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AQUILES, ENEIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE 1 Machado de Assis Estes quatro heróis, por menos que o leitor os ligue, ligam-se naturalmente como os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua Ilíada; as várias Ilíadas formam a epopeia do espírito humano. Na infância o herói foi Aquiles, — o guerreiro juvenil, altivo, colérico, mas simples, desafetado, largamente talhado em granito, e destacando um perfil eterno no céu da loura Hélade. Irritado, acolhe-se às tendas; quando os gregos perecem, sai armado em guerra e trava esse imortal combate com Heitor, que nenhum homem de gosto lê sem admiração; depois, vencido o inimigo, cede o despojo ao velho Príamo, nessa outra cena, que ninguém mais igualou ou nem há de igualar Esta é a Ilíada dos primeiros anos, das auroras do espírito, é a infância da arte. Enéias é o segundo herói, valente e viajor como um alferes romano poético em todo o caso, melancólico, civilizado, mistura de espírito grego e latino. Prolongou-se este Enéias pela Idade Média, fez-se soldadão cristão, com o nome de Tancredo, e acabou em cavalarias altas e baixas. As cavalarias, depois de estromparem os corpos à gente, passaram a estrompar os ouvidos e a paciência, e daí surgiu o Dom Quixote, que foi o terceiro herói, alma generosa e nobre, mas ridícula nos atos, embora sublime nas intenções. Ainda nesse terceiro herói luzia um pouco da luz aquileida, com as cores modernas, luz que o nosso gás brilhante e prático de todo fez empalidecer. Tocou a vez a Rocambole. 1 Publicado originalmente na coluna “História de 15 dias”, revista Illustração Brasileira, 15/01/1877, sob o pseudônimo “Manassés”.

Aquiles, Eneias, D. Quixote e Rocambole

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AQUILES, ENEIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE[footnoteRef:1] [1: Publicado originalmente na coluna Histria de 15 dias, revista Illustrao Brasileira, 15/01/1877, sob o pseudnimo Manasss.]

Machado de AssisEstes quatro heris, por menos que o leitor os ligue, ligam-se naturalmente como os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua Ilada; as vrias Iladas formam a epopeia do esprito humano. Na infncia o heri foi Aquiles, o guerreiro juvenil, altivo, colrico, mas simples, desafetado, largamente talhado em granito, e destacando um perfil eterno no cu da loura Hlade. Irritado, acolhe-se s tendas; quando os gregos perecem, sai armado em guerra e trava esse imortal combate com Heitor, que nenhum homem de gosto l sem admirao; depois, vencido o inimigo, cede o despojo ao velho Pramo, nessa outra cena, que ningum mais igualou ou nem h de igualar Esta a Ilada dos primeiros anos, das auroras do esprito, a infncia da arte. Enias o segundo heri, valente e viajor como um alferes romano potico em todo o caso, melanclico, civilizado, mistura de esprito grego e latino. Prolongou-se este Enias pela Idade Mdia, fez-se soldado cristo, com o nome de Tancredo, e acabou em cavalarias altas e baixas. As cavalarias, depois de estromparem os corpos gente, passaram a estrompar os ouvidos e a pacincia, e da surgiu o Dom Quixote, que foi o terceiro heri, alma generosa e nobre, mas ridcula nos atos, embora sublime nas intenes. Ainda nesse terceiro heri luzia um pouco da luz aquileida, com as cores modernas, luz que o nosso gs brilhante e prtico de todo fez empalidecer. Tocou a vez a Rocambole. Este heri, vendo arrasado o palcio de Pramo e desfeitos os moinhos da Mancha, lanou mo do que lhe restava e fez-se heri de polcia, ps-se a lutar com o cdigo e o senso comum. O sculo prtico, esperto e censurvel; seu heri deve ter feies consoantes a estas qualidades de bom cunho. E porque a epopeia pede algum maravilhoso, Rocambole fez-se inverossmil, morre, vive, cai, barafusta e some-se, tal qual como um capoeira em dia de procisso. Veja o leitor, se no h um fio secreto que liga os quatro heris. certo que grande a distncia entre o heri de Homero e o de Ponson du Terrail, entre Tria e o xilindr. Mas questo de ponto de vista. Os olhos so outros; outro o quadro; mas a admirao a mesma, e igualmente merecida. Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lanas argivas. Hoje admiramos os alapes, os nomes postios, as barbas postias, as aventuras postias. Ao cabo, tudo admirar.