois adultos e quatro crianças, o tipo de casa onde uma família se torna unida ou assassina, por falta de alternativas. Para os Harrison foi o primeiro. No geral “ele teve memórias muito agradáveis da sua infância”, disse-me Olivia Harrison. Ele teve uma vida familiar muito estável. Harrison lembra, com humor, esse período como um período de “relativosv e absolutos”.12 As impressões de Pattie Boyd sobre a dinâmica da família eram que “tinham uma relação muito próxima. Eram uma família muito unida, e com muito amor. Ele tinha muita confiança em si mesmo, e só se consegue essa confiança com uma família muito unida e com mui-to amor enquanto criança”. Inicialmente, mal conhecia a sua irmã, Louise. Doze anos mais velha, esta tinha saído de casa para receber formação como professora tendo-se depois casado quando ele tinha dez anos, e mudado-se para a Escócia. Mais tarde, fixou-se permanentemente nos Estados Unidos. As suas memórias dele eram de um rapaz que “era sempre aquele que tentava agradar. Quando o lume precisava de mais carvão, era sempre ele que dizia ‘Mãezinha, eu faço. Deixa-me ir buscar a pá’. Ou quando íamos à igreja, o George engraxava sempre os sapatos a toda a gente”13.

iv Cul-de-sac: expressão de origem francesa, característica dos subúrbios anglófonos, para designar becos sem saída ou ruas sem saída. (N. do T.)v “Relatives” significa também “parentes” em inglês. (N. do T.)

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O seu irmão mais velho Harold, quase dez anos mais velho, esteve fora a cumprir o Serviço Nacional, indo depois trabalhar e tendo-se mais tarde ca-sado, aos seus vinte anos. Peter tinha mais três anos, e era o único dos irmãos com quem costumava brincar e partilhar interesses, incluindo a música. O pai era o ganha-pão, mas a mãe era o coração e a alma do lar. “A mãe dele era encantadora”, diz Bramwell. “Uma mãe como deve ser, a Lou. Deixava-te tratá-la pelo primeiro nome. O pai dele trabalhava nos autocarros e estava sempre alegre. Se andássemos no autocarro dele não tínhamos de pagar. A [irmã] Louise era simpática, mas foi para os Estados Unidos quando éramos muito novos. Os irmãos eram bons rapazes”.

A família já estava na lista de espera para obter uma casa há muito tempo, e quando Harrison tinha seis anos mudaram-se finalmente de Wavertree para uma moradia social no número 25 em Upton Green, Speke. A nova casa era uma melhoria: muito mais espaço, moderna, com uma casa de banho inte-rior, parte de uma comunidade de casas semelhantes construídas à volta de um jardim asseado. Apesar das condições “a mãe do George odiou mudar-se para Speke”, diz Bill Harry. “Apesar da casa ser melhor e terem uma casa de banho e isso tudo, ela sentia falta de Wavertree e das pessoas, e da co-municação com as pessoas”. Speke era qualquer coisa de semelhante a uma experiência social. Situada a 13 quilómetros a sudeste do centro da cidade, foi desenhada nos anos Trinta como uma cidade satélite, com a sua mistura de pré-fabricados e moradias sociais. O aeroporto – agora Aeroporto John Lennon – foi construído na área nessa mesma altura. O novo influxo foi um grupo heterogéneo, uma mistura democrática de famílias enviadas de áreas respeitáveis e tipos menos honrados recolocados dos bairros de lata.Harrison recordou alguns “momentos difíceis depois de nos mudarmos para Speke. Havia mulheres cujos maridos fugiam e outras mulheres a dar à luz a cada dez minutos. E os homens andavam sempre às voltas, e entravam em casas – iam foder, acho eu”14. “Speke era um sítio malvado, acreditem em mim, mais perigoso que Liverpool”, diz Bill Harry. “Onde o George morava até não era mau, mas alguns dos elementos indesejáveis que vieram de Liverpool, nas áreas onde foram morar em Speke, originaram muitas lutas e pancadaria. Foi construída como uma cidade nova, mas não construíram cinemas ou lugares de entretenimento. Os jovens iam [para Liverpool] à tardinha, saíam dos bares ou do cinema e não havia autocarros, por isso roubavam carros para regressar a Speke”. Bramwell, que vivia a cerca de um quilómetro dos Har-rison em Hunt’s Cross, lembra-se de uns “Teddy boysvi em desenvolvimento que nos assustavam à brava”.

vi Teddy boys: Subcultura britânica simbolizada por jovens que vestiam roupas inspiradas nos dandies do período Eduardiano (rei Eduardo VII, 1841-1910), e que os alfaiates de Savile Row tentaram reintroduzir na Grã-Bretanha após a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)

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Pouco após de se ter mudado para Speke, Harrison começou a frequen-tar a escola primária de Dovedale, perto de Wavertree. John Lennon era um aluno, três anos à sua frente, mas com esta diferença de idades os dois nunca deram pela presença um do outro. Ele era um rapaz desportista, particular-mente atraído pelo futebol e pela natação. Juntou-se aos Cubs, e mais tarde assistiria às corridas automobilísticas e ao Grande Prémio de Inglaterra em Aintree, o começo de um caso amoroso com a velocidade e os automóveis que duraria toda a vida. Escreveria para a equipa British Racing Motors, re-cebendo fotografias de todos os mais recentes modelos. Perfeitamente capaz de se ocupar sozinho, nunca tinha falta de amigos. Um colega de Dovedale, Rod Othen, recorda Harrison como “um tipo calado, um sentido de humor malvado, sempre a fazer patifarias, sempre – certamente em Dovedale – em apuros por fazer todo o tipo de coisas: puxar o cabelo às raparigas, trepar pelos antigos abrigos anti-aéreos, atirar bolas de papel e passar bilhetes nas aulas”15. Mesmo nesta idade “não podia com parvos”16, mas já possuía um agudo sentido moral quando achava que outros estavam a ser maltratados. “Se visse alguém a ser oprimido, o George costumava intervir”, diz Othen. Não gostava de ver pessoas a oprimirem outras”17.

Costumava ter amizades diferentes. A sua escola primária era muito longe de Speke, onde ele se dava com um grupo diferente. “Éramos cinco ou seis”, diz Bramwell. “Não éramos selvagens, fazíamos as coisas que os rapazes po-dem fazer. Éramos muito inocentes até nos metermos no skiffle e na música rock”.

Situado perto da irregular curva do rio Mersey, não muito antes de se estreitar no ponto onde Widnes está de frente para Runcorn e começa a derivar para o interior, Speke era uma má mistura do industrial e do rural, parecendo-se com um parque campestre urbanizado. Perto do aeroporto de Liverpool havia terrenos baldios e pistas de caminho-de-ferro. Harrison e os seus amigos brincavam nos campos e quintas, construindo covis com fardos de palha, fingindo ser o Robin Hood ou cowboys e índios e fazendo as cordas balouçar através do lago. Havia um velho edifício Tudor, Speke Hall, pronto para exploração, e muitas fábricas: Bryant & May, Dunlop e Meccano, onde os rapazes saltavam a cerca para agarrar qualquer brinquedo defeituoso que tivesse sido descartado. Mais a Leste haviam os bosques, os bosques e as quintas, que podiam ser explorados a pé ou de bicicleta. Cedo na sua vida ele sentiu o desejo de fugir do reboliço, de encontrar o tipo de paisagem que igualasse uma necessidade interna profunda de calma. Costumava seguir pelo rio Oglet e caminhar ao longo da margem lamacenta, e andar horas a fio pelas encostas escarpadas do Mersey com a maré já baixa. “Há uma parte

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de mim que gosta de estar calado”, disse ele em meados dos anos Sessenta quando a sua vida era tudo menos calma. “Prefiro espaços largos e abertos a engarrafamentos de trânsito”.18

Ficava contente por permanecer calado quando não tinha muito para di-zer, não era pessoa de se impôr. Na biografia oficial dos Beatles, inicialmente publicada em 1968, Hunter Davies descreveu os pais de Harrison assim: “A Srª. Harrison é… alegre, muito amigável e extrovertida. O Sr. Harrison é magro e pensativo, preciso e lentamente circunspecto”19. Juntando as duas descrições, temos uma justa representação da natureza básica de Harrison. A sua cunhada Irene, mulher do seu irmão Harry, lembra-se dos pais de Har-rison como “pessoas tolerantes, sensíveis e amorosas. Eram muito calorosas e convidavam-nos para tudo”20. Ele aprendeu o dom da inclusão, hospitalidade e da meditação com eles, a ideia de que “não podes desiludir pessoas que contam contigo”21. Também herdou um elemento de teimosia e firmeza. McCartney, colega de escola e amigo de infância que veio a conhecer a família bem, descobriu algo mais teimoso e duro na atitude dos seus pais, que também foi transmitido ao seu filho mais novo. De Harry, lembra-se ele em 1987: “[Ele] era sempre muito divertido, mas franco e muito directo… Lembro-me de ficar sempre um pouco perturbado com a dureza do seu ca-rácter. Já a Louise era adorável, mas também uma senhora dura em algumas situações, mas mole como um caramelo por dentro… Dizia-te sempre como se sentia, a Louise”22.

Esta Maçã em particular não caíu muito longe da árvorevii. Como qual-quer criança, a sua personalidade nesta altura é provisória, sujeita a mudanças e evoluções quase constantes, mas é notável quão pouco mudaria o essencial na idade adulta. Por muito que Harrison tenha abandonado a sua cidade na-tal de corpo e consciência, no seu carácter continuou muito “Liverpooliano”. Estava presente na sua mistura de descaramento, charme e franqueza, no seu humor seco, gosto por jogos de palavras, o seu desdém pela “merda” que, nos últimos tempos, parecia cheirar em quase toda a parte. O seu sentido de humor, descrito por Bill Harry como “surreal e bizarro”, era torto e um pouco árido, mas nunca longe da superfície. Por muito que mudasse, até pouco antes da sua morte, permaneceu identificável como aquele rapaz: tei-moso, malvadamente engraçado, irreverente, pensativo, meditativo, inclusivo, independente, estranhamente amargurado, arrogante, sensual, com um brilho brincalhão raramente longe do seu olhar.

Para aqueles que apostam tudo na astrologia – e certamente que Harri-son o fez mais tarde – ele era, pela sua própria avaliação, um Peixes clássico:

vii Em original no texto: “This particular Apple did not fall far from the tree”, adaptaçâo da expressão inglesa “The apple does not fall far from the tree”, em português “Quem sai aos seus não degenera”. Note-se o “Apple” escrito com letra maiúscula, em relação à Apple Records, companhia discográfica fundada pelos Beatles. (N. do T.)

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preto e branco, yin e yang, quente e frio. Dependendo da companhia podia ser barulhento, extrovertido, agressivo e hostil. As primeiras impressões de Paul McCartney foram as de “um tipo arrogante com uma boa ideia de si próprio. Não se acobardava com nada”23. Outras vezes era pensativo, com uma timidez que tanto podia ser intelectual como rude. Um professor lem-bra-se dele como “um rapazinho muito calado senão mesmo introvertido que se sentava no canto mais afastado e nem levantava a cabeça. Não digo que não fosse inteligente, mas [ele] raramente falava”24.

Era capaz de uma espécie de clareza de pensamento feliz e percepção apenas acessíveis a uma criança, embora através da sua vida tivesse frequente-mente dificuldade em articulá-la de modo satisfatório para si. Também tinha um jeito igualmente infantil para falar sem rodeios de maneira desconfortá-vel. Parecia ter o gene da verdade implantado no seu ADN muito antes da sua consciência ter sido expandida pelas drogas e conhecimento espiritual; a fama e a idade adulta não conseguiram polir educadamente as suas arestas ásperas. A linha entre a honestidade e a rudeza pura e simples era sempre muito ténue. “Oh sim, ele era muito brusco!” diz Bramwell. Allan Williams, que trouxe os Beatles para tocarem no seu bar de Liverpool, The Jacaranda, e mais tarde os levou para Hamburgo, descreve Harrison como “bom de con-viver, mas não podia com parvos. Tinha sempre uma língua afiada. Caramba, sim! Não aturava gente merdosa”.

Foi encorajado a ser independente desde muito novo. Os seus pais não eram, recordou a cunhada Irene muito mais tarde, “o tipo de pessoas que impedissem os seus filhos de serem eles próprios”25. Ele exigiu que a sua mãe deixasse de o ir levar à escola primária; ia sozinho fazer recados às lojas ainda muito novo. E quando chegou à casa das dezenas, beneficiou da atitude relaxada deles em relação ao álcool e ao tabaco – pelo menos foi assim que ele contou. Não é difícil de detectar um cheiro de fanfarronice e exagero quando ele diz que podia ficar fora toda a noite a beber quanto quisesse, mas é verdade que tinha uma quantidade pouco vulgar de confiança e liberdade de que raramente parecia abusar.

A vida foi certamente menos difícil para ele do que para os outros Beatles. Não havia muito contra o qual se revoltar em casa, por isso ele revoltava-se – melhor dito, meditava e enfurecia-se internamente – contra a autoridade. Qualquer “ferida” ou tinha sido profundamente implantada à nascença ou advinha de experiências fora de casa, primeiramente através de uma cons-ciência emergente das constrições e expectativas rotineiras da sociedade no geral. As suas experiências nos Beatles exacerbaram-no, mas aquilo a que o amigo, realizador e animador dos Monty Python, Terry Gilliam, chama “o seu tipo esquisito de amargura zangada com certas coisas da vida”26, foi evidente desde cedo. É difícil descobrir as origens – parece ser quase uma resposta traumática com confrontar-se com a verdadeira natureza da realidade. “Os

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nossos pais eram tão honestos que crescemos a sermos capazes de acreditar no que eles nos diziam, e sabendo que tínhamos confiança no que estava a acontecer”, disse a sua irmã Louise. “Quando saímos para o mundo normal, era algo completamente diferente”27. Para lá da segurança e apoio da família, os anos adolescentes de Harrison revelaram lentamente um elemento anti-doutrinal violento que nunca o abandonou. Embora fosse claramente visível um fio crítico e didáctico a correr pela sua própria escrita – não há falta de golpes em forma de “Eu quero-te dizer” (“I Want To Tell You”) ou sermões pesados de “Eu estou a ver-vos a todos” (“I Look At You All”) – ele costuma-va achar sentimentos semelhantes, igualmente sofríveis na boca de qualquer outra pessoa. A religião era uma parte formativa, se bem que relativamente casual, da sua educação inicial que ele escolheu independentemente rejeitar. Frequentou escolas não-denominacionais mas foi baptizado na Our Lady of Good Help, a igreja perto de de Arnold Grove que fechou em 2011, após mais de 100 anos de serviço. Iria à missa com a mãe e os irmãos mesmo depois da família se ter mudado para Speke, mas nunca se apegou realmente. Fez a primeira confissão e comunhão, mas quando chegou a altura do crisma pensou, com a clareza característica, “’Não me vou chatear com isso, confir-moviii eu próprio mais tarde’. A partir daí, evitei a igreja”.

Suspeitava da cultura de padres que andava pelas vizinhanças da classe trabalhadora de Liverpool, para recolher meias-coroas nas suas “mãozinhas suadas”29, embora os seus amigos o vissem frequentemente como um mãos-largas quando mais tarde se tratava de angariar fundos para as suas próprias causas espirituais. O seu catolicismo falhado foi tornado explícito na sua mú-sica. Em «All Things Must Pass», recusou qualquer dogma religioso formal e especialmente um Papa que “possui 51 por cento da General Motors” e só está qualificado para comentar na Bolsa de Valores. Muito mais tarde, o pos-tumamente lançado «P2 Vatican Blues (Last Saturday Night)» foi um ataque ainda mais directo à Igreja de Roma. O escritor e realizador irlandês Neil Jordan, que trabalhou com Harrison no seu filme de 1986 para a HandMade, Mona Lisa, lembra-se que ele se tornou muito virulentamente anti-católico mais tarde na vida. “Odiava o Papa, e disse que me pagava qualquer quan-tidade de dinheiro se eu fizesse um filme que reduzisse a igreja católica a pedaços. Recentemente fiz [a série de TV] The Borgias, e ele tinha-me pago por isso, de certeza. Ele teria adorado, aliás”.

Aqueles arrufos iniciais e cépticos com o catolicismo não foram insigni-ficantes. Mesmo no final da sua vida, enquanto estava a fazer Double Fantasy, John Lennon disse ao baterista Andy Newmark, com a típica candura enve-nenada, “ Sabes, o George é um católico assustado: Deus num dia, cocaína no outro. Fica tão pedrado que se assusta e volta para a igreja”. Na altura a

viii A palavra inglesa para crisma é “confirmation”. ( N. do T.)

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igreja já não era o edifício físico imponente da sua juventude, mas um ponto mais fluído e interno de ligação com o espírito. E no entanto, uma atracção a algum tipo de figura divina – e as confusões subjacentes e contradições que expunha – deve ter sido inculcada numa tenra idade.

O verdadeiro veneno dele estava reservado para a escola. Muito embora Harrison fosse um aluno razoável em Dovedale,dados os seus subsequentes êxitos académicos – que foram exactamente zero – deve ter havido alguma surpresa quando passou no exame dos 11-12 anos no verão de 1954, o que lhe permitiu entrar para uma escola secundária em vez de uma muito menos prestigiosa escola profissional ou uma secundária moderna. “Ele estava mes-mo encantado de ter passado no exame para entrar no Instituto”, disse Rod Othen. “Era a melhor escola de Liverpool, sem dúvida nenhuma”30.

A mudança de Dovedale para o Liverpool Institute, em Setembro de 1954, foi sem dúvida uma encruzilhada. Em tais circunstâncias alguns alu-nos mostram-se à altura, e outros desaparecem deliberadamente e procuram caminhos de escape. A escola secundária viu a boa natureza de Harrison e malícia em geral transformar-se em algo que frequentemente se apresentava como mais zangado e cínico. “O Instituto era uma secundária muito rígida, de topo”, diz Bramwell. “Várias classes sociais, mas eram todos brilhantes. Os professores e os monitores usavam toga, tu usavas uniforme e boné; os professores leccionavam a partir de uma plataforma elevada”. Os castigos corporais eram administrados com regularidade, alguns dos quais através do professor muito a propósito chamado Frank Boot.ix “Os professores tinham a mão muito leve: dobra-te na secretária e apanha”.

Do topo da hierarquia como popular aluno de último ano em Dovedale, Harrison foi relegado para um segundo plano, e não gostou muito. “O pior foi deixar a primária e entrar na grande secundária”, disse ele. “Foi aí que começou a escuridão… onde as minhas frustrações pareceram ter início”. “Batias em alguém só para te sentires mais aliviado”31. Isto não era um exa-gero. McCartney, um ano acima de Harrison na mesma escola, lembra-se de o apresentar a um amigo mais velho chamado Ritter. “Lembro-me de estar-mos pelo recreio e de ter tentado apresentar o George ao Ritter, apresentá-lo aos meus amigos. E estávamos ali sentados e, de repente, o George deu uma cabeçada neste meu amigo. Pensei ’Foda-se’, mas agora tenho a certeza que ele teve uma boa razão para o fazer… aquilo que podia ter sido interpretado como rudeza à boa maneira antiga, eu tive que ver como coragem”32.

McCartney já estava a treinar para se tornar num dos diplomatas da natu-reza, a deitar água na fervura. Harrison sentia-se menos inclinado a ser bon-zinho quando a sua disposição ordenava outra coisa. Mais tarde, descreveu a mudança para o Instituto em termos rudimentares, com o clima emocional

ix Bota, em inglês. (N. do T.)

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a ir de mal a pior. Apesar de “ser muito agradável ser pequeno e fazer sempre sol no Verão”33, quando chegou aos onze anos o barómetro registou “tempo chuvoso e nublado, com ruas velhas e professores retrógrados”34. Foi retirado dos simples azuis e amarelos da primavera do pós-guerra e voltou à obscuri-dade rotineira e marcada a carvão de algum inverno Dickensiano eterno. Para Harrison, esta mudança de humores mudou a própria natureza do cosmos, e assim seria. Ele tinha um dom, ou talvez uma maldição, de pegar no micro e fazê-lo macro. As suas más-disposições eram dilúvios universais, e os seus momentos de felicidade envolviam o mundo inteiro. As alterações de hu-mor eram expressas em tempestades psíquicas com o conhecimento de que, como ele expressou mais tarde em «Blow Away» e «All Things Must Pass», “a mente pode afugentar essas nuvens”. Estes furacões e erupções solares vie-ram a ser totalmente expressos na sua música e, frequentemente, no seu, por vezes, tratamento errático dos que o rodeavam. Em resumo: “Eu não gostava da escola. Penso que foi horrível, o pior tempo da minha vida”35. Mais tarde, descreveria estar nos Beatles quase exactamente da mesma maneira.

Rapidamente perdeu interesse nos estudos, e depressa desceu nas tabelas académicas, caindo na categoria mais baixa C, para alunos com fraco desem-penho. Gastava o dinheiro do almoço no cinema, ou faltava às aulas para ir cumprimentar a namorada de Harry, Irene, enquanto aquele estava a cum-prir o Serviço Nacional, com instruções severas para que esta não contasse à sua mãe.

O seu professor de inglês era George “Cissie” Smith, casado com a tia de Lennon, Mimi, e que não gostava nada das suas botas de camurça azuis de biqueira larga, em particular, e de todo o seu código de vestuário em geral. O meio mais óbvio de revolta nos anos Cinquenta era o vestuário mais do que as acções, e Harrison fez a sua parte. Era um rapaz irritável, um Ted espampa-nante com orelhas grandes e salientes, cara de bebé e um quiffx grandemente duvidoso enfiado com vaselina naquilo que foi descrito como a “merda de um turbante” por Arthur Kelly, seu amigo de Wavertree e colega no Instituto. Tinha uma pronúncia arrastada Scousexi lenta e desleixada, o que o distinguia, nas palavras de John Lennon, como “um verdadeiro maluco”36; por outras palavras, um verdadeiro rapaz da classe trabalhadora de Liverpool. Quando Harrison conheceu Mimi, uma senhora digna e muito severa que se orgu-lhava muito da sua posição social, esta ficou verdadeiramente horrorizada e não o deixou entrar em casa.

Para a escola, fez várias alterações engenhosas ao uniforme oficial: ajus-tava as calças na máquina a pedal da mãe até que estas ficassem justas à pele;

x Quiff: Penteado típico dos anos Cinquenta em Inglaterra, predominantemente no movimento Teddy. Da palavra francesa “coiffe”, “penteado” em português. (N. do T.)xi Scouse: Sotaque ou dialecto típico da zona de Merseyside, mais propriamente de Liverpool. (N. do T.)

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usava um colete amarelo brilhante, alternando com um preto. Segurava o emblema da escola com um alfinete de segurança para que este pudesse ser metido dentro do bolso fora da escola. Era a rebelião feita em casa numa ração do pós-guerra. “ O George já usava calças justas pelo tornozelo, tinha encurtado a gravata e usava um quiff”, diz Bramwell. “Ele era um semi-de-linquente juvenil, à hora de almoço!”

Era um frequentador devoto do canto dos fumadores na escola. “Co-meçámos pelos Woodbines e depois tornámo-nos mais exóticos, com coisas como Passing Clouds”, diz Othen. “Não era só um sítio onde ele ia e fuma-va… havia mais conversas, ideias e experiências pessoais partilhadas naquele canto do que em muitos outros sítios da escola”37.

Ofereceu algum alívio ao que se passava por dentro. A escola, com os seus professores “fascistas”38, foi a primeira contemplação da vida como uma corrida de ratazanas, aparentemente desejosas de recrutar um exército de robots, sentados em secretárias a receberem a mesma informação. Parecia in-fundir-lhe um estranho horror que nunca o abandonou. “É quando as coisas dão para o torto, quando estás a crescer descansado e começam a enfiar-te o conceito de pertencer à sociedade pela garganta abaixo”, disse ele. “Todas essas coisas chateavam-me. Eu só estava a tentar ser eu próprio”39.

Uma combinação do Síndrome do Filho Mais Novo – “ele era o menino de ouro, sem dúvida nenhuma”, diz Pattie Boyd – e de uma família genero-samente inclinada para a independência e auto-expressão, garantiu que ele nunca ficasse muito bem alinhado com a ideia de fazer o que lhe diziam. Nunca houve muito desse tipo de coisa em casa. Ainda gostava menos que lhe dissessem o que pensar, e quando teve a oportunidade de encontrar o seu próprio caminho para os seus próprios interesses, absorveu o conhecimento sofregamente, mas não gostava de instrução forçada. Parecia ter, desde muito jovem, uma percepção alternativa de normalidade, que não incluía a escola, o Serviço Nacional, os cadetes do exército, exames ou álgebra. “Sempre sou-be que havia algo que eu não ia conseguir na escola”, disse ele. “Tive sorte suficiente para sentir que havia uma alternativa”40. Tal como um milhão de jovens desajustados antes e depois, essa alternativa era a música.