202
ARACRUZ CREDO 40 anos de violações no ES e resistência n e e esis S o S no n S S S E cia S S S r ES o o nc es re O la ê S t resist de es ên e a a sist r re C C 40 40 C C C C r ia tência ci t c a 0 0 r c ol stê st esis resist ci i resistênci r ci st ên t cia ê re RE no e sistên r e ên a ê stência ên ç nc s d ên c a n ia st nc ên nc ia tên st õe c CR CR C 0 0 0 0 0 s e violaçõ n vi os 4 4 os de violações v e e vio RE nos RE 40 ano 4 ED de s os R R R R R R a 0 4 4 4 0 anos de violaçõe C C C C o R an n s E s vi ED d CR CR CR C C C C D C CR CR CR C C C R C C C C C C D RED CR CR CR CR R CR CR CR CR CR C R D CR CR R R R EDO RE R CR CR RED RE CR CR C RE RED R C C CRE CR C C R D CREDO C D C C O R R O O CRED C REDO R CR CR O C C CRED CR EDO RE O DO REDO O CR REDO REDO O CRE CR C CRED C CREDO REDO REDO C EDO R R C C REDO REDO O RED R O CREDO C C C C C C C CREDO CR O EDO C C C RE C CREDO C C C C EDO C C O C C CREDO C CR CR C C RE C C C DO R CRE CREDO CREDO C CREDO C E CR O C C REDO CRED CR C C C RED CREDO O O CREDO REDO REDO C C DO CR CR O EDO O CREDO O EDO AC RE CREDO CR O D O R R EDO O ED O EDO O DO EDO E O E E E E O O DO ED U O U U O D R R R D D U DO O CR U U U C R R A A A A CR R CR AC A A A A AR AR AR AR A A A A A A CR ACRUZ A A ACRU CRU R CR R A A CR A A RUZ R R A ACR C RACR A CRUZ A A R ACRU A A R R A A R R Z CR ARACRUZ CR R R A CRU R R AR AR AR A A ACRUZ A A R AC ACR A A A A A ACR A R R RACRU A ARACRU A A ACR CRUZ R RACR R R R ACR A A A A ACR A RA R ARACR A A A U ACR C RUZ CRU R UZ R CR ACRU ACRU A R CRU U RACRU R ARACRUZ CRU U ACRU A A A A A ARACR Z R R CRU RU Z Z CRU ACR A RAC R R C CRU RACR CR AC A R R AR AR A A UZ CRU R RACRU U ACRU R UZ C RAC RU R Z RUZ C U C R AC A A ARA A CRUZ A A UZ A A CRU R R Z R ACRUZ A RU ACR Z C R R A A R A CR AR AR ACR AC A A A A C C A A R AR A A R

Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Publicação elaborada por meio de parceria entre a Rede Alerta contra o Deserto Verde e a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais. Organizada por Helder Gomes e Winnie Overbeek.

Citation preview

Page 1: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

ARACRUZCREDO

40 anos de violações

no ESe resistênciano ESe resistência

40 anos de violações

e resistênciano ESno ESno ESno ESno ESno ESno ESno ESno ESe resistênciae resistênciano ESno ESno ESe resistênciano ESno ESno ESe resistênciae resistênciae resistência

CREDO40 anos de violações

e resistênciano ESe resistênciae resistência

40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciaCREDOCREDO

40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violaçõesCREDOCREDO

40 anos de violaçõesCREDO

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações40 anos de violações

e resistênciae resistência40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciaCREDO

40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações

e resistência40 anos de violações

e resistência40 anos de violações40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações40 anos de violações

e resistência40 anos de violações

e resistência40 anos de violaçõesCREDOCREDOCREDO

40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDO

40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDOCREDOCREDOCREDO

40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violaçõesCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDO

ARACRUZCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDO

ARACRUZCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZCREDOCREDO

ARACRUZARACRUZARACRUZCREDOCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZARACRUZARACRUZCREDO

ARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZ

A história de 40 anos da maior empresa de celulose branqueada de eucalipto do planeta é marcada por severos e irreversíveis impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos no estado do Espírito Santo. Com vultosos financiamentos públicos e o incondicional apoio político do Estado, a Aracruz Celulose se apropriou indevidamente de territórios indígenas e quilombolas, destruindo o modo de vida comunal desses povos. Responsável por impor drásticas mudanças também na vida dos camponeses, essa empresa destruiu milhares de hectares de Mata Atlântica, sempre movida pela obsessão de lucros continuamente crescentes.

Ao publicar , a Rede Alerta contra o Deserto Verde e a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais pretendem explicitar a perversidade do atual modelo de “desenvolvimento” a partir da realidade dos territórios onde atuam as mega empresas. Por outro lado, é fundamental dar visibilidade e registrar o histórico processo de resistência e enfrentamento das comunidades locais contra a Aracruz. Atingidas diretamente pelos impactos, irregularidades e ilegalidades cometidas por essa empresa, os povos da região lutam desde a sua implantação – em plena ditadura militar – até os dias de hoje para ter os seus direitos fundamentais respeitados.

ARAC

RUZ

CRED

O 4

0 an

os d

e vi

olaç

ões

e re

sist

ênci

a no

ES

REDE ALERTACONTRA O DESERTO VERDE

C

M

Y

CM

MY

CY

CMY

K

Page 2: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

1

Page 3: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

Projeto Gráfico e Ilustração da capa: Guilherme Resende

[email protected]

Aracruz Credo – 40 anos de violações e resistência no ESRede Alerta contra o Deserto Verde e Rede Brasil sobre Instituições Financeiras MultilateraisOrganizado por Helder Gomes e Winnie Overbeek,Editado por Patrícia Bonilha.Vitória, 1a edição, 2011

ISBN 978-85-88232-04-4

1. Deserto verde – Aracruz/Fibria2. Plantações de eucalipto - impactos socioambientais, culturais e econômicos3. Financiamento público – prejuízo social4. Modelo de desenvolvimento – celulose – Espírito Santo

Page 4: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

1a Edição l Vitória, 2011

Helder Gomes e Winnie Overbeek Organizadores

Patrícia Bonilha Editora

REDE ALERTACONTRA O DESERTO VERDE

no ES

Page 5: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

4

Page 6: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

Apresentação • Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais

Introdução • Rede Alerta contra o Deserto Verde

Nota da editora

PARTE 1

Tupiniquim e Guarani: símbolos da resistência • Fábio Martins Villas

Entre a terra e o carvão: as comunidades quilombolas • Selma Dealdina

A degradação socioambiental no Sapê do Norte • Simone Batista Ferreira

Agronegócio e a vida das mulheres • Gilsa Helena Barcellos e Simone Batista Ferreira

PARTE 2

A re-significação da água pelo uso industrial • Marilda Teles Maracci

Papel para o Norte, hiper-consumo de água no Sul: uma hidro-genealogia das fábricas da Aracruz • Daniela Meirelles e Marcelo Calazans

Desvios e represamento de rios: irregularidades e abusos • Marilda Teles Maracci

Promessas de emprego e destruição de trabalho • Alacir De’Nadai, Luiz Alberto Soares

e Winnie Overbeek

PARTE 3

A viabilização da Aracruz Celulose pelo Estado brasileiro • Helder Gomes

Fraudes e ilegalidades • Sebastião Ribeiro Filho

A construção simbólica da Aracruz Celulose e dos movimentos sociais pela mídia• Luciana Silvestre Girelli

PARTE 4

Mudanças Climáticas: uma lucrativa oportunidade • Winnie Overbeek

Um fim para a cultura do consumo excessivo • Patrícia Bonilha

Ficção quilombola e mercado de carbono • Marcelo Calazans e Renata Valentim

Sobre os autores

SUMÁRIO

Em 2009, as plantações de monocultura ocuparam 6,3 milhões de hectares no Brasil: franca expansão da destruição da biodiversidadeTam

ra G

ilber

tson

107

135

151

171

188

190

193

197

7

8

13

17

31

35

54

79

86

91

Page 7: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

Tam

ra G

ilber

tson

A implantação da fábrica da Aracruz Celulose em Barra do Riacho causou severos impactos

socioculturais na comunidade

Page 8: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

APRESENTAÇÃO

Onde quer que essas transnacionais se instalem, a mesma forma de atuação pode ser verificada. Ocor-re a apropriação indevida de terras, o cercamento

e a expulsão de comunidades tradicionais e camponesas, uma profunda degradação ambiental e a destruição do modo de vida e da cultura locais. Este é o retrato da im-plantação da Aracruz Celulose, hoje em dia chamada Fi-bria, que desde 1967 instalou-se no Espírito Santo para promover o plantio da monocultura de eucalipto em larga escala e a produção de celulose para exportação.

Vale ressaltar que a atuação da Aracruz não causou so-mente um grave conjunto de impactos negativos. O que se viu no Espírito Santo, por outro lado, foi um intenso pro-cesso de resistência a partir das comunidades indígenas Tupiniquim e Guarani, das comunidades quilombolas do Sapê do Norte e dos movimentos sociais do campo, resul-tando no final da década de 1990 na criação da Rede Alerta contra o Deserto Verde, uma experiência inédita de articu-lação entre comunidades tradicionais, movimentos sociais do campo, ONGs, pastorais sociais e também indivíduos dispostos a apoiar as lutas das comunidades que vêm re-sistindo à monocultura de eucalipto e que lutam pela re-

O Brasil tem investido cada vez mais recursos públicos em empresas transnacionais, tanto brasileiras quanto estrangeiras. Como na época da ditadura militar, essas corporações utilizam os subsídios do Estado para implementar projetos desenvolvimentistas que interferem de modo severo e irreversível nas mais diversas regiões do País.

Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais

7

tomada do seu território. A militância da Rede Alerta tam-bém tem se dedicado, nestes últimos dez anos, ao estudo do projeto de expansão contínua do eucalipto e celulose nas suas diversas dimensões e impactos. O presente livro é um esforço da Rede Alerta para sistematizar e disponi-bilizar esta acumulada experiência para o público.

Para a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multi-laterais, que há quinze anos monitora as políticas e inves-timentos dos grandes bancos internacionais e regionais - e, mais recentemente do Banco Nacional de Desenvolvi-mento Econômico e Social (BNDES) - no projeto de de-senvolvimento no Brasil, esta publicação expõe o signifi-cado desse projeto a partir da realidade dos territórios on-de atuam as empresas beneficiadas por volumosos finan-ciamentos, muitas vezes públicos.

Este livro apresenta uma série de artigos que explicitam os graves impactos sociais, ambientais, culturais e econô-micos causados por políticas governamentais inadequa-das e aplicadas de forma autoritária. As instituições finan-ceiras justificam os investimentos através do anacrônico e falso discurso de estarem trazendo para as regiões onde se implantam o ‘desenvolvimento, o progresso e a geração de muitos empregos’. Os textos mostram que o que ocorre, na realidade, é justamente o contrário: a qualidade de vida das populações locais piora, a violência aumenta e os em-pregos oferecidos têm caráter exploratório e, geralmente, causam grandes danos à saúde dos trabalhadores. Portan-to, é essencial conhecer com profundidade os impactos re-ais dessas políticas nefastas e, ao mesmo tempo, aprender com as lutas de resistência das populações impactadas. Este nos parece um dos caminhos para avançar na cons-trução de projetos locais e regionais que se contraponham às políticas de desenvolvimento que continuam dominan-do a agenda política das ações do Estado brasileiro.

A Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilate-rais contribuiu com enorme satisfação na realização do presente livro e gostaria de convidar outras redes par-ceiras e movimentos aliados a seguir este caminho, sis-tematizando e socializando as informações. Trata-se de uma contribuição fundamental na luta por um Brasil com justiça social e ambiental.

Page 9: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

IntrOduçãO

A proposta deste livro é abordar os diversos impactos da implantação e dos subsequentes investimentos agroindustriais da empresa Aracruz Celulose no estado do Espírito Santo.

Rede Alerta contra o Deserto Verde

Desde os primeiros plantios de eucalipto na década de 1960, diversos movimentos populares e pesqui-sadores denunciam a Aracruz Celulose pela usur-

pação de direitos econômicos, sociais e culturais das cama-das populares capixabas e, também, pela devastação am-biental vinculada a cada um de seus empreendimentos.

Este livro é fruto da riqueza de informações acumula-das a partir desses movimentos de contestação. Sobre-tudo nos últimos dez anos, a organização desse material (artigos e teses acadêmicas) foi possível graças ao traba-lho desenvolvido pela Rede Alerta contra o Deserto Verde. Esta articulação reúne lideranças das comunidades im-pactadas pela monocultura do eucalipto (indígenas e qui-lombolas), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), bem como várias outras organizações com repre-sentação no estado, como a Federação de Órgãos para As-sistência Social e Educacional (Fase), a Comissão Pasto-ral da Terra (CPT), a Associação dos Geógrafos Brasilei-ros (AGB) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), incluindo ainda pesquisadores, religiosos, estu-dantes e uma diversidade de ativistas que atuam no Espí-rito Santo e no sul da Bahia.

A proposta da Rede Alerta sempre foi combater a ex-pansão das plantações de eucaliptos da Aracruz e de ou-tras empresas através do apoio às lutas locais de resis-tência das comunidades e movimentos impactados, mui-tos dos quais tiveram suas terras tomadas pela Aracruz, além de incentivar e promover o debate com a sociedade sobre o nefasto modelo de desenvolvimento que o projeto da Aracruz representa para o estado e para sua gente.

Desse modo, esta publicação apresenta um esforço de reflexão coletiva, disponibilizando, ao público em geral, mas, em particular, para a militância popular, estudantes 8

e pesquisadores de outros estados brasileiros, um con-junto de textos que entendemos ser de grande relevância para a compreensão de uma parcela significativa de nos-sa história recente.

As primeiras plantações de árvores para a produção de celulose no Brasil ocorreram no final da primeira metade do século XX. A Klabin Irmãos e Cia. foi uma das pionei-ras nas experiências de produção interna de pasta de celu-lose associada à produção de papel. Esta empresa nasceu da conversão de uma gráfica da família em uma compa-nhia importadora de papel e produtora de materiais para escritório e, posteriormente, tornou-se uma grande produ-tora nacional de celulose e papel. Segundo dados da As-sociação Brasileira de Celulose e Papel, já em 1950 a pro-dução interna de celulose no Brasil chegava bem próximo de 100 mil t/ano (Bracelpa, 2008). Foi no final daquela dé-cada que o governo federal passou a planejar mais inten-sivamente a ampliação da produção de celulose no Brasil, dentro das perspectivas estratégicas do Plano de Metas, do governo Juscelino Kubitscheck. A partir dessa intervenção governamental, outras tantas deram sequência à promo-ção das plantações de árvores em regime de monocultura e, de forma combinada, na trajetória da produção de celu-lose no Brasil.

Até então, a produção de celulose no País era motivada pelo abastecimento interno da indústria papeleira num modelo associado e verticalizado da cadeia produtiva de celulose e papel. A partir daquele período, além do volu-me da produção de celulose ter se multiplicado – em 1964 ultrapassava 500 mil t/ano (Bracelpa, 2008) –, a composi-ção de sua cadeia produtiva foi alterada e passou a se des-vincular da produção interna de papel. Novas plantas in-dustriais passaram a se especializar na produção de pas-ta de celulose de mercado e a se voltar para o comércio exterior, visando atender à demanda por insumos básicos da indústria mundial de papel em franco crescimento.

A elevação abrupta da produção nacional de celulose pressupunha resolver um problema clássico desse ramo industrial: a oferta de matéria-prima. Por isso, os inves-timentos públicos e privados, que passaram a ser articu-lados naquele mesmo período, se destinavam também à elevação da produtividade na produção de madeira, o que exigia o incremento de pesquisas tecnológicas e o inter-câmbio de informações com equipes de pesquisadores dos países tradicionalmente grandes produtores e consu-midores de celulose e papel.

A solução encontrada pelos pesquisadores e pelas equipes de planejamento foi viabilizar economicamente a produção interna de celulose de eucalipto. Observou-se que, enquanto o tempo de produção das florestas nos pa-íses de terras frias variava entre 25 e 100 anos, no Brasil, as árvores de eucalipto poderiam ser cortadas para a pro-dução de celulose, em média, com sete anos, desde que se investisse no manejo das plantações em regime de mono-

Page 10: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

9

cultura de espécies adequadas às condições tropicais.A montagem dessa nova forma de organização da pro-

dução de celulose no Brasil se adequava ao modelo que se constituía internamente como padrão de desenvolvi-mento. Ou seja, a magnitude dos novos investimentos exi-gia, para a viabilidade de seu financiamento e também para a transferência de tecnologia, a formação de joint ventures com o capital estrangeiro e uma grande partici-pação estatal, inclusive na composição acionária dos no-vos negócios.

Com esses novos movimentos empresariais e do gover-no federal, foi possível iniciar a reversão do padrão in-terno da emergente indústria de celulose, que estava ba-seado na produção integrada celulose-papel, abrindo um novo cenário para a substituição de importações a partir de plantas industriais exclusivas em celulose.

Após o Golpe de 1964 ocorreram significativos momen-tos de avanço no processo de expansão das plantações de eucalipto no Brasil. A princípio, em plena ascensão do re-gime militar, para além de toda a política ortodoxa de con-trole monetário, procedimentos do governo federal esti-mulavam uma nova perspectiva para o reflorestamento em geral e, posteriormente, para aquele voltado para a celulose em particular. A criação do Sistema Nacional de Crédito Rural e do novo Código Florestal são exemplares da atuação do governo neste sentido. Tais medidas am-pliavam o leque de oportunidades de investimentos in-ternos na produção programada de madeira para fins di-ferenciados, como aqueles vinculados à produção de car-vão vegetal e ao processamento de celulose.

Entretanto, somente na segunda metade dos anos de 1960 foram gestadas, interna e externamente, as condi-ções para um novo e longo ciclo de expansão do plantio de eucalipto em território nacional. No processo de es-gotamento do modelo de substituição de importações, al-guns empresários perceberam a ótima oportunidade de acumulação, possível através do aumento da escala de produção interna visando alcançar os mercados interna-cionais de celulose, e estimulada pelos incentivos fiscais à silvicultura de eucalipto.

Naquele momento, as relações comerciais e de inves-timento nos mercados internacionais, em geral, estavam sendo significativamente modificadas. Após décadas de controle e regulação dos Estados Unidos, as economias européia e a japonesa, plenamente reconstruídas e re-cuperadas dos abalos bélicos causados pela Segunda Guerra Mundial, passavam a contestar o poder da eco-nomia estadunidense.

“A concorrência européia e japonesa, depois de haver ganho a batalha comercial, enfrenta a do investimento direto externo. Assim, o processo de expansão das filiais e de transnacionalização dos capitais procedentes destes países começa a recortar o espaço econômico mundial até então

sob controle especificamente americano. Em particular, reforçam uma segunda onda de industrialização dos países da periferia.”

(Teixeira, 1993, p. 188)

O movimento do capital mundial facilitava uma nova investida dos militares, que impunham um novo comando na política econômica ditada da recém construída Brasí-lia. A política macroeconômica explicitava uma vertente expansionista, elevando os investimentos estatais em in-fraestrutura e na qualificação da força de trabalho exigi-da pela expansão da produção e dos novos investimentos privados. Estes eram motivados por incentivos fiscais e li-nhas de financiamento subsidiado.

A partir da Reforma Tributária de 1966-67, também ocorreu a centralização da arrecadação tributária na es-fera federal.

“A capacidade de articulação de interesses regionais de cada unidade federativa, junto ao poder central, marcava os resultados correspondentes na autorização para criação de instituições e instrumentos locais de fomento à produção industrial, uma vez que seu funcionamento dependia de recursos centralizados na esfera federal.”

(Gomes, 1998, p. 46)

Tratava-se, portanto, de um contexto externo e interno muito particular para as oportunidades de investimen-tos voltados direta e indiretamente para a indústrias de celulose de mercado no Brasil. As alterações legislativas e institucionais ocorriam no mesmo ritmo em que mo-vimentos nos mercados internacionais apontavam para uma pressão da demanda por papel e celulose mas, tam-bém, para grandes dificuldades de expansão da produ-ção de madeira nos países que tradicionalmente se des-tacaram como grandes produtores mundiais dessa ma-téria prima estratégica. Tais perspectivas internacionais foram apontadas por uma pesquisa divulgada pela FAO (instituição da Organização das Nações Unidas – ONU - voltada para a alimentação e a agricultura), que indicava as dificuldades encontradas pelos países tradicionalmen-te grandes produtores e consumidores de celulose e pa-pel em ampliar a oferta de madeira nas regiões frias do planeta. Entre as principais dificuldades, destacavam-se a indisponibilidade de terras nos países centrais, o longo período de maturação das plantações, bem como as pres-sões dos movimentos sociais contra o aumento das emis-sões de poluentes e a ampliação das monoculturas em seus respectivos países.

A notícia de que os mercados internacionais de madei-ra estavam abrindo oportunidades de localização de no-vas fábricas de celulose motivou a intermediação de in-teresses no Brasil, especialmente a partir da intervenção da, então estatal, Cia. Vale do Rio Doce, que procurava al-

Page 11: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

10

ternativas de diversificação industrial.O primeiro resultado objetivo dessa articulação de in-

teresses foi a promulgação da Lei nº 5.106, de 02 de se-tembro de 1966. A nova legislação implicava na criação de amplos incentivos fiscais para o que chamavam de reflo-restamento, numa nítida demonstração do poder de arti-culação dos empresários que pressionavam os militares por ampliação de benefícios do Estado brasileiro para a nova empreitada.

Além dos benefícios definidos pela Lei nº 5.106/66, ain-da existiam naquele momento as linhas de financiamen-to vinculadas ao Instituto Brasileiro do Café (IBC)/Gerca, do Ministério da Agricultura, voltadas para a diversifica-ção agrícola e industrial nos estados atingidos pelos pro-gramas de erradicação de cafezais.

Destacou-se também, dentre as ações do governo fede-ral, a criação do Instituto Brasileiro de Desenvolvimen-to Florestal (IBDF), em 1967, período em que também se formava a primeira turma de engenheiros florestais, cur-so mantido por convênio entre o IBDF e a FAO.

Assim, o que na origem se apresentava como uma po-lítica nacional mais abrangente, voltada inclusive para a solução de problemas energéticos da indústria siderúrgi-ca brasileira, que demandava muito carvão, passou a se apresentar mais explicitamente como um planejamento de longo prazo, destinado à ampliação das plantações de eucalipto, em larga escala, objetivando a produção de ce-lulose de mercado para a exportação.

Todo o arranjo político e institucional construído a par-tir do final dos anos de 1960 formou a base de susten-tação pela qual o Estado passou a fomentar a produção de celulose de mercado no Brasil. A produção interna se multiplicou e em 1972 já ultrapassava um milhão de t/ano. Entretanto, a grande guinada da produção interna de celulose ocorreu na virada para os anos de 1980, quan-do entrou em operação o primeiro projeto industrial da Aracruz Celulose no estado do Espírito Santo, elevando a produção brasileira para mais de três milhões de t/ano e abrindo uma sequência de grandes investimentos nes-se novo mercado. Em meados dos anos de 1990, novos in-vestimentos dobraram novamente a produção de celulo-se no Brasil. Em 2007, cerca de 12 milhões de t/ano (Bra-celpa, 2008) foram produzidas no País.

A partir da primeira grande fábrica instalada no muni-cípio de Aracruz, no norte do Espírito Santo, os novos in-vestimentos industriais e a expansão das plantações de eucalipto (e também de pinus) alteraram a distribuição da produção setorial em todo o País. Atualmente, as plan-tações de árvores exóticas em regime de monocultura ocupam grandes extensões de terras nas regiões Sul, Su-deste e Centro-Oste, com exceção dos estados do Rio de Janeiro e Tocantins, onde os projetos ainda estão em fase de estudos e implantação. Destacam-se as plantações de eucalipto localizadas em Minas Gerais, no sul da Bahia,

norte do Espírito Santo e no Maranhão. E é importante observar que, mais recentemente, expandiram-se as ocu-pações de territórios na Amazônia, em especial no Pará e no Amapá.

Além da produção de celulose, as plantações de árvores exóticas em regime de monocultura destinam-se a vários outros fins no Brasil.

A expectativa é de que esse processo de diversificação no uso da madeira expanda-se ainda mais, elevando a de-manda por essa fonte de fibras celulósicas. Em particular, atualmente, há uma pressão em relação aos novos usos para o eucalipto no sentido de aumentar a oferta diferen-ciada com a evolução das pesquisas e com as primeiras experiências de produção de árvores transgênicas e a hi-drólise de celulose voltada para a fabricação de etanol.

Este é o contexto geral em que se produz esta publi-cação. Contudo, como anunciado no início desta introdu-ção, este livro se propõe a apresentar os impactos eco-nômicos, sociais, culturais e ambientais dos investimen-tos desse amplo mercado numa região específica do Bra-sil: o Espírito Santo. Nessa perspectiva, dividiu-se o livro em quatro partes.

À primeira parte, ficaram reservados os textos que tra-tam das comunidades tradicionais, as primeiras a sofrer os impactos do projeto da Aracruz Celulose e também as que iniciaram as lutas de resistência, que continuam até os dias de hoje. Portanto, em seu princípio, o livro explici-ta os impactos da chegada do Grupo Aracruz, em 1967, ao município de Aracruz, especialmente aqueles que envol-vem a expulsão das comunidades indígenas Tupiniquim e Guarani de suas terras, a intensificação da derrubada da Mata Atlântica e a sua substituição pela monocultu-ra do eucalipto. Neste município, foi inaugurada, em 1978, a primeira das três fábricas de celulose implantadas pela Aracruz, sendo que ela se localiza exatamente no mesmo lugar onde viviam os moradores da Aldeia Tupiniquim de Macacos. Também nesta época aconteceram as primeiras manifestações da luta dos Tupiniquim e Guarani pela re-cuperação de suas terras. Este movimento alcançou gran-de êxito em 2007, com a recuperação de mais de 18 mil hectares do território tradicional.

Ainda na primeira parte, o livro apresenta a expansão das plantações de eucalipto do Grupo Aracruz para o ex-tremo norte do estado nos anos de 1970. Os municípios de São Mateus e Conceição da Barra foram os principais receptores desses pesados investimentos na monocultu-ra de árvores exóticas e, também, os que experimentam, até hoje, os maiores embates do grande capital com as co-munidades tradicionais, pois, tal investida significou tam-bém a invasão do território das comunidades quilombo-las da região do Sapê do Norte. Num processo semelhan-te ao que ocorreu nas terras indígenas, as comunidades perderam suas terras e riquezas naturais e, só mais re-centemente, a partir de maiores garantias legais, os qui-

Page 12: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

11

lombolas puderam intensificar a luta pela recuperação do seu território.

Nas lutas pela recuperação de suas terras, das flores-tas, dos rios e da biodiversidade, as mulheres dessas co-munidades sempre tiveram destaque. Vale ressaltar que, apesar de sofrerem os maiores impactos, as mulheres têm uma atuação cada vez mais crescente. Isso também se ex-plicita nas ações das mulheres da Via Campesina na luta contra a expansão dessa monocultura no Espírito Santo e em todo o Brasil. Nessa primeira parte do livro procurou-se demonstrar que, com a ocupação dos territórios indí-genas e quilombolas, a Aracruz Celulose construiu a base para a apropriação dos grandes territórios de suas ope-

rações no Brasil. Ou seja, a partir da invasão de cerca de 130 mil hectares de terras anteriormente ocupadas pelas comunidades tradicionais e pela Mata Atlântica, concen-tradas em apenas três municípios capixabas, foi possível iniciar a rede devastadora que representa seus empreen-dimentos no País.

A segunda parte apresenta os impactos específicos do complexo agroindustrial da Aracruz Celulose sobre as águas dos rios e córregos de importantes bacias hídricas no território capixaba. Os textos que abordam esta pre-ocupação demonstram o severo significado da degrada-ção e, até mesmo, do esgotamento de certos mananciais para as comunidades tradicionais ribeirinhas e demais

Fonte: Melo, 2008, p. 229

Distribuição das plantas agroindustriais de madeira e celulose no Brasil

Page 13: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

12

famílias camponesas, as quais foram cerceadas do aces-so a fontes de produção de alimentos devido ao consumo exorbitante de água pelas plantações de eucaliptos e pela produção industrial de celulose em larga escala.

Na sequência, são explicitadas as relações entre a pro-dução altamente mecanizada de eucalipto e celulose, as condições de trabalho e a oferta de emprego nas áreas de abrangência das atividades do Grupo Aracruz no Espíri-to Santo. De início, estes impactos atingiram, em especial, as comunidades tradicionais. Mas, com o aumento da pro-dução em terras de camponeses e com a introdução do programa de Fomento Florestal, terceirizando a produ-ção de madeira para camponeses e fazendeiros, esses im-pactos começaram a se espalhar por várias áreas no esta-do, assim como por outras regiões do País.

O processo de expansão da Aracruz resultou especial-mente da aquisição, em 2000, de 50% das ações da Veracel Celulose na Bahia e, depois, em 2003, da fábrica da Rio-cell no Rio Grande do Sul. Em 2009, o Grupo Votorantim comprou as ações do Banco Safra e do Grupo Lorentzen e tornou-se o principal acionista e dono da Aracruz – a empresa estava praticamente falida por ter perdido cer-ca de US$ 2,13 bilhões devido à especulação financeira no mercado internacional de derivativos (títulos podres). Com participação de 12,5%, o Banco Nacional de Desen-volvimento Econômico e Social (BNDES), generosamen-te financiou R$ 2,4 bilhões para a operação de fusão e tor-nou-se o segundo maior acionista da Aracruz que, a par-tir da compra pela Votorantim, adotou o novo nome de Fibria. Portanto, de um mega-presente do BNDES, pago com recursos públicos que deveriam beneficiar a clas-se trabalhadora, atualmente, esta mega-empresa é a lí-der mundial no mercado de celulose, detém mais de um milhão de hectares de terras em seis estados brasileiros (Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e São Paulo) e se constitui em uma das maiores corporações do agronegócio e uma das gran-des beneficiadas pelos subsídios do governo brasileiro.

A terceira parte desta publicação trata das relações entre a empresa Aracruz Celulose e as diversas instân-cias do poder na sociedade brasileira. O estudo da rápi-da expansão desse conglomerado revela o quão impor-tante foi a participação do Estado brasileiro na garantia de que esse crescimento pudesse ocorrer com o máximo de lucratividade possível, inclusive financiando e subsi-diando a Aracruz, principalmente através do BNDES. É certo que essa relação de poder implica em uma rede de reciprocidades envolvendo uma gama de agentes públi-cos e privados com interesses diretos em jogo.

Uma das bases dessa relação de poder tem sido o finan-ciamento de campanhas eleitorais de candidatos aos po-deres executivo e legislativo - desde a presidência da Re-pública, passando por governadores, deputados federais e estaduais, até prefeitos e vereadores. Essa prática expli-

ca a falta de compromisso do Estado em apurar as ilegali-dades e irregularidades da Aracruz Celulose.

Também é de suma importância para os interesses do grande capital que tudo isso fique invisível para a socieda-de e que apenas uma boa imagem empresarial seja divulga-da. Isso se concretiza devido à identidade ideológica e, tam-bém, aos interesses financeiros que aproximam as princi-pais e mais influentes empresas de comunicação social da Aracruz. Daí, a proposta de apresentar nessa terceira parte do livro o poder que essa empresa exerce na grande mídia, em especial na Rede Gazeta de Comunicações, afiliada da Rede Globo, líder de audiência no Espírito Santo.

Apesar de todas as tentativas de greenwashing, apesar de se mostrar como farol da modernidade e do desenvol-vimento capixaba, a Aracruz Celulose se tornou, para os movimentos camponeses capixabas, o maior símbolo do agronegócio no estado e, portanto, um alvo importante na luta pela reforma agrária e pela justiça social, ambiental e econômica no campo.

Na última parte, dois curtos textos pretendem alertar para a complexidade dos futuros desafios postos à socieda-de civil em seu enfrentamento a uma gigante como a Ara-cruz. O primeiro texto traz elementos sobre a atuação das empresas poluidoras no sentido de transformar o proble-ma das mudanças climáticas em mais uma oportunida-de de lucro. Em seguida, um apanhado de dados explicita quem são os maiores interessados na manutenção do atual sistema mundial de produção e consumo de papel, quão in-justa é a distribuição desse produto e a urgente necessida-de de rompermos com a cultura do consumo excessivo.

Esta publicação termina com uma projeção da história que, mesmo sendo ficção, demonstra bem a realidade in-sana produzida pela lógica que perpassa o projeto da em-presa Aracruz Celulose no Espírito Santo. O maior grupo econômico no seu setor em todo o mundo – com grande capacidade de acumulação e influência política, que pas-sou e passa por várias transmutações patrimoniais, envol-vendo um profundo processo de centralização de capitais, e que conta com o apoio fundamental do Estado – e sua incessante luta contra as camadas mais desprotegidas do povo brasileiro. Soa surreal, mas, infelizmente, não é.

RefeRências BiBliogRáficas Bracelpa. Celulose: evolução histórica da produção, 2008. Disponível em http://www.bracelpa.org.br/bra/estatisticas/pdf/anual/celulose_00.pdf

Gomes, Helder. Potencial e limites às políticas regionais de desenvolvimento no estado do Espírito Santo: o apego às formas tradicionais de intermediação de interesses. Vitória (ES): UFES (Dissertação – Mestrado), 1998.

Melo, Rafael Rodolfo de, et. al. Evolução do setor florestal brasileiro. In: 4º Simpósio Latino-Americano sobre Manejo Florestal (Anais). Santa Maria (RS): UFSM/CCR, 26-28/nov./2008.

Teixeira, Aloísio. O movimento da industrialização nas economias capitalistas centrais no pós-guerra. Rio de Janeiro (RJ): UFRJ/IEI, 1993.

Page 14: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

13

Alguns aspectos precisam ser esclarecidos a res-peito da publicação de Aracruz Credo. O primeiro deles é o fato de que, apesar de em 2009 - a partir

da compra da Aracruz Celulose pelo Grupo Votorantim - esta empresa ter adotado o nome de Fibria, os textos e o título deste livro continuam a se referir à empresa como Aracruz.

Esta opção deve-se ao fato de que, primeiro, por mais que invista recursos substanciais para ser vista como uma empresa diferente e utilize um discurso politica-mente mais sofisticado no trato com as comunidades locais, tentando construir a imagem de uma empresa social e ambientalmente responsável, a sua atuação e a lógica de sua prática não mudaram em absolutamente nada. Ao contrário, a “Fibria”, com mais de um milhão de hectares plantados com eucalipto no País, tem atuado de modo ainda mais agressivo no que concerne à concen-tração de terras.

Por outro lado, nenhum esboço de mudança tem sido feito no sentido de devolver as terras quilombolas, devi-damente identificadas e reconhecidas pelo Instituto Na-cional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e que foram indevidamente apropriadas destas comunidades, ou para a recuperação dos milhares de hectares de Mata Atlântica que foram destruídos no Espírito Santo. Tam-bém não se verifica qualquer disposição de produzir celulose de uma forma radicalmente diferente: em pe-quena escala, a partir de fontes de fibra diversificadas (evitando, desse modo, as grandes monoculturas), sem a massiva utilização de agrotóxicos, sem usurpar as águas dos rios e córregos da região, sem impactar a agricultura familiar e camponesa e sem explorar os trabalhadores, por exemplo.

Outro motivo é a constatação de que a história desses 40 anos de severos e irreversíveis impactos que a Ara-cruz construiu no Espírito Santo não pode cair no es-quecimento. Trata-se de um passado e de um presente manchados pelo profundo desrespeito à vida, que devem necessariamente ser informados às futuras gerações para que elas compreendam o processo histórico e a realidade

na qual estarão inseridas e que, seguramente, será impac-tada pelas ações e ilegalidades que esta empresa cometeu e ainda comete. Manter vivo este histórico, não permitin-do que uma mudança de nome o apague da memória, é uma forma de tentar evitar que a história se repita.

Também é importante ressaltar que, ao publicarem este livro, tanto a Rede Alerta quanto a Rede Brasil têm como proposta dar voz às pessoas e comunidades que nunca foram consultadas sobre as extensas plantações de eucalipto, sobre as drásticas mudanças nos seus mo-dos de vida e nem sobre os impactos no meio em que viviam. Mesmo sob as mais adversas condições, essas pessoas ainda hoje lutam para ter seus direitos funda-mentais respeitados. Portanto, vários artigos de Aracruz Credo privilegiam justamente os depoimentos de indí-genas, quilombolas, mulheres e trabalhadores. Perso-nagens de uma vida impactada por inúmeras violações, seus testemunhos nos aproximam de um modo bastante singular dos desafios que a implantação da Aracruz im-pôs diretamente às suas vidas.

Por último, vale reforçar que este livro reúne textos es-critos em diferentes momentos dos últimos dez anos em que a Rede Alerta atua contra o deserto verde na região do Espírito Santo. Nesse sentido, apesar de os artigos te-rem sido, em linhas gerais, atualizados, alguns dados mais específicos podem estar defasados, ainda mais conside-rando a lógica que move mega-empresas como a Aracruz, em que a busca pelo “crescimento” e pelo aumento da produção e lucratividade são movidas por um ritmo bas-tante acelerado e insano.

Oxalá Aracruz Credo – 40 anos de violações e resistên-cia no ES possa ser um instrumento para a compreensão da atuação das mega-empresas e do funcionamento do sistema capitalista em que elas estão inseridas; e, por ou-tro lado, da necessidade de, tendo em vista essa comple-xa realidade, nos organizarmos para a construção de um campo contra hegemônico e, finalmente, uma sociedade justa e solidária.

Boa leitura!

NOTA DA EDITORA

Page 15: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

14

Page 16: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

15

PARTE 1 • A questão indígena • A questão quilombola• Impactos socioambientais no Sapê do Norte

• Impactos sobre as mulheres

Page 17: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

16

Uma revelação, recebida através de um sonho, pela líder religiosa Guarani, Tatantim Vareté, foi

determinante para encorajar a luta indígena

Page 18: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

17

A intenção deste artigo é descrever e comentar o pro-cesso de resistência e luta dos Tupiniquim e Guarani, lo-calizados no município de Aracruz, estado do Espírito Santo (ES), pela reconquista de suas terras, desde 1967.

Os Tupiniquim, originários do Espírito Santo, perde-ram progressivamente parcelas significativas do seu ter-ritório original desde o início da colonização portuguesa em 1500. Mas foi a partir da década de 1960, com a im-plantação da Aracruz Celulose, que este povo sofreu um golpe tão forte e certeiro que quase comprometeu sua continuidade histórica como povo indígena.

A empresa invadiu o que ainda restava de terra in-dígena e deu início a extensas plantações de eucalip-to. Posteriormente, três unidades de produção de celu-lose foram implantadas. Após a retirada dos indígenas, a maioria das aldeias foi destruída, a mata nativa - que co-bria uma grande área - foi derrubada e rios e córregos foram sugados pela monocultura do eucalipto, compro-metendo as condições de sobrevivência física e cultural. Os córregos que não secaram foram reduzidos ao nível mais baixo e/ou envenenados pelos agrotóxicos utiliza-dos pela empresa.

Na década de 1960, pouco antes do início da atuação da Aracruz na região, um grupo de Guarani Nhãdéwa1 che-gou ao Espírito Santo, vindo do sul do Brasil, numa ca-minhada que teve início nos anos de 1940. O movimento migratório é uma característica da cultura Guarani, re-monta ao período pré-colombiano e realiza-se no que os Guarani consideram como o grande território Guarani, o Tekoa Guassu. A motivação para o Oguata (caminhar) é religiosa mas, muitas vezes, é provocada ou impulsio-nada por disputas de terras com não-índios. Por isso, os Guarani caminham em busca da “terra sem males” (Yvy Marãñe Y), a qual possui uma dimensão mística, alcan-çada após a morte, e outra terrena, o lugar, uma aldeia,

1Tupiniquim e Guarani: símbolos da resistênciaFábio Martins Villas

um Tekoa, que garanta as condições ideais (mata, água, caça, pesca, etc.) para a manifestação do “modo de ser Guarani” (Teko).

Estas condições foram, em grande medida, encontra-das pelos Guarani no território Tupiniquim, no Espírito Santo, e foram por eles acolhidos como parentes.

Nos 40 anos de disputa com a Aracruz Celulose, os Tupiniquim e Guarani enfrentaram vários desafios: a bu-rocracia estatal, várias operações policiais, decretos e de-cisões judiciais contra eles, criminalização de lideranças, imposição de acordos ilegais, projetos econômicos inte-gracionistas ao mercado, uma campanha difamatória pa-trocinada pela empresa, pressões e chantagens de re-presentantes dos governos federal, estadual e municipal, abaixo-assinados e passeatas da população local mani-pulada pela empresa e o boicote de uma mídia compro-metida com os interesses do agronegócio e, em particular, com a Aracruz Celulose. Porém, nada disso foi suficien-te para arrefecer a luta e a resistência dos Tupiniquim e Guarani, embora tenha contribuído para retardar o pro-cesso de reconquista do território, prolongando e agra-vando os impactos da monocultura do eucalipto sobre a terra e o meio ambiente e sobre as condições de sobrevi-vência das famílias indígenas.

Para superar esses desafios e conseguir recuperar uma parte significativa de suas terras, os índios realizaram vá-rias ações, como ocupações de terra (1979 e 2000), auto-de-marcações (1980, 1998 e 2005), ocupações das fábricas da empresa (2005) e do Portocel, por onde é exportada a ce-lulose produzida pela Aracruz, (2006), derrubada e quei-ma de eucaliptos (2006) e reconstrução de aldeias (2005, 2006 e 2007).

Uma das características marcantes desta luta foi a ca-pacidade dos índios em agregar aliados e parceiros do Espírito Santo, do Brasil e do exterior - condição funda-mental para o enfrentamento de uma empresa do por-te da Aracruz Celulose. O apoio e a solidariedade da igre-ja católica, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no período de 1979 a 1981; do Fórum Campo e Cidade2, da igreja católica e do Partido dos Trabalhadores (PT), no período de 1993 a 1998; e da Rede Alerta contra o Deserto Verde, no último período de luta entre 2005 e 2007, foi fundamental para fortalecer a capacidade de resistência e luta dos indígenas contra a Aracruz. Ao mesmo tempo, as campanhas contra a empresa e o governo deram uma ampla repercussão à luta indígena, despertando e atrain-do a solidariedade nacional e internacional em favor dos Tupiniquim e Guarani.

O desfecho da disputa veio com a edição das Portarias de Delimitação (números 1.463 e 1.464), em 27 de agosto de 2007, do Ministério da Justiça (MJ), declarando as ter-ras (18.027 hectares)3 como “tradicionalmente ocupadas pelos povos Tupiniquim e Guarani” e determinando a sua

Page 19: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

18

demarcação. Dito de outra maneira, a decisão do governo brasileiro, embora com um atraso de quarenta anos, re-conheceu que as terras em disputa sempre pertenceram aos índios e que a Aracruz Celulose as ocupou ilegalmen-te durante esse longo período.

Posteriormente, em 03 de dezembro de 2007, foi assi-nado em Brasília, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre os índios e a Aracruz Celulose, tendo como intervenientes a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF). Isto se fez necessá-rio para possibilitar a continuidade do processo de regu-larização administrativa das terras. Sem o TAC, haveria a possibilidade (ameaça) da Aracruz contestar e suspender judicialmente os efeitos das portarias do MJ por tempo indeterminado, podendo inclusive colocar em risco a re-tomada das terras pelos Tupiniquim e Guarani.

A demarcação física das terras foi concluída no mês de março de 2008 e a homologação pelo presidente da República, prevista para 2009, somente foi assinada em novembro de 2010.

Entre abril e dezembro de 2009 foi realizado um estudo etno-ambiental com o objetivo de identificar as melhores alternativas de uso da terra, visando projetos e progra-mas que promovam a auto-sustentação das comunidades indígenas e a recuperação ambiental do território con-quistado. Este estudo também realizou, com a participa-ção das comunidades indígenas, um plano de ocupação e uso do território indígena pelos Tupiniquim e Guarani.

É importante assinalar que essa vitória contra a Aracruz Celulose significa, em grande medida, uma vitória contra o agronegócio e o modelo de desenvolvimento que essa mega-empresa representa e tem sido adotado no Brasil – e, em particular, no Espírito Santo - pelas elites, com total apoio do governo. A resistência indígena sempre esteve inserida na luta contra o agronegócio e por uma mudança estrutural no modelo de produção e consumo.

A repercussão da luta indígena e da reconquista de suas terras circulou pelo País e pelo mundo e rendeu aos ín-dios e seus aliados manifestações de apoio e solidariedade e homenagens como o prêmio do Movimento Nacional de Direitos Humanos e o prêmio “Luta pela Terra”, do MST, am-bos em 2008.

De 1500 a 1967: período de resistência e de perdas sucessivas

Calcula-se que no Brasil, antes da chegada dos coloni-zadores portugueses, existiam cerca de mil povos indíge-nas. Hoje, restam apenas cerca de 240. No entanto, povos indígenas tidos como extintos durante o processo de colo-nização estão ‘ressurgindo’ em várias partes do País, no-tadamente nas regiões leste e nordeste, e exigindo o re-conhecimento oficial de sua indianidade e, consequente-mente, de seus direitos (em particular, o da demarcação de suas terras).

A simples sobrevivência dos Tupiniquim ao processo de extermínio desencadeado a partir de 1500 pode ser con-siderada uma vitória desse povo. Porém, esta vitória foi acompanhada por sucessivas perdas: do território indí-gena e de seus recursos naturais; da população indígena, dizimada pelas doenças, pelas guerras e pela escraviza-ção; de elementos culturais e religiosos, inclusive do idio-ma Tupi, em função dos programas de integração (através dos aldeamentos e da catequese religiosa) e da repressão; e de impactos profundos na identidade indígena. Neste par-ticular, os Tupiniquim, um povo indígena autóctone, pos-suidor de uma cultura construída e reconstruída milenar-mente, foi taxado durante o período da colonização de sel-vagem e bugre. Posteriormente, foram denominados cabo-clos, remanescentes indígenas e, mais recentemente (1976), considerados pelo governo militar como índios aculturados e aptos a serem emancipados. Ao longo de todo esse pro-cesso foram, como os demais povos indígenas, sistemati-camente pressionados a se integrar ao sistema econômi-co dominante, que tinha como objetivo a incorporação da mão-de-obra indígena, de suas terras e dos recursos na-turais ao mercado. As consequências foram, e continuam sendo, a expropriação dos seus bens materiais e imateriais e o seu empobrecimento.

Os povos pertencentes ao tronco linguístico Tupi-Guarani sempre ocuparam, em sua grande maioria, o li-toral brasileiro. Não foi uma ocupação gratuita e espon-tânea. Ao contrário, foi uma conquista sobre outros po-vos, ou seja, um território conquistado e construído ao longo de séculos de ocupação.

Em 1500, o território Tupiniquim compreendia uma área situada entre o sul da Bahia e o Espírito Santo. Sua população foi estimada por John Hemming4 em mais de 55 mil habitantes. Em 1610, após sucessivos conflitos com os portugueses, este território foi drasticamente reduzi-do a uma sesmaria de terra no Espírito Santo, corres-

A luta indígena foi repercutida no Brasil e pelo mundo

Page 20: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

19

pondente a seis léguas em quadro [a légua de sesmaria tem 6.600 metros]. Em 1760, foram demarcadas apenas as terras habitadas dessa sesmaria, tendo como exten-são 61 km de costa e 39 km de fundo (237.900 ha), o que significou, novamente, redução das terras indígenas.

Sem a proteção dos jesuítas, expulsos do Brasil em 1760, e do governo português, as terras foram rapidamen-te ocupadas por fazendas, povoados e vilas. Pressionados, no início do século XX, os Tupiniquim se refugiaram no norte do território demarcado, uma região despovoada e coberta por densa mata nativa, com cerca de 150 mil ha5.

Na década de 1940 ocorreram mudanças mais intensas na região habitada pelos índios. Cerca de 10 mil ha foram ocupados pela Companhia Ferro e Aço (Cofavi) com au-torização do Estado, com o objetivo de explorar a floresta para a produção de carvão vegetal.

Até a década de 1960 ocorreram novas reduções. Antes da chegada da Aracruz Celulose, os índios ocupavam 55 mil ha6 e habitavam preferencialmente a região que cir-cunda o atual município de Aracruz, onde, na época, as matas e florestas naturais permitia que vivessem da pes-ca e da coleta de mariscos, da caça, da coleta de frutos e da agricultura de subsistência, caracterizada pela itine-rância e a dispersão espacial das áreas de cultivo.

Portanto, de um extenso território em 1500, restava aos Tupiniquim (e aos Guarani) apenas 55 mil hectares no final da década de 1960. Mesmo assim, esse território abrigava e proporcionava as condições de sobrevivência a uma popu-lação de dois mil índios7, distribuída em quarenta aldeias, em sua maioria construídas no interior das florestas nati-vas, onde desenvolveram “sistemas adaptativos e um mode-lo de sustentação que permitia, ao mesmo tempo, compati-bilizar as necessidades do grupo, a manutenção dos recur-sos e a preservação da natureza”.8

a invasão das terras pela aracruz celuloseA expropriação das terras indígenas pela Aracruz

Celulose, a partir de 1967, foi rápida e devastadora. Primeiro, ela adquiriu os 10 mil ha da Cofavi, que haviam sido entregues pelo governo na década de 1940. Em se-guida, uma parte das terras dos Tupiniquim foi adquirida através de prepostos, como o do ex-prefeito de Aracruz, Primo Bitti (já falecido) e outros, que “compravam” a pos-se dos índios, ou seja, a casa de estuque e palha e as ben-feitorias (roças) por preços irrisórios, muitas vezes em troca de lotes na cidade de Aracruz. Para convencê-los diziam, segundo os índios mais idosos, que a região se-ria ocupada por uma empresa poderosa para o plantio de eucalipto e que eles ficariam ilhados e suas terras se tornariam improdutivas. Após a negociação, mediam as terras, às vezes aldeias inteiras, registravam nos cartórios em seus nomes ou de terceiros e as vendiam de imediato à Aracruz Celulose.

Por fim, na parte restante das terras, daqueles que se

recusaram a vender suas posses, a empresa utilizou ou-tra tática. Em seu quadro de funcionários havia mili-tares reformados, como o major Orlando, responsáveis pela segurança da empresa. A eles competia “convencer” os índios que resistiam. Ameaças e intimidações foram constantes, sempre conduzidas, ainda segundo os índios, por “um militar fardado e cheio de medalhas”. Aqueles que, mesmo assim, continuaram a resistir foram expul-sos da terra e suas casas e aldeias destruídas pelos tra-tores da empresa.

Ao mesmo tempo, tratores de esteira unidos por “cor-rentões” derrubaram a mata nativa que, na sequência, era queimada. Segundo os índios e moradores da região, as fogueiras ardiam durante semanas. Junto à madeira, mor-riam carbonizados animais de vários portes e espécimes.

Em pouco tempo, 37 aldeias Tupiniquim foram destruí-das. Restaram apenas Caieiras Velhas e Pau Brasil, ambas com apenas 25 ha cada. A aldeia de Comboios foi preser-vada da destruição e do plantio de eucalipto por ser uma área de restinga. Mesmo assim, foi invadida por possei-ros, muitos deles oriundos de outras regiões, atraídos pela instalação da Aracruz Celulose. Cerca de 50%9 da popula-ção indígena Tupiniquim migrou para a periferia das cida-des vizinhas, inclusive para a capital Vitória. A outra me-tade se refugiou nas aldeias sobreviventes. Com a expro-priação das terras, parte dessa população passou a sobre-viver do trabalho temporário no plantio do eucalipto e na construção da primeira fábrica, inaugurada em 1978. As al-deias serviam apenas como dormitórios para essa mão de obra. Uma outra parte dos índios foi buscar o sustento das famílias nos manguezais dos rios Piraquê-Açu e Piraquê-Mirim, onde passaram a realizar a pesca e a extração de diversos tipos de mariscos de forma intensiva, com sérias implicações para esse importante recurso natural.

A perda das matas nativas e a redução significativa das terras representaram uma desestruturação do modo de vida desse povo, ao inviabilizar suas principais fontes de subsistência. As práticas da agricultura, da caça e da co-leta foram drasticamente comprometidas. Córregos e ria-chos desapareceram ou diminuíram seus níveis. Além disso, “a extinção das aldeias forçou a um novo reorde-namento geográfico, provocando crise de sociabilidade e dissolução dos laços de reciprocidade.”10

Enfim, a desestruturação das formas sociais, culturais e econômicas quase levou os Tupiniquim ao extermínio. Os Guarani também sofreram os impactos, embora não tives-sem se subempregado na Aracruz Celulose, e passaram a viver exclusivamente da venda do artesanato. Em 1972, em resposta às denúncias dos índios, a Funai transferiu os Guarani e alguns Tupiniquim para a Fazenda Guarani em Minas Gerais, onde mantinha um Reformatório Agrícola para índios de várias partes do País que cometiam deli-tos em suas áreas de origem, muitas vezes decorrentes da luta contra invasores de suas terras.

Page 21: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

20

A resistência das aldeias Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios, garantindo abrigo para as famílias das al-deias destruídas pela Aracruz e dos índios que retorna-ram da Fazenda Guarani em 1976, foi determinante para impedir a extinção dos Tupiniquim e possibilitar a reto-mada do processo de recuperação das terras a partir de 1979. Apesar de reduzidos e das dificuldades em propor-cionar condições mínimas de subsistência, esses espaços preservaram o vínculo dos índios com a terra, fundamen-tal para a manutenção da identidade étnica, da comuni-dade enquanto suporte da coesão sociocultural, das fes-tas religiosas e da esperança na construção das possibili-dades de futuro.

as lutas pela reconquista do território indígenaAs denúncias na imprensa da transferência dos Guarani

para Minas Gerais, em 1972, tiveram repercussão nacio-nal e revelaram ao País a existência dos Tupiniquim no estado do Espírito Santo.

Em 1975, durante a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), antropólogos pre-sentes divulgaram denúncias do indigenista da Funai, João Geraldo Itatuitim Ruas, sobre a situação vivida por eles. No mesmo ano, o presidente do órgão indigenista, general Ismarth de Araújo, visitou a aldeia de Caieiras Velhas. Porém, nenhuma providência foi tomada em fa-vor dos Tupiniquim e Guarani.

Para o governo militar e principal acionista da empre-sa (o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES - detinha 51% das ações), o projeto Aracruz Celulose já estava consolidado. Em outubro de 1978, a em-presa inaugurou a sua primeira fábrica, com a presença do general-presidente Ernesto Geisel.

Neste período havia uma grande mobilização da so-ciedade brasileira, com repercussão internacional, con-tra um projeto do governo federal que tramitava no Congresso Nacional e que permitiria que índios e até comunidades inteiras fossem emancipados, ou seja, deixassem de ser tutelados pelo Estado, perdendo as-sim a proteção do governo, principalmente no tocante à demarcação das terras. Segundo declarações de Rangel Reis, ministro do Interior, ao qual a Funai estava vin-culada, a aprovação do projeto permitiria a integração de toda a população indígena do País (na época 220 mil índios) à sociedade nacional num prazo de 30 anos. O caráter etnocida do mesmo era evidente. O extermí-nio dos povos indígenas não se daria mais pelas armas e doenças, como no passado, mas pelo bico da caneta. Não é de se estranhar que os Tupiniquim fossem con-siderados pelos militares como os mais aptos no País a serem emancipados.

Neste contexto, foi realizado em 1978, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), um seminário sobre a questão indígena com a presença de antropólogos de

renome nacional. Além do projeto de emancipação, foi denunciada a situação em que viviam os Tupiniquim e Guarani e exigida a devolução de suas terras ocupadas pela Aracruz Celulose. Um representante do Ministério do Interior estava presente no evento e diante das pres-sões anunciou a demarcação das terras que haviam res-tado aos índios, ou seja, 25 ha em Caieiras Velhas e 25 ha em Pau Brasil. A proposta, rechaçada pelos presentes no seminário, confirmou o posicionamento do governo em favor da empresa e o descaso para com a situação dramá-tica vivida pelos Tupiniquim e Guarani.

A repercussão desse anúncio nas aldeias provocou in-dignação e revolta. Com a convicção de que não viriam soluções de Brasília, os índios iniciaram os preparativos de ações de retomada da terra, mesmo sabendo das pos-síveis reações contrárias, inclusive da violência policial.

No período compreendido entre 1979 e 2007, ano em que acontece a demarcação das terras reivindicadas pe-los índios (18.027 ha), ocorreram três períodos de maior enfrentamento com a Aracruz Celulose e o governo fede-ral: de 1979 a 1981; de 1993 a 1998; e de 2005 a 2007, que serão descritos a seguir.

1979 a 198111

Em 1978, a população Tupiniquim aldeada em Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios somava apenas 611 índios. Os Guarani, cerca de 70 pessoas, moravam em Caieiras Velhas em apenas três casas, uma delas alugada.

No mês de outubro desse ano chegou ao Espírito Santo uma família Guarani Kayová, composta de sete pessoas, vinda do Mato Grosso do Sul em busca da “terra sem males”. Já haviam percorrido vários estados (Mato Grosso, Pará, Minas Gerais e sul da Bahia) quando souberam da existência dos Guarani no Espírito Santo e decidiram se juntar a eles. A vinda desta família vai desencadear a luta dos Tupiniquim e Guarani pela ter-ra. Inicialmente, foram morar em Caieiras Velhas, mas no mês seguinte decidiram ocupar uma área, com mata nativa, localizada na margem esquerda do Rio Piraquê-Açu e próxima à sua foz. Esta área estava sob o domí-nio da Aracruz Celulose e da Cia. Vale do Rio Doce e media cerca de 300 ha. Os índios de Caieiras Velhas, sobretudo os Guarani, usavam esta mata às escondi-das para a caça e a extração de material para a confec-ção de artesanato e remédios. Os Guarani Kayová fo-ram mais além: construíram uma casa e começaram a preparar suas roças. Em janeiro de 1979, uma família Guarani Nhãdéwa se juntou a eles.

Ainda nesse mês foram descobertos pelos seguran-ças da Aracruz e pressionados a retornar para Caieiras Velhas. Os índios resistiram. A empresa, evitando o con-fronto, construiu duas casas de madeira em Caieiras Velhas, plantou feijão em volta das casas e aumentou a pressão. Nos meses seguintes a situação foi se tornando

Page 22: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

21

insustentável. Numa das idas dos seguranças ao local, o coronel Ovídio (chefe de segurança da empresa) endure-ceu o discurso e ameaçou expulsá-los. Uma das mulheres Guarani ameaçou agredí-lo com uma lança e ele fugiu.

Os Guarani percebem que as duas famílias não conse-guirão resistir sozinhas por mais tempo, mas ainda não se sentem preparados para uma ocupação da terra. Neste momento acontece outro fato determinante no desenca-dear da luta indígena. Tatantim Vareté, líder religiosa dos Guarani, recebe uma “revelação” de Deus (Nãnde ru), atra-vés de um sonho, apontando aquela terra ainda preser-vada do plantio de eucalipto como o lugar onde o milho Guarani (avati) deveria ser plantado. Os Guarani, então, decidem ocupar a terra, onde depois constroem a aldeia Boa Esperança ou Tekoa Porã.12

Assim, no dia 08 de maio de 1979, os Guarani e um gru-po de quinze índios Tupiniquim fazem a primeira ocupa-ção de terra. A ação teve repercussão nacional. No iní-cio, a Aracruz pensou tratar-se de uma provocação dos seus opositores, devido ao fato de, naqueles dias, estar recebendo a visita de cem empresários de vários países que queriam conhecer melhor a empresa considerada, na época, um modelo de eficiência empresarial.

Depois de um mês, a Aracruz decidiu abrir mão dos 300 ha na esperança de pôr fim ao conflito. No entanto, os ín-dios, com a adesão das três aldeias Tupiniquim, manti-veram a disposição de lutar pela devolução do restante das terras. Em julho de 1979, uma equipe da Funai, sem realizar um estudo aprofundado para identificar as ter-ras indígenas no Espírito Santo, propôs a demarcação de três áreas descontínuas, a saber: Caieiras Velhas (2.700 ha), Pau Brasil (1.500 ha) e Comboios (2.300 ha), totali-zando 6.500 ha.

Após a publicação da Portaria da Funai no Diário Oficial da União (DOU) em 17 de dezembro de 1979, segue-se um longo período de espera pela demarcação das terras e a cada dia crescia a certeza de um recuo do governo. Ao mesmo tempo, os meios de comunicação capixaba ten-tam desviar a atenção da população produzindo longas e frequentes matérias sobre os conflitos dos índios com os posseiros que tinham casas em Caieiras Velhas (cerca de 55 famílias). As referências sobre a Aracruz Celulose de-saparecem do noticiário local, apesar dos jornais de cir-culação nacional manterem o foco na disputa da terra en-tre os índios e a empresa.

No mês de maio de 1980, o deputado Aldo Arantes, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pelo estado de Goiás, divulgou na imprensa um documento com o carimbo de “confidencial”, produzido pela Aracruz Celulose e a Vale, no qual estabelecem como estratégia conjunta para impedir a demarcação dos 6.500 ha, gestões junto ao governo fede-ral, utilizando inclusive a influência do ministro da Fazenda naquele ano, Ernane Galveas, membro do Conselho de Administração da Aracruz desde 1966.

Não havendo nenhuma resposta do governo e temendo a anulação da portaria, os índios decidem realizar a auto-demarcação das terras. Embora não tivesse efeito legal, a ação pretendia consolidar os limites definidos pela porta-ria e a tomada de posse da terra.

Assim, ainda em maio, os Tupiniquim e Guarani iniciam os trabalhos de demarcação da área de Caieiras Velhas. A presença de um enorme contingente da Polícia Militar não intimida os índios. Homens, mulheres e até crianças participam dos trabalhos, abrindo picada entre os euca-liptais e fincando marcos de identificação da terra indí-gena, a partir das coordenadas geográficas definidas pela Portaria da Funai.

No mês seguinte, realizam a demarcação da área de Pau Brasil e antes de se deslocarem para Comboios são chamados pela Funai para reuniões de negociação com a Aracruz. Diante da intransigência da empresa, quan-to ao reconhecimento dos direitos indígenas à terra, os Guarani se afastam da negociação. Os Tupiniquim de Caieiras Velhas permanecem negociando (Pau Brasil e Comboios não participam desde o início). Em abril de 1981 assinam um acordo com a empresa, no qual concor-dam com a redução de 2.000 ha de terra em troca de re-cursos financeiros administrados pela Funai e aplicados na compra de máquinas e equipamentos e em projetos econômicos comunitários.

Após a assinatura do acordo, o presidente da Funai, co-ronel Nobre da Veiga, esteve em Caieiras Velhas. Em seu discurso para os índios, divulgado pela imprensa, afirmou que: “os Tupiniquim não são os habitantes originais da re-gião e por isso não podem reivindicar a posse da terra”; e ainda: “os índios não sofreram qualquer prejuízo, pois quem cedeu as terras que eles não têm o direito de ocu-par foi a Aracruz”; e “quem voltar a fazer agitação junto com o pessoal do Cimi vou colocar na cadeia”13. Disse ain-da que “além de doar terras, ela resolveu dar um auxílio aos índios para melhorar seu padrão de vida e mostrar sua liberalidade” 14.

Apesar da redução da terra e do estremecimento das re-lações dos Guarani com os Tupiniquim de Caieiras Velhas, o saldo desta primeira luta foi positivo. Conseguiram con-quistar 4.492 ha, assim distribuídos: Caieiras Velhas (1.519 ha), Pau Brasil (427 ha) e Comboios (2.546 ha).

É preciso ainda salientar a coragem dos índios para enfrentar uma empresa do porte da Aracruz Celulose, apoiada pelo governo federal, em plena ditadura militar e destacar a participação e a contribuição dos Guarani que, com sua sabedoria e seu modo particular de compreen-der o significado da terra para os povos indígenas, trouxe uma maior radicalidade para a luta, colocando em xeque o pensamento capitalista-mercantilista.

Por fim, deve-se registrar o papel desempenhado pela Arquidiocese de Vitória nessa disputa. O posicio-namento claro e contundente dos bispos15 em favor dos

Page 23: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

22

índios, as intervenções da Comissão de Justiça e Paz, principalmente nos momentos de conflito, as ações de apoio e solidariedade das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com manifestações públicas e com cam-panhas de arrecadação de alimentos, e o apoio incon-dicional da equipe do Cimi, fizeram desta instituição a principal aliada dos Tupiniquim e Guarani naque-le período.

1993-199816

A recuperação dos 4.492 ha de terras indígenas possibi-litou, dentre outras coisas, a retomada das roças familia-res, o retorno de dezenas de famílias desaldeadas e a re-construção da aldeia Tupiniquim Irajá.

Entretanto, as condições de sobrevivência continuavam ainda bastante comprometidas. A população indígena ha-via aumentado rapidamente. Dados da Funai17 aponta-vam uma população de 1.308 índios em 1993. Além disso, grande parte das terras não eram adequadas para a agri-cultura e/ou exigiam altos investimentos. Cerca de 95% da Terra Indígena (TI) Comboios é constituída por areia, o manguezal do Rio Piraquê-Açu representa parcelas sig-nificativas da TI Caieiras Velhas e cerca de 1.700 ha foram devolvidos aos índios com os tocos de eucalipto.

Em 1993, a Comissão de Caciques e Lideranças Tupiniquim e Guarani, criada em 1991 com o objetivo de encaminhar questões de interesse coletivo, como a re-cuperação das terras e a assistência nas áreas de saúde, educação e agricultura, reivindicou da Funai a realização de estudos de identificação das terras indígenas no mu-nicípio de Aracruz.

Estudos realizados entre os anos de 1994 e 1996 con-firmaram 18.071 ha como sendo terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e propuseram a sua imediata de-marcação como condição indispensável para garantir a sobrevivência física e cultural dos Tupiniquim e Guarani. Isto significava a ampliação das terras em mais 13.579 ha e a unificação das áreas de Caieiras Velhas e Pau Brasil.

A partir de 1996, quando já estava em andamento os procedimentos administrativos de demarcação das terras indígenas, a Aracruz Celulose passou a contribuir com o Nisi-ES18, principalmente com o sub-núcleo de agricultu-ra, financiando projetos agrícolas. A intenção da empre-sa era seduzir as comunidades indígenas com o objetivo de fazê-las desistir da luta pela terra e, ao mesmo tempo, demonstrar na prática a tese de que os índios poderiam conseguir a auto-sustentação econômica nas terras que já possuíam, bastando apenas injetar recursos nas aldeias.

Não obtendo êxito com esta estratégia e tendo suas contestações ao relatório do Grupo de Trabalho (GT) da Funai rejeitadas pelo órgão indigenista oficial, a empresa intensificou suas pressões sobre o ministro da Justiça, Íris Rezende. Em resposta, o ministro exigiu da Funai a com-plementação dos estudos.

No final de 1997, os Tupiniquim e Guarani realiza-ram uma Assembléia Geral para definir os rumos da luta. Diante de autoridades, como o vice-governador do Espírito Santo, do procurador geral da República no es-tado, de parlamentares e de representantes da Funai, estabeleceram um prazo para o governo demarcar as terras e prometeram realizá-la caso o mesmo não fos-se cumprido.

Em janeiro de 1998, pouco antes do prazo se encerrar, o presidente da Funai, Sulivan Silvestre, foi ao Espírito Santo e negociou com os índios um novo prazo e a reali-zação de mais um estudo complementar. O objetivo, como ficou demonstrado tempos depois, era retardar o proces-so de demarcação até que fosse encontrada uma solução que beneficiasse a Aracruz Celulose.

Assim, embora os estudos complementares confirmas-sem as conclusões do estudo do GT da Funai quanto aos direitos dos Tupiniquim e Guarani aos 13.579 ha, o gover-no brasileiro novamente submeteu-se aos interesses da Aracruz Celulose. No mês de março de 1998, o ministro da Justiça assinou as portarias 193, 194 e 195, determinando a demarcação de apenas 2.571 ha.

Revoltados, os índios promoveram a auto-demarca-ção dos 13.579 ha e quando estavam próximos da con-clusão dos trabalhos, o governo federal determinou a in-tervenção da Polícia Federal. As aldeias foram ocupadas por policiais federais fortemente armados. Integrantes do Fórum Campo e Cidade, que prestavam apoio aos traba-lhos de demarcação foram expulsos das aldeias. Alguns deles foram presos e processados.

Para solucionar o conflito, os caciques foram levados para Brasília e sob pressão assinaram com a Aracruz Celulose um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com a interveniência da Funai e da 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF). Este TAC, flagrante-mente inconstitucional, estabeleceu a concordância dos índios quanto aos limites da terra definidos pelas porta-rias do Ministério da Justiça e, em troca, a obrigação da empresa de repassar aos índios US$ 12 milhões em par-celas semestrais durante 20 anos.

O desfecho dessa segunda luta dos Tupiniquim e Guarani pela recuperação de suas terras foi considera-do pela maioria dos índios e por seus apoiadores como uma derrota. Apesar das fortes pressões do governo fe-deral sobre as lideranças indígenas nas reuniões de ne-gociação em Brasília e da presença ostensiva da Polícia Federal nas aldeias, a correlação de forças entre os ín-dios e a Aracruz, naquele momento, permitia manter a luta pela demarcação dos 13.579 ha, ou, pelo menos, pela ampliação das terras além do que havia sido determinado pelo Ministério da Justiça.

Ao contrário da primeira luta, esta havia sido prepa-rada e organizada pelos caciques, lideranças e comuni-dades indígenas desde o final dos anos de 1980; a popu-

Page 24: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

23

lação indígena era bem superior (290 famílias); a par-ticipação das comunidades19 nesta segunda auto-de-marcação foi bem mais efetiva e havia uma organiza-ção conduzindo o processo de luta e negociação; o grupo de apoiadores reunia representantes de importantes or-ganizações democrático-populares do estado do Espírito Santo; e havia uma grande repercussão nacional e in-ternacional. Além disso, vivia-se no País um período de mais liberdade e democracia.

Num primeiro momento, o TAC foi rechaçado pelas co-munidades indígenas. Porém, foram “convencidas” com o argumento falacioso de que sem ele corriam o risco de per-der os 2.571 ha e as compensações financeiras. Estas, talvez, foram as que mais pesaram nas argumentações de algu-mas lideranças indígenas favoráveis ao TAC. O Ministério Público Federal, que havia participado da sua elaboração, retirou seu apoio, considerando-o inconstitucional.

O resultado foi desastroso. Além da redução drástica da terra, o acordo permitiu à Aracruz:

“estabelecer mecanismos de controle sobre os índios e conduzí-los a uma incorporação progressiva da lógica do capital. Pelo TAC, os recursos financeiros eram controlados pela empresa e repassados aos índios mediante a apresentação de projetos econômicos aprovados pela Funai. Para prestar assistência às comunidades indígenas, a Aracruz assinou convênio com o Instituto Capixaba de Pesquisa e Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), o qual deu continuidade ao modelo convencional de agricultura voltado para o mercado externo, introduzido nas aldeias em

1996 com recursos da Aracruz. Ao mesmo tempo, a empresa devolveu os 2.571 ha com as plantações de eucalipto. Após os primeiros cortes e venda para a própria empresa, os Tupiniquim e Guarani se tornaram os maiores fornecedores particulares de eucalipto da empresa”.20

Pouco tempo depois, o Nisi-ES foi extinto e a Aracruz Celulose se tornou a principal parceira dos índios.

2005-200721

A assinatura dos TACs trouxe profundas alterações na organização social e econômica das comunidades indíge-nas. Duas associações, a Associação Indígena Tupiniquim de Comboios (AITC) e a Associação Indígena Tupiniquim e Guarani (AITG), foram criadas ‘de fora para dentro’ e ‘de cima para baixo’ como condição para receber os re-cursos da Aracruz Celulose. Em função disso, a Comissão de Caciques foi, aos poucos, deixando de ser a principal organização dos Tupiniquim e Guarani.

A adoção de um modelo convencional de agricultura voltado para a produção para o mercado (café, coco, ma-racujá), com o uso intensivo de insumos (adubos, pestici-das, sementes híbridas, mecanização e irrigação), em de-trimento da produção de alimentos, e a decisão de cele-brar contratos de fomento com a Aracruz, a partir do ano 2000, sobre 1.800 ha, aceleraram o processo de depen-dência e subordinação dos Tupiniquim e Guarani aos in-teresses da empresa. As possibilidades de uma retomada da luta pela terra ficaram cada vez mais distantes.“Este processo não foi linear, ao contrário, foi marcado

Os indígenas souberam se articular, acumular forças e manter a autonomia: defesa dos direitos fundamentais e reconquista da terra

Page 25: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

24

por muitas disputas internas e gerou muita insatisfação nas comunidades indígenas. Após sete anos, os índios se convenceram de que os “benefícios” trazidos pelo TAC jamais os levariam a uma autonomia econômica. Nas palavras das lideranças indígenas, os projetos agrícolas e o fomento florestal são um ‘cala-boca’ dos índios na disputa pelas terras, uma vez que a retomada da luta significava o rompimento automático do TAC”.22

Assim, por iniciativa da Comissão de Caciques, foi re-alizada uma Assembléia Geral na aldeia de Comboios no dia 19 de fevereiro de 2005, com o tema “Nossa Terra, Nossa Liberdade”. Cerca de 350 índios de todas as aldeias decidiram pelo rompimento do TAC e pela retomada dos 11.009 ha ainda em poder da Aracruz. Na nota pública di-vulgada no dia 28 de fevereiro, a Comissão de Caciques afirmou que “o TAC com a Aracruz não conseguiu resol-ver nossos problemas, ao contrário, tem nos causado ain-da mais dificuldades, gerando dependência econômi-ca, divisão entre as aldeias e enfraquecimento de nossa cultura. A morte da nossa cultura é a morte simbólica do nosso povo”.

A primeira providência dos índios foi solicitar à Procuradoria Geral da República no ES (PGR-ES) medi-das legais para exigir do governo federal a anulação das portarias do Ministério da Justiça e a demarcação integral das suas terras (18.071 ha).

Após a instauração de Inquérito Civil Público, que con-cluiu pela existência de irregularidades nos procedimen-tos de demarcação e homologação das terras indígenas em 1998, a PGR-ES expediu para o presidente da República e o ministro da Justiça a Recomendação nº 003/2005, para que fossem declaradas a nulidade das Portarias do MJ nº 193, 194 e 195 e os correspondentes Decretos Homologatórios de 11 de dezembro de 1998, e para que editassem novos atos de reconhecimento das terras indí-genas no estado, conforme as conclusões do GT da Funai que havia identificado 18.071 ha como terras tradicional-mente ocupadas pelos Tupiniquim e Guarani.

Entretanto, sabia-se que esta medida seria insuficien-te para o governo federal reabrir o processo de demar-cação das terras, dado o papel desempenhado pelo agro-negócio no modelo de desenvolvimento do País e os compromissos assumidos pelo presidente Lula, desde 2003, com a expansão das plantações de eucalipto e da Aracruz Celulose. Além disso, as esperanças de mudan-ças na política indigenista, suscitadas pela vitória do PT nas eleições presidenciais do País em 2002, foram des-feitas ainda no primeiro mandato do governo Lula devi-do às pressões de sua heterogênea base de sustentação política e parlamentar.

Como forma de pressão, os Tupiniquim e Guarani deci-diram realizar várias ações de impacto. No mês de maio, mais de 500 índios realizaram a terceira auto-demarcação

de suas terras e, em seguida, reconstruíram duas aldeias destruídas pela empresa na década de 1960: Olho D´Água, próxima à aldeia de Pau Brasil, e Córrego do Ouro, próxi-ma de Comboios. No mês de outubro, ocuparam as fábri-cas da Aracruz por 32 horas e só deixaram o local após a vinda do presidente da Funai, Mércio Gomes, ao estado.

Sob forte pressão das comunidades indígenas, a Funai acata, em parte, a recomendação da PGR-ES e cria outro GT para proceder a atualização dos dados do GT anterior e assim reiniciar todos os procedimentos administrativos de demarcação previstos pelo Decreto Federal nº 1.775/96, inclusive aqueles já realizados, dando à Aracruz o direito à nova contestação.

No dia 20 de janeiro de 2006, os índios foram surpre-endidos por uma operação da Polícia Federal (PF), pre-parada e executada de forma sigilosa para cumprir um mandado de reintegração de posse em favor da Aracruz Celulose, expedido por um juiz federal de Linhares (ES). Na ação, a PF retirou os índios de forma truculenta e des-truiu as aldeias Olho D´Água e Córrego do Ouro (casas e plantios) com o auxílio de tratores e máquinas da empre-sa e de um ônibus da empresa Plantar, que presta servi-ços à Aracruz. Além disso, feriu treze índios com balas de borracha disparadas à queima-roupa e efetuou a prisão de duas lideranças em local de propriedade da empresa, que também serviu como base da operação para realizar a ordem judicial.

Estas e outras irregularidades motivaram a PGR-ES a propor na Justiça Federal uma Ação Civil Pública com Pedido de Indenização por Danos Morais Coletivos con-tra a União e em favor dos índios Tupiniquim e Guarani.

Este episódio lamentável e inesperado possibilitou, no entanto, que dez dias depois alguns caciques e lideran-ças tivessem um breve encontro com o presidente Lula, no aeroporto de Vitória. Lula recebeu detalhes da ação da Polícia Federal em conjunto com a Aracruz, prometeu que as terras seriam demarcadas e que enviaria o ministro da Justiça e o presidente da Funai ao estado para se reunir com a Comissão de Caciques.

Assim, no dia 20 de fevereiro de 2006, em audiência na Assembléia Legislativa do Espírito Santo, o minis-tro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, informou aos ín-dios e a várias autoridades presentes, que a ação ocor-reu em ‘segredo de justiça’ e que houve pressão sobre a PF para que montasse a operação, autorizada pela jus-tiça desde dezembro de 2005. Ele garantiu rigor na apu-ração do caso. Em relação às terras, o ministro prometeu concluir todos os procedimentos administrativos de de-marcação até o final do ano e defendeu uma nova con-testação da Aracruz para evitar ações futuras na justiça contra a demarcação.

Entretanto, a burocracia do Estado, aliada aos interes-ses da Aracruz, descumpriu todos os prazos estabelecidos pelo ministro. Novas ações de impacto foram necessárias.

Page 26: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

25

Em setembro de 2006, os índios derrubaram e queimaram cerca de 100 ha de eucalipto plantados na terra reivindi-cada, com os objetivos de acelerar os procedimentos de demarcação e manifestar publicamente que estavam lu-tando pelas terras sem os eucaliptos que sempre trouxe-ram prejuízos para as comunidades.

Em resposta a essa ação, a Aracruz Celulose desen-cadeou uma campanha difamatória e racista contra os Tupiniquim e Guarani, divulgando calúnias e mentiras na imprensa e no seu sítio eletrônico; instalando outdoors em vários pontos da cidade de Aracruz, com dizeres do tipo “A Aracruz trouxe o progresso, a Funai os índios”; e em palestras nas escolas do município e nas empresas e entidades de classe que atuam na região. A campanha questionava não só os direitos indígenas à terra, mas so-bretudo a indianidade dos Tupiniquim, reforçando os preconceitos já existentes na sociedade capixaba con-tra os índios e provocando constrangimentos, principal-mente nos estudantes indígenas das escolas do muni-cípio. Também organizou uma manifestação em Vitória com cerca de duas mil pessoas, principalmente traba-lhadores diretos e indiretos da empresa, e colheu 75 mil assinaturas num abaixo-assinado entregue ao governo do Espírito Santo.

Ao mesmo tempo, a ONG Espírito Em Ação, da qual fazem parte a Aracruz Celulose, a Vale, a Companhia Siderúrgica do Tubarão (CST) – que foi comprada pela Arcelor Mittal –, a Rede Gazeta de Comunicação, a TV Capixaba e outras empresas, que têm como missão ‘mo-bilizar a classe empresarial’ em defesa de seus interesses no estado, reforçou a campanha difamatória da Aracruz contra os Tupiniquim e Guarani.

O resultado foi tão devastador que a PGR-ES moveu uma ação na Justiça Federal contra a empresa. Uma deci-são liminar impediu a continuidade da campanha.

Revoltados e feridos na sua auto-estima, os índios deci-diram radicalizar. No mês de dezembro, cerca de 200 ín-dios ocuparam o Portocel. No dia seguinte, cerca de 1.500 trabalhadores da Aracruz e de empresas terceirizadas, principalmente da Plantar, mobilizados pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Celulose (Sinticel) e pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Minerais (Sintiema), e liberados do trabalho pelas empresas, diri-giram-se ao porto para expulsar os índios. Foi um dia de muita tensão e expectativa. Em vários momentos temia-se por um massacre. Cercados no depósito de celulose, os ín-dios resistiram e ameaçaram atear fogo, caso os trabalha-dores se aproximassem. O contingente policial era insufi-ciente para conter a multidão se o ataque se concretizasse. Uma tropa de choque da Polícia Militar de Vitória foi acio-nada, mas ficou estacionada a 30 km de distância.

Alguns índios e apoiadores foram agredidos, inclusive o deputado estadual do PT e cadeirante Cláudio Vereza. No final do dia, os trabalhadores se retiraram do porto em

silêncio e foram vaiados pelos índios que vieram das al-deias em socorro dos parentes. Ainda dentro do porto, os índios se reuniram em Assembléia e decidiram pôr fim ao movimento, que durou cerca de 30 horas. Dias depois via-jaram para Brasília para exigir o cumprimento das pro-messas do ministro da Justiça, cujo prazo dado por ele já estava se encerrando.

Em Brasília, foram recebidos pelos consultores jurídi-cos do MJ e ouviram respostas evasivas. Retornaram às aldeias com o pressentimento de que as terras não seriam demarcadas. O desânimo tomou conta das lideranças e das comunidades indígenas, sobretudo quando foram, em meados de janeiro de 2007, mais uma vez para Brasília, e sequer foram recebidos no Ministério da Justiça.

No início do mês de fevereiro de 2007, o ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, pouco antes de deixar o cargo, restituiu os processos administrativos de demar-cação das terras dos Tupiniquim e Guarani à Funai. O despacho do ministro, sem número, data de assinatura e sem publicação no Diário Oficial da União (DOU), de-terminou à Funai “envidar esforços no sentido de apro-fundar estudos com vistas a elaborar proposta adequa-da, que componha os interesses das partes”.

Ora, o ministro estava de posse de todos os elementos comprobatórios do direito dos índios sobre as terras em disputa e das recomendações da presidência da Funai e da consultoria jurídica do próprio ministério para o pros-seguimento dos procedimentos, quer dizer, da edição das Portarias de Delimitação. Mas decidiu retornar os proces-sos à Funai, com um agravante: buscar novamente um acordo dos índios com a Aracruz Celulose.

Na sequência, uma juíza federal de Linhares, decidiu assumir esta tarefa e intimou os índios para uma audi-ência, com o objetivo de apresentar uma proposta de acordo feita pela Aracruz. A intenção da juíza era ten-tar uma conciliação entre as partes numa ação possessó-ria, impetrada pela empresa, que tramitava naquele ju-ízo. Resumidamente, a Aracruz propunha que os índios abrissem mão da identidade indígena e da presença his-tórica na região, como condição para receber a doação de uma área, cujo tamanho seria definido pela empresa. Além disso, esta área e as áreas já demarcadas passariam a ser consideradas “reservas indígenas” para evitar qual-quer ampliação das mesmas no futuro, a não ser median-te desapropriação.

Na segunda audiência de conciliação, realizada no dia 23 de maio, os índios solicitaram à juíza, por ofício, o encerra-mento das audiências, alegando a impossibilidade de qual-quer acordo com a Aracruz e pela disposição de aguardar as conclusões dos procedimentos administrativos. Em se-guida, encaminharam cópia do ofício ao novo ministro da Justiça, Tarso Genro, solicitando a continuidade dos pro-cessos e a emissão das portarias de delimitação.

No dia 05 de julho, o presidente da Funai, Márcio Meira,

Page 27: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

26

devolveu os processos ao Ministério da Justiça. Todos esses contratempos contribuíram para aumentar

o desânimo das comunidades indígenas e acirrar as dis-putas internas, sobretudo entre os que queriam manter a luta pela terra, preservando os eucaliptos para facilitar a demarcação, e aqueles que defendiam a ocupação da ter-ra visando apenas a extração da madeira, contratando in-clusive não-índios. O resultado foi a invasão progressiva dos 11.009 ha por não-índios. Quando a situação parecia incontrolável, as comunidades se mobilizaram e sob a co-ordenação da Comissão de Caciques e da AITG expulsa-ram os não-índios e retiraram a madeira já cortada para beneficiar as famílias. Ao mesmo tempo, reconstruíram as aldeias Olho D´Água e Areal e intensificaram novamente as pressões sobre o ministro da Justiça.

Em 28 de agosto de 2007, Tarso Genro assinou as Portarias de Delimitação nº 1.463 e 1.464 das Terras Indígenas Tupiniquim e Comboios, respectivamente.

Em dezembro de 2007, após três meses de negociação com a Aracruz Celulose, assinaram o TAC, com interveni-ência do Ministério Publico Federal e da Funai.

Aqui, cabe fazer uma necessária análise sobre os efei-tos do TAC23. Como em todo processo de negociação, houve perdas e ganhos para ambas as partes. Como foi dito anteriormente, os Tupiniquim e Guarani decidiram pela assinatura do TAC para possibilitar a continuida-de do processo de regularização administrava das ter-ras, em virtude das ameaças da Aracruz de contestar e suspender judicialmente os efeitos das Portarias de Delimitação do Ministério da Justiça por tempo indeter-minado, podendo inclusive colocar em risco a retomada das terras pelos índios.

É importante salientar que a prioridade dos Tupiniquim e Guarani sempre foi, ao longo dos últimos 40 anos, re-cuperar suas terras ocupadas pela Aracruz Celulose. Através da luta das lideranças e das comunidades e de seus apoiadores da Rede Alerta na realização da auto-de-marcação de suas terras, na reconstrução de aldeias, na ocupação da fábrica da empresa e do Portocel, de campa-

nhas nacionais e internacionais contra a empresa e o go-verno federal e de outras ações de impacto, conseguiram acelerar os procedimentos administrativos de demarca-ção que culminaram na assinatura das portarias pelo mi-nistro da Justiça. Após quase três meses de intensos de-bates sobre as possíveis perdas e ganhos em cenários distintos (com ou sem TAC), as comunidades indígenas Tupiniquim e Guarani decidiram pela garantia da demar-cação dos 18.027 ha, principal objetivo da luta.

TerraAo contrário dos acordos anteriores (1981 e 1998), as

terras foram reconhecidas e serão demarcadas em sua to-talidade (18.027 ha). No TAC, foram estabelecidos os pra-zos para a demarcação física (concluída no mês de mar-ço de 2008) e o compromisso da Funai de encaminhar o processo para a homologação do presidente da República (assinada em novembro de 2010).

segurança jurídicaSegundo o TAC, as partes reconhecem e aceitam como

definitivos os limites das terras indígenas Tupiniquim e Comboios conforme constam nas Portarias Declaratórias, com superfície total de 18.027 ha. Isso significa que esses limites não poderão ser alterados futuramente. Ou seja, se por um lado impede a ampliação das terras, por outro garante segurança jurídica aos Tupiniquim e Guarani.

Porém, o artigo 231, parágrafo 4º da Constituição Federal estabelece que o direito dos índios sobre suas terras é imprescritível, mesmo não estando ainda demar-cadas. Assim sendo, não há impedimento legal para que terras adjacentes venham a ser identificadas e demarca-das como terras indígenas, bastando apenas que sejam objeto de estudo por parte da Funai.

A segurança jurídica pretendida pela empresa desde o iní-cio das negociações foi contemplada no 1º “Considerando” do TAC, ao afirmar que a Funai realizou estudos “de toda a região” e identificou apenas os 18.027 ha como terra indí-gena. Porém, esta afirmação não é verdadeira, uma vez que apenas os 18.027 ha foram objeto de estudo.

Por fim, é bom lembrar que a própria empresa ain-da não está sujeita a limites em relação à terra que pode ocupar no País. Essa medida seria muito mais pertinente do que esta imposição sobre os índios já que, entre 1995 e 2003, a Aracruz duplicou sua área total no Brasil, de cer-ca de 200 mil para mais de 400 mil hectares de terras. Atualmente, com o nome Fibria, essa empresa ocupa mais de 1 milhão de hectares de terras no País.

ocupação de boa féSegundo o parágrafo 6º do art. 231 da Constituição

Federal, só é permitido indenizar “benfeitorias deri-vadas da ocupação de boa fé”. No caso em questão, a empresa concordou em abrir mão da indenização em

Os índios ousaram lutar pelas suas terras, mesmo durante a ditadura

Page 28: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

27

troca da retirada dos eucaliptos, no que os índios sem-pre estiveram de acordo, pois além de permitir cele-ridade no processo de demarcação das terras, possi-bilitaria condições para a busca de outras alternati-vas econômicas.

O reconhecimento de que as benfeitorias foram deri-vadas de boa-fé permite que os eucaliptos sejam retira-dos pela empresa, mas não significa eximir a empresa pelos danos provocados nas terras indígenas (a destrui-ção das aldeias, da mata nativa, dos córregos e rios, etc.) durante o período em que esteve ocupando ilegalmente as mesmas. Os índios continuam com o pleno direito de reivindicar judicialmente a reparação destes danos, in-dependentemente se ocorreram de boa ou má-fé. Aliás, quem acredita que essa ocupação foi de boa-fé?

A empresa retirou os eucaliptos.

Processos judiciais e inquéritos policiaisAs partes concordaram com a desistência de alguns

processos judiciais e inquéritos policiais. Não houve con-senso sobre outros, como no caso do processo contra membros da Rede Alerta contra o Deserto Verde. A em-presa apresentou o caso como inegociável, argumentan-do que os processados são “inimigos da empresa” e a atu-ação dos mesmos extrapola a questão indígena.

Naquele momento, continuavam em andamento, con-tra os índios:

• uma ação da Visel contra três Tupiniquim; • uma ação penal contra 17 índios por furto de madei-

ra (a Aracruz apenas retirou seu advogado, assistente de acusação do processo).

Continuavam também em andamento, contra a Aracruz:• ação penal (em fase de inquérito) do MPF-ES contra a

Aracruz Celulose e outras empresas (terceirizadas) por cri-me de difamação e racismo;

• ação ordinária da Funai contra a empresa por uso indevido e difamatório da imagem de Vilson (Jaguaraté) Tupiniquim. Houve uma decisão judicial determinando o pagamento de indenização.

É importante também frisar as seguintes medidas esta-belecidas no TAC para as comunidades indígenas inicia-rem a re-ocupação e recuperação das terras conquistadas:

Projeto social emergencialA partir de dezembro de 2007, as comunidades indíge-

nas receberam R$ 3 milhões da Funai para atender suas demandas emergenciais.

estudo etno-ambientalDe acordo com o TAC, a Funai selecionaria a empresa

especializada ou um grupo de técnicos para realizar estu-do etno-ambiental com o objetivo de promover, através de projetos e programas, a recuperação ambiental das terras e a sustentabilidade econômica das comunidades indíge-

nas. O termo de referência desse estudo seria elaborado pela Funai e submetido aos índios e os mesmos poderiam participar e indicar “assistentes técnicos” para compor o grupo que faria o referido estudo. A Aracruz Celulose aportaria R$ 380 mil para a contratação da empresa espe-cializada ou grupo de técnicos e R$ 3 milhões para a exe-cução dos projetos e programas, sem interferir nos mes-mos, devendo o governo federal aportar os recursos ne-cessários que excederem este valor, garantindo-os nos or-çamentos do período 2009 a 2012.

Na realidade, os índios elaboraram, com ajuda de sua assessoria e da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai), o termo de referência, posteriormente aprovado pela Funai. Também foram eles, com ajuda da assessoria, que indicaram a Anai para realizar o estudo, que come-çou no mês de abril de 2009 e foi encerrado em dezem-bro do mesmo ano.

Dos R$ 3 milhões a serem aportados pela Aracruz

A identidade indígena foi extremamente desrespeitada pela Aracruz

Page 29: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

28

Celulose para a execução dos projetos e programas defi-nidos pelo estudo, R$ 1,2 milhão foi destinado para os pro-jetos emergenciais. A Funai se comprometeu a repôr esse valor para garantir a finalidade dos R$ 3 milhões.

conclusãoComo foi dito anteriormente, a implantação da Aracruz

Celulose no Espírito Santo na década de 1960 resultou num conjunto de alterações na vida dos Tupiniquim e Guarani: a expropriação das terras, a destruição de qua-se todas as aldeias, o desmatamento e a desestrutura-ção social, cultural e econômica. A resistência das aldeias Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios foi determinan-te para impedir a dispersão e, provavelmente, a extin-ção dos Tupiniquim e um ‘caminhar’ forçado dos Guarani para outras regiões. Foi, inclusive, a partir desses espa-ços reduzidos, que os índios puderam reagrupar suas for-ças para retomar o processo de reconquista do território, o qual foi concluído 40 anos depois.

Nesse longo e penoso período de disputa permanen-te com a Aracruz Celulose, é inquestionável o acúmu-lo de conhecimento e de forças por parte dos índios. Processos formativos e organizativos, desencadeados a partir da luta pela terra, potencializaram a resistência e qualificaram suas ações. Formas organizativas, como a Comissão de Caciques, as associações indígenas (AITG e AITC)24 e, mais recentemente, os grupos de mulheres, surgiram da necessidade de ações mais organizadas e articuladas das comunidades indígenas na defesa dos seus direitos, particularmente na luta pela recuperação de suas terras.

Ao mesmo tempo, o enfrentamento do agronegó-cio, apoiado e financiado pelo Estado, exigiu que os ín-dios estabelecessem alianças estratégicas com entida-des civis e religiosas (1979 a 1981), com entidades e mo-vimentos sociais reunidos no Fórum Campo e Cidade (1993 a 1998) e com a Rede Alerta contra o Deserto Verde (2000 a 2007). Neste último período da luta, a participa-

ção dos Tupiniquim e Guarani na Rede Alerta permitiu a inclusão da luta indígena no conjunto das lutas contra a Aracruz Celulose, como a dos quilombolas pela recupe-ração das suas terras, dos sem-terra na realização da re-forma agrária, dos camponeses na defesa da agricultura camponesa e no combate à monocultura do eucalipto e ao modelo de desenvolvimento que ela representa.

Por sua vez, esses espaços de luta conjunta com gru-pos que têm em comum a experiência da expropriação, exploração, discriminação e exclusão têm proporcionado aos índios momentos privilegiados de formação político-ideológica. Do mesmo modo, a participação dos caciques e lideranças nas organizações e movimentos indígenas, em nível regional e nacional25, e nos espaços públicos e privados, onde são debatidas e decididas questões rela-cionadas aos seus direitos, tem contribuído para elevar o grau de consciência e de conhecimento de seus direitos constitucionais. Ao mesmo tempo, a clareza das deman-das, a capacidade de formular propostas viáveis de supe-ração dos problemas e a definição dos aliados e das estra-tégias de ação demonstram o crescente protagonismo dos índios na construção da autonomia.

Com a terra recuperada, mas em condições ambien-tais adversas e com um tamanho menor do que possuí-am no final da década de 1960, os índios encontram-se diante de um novo e complexo desafio: o que e como fa-zer para que o território indígena garanta as condições necessárias para a sobrevivência física e cultural dos Tupiniquim e Guarani de forma autônoma?

Nesse sentido, o estudo etno-ambiental, realizado com a ajuda de profissionais especializados e compro-metidos com a causa indígena, resultou na elaboração de um plano no qual foram identificadas as melhores alternativas de uso das terras, visando projetos e pro-gramas que possam promover a auto-sustentação das comunidades indígenas e a recuperação ambiental das mesmas. Ao mesmo tempo, esse plano também apontou formas de ocupação do território conquistado que con-templam as necessidades da população atual e das pró-ximas gerações.

No entanto, é preciso considerar também que os ín-dios estão localizados numa região em acelerado pro-cesso de crescimento demográfico e de industrialização e onde predomina o agronegócio. Para os próximos anos estão previstos vultosos investimentos da Petrobrás na prospecção de petróleo em águas profundas do litoral dos municípios de Aracruz e Linhares e a ampliação do Portocel, que, por sua vez, atrairão outros investimen-tos e empreendimentos, além dos já existentes. Nesse contexto, as imposições do modelo de desenvolvimen-to vigente no País podem comprometer a busca de al-ternativas que garantam a autonomia dos Tupiniquim e Guarani e conduzí-los a uma crescente inserção ao mo-delo hegemônico.

A crítica ao modelo de desenvolvimento sempre esteve presente na luta

Page 30: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

29

Além disso, a manutenção da monocultura do euca-lipto durante quarenta anos nas terras indígenas, além dos impactos sobre a terra e o meio ambiente, condu-ziu as comunidades indígenas a uma certa dependên-cia econômica da Aracruz Celulose e do eucalipto. Entre os anos de 1998 e 2005, o fomento florestal foi a prin-cipal atividade econômica dos índios e o eucalipto ain-da é, para muitos, uma das alternativas de uso das ter-ras conquistadas.

As palavras de uma liderança Tupiniquim de Caieiras Velhas, a aldeia que tem a maior população indígena, ex-pressam bem esta realidade: “Estou com 40 anos e desde pequeno, quando abro a porta de minha casa, só vejo euca-lipto em volta. Sou contra o eucalipto, porque sei dos pre-juízos que ele trouxe para nossas comunidades, mas não conheço outra atividade que dê mais trabalho e renda”.

O debate sobre a escolha do caminho a ser percorri-do – autonomia versus dependência - já está presente há muito tempo nas comunidades e nas suas organizações. As discussões têm também apontado para, em lugar da monocultura, a diversificação da produção para gerar trabalho e renda para as famílias, a produção de alimen-tos saudáveis para o consumo interno e, se possível, para comercializar com as comunidades vizinhas, o reflores-tamento para criar condições para o retorno da mata na-tiva, da caça e da pesca, a recuperação dos rios e córre-gos que cortam o território indígena e a reconstrução das aldeias, destruídas pela Aracruz Celulose, para facilitar a ocupação das terras e desafogar as aldeias mais po-pulosas. Já foram reconstruídas Olho D´Água (Guarani), Areal e Córrego do Ouro (Tupiniquim).

Ao mesmo tempo, estão em curso nas aldeias ativida-des econômicas geradoras de trabalho e renda: plantios de mandioca (familiar), de milho, feijão, café e maracujá (coletivo), criatório de gado, peixe, galinha, carneiro (co-letivo) e abelha para produção de mel (individual), arte-sanato e ervas medicinais para a venda (grupo de mulhe-res), além de um viveiro de mudas nativas para o reflo-restamento das terras (coletivo). Apesar de não atingirem todas as famílias, são iniciativas importantes sob o con-trole das comunidades e, a maioria, administradas pelas associações indígenas.

As respostas a serem dadas pelos Tupiniquim e Guarani a esse novo desafio serão decisivas para ga-rantir a continuidade histórica deles enquanto povos indígenas e estão sendo aguardadas com muita expec-tativa e esperança por seus aliados e por todos aque-les que os apoiaram durante o processo de recuperação das terras, sobretudo pelos que ainda continuam im-pactados pela monocultura do eucalipto e em disputa com a Aracruz Celulose.

As mulheres sofreram com muita intensidade os impactos dos eucaliptais

Page 31: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

30

1- Cartilha Arãdu Porá Rape, de autoria dos Guarani da aldeia Tekoa Porá Nhãdéwa-Espírito Santo-MEC/FNDE SEDU-ES – sem data.

2- O Fórum Campo Cidade (1993 a 1998) congregava o Movimento Sindical (CUT e vários sindicatos), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Direi-tos Humanos, o Movimento pela Moradia, a Comissão de Caciques e Lideranças Tupiniquim e Guarani, o Conselho Indígenista Missionário (Cimi), mandatos dos deputados estaduais do PT, dentre outros, em apoio às lutas dos trabalhadores do campo e da cidade do Espírito Santo, incluindo a demarcação das terras indígenas.

3- Em 2007 foram demarcadas a Terra Indígena Tupiniquim (14.227 ha), onde estão loca-lizadas as aldeias Tupiniquim Caieiras Velhas, Irajá e Pau Brasil, e as aldeias Guarani Boa Esperança e Três Palmeiras, e a Terra Indígena Comboios (3.800 ha), onde está localizada a aldeia Tupiniquim Comboios, totalizando 18.027 ha. Em 2003, foi demarcada a Terra Indígena Caieiras Velhas II (57 ha), onde está localizada a aldeia Guarani Piraquê-Açu. Portanto, os Tupiniquim e Guarani possuem atualmente 18.084 ha.

4- Hemming, 1978: 494.

5- Esta região tinha como limite sul a margem esquerda do Rio Piraquê-Açu e ao norte o li-mite estabelecido pela sesmaria de 1760 (caminhos de Comboios), medindo 38 km. Do leste (Oceano Atlântico) a oeste, os 39 km da sesmaria de 1760. Total da área: 148.200 ha.

6- Esta área tinha entre os limites sul-norte cerca de 38 km, conforme a nota anterior, e do leste (Oceano Atlântico) a oeste cerca de 17 km, onde o Grupo Técnico (GT) da Funai (Portaria nº 783 de 1994) localizou a aldeia Areal no limite oeste do território Tupiniquim, totalizando 64.600 ha. Subtraindo os 10 mil ha ocupados pela Cofavi, o território Tupiniquim e Guarani media cerca de 55 mil ha no final da década de 1960.

7- Segundo os índios, cada aldeia tinha em média dez famílias, totalizando 400 famílias e uma população aproximada de dois mil índios.

8- Cimi Leste, Campanha Internacional pela Ampliação e Demarcação das Terras Indíge-nas Tupiniquim e Guarani. Aracruz (ES), 1996.

9- Idem.

10- Idem.

11- Neste período, a ditadura militar dava sinais de enfraquecimento. Na economia, a desaceleração do crescimento econômico e a aceleração da inflação (em torno de 80%) já demonstravam o esgotamento do chamado “milagre econômico” e anunciavam a recessão da década seguinte. No plano político, a vitória do MDB nas eleições de 1978 significou uma manifestação de oposição da população brasileira à ditadura militar. A reorganização do movimento sindical, a retomada do movimento popular, impulsionado pela ala progres-sista da igreja católica, através das CEBs e das pastorais sociais, a participação da socie-dade civil na vida política, principalmente na luta pelos direitos humanos e no movimento pela anistia, a luta contra a censura na imprensa e nas atividades culturais, a reconstrução das entidades do movimento estudantil, dentre outros, disseminaram no País grandes ma-nifestações públicas contra a ditadura militar. Dos eventos mais significativos, podemos destacar o ato organizado pelo movimento contra a carestia em 1978, que reuniu cerca de vinte mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, e a greve dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP), em maio de 1979, que durou 13 dias e encorajou outras greves por todo o País. Em 1980, foi fundado oficialmente o Partido dos Trabalhadores (PT) como a alternativa político-partidária dos trabalhadores. Também foi a partir da década de 1970 que os povos indígenas no Brasil se mobilizaram para retomar seus territórios invadidos e assegurar outros direitos. É neste contexto de mobilização e luta popular, sindical e indígena que acontece a primeira luta dos Tupiniquim e Guarani contra a Aracruz Celulose.

12- Na contestação apresentada pela Aracruz Celulose, em 1997, ao laudo antropológico da Funai que identificou os 18.070 ha como sendo tradicionalmente ocupados pelos Tupini-quim e Guarani, há um trecho que faz uma interessante referência a este fato: “a chegada dos descendentes dos Guarani teria ocorrido em função de uma “revelação” feita a um membro da tribo. Quem pode assegurar, então, que novas revelações não surgirão? Tem cabimento um investimento de mais de US$ 3 bilhões ficar refém de “revelações” ou de simples interesse de ampliar as áreas então detidas pelos descendentes dos índios?”

13- Jornal do Brasil – 06/06/1981.

14- Jornal de Brasília – 06/06/1981.

15- Dom João Batista Mota de Albuquerque – Arcebispo, e Dom Luiz Gonzaga – Bispo Auxiliar (ambos falecidos).

16- Alguns acontecimentos ocorridos no País no final da década de 1980 e início da década seguinte contribuíram para motivar e impulsionar a segunda luta dos Tupiniquim e Guarani pela recuperação de suas terras. O mais importante foi a promulgação da Constituição Federal em 1988, cujo capítulo dos Índios foi uma conquista das forças progressistas no Congresso Nacional, das entidades aliadas à causa indígena e dos povos indígenas que ocu-param, literalmente, o Congresso durante o processo constituinte. Outro fato importante foi a edição do decreto-lei nº 22 de 1991 que dispunha sobre os procedimentos administra-tivos de demarcação de terras indígenas. Um de seus artigos estabelecia o direito dos povos indígenas de requerer da Funai a revisão de demarcações anteriores que haviam excluído indevidamente partes do território tradicional. Era o caso dos Tupiniquim e Guarani com a demarcação de 1981. Com base neste decreto-lei (revogado posteriormente pelo decreto 1775/96), a Funai criou um Grupo de Trabalho para realizar estudos das terras indígenas no Espírito Santo, os quais apontaram a necessidade da ampliação das terras para 18.071 ha em 1997.

17- Cimi Leste, Campanha Internacional pela Ampliação e Demarcação das Terras Indíge-nas Tupiniquim e Guarani. Aracruz (ES), 1996.

18- O Núcleo Interinstitucional de Saúde Indígena (Nisi-ES), criado em 1994, fazia parte do modelo de Atenção Integral à Saúde Indígena, da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), proposto pelo decreto federal nº 1.141/94. Faziam parte do Nisi, órgãos governamentais (federais, estaduais e municipais) e órgãos não-governamentais, tendo a participação pari-tária dos índios. Competia a este fórum de parceiros formular, executar e avaliar ações na área de saúde indígena. No entanto, o Nisi-ES foi o único no País que desenvolveu também ações nas áreas de educação e agricultura.

19- A comunidade Tupiniquim de Comboios decidiu, sem comunicar às outras cinco comu-nidades e à Comissão de Caciques, assinar um TAC com a empresa e por isso não participou da auto-demarcação das terras.

20- Schubert, Arlete, Fábio Villas e Winnie Overbeek, A reconquista da Terra Indígena no Espírito Santo, Revista Proposta, nº 107/108, dez/maio 2005. 21- Entre os anos 2000 a 2003, os Tupiniquim e Guarani participaram, ao lado de enti-dades ambientalistas, associações de moradores, de pescadores e outras, da luta contra a instalação da empresa de mineração Totham que pretendia extrair sedimentos calcários na foz do Rio Piraquê-Açu. O projeto incluía também o uso de uma área de 57 hectares de terra indígena, não-demarcada e de preservação permanente. A ocupação desta área pelos índios, no mês de agosto de 2000, contribuiu para impedir o licenciamento da empresa e deu origem à aldeia Guarani Piraquê-Açu. Posteriormente, a terra foi demarcada como TI Caieiras Velhas II. 22- Schubert, Arlete, Fábio Villas e Winnie Overbeek, A reconquista da Terra Indígena no Espírito Santo, Revista Proposta, nº 107/108, dez/maio 2005. 23- As informações que seguem foram extraídas do Informe sobre o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre os Tupiniquim/Guarani, Aracruz Celulose e a Fundação Nacional do Índio (Funai), elaborado por Fábio Villas/Winnie Overbeek – assessoria indígena e membros da Rede Alerta contra o Deserto Verde – Vitória – 07/12/2007. 24- Apesar de terem sido criadas de “fora para dentro”, “de cima para baixo”, das suas estruturas verticalizadas, das direções centralizadas e da rigidez dos estatutos, estas as-sociações foram, aos poucos, “domesticadas” pelos índios, tornando-as mais próximas da organização tradicional dos Tupiniquim e Guarani, baseadas na horizontalidade e nas de-cisões coletivas. 25- Principalmente na Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e no já extinto Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas no Brasil (Capoib).

RefeRências

Page 32: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

31

Na história, há vários fatos que nos envergonham. Mas nada é tão vergonhoso e abominável quanto a es-cravidão. Arrancaram-nos da nossa pátria, nos trou-xeram à força em navios negreiros e nos forçaram a trabalhar debaixo do sol escaldante sob surras e humi-lhações. Quantos negros foram jogados ao mar, morre-ram de doenças, de fome e frio? Trabalhamos de graça, ajudamos a erguer economicamente vários países e, depois, num ato de extrema “bondade”, fomos jogados ao vento, sem nome, sem endereço, sem dinheiro, sem terra, sem trabalho e sem mesmo saber assinar o pró-prio nome. Tivemos que nos contentar com a falsa “li-berdade” que nos foi dada. Eu não sei de onde são meus antepassados, não sei onde procurar de onde vieram, mas tenho certeza de que Santos não é meu sobrenome. Marginalizaram a nossa religião, mas, com muito custo, conseguimos manter a nossa cultura. A abolição “deu” a liberdade aos negros, mas não lhes garantiu alguns direitos fundamentais, como acesso à terra, à moradia, enfim, às condições necessárias que nos permitissem exercer uma cidadania de fato.

A resistência quilombola vem desde a época da escra-vidão, quando os negros fugiam e se aquilombavam em comunidades, chamadas de mocambos ou quilombos. Muitas comunidades assim se formaram Brasil afora, tais como Palmares, no século XVII, os quilombos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso no século XVIII, e vários ou-tros na Bahia, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Rio de

2Entre a terra e o carvão: as comunidades quilombolasSelma Dealdina

“E de tudo que plantaram, nada lhes restou, nem da terra, nem dos frutos, apenas a liberdade.”

Gui

lher

me

Rese

nde

Page 33: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

32

Janeiro, Maranhão e Pará, no século XIX. Segundo o pro-fessor Ubiratan Castro, “um desconhecido Brasil negro se revelou, vindo à tona um novo movimento de afirma-ção de identidade. E, com ele, uma nova bandeira de luta pela terra’’. A emancipação dos escravos, em 1888, não foi acompanhada por medidas que permitissem aos grupos negros permanecer na área rural. Apenas um século de-pois, com a Constituição de 1988 e o reconhecimento dos direitos dos quilombolas, começou-se a lançar luz sobre a existência dessas comunidades.

Hoje, 120 anos depois, ainda carregamos, nos pulsos, as marcas dos grilhões, nos pés, o peso das correntes e, nas costas, as cicatrizes das chibatas.

Acreditávamos no passo importante para nós, brasilei-ros e brasileiras, quando, em 2002, a “esperança venceu o medo” e, pela primeira vez, nós - o “povão” - estaríamos no poder. No entanto, as coisas não caminharam como esperávamos ou, talvez, como idealizamos nos nossos sonhos de governo. Ficamos num “faz-e-desmancha” que ninguém entende mais nada.

A cada momento surge uma palavrinha nova e a da vez, e muito bem usada, é criminalizar.

Situação de conflito hoje“Depois que ela [Aracruz Celulose] chegou aqui, acabô com tudo, a gente tinha água com fartura, muitos peixes, muita caça, dendê, frutas, mandioca à vontade... Agora nem cobra consegue viver no meio do eucalipto. O eucalipto só presta para encher nossas casas de cupim. A Aracruz acabou com minha alegria de viver. Hoje, vivo cercado igual bicho... Ela pode devolver as terras, mas ela vai devolver os córregos, os animais, os remédios, as matas virgens que existia aqui? Muita gente foi pra cidade e morreu de depressão, por não poder está vivendo em cima do que é seu... Foi aqui que nasci e aqui quero morrer e ninguém me tira daqui, nem ela [Aracruz Celulose]... Quando me alembro daquele tempo, meus óios enche de água. Naquele tempo, a gente era livre, como os passarinhos. Na terra, tudo que plantava dava. Nóis era livre. Hoje, não. Eles, da Visel, e até mesmo a pulíça, entra na nossa terra, bota o dedo na nossa cara, dentro da nossa casa, joga nossas coisas todinha no chão e, se a gente responder, eles leva a gente preso. Estou com 74 anos, nunca tinha entrado numa delegacia. Quando entrei, foi para ver meu filho, que acusaram de tá roubando madeira. Ele tava catando graveto pra dá aos fios o que comer. Onde já se viu prender um homem por querer matar a fome da sua famia. E o que eles roubaram de nóis? Ninguém prende eles não? Justiça, só defende quem tem dinheiro...”

(Domingos Ayres, 74 anos – Comunidade Retiro,São Mateus, em 12 de abril de 2009)

Vivemos nos contos de “como era e como ficou”, e casos como o do senhor Domingos Ayres são contados por mui-tos quilombolas que sobrevivem aos eucaliptais, tentando

entender a lei e vivendo com tanta injustiça.Apesar do governo Lula não ter titulado nenhum pe-

daço de terra quilombola no Espírito Santo, os ânimos estão à flor da pele quando se questiona o “direito de propriedade” e a forma como tudo aconteceu. Daí, per-cebe-se que enfiou-se a mão num vespeiro, e as reações são idênticas, tanto por parte da empresa multinacional Aracruz Celulose como por alguns proprietários, ini-ciando assim uma guerra racial e territorial. Diante da reação dos proprietários aos recentes processos de re-conhecimento oficial do território quilombola do Sapê do Norte, as comunidades intensificaram o modo de se defender e lutar pela sobrevivência em suas terras.

As famílias quilombolas procuram manter vivas as for-mas de organização em comunidade, suas manifestações culturais e, principalmente, a base familiar de produção, na defesa de um território e um ideal de vida comunal, que sonham e lutam bravamente para manter, até os dias atuais. Nesses processos de estudos e pesquisas, para fins de titulação dos territórios quilombolas, tem sido muito interessante a aproximação entre as comunidades que decidiram lutar pela retomada de seus territórios, o que tem levado a uma integração maior, não só da região nor-te do Espírito Santo, mas de todo o estado e do Brasil.

Em 20 de novembro de 2003, quando o presidente da República assinou o Decreto 4.887, regulamentando o procedimento de identificação, reconhecimento, delimi-tação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos, houve um alvoroço no País inteiro. A partir daquela data ocor-reram as mais diferentes manifestações. Na comunidade Alpes, no Rio Grande do Sul, em dezembro de 2008, os irmãos Joelma e Volmir, ambos membros e fundadores da Associação Quilombola, foram assassinados por um fa-zendeiro contrário à titulação da comunidade. Ocorreram também casos mais ‘leves’, como em Paraguaçu, na Bahia, onde o fazendeiro mandou soltar o seu gado nas lavou-ras dos quilombolas, além de destruir casas e assustar os moradores sob ameaça de fogo. Muitos outros casos acon-tecem nas várias comunidades espalhadas pelo País, que não chegam ao conhecimento de todos.

No Espírito Santo, mais precisamente no Sapê do Norte, as reações foram diversas. Logo no início, em-pregados armados da empresa de segurança Visel, con-tratada pela Aracruz Celulose e, substituída pela em-presa também privada Garra, chegaram a entrar nas casas das famílias quilombolas e procuraram proibir a circulação dos membros das comunidades nas áre-as de plantação de eucalipto. As famílias quilombolas do Sapê do Norte vivem isoladas em ilhas cercadas por eucalipto. Tais procedimentos visam proibir a caça e a pesca nos poucos rios e córregos da região que ainda não secaram. Aqueles que ainda têm água estão sendo covardemente contaminados pelos venenos da Aracruz

Page 34: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

33

Celulose. Proíbem também andar depois do pôr do sol. Ou seja, os quilombolas estão encurralados entre as plantações e as montanhas de eucaliptos cortados, sem poder fazer o que sempre fizeram com liberdade.

Nisso tudo, o que mais choca é a omissão e a conivência das autoridades locais, que se limitam a acusar os qui-lombolas de roubo de madeira e incriminar os mesmos. A polícia os prende a toda hora e sem motivos aparentes. Essa perseguição resultou em mais de sessenta quilom-bolas processados e/ou socialmente criminalizados, mar-cando a vida de chefes de famílias, donas de casas, idosos, mulheres e jovens. Pessoas de bem que, aos poucos, vão vivendo aqueles casos antigos que eram contados por nossos antepassados, quando os capitães do mato iam à caça dos escravos que se auto-libertavam. A diferença é que estamos falando de situações que acontecem agora em pleno século XXI.

A história se repete, seja no norte ou na região serra-na capixaba. A forma com que foram arrancadas as ter-ras dos(as) negros(as) que viviam no norte do Espírito Santo, com a chegada da monocultura de eucalipto e, mais tarde, a cana, é exatamente a mesma que contam os negros da região serrana e sul do Espírito Santo, com os fazendeiros e seus gados. E a reação dos ditos “pre-judicados” é a mesma, também reagindo com violên-cia em casos como em São Pedro, município de Ibiraçú, onde o fazendeiro alvejou a igreja da comunidade com tiros para intimidar os moradores e fazê-los parar com o processo de reconhecimento.

o processo de regularização no sapê do norteApós a assinatura do Decreto 4.887/2003, o órgão res-

ponsável pela implantação de suas determinações, o Ins-tituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pressionado pelas comunidades quilombolas, começou a atuar na regularização de suas terras no estado do Espí-rito Santo.

O Sapê do Norte constitui o maior território de co-munidades quilombolas no estado e sua situação é a seguinte:

- O território de Linharinho, no município de Concei-ção da Barra, com 9.542,57 ha (85% ocupado pela Aracruz Celulose), teve seu relatório de identificação e delimita-ção divulgado no Diário Oficial da União, em 13 de abril de 2006. A Portaria de Reconhecimento foi publicada em maio de 2007, sendo a primeira experiência resultante do trabalho do Incra na região capixaba. No entanto, a Aracruz Celulose questionou a portaria do Incra judi-cialmente e obteve sucesso no início de 2009, com uma liminar do Tribunal Regional Federal no Rio de Janeiro, suspendendo o processo de titulação. A empresa alega que legalmente deveria ter sido notificada antes do início dos trabalhos de identificação da área, alegação contesta-da pelo Incra.

- O território de Serraria, no município de São Cristóvão, teve seu processo de identificação e delimitação conclu-ído em 2006 e a presidência do Incra assinou a Portaria Declaratória, que reconhece seu território com área de 1.219 hectares.

- Os trabalhos de identificação e delimitação do territó-rio de São Jorge foram realizados desde 2005.

- Os trabalhos de identificação e delimitação do ter-ritório de São Domingos foram concluídos e o relatório foi publicado em dezembro de 2009.

- Os trabalhos de identificação e delimitação do terri-tório da Bacia do Angelim estão no início.

Nenhum avanço significativo ocorreu recentemente e um dos principais entraves para que os processos de devolução das terras aos quilombolas sejam concluídos é o Movimento Paz no Campo (MPC), que defende os interesses dos ruralistas e da Aracruz.

o sapê do norteOs remanescentes de quilombos do Sapê do Norte, um

território com cerca de 35 comunidades e mais de 1.200 fa-mílias quilombolas, vêm ao longo dos anos sofrendo uma grande criminalização. Esse processo começou na década de 1970, quando os quilombolas foram obrigados a deixar suas terras e tiveram que ir para as grandes cidades em busca de sua sobrevivência. Nas favelas, longe da zona ru-ral, foram obrigados a enfrentar situações adversas.

Para aqueles que permaneceram resistindo nas comuni-dades, restou a convivência com todos os impactos ambien-tais e socioeconômicos causados pelas grandes empresas de álcool e celulose. Esses quilombolas sofrem um impacto am-biental muito forte como, por exemplo, os córregos e rios que existiam e que hoje não existem mais, as caças e matas que tinham com fartura e hoje já não existem mais, bem como as matérias primas que utilizavam para fabricar seus utensílios e artesanatos, e que também deixaram de existir. Essas per-das acabam também com todo um saber, com os costumes e tradições de um povo, que tenta guardar na memória a his-tória acumulada desde seus ancestrais. Resistindo ao tempo, mantém viva sua revolta e indignação nas letras das brinca-deiras de caráter religioso-cultural, nos grupos de Jongo, Ti-cumbi e Reis de Boi. Isso se traduz também nos pedidos aos santos protetores dos negros. Dentre eles, o mais famoso é São Benedito, a quem são dedicadas muitas ladainhas, rezas, missas e promessas de um futuro melhor na tão almejada terra prometida.

A partir do ano de 2003, por falta de opção, os quilom-bolas que não tinham condição nenhuma de tirar o sus-tento da sua terra, de plantar sua rocinha, de fazer seu beiju, sua farinha, iniciaram o processo de fazer carvão usando restos de madeira que sobram após o corte do eucalipto. A princípio, eram poucas famílias, mas, com o passar do tempo, esse número foi aumentando, porque a situação degradante abrangia todas as famílias. Algumas

Page 35: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

34

políticas públicas voltadas para comunidades conside-radas carentes, tais como Bolsa Família, micro-créditos, Vale Gás, Peti [Programa de Erradicação do Trabalho In-fantil], bem como políticas nas áreas de saúde, educação, moradia, emprego, geração de renda e saneamento, não chegaram à maioria dessas comunidades.

A Aracruz Celulose, por sua vez, começou a tirar ain-da mais proveito dessa situação, desestimulando os qui-lombolas a lutar pela conquista da terra e se afirmarem como quilombolas. Uma das iniciativas da empresa foi es-timular a criação da Associação de Pequenos Agricultores e Lenhadores de Conceição da Barra (Apal-CB), com o objetivo de organizar a coleta de lenha, cedida pela Ara-cruz. Quem fizesse parte dessa associação deveria seguir alguns critérios, dentre os quais não identificar a entida-de com o movimento quilombola. Essa iniciativa, de cer-ta forma, conseguiu dividir as comunidades entre a terra e o carvão, sendo que naquele momento, por questão de necessidade, os quilombolas não tinham outra opção. Era necessário coletar lenha para garantir a sobrevivência.

Somos quilombolas por identidade e resistência e, por isso, não nos entregamos. Mesmo assim, chegaram a fazer uniformes de cores diferentes para cada comunidade e li-mitar a área de extração de lenha para cada comunidade, sendo que a comunidade “A” não poderia entrar na área da comunidade “B”. Isso já era uma forma de provocar conflitos entre os quilombolas, que sempre viveram sem muros e cercas e costumavam trabalhar de forma coletiva em suas plantações, colheitas e nos ajuntamentos para a construção de moradias. Quando descobriram que era um jogo da Aracruz Celulose, eles se organizaram. Estavam em número muito maior os que pegavam o facho (resto de madeira), chegando a aproximadamente 500 catadores. A Aracruz começou a diminuir o tamanho das áreas de co-leta, que cada vez ficavam mais longe, até mesmo em ou-tros estados. Desencadeou-se um dos principais motivos para a empresa iniciar um verdadeiro festival de prisões e criminalizações de quilombolas, chegando a prender de uma só vez cerca de cinquenta pessoas da comunidade de São Domingos, em Conceição da Barra. Em outra ocasião, foram presos e processados mais de cem quilombolas que estavam pegando o facho no município de Linhares. Em setembro de 2009, três jovens quilombolas de uma mesma família foram presos quando estavam próximos de suas casas pegando madeira de eucaliptos para fazer carvão. Eles foram abordados por policiais militares e vi-gilantes da Aracruz Celulose, foram presos em flagrante e ficaram três meses detidos sem serem julgados.

O último caso de violação explícita dos direitos huma-nos foi em novembro de 2009, quando 39 quilombolas da comunidade de São Domingos foram presos numa mega-operação ilegal da polícia militar com cerca de 130 mili-tares armados com fuzis e metralhadoras, cães, cavalos e ônibus. Um verdadeiro treinamento de guerra, onde usa-

ram os quilombolas como cobaias. Nessa “ação”, levaram presos um menor e um deficiente visual. A autuação de busca incluía dois senhores com mais de oitenta anos. A ilegalidade da operação foi confirmada no dia seguinte em nota do Ministério Público Federal do Espírito Santo.

Em meio a esses conflitos cotidianos, é que foi criado no município de São Mateus, com apoio da Aracruz Celulose e sob a liderança de um conhecido historiador do muni-cípio, o Movimento Paz no Campo (MPC). Essa foi a gota d’água para acirrar os ânimos na região. Ficamos a um passo de assistir ao retorno do Apartheid1 em pleno sé-culo XXI, com uma diferença do que aconteceu na África do Sul: aqui, o MPC conta com o apoio de negros nas co-munidades quilombolas, que ainda não compreenderam e, por isso, não aceitam a importância da titulação coletiva dos territórios quilombolas.

Os quilombolas são ameaçados e intimidados. Vivem constantemente com medo de andar sozinhos no meio das grandes plantações de cana e eucaliptos. Não podem criar soltas as poucas criações que têm, de galinhas, porcos ou cavalos. Os quilombolas vivem espremidos e, como se não bastasse o eucalipto e a cana, chegou ao norte - ou melhor, já está lá - um gasoduto da Petrobras que cortou o territó-rio ao meio.

Infelizmente, o mais precioso direito que os quilombo-las têm não é respeitado: o direito à terra, previsto no Art. 68 da Constituição Federal. Os quilombolas perderam suas terras e, apesar de todas essas dificuldades e sacrifícios, ainda estão resistindo e lutando para a realização desse direito, que até hoje lhes é negado.

“...Deixa nós livre2... Livre de processos,de criminalização, livres de eucalipto e cana, livre com e na nossa terra.”

RefeRências1- Segundo Wikipédia: Apartheid (“vida separada”) é uma palavra de origem afrikaans, adotada legalmente em 1948 na África do Sul para designar um regime segundo o qual os brancos detinham o poder e os povos restantes eram obrigados a viver separados dos brancos, de acordo com regras que os impediam de ser verdadeiros cidadãos. Este regime foi abolido por Frederik de Klerk em 1990 e, finalmente, em 1994 eleições livres foram realizadas.

2- Filme Amistad, de Stephen Spielberg/1997.

RefeRências BiBliogRáficas* Castro, Ubiratan. Ex-presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), de 2003 a 2006, em entrevista dada ao jornalista Lorenzo Aloé, publicada na Revista de História, edição dezembro de 2007.

* Fonte de pesquisa: site Wikipédia.

Page 36: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

35

Até meados do século XX, a região fronteiriça entre o Espírito Santo e a Bahia – denominada “Sapê do Norte” - era predominantemente ocupada por um campesina-to diversificado, que compreendia comunidades caboclas, pescadoras e quilombolas, que tirava seu sustento do uso do meio natural. Aqui, a rica floresta Atlântica, agrupando mata densa, lagoas e sapezais nos terrenos sedimentares terciários e áreas de inundação nas planícies de inunda-ção dos rios, apresentava a fartura suficiente para suprir essas comunidades de água, peixe, carne, frutos, madeira, ervas e raízes medicinais. A fartura estendia-se à terra: no “sertão”, a “terra era à rola”, lugar dos roçados de mandioca e criações, apropriada pelas posses que passavam de pai para filho. Essa situação favorecia o uso comum dos recur-sos oferecidos pelo meio e, assim, concretizava o território das comunidades.

Iniciada em pequena escala na década de 1920, a explo-ração comercial dessas áreas de floresta sofre um gran-de aumento a partir da década de 1950. O crescimento urbano-industrial do centro-sul do País tem fome de ma-deira, que começa a ser saciada pela exuberância da Mata Atlântica do norte do Espírito Santo. Da mesma maneira, inicia-se a produção de carvão da Acesita Energética e o plantio de eucalipto pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), que era exportado para fábricas de celulose eu-ropéias. Em meados da década de 1970, toma pulso um

A degradação socioambientalno Sapê do Norte1

Simone Batista Ferreira

O presente artigo busca analisar a gama de impactos socioambientais causados pelos plantios industriais de eucalipto do complexo produtivo de celulose, implantado no norte do Espírito Santo, pela Aracruz Celulose, em meados da década de 1970.

3vertiginoso crescimento da destruição dessa floresta, através do projeto estatal militar de extensos plantios de eucalipto para a produção de celulose, integrante do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1974).

A implantação dos plantios industriais de eucalipto da empresa Aracruz Celulose nessa região traz a transforma-ção no uso da terra, incentivada e legitimada pelo Estado através de legislações específicas, e impõe uma nova lógica de apropriação do espaço, ditada pela propriedade privada, pelo uso restrito, pela acumulação e pelo lucro. Junto dessas transformações, um manejo extremamente impactante, com o plantio da monocultura em nascentes e zonas de recarga hídrica, a retirada de matas ciliares, o estrangulamento de cursos d’água pelas estradas, o aterro de lagoas, a capina e o controle químico de pragas com elevadas doses de agro-tóxicos e herbicidas. Danificando o meio natural, a nova si-tuação passa a desestruturar o modo de vida das comunida-des locais, outrora estruturado numa forma de manejo que mantinha os ciclos reprodutivos da vida.

A busca pelo entendimento desse conflito é um amplo universo a ser desvendado, uma vez que são bem escas-sos os registros sobre essa problemática, presente em sua maior parte na memória das comunidades locais que testemunharam toda a degradação. Nesse sentido, esta pesquisa teve como fonte principal as informações colhi-das junto às comunidades locais por meio de entrevistas, depoimentos e diversos “causos” que revelam o conheci-mento de sujeitos que vivenciaram as transformações em seu lugar de vida.

Essa memória viva contrapõe-se à imagem do desen-volvimento e qualidade ambiental, difundida por este se-tor produtivo da celulose e pela imprensa que se coloca a seu serviço. Neste sentido, procuramos abrir aqui um espaço para a voz dos impactados, trazendo a proposta de uma reflexão acerca desse paradigma desenvolvimentis-ta que, de forma autoritária, massacra uma grande diver-sidade ambiental e cultural, fontes de saberes e de curas, fontes de beleza e qualidade de vida.

“Terra à rola” e modo de vida

Referindo-se ao tipo social e cultural do universo das “culturas tradicionais” do homem do campo no Brasil, Cândido (1988) utiliza o termo “rústico”, que englobaria a “cultura camponesa, cabocla ou caipira, definida pelas características do isolamento, da posse de terras, do tra-balho doméstico, do auxílio vicinal, da disponibilidade de terras e da margem de lazer”. O conceito trabalha a questão organizacional das comunidades, ou seja, a for-ma como as comunidades se organizam coletivamente para garantir sua reprodução social.

No Sapê do Norte, essa reprodução social dava-se pela predominante apropriação e uso comum dos recursos, através de práticas extrativistas nas grandes extensões de matas, brejos e rios, assim como da pequena produção das

Page 37: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

36

roças. A forma da organização produtiva baseada na posse e uso comum é definida por Almeida (1987) como sistema de posse comunal:

“O significado que a terra possui nas áreas de ocupação recente e naquelas regiões de colonização antiga, onde se verificam formas de posse comunal, remete às regras de um direito consuetudinário que prescreve métodos de cul-tivo em extensões, que podem ser utilizadas à vontade por cada grupo familiar, sem exigência de áreas contíguas ou de ter o conjunto de suas atividades produtivas confinadas numa parcela determinada. Delineiam-se domínios de cará-ter comunal, que não pertencem individualmente a nenhum grupo familiar e que são vitais para a sobrevivência do con-junto de unidades familiares, tais como: cocais, babaçuais, fontes d’água, igarapés, pastagens naturais e reservas de mata, de onde os camponeses retiram palha, talos, lenha para combustível, madeiras para construções, murtas e ou-tras espécies vegetais utilizadas em cerimônias religiosas ou de propriedades medicinais reconhecidas.” (p.47)

Nesses sertões, a “terra era à rola”, assim como os de-mais recursos que supriam a existência. A “terra à rola” configurava a disponibilidade de terras, fator fundamen-tal na organização destes grupos, e é atestada pelo depoi-mento de “Dona” Dorota, antiga moradora da comunidade do Angelin:

“– ... De primero, minha filha, vou te contar, você chegava lá no Angelin, você fazia uma casa aqui... aí você ia embora, voltava de novo, tornava a fazer lá diante, assim que era, que era do Estado... A terra era à rola!”

(Dorotéia Batista, 77 anos, em 04 de maio de 1999)

A existência dos territórios de uso comum e da “terra à rola” era possibilitada pela relativa situação de isola-mento que a zona fronteiriça entre o Espírito Santo e a Bahia mantinha em relação aos centros urbano-indus-triais, esquecida, durante um intervalo de tempo, pela valoração do capital. Esse relativo isolamento foi favo-recido, ainda, pela luta de grupos indígenas na defesa de seu território e pelo quadro natural e as dificuldades que impunha à sua penetração: a densa floresta tropi-cal úmida, entrecortada por numerosos e caudalosos rios e zonas de inundação, habitada sobretudo pelos grupos indígenas Aimorés, contribuíram para deixar o norte do Espírito Santo em situação quase inatingível pelos grandes projetos de desenvolvimento até mea-dos do século XX.

Para estes grupos diferenciados do campesinato, a ter-ra constitui a “expressão de uma moralidade, (...) algo pensado e representado no contexto de valorações éti-cas” (Woortmann, 1989), e não simplesmente um objeto de trabalho ou mercadoria. É sobre a terra que se faz o

trabalho que constrói o patrimônio da família. Neste sen-tido, as sociedades camponesas tradicionais estariam es-truturadas no tripé terra, família e trabalho, categorias relacionadas entre si e vistas como valores vinculados a princípios organizatórios próprios.

A terra é o “chão da morada”, “um espaço onde se re-produzem socialmente várias famílias de parentes, des-cendentes de um ancestral fundador comum” (Idem). É o espaço da reciprocidade, princípio moral onde a prática da troca de tempo responde à satisfação das necessidades de trabalho. A troca articula os elementos terra, trabalho e alimentos, que expressam uma relação também moral entre os homens e deles com a natureza. No uso da terra, o trabalho dá-se como valor ético, construindo a família enquanto valor.

Enfocando as comunidades do Sapê do Norte, cabe es-tender o entendimento das sociedades camponesas, rús-ticas ou tradicionais para o uso comunal e extrativista de espaços e recursos naturais, visando a subsistência do grupo. Estas comunidades são extrativistas na sua ori-gem, tendo na floresta tropical úmida e no mar a base de sua sobrevivência. Araçá, cambucá, caju, pitanga, goi-ti, jaca, paca, tatu, capivara, traíra, robalo, piau, morobá e outros alimentos nativos da floresta formavam a mesa local, complementada pelo peroá, pescadinha, cação, su-ruru e outros alimentos da água salgada, pelas criações domésticas de porco e galinha, pela batata, quiabo, abó-bora, pimenta, coco e, principalmente, o aipim e a man-dioca, cultivados nas pequenas roças itinerantes envoltas pela imensa floresta. Madeiras, fibras e cipós eram uti-lizados na produção de armadilhas de pesca e caça, em utilitários como jacás, samburás, esteiras, redes de pesca, e na construção de moradias, através da técnica do estu-que. Ervas e raízes medicinais, junto das benzedeiras e parteiras, constituíam a medicina local, transformando as plantas coletadas em chás, xaropes, unguentos, pomadas, pós, óleos e banhos, combinando potencial farmacológico com a fé, resultante do sincretismo religioso entre os cul-tos de origem afro-indígena e as práticas cristãs do meio rural. A maior parte da subsistência era, assim, fartamen-te suprida através do “usufruto” do meio natural; assim, não havia grandes necessidades de compra:

“– Mas, comprava as coisas pra comer ?Umberto – Comprava !... Não, a gente só comprava mais era memo só o sal e o querosene que nóis comprava...– E o resto ?Umberto – O resto, nóis se virava por aqui memo.– Tinha bastante ?Umberto – Tinha ! Era peixe, era carne, gordura a gente quase num comprava, porque matava um capado aí de 30 quilo, você derretia e era quase meia lata de banha...”

(Umberto Batista do Nascimento,55 anos, em 27 de setembro de 1999)

Page 38: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

37

Um outro traço característico era a solidariedade como princípio organizativo. O mutirão ou “ajuntamento” era uma prática cotidiana de cooperação, solicitada por quem estivesse precisando ou mesmo oferecida pelos vizinhos, e acontecia na ocasião da derrubada de mata para abrir a roça, na fabricação da farinha, na construção das casas e farinheiras, através da técnica do barreio.

Esse modo de vida estruturava um território baseado em relações muito peculiares e um saber construído e cristalizado através dessas relações:

“O modo como os homens produzem seus meios de vida depende, sobretudo, da natureza mesma dos meios de vida com que se encontram e que trata de reproduzir. Este modo de produção não deve se considerar somente enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. É, sobretudo, um determinado modo da atividade destes indivíduos, um determinado modo de manifestar sua vida, um determinado modo de vida dos mesmos. Tal e como os indivíduos manifestam sua vida, assim são. O que são coincide, por conseguinte, com sua produção, tanto com o que produzem como com o modo como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção.” (Marx, [1974])

Configurando o território como um todo e em suas re-des de relações, esses agrupamentos se situavam ao lon-go dos vales de rios. Em algumas localidades, suas mora-dias concentravam-se ao redor de capelas e campos de futebol, lugar do encontro, concretizando as relações de vizinhança mais próximas entre as famílias. Sua inserção na sociedade mais abrangente se estabelecia principal-mente em relação à cidade mais próxima, onde se efeti-vavam as trocas comerciais. Ainda povoa a memória dos mais antigos a época em que se levava alguns produtos da roça no “lombo do animal” ou nas canoas, para serem vendidos nas cidades de Conceição da Barra e São Ma-teus: abóbora, aipim, farinha de mandioca, lenha.

Outra forma de encontro, ainda presente, acontece du-rante as festividades religiosas, seja na roça, seja na cida-de. Em homenagens aos santos, em festas entremeadas pelos cultos religiosos cristãos e pelas “brincadeiras” do Reis de Boi, do Baile de Congo de São Benedito “Ticum-bi”, do Jongo e do Samba. É o tempo da festa presente, do encontro marcado ano a ano, do relembrar os antepas-sados idos, do culto aos santos. É o momento de reviver parentes da região, das cidades e do “sertão”, que vêm prestigiar a festa e, mais uma vez, reafirmar sua memória e traços de identidade.

A “brincadeira” do Ticumbi preenche grande parte do espaço lúdico e sagrado. Bernadete Lyra (1981) afirma que o Ticumbi faz parte do universo banto das conga-das e tem como círculo geográfico ritualístico a cidade de Conceição da Barra, a povoação de Santana, a zona

do Sapê do Norte, além das povoações de Campinas e Barreiras, situadas às margens do Rio Cricaré:

“São Mateus, incluindo a população de Barra, atual município de Conceição da Barra, em que se localiza o ritual do Ticumbi, era o maior centro de escravos do Espírito Santo. (...) Os descendentes desse enorme contingente negro habitam o interior dos municípios de São Mateus e Conceição da Barra. Vivem em roças onde cultivam mandioca, conservando hábitos próprios herdados dos antepassados e integrando uma imensa comunidade negra onde todos são parentes e/ou compadres, concentrando-se na região rural. Dessa comunidade negra sai o Ticumbi.” (p.25 e 32)

Assim como outras manifestações culturais afro-brasilei-ras, o Ticumbi também não consiste na adaptação passiva do africano escravizado à nova referência cultural que se im-põe, mas é fruto de um processo concomitante de assimila-ção e resistência, atestando a “continuidade e reelaboração de um complexo cultural básico negro em confronto com a prática religiosa do colonizador” (Lyra, 1981). Constitui um auto poético e musical tocado ao som de pandeiros e viola, onde dois reis africanos – o Rei de Congo e o Rei de Bamba - duelam em versos, embaixadas e espadas para ver quem faz a festa para São Benedito:

“Reis de Bamba é reis valente, não tem pena da pobreza, Só pensa em violência,só por conta da riqueza.Reis de Congo está brigandopra defender São Benedito,Tá pegando sua bandeira pra levar lá pro Egito.Reis de Bamba está dizendo:‘Eu quero ver quem é bonito’, Ele vai topar parada se pegar São Benedito.Reis Bamba e seu vassalo,eu quero ver sua jornada,Se você diz que não tem medo,comigo tu vai topar parada.”

(Baile de Congo do Ticumbi do Congado – Entrada de Contra-Guia e Versos, 2001)

O Rei de Congo, sempre vencedor, batiza o Rei de Bamba:

“Por certo o rei de Congo, personificando aquele que na própria história da África foi chamado ‘rei cristão’, retém os signos brancos católicos. Curiosamente, seu direito de fazer a festa de São Benedito decorre do fato de ser ele ‘o rei mais velho’. Valorizado segundo a pertinência de uma cultura branca, o rei de Congo tem sua prioridade afirmada através de um traço cultural negro. Após vencer a ‘guerra’, o rei de Congo se apressa em batizar o inimigo. Assim como os senhores se apressavam em batizar os escravos chegados

Page 39: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

38

da África. O rei de Bamba submete-se ao batismo com seus guerreiros”. (Lyra, 1981:93)

São Benedito é quem recebe grande parte da devo-ção no Sapê do Norte. O santo negro é compreendido como o que ajuda os mais desfavorecidos, no espelho de sua história de cozinheiro que, longe dos olhos da nobreza da Idade Média, doava comida aos pobres. São Benedito e seus devotos possuem forte proximidade e as relações entre eles não se dão por intermédio da “imagem”. A “imagem” é o santo, que tem dono e mo-radia. A relação de devoção a São Benedito é retrata-da pelo texto do Baile de Congo. O pedido de ajuda ao “santo milagroso” dá-se, ao mesmo tempo, numa certa horizontalidade, quando os devotos chamam sua aten-ção para o sofrimento que vivem, num tom de cobrança e ressentimento:

“Eu vivo sempre sofrendo,eu vivo sempre sofrendoSão Benedito, meu santo,São Benedito, meu santoMe ajuda, São Benedito,Me ajuda, São BeneditoSerá que vós não tá vendo? Será que vós não tá vendo?”

(Baile de Congo de São Benedito de Conceição da Barra.Mestre Tertolino Balbino, 2005)

Da mesma maneira, esta forma de manifestação cultu-ral abre espaço para as críticas tecidas a respeito de con-jecturas locais:

“O grande culpado são vocês / que aquela floresta plantou / De cana-de-açúcar e eucalipto / O povo da terra expulsou / E vocês vão morrer de fome / Ou comer erva daninha / Por que raiz de cana-de-açúcar nem eucalipto / Não dá pra fazer farinha / Nem tão pouco criar gado / Porcos e muito menos galinha.”

(Baile de Congo de São Benedito de Conceição da Barra - Embaixada do Secretário do Rei de Congo, 2007)

Além da religiosidade que acompanha as “brincadei-ras”, vinculadas aos rituais católicos, outras eram caracte-rísticas do Sapê do Norte, como a Cabula – que tinha o seu ritual realizado nas matas - ou Mesas de Santo – cujos ri-tuais ainda são realizados nos terreiros. Na Mesa de San-ta Maria, Mesa de Santa Bárbara e Mesa de São Cosme e Damião, os santos cristãos são cultuados conjuntamente com entidades como caboclos, pretos velhos e povos da água. A incorporação das entidades visa realizar traba-lhos de limpeza espiritual e outros pedidos. Os rituais são feitos a partir de orações da igreja e pontos de terreiro, referentes a um santo ou entidade. Da mesma maneira,

algumas plantas são utilizadas em banhos de descarrego, defumação e benzimentos.

Essas construções culturais afro-brasileiras reforçam a existência de um território negro no Sapê do Norte, constituído por várias comunidades2:

Tabela 1: Comunidades negras rurais do Sapê do Norte

Segundo Lyra (1981), a existência destas comunida-des testemunham uma história de escravidão africana e de aquilombamento na região:

“Toda a história do negro no Espírito Santo está salpicada de quilombos, mocambos e insurreições.(...) Ligada longo tempo ao território de São Mateus, de onde se desmembrou em 1833, Conceição da Barra até hoje deve sua produção agrária aos negros que, quer pelas constantes fugas durante a escravidão, quer pela fixação agrária em seu território após a Abolição, permaneceram no interior, ao longo dos peque-nos afluentes do Rio Cricaré e do Rio Itaúnas, principalmente

Page 40: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

39

na região conhecida como região do Sapê. (...) as condições propícias ao aquilombamento e, sobretudo, o retorno aos mo-delos negros tribais após a libertação muito contribuíram para a taxa atual da população de cor, uma das mais elevadas do estado.” (p.28, 30 e 31)

“Vocação Madeireira”Até o início do século XX, o norte do Espírito Santo exi-

bia grandes extensões de densa floresta tropical. Embora a região guardasse o que havia de melhor em Mata Atlân-tica, a indústria madeireira localizada no Rio de Janeiro e São Paulo utilizava apenas o pinho-de-riga importado da Letônia, Lituânia e Estônia (Medeiros, 1999). A peroba-do-campo, proveniente de Campos, no Rio de Janeiro, foi a primeira espécie de madeira nativa a substituir as ma-deiras importadas: era madeira de troncos retos, uma das mais bonitas da Mata Atlântica e servia para vários ser-viços. Essa descoberta estimulou as serrarias do Rio de Janeiro a saírem à procura de “reservas” da peroba.

Inicia-se, então, uma nova forma de valorização desse território de fronteira, ditada pelo capital. Na época, o governo do estado do Espírito Santo preocupava-se com sua efetiva ocupação, uma vez que existia o temor que a Bahia ocupasse a região. Desse modo, são definidas as primeiras políticas de exploração madeireira, através das quais concediam-se extensas áreas de floresta para a ex-ploração privada, que em troca deveria traçar um plano de ocupação. Num primeiro momento, nesse modelo de exploração da floresta, os rios eram utilizados como vias de escoamento das toras de madeira, que eram amarra-das umas às outras como jangadas, até chegarem à foz. Dos portos, em toras ou serradas em tábuas, eram envia-

das para outros estados e até mesmo países. Este mode-lo de exploração repete-se nos rios Itaúnas, Cricaré, São Domingos e ao longo do Vale do Rio Doce.

Além de efetivar a demarcação da fronteira, essa for-ma de exploração da floresta é incentivada pela fome de madeira trazida pelo crescimento urbano-industrial do centro-sul do País no Pós-Guerra (Becker, 1973), que co-meça a ser saciada pela exuberância da floresta tropical do norte capixaba, através da exploração de algumas es-pécies, como a peroba (Paracotema peroba) e o jequitibá (Cariniana sp.). Para a efetivação da exploração, é neces-sário criar as condições de penetração no território, onde o extermínio indígena, a construção de estradas, da ponte sobre o Rio Doce e, posteriormente, da BR-101, constituí-ram-se os principais vetores.

A exploração de algumas espécies dá lugar à substitui-ção da floresta pela extensa monocultura do eucalipto. A partir da década de 1960, as zonas planas dos Tabuleiros Terciários ocupados pela floresta, majoritariamente locali-zadas nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, foram transformadas em plantios industriais de eucalipto para produção de celulose. Cabe citar que, nessa época, algumas destas áreas serviam à produção de carvão vege-tal para siderurgias (Acesita Energética) - e de eucaliptos para exportação e produção de celulose (Companhia Vale do Rio Doce). No entanto, nesse momento, a continuidade da destruição da floresta passa a ser realizada em verti-ginosa escala pela motosserra e pelo trator de esteira, o “correntão”, símbolo do desmatamento. Sua intensificação pode ser testemunhada pelos dados a seguir, que eviden-ciam a profunda alteração no uso da terra verificada nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus:

Tabela 2: Uso da terra (estabelecimentos) Conceição da Barra – 1960 a 1996

1960 1970 1975 1980 1985 1996

Lavoura permanente 771 589 140 352 290 265

Lavoura temporária 1.449 1.201 606 432 316 296

Pastagem natural 658 630 693 418 241 286

Pastagem plantada 860 925 54 211 50 74

Matas naturais 1.467 732 191 268 113 226

Matas plantadas 213 14 5 9 8 26

Terras em descanso 36 90 66 120

Terras não-utilizadas 482 605 307 142 199 32

Irrigação 8 2 9

TOTAL 1.753 4.696 2.032 1.924 1.292 781

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Page 41: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

40

Gráfico 1: Uso da terra (estabelecimentos) – Conceição da Barra – 1960 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Tabela 3: Uso da terra (área/ha) – Conceição da Barra – 1950 a 1996

Gráfico 2: Uso da terra (área) – Conceição da Barra – 1950 a 1996

Page 42: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

41

A partir desta série de dados, pode-se observar que hou-ve um grande decréscimo do número de estabelecimen-tos com lavouras permanentes e temporárias, enquanto estas últimas tiveram um aumento em área - o que pode estar relacionado com o plantio da monocultura do eu-calipto, de grande extensão, mas concentrado em poucas propriedades. Os estabelecimentos com matas naturais tiveram uma grande diminuição em seu número e área. Enquanto em 1960, as matas naturais estavam presentes

em 83,68% deles e ocupavam 55,82% da área do municí-pio, em 1996, elas haviam sofrido uma queda vertiginosa de 54,75% no número de estabelecimentos e de 42,95% na área ocupada, estando presente em apenas 28,93% dos estabelecimentos e ocupando 12,87% da área do muni-cípio. Quanto às “matas plantadas”, sofreram redução no número de estabelecimentos e aumento na área.

Vejamos agora os dados referentes ao município de São Mateus:

Tabela 4: Uso da terra (estabelecimentos) – São Mateus – 1960 a 1996

Gráfico 3: Uso da terra (estabelecimentos) – São Mateus – 1960 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1960, 1970, 1975,1980, 1985 e 1996

A partir desta análise, podemos observar que as la-vouras permanentes tiveram um aumento no número de estabelecimentos e na área ocupada, enquanto as lavou-ras temporárias tiveram queda no número de estabeleci-mentos e em sua área. Quanto às áreas de matas naturais, que ocupavam 81,08% dos estabelecimentos e 48,78% de área, tiveram uma grande redução, estando presentes em 35,81% dos estabelecimentos, onde ocupam 11,15% da área

do município. Quase metade dos estabelecimentos rurais de São Mateus perdeu suas áreas de matas naturais, e as que ainda existem ocupam uma pequena área, muitas vezes restrita às obrigatórias reservas legais. Quanto às “matas plantadas”, novamente sofreram redução no nú-mero de estabelecimentos e aumento na área, o que in-dica o crescimento dos plantios industriais de eucalipto – equivocadamente chamados de “matas plantadas”.

Page 43: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

42

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Gráfico 4: Uso da terra (área) – São Mateus – 1950 a 1996

Tabela 5: Uso da terra (área) – São Mateus – 1950 a 1996

A diversidade de milhares de hectares de floresta foi destruída para dar lugar ao deserto verde dos eucaliptos

Page 44: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

43

Estes dados revelam que o crescimento da área ocupa-da pela monocultura do eucalipto se dá sobre as terras outrora ocupadas, principalmente, pelas matas e lavou-ras, que correspondiam aos espaços de uso das comuni-dades locais. A perda das terras de cultivo e da floresta significou a perda de alimento, a perda da água, a perda de medicamentos, a perda da terra de uso comum para o uso do monopólio, a perda, enfim, das condições de sus-tentabilidade de um modo de vida.

lógicas diversas, territórios sobrepostosOs grandes plantios com fins silviculturais no Bra-

sil tiveram forte impulso através do Programa Nacional de Papel e Celulose, integrante do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), elaborado pelo governo Geisel em 1974 e que tinha por metas a ampliação do consumo interno e da exportação da celulose e do papel. Segun-do Magaldi (1991), a Política Florestal que se implantava constituiu o “divisor de águas” na história do setor flores-tal brasileiro, primando por um planejamento estratégico da produção através de ações que:

“(...) vão desde as concepções sobre as diretrizes políticas gerais, legislações específicas e disposições administrativas, passando pelo planejamento do cultivo e das etapas de produção, estudos e ações ligados ao controle de custos, viabilização financeira e operacional de fontes de geração de energia e de infraestruturas ligadas ao transporte, abastecimento industrial, estocagem de matérias-primas e redes de comercialização, pesquisa básica e aplicada sobre espécies mais adequadas à utilização econômica e sua padronização, assim como no desenvolvimento de processos, técnicas e materiais, tanto no âmbito do manejo florestal como no plano de transformação industrial”. (p.95)

Esse momento conjugava o interesse privado das em-presas, o apoio do Estado e as proposições de órgãos in-ternacionais como a FAO (agência da Organização das Nações Unidas para a alimentação e agricultura), que preocupados com a geração de excedentes desses recur-sos estratégicos para o uso industrial, a partir da década de 1960, passaram a subsidiar programas de expansão da produção florestal em países como o Brasil, onde havia condições ecológicas favoráveis para o rápido crescimen-to das florestas, disponibilidade de terras, abundância de mão-de-obra barata e políticas econômicas de governo que privilegiavam o setor. O Estado brasileiro consolidava seu apoio através da criação de órgãos oficiais de fomen-to e fiscalização dos plantios, de legislações específicas e normas fiscais de incentivo ao setor, “associando prote-ção/conservação/expansão de maciços florestais de ma-neira tão intensa e amparada oficialmente como qualquer país de economia planificada” (Magaldi, 1991:95).

O extenso leque de leis de incentivo aos “refloresta-mentos” inicia-se com a Lei 5.106, de 02 de setembro de 1966, que é considerada o marco inicial dessa legislação específica, ao determinar em seu Artigo 1°, que as “impor-tâncias empregadas em reflorestamento e florestamento poderão ser abatidas ou descontadas nas declarações de rendimentos de pessoas físicas e jurídicas residentes ou domiciliadas no Brasil [...]”.

Dalcomuni (1990) alerta, entretanto, que esse incen-tivo já tinha sido iniciado com o Novo Código Florestal (Lei 4.771, de 15 de maio de 1965), que embora expres-sasse certa preocupação preservacionista com as flo-restas nativas – através da definição de áreas de pre-servação permanente, por exemplo, apoiava a formação dos plantios homogêneos de árvores para o consumo das empresas que utilizavam essa matéria-prima e já atribuía a isenção de impostos para seus projetos, ren-das e área territorial. No mesmo caminho, em 1967 é

Page 45: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

44

criado o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Flo-restal (IBDF), órgão governamental que tinha como objetivo coordenar todas as atribuições referentes à exploração e comercialização da madeira, bem como ao plantio de árvores e à proteção das florestas. O IBDF nasce com a função de administrar os incentivos fiscais ao reflorestamento e acompanhar os projetos florestais. Dessa forma, além dos instrumentos jurídicos criados, criava-se também uma estrutura administrativa que impulsionava os projetos de reflorestamento.

A política de incentivos é ampliada com a criação do

Fundo de Investimentos Setoriais (Fiset) em 12 de de-zembro de 1974, através do Decreto-Lei nº 1.376. O Fi-set seria alimentado pelas importâncias descontadas do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas, a serem aplicadas em empreendimentos florestais. Essas impor-tâncias passaram a ser depositadas em conta específica do Banco do Brasil e só poderiam ser movimentadas após aprovação dos projetos pelo IBDF.

Toda essa política de incentivos fiscais ao refloresta-mento transparece no crescimento vertiginoso da área dos plantios industriais de eucalipto (Dalcomuni, 1990:108).

Tabela 6: Plantios industriais de árvores executados pela indústria brasileira de celulose e papel, e ainda existentes no final da década de 1980 (área - ha)

Segundo Goldenstein (1975), nessa época, as principais empresas do setor no País eram:

- Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) - e suas sub-sidiárias, a Florestas Rio Doce S/A e a Docemade, que tinham a atribuição de captar incentivos. A CVRD, uma das maiores reflorestadoras do País, tinha como projetos a ex-portação de cavacos de madeira para indústrias de celulo-se no exterior e a produção de celulose destinada à expor-tação. Em 1974, a CVRD tinha 56 mil hectares no Espírito Santo e Minas Gerais, 15 mil hectares na zona do Rio Doce e 300 mil hectares no médio vale do Rio Jequitinhonha;

- Flonibra Empreendimentos Florestais S/A, formada em 1974 mediante associação da CVRD com a Japan Brazil Paper and Pulp Resources Development Co. (JBP), com ati-vidades localizadas no Espírito Santo e sul da Bahia e metas de produção de três milhões de toneladas de cavacos e 800 mil toneladas de celulose anuais;

- Cenibra, resultante também da mesma associação acima, mas com atividades em Minas Gerais, cuja fábrica possuía, em 1975, capacidade para produzir 759 tonela-das de celulose diárias;

- Jari Florestal e Agropecuária, com 1,5 milhão de hec-

Page 46: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

45

tares contíguos ao Rio Jari, nos estados do Amapá e Pará, com a produção de gmelina arbórea e pinus em unidades combinadas de serrarias, fábricas de compensados, cha-pas, celulose e papel;

- Plantar – Planejamento, Técnica e Administração de Atividades Rurais Ltda., formada em 1967 no município de Itapeva (SP) e que, em 1974, dispunha de 85.773 hectares;

- Aracruz Celulose S/A, que surge em 1972 como su-cessora da Aracruz Florestal S/A, numa junção de vários grupos acionistas: BNDE (25,90%), Cia. Souza Cruz In-dústria e Comércio (25,29%), Fibase (14,72%), Grupo Bil-lerud (6,07%), Grupo Lorentzen (5,08%), Vera Cruz Agro-florestal S/A (3,37%), Grupo Moreira Salles (2,63%), e os restantes 391 acionistas, como o Grupo Oliver Araújo, a Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO), Para-napanema S/A, Refinaria União e outros.

Relatos orais afirmam que a chegada do eucalipto no extremo norte do Espírito Santo é datada das décadas de 1950 e 1960, com os objetivos de exportação de cavacos e produção de carvão para siderurgia, através das empresas Vale do Rio Doce e Acesita Energética. Em sua ocupação, estas empresas foram seguidas por outras de menor por-te, como a Ouro Verde, Tecniflora, Reflorestadora Cricaré e Brasil Leste Agroflorestal, cujas propriedades de terra e capital foram transferidas à Aracruz Celulose S/A.

No mesmo ano da criação do IBDF, a Aracruz Florestal inicia sua produção no município de Aracruz, visando a ex-portação de cavacos para países produtores de celulose. Em 1972, é iniciada a construção da primeira fábrica da Ara-cruz, que passa a expandir seus plantios aos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, visando a produção de celulose para exportação.

A escolha dessas duas localidades foi atribuída a al-guns fatores favoráveis, como a topografia dos Tabuleiros Terciários, favorável à mecanização, a dinâmica climática e a proximidade do Porto de Vitória. No entanto, ambas as localidades constituíam territórios étnicos ocupados de forma ancestral e não se legitimavam pela lógica da propriedade privada da terra-mercadoria, mas sim pela apropriação comum da terra como sustentação da vida.

O município de Aracruz era parte do território Tupini-quim, que se estendia do sul da Bahia ao Paraná. A partir da década de 1960 passa também a ser território Guara-ni, povo indígena que chega do sul do País em busca da “Terra Prometida” e é acolhido pelos Tupiniquim. Quan-to a São Mateus e Conceição da Barra, constituíam terri-tórios de antigos agrupamentos negros rurais, oriundos dos “tempos da escravidão” nas fazendas de exploração de madeira e produção de farinha de mandioca. Assim, em ambos os territórios, a ausência de documentação de propriedade da terra facilitava a especulação imobiliária e a grilagem, consolidando o processo de territorializa-ção do capital através da expropriação das comunidades, que se consolidou por meio de mecanismos de coerção e

ameaças que intimidavam os moradores locais, estimu-lando um intenso processo migratório para as cidades locais e outros centros urbanos maiores, como a capital do estado.

Além da política de incentivos, o Estado legitima essa nova forma de apropriação e uso da terra através da transformação das terras de uso comum em terras pri-vadas ou “devolutas”, com posterior negociação com as empresas de celulose. Na época da entrada da Aracruz Celulose no Sapê do Norte, o Estado passou a exigir dos moradores o requerimento de posse das terras. Para a demarcação da terra, era necessário possuir recursos para o agrimensor e cartório; portanto, poucos tiveram condições de efetivá-la. Através da demarcação, o re-querimento representava a garantia de propriedade para as famílias, mas, por outro lado, implantava a lógica e a realidade da propriedade particular sobre o antigo território de uso comum.

Os objetivos de assegurar a implantação da nova lógi-ca de propriedade vinculam-se diretamente ao projeto estatal de desenvolvimento da exportação da celulose, uma vez que as áreas não solicitadas pelos moradores locais seriam passíveis de uso para esse fim. Não sendo consideradas juridicamente como de uso comum, mas como “devolutas”, essas terras passavam a adquirir o potencial de mercadoria. As estratégias utilizadas pela empresa iam da demarcação forjada à falsa informação, das ameaças à sedução de compra. Como “mensageiros” da transação comercial, a Aracruz Celulose contratava pessoas nascidas nas comunidades – como Pelé (nome verdadeiro, Benedito Braulino), que convenceu várias famílias negras rurais a vender suas terras à empresa – , e outros figurantes trajados de autoridade militar e exercendo o poder da ameaça e coerção, como o tenente Merçon. Desta forma, a perda dessas terras, através da venda forçada, grilagem ou abandono, possibilitou a es-truturação do novo território do capital. Como testemu-nha Domingos Camillo:

“Dominguinho – Não tinha eucalipto, não. E aí, o que que acontece? Veio um grimensor aí, um tal de Valzinho, e passou a perna em todo mundo aí, sabe.– Veio de onde?Dominguinho – Veio da cidade de São Mateus. Ele que mediu as terra, pra fazer os documento das terra pra Aracruz, sabe. Então, esse pessoal do Angelin aí, tudo eles, a terra deles ia até a estrada, da linha que era igual ao do meu avô, né, e hoje eles só ficaram com um pedacinho, né. Esse cara, ele entrou lá ao tempo que muito deles num tinha documento, tinha um Incra, uma coisa assim que eles pagavam, e esse cara, era Valzinho, veio como agrimensor e foi medindo as terra, foi medindo as terra e cortou as terra do pessoal tudo no meio aí.– O que ele falava, esse Valzinho ? Ele chegava medindo as

Page 47: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

46

terras pra que?Dominguinho – Pra Aracruz.– Eles falavam que a terra já era da Aracruz?Dominguinho – Falavam que já era da Aracruz. E eles pegavam. Esse cara, esse cara ele vendeu as terra toda, né. Ele vendeu pra Aracruz as terra toda. O pessoal ficou com esse pedacinho de terra foi porque a Aracruz é que deixou. Mas eles tinham a área toda comprada.– Então ele requereu do Estado...Dominguinho – Ele requereu e vendeu, e assim tem documento falso pra caramba nesse negócio. É porque essa área do meu avô, entende, é uma área de herdeiro, da minha avó, da minha bisavó, aquela coisa toda, né. Então, é... ele com documento, né”.

(Domingos Camillo, 41 anos, em outubro de 1999)

A territorialização das atividades produtivas da Aracruz Celulose se faz através da imposição de uma nova lógica de apropriação do espaço, ditada pela propriedade privada, pelo uso restrito, pela acumulação e pelo lucro. Junto dela, o comportamento e manejo extremamente impactantes da monocultura em larga escala produz a danificação do meio natural e passa a desestruturar o modo de vida das comu-nidades locais, outrora estruturado numa forma de manejo que mantinha os ciclos reprodutivos da vida.

Assim, para os que ainda ficaram, a perda de suas terras e floresta trouxe inúmeras dificuldades de ali permanecer, como a situação de “imprensamento” imposta pelos exten-sos talhões de eucalipto na terra concentrada nas mãos da empresa Aracruz Celulose. Esse processo de concentração fundiária pode ser visualizado pelos dados abaixo:

Tabela 7: Grupos de Área Total (estabelecimentos) Conceição da Barra – 1940 a 1996

Gráfico 5: Grupos de Área Total (estabelecimentos) Conceição da Barra – 1940 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Page 48: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

47

Quanto ao número de estabelecimentos, podemos ob-servar que houve uma diminuição geral do número ab-soluto de estabelecimentos, com destaque aos estabeleci-mentos entre 10 e 100 hectares, que se encontram equiva-lentes em número aos estabelecimentos entre 100 e 1.000 hectares. Quanto à área ocupada, verifica-se um grande decréscimo relacionado aos estabelecimentos com até 1.000 hectares, acompanhado por um vertiginoso cresci-mento da área dos estabelecimentos com 10.000 hectares e mais. Ou seja, o número e a área dos estabelecimentos com até 1.000 hectares sofreram diminuição, enquanto cresceu a área dos estabelecimentos com áreas maiores de 10.000 hectares.

Em termos percentuais, em Conceição da Barra temos 91,11% de pequenos estabelecimentos (até 100 hecta-res) ocupando 10,17% da área do município, enquanto os grandes estabelecimentos (acima de 1.000 hectares) somam 1,31% e ocupam 75,48% da área do município. Estes dados revelam uma altíssima concentração fun-diária ditada, principalmente, pela monocultura do eu-calipto – que corresponde às maiores propriedades de terra, seguida pela monocultura da cana-de-açúcar. Os pequenos estabelecimentos encontram-se “imprensa-dos” em meio a essas monoculturas e correspondem aos sítios familiares e aos cinco assentamentos rurais exis-tentes no município.

Gráfico 6: Grupos de Área Total (área) - Conceição da Barra – 1940 a 1996

Tabela 8: Grupos de Área Total (área) – Conceição da Barra – 1940 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Gráfico 6: Grupos de Área Total (área) - Conceição da Barra – 1940 a 1996

Page 49: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

48

Os dados referentes a São Mateus revelam a diminuição do número de estabelecimentos entre 10 e 100 hectares, enquanto os menores de 10 hectares e os situados entre 100 e 1.000 hectares praticamente se mantêm. Em ter-mos de área, há diminuição da ocupada pelos estabeleci-mentos entre 10 e 100 hectares, acompanhada pelo cres-cimento dos estabelecimentos acima de 10.000 hectares, seguidos pelos situados entre 1.000 e 10.000 hectares.

Em São Mateus, temos 88,90% de pequenos estabelecimen-tos (até 100 hectares) ocupando 21,01% da área do município, enquanto os grandes estabelecimentos (acima de 1.000 hec-tares) somam 0,79% e ocupam 49,7% da área do município, e

os médios estabelecimentos (de 100 a menos de 1.000 hecta-res) somam 10,31% e ocupam 29,26% da área do município. Embora menos acentuada do que no município de Concei-ção da Barra, a concentração fundiária permanece no mu-nicípio de São Mateus, ditada também pelas monoculturas do eucalipto, da cana-de-açúcar e das pastagens. O número de pequenos estabelecimentos de São Mateus aproxima-se do número existente em Conceição da Barra, contudo a área por eles ocupada em São Mateus equivale ao dobro da área que ocupam em Conceição da Barra. Estes dados derivam da existência de um maior número de comunidades campone-sas e de assentamentos rurais no município de São Mateus.

Tabela 9: Grupos de Área Total (estabelecimentos) – São Mateus – 1940 a 1996

Gráfico 7: Grupos de Área Total (estabelecimentos) São Mateus – 1940 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Tabela 10: Grupos de Área Total (área) – São Mateus – 1940 a 1996

Fonte: IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985 e 1996

Page 50: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

49

A concentração fundiária produzida pela cadeia produtiva da celulose, incentivada e legitimada pelo Estado a partir da década de 1960, concretizou-se enquanto uma outra forma de relação com o meio e a natureza. Conduzida pela lógica da alta produtividade, que impõe condições como a velocidade e a homogeneidade, essa nova relação produtiva vai ocasio-nar uma gama de alterações negativas no substrato natural, que irá interferir diretamente nas formas de existência e de organização da vida das comunidades do Sapê do Norte.

Degradação socioambiental do sapê do norteA agroindústria de celulose no Espírito Santo e no

sul da Bahia concretizou-se sobre o território original-mente ocupado pela Mata Atlântica, floresta tropical que outrora cobria toda a faixa litorânea brasileira, com cerca de quatro milhões de hectares, e hoje constitui-se em remanescente com menos de 8% de sua área origi-nal. A cobertura florestal existente no estado do Espíri-to Santo também sofreu uma drástica redução.

Gráfico 9: Evolução do desmatamento no bioma Mata Atlântica

Fonte: Ipema. Vitória, março de 2004

No norte do estado, a partir da década de 1960, a des-truição da floresta era realizada pelo “correntão”, en-grenagem que opera com dois tratores de esteira e uma grossa corrente, que agressivamente derruba as árvo-res e destrói a fauna, conforme testemunho de mora-dores locais:

“ – Como é que ela começava a trabalhar no terreno ?

Caboquinho – Ah, o primero que veio foi o desmatamento, né.

– Mas os terrenos que a Aracruz comprou, tinham mata também, tinha terreno de mata nativa, de floresta ?

Caboquinho – Mata nativa ! Tinha ! Mata nativa ! Quebrava, quebrava tudo ! Até hoje eu sinto uma falta, uma revolta tão grande... Você passava daqui pra Conceição da Barra, aqui já você passava por cada mata na beira dessa estrada ! ... Mata purinha ! Aí, ela pegava com o correntão e

quebrava tudo ! E a gente, quando eles chegava assim, era paca, era tatu, era veado, era tudo, os bicho ficava entocado tudo, fazia dó, preguiça ! Um dia, tava num lugar, cheio de ave chorando ! Malvadeza ! Eu vi isso demais aí, ó ! Mas o que que vai fazer, né?

– E essas madeiras da mata, ela fazia o que com elas ?Caboquinho – Queimava.”

(Ângelo Camillo, 61 anos, em 05 de maio de 1999)

A destruição da floresta tropical de Tabuleiros para dar lugar aos plantios homogêneos de árvores e em larga esca-la degradou a elevada diversidade biológica local e o lugar da vida dessas comunidades. Além da perda de alimentos e utensílios, a destruição dessas espécies significou a perda de um vastíssimo banco genético cujo potencial permane-ce pouco conhecido.

Essa diversidade foi testemunhada pelo pesquisador Augusto Ruschi (1976), que listou 240 espécies de árvores

Page 51: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

50

de grande porte, 478 espécies de aves, 70 de mamíferos, 41 de répteis, 31 de anfíbios e 37 espécies mais significa-tivas de insetos. Dados do Instituto de Pesquisas da Mata

Atlântica (Ipema, 2004) atualizam essas pesquisas acer-ca da diversidade biológica, ressaltando a importância do endemismo no bioma Mata Atlântica como um todo.

Tabela 11: Diversidade de espécies e endemismos presentes no bioma Mata Atlântica

Fonte: Ipema. Vitória, março de 2004

Tabela 12: Biomassa animal produzida em diferenciados ambientes (kg/ km²/ ano)

A diversidade faunística de determinado ambiente pode ser mensurada conforme a biomassa animal produzida. Sua diminuição, após a implantação da monocultura do eucalipto em larga escala, pode ser ilustrada pelos dados oriundos de pesquisa feita por Augusto Ruschi (1976). Ao

comparar a produção de biomassa animal em ambientes diferenciados, o pesquisador concluiu que a biomassa ani-mal produzida pelo ambiente da monocultura do eucalipto chega a ser bem inferior à biomassa produzida pelo am-biente dos desertos:

Fonte: Ruschi, Augusto. Boletim do Museu de Biologia “Prof. Mello Leitão”. Santa Tereza, 1950 e 1976

A redução da biodiversidade como um todo pode também ser verificada pela diminuição do manto orgânico outrora formado com os detritos da floresta. O manto orgânico é res-ponsável pelo retorno de nutrientes ao solo e pelo armaze-namento de umidade superficial. Ao comparar a floresta na-tiva com a monocultura do eucalipto, Ruschi afirma que na floresta nativa, o manto orgânico varia de 60.000 a 90.000 kg/ha/ano, enquanto que no eucaliptal chega somente a 15.000 kg/ha/ano, o que reflete a diminuição da diversidade bioló-gica e o empobrecimento dos solos.

Ainda em relação à fertilidade do solo, a monocultura do eucalipto solapa a produtividade biológica através de dois processos, mais acentuados em regiões áridas. Um deles é a grande necessidade de nutrientes que o eucalipto requer para seu crescimento rápido; o outro refere-se às propriedades alelopáticas presentes em

“retardadores químicos” de suas folhas, que são tóxi-cos para os organismos e microorganismos – como a minhoca e outros decompositores – responsáveis pela porosidade e permeabilidade do solo, pela decomposi-ção da matéria orgânica e o consequente retorno dos nutrientes minerais, como discutem Vandana Shiva e J.Bandyopadhyay (1991):

“Os escassos resíduos folhosos do eucalipto não são efetivamente transformados em matéria orgânica decomposta porque o eucalipto é tóxico para os organismos do solo que constituem as cadeias alimentares de decomposição. (...) Através dessa poluição invisível do solo, os plantios de eucalipto destroem os recursos vivos que são elementos fundamentais da cadeia alimentar que mantém o ciclo de nutrientes.”(p.91)

Page 52: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

51

A perda de fertilidade do solo é observada empirica-mente pela comunidade local:

“Caboquinho – ... Eu fico olhando, depois que plantar o eucalipto, vai passar um tempo que o eucalipto não vai dar mais, e o que vão fazer com essa terra nativa, hein ? Vai chegar um ponto que a terra não vai resistir mais, né ?– Por que você acha ?Caboquinho – Ah, ela cansa, né. Será que vai ficar abandonada ?... Ah, mas deve de criar uma outra coisa, porque é muita terra, né ? Muita terra ela tem... O que eu sei é que vai chegar num ponto que o eucalipto não vai dar mais, não! Já tem partes por aí mesmo que ele já tá fraco.É, já tem.– Como é que fica fraco ?Caboquinho – Ele já não engrossa mais. Só vara. Então, já tá começando, é sinal de que já tá começando, mesmo.”

(Ângelo Camillo, 61 anos, 05 de maio de 1999)

A vida biológica do solo também é destruída pela gran-de quantidade de agrotóxicos e herbicidas utilizados no manejo florestal do eucalipto, principalmente no período de plantios e rebrota, quando a planta ainda é jovem. O uso desenfreado de insumos químicos pelas monocultu-ras contamina o solo, destruindo microorganismos, inse-tos e raízes responsáveis por sua aeração, porosidade e decomposição dos detritos orgânicos. Dessa forma, mais fertilidade natural é perdida, uma vez que a contaminação do solo inviabiliza a formação de húmus.

Um outro impacto no solo é de ordem estrutural, au-mentando a sua suscetibilidade à erosão: seus troncos lisos, combinados a uma cobertura restrita – menos estratos que a floresta tropical –, contribuem para que a precipitação atinja o solo mais intensamente e mais rapidamente. Aumentando a erosão do solo, produz-se o assoreamento dos cursos d’água. Esse processo ero-sivo foi intensificado ainda mais pelas obras estruturais construídas para dar sustentação à implantação da mo-nocultura e seu escoamento: aterros, estradas e a substi-tuição das pontes de madeira por manilhamentos.

“Umberto - A terra que eles araram, aí a chuva batia e acabou com o leito dos córrego.– Por que ?Umberto – Porque jogou o barro tudo dentro do córrego.– Eles tiraram a mata que tinha em volta dos rios ?Umberto – Tiraram. Pois é, aí, o barro descia, né, e vinha indo, foi indo, foi secando, foram fazendo aterro no meio dessa estrada aí, como era tudo ponte antigamente, nessa estrada pra chegar na Barra, esses correguinho era tudo ponte. Então, o córrego passava por baixo, né. Aí jogaram

aquele buero, né, fazia aquele buraquinho, jogava terra pra cima do córrego, tampou.– De quando é esse aterro aí ?Umberto – Ah, isso aí, isso aí tem uns... 20 e poucos anos, já, que acabaram com eles, essas... as pontezinha.– Mas foi a Aracruz que fez o aterro ?Umberto – Prefeitura, né, e a Aracruz veio e... a Aracruz tirou as ponte, veio e jogou terra.”

(Umberto Batista do Nascimento, 57 anos, em 27 de setembro de 1999) Os impactos oriundos desse manejo somam-se ao com-

portamento biológico das espécies plantadas na escala da monocultura nos curtos ciclos de corte exigidos pelo agro-negócio, evidências estampadas no meio físico e reforça-das pelos depoimentos das comunidades locais. A vivência de “Seu” Osmar testemunha a morte de quase todos os ca-torze rios e córregos que atravessavam a estrada entre a Vila de Itaúnas e a sede de Conceição da Barra. Em 1999, apenas o Córrego São Domingos, na localidade da comuni-dade de Linharinho, continha água.

“– E quando o eucalipto chegou, como é que foi que ele entrou na terra?Seu Osmar - ... Depois que o eucalipi chegou, acabou com esses mato, acabou até com as comida dos boi... eles araram tudo para plantar o eucalipi. E o eucalipi, o eucalipi derrotou com nóis do lugar porque... comeu as água toda. Você não vinha aqui no tempo que não existia o eucalipi, senão você ia ver, você comia peixe aí à vontade. Hoje o pobre não acha nem uma piaba pra comer! Que acabou as água, só tem o canal do rio... Não pega nada ! (...)– E os córregos aqui ?Seu Osmar – Os córrego, tudo tinha água. Depois com os eucalipi, os eucalipi formaram mesmo, do jeito que você tá vendo, tem eucalipi de São Mateus aqui, é tudo eucalipi, e aí foi diminuindo, foi secando os córrego, foi secando as lagoa...– Tinha lagoa ali, seu Osmar ?Seu Osmar – Tinha... tinha lagoa nesses lugar aí, tem lagoa. Aqui no Angelin tinha... quantas lagoa ? Uma... duas lagoa ! Quando do tempo de enchente, era bocado botar canoa pra passar pr’aqui, que ninguém podia passar.(...) Então, aí depois, depois disso as água, as água quando chove aqui, num dá mais pra encher nem lagoa nem córrego... os córrego virou terra. Nóis saía daqui pra Barra, às vezes saía tarde de casa e ia tomando banho nesses córrego. Hoje, só se vê água na igrejinha. Se tiver com sede, só se vê água na igrejinha... Num tem córrego nenhum. Era uma beleza, aqui era uma beleza, agora... Agora, agora eu num sei o que vai acontecer... com os que tão nascendo, tão crescendo...”

(Osmar Souto, 76 anos, em 03 de maio de 1999)

A vivência da seca produzida nos ecossistemas onde o eucalipto foi plantado em larga escala e em curtos perío-dos de corte é reforçada por algumas pesquisas. Shiva et

Page 53: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

52

all (1991) afirmam que o eucalipto possui sistemas radi-culares bem abrangentes que são responsáveis por sua “estratégia esclerofítica”:

“Esta estratégia esclerotífica do eucalipto, de dar continuidade a altas taxas de transpiração mesmo durante períodos de tensão temporária da umidade, é um perigo ecológico, pois permite ao eucalipto crescer sob condições nas quais outra vegetação, com necessidades hídricas similares, pararia de demandar os escassos recursosde água.” (p.74)

Esta argumentação é reforçada por Augusto Ruschi, ci-tado por Medeiros (1995), segundo a qual o “consumo mo-numental de água” realizado pela monocultura do euca-lipto é responsável pela deficiência hídrica verificada nas localidades do Espírito Santo, onde se estabelece:

“Como já explanei em outras palestras, a fisiologia de algumas espécies, como o Eucalyptus saligna, o mais plantado no Espírito Santo, exige um consumo monumental de água. [...] a partir do terceiro ano de vida, uma planta desta espécie consome por ano 19,6 milhões de litros de água, e um hectare com 2.200 árvores consome 49,6 bilhões de litros de água, dando esse total uma equivalência pluviométrica de 4.000 mm de chuva por ano. Se considerarmos que na região dos eucaliptais da Aracruz Celulose e da CVRD ou Flonibra a precipitação anual chega em média a 1.400 mm/ano de chuva, a diferença necessária de mais de 2.000 mm é retirada do solo e subsolo, tanto pela função osmótica como pela função de sucção das raízes.” (p.60)

A forma de se medir esse elevado consumo de água do eucalipto está na mensuração dos índices de evapotrans-piração, processo realizado pelas folhas e suas superfícies internas, após a incidência direta da luz do sol, refletida e re-irradiada pelo solo e toda a vegetação circundante. A eva-potranspiração indica que a árvore está realizando seu cres-cimento através da fotossíntese, com produção de biomas-sa e oxigênio. Quando há decréscimo do conteúdo hídrico, produz-se o murchamento e “cessação da ampliação celular, fechamento dos estômatos, redução da fotossíntese e inter-ferência nos muitos processos metabólicos básicos”. (Shiva et all, 1991:73)

Nesse sentido, a observação do crescimento rápido e ininterrupto da monocultura do eucalipto, mesmo duran-te períodos com carência de chuvas, indica que o consumo hídrico continua a ser realizado pela planta jovem, seja no nível mais superficial do solo ou em profundidades maio-res, o que sustenta a argumentação sobre as “estratégias esclerofíticas”. Dessa maneira, ao ser plantado ao redor de lagoas e rios, o eucalipto não desempenha o mesmo papel de proteção das matas ciliares e passa a consumir

a umidade local de forma intensa, principalmente na sua fase de crescimento.

O papel que as lagoas desempenham no equilíbrio hí-drico dessa região merece ser destacado. Ora apresentando seu espelho d’água, ora caracteristicamente apresentadas como muçunungas, as “lagoas” são formas hídricas comu-mente encontradas nestas regiões planas de sedimentação terciária e quaternária e correspondem a áreas de nascen-tes, afloramento do lençol freático e armazenamento de umidade. Funcionando como esponjas que retêm umidade, são “zonas de recarga hídrica”, quando alimentam os cur-sos d’água, ou “zonas de descarga hídrica”, quando rece-bem o excesso de umidade de uma área de maior altitude ao redor. Ao ser plantado ao redor destes corpos d’água, o eucalipto não desempenha o mesmo papel de proteção das matas ciliares e da muçununga e passa a consumir a umi-dade local de forma intensa, principalmente na sua fase de crescimento. Esse processo é agravado pelos curtos ciclos de corte, uma vez que essa periodicidade não permite que a árvore adulta diminua seu consumo hídrico nem devolva umidade ao ambiente.

Da mesma maneira que comprometem a quantidade de água no Sapê do Norte, os plantios industriais de eucalipto para a produção de celulose vêm danificando a qualidade dessa água. O uso indiscriminado de insumos agroquímicos escoam para os leitos dos rios, córregos e lagoas, contami-nando suas águas, matando animais e envenenando traba-lhadores. Uma grande maioria dos moradores abandonou o uso da água dos córregos e os poços e cacimbas despontam como principais fontes de água consumida na região.

“– Mas , Luzinete, fala pra mim... eles borrifavam veneno aqui, no eucalipto? Botavam veneno aqui e ia pro rio ?Luzinete – É. Eles bate muito... A gente tem medo porque eles joga muito veneno nesse ocalipto, né. Aí a gente tem medo porque muitas vezes, num chove e aquele veneno fica acumulado na terra. Quando a chuva bate, aquela água corre tudo pra esses lugar... que era os córrego que secô. Aí enche, mas a água fica com uma cor feia, ocê num pode tomar banho, ocê num pode lavar uma roupa, ocê num pode usar aquela água.– Pra nada... Luzinete – Pra nada, aquela água num serve pra nada. Tem a água lá no rio, mas pra gente é mesmo que não ter.”

(Luzinete Serafim Brandino, aproximadamente com 30 anos,03 de maio de 2000)

Outros depoimentos denunciam danos à saúde, como o de Jorge Francelino, 61 anos, que, após um ano e dois meses de trabalho na empresa Plantar – que presta ser-viços de manejo dos plantios à Aracruz Celulose S.A. –, foi demitido por apresentar queixas relacionadas ao seu es-tado de saúde, totalmente comprometido pelo manuseio intenso de agrotóxicos. Seu longo depoimento afirma que

Page 54: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

53

esse manuseio acontece durante nove horas diárias e que mesmo os funcionários recém-admitidos se queixam de dores de cabeça e tonturas, chegando mesmo a desmaiar no campo.

Estas evidências empíricas, presentes e de memória, questionam o discurso e a propaganda das empresas produtoras de celulose. Cada testemunho de um mora-dor, cada relato de suas vivências doces e amargas, jogam por terra as certificações de qualidade ambiental dessas empresas e questionam o paradigma hegemônico do de-senvolvimentismo, tão ufanado pelos índices do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. O extermínio da vida se dá em todos os níveis, incluindo o humano, e em nome do de-senvolvimentismo econômico e concentrador, estabelece-se a mono-cultura, a não-diversidade biológica, cultural, social e econômica.

Considerações finais“Aruê, Ticumbi, aruê, Ticumbi,O que fez este povo de errado ?O que fez este povo de errado assim?”

(Baile de Congo de São Benedito de Itaúnas, 2001)

Os versos indagam ao santo onde está o erro desse povo. Erro que, talvez, justificaria tantas perdas. O antigo território da fartura hoje é caracterizado pela escassez: perdeu-se a floresta, perdeu-se a água, perdeu-se o ali-mento farto e a vida da roça; perdeu-se os medicamentos e as práticas comuns.

Fortemente amparado pelo Estado, consolidou-se um macro projeto regido pela lógica capitalista sobre um ter-ritório outrora gerido pela ética das comunidades tradi-cionais, camponesas ou rústicas, que utilizavam a terra e outros recursos naturais como o sustentáculo de sua vida cotidiana. As terras de uso comum foram forçadas a se transformar em propriedades privadas. O ambiente físico, diretamente vinculado à manutenção do modo de vida lo-cal, foi exaurido e esgotado pela nova lógica de produção.

Este trabalho objetivou abrir espaço para a voz e saberes dos impactados, que conjuntamente a outros saberes oriun-dos de pesquisas, vêm dar visibilidade à contestação do dis-curso e imagem veiculados massivamente pelas empresas de celulose. Os relatos aqui expostos retratam um momento de um processo ainda em curso.

É de fundamental importância que essas questões conquistem seu espaço na academia, na imprensa e no senso comum, colocando em pauta a discussão das ma-zelas geradas pela lógica autoritária da acumulação de uns poucos e a exclusão e expropriação da maioria. E também alimentando a esperança acerca das possibili-dades práticas de reversão desses impactos sofridos pe-las comunidades extrativistas, quilombolas, camponesas, pelos povos indígenas e demais povos, e da reconstrução de seus territórios de vida digna.

RefeRências 1- Artigo elaborado a partir da Dissertação de Mestrado em Geografia Humana intitulada Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim de territórios comunais no extremo Norte do Espírito Santo, orientada pelo Prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira e defendida em maio de 2002 na Universidade de São Paulo. 2- Informações oriundas de levantamentos de campo, com destaque à participação na pesquisa Territórios Negros do Sapê do Norte. Koinonia e FASE, 2003.

RefeRências BiBliogRáficasAlmeida, Alfredo Wagner Berno de. 1987/88. Terras de preto, terras de santo, terras de índio – posse comunal e conflito. In: Revista Humanidades n.º15, ano IV. Brasília: UnB, pp. 42-48.

Baile de Congo de São Benedito – Ticumbi de Conceição da Barra. Mestre Tertolino Balbino. 2005 e 2007.

Baile de Congo de São Benedito – Ticumbi do Bongado. Mestre Ângelo Camilo. 2001.

Baile de Congo de São Benedito – Ticumbi de Itaúnas. Mestre João de Deus Falcão dos Santos. 2001.

Becker, Bertha K. 1973. O Norte do Espírito Santo– região periférica em transformação. In: Revista Brasileira de Geografia nº 35 (4). Rio de Janeiro.

Candido, Antônio. 1964 [1988]. Os parceiros do Rio Bonito (8.ª ed.). São Paulo: Livraria Duas Cidades.

Dalcomuni, Sônia Maria. 1990. A implantação da Aracruz Celulose no Espírito Santo – principais interesses em jogo. Dissertação de Mestrado em Economia. Rio de Janeiro: UFRRJ.

Goldenstein, Léa. 1975. Aspectos da reorganização do espaço brasileiro face a novas relações de intercâmbio – uma análise geográfica do reflorestamento e da utilização da madeira por indústrias de celulose. Tese de Livre-Docência em Geografia. São Paulo: USP.

IBGE. Censos Agropecuários 1940, 1950, 1960, 1970, 1975, 1980, 1985, 1996. Municípios de Conceição da Barra e São Mateus.

Ipema. 2004. Conservação da Mata Atlântica no Espírito Santo. Vitória.

Lyra, Maria Bernadete Cunha de. 1981. O jogo cultural do Ticumbi. Dissertação de Mestrado em Comunicação. Rio de Janeiro: UFRJ.

Magaldi, Sérgio. 1991. Ação do Estado e do grande capital na reestruturação da atividade econômica: o cultivo florestal e a cadeia madeira-celulose/ papel. Dissertação de Mestrado em Geografia. São Paulo: USP.

Marx, Karl. 1970. La ideologia alemana (5.ª ed.). Montevidéu/Barcelona: Ed. Pueblos Unidos/ Ed. Grijalbo.

Medeiros, Rogério. 1995. Ruschi – o agitador ecológico. Rio de Janeiro: Record.“Ciclo da peroba inicia o desbravamento do Norte”. In: Jornal A Gazeta. Vitória, 11.07.99.

Projeto Egbé – Pesquisa Territórios Negros do Sapê do Norte-ES. 2002 e 2003. Coordenação: Koinonia e Fase.

Ruschi, Augusto. 1950. Boletim do Museu de Biologia “Prof. Mello Leitão” 1. Santa Tereza.

Ruschi, Augusto. 1976. O eucalipto e a Ecologia. Boletim do Museu de Biologia “Prof. Mello Leitão” 44, série Divulgação. Santa Tereza.

Shiva, Vandana e Bandyopadhyay, J. 1991. Inventário ecológico sobre o cultivo do eucalipto. Tradução Ana Lúcia da Costa Pereira. Belo Horizonte: Comissão Pastoral da Terra.

Woortmann, Klaas A.A.W. 1989. Com parente não se neguceia: o campesinato como ordem moral. In: Anuário Antropológico 87. Brasília: UnB/ Tempo Brasileiro.

Page 55: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

54

Antes do sol nascer no dia 8 de março de 2006, Dia In-ternacional da Mulher2, duas mil integrantes da Via Cam-pesina3 ocuparam o viveiro de mudas da empresa Aracruz Celulose S.A (Arcel), no Rio Grande do Sul4. Em uma ação relâmpago, com vendas de cor lilás sobre os rostos, elas destruíram milhares de mudas de eucalipto. O movimento teve como objetivo chamar a atenção da opinião pública brasileira para os impactos produzidos pela monocultura de eucalipto e pinus sobre o povo e os ecossistemas lo-cais. Tais atividades de monocultivo são conduzidas por empresas multinacionais do agronegócio. As mulheres camponesas relacionaram o deserto verde, causado pelos eucaliptos, à aridez e à morte e explicitaram que, se por um lado, diversidade e fertilidade são fatores que possibi-litam a vida, a monocultura e a desertificação representam a morte. “No Dia Internacional da Mulher de 2006, o Brasil assistiu — em parte, sem entender — a uma batalha his-tórica. A batalha entre a fertilidade e a aridez. [...] Entre a dureza do lucro sem escrúpulos e a ternura das mães”5.

A estratégia político-discursiva das mulheres da Via Campesina buscou sensibilizar a opinião pública brasilei-ra para a gravidade da ampliação de plantios homogêneos em larga escala sobre terras brasileiras. A Aracruz Celulo-se – que se instalou naquele estado sem respeitar princí-pios de justiça socioambiental – tem sido alvo há décadas de denúncias dos movimentos que atuam no campo.

Exatamente um ano depois, as ruas da cidade de Vitória, capital do Espírito Santo, foram ocupadas por 1.500 pesso-as, na sua grande maioria mulheres camponesas e urba-nas, brancas e negras, indígenas e quilombolas. Novamen-te no Dia Internacional da Mulher, as capixabas romperam o silêncio, marchando e gritando, em coro, pelo fim da vio-lência, pelo direito dos povos indígenas e quilombolas ao

Agronegócio e a vida das mulheres1

Gilsa Helena Barcellos e Simone Batista Ferreira

4seus territórios tradicionais e por justiça socioambiental. Tendo em vista que os problemas e os desafios são muitos e comuns às mulheres do campo e da cidade, mulheres de diferentes lugares denunciaram a degradação ambien-tal e a miséria produzidas pelo projeto agroindustrial da Aracruz Celulose e pelo avanço do agronegócio em terras capixabas e brasileiras. Elas levantavam a bandeira da re-forma agrária e da soberania alimentar.

No mesmo dia, São Mateus, cidade localizada no norte do Espírito Santo, foi palco de um corajoso ato organizado pela Via Campesina. Setecentas pessoas, a maioria mu-lheres, marcharam pelas ruas da cidade até a BR 101 (ro-dovia que atravessa a cidade) com o objetivo de impedir o tráfego de caminhões que transportavam eucalipto para a fábrica da empresa localizada no município de Aracruz. O norte do estado concentra grande parte da monocul-tura de eucalipto da Aracruz, localizada nos municípios de Conceição da Barra (cerca de 70% do município), São Mateus (cerca de 50%) e Aracruz (cerca de 50%).

Na manhã do dia 11 de setembro de 2007, cerca de mil pessoas, integrantes do Movimento de Mulheres Cam-ponesas (MMC) e da Via Campesina, em mais uma ação contra o deserto verde, trancaram o portão do viveiro de eucalipto da Votorantim Celulose e Papel, em Capão do Leão, próximo à cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Essa ação deu continuidade àquela ocorrida em 8 de mar-ço de 2006: “O objetivo era denunciar o monocultivo de eucalipto no estado, a consequente destruição ambiental, o desinteresse dos governos pela agricultura campone-sa e a produção de alimentos e chamar a atenção para a necessidade da reforma agrária”6. Segundo as mulheres que conduziram a ação, os impactos do monocultivo no Rio Grande do Sul já são visíveis: a grande seca no sul do estado, que possui a maior área de produção de eucalipto; as alterações bruscas de temperatura; o desaparecimento do bioma Pampa, levando à perda de uma biodiversidade extraordinária; a diminuição da produção de alimentos; o ressecamento de fontes hídricas; a poluição e a dimi-nuição do fluxo de água nos rios; e o enfraquecimento do solo. Algumas cidades, para contornar a escassez, pas-saram a racionar o consumo de água. Nas regiões mais atingidas pelo monocultivo, têm surgido vários casos de alergia e doenças de pele, devido ao alto uso de agrotóxi-co pelas empresas.

As ações das mulheres não pararam por aí. Dois anos depois, na manhã de 09 de março de 20097, 1.300 mulhe-res da Via Campesina do Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro ocuparam o Portocel, porto de exportações da Arcel, localizado em Barra do Riacho, mu-nicípio de Aracruz, no Espírito Santo.

De acordo com as participantes, a ação objetivou, mais uma vez, denunciar a concentração de terras da empresa usadas para plantio de eucalipto para exportação, prejudi-cando a soberania alimentar. Também denunciaram o re-

Page 56: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

55

passe de recursos públicos do Estado brasileiro, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e So-cial (BNDES), para a Arcel.

“A empresa se apropria de recursos públicos, mas não gera nem garante empregos, destrói o meio ambiente e não contribui para o desenvolvimento nacional... Para salvar a Aracruz da falência, o governo repassou, via BNDES – com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) - R$ 2,4 bilhões para o grupo Votorantim comprar ações da Aracruz. Mesmo com os recursos de amparo ao trabalhador, a empresa não garante emprego e já demitiu mais de 1.500 trabalhadores terceirizados. O caso é uma demonstração de que os interesses das empresas privadas se sobrepõem aos interesses do povo brasileiro. [...] é uma das principais representantes do agronegócio no País. Concentra cerca de 300 mil hectares de terras, sendo parte devolutas, ou seja, pertencentes ao Estado, com monocultura de eucalipto. Boa parte dessa área foi tomada de comunidades indígenas, quilombolas, pescadoras e ribeirinhas. Nessa mesma quantidade de área poderiam ser assentadas cerca de 20 mil famílias, gerando empregos no campo e produção de alimentos

para as famílias assentadas e para a população das cidades onde a empresa está instalada”.

(Silvestre, 2009, p. 1)

Também foi incluída na lista de denúncias das mulheres o uso abusivo de água pela empresa.

“Para cada hectare de eucalipto plantado são consumidos 49 bilhões de litros de água. A fábrica de Barra do Riacho, ao lado do porto ocupado, consome 248 mil metros cúbicos de água por dia, equivalente ao consumo diário de 2,5 milhões de pessoas”.

(Silvestre, 2009, p. 1)

Demonstrando o alto nível de organização dessas mu-lheres, ocorreram, ao mesmo tempo, diversos outros eventos: ocupação e corte de eucalipto numa área de propriedade do Grupo Votorantim, no Rio Grande do Sul; ocupação e corte de cana numa área da Cosan [tercei-ra maior produtora de açúcar no mundo e quinta maior produtora global de etanol], em São Paulo; e ocupação do prédio do Ministério da Agricultura, em Brasília, por cerca de 800 delas.

Inúmeras mobilizações reuniram camponeses, quilombolas, mulheres e indígenas na denúncia sobre os impactos das monoculturas de eucalipto

Tam

ra G

ilber

tson

Page 57: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

56

O grito das mulheres ecoou nacionalmente: “O mundo precisa de mais comida e menos papel: mulheres camponesas em luta contra o agronegócio, pela reforma agrária e sobera-nia alimentar”.

“A Aracruz Celulose se orgulha de ser a ‘líder mundial na produção de celulose branqueada de eucalipto.’ Ela responde por 27% da oferta global do produto, produzindo cerca de 3,2 milhões de toneladas anuais de celulose. Destas, 96% são para exportação, 41% para Europa, 34% para América do Norte e 21% para a Ásia. 77% da produção é para papel higiênico, papel toalha, lenço, papel absorvente e outros produtos descartáveis. Isso significa que a extração de recursos naturais está voltada para atender ao mercado externo e não gera impactos positivos para a economia local. Importante ressaltar ainda que a indústria de papel e celulose não paga todos os impostos previstos na legislação porque possui isenção fiscal. A Lei Kandir isentou os produtos primários destinados à exportação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS).”

(Via Campesina; Fetraf, 2009)

A empresa Votorantim foi incluída na lista de empre-sas denunciadas pela Via: “Suas barragens desalojam as comunidades [...], ela lucra com a venda de energia en-quanto possui energia subsidiada de empresas estatais. Além disso, demite trabalhadores enquanto se dá ao luxo de aumentar seu capital, com a compra de novas empre-sas, através do apoio do Estado.”

(Via Campesina; Fetraf, 2009)

As mulheres reafirmam também que os monocultivos – com destaque para a cana, a soja e o eucalipto – causam

um acentuado desequilíbrio ambiental e sérios problemas sociais, gerando graves consequências para o planeta: “É um modelo que se apropria da água, da terra, das fontes de energia, dos minérios, das sementes e de toda biodi-versidade. Exerce controle das sementes, utiliza transgê-nicos e agrotóxicos, que provoca o aumento de doenças, especialmente em mulheres e crianças” (Via Campesina; Fetraf, 2009). Denunciam, ainda, que o plantio de árvores homogêneas avança sobre a floresta Amazônica e sobre o que resta da Mata Atlântica, do Cerrado e do Pampa.

As sequentes manifestações no Dia Internacional da Mulher, tendo como tema central o monocultivo de ár-vores homogêneas no Brasil, sinalizam a voracidade da globalização hegemônica sobre o meio ambiente e - par-ticularmente - sobre as mulheres, cuja reação político-organizativa tem se desenvolvido nas diversas escalas: local, nacional e global. São movimentos que, cada vez mais, vêm tomando corpo e incomodando os defensores da lógica hegemônica de desenvolvimento. A partir das suas experiências e organizações, as mulheres explici-tam que o atual modelo de desenvolvimento é desumano e não interessa à maioria da população brasileira. Elas afirmam que é preciso pensar em outros modos de viver e valorizar aqueles existentes que já compreendem que o ser humano é parte da natureza e não algo externo a ela.

1- A batalha entre o lucro e a defesa da vida: Aracruz Celulose x mulheres indígenase quilombolas

A partir do início da década de 1960, o Estado brasi-leiro abraçou fortemente a proposta de modernização do seu território e estimulou a entrada de projetos agroin-dustriais que buscavam matéria-prima farta e mão-de-obra barata. Foi no auge do discurso desenvolvimentista da ditadura militar, mais especificamente em 1967, que a empresa Aracruz Florestal S.A. foi implantada no Espírito Santo, instalando-se no norte do estado, sobre as terras dos povos indígenas Tupiniquim e Guarani. “Em 1975, o território indígena de 40.000 ha já se encontrava devasta-do e prestes a ser transfigurado numa extensa monocul-tura de eucalipto pelo empreendimento agroflorestal de grande porte e pioneiro no Brasil8”.

“É meus primos. Quando a Aracruz chegou aqui e botou eles pra fora... ela chegou invadindo. Quando ela chegou, eles ficaram com medo e largaram a terra deles e foram embora. Ela chegou com um monte de tratô e passou em cima das casinhas deles. As casinhas era de palha, barreada, que eles morava. Aí, tem os meus primos que têm vontade de retornar pra dentro da aldeia de novo.”

(Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)

A partir daí, o processo de invasão começou a se expan-dir: terras devolutas, situadas ao norte do estado, foram

As mulheres estiveram presentes em todas as frentes de luta

Tam

ra G

ilber

tson

Page 58: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

57

ocupadas, chegando, em 1974, ao Sapê do Norte, lugar onde vivem comunidades negras rurais, hoje reconheci-das como remanescentes de quilombos.

“Localizado nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, na região norte do Espírito Santo, o território quilombola denominado Sapê do Norte faz jus ao seu nome, já que a planta nativa chamada sapê representa a metáfora vegetal da resistência histórica das comunidades negras rurais desde a luta contra o sistema escravista à longa trajetória de práticas de sua erradicação na região, que culmina [...], com a implementação do projeto agroindustrial de monocultura de eucalipto da empresa multinacional Aracruz Celulose, favorecida pelo regime das terras devolutas, pela política governamental de incentivos fiscais e de investimentos do BNDES, consolidando a ação de um Estado como produtor de sua invisibilidade.”9

A produção de celulose da empresa Aracruz teve início

com a construção da primeira fábrica, em 1978, sobre a aldeia indígena Macacos. Nesse período, o ambientalista Augusto Ruschi10 já tornava pública a sua preocupação com o desenho de um grande deserto verde em territó-rio capixaba. Desde então, a Aracruz Celulose inaugu-rou três fábricas de celulose para exportação. A empresa produz, na atualidade, cerca de 2,3 milhões de tonela-das/ano de celulose. A maior parte é enviada a países do Norte e destinada à produção de papéis descartáveis.

A chegada desse projeto agroindustrial foi devastadora para as populações locais: de quarenta aldeias indíge-nas, hoje só restam sete11. De acordo com informações quilombolas, das 10.000 famílias que compunham as cem comunidades12 que existiam na região norte do Espírito Santo, restam apenas 1.200, distribuídas entre aproxi-madamente 32 e 37 comunidades, cercadas pelo euca-lipto e pela cana-de-açúcar para a produção de álcool13. Além da perda do território, essas populações tiveram que conviver, nesses últimos anos, com perdas culturais e ambientais, que geraram um alto grau de desorgani-zação social e de identidade. Hoje, o Espírito Santo tem cerca de 200 mil hectares de eucalipto14. Desse total, 128 mil hectares, segundo a Aracruz Celulose S.A., são terras próprias15. O restante refere-se a áreas fomentadas e de outras empresas.

Devido à forte concorrência no mercado mundial de celulose, para se constituir como uma empresa compe-titiva e garantir seu espaço, a Aracruz Celulose precisa constantemente ampliar sua capacidade produtiva. Por isso, tem investido muito na compra de terras em vários estados brasileiros. Adquiriu, inclusive, as plantações de árvores e a fábrica de celulose da Riocell, no Rio Grande do Sul. Em 2005, a empresa inaugurou, no sul da Bahia, juntamente com a transnacional finlandesa-sueca Stora-Enso, sua quarta fábrica, denominada Veracel Celulose16.

Apesar de todos os indícios histórico-culturais da pre-sença secular de povos tradicionais na região norte do Espírito Santo, a Aracruz Celulose, para garantir a posse de seus territórios, utilizou-se da estratégia discursiva de produção da ausência dos Tupiniquim e das comunida-des remanescentes de quilombos, não lhes reconhecen-do a identidade. Os Tupiniquim são citados pela empresa como resultantes de um forte processo migratório gerado a partir da instalação da sua primeira fábrica, no muni-cípio de Aracruz, ou seja, trabalhadores – e suas famílias – que vieram em busca de emprego. Quanto aos quilom-bolas, a empresa chegou a proibir que utilizassem esse termo de identidade no processo de negociações sobre a coleta do resíduo de eucalipto – alternativa de sobrevi-vência encontrada por essas famílias, buscando driblar a escassez que lhes foi imposta.

“Hoje eles falam: ‘Ah, não tem mais quilombo’. Como não tem, se nós estamos aqui desde antes de 1888?” (Elda Maria - “Miúda”, comunidade quilombola de Linharinho)17

No caso das populações indígenas, a ação mais ousa-da da empresa foi a contratação de uma equipe técnica – mantida, espertamente, no anonimato – que realizou um estudo histórico-antropológico comprovando, segundo essa equipe, que o povo Tupiniquim18 jamais povoou a re-gião. A cartilha A questão indígena e a Aracruz constituiu uma das peças da campanha publicitária que divulgou fragmentos do estudo realizado.

“O que tá acontecendo agora é assim: as pessoas estavam falando lá nos comércios que os índios não eram mais índios, como se fôssemos ladrões, e que, em qualquer lugar que a gente for, a gente ia fazer bagunça. Aí, eles falaram nos comércios, né? Muitos começou a vigiar, dizendo que os índios podia roubar alguma coisa nos supermercados, pra que os índios não roubasse alguma coisa. A gente teve discriminação também nas escolas. Os professores falavam que a gente não era índio e começavam a fazer alguns comentários, principalmente minha sobrinha. Uns tempos aí, teve discriminação nas escolas de um professor. Ela voltou para casa chorando. Aí os pais dela precisou ir lá pra conversar com eles. A discriminação é assim, muita chacota, alguma coisa assim: os pais vão lá, eles não têm como falar com índios mais velhos e, aí, eles descontam nos filhos, né? nas escolas.”

(Ângela, aldeia Tupiniquim Irajá)

O passivo social, cultural e ambiental devido às popu-lações indígenas e quilombolas é imenso. Essas popula-ções resistem. Várias ações pela retomada de seus ter-ritórios foram organizadas. Mas não só os que viveram os impactos mais diretos se mobilizaram. Segmentos da

Page 59: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

58

sociedade civil, indignados com o curso desse grande projeto e com a conivência dos órgãos governamentais, articularam-se. Hoje há uma aliança permanente entre as populações do entorno das grandes plantações e or-ganismos da sociedade civil, constituindo a Rede Alerta contra o Deserto Verde19, da qual o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM) tem sido um impor-tante aliado.

2- Histórias de vida e morte: relatos de mulheres sobre os impactos vividos“Essas perdas causaram um impacto muito grande porque elas mexem, de uma forma violenta, com a vida de todos nós, principalmente com a vida de nós, mulheres, porque nós fazemos... junto, claro, com nossos companheiros, mas a gente é que faz a vida e, aí, somos nós que tiramos nosso tempo para falar com nossos filhos, para falar da nossa história, e isso tá ficando meio vazio”.

(Olindina, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e Comissão Quilombola do Sapê do Norte)

A realidade contemporânea dos negros remanescentes de quilombos e dos índios tupiniquins e guaranis no Espí-rito Santo remonta à história da colonização brasileira: ín-dios e negros escravizados para atender aos interesses do capitalismo colonial europeu. Durante séculos, indígenas e africanos partilharam o drama da escravidão e do abuso em “território brasileiro”20. Mulheres foram violentadas e mortas. Negras foram usadas como reprodutoras de mão-de-obra escrava e como mães-de-leite. Uma história que essas populações fazem questão de não esquecer e que lhes determinou um lugar histórico de subalternidade no processo de construção da sociedade brasileira.

Paralelamente à tristeza da violência e do genocídio a que esses povos foram submetidos, escreve-se uma im-portante história de resistência nos últimos cinco séculos. A maior prova dessa resistência é a presença de indígenas e quilombolas em todas as regiões brasileiras.

Com ingredientes modernos e desenvolvimentistas, a relação entre os povos tradicionais do Espírito Santo e a Aracruz Celulose S.A. reedita a história colonial – alguns a chamariam de relação pós-colonial, ou seja, formas de dominação que caracterizaram o período colonial, reela-boradas e transportadas para a contemporaneidade – e impõe às comunidades indígenas e quilombolas perdas materiais e simbólicas irreparáveis.

Como no período colonial brasileiro, as mulheres indí-genas e quilombolas são vítimas de abuso e desrespeito. Vêem-se expropriadas dos seus saberes, lidam com a dis-persão de suas famílias, perdem os seus espaços de socia-lização: os rios, as matas, os lugares onde se realizavam os rituais de reza e as celebrações. No entanto, a nostalgia que sentem de outrora traduz-se numa imensa esperança de recuperar seu território, a biodiversidade nele antes conti-

da e recompor o modo de vida do seu povo.Os relatos e as observações a seguir não têm a pre-

tensão de abordar todos os aspectos que alteram a vida das mulheres, nem de tratá-los com a profundidade que merecem. Objetiva trazer a leitura das mulheres sobre a própria realidade, mostrando como elas têm lidado com o processo ocorrido nos últimos 40 anos. Tratam-se de mu-lheres, intencional ou descuidadamente, invisibilizadas pela história. Mulheres que têm se constituído, ao lon-go das últimas quatro décadas, em sujeitos de resistência e imensuravelmente fiéis à luta do seu povo. Este texto constitui-se numa tentativa escrita de valorizar a expe-riência das mulheres num contexto de monocultura de larga escala no Espírito Santo.

“E para nós, mulheres, foi um impacto muito forte também. Nós temos esse sentimento, esse sentimento da perda das nossa riqueza”.

(Maria Loureiro, Comissão de Mulheres Indígenas Tupiniquins e Guaranis, aldeia Irajá)

“Então, acabou com parte da nossa vida, nossa liberdade e nossa cultura, do nosso dia-a-dia, nossa saúde. Essa vinda das grandes empresas para cá acabou com tudo, tirou um pedaço de dentro da gente. É como um pedaço, como se a gente tivesse uma parte viva e outra morta, como se fôssemos vivos-mortos, né?, devido às grandes empresas, após entrarem pra cá. A gente era feliz. Agora não, a gente vive infeliz da vida. Precisamos brigar pelo que é nosso, pelo nosso território, por aquilo que eles arrancaram de nós, e com isso foi tudo, tudo que era nosso. Então, fica um protesto, né? Por conta da gente, da comunidade inteira”.

(Eni, comunidade quilombola de São Domingos)

2.1- os “tês” que tecem a vida: território, terra e trabalho“E a gente vem lutando assim, juntando com as outras 36 comunidades para lutar pelo território, pela questão das terras, que foram terras tomadas do nosso povo, dos nossos antepassados e, hoje, tá na mão da Aracruz Celulose. Então, a luta que nos une, hoje, é a expansão da eucaliptocultura dentro das nossas comunidades”.

(Kátia, Comissão Quilombola Sapê do Norte, comunidade quilombola do Divino Espírito Santo)

Historicamente, as populações indígenas e quilombolas viveram no Brasil em grandes extensões de terras com densas florestas. São populações que dependem direta-mente dos seus ecossistemas para a reprodução do seu modo de vida e estabelecem uma forma de organização comunitária em que a terra é um bem coletivo e não uma mercadoria utilizada para acumulação de bens e riquezas. São povos que recusaram a leitura moderna da separação

Page 60: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

59

sujeito-natureza e se vêem como parte dela, por isso a agressão à natureza é a agressão a eles mesmos. A terra e tudo o que está nela deve ser usado e preservado com muita responsabilidade para as atuais gerações e para as que virão. Dessa forma, e não por mera coincidência, são populações que conseguiram preservar parte importante dos seus ecossistemas até meados do século XX, quando ocorreu a chegada da empresa Aracruz Celulose S.A. ao Espírito Santo.

O conceito de território que orienta a vida desses povos diferencia-se profundamente daquele de Estado-Nação, que se hegemonizou e buscou uniformizar padrões de apropriação e de uso da terra, excluindo outras formas de organização territorial. No Brasil, só a partir da Constitui-ção Federal de 1988 foram reconhecidos os direitos dos indígenas e quilombolas aos seus territórios tradicionais (no caso do Art. 68, referente aos quilombolas, só reco-nhece o direito, mas não o regulamenta). No entanto, o fato de a Constituição ter reconhecido não garantiu, até a atualidade, que esses povos fossem protegidos das in-vestidas ferozes do agronegócio, que, cada vez mais, exige “recursos naturais” para a sua expansão.

Dados e depoimentos registram que as populações indí-genas tinham, até a década de 1960, 40 mil hectares de flo-restas de Mata Atlântica, usufruídos por quarenta aldeias, enquanto os quilombolas tinham grandes parcelas de terra divididas entre as cem comunidades21 existentes na época. A forma de organização territorial dessas populações era muito parecida22: moravam em casas distantes umas das outras, o que lhes garantia espaço para a criação de ani-mais e para o exercício da agricultura, viviam da caça e da pesca e tinham uma alta capacidade de auto-sustentação.

“Nós morávamos numa aldeia que chamava Cantagalo. Fica lá acima um pouco de Pau-Brasil... Todo o nosso trabalho a gente fazia. Plantava e colhia feijão, essas coisas tudo que a gente colhia. A gente comprava só o que precisava... Então, ali nós vivia nessa aldeia e tudo que nós queria era a mata. Essa mata, que era formada das coisas que a gente ia fazer: era gamela, era peneira, tapiti, né? Tudo isso vinha dessas matas e isso sustentava porque a gente vendia as coisas que a gente produzia, que a gente fazia. Então, também eram dos rios, era as matas, era caça, tinha muita caça, tinha muito peixe no rio. Então, era dessas coisas aí que nós vivia. Então, nossos pais cuidavam de nós, quando existia essa mata. Mas, depois que a Aracruz chegou, foi botando todo mundo pra fora e comprando por pouca coisa. Dava aquele pouquinho de dinheiro para o pessoal e o pessoal ia na conversa deles que tinha que vender. Aí, eles iam tirando logo tudo mundo, iam derrubando as casas pra fazer as plantações... Então, essa Aracruz acabou com tudo, né? Acabou com tudo que nós tinha, acabou com a nossa mata, acabou com o nosso rio, com os peixes, as caças...”

(Rosa, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

Como é relatado por Rosa, a partir de meados da dé-cada de 1960 a realidade mudou. Com a perda do ter-ritório, muitas famílias buscaram outras regiões para viver. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registra que vivem, hoje, de forma dispersa, no estado, cerca de 8.500 indígenas desaldeados, um nú-mero quase quatro vezes maior do que o daqueles que permaneceram em território indígena. No caso dos qui-lombolas, o Morro São Benedito, bairro localizado no município de Vitória, é constituído por grande parte das famílias expulsas do Sapê do Norte. Registra-se, tam-bém, em outros locais da região metropolitana, como o município de Serra, a existência de quilombos urbanos formados a partir de meados da década de 1970.

As décadas de 1960, 1970 e 1980 foram marcantes para a história ambiental do Espírito Santo. A Mata Atlântica, um dos ecossistemas de maior diversidade biológica do planeta, deu lugar a uma paisagem uniforme e triste: a monocultura de eucalipto em larga escala.

“Porque, no passado, era muito bom, né? Hoje, se andar de um lugar pra outro, a gente só vê só a água do rio poluído. A natureza, ela é muito importante, também, pra gente, né? A natureza é as matas, é tudo, é as caças, os passarinhos, é tudo, aí a gente tem que cuidar da natureza.”

(Nilza, aldeia Tupiniquim Comboios)

A extinção da maioria das aldeias indígenas e das co-

O universo feminino foi especialmente atingido pela implantação da Aracruz

Page 61: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

60

munidades quilombolas levou parte dessas populações a se aglutinar em fragmentos do território das aldeias que restaram. Outras buscaram regiões próximas para reco-meçar a vida.

“Mas eu gostaria que a gente ganhasse as terras pra oferecer coisa melhor pros nossos netos, né? Tê a roça da gente, colhê as coisas, as criação, ter mais espaço pra gente morá... é bom, né? Porque um lugar imprensado assim é muito ruim. Morá mais distante é bom pra gente tê criação dos animais, pros netos da gente e pra nós também, pra gente ficá mais à vontade. Porque é triste morá tudo embolado e não ter espaço pra nada. Que as crianças vive imprensado e a gente tem que corrê atrás deles pra não deixar eles ir pra rua. E num lugar mais distante fica melhor pra gente. É melhor que eles fica à vontade, né? Com mais terra vai melhorá muito... melhora, se Deus quisé!”

(Francisca, aldeia Tupiniquim Irajá)

“De primeiro, era assim: cada um tinha suas roças e hoje não tem como. Aí é todo mundo de mutirão. Comunitário. Alguns que têm, né, perto de casa, mas aquele pedacinho, né, que também... tudo espremido. Como ela, também, eu estava falando ali, eu tenho lá minha rocinha de abacaxi, mas, assim, se eu plantar abacaxi, não posso plantar mandioca.

Então, você tem que produzir uma coisa pra depois produzir outra. É, na mesma terra. Aí, você tem que esperar descansar, né? Tem aquele processo todo, pra poder você botar outra semente lá.”

(Cláudia, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Muita gente aqui tem vontade de vivê da terra. Tem muita gente que tá num beco sem saída, não faz nada. Nós aqui tamos muito apertado pra fazê plantação. Eu acho que tem como resgatá. Tem que ensinar nossos filhos...nossos netos... pra eles não deixar a cultura acabá. Tem que resgatá. O meu sonho é ter de novo as roça.”

(Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)

A redução dos grandes quintais produziu uma alteração nas atividades domésticas femininas. As mulheres cuida-vam das suas casas, da horta, cultivavam suas ervas para uso doméstico e medicinal e criavam pequenos animais, que também eram fonte de alimento. Seus filhos tinham espaço suficiente para brincar.

“Aquele era um bom tempo! Fazíamos muita coisa. A gente trabalhava, mas não tinha tanta preocupação como tem hoje. As mulheres tinham mais tranquilidade, até com os próprios filhos. A gente era muito mais feliz.”

(Célia, aldeia Pau-Brasil e pastora da Assembléia de Deus)

Observa-se que, para elas, o lugar da aldeia ou da co-munidade constituía-se num espaço seguro, que lhes dava tranquilidade para organizar o futuro.

“Ah, eu acho que mudou muito, porque, naquela época, que era Sapê do Norte, como eu nasci, criei e andava e sabia como era Sapê do Norte. Você chegava em qualquer lugar, você colocava uma roça. Você roçava, botava pra queimar, chamava era, de primeiro, chamava ‘ajuntamento’, né? Com todas as pessoas! Parente, amigo, tudo. Aí a gente botava uma roça, assim, em qualquer lugar aí, e era muita gente! Saía colocando roça. E agora você não tem... esses lugar, apertadinho, que você vai plantar aquele pedacinho... fica oprimido, não tem como, porque tá tudo rodado de eucalipto. Mora aquele monte de família de gente naquele lugar apertadinho! Não tem como, né? Você, pra criar... se for uma galinha, não pode, assim, criar um porco solto, um animal, que era tudo solto. Não tinha nada... as coisas que pegasse aquilo, né? Plantava de tudo naquela roça... agora, você não pode. Até pra você torrar uma farinha num forno, você não pode entrar dentro do eucalipto pra pegar uma varinha. Porque eles estão cercando. É Visel [empresa de vigilância privada contratada pela Aracruz Celulose], bota até polícia, né? Vai entrar e eles estão atrás perguntando o que que vai fazer. Se panha uma varinha, eles estão perguntando pra que é. Então, ficou uma coisa... tudo que eu tô vendo, muito diferente. Não tem nada. Até planta que se planta não presta

A chegada da Aracruz alterou profundamente as relações sociais

Page 62: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

61

mais como era antes, porque eles jogam aquele monte de veneno, aquelas coisas tudo. Por isso que as coisa estão difícil. Aí, pra mim, mudou muito porque eu conheci Sapê do Norte, no tempo da minha mãe, pequena, nós tem tanta terra aí nesse eucalipto! Eu tenho meus filho aí, não pode conseguir fazer uma casa, vive assim, pelo lugar dos outro porque tá tudo oprimido do eucalipto, porque tomou tudo, né? A gente sente com aquilo. Mudou muito, muito mesmo, pelo que eu conheci do Sapê do Norte, e o que tá agora. Minha palavra é essa.”

(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos)

O ajuntamento, relatado por Benedita, era uma prática dessas populações. As pessoas encontravam-se para se ajudar e para celebrar. As mulheres quilombolas, junto com a comunidade, escolhiam o lugar para o plantio da roça, que era feita por consórcio. Hoje, a realidade é outra: há a prática dos mutirões que busca, diante da escassez imposta, potencializar, ao máximo, o uso da terra para a agricultura. No caso dos índios, a aldeia reserva um peda-ço de terra onde é realizado o plantio. Tem direito a par-ticipar da partilha quem contribui com trabalho. É muito comum as mulheres que são chefes de família ou têm ma-ridos trabalhando fora da aldeia organizarem mutirões até o processo da colheita. Há homens que também par-ticipam. Há também algumas iniciativas individuais de plantio, mas nem sempre alcançam o resultado esperado. Além da falta de espaço, um outro problema enfrentado é a perda da fertilidade natural do solo e a desertificação, pro-duzidas pelo intenso e mau uso da terra – plantio de euca-lipto em curtos ciclos de corte e em zonas de mananciais, acompanhado pelo uso intensivo de agroquímicos.

“A situação lá em Caieiras é a mesma situação que a irmã de Pau-Brasil falou; é assim: uns anos atrás, muitos anos atrás, quando ainda era criança, lembro que a gente colhia feijão. Era um feijão diferente de hoje, porque não usava nada de químico na terra. Aquela coisa bonita mesmo! A batata, o aipim eram bem diferentes. E hoje... onde já foi tirado uma parte de eucalipto, Paulo [ela referia-se ao marido] limpou um pedaço e fez uma rocinha lá. Plantou um aipim lá e tava até com dificuldades até pra crescer a raiz. O milho que plantou lá também ficou bem pequeninho, uma coisa bem diferente do que era antes. Antes, a terra tava boa. Hoje, a terra já tá acabada por causa do plantio de eucalipto. O rio não tem mais e a terra tá bem seca.”

(Benilda, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha)

“Por causa que as plantações, hoje em dia, tudo tem que ter adubo. Que, de primeiro, não precisava você adubar terra. Hoje em dia, pra plantar qualquer coisa, tem que adubar, que a terra ficou arenosa. Já vem do eucalipto, ele tirou todas as vitaminas da terra... De primeiro, sem ter o eucalipto, a gente... parecia que até o clima mudou, dentro

da aldeia. Mudou porque até para chover... essas mudanças do eucalipto que fizeram, hoje: os rios tinha correnteza, hoje em dia fica aquele fiozinho de água. Como a gente vai poder plantar? Tem tempo que a horta precisa ficar regando ali; a terra fica seca, torrada ali. A dificuldade, hoje, pra a gente ter uma alimentação saudável, tem que plantar e adubar. Ou, então, tem que comprar no mercado, na feira, mas mesmo assim não é saudável, porque eles não vão ter tempo de ficar adubando ali, uma alimentação orgânica. Não vão ter tempo. Então, eu acho que, pra gente poder conquistar o de antes, vai ter que lutar muito, e não vai ser como antes, né? Mas, pelo menos, se a gente conseguir pelo menos a metade. Pra gente poder passar, não pra gente, pros nossos filhos, nossos netos.”

(Cláudia, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Quando não existia esse eucalipto aí, você podia plantar tudo misturado e dava! O meu pai plantava mandioca e plantava feijão no meio. Um litro de feijão plantado, ele colhia 80 litros de feijão, e era junto com a mandioca. Tirava o feijão, e a mandioca subia. Hoje, não pode. Se plantar um pedacinho de mandioca, é só mandioca. Se você plantar feijão, é só feijão. Se você misturar, um atrapalha o outro. A terra não tem mais aqueles sais minerais, vitaminas completas pra produzir tudo isso, juntos. Não tem mais como. Mudou muito. Hoje, se faz um pedacinho de roça e pronto. E não dá nem pra sobreviver.”

(Eni, comunidade quilombola de São Domingos)

Há registros históricos do século XIX referentes à grande produção de farinha de mandioca no Sapê do Norte, inicialmente realizada pela mão-de-obra escrava de grandes fazendas. Finda a escravidão, as comunidades quilombolas deram continuidade a essa produção, des-tacando-se como grandes produtoras de farinha e beiju – alimento tradicional à base de farinha de mandioca –, produtos que ainda abastecem as regiões próximas.

“Eu conto sempre assim o que a minha mãe contava: que tinha muita caça, muito peixe. Tem o rio de São Domingos, não tem mais água, não encontra caça mais. Só mesmo tatu, capivara... Peixe também acabou de vez. Se a gente quiser peixe, tem que comprar na cidade, não existe mais. Meus filhos não conhecem mais essa coisa. Primeiro, tinha mata, tinha muito sapê, que o pessoal mais velho... quem tinha gado soltava. Hoje, não existe mais. E aí vai acontecendo. Cada dia que passa tá ficando mais pior. Que essa empresa [ela refere-se à empresa Aracruz Celulose S.A.] acabou com todas coisas que tinha aqui: tinha aipim, tinha... A gente querendo encontrar as coisas que existiam, mas a gente não conhece mais. A gente fazia uma roça, plantava bananeira. Primeiro, ela ficava bonita, hoje morre e não dá um cacho de banana. Mandioca aqui acabou mesmo, era o que os meus pais

Page 63: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

62

mais usavam. Feijão, o meu pai plantou muito. Feijão, abóbora...”

(Domingas, comunidade quilombola de São Domingos)

“Ah! Falava causo e sorria, mas era muita brincadeira demais! Tinha aquela água boa, todo mundo tomava banho. Dia de calor, menino tomava banho à vontade, né? Era muito bom! Dia de quinta-feira, tudo reunia que ia ralar mandioca. Aí fazia beiju pra ir pra feira. Era pamonha, beiju de coco, beiju de massa com coco, era uma alegria, ali era mutirão, era tudo mundo ajudando o outro. Era muito bom demais! Isso tudo deixa saudade.”

(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos)

“Mas nós, quilombolas, sempre tivemos produção. Minha avó ia pelo rio de canoa pra vender farinha no porto de São Mateus. Ela tinha produção, tinha café, tinha mandioca. Então, é isso que nós temos que fazer pra que nossos filhos, nossas crianças, pra que nós tenhamos a nossa produção.”

(Olindina, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e Comissão Quilombola do Sapê do Norte)

“Antigamente, a gente vivia melhor. A gente respirava melhor, a gente produzia mel, a gente fazia beiju, adoçava tudo com mel, fazia bolo de massa de fubá, café de cana. [Hoje] nossa maior renda aqui é a produção de farinha e de beiju23. Mas isso, a renda está acabando, porque não estão conseguindo manter pra plantar mandioca. Então é isso aí, a gente tá lutando com várias pessoas, de várias comunidades, todas unidas. E o objetivo é todos lutar juntos pra conseguir essas terras.”

(Elisângela, comunidade quilombola de São Domingos)

Com a redução do território, muitas famílias tiveram que sair dos seus lugares de morada para conseguir tra-balho. Por isso, mulheres foram transformadas em em-pregadas domésticas, babás, diaristas, lavadeiras, entre

outras funções, na maioria das vezes, servindo a funcio-nários da Aracruz ou de suas empresas terceirizadas.

“Eu trabalhei muitos anos numa casa em Coqueiral24. O marido da minha patroa era funcionário da Aracruz Celulose. Eu saía a pé da aldeia e ia trabalhar na casa deles, com chuva ou com sol. Eu tinha as crianças pequenas e não tinha com quem deixar. Minha filha de oito anos é que cuidava dos mais novos. Mas eu não podia deixar de trabalhar, precisava sustentar meus meninos. Eu praticamente criei os filhos deles. Não podia cuidar dos meus direito, mas cuidava dos deles. Até hoje, quando eu encontro os meninos na rua, agora eles já são grande, eles me chamam de mãe. Se bem que já tem muito tempo que eu não vejo eles.”

(Margarida, de nome indígena Ipotyroby, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha)

“Hoje, as mulheres indígenas enfrentam mais as dificuldades, porque, no passado, elas tinham muita fartura. As mulheres indígenas ficavam em casa com seus filhos e tinha muitas plantações e se dedicavam a colher as folhas, enquanto os maridos estavam fazendo outras coisas. Tinha muita fartura. Hoje, além de não ter muito as plantações, o desemprego é muito. Hoje, para ter mais alguma coisa, a gente tá tentando, em grupos, apoios de projetos, essas coisas para enfrentar mais um pouco as dificuldades. Porque, no passado, as mulheres indígenas nem precisavam trabalhar como empregadas. Hoje, a gente tem que procurar serviço para poder ajudar a manter a casa.”

(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

“Antes, trabalhávamos só dentro da aldeia, na roça, com os filhos. A gente ia pra roça, levava os filhos, plantando mandioca, plantando milho... isso mesmo. Levava um pano grande e fazia aquela rede. Ali botava os meninos enquanto a gente limpava e plantava. A empresa, hoje, acabou com tudo isso. As mulheres, hoje, a maioria, coitadas, estão procurando emprego nas casas de famílias. Agora mesmo foi muita menina procurando emprego em Coqueiral. Antes não precisavam, porque índio tinha trabalho. Esses dias mesmo, tem minha sobrinha, ela tava falando: ‘Isso tudo por causa da empresa’. A Aracruz não dá emprego, mas tem gente que trabalha na empreiteira; mulher tem pouca... A empresa contrata os lá de fora, não contrata índio. Tem mulheres trabalhando fora, mas são só algumas, algumas são domésticas também. Domésticas ganham um salário-mínimo ou menos de um salário.”

(Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)

Segundo Maria Loureiro, da aldeia Irajá, em 2006, “... tra-balhando de doméstica tinha umas dez. Porque, por causa da demarcação, eles não contratam mais índios”. Na busca do trabalho, as mulheres lidam com a discriminação étnica.

Os impactos nos rios e lagos da região foram drásticos

Page 64: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

63

“D. Maria, de Caieiras, tava reclamando ontem, na Funai, que ela tá passando dificuldade porque ninguém quis dá emprego pra ela. E ainda dizem pros índios: ‘Vocês não precisam trabalhar’.”

(Tureta, representante local da Funai em 2006)

As mulheres indígenas contam com o atendimento da educação infantil nas aldeias, em tempo parcial, o que tem facilitado um pouco mais suas vidas. No entanto essa política não resolve o problema da sua ausência em casa.

“Hoje, aqui, a criança, a partir de 4 anos, fica na pré-escola até as 11h20. Aí, depois que saem da escola, fica com o pai ou com algum vizinho. E já quando têm meninos grandes... estuda de manhã... que tem 12 e 13 anos, aí, quando chega em casa, fica com os menores. Muitas vezes, fica com o vizinho, com parentes. Aqui não tem creche, só tem a pré-escola que é pra criança de 4 a 6 anos. Aí fica difícil pra algumas também.”

(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

O fato de as mulheres serem forçadas a se distanciar mais cedo dos seus filhos para trabalhar fora das aldeias interfere no processo da amamentação, que, na maioria das vezes, era realizado por um tempo longo.

“Com seis meses é suficiente, né? Assim os médicos fala, né? Antigamente, mamava até dois, três anos. Hoje, mesmo se quisesse, tem que trabalhar. É que a gente vai trabalhar. Essa aqui, mesmo, mama, só mama quando eu chego do serviço.”

(Claudia, aldeia Tupiniquim Pau Brasil)

“Mas a maioria, mesmo, tira a mama novinho. Os bichinho tão fraquinho, né?”

(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos)

Há mulheres indígenas que têm um trabalho formal: trabalham nas escolas e postos de saúde dentro das al-deias. Essas são vistas pela comunidade como alguém numa condição privilegiada, já que têm uma renda men-sal garantida, diferente da grande maioria da população local. Segundo informações das próprias mulheres, há em torno de doze mulheres indígenas trabalhando no vi-veiro da Aracruz Celulose. A empresa opta por contratar mulheres para o trabalho de reprodução de mudas por-que ele exige delicadeza, paciência e cuidado, caracterís-ticas do trabalho feminino. Algumas poucas trabalham em empresas terceirizadas, geralmente em tarefas simi-lares àquelas vinculadas ao trabalho doméstico, como, por exemplo, cozinhar e limpar.

Antes da ruptura do acordo firmado entre a Aracruz

Celulose e as populações indígenas em 1998, a empresa articulou cursos de cabeleireira, manicure e pintura para as mulheres, curso de garçom para mulheres e homens e curso de mecânica e de carpintaria exclusivamente para homens.

“Isso foi um convênio da Aracruz com o Senac26 pra tá desenvolvendo isso lá dentro da aldeia. A esposa do Jetibá [assessor da empresa para assuntos indígenas] é que deu um curso pras mulheres de pintura.”

(Tureta, representante local da Funai em 2006)

Com alto índice de desemprego nas aldeias, a estratégia da empresa foi levar até elas cursos profissionalizantes, buscando causar boa impressão. A Aracruz Celulose não gosta de ser identificada como empresa que desestruturou e empobreceu essas populações, em especial por serem populações que vivem no entorno da sua fábrica. Não é um bom cartão de visitas e compromete a sua imagem. O incentivo a tais atividades era usado em suas campanhas publicitárias. Com os cursos, seu objetivo foi transformar caçadores, agricultores, erveiras e artesãs ociosos em tra-balhadores “civilizados”, integrados às relações moder-nas de trabalho, desvinculando da terra e da natureza o

Trabalhando fora, as mulheres não conseguiam mais amamentar como antes

Page 65: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

64

seu modo de sobrevivência. No entanto, mesmo aqueles que fizeram os cursos continuaram desempregados.

“Até então as mulheres têm que aprender os cursos, mais têm que dá continuidade, pensar em projetos [que permitam resgatar a cultura]. Fazer projetos para ter uma auto-sustentação. Porque se tem que saí pra trabalhar fora vai ser um problema na comunidade. Se aprender e implantar alguma coisa dentro da comunidade, aí não tem problema. Por exemplo, a garçonete... as mulheres... se for uma mulher casada a aprender um curso de garçonete pra ela saí da comunidade... Às vezes tem família casada que combina, mas, se for uma família que não combina, aí vai trazer transtorno pra família. Vai acontecer alguma coisa entre a esposa e o marido.”

(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,aldeia Tupiniquim Irajá)

Se há especificidades dos impactos sobre o univer-so feminino, há também aquelas que golpeiam o mun-do masculino. Os homens indígenas e quilombolas que se dedicavam à agricultura, à caça e à pesca vêem-se, na atualidade, transformados em desempregados ou alimen-tam o grande contingente de mão-de-obra barata. A ma-téria-prima utilizada pelos homens, como taboa, palhas e determinados tipos de madeira para a produção de game-las, peneiras e tapitis, desapareceu. Essas perdas e mu-danças interferiram drasticamente no papel do homem dentro da comunidade e da família. O caçador que, para as populações indígenas, significa coragem, força, aquele que garante o sustento da família, perdeu seu lugar e foi lançado para um espaço vazio.

“Os Guarani sempre tiveram o costume de caçar. Os meninos têm que aprender a caçar. Então ele acompanha o seu pai quando ele vai caçar. Só que quando ele sai pra conseguir caça, roda a noite toda, a noite toda, e não encontra nenhuma caça, nada, nada... Isso é muito triste pr’um Guarani. Às vezes até encontra uma paca, um gambá, mas é muito pouco. Então, a gente sai com eles de noite, mas volta no outro dia... e não tem nenhuma caça pra mostrar pra família. Já aconteceu da gente sair e os guarda da empresa prendê a gente. Eles diz que nós estamos caçando na propriedade que é dela. Eu não sei por que eles coloca aquela placa: ‘É proibido caçar [animal silvestre]’. Eu não sei por que. No meio do eucalipto não tem nada, nenhum animal vive no meio do eucalipto, nem passarinho. Só formiga e cupim vive no meio do eucalipto.”

(Toninho, de nome indígena Werá Kwaray, Cacique Guarani – depoimento dado na audiência pública da Comissão de

Meio Ambiente, na Assembléia Legislativa, em 2002)

A perda da atividade da caça interrompe um rito de passagem antigo vivenciado por essas populações: o pro-

cesso que prepara o menino índio para a vida adulta. A ausência desse ritual produz, nos Guarani e Tupiniquim, um vazio no processo de construção da identidade mas-culina. Se não há caça, o que fazer? O papel do homem dentro da comunidade e da família fica profundamente fragilizado, beirando a ausência.

“E a gente também [as mulheres indígenas] está passando por grandes dificuldades, até mesmo dificuldades de arrumar emprego. Os homens também ficaram sem o serviço deles. Hoje, eles vão para o mato e chegam em casa preocupados porque não acham nada pra fazer.”

(Marli, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

“Igual como minha mãe fala, que quando meu finado pai ia caçar, matava variedades de caças. Meu pai, antes de morrer, ele saía pra caçar e voltava com variedades de caça, né? Às vezes, ela tinha até que jogar alguma fora, que já tava mais passada, porque naquela época não tinha geladeira. Tinha que salgar pra não ficar ruim, né? E hoje em dia, não. Às vezes, assim, o impacto que eu acho assim que a mulher sente é... por exemplo, o meu marido, né? Os maridos delas vão caçar aí, mas não pega uma caça, aí, quer dizer, a gente fica triste, né?... Eles vão caçar e, às vezes, não caçam nada. Eles vão caçar, mas não acham. Às vezes, eles vão o primeiro dia, o segundo dia, o terceiro dia, até trazer unzinho. Interessante é que, quando eles chegam, eles dividem o que for pras famílias. E tem vezes que eles vão e não pegam nada, né?”

(Kátia, aldeia Tupiniquim Irajá)

“Porque, hoje, se a gente observar dentro da nossa comunidade, as mulheres trabalha mais do que os próprios homens, porque eles não têm trabalho pra fazer. Os homem não têm. Por exemplo, a pesca... aqui todas as família se mantinha da pescaria, e hoje é bem pouco a família que vai na maré pescar por causa dos impactos. Já não tem mais muito mariscos igual os que tinha antigamente. Mas só que, na nossa família, nós não perdemos essa cultura. O meu esposo pesca, o esposo dela, que é meu cunhado, ele pesca, né? Porque, por exemplo, mesmo que tenha esse impacto de acabar com as matas, de ter secado bastante rio, mas se a gente não procurar, a gente vai perdendo nossa cultura, a pesca, o artesanato, a caça. O pouco que temos não podemos deixar, porque é a cultura nossa. Mesmo que tenha outro trabalho, a gente tem que ter ela firme e resistente pra poder se manter. E pra nós, mulheres, foi um impacto muito forte também.”

(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

“Mas hoje, se você sai pra procurar, não acha. Quando chega em casa vem a tristeza na pessoa. Às vezes, os filhos... às vezes, o pai sai pra procurar, pensando que vai trazer alguma

Page 66: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

65

coisa. Chega e não traz. Aí a família toda fica preocupada na sua casa, né?”

(Marli, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

“Se os caçadores da própria aldeia forem mesmo caçar, eles são presos. Por que, dentro da própria aldeia, eles não podem caçar mais, né? Porque é culpa da gente? Mas não é! São as pessoas de fora mesmo, que, hoje em dia, a gente quer comer uma caça, a gente só vai comer escondido, senão o Ibama27 vem lá, prende você, porque você tá... né? Porque muitos vão de fora caçar, leva, mas eles é pra o lazer. Agora a gente às vezes quer matar uma caça lá, pra gente comer, pra lembrar dos velhos tempos, e a gente não pode. Porque a gente vivia da caça, da pesca.”

(Cláudia, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“E também, se vai caçar, não consegue... o Ibama, né?... perseguindo a pessoa. As tartaruga também. Nós vivia da tartaruga de primeiro. Os mais velhos matavam tartaruga e comia, né? Comia os ovos dela e, hoje em dia, se matar uma, pode contar que vai pra cadeia. Como é que pode viver a cultura do índio desse jeito?”

(Nilza, aldeia Tupiniquim Comboios)

“Quando eu era criança, lá na aldeia, a gente morava lá na aldeia. Meu pai costumava caçar muito e tinha muito caça lá, em Pau-Brasil, naquelas matas. Hoje, não tem mais as matas; no lugar da mata tem hoje o eucalipto”.

(Célia, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

As mulheres indígenas mais velhas observam mudan-ças no comportamento masculino, em especial a partir da década de 1970. A primeira diz respeito ao fato de os homens saírem frequentemente das aldeias e buscarem relacionar-se com mulheres não-índias. Comportamen-

tos como esse tornam o ambiente familiar inseguro e as mulheres mais suscetíveis à contaminação por doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).

“Eu creio que sim. Agora eles vão procurar outra caça lá fora [ela refere-se a possíveis relações com outras mulheres não-índias]. Às vezes, ao invés de caçador, eles viram a caça (risos). Igual assim como o meu sogro, né? Como meu marido falava, o meu sogro... Quando o meu sogro era vivo, ele saía pouco da aldeia... era mais pra comprar mais óleo, arroz. Mas o resto eles faziam aqui, como a farinha, o feijão, a caça... tinha galinhas no quintal. Mas era muito difícil eles irem pra fora. Hoje em dia, você vê que a maioria dos índios tem que trabalhar. Pra ter o sustento da aldeia tem que sair fora da aldeia, e tá difícil arrumar serviço fora da aldeia.”

(Maria Helena28, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

A segunda mudança está relacionada com o aumento do consumo de álcool pelos homens. Há também mulhe-res que bebem, mas em menor número. Hoje, o alcoolis-mo nas aldeias é um fato, e esse acontecimento reper-cute também sobre as mulheres, que têm que lidar com uma situação que envolve seus maridos e filhos.

“Têm muitas pessoas que bebe aqui na aldeia. Às vezes, ele deixa de cuidar dos filhos, da família, pra viver no alcoolismo... Já é uma doença porque, por exemplo, não só por causa das nossas dificuldades de perder... a perca é que vai fazer a gente ficar bebendo? Porque eu falo isso: ‘Se só ficar bebendo, bebendo, não vai resolver não os problemas, vai agravar mais os nossos problemas dentroda comunidade’.”

(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

O alcoolismo é apontado pelas mulheres como um dos fatores que contribuem para o aumento da violência do-méstica, questão ainda tratada com certo tabu.

“Eu já sofri agressão pelo marido. Há doze anos atrás... do primeiro marido que eu tive, por ele ser alcoólatra. Eu já fui espancada por ele ao ponto de eu ir na delegacia, sim. Minha filha tinha três anos nessa época e, por ele ser uma pessoa muito violenta, ele bateu nela. Aí eu fui na delegacia. Mas aí eu mesmo tomei a decisão, que eu vi que a delegacia não dava jeito nele. Aí, então, eu peguei e me separei dele. Larguei ele pra lá.”

(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Meu marido, ele bebia muito, até que um dia ele tentou me bater e aí eu dei uma tampa de panela de pressão na cara dele e mandei ele embora. Ele dizia que não gostava de mim porque eu era índia.” 29

(Margarida, de nome indígena Ipotyroby, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha)As mulheres se organizaram em grupos para reconquistar suas terras

Page 67: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

66

Observa-se que, na atualidade, principalmente a partir do assassinato de duas mulheres indígenas, uma tupini-quim e uma guarani, os grupos de mulheres indígenas nas aldeias querem romper com o tabu e discutir o assunto, buscando formas de enfrentar o problema. Sentem-se es-timuladas também pela recente promulgação da Lei Ma-ria da Penha30, que trata da violência doméstica no Brasil.

Diante da escassez de trabalho, homens caçadores foram transformados em “biscateiros”, empregados da construção civil ou estão desenvolvendo outras ativida-des. Na realidade quilombola, a falta de emprego é muito grande e muitas famílias agricultoras e extrativistas, in-cluindo mulheres chefes de família, foram transformadas em carvoeiras, vivendo da coleta do resíduo de eucalipto.

“E agora ficou ruim... e o emprego agora? Emprego aqui ainda, que coloca sempre uma pessoa é a Disa, que coloca pra trabalhar, né?... e a Plantar31... algumas pessoas, mas o desemprego tá tudo, a maioria tudo é desempregado. Agora, quando eles chegam a dar esse residuozinho de eucalipto, fazendo pouco da gente, né, ninguém quer, mas eles também só dá quando quer, e esse é só o passatempo, mas nós quer é nossas terras.”

(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos)

Uma das características da Aracruz é evitar contratar trabalhadores oriundos das populações locais. As mu-lheres indígenas relatam situações que vivenciaram em suas aldeias.

Segundo a Promotoria da Vara da Infância e Ju-ventude do Espírito Santo, o extremo norte do Es-pírito Santo, local onde vivem as comunidades qui-lombolas, é onde se registra o maior número de prostituição infantil do estado. Os fatores que mais contribuem para a questão são a pobreza, produzi-da, em especial, pela monocultura de eucalipto e de cana-de-açúcar, e o trabalho temporário dos corta-dores de cana, que vêm de regiões distantes e ficam pouco tempo na região. Isso se agrava ainda pelo fato de a região ser cortada pela BR 101. Cada vez mais surgem notícias de mães adolescentes e mulheres contaminadas por DSTs/Aids.

“Na nossa região, esse ano, foi o que mais cresceu [ela refere-se à prostituição]. As empresas de cana traz as pessoas de outra região, estão trazendo pra cá. Aqui tem uma que chama Saionara. A gente teve até uma reunião em Conceição da Barra com o prefeito, umas três pessoas de Saionara e tinha umas dez das comunidades. Aí falamos sobre isso, porque eles trazem o pessoal para cá. Depois, aqui, eles não quer saber da saúde, polícia... não tem segurança. Aí está dando o maior problema na região, porque o pessoal de menor começa a se envolver muito. Em Conceição da Barra, também, o pessoal colocou que tá tendo demais.”

(moradora da comunidade quilombola de São Domingos)

Prostituição infantil e monocultura

A maior preocupação das mulheres é com a saúde de seus filhos

Page 68: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

67

“Queria falar sobre o que acontece lá na aldeia de Caieiras. Assim, quando o pessoal lá, os jovens, ficam sabendo que uma firma tem emprego, eles vão lá. Só que eles não gostam de mostrar identidade indígena. Eles vão muito tirar identidade de branco por causa disso. E lá eles falam que não moram na aldeia. Alguém foi lá que só tinha identidade indígena porque não tinha outro documento. Aí eles falaram: ‘Não vou te dar emprego, porque você é índio’. Ele disse: ‘Sou índio, mas não estou morando na aldeia, sou contra a luta pela terra’. Aí ele conseguiu emprego, mas só que a empresa mandou alguém investigar. Aí ele foi até a cidade de Aracruz, por uns dias, para a casa de parentes, mas depois voltou para aldeia e aí foi demitido do serviço.”

(Benilda, representante das mulheres indígenas na Apoinme32, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha)

“Eles não dão serviço para os homens e nem pras mulheres. Quem tá lá é porque foi antes da demarcação; já tem até dez anos de trabalho. Mas, depois da demarcação, ficou difícil arrumá trabalho. A fala é essa mesmo: por causa da demarcação33 é que elas num precisa trabalhá, que nós tem recursos, aí não precisa. Isso é um engano, né? Porque até hoje tá balançado, não se resolveu tudo. Aí vem a dificuldade, falta de emprego, falta de trabalho.”

(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,aldeia Tupiniquim Irajá)

“Agora nem serviço acha mais, né? Porque tá todo mundo sem trabalho, passando dificuldade. Por que tá todo mundo sem trabalho? Sai pra arranjar trabalho, mas ninguém dá trabalho porque falta a pessoa entender nossa situação. Eles não gosta de índio e eles fala isso na nossa cara. Eles acha que a Aracruz ajuda muito os índio. A Aracruz colocou que ela ajudava. Ajudou no quê? Ela destruiu foi as matas”.

(Maria, aldeia Tupiniquim Caieiras Velha)

“Para conseguir um trabalho, isso também acontece nos quilombolas, para os quilombolas conseguir fazer um curso, ele precisa negar que é quilombola.”

(Olindina, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e Comissão Quilombola do Sapê do Norte)

Uma das maiores consequências da ausência de traba-lho é a falta de alimentos. As mulheres, que têm a res-ponsabilidade de preparar o alimento da família, admi-nistram, cotidianamente, a escassez.

“Já pensou uma mãe procurar alguma coisa pra dá pros filhos e não tem? Procurar um café, um leite, e não tem. Não tem um pão, uma comida não tem. Porque a criança não quer nem saber de onde sai e como sai. Então, as mães se preocupa mais mesmo. A mãe sabe de tudo o que acaba ali dentro de casa. O pai, por exemplo, se tem um serviço, ele sai de casa de manhã, faz uma marmitinha, carrega e só

chega de tarde. A responsabilidade é toda da mãe. E aquela mãe que se preocupa mesmo com a família, ela tem que sair para procurar alguma coisa para trazer pra casa. Porque ela tá ali no dia-a-dia.”

(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena,aldeia Tupiniquim Irajá)

“É triste a gente chegar dentro de casa e ter filho pequenininho e ele pedi: ‘Mamãe, me dá um prato de comida’, e ela não ter. É muito triste!”

(Marli, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

Antes, essas populações estabeleciam relações de troca34 nas quais o dinheiro aparecia muito raramente. Hoje, ele é imprescindível para garantir a sua subsistência.

“Tinha muitas coisas. Todo mundo tinha criação, tinha porco e tinha coisas assim. Mas tinha dia que não tinha nada, né? Às vezes, um vizinho... porque andava tudo a pé, né? Às vezes, ia na Barra comprar peixe e chegava e mandava um peixinho pra cada um. Ou, então, a gente vinha também e trazia banana, fazia polenta, fazia beiju e vinha trocar por peixe na praia. Os pescadores chegavam com fome... eles dava o peixe e a gente dava o alimento e trazia o peixe pra cá. Às vezes, levava o alimento pra trocar com peixe e comia farinha no caminho, porque sentia fome.” (risos)

(Glória, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Em termos da agricultura, hoje tudo tem que ser comprado. Antes, como disse a Glória, antes era bastante a troca; era difícil, mas era bom. Hoje, tudo a gente depende do dinheiro; não se consegue dá um passo em Barra do Sahy se não tiver dinheiro. Hoje a troca é muito pouco. Ainda troca alguma coisa, mas agora é muito menos que antigamente.”

(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“A gente não tinha falta de nada para alimentar os nossos filhos... Eu sou mãe de treze filhos. Meus filhos foram criados com os peixes, com as caças. Hoje, eu tenho meus netos, meus bisnetos e eles têm as coisas assim tudo comprado, né? E, antigamente, nós não comprava nada, a não ser, assim, o arroz; o óleo, quase não comprava também. A gente criava era os porco. Com as coisas que nós plantava na nossa terra era para sustentar nossos porco, nossas galinhas. Nós criava muito galinha e aí nossos filhos viviam no meio da riqueza, mas dali daquela terra. Mas, depois que Aracruz chegou, acabou com tudo... Então acabou tudo, acabou tudo. Essa Aracruz Celulose acabou com nossas coisas tudo. Agora, nós vivemos assim com as coisas todas compradas, trabalha pra comprar tudo, não é mais como antigamente.”

(Rosa, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

Nesse contexto de ausências, o artesanato surge como

Page 69: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

68

uma possibilidade para driblar a escassez. Os grupos de mulheres artesãs buscam articular a função cultural do artesanato indígena à geração de renda. Entretanto, a perda das matas comprometeu a disponibilidade da ma-téria-prima utilizada para a sua produção.

“Nossa! Teria mais valor o nosso artesanato! É o urucum, o jenipapo... é mais pra pintura corporal; mas, assim, o barro vermelho, a folha da cana, a folha do pé de araçá, da pedra vermelha... Então, são tudo tintura natural. Até aquele melão de São Caetano... ele tinha uma tintura natural. É através do artesanato que a gente fala da [nossa] cultura. É uma coisa significante. Quando você compra um artesanato, você quer ficar mais bonita, para nós, não. Quando você compra o nosso artesanato, você leva um pouco da cultura.”

(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“... porque as mulheres, de primeiro, tinha muita coisa que dava para elas se manter... assim, material de fazê artesanato, que as mulheres fazia muito. E hoje não existe muito. Pra fazê alguns cordão, precisa ir longe, porque os pedacinhos de mato que tem aqui... não tem muitas coisas que a gente necessita. Algum material tem perto... algumas sementes que a gente colhe... Por exemplo, se pegar a semente pra plantá, pode até nascer e aí a gente tem aquela semente pra fazê o artesanato. Mas aquelas sementes que existia perto das casas, hoje já não existe mais. Então, tem a dificuldade pra gente colher esse material. E, hoje, as mulheres que têm dentro da comunidade é que tem que procurar algum serviço pra ajudar a manter a casa, né?”

(Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)

“Não se acha um cipó mais. Não se acha uma palha mais. Se eles quiserem... Primeiro, os índios faziam suas casa de palha, tinham como fazer uma casa de palha, tinha palha e tinha madeira. Hoje, não se acha mais nada. Então, as coisas ficaram muito difíceis. Essa realidade acabou com os indígenas mesmo, com a gente das aldeias. Todas as aldeias ficaram prejudicadas.”

(Marli, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

Apesar das dificuldades encontradas para a produ-ção do artesanato, as mulheres indígenas estão cada vez mais organizadas, buscando garantir a recuperação da matéria-prima original, as condições físicas e materiais adequadas para a realização do trabalho e alternativas de comercialização. Segundo elas, o artesanato é uma forma de lhes garantir a auto-sustentação, impedindo que saiam das aldeias para buscar trabalho.

2.2- Rio: lugar de encontro “Era tão maravilhoso se abrisse o rio pra nós. Nós lavava roupa, nós pegava água pra bebê, pra fazer comida... A gente pescava peixe, pegava com peneira. A mulherada...

juntava tanta gente! Era o lugar de lavar roupa. Terminava de lavar roupa, a gente tomava banho e vinha embora, né?”

(Maridéia, Comissão de Mulheres Indígenas e aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

Segundo o Relatório de Impactos da Apropriação dos Recursos Hídricos Pela Aracruz Celulose nas Terras Indí-genas Guarani e Tupiniquim, elaborado pela Associação dos Geógrafos do Brasil (2004), foram desmatados, só no município de Aracruz, 430 km² da floresta tropical plu-vial nativa para dar lugar à plantação de eucalipto. Rios imprescindíveis à vida das populações indígenas, como o Guaxindiba e o Sahy, que banhavam a aldeia Pau-Brasil, praticamente desapareceram.

“Depois, eles começaram a botar os remédios. Começaram acabando com tudo. Os remédios [agrotóxicos] matavam as caça, os passarinhos, a água contaminava também, matava os peixes, os caranguejos como tem lá em Pau-Brasil. Lá tem um riozinho que subia lá para Barra do Sahy. Então, ali, aquele rio se acabou, né? Os peixes também se acabaram tudo, por causa do veneno que eles foram botando. Foram acabando com nossos peixes, nossos caranguejos. Não tem mais nada lá no mangue. Pode ir lá olhar que você não vê mais nada, caranguejo, guaiamu, tudo isso era nosso alimento, que nos alimentava. A gente não tinha falta de nada, alimentava nossos filhos.”

(Rosa, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Quem fez tampar o rio foi a Aracruz, porque plantou eucalipe e puxou a água e o rio... agora tudo... e também muita barragem, muito bueiro, manilha, né? Perdeu a força da água e aí foi que secou o rio. De primeiro, era correnteza, e, agora, cadê?”

(Francisca, aldeia Tupiniquim Irajá)

Muitas crianças passaram a ficar sob os cuidados de vizinhos ou de irmãos

Page 70: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

69

Esse drama ocorreu também na região onde vivem as comunidades quilombolas: a vivência [dos quilombolas] testemunha a morte de quase todos os 14 rios e córre-gos que atravessavam a entrada de Itaúnas e a sede de Conceição da Barra. Em 1999, apenas o São Domingos, afluente do [Rio] Cricaré, dispunha de água35. Os rios es-tão assoreados e/ou contaminados.

A situação do Rio Comboios é um exemplo da prepo-tência e do desmando da Aracruz Celulose no trato da questão hídrica. Em 1999, ela fez a transposição das águas da bacia hidrográfica do Rio Doce para a bacia do Rio Ria-cho, por meio da construção do canal que ela denominou de Caboclo Bernardo, buscando garantir o abastecimento de água para a terceira fábrica da empresa. “Entre o canal e a planta do complexo celulósico se encontram a aldeia Comboios e o Rio Comboios [...]. Depois da construção do canal, não é mais possível sua utilização para beber ou para banhar porque a água provoca febre, vômitos, ‘en-caroça’ o corpo”.36

O rio era o espaço de socialização das mulheres.

“A nossa preocupação era a falta do rio, e agora ela é bem maior. É igual você falou: ‘tomá o banho, lavá a roupa, de ter a água em casa’. Como você falou, não é tanto dos homens, né?. E quando tinha o rio aqui, as mulheres pegavam suas trouxas de roupa... e era aquela festa na beira do rio, todas lavando a roupa. Era mais no dia de sábado, e quem tinha tempo, durante a semana. Já era um trabalho a menos, porque tinha aquela quantidade grande de água no rio e tudo ficava mais fácil. Quando a gente tinha que pegar no poço, descer uma ladeira onde tem o poço hoje... Então, essa preocupação não é dos homens, é mais das mulheres, e, quando falta essa água nas caixas ou tem um problema na bomba, os homens não vão pegar o balde... são bem poucos que vão pegar o balde e descer a ladeira, né? E quando tinha só um pouquinho de água, a gente ia se virando. Mas a preocupação é das mulheres mesmo, né? De ir lá pegar água no poço e ter essa água em casa. Até que... quer dizer, quando tinha rio essa preocupação diminuía porque, pelo menos, pra lavar a roupa, a gente tinha como resolver o problema. A dificuldade aumentou quando esse processo todo aí, com a chegada de eucalipto foi sugando essa água do rio, que chegou ao ponto que chegou hoje.”

(Maria Helena, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“Eu acho que o rio traria mais união, porque na beira do rio a gente lava a roupa, conversa, se distrai. Acho também que seria uma higiene mental, e as crianças... [nós] não teria tanto medo delas aprenderem a nadar. No rio tinha a taquara pra fazê a peneira... camarão... o pitú, né?, traíra...”

(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

As gerações mais jovens perderam a familiaridade

com as águas dos rios. Por isso muitos adolescentes ín-dios não sabem nadar, algo difícil de ser compreendi-do no imaginário social brasileiro. Os Tupiniquim, que pertencem ao tronco linguístico Tupi, sempre viveram às margens de grandes rios. Para as indígenas, a falta da água e a água contaminada são problemas que se mani-festam no cotidiano da casa. Elas têm que cozinhar, lavar a roupa e providenciar água para beber e banhar os seus filhos menores.

“A gente pescava de anzol, pescava de rede, botava uma cruzeira, fazia um mundéu, pegava uma caça, né? um tatu, muito gostoso. Aí agora, se ir... Eu acho que quem mata um inocente, nem vai preso. Agora, só por causa de uma caça ou um peixe, a gente leva aí não sei quantos anos de cadeia, que eles promete. Mas acabou nossos peixe. São Domingos, Santana... nós ia com aqueles balaio que nós pescava, pegava era muito peixe! Agora, acabou tudo! Secou os córrego, né? Se tiver algum córrego, mas ninguém não pode comer um peixe preto, igual teve uma que falou aí que a água é preta, né? Aquela água preta que ninguém... Vixi! Nem... que roupa! Ninguém nem vai fazer isso! Aí, acabou. As nossas cultura, nossos passarinho, aqueles passarinho tão gostosinho que a gente pegava, fritava pra comer, né? Que isso tudo a gente fazia, que era da roça mesmo! Aí, agora, acabou.”

(Benedita, comunidade quilombola de São Domingos)

“Eu não tenho meu pai mais, mas o meu pai me contava muito sobre o córrego em São Jorge. Isso era muito importante para eles [para os quilombolas]. Isso era importante pra gente também. Mas, como que é que se vai cuidar do rio, se o rio está todo envenenado com os defensivos [agrotóxicos] que eles colocam para manter... para exportar o rico papel deles. Então, para exportar o rico papel, eles danificam o rio, acabam com a vida e a saúde de todos nós. E aí nós ficamos mais prejudicados ainda e eles não têm a relação direta com o veneno do rio, porque somos nós e os funcionários deles que têm esse contato.”

(Olindina, Associação de Mulheres Negras de São Mateus e da Comissão Quilombola do Sapê do Norte)

O rio era o lugar de encontro das mulheres. O momento do lazer, da conversa, da troca de experiências e saberes, o espaço das combinações e do reforço dos laços afetivos e comunitários, suprimidos pela implantação do agrone-gócio da celulose.

“Lavava muita roupa junto. Era o mesmo ponto. A hora que aquele bocado de mulheres colocava a roupa pra quarar, elas tinham mania de falar. A gente coloca de molho, né? Lá o alvejante era folha de mamão, né? (risos) e colocava... A grama grande na beira do córrego, cultivava aquela grama e jogava aqueles lençóis brancos, roupas brancas, e alvejava

Page 71: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

70

mesmo, de verdade. De vez em quando salpicava aquele pouquinho de água e alvejava mesmo, de verdade.”

(Eni, comunidade quilombolas de São Domingos)

A recuperação dos rios das áreas indígenas pela Aracruz Celulose constituía item do acordo feito entre a empresa e a Associação Indígena Tupiniquim e Guarani, em 1998. No entanto, a questão não saiu do papel e a situação agravou-se desde então. As mulheres que apostam na capacidade de regeneração da natureza sonham em banhar-se um dia nos rios de outrora.

2.3- a saúde regada a rezas e ervas medicinais“A planta medicinal pode ter morrido nas cozinhas, mas no coração da gente nunca morre não, porque faz parte da saúde, é algo alternativo, e eu acho que a gente tem que batalhar. Por isso que a gente entrevista muito os adultos, os mais velhos.”

(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, Comissão de Mulheres Indígenas, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

“O remédio natural é muito importante. A gente tem que tomar até acabar essa doença. Minha avó falava que podia tomar. A gente tem que pedir pra Deus que ele vai mostrar o verdadeiro remédio. Nós acreditamos no remédio vivo.”

(Joana, de nome indígena Tatatxî, Comissão de Mulheres Indígenas, aldeia Guarani Boa Esperança)

Amplas conhecedoras da biodiversidade, essas popula-ções viram-se impedidas de continuar a exercitar seus sa-beres e práticas relacionados com a saúde. Com a destruição da floresta e a implantação de postos de saúde nas aldeias, iniciaram-se as dificuldades de continuar a produção e o uso dos remédios naturais. Com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais difícil para as velhas gerações transmitir às mais novas o seu conhecimento sobre as diversas espé-cies de uso medicinal que compunham a Mata Atlântica. Muitas foram extintas, outras encontram-se em processo de extinção. A situação agrava-se ainda mais quando há o aumento dos problemas de doença da população local.

“Tem muita pressão alta... Não existe remédio para pressão alta? Não existe remédio para diabetes?”

(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

Entre os moradores das aldeias são muito comuns os problemas respiratórios, em especial na aldeia Pau-Bra-sil, localizada a três quilômetros da fábrica de celulose. As crianças são as que mais sofrem com o problema.

“Hoje, as crianças nascem e com um mês de nascido, tá lá fazendo nebulização. E isso é o quê? É o impacto da empresa, entendeu? Do que vem do ar. Essas doenças não eram de índia, o câncer... porque hoje tudo é artificial.”

(Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

Vários rituais, práticas e tradições da cultura indígena deixaram de ser transmitidos para as novas gerações: culturas milenares ameaçadas

Page 72: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

71

Com as ervas cada vez mais raras, as mulheres, respon-sáveis por cuidar da saúde dos filhos, enfrentam dificul-dades para lidar com as doenças da família e, sem alter-nativa, dão passagem à medicina convencional. Hoje, o uso de remédios farmacêuticos é bastante comum entre os índios.

“Tá entrando muito remédio de farmácia nas aldeias.” (Deusdéia, de nome indígena Yara-Tupã, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)37

“A gente usava várias ervas para dor de barriga. Para dor de cabeça era folha de urucum. Mas hoje as pessoas preferem ir à farmácia do que tomar remédio caseiro. O xarope da folha de maracujá, da folha da arnica deixa a pessoa que tem problemas curada. A carobinha cura coceira, cura tudo. O banho é muito bom. A gente tá fazendo pouca coisa por falta de ervas.”

(Nilza, Comissão de Mulheres Indígenas, aldeia Tupiniquim Comboios)

“Morei na roça, morava na roça, morei muito tempo lá, meus filhos tive todos com parteira. Aqui, o que as mulheres mais reclamam é sobre a saúde dos filhos mesmo... Geralmente, o pessoal fala que os remédio não tem mais... aqueles que eles usavam pra fazer o chá. Um fazia chá, outros fazia garrafadas. Hoje, isso aqui não existe mais, porque não existe mais a mata. Eles falam que não tem mais aquela mata. Ah! Jesus, onde tem aquele mato? Hoje não existe os remédios do mato. O pessoal, as meninas grávidas começa fazer logo pré-natal no hospital e quando vêm de lá já chega cheio de problema...”

(Maria Goreti, comunidade quilombola de São Domingos)

O nascimento é um acontecimento muito especial na vida das populações indígenas. No entanto, nesse novo contexto, transformou-se num desafio envolvendo esco-lhas nunca antes imaginadas: o parto será normal ou ce-sariana? “Dona” Marilza, de nome indígena Keretxu-Endi, uma sábia velhinha, liderança Guarani, analisa por que é tão difícil, atualmente, as mulheres terem filhos com par-teiras. Segundo ela, as parteiras estão desaparecendo, e as mulheres indígenas fazem o acompanhamento com os médicos da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que não incentivam o trabalho das parteiras.

“As mulheres tinha cinco, dez, onze filhos e não tinha problema nenhum. Agora, elas têm problema. Porque, muitas vezes, hoje, as doenças que está acontecendo é porque as mulheres não procuram os remédios do mato. Elas vai no médico e ele fala que você não vai ter mais cinco, seis filhos, que você tem problemas. Minha avó falou que os brancos que quer acabar com o índio, não quer mais que os índios têm muito filho. Ela [minha mãe] ajudava minha avó a fazer parto. Hoje, já não faz mais. Antes, tinha parteira, e os remédios era do mato. Eu nunca fui a médico.

Tive meus filhos tudo em casa, com parteira.” (Joana, de nome indígena Tatatxî, educadora indígena,

aldeia Guarani Boa Esperança)

O relato indígena combina com as informações qui-lombolas a respeito do desaparecimento das parteiras e a adoção – embora dificultosa – do atendimento médico do Sistema Único de Saúde (SUS)38.

“São Barto era o santo das parteiras. São Barto ajudava quando ganhavam os nenês em casa. Tinha as parteiras. Minha mãe mesmo era parteira. Hoje, nasce tudo no hospital, porque não tem parteira mais. As parteiras já morreu, aí é tudo médico. No tempo que era só parteira, não existia nem médico, e o que existisse não ia lá, não. Minha mãe mesmo era igual a médico. Todos os problemas ela resolvia. Mas eu não aprendi o que ela fazia, não, eu era bem mais nova, alguma coisa ela ainda me ensinou.”

(Benedita, comunidade de São Domingos)

Outra informação refere-se à mudança física do corpo da mulher. A obesidade, tanto da mãe quanto dos bebês, durante a gestação, dificulta um parto natural. Essa situ-ação tem sido atribuída ao consumo de comida industria-lizada pelas mulheres, diferentemente do que acontecia quando elas se alimentavam da comida produzida pelas aldeias ou extraída das matas, sem qualquer aditivo quí-mico. Também se atribui à alimentação a menstruação precoce das meninas, que vivenciam a maternidade cada vez mais jovens.

“De qualquer forma, o índice de cesariana hoje é bem maior do que antigamente. O parto normal, às vezes, é difícil porque as mulheres engorda muito e aí têm que fazer cesariana.”

(Maria Helena, aldeia Tupiniquim Pau-Brasil)

Uma das alternativas utilizadas por algumas mulheres indígenas para combater a obesidade é o uso de drogas para emagrecer.

“Antigamente não tinha isso. Ninguém se preocupava com gordura ou com magreza. Por exemplo, eu... minha família mesmo... minha mãe era alta e forte, né? Mas ela não se preocupava que tinha que emagrecer pra ficar bonita. Ela sempre falava que a beleza Deus é que dá pra gente. Hoje, a gente vê muitos remédios pra emagrecer que tá trazendo muitas doenças pras mulheres que quer, através de vários medicamentos, ficar bonita. Aqui na aldeia algumas tomam. Eu conversei essa semana com algumas que tão tomando remédio pra emagrecer. Só que, hoje, esses remédios tão fazendo mal. Eu mesma nunca tomei e não pretendo tomar.”

(Aleida, de nome indígena Anama, educadora indígena, aldeia Tupiniquim Irajá)

Page 73: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

72

Outro aspecto que interfere na realização de partos na-turais nas aldeias estaria ligado ao sedentarismo. Hoje, por falta de espaço físico e por assumir novas tarefas di-ferentes daquelas tradicionais da mulher indígena, o cor-po da mulher está mais fragilizado e suscetível a doenças. Antes, segundo uma liderança guarani, “... as mulheres tinham mais força nas pernas”. São comuns relatos de mulheres que foram submetidas a cesarianas. Há casos de perdas de bebês no nascimento, o que, para essas po-pulações, é um acontecimento grave e triste.

“Nós, Guarani, precisamos pensar a saúde guarani. Minha esposa teve neném. Foi a primeira vez que uma mulher aqui na minha família foi operada para ter neném. Ela e o neném quase morreram. A criança até hoje tá internada na UTI Neonatal lá em Vitória. Minha esposa, depois que chegou aqui, chegou com a barriga inchada. Aí eu fiz um chá pra ela e foi graças a esse chá que eu percebi que tinha alguma coisa errada. Aí eu levei ela aqui no hospital em Aracruz. Tiveram que abrir de novo a barriga dela e descobriram que a médica tinha esquecido de tirar... como é o nome mesmo? Aquilo que o neném fica dentro. Pois é, ela esqueceu de tirar a placenta e ela quase morreu por causa disso. Me disseram até que se eu quiser entrar com um processo contra a médica eu posso fazer. Então, se não fosse o chá, ela podia ter morrido.”

(Toninho, de nome indígena Werá Kwaray, Cacique da aldeia Guarani Boa Esperança)

Continuando a analisar a saúde das mulheres, uma velha guarani diz que as mulheres, antes, tinham maior controle sobre o seu corpo, ou seja, elas controlavam a sua fertilidade.

“Quando queriam ter muito filhos, a mulher guarani... tinha um cipó na mata que elas usava, mas agora ele não existe mais. E o contrário também. Quando a mulher guarani não queria ter filho, elas bebia uma garrafada [de ervas] que também tinha na mata.”

(Marilza, de nome indígena Keretxu-Endi, aldeia Guarani Piraquê-Açu)

Muitas mulheres relatam que engravidavam de dois em dois anos, demonstrando que faziam, de uma forma mui-to particular, o seu planejamento familiar. Hoje, a forma mais comum de controle de natalidade é o uso de pílula anticoncepcional ou a laqueadura de trompas.

A forte crença religiosa guiada pela presença de Ñhan-deru e Tupã39 orienta a vida dessas populações. Entre os Guarani ainda estão presentes muitos rituais de rezas, conduzidos pelos pajés, como um caminho para a cura de doenças e a geração da saúde. Em alguns rituais, fica difícil identificar se são próprios da tradição indígena ou se são resultado do contato com práticas religiosas não indígenas. A prática do benzimento é um deles.

“Eu aprendi com minha avó, minha bisavó, que benzia... Eu comecei a benzer com 12 anos. Eu tenho aquele dom. Daí eu comecei a benzê. Eu benzo gente aqui da aldeia, gente fora da aldeia. Eu já benzi gente até de Ibiraçu. Já veio gente de Vitória e eles ficaram bom. Quando eu rezo, eu rezo de noite, com o nome da pessoa. O chá depende pra quem é. Tem poucas ervas, porque muitas acabaram, porque a Aracruz derrubou muitas madeira forte que tinha, os remédios que tinha ela derrubou. Na mata é difícil achar erva, mas eu vou pela beira das casas... a gente acha ainda poucas, mas a gente consegue ainda capim-cidreira, macaé, cidreira, a pitanga, que também dá chá bom, a menina da banana prata, que serve pra diarréia...”

(Maria Loureiro, aldeia Tupiniquim Irajá)

Atualmente, as mulheres buscam desenvolver projetos de implantação de hortas, comunitárias ou individuais, nas suas aldeias, com o intuito de produzir alimentos e ervas medicinais. Elas têm consciência de que parte da matéria-prima usada para seus remédios caseiros foi extinta, toda-via o seu principal alvo são aquelas que estão em processo de extinção. A retomada do território embute a esperança de recuperação das matas e, com ela, de parte importante das árvores e da vegetação que constituíam a base das prá-ticas de saúde indígena e quilombola.

Em especial, nas quatro últimas décadas, essas popula-ções experimentaram mais intensamente o significado da palavra doença. A saúde está vinculada à vida, à natureza (aquela que guarda parte importante do conteúdo mate-rial e simbólico das práticas culturais); já a doença articu-la-se à morte da natureza, à presença da monocultura nos seus territórios. A vitória, na luta contra a monocultura, é a vitória da vida sobre a morte.

3- Considerações finais

Um das características essenciais dessas populações é a sua capacidade de resistência. Articuladas a outros mo-vimentos, como a Via Campesina e a Rede Alerta contra o Deserto Verde, são protagonistas do maior movimento socioambiental do Espírito Santo, realizando inúmeras ações de enfrentamento ao agronegócio da monocultu-ra de eucalipto. Hoje, essas populações têm importantes instrumentos de organização e contam com o apoio ex-pressivo de movimentos sociais e ONGs locais, nacionais e internacionais.

As mulheres, por sua vez, buscam assumir, cada vez mais, o seu lugar nesse processo de luta. Quando “[...] o ambiente começar a doer nos seus filhos, muitas mulhe-res atuarão”40. Assim se escreve a história das mulheres indígenas e quilombolas do Espírito Santo que, ao longo dos últimos 40 anos, vivem os impactos da monocultura em larga escala, juntamente com as suas famílias e o seu povo, indignando-se diante de tanta violência e opressão. São mulheres que, agora, por escolha, ocupam o espaço

Page 74: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

73

público como portadoras dos clamores do seu povo. O processo de organização das mulheres em espaços

específicos é recente. No caso das mulheres indígenas, por exemplo, há grupos organizados em cada aldeia vol-tados à produção do artesanato e ao resgate dos saberes e uso das ervas medicinais. Algumas se encontram num processo de organização mais avançado, outras estão ain-da iniciando. Buscando reforçar o seu processo de orga-nização, há pouco mais de um ano, criaram a Comissão de Mulheres Indígenas Tupiniquins e Guaranis, que busca articular as mulheres indígenas de todas as aldeias e de-senvolver atividades e lutas do seu interesse.

Observa-se que todo o movimento organizativo pro-tagonizado pelas mulheres tem estimulado o reconhe-cimento público dos diversos trabalhos que realizam: na frente de batalha, buscando fazer a auto-demarcação do território; no enfrentamento à polícia, na ocupação da fábrica da Aracruz (ocorrida em 2005); na cozinha, pre-parando a comida para as grandes assembléias indíge-nas. Dessa maneira, elas vêm, cada vez mais, ampliando os seus espaços de socialização41 e procurando substituir, em parte, aqueles que lhes foram arrancados. A organiza-ção tem contribuído também para aumentar a sua auto-estima. São mulheres que se reconhecem indígenas e se sentem responsáveis em partilhar com outras mulheres as suas conquistas.

As mulheres quilombolas, que são muito mais nume-rosas, também iniciam o seu processo de organização. Há mulheres representando suas comunidades na Comissão Quilombola do Sapê do Norte. Outras buscam articular grupos de base de mulheres.42

Em agosto de 2007, no processo de ocupação de uma parcela do território da Comunidade Quilombola de Li-nharinho, que se encontra sob o controle da empresa Aracruz, as mulheres quilombolas marcaram presença de diferentes formas: na condução política do movimen-to; na cozinha, preparando a alimentação dos ocupantes; nas ações de protesto, quando divulgaram o Manifesto do Grupo de Mulheres da Escola Quilombola43, expressando a sua indignação com a lentidão do governo federal em reconhecer e demarcar os territórios quilombolas.

Mulheres indígenas e quilombolas, que por tantas dé-cadas partilharam dos impactos da monocultura de eu-calipto, buscam, agora, partilhar a sua experiência orga-nizativa, descobrindo juntas os caminhos da liberdade. Mulheres que estão cada vez mais próximas e que se for-talecem mutuamente, lutando contra a opressão do agro-negócio e do patriarcado.

Vivendo de modo comunal, os índios se reconhecem como parte da natureza

Tam

ra G

ilber

tson

Page 75: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

74

1- Este texto foi extraído, com alterações, da publicação Mulheres e Eucalipto: histórias de vida e resistência, das mesmas autoras, realizada pelo Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM) em 2007. À luz da experiência das mulheres indígenas Tupiniquim, Guarani e quilombolas do norte do Espírito Santo, este texto busca mostrar parte das implicações da monocultura de eucalipto sobre a vida das mulheres.

2- O Dia Internacional da Mulher, 8 de março, é celebrado por diversos movimentos de mulheres, em várias partes do mundo. No dia 8 de março de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica em Nova Iorque entraram em greve, exigindo a redução da jornada de trabalho de dezesseis horas para dez horas. Trabalhando dezesseis horas por dia, essas operárias recebiam menos de um terço do salário dos homens. Devido a esse movimento, foram trancadas dentro das dependências da fábrica e incendiadas vivas. Cerca de 130 mulheres morreram queimadas. Em 1910, numa conferência internacional de mulheres realizada na Dinamarca, foi estabelecido o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher.

3- São mulheres do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O MMC e o MST integram a Via Campesina, que é um movimento internacional que articula movimentos de camponeses (pequenos, médios produtores e sem-terras) da América Latina, Ásia e Europa. No Brasil, a Via Campesina possui alguns fóruns regionais e um fórum nacional. Para maiores informações, consultar o site: <www.viacampesina.org>.

4- O viveiro se localiza na fazenda Barba Negra, em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul.

5- Via Campesina, 2006, p. 26

6- Movimento Mulheres Camponesas (MMC), Brasil, 2007, p. 1.

7- O 08 de março de 2009 caiu em um domingo, por isso a escolha de se realizar atividades no dia 09 de março. O Fórum de Mulheres do Espírito Santo, no dia 09 de março, realizou uma marcha pelas ruas da cidade de Vitória, com mais de 500 pessoas, com a temática: “Mulheres livres! Povos soberanos!

8- Associação dos Geógrafos do Brasil. Relatório de impactos da apropriação dos recursos hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. Vitória: AGB, 2004.

9- Ciccarone, Celeste. Territórios quilombolas no Espírito Santo: a experiência do Sapê do Norte. Apresentação. In: Castanhede Filho, Andréa et al. O incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/Incra, 2006. p. 117.

10- Considerado a maior autoridade mundial em beija-flores, o ecologista capixaba Augusto Ruschi dedicou sua vida à luta ambiental. Morreu em 1986, aos 70 anos de idade (Folha de São Paulo on-line, 1986, [s.p.]).

11- Conforme o censo demográfico da Funai de 2004, na região, a população era de 2.765 índios, sendo 2.552 Tupiniquim e 213 Guarani. A população ocupava 7.061 ha de terra, habitando sete aldeias: Caieiras Velhas, Irajá, Pau Brasil, Comboios, Boa Esperança, Três Palmeiras e Piraquê-Açu (aldeia criada para impedir a instalação, em área indígena, de uma empresa exploradora de algas calcárias, a Tothan). A conquista mais recente das populações indígenas foi a oficialização, por meio de duas portarias do governo federal, do reconhecimento de 10.966 ha de terra sob o controle da Aracruz Celulose S.A. como terras indígenas, totalizando 18.027 ha de terras indígenas no Espírito Santo.

12- De acordo com o depoimento dos moradores mais antigos, cem é o número que as lideranças quilombolas usam para definir a quantidade de comunidades existentes na época, no entanto é difícil precisar esse dado. A certeza que se tem é de que existiam muitas comunidades dispersas no território Sapê do Norte.

13- A comunidade quilombola de Linharinho teve reconhecido o seu direito a 9.542 ha de terra por meio da portaria n.° 78, assinada pelo governo federal em 14 de maio de 2007. No entanto, ao que parece, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a terra seja demarcada. Buscando exercer pressão política em prol da demarcação de seu território, a comunidade ocupou, em agosto de 2007, uma área atualmente em poder da empresa Aracruz Celulose S.A., de onde há a memória da grilagem. Essa ocupação

contou com o apoio de outros movimentos sociais e parceiros, concretizando-se num acampamento que ali se manteve por 21 dias. No acampamento foram construídas diversas barracas, uma cozinha comunitária, uma cacimba, vários plantios de nativas e frutíferas, inserindo vida na paisagem anterior de monocultivo do eucaliptos.

14- A meta do governo federal proposta no Plano Nacional de Florestas (PNF), de 2005, é aumentar as plantações de árvores, no Brasil, de 5 para 7 milhões de hectares, até 2007. Na mesma linha, o governo do Espírito Santo lançou, em 2005, um plano estratégico para o setor, pretendendo duplicar a área de plantações no estado até 2010.

15- A empresa, no seu cálculo, inclui terras indígenas e quilombolas apropriadas como terras devolutas, a partir da década de 1960, revelando a total ausência do reconhecimento desses territórios étnicos pelo Estado brasileiro.

16- Cada uma delas, a Stora-Enzo e a Aracruz Celulose, possui 50% das ações na empresa Veracel Celulose.

17- Liderança quilombola da comunidade de Linharinho e membro da Comissão Quilombola do Sapê do Norte. Consultar: Oliveira, Osvaldo Martins de et al. Quilombo: autodefinição, memória e história. In: Castanhede Filho, Andréa et al. O Incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/Incra, 2006. p. 123.

18- Os Guarani chegaram à região em meados da década de 1960, na busca da “Terra sem Males” ou da “Terra Sagrada”, e habitaram o território Tupiniquim.

19- A Rede Alerta contra o Deserto Verde é uma rede informal que se formou em 1999, constituída por comunidades impactadas pela monocultura de eucalipto, por movimentos sociais e por entidades de apoio, com o intuito de frear a contínua expansão das monoculturas de árvores e de apoiar as lutas de resistência das comunidades impactadas. A Rede começou a organizar-se no norte do Espírito Santo e no extremo sul da Bahia, onde, conjuntamente, existem cerca de 500 mil hectares sob o domínio de algumas empresas plantadoras de eucalipto. Posteriormente, Minas Gerais, o estado com a maior área de plantações no Brasil – com cerca de 2 milhões de hectares – integrou-se à Rede, tendo em vista a iminência da instalação da Aracruz Celulose no norte do estado, seguido do Rio de Janeiro. Por último, o Rio Grande do Sul também passou a fazer parte da organização, devido à expansão das monoculturas de eucalipto e pinus no sul e no oeste desse estado.

20- Antes da chegada dos europeus colonizadores, esta terra constituía, em sua totalidade, diversos territórios indígenas.

21- Esses números são divulgados por lideranças indígenas e quilombolas. Apesar da dificuldade de se precisar exatamente o tamanho da área usada pelas comunidades e o número de aldeias e comunidades quilombolas existentes até as décadas de 1960 e 1970, os mais velhos, que guardam na memória os acontecimentos longínquos, constituem-se as principais fontes de informação que permitem recompor a história desses povos.

22- Essas populações sempre fizeram o uso comum do território. No entanto, na década de 1960, o estado capixaba, que tinha interesse em caracterizar aquelas terras como devolutas, impôs aos moradores das comunidades negras rurais que requeressem sua pequena parcela individual de terra ao governo estadual e a registrassem nos cartórios de registro de imóveis. As terras não requeridas foram consideradas devolutas e ficaram disponibilizadas, posteriormente, para a empresa Aracruz.

23- Uma iniciativa importante das comunidades quilombolas protagonizada pelas mulheres é a Festa do Beiju, um evento que acontece uma vez por ano e que reúne as diversas comunidades, buscando recuperar e fortalecer práticas tradicionais da culinária quilombola.

24- Coqueiral, bairro situado no município de Aracruz, criado pela empresa para abrigar os seus empregados.

25- O acordo foi firmado em decorrência do segundo processo de autodemarcação, iniciado pelas populações indígenas, em 1998. A estratégia da empresa foi – juntamente com o gabinete da presidência da República (Fernando Henrique Cardoso), a Funai e a Polícia Federal – isolar as lideranças do movimento em Brasília, forçando-as a um acordo, com validade de vinte anos, bastante favorável à empresa. O acordo determinava que os índios não poderiam questionar a decisão, inconstitucional, do governo brasileiro de repassar as terras indígenas para a Aracruz e, como contrapartida, a empresa, durante

RefeRências

Page 76: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

75

vinte anos, financiaria projetos nas aldeias. Dessa forma, ela conseguiu desmobilizar as ações de autodemarcação.

26- Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (iniciativa privada).

27- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.

28- Maria Helena é não-índia. Casou-se com um tupiniquim e vive na aldeia Pau-Brasil.

29- O ex-marido de Margarida é não-índio.

30- A Lei n.º 11.340/07, Lei Maria da Penha, dá cumprimento à Convenção de Belém do Pará, tipifica e define a violência doméstica e familiar como uma forma de violação dos direitos humanos, altera o código penal e possibilita que os agressores sejam presos, acaba com as penas pecuniárias e prevê inéditas medidas de proteção para as mulheres que correm riscos de morte, como o afastamento do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação física da mulher agredida e dos filhos.

31- A Disa é uma empresa produtora de álcool e grande plantadora de cana-de-açúcar. A Plantar é a empresa terceirizada pela Aracruz para cuidar do plantio de eucalipto.

32- Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.

33- Aleida refere-se às tentativas de autodemarcação realizadas pelas populações indígenas para a retomada do seu território. Houve três movimentos buscando autodemarcar o território. A primeira demarcação aconteceu em 1981, a segunda, em 1998 e a última, em 2005.

34- Até hoje não existe uma expressão em guarani que traduza a palavra “vender”. 35- Ferreira, Simone R. B. Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim dos territórios comunais no extremo norte do Espírito Santo. 217 p. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002. p. 160.

36- Associação dos Geógrafos do Brasil. Relatório de impactos da apropriação dos recursos hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. Vitória: AGB, 2004.

37- Deusdéia é funcionária do posto de saúde da aldeia Tupiniquim Pau-Brasil, administrado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

38- O SUS é o sistema público brasileiro de saúde. A Funasa é vinculada a ele.

39- Ñhanderu – Deus Guarani; Tupã – Deus Tupiniquim.

40- Kaplan, Temma. Uncommon women and the common good: women and environmental protest. In: Rowbotham, Sheila; Linkogle, Stephanie (Ed.). Women resist globalization: mobilizing for livelihood and rights. London: Zed Books, 2001, p. 28-42. p. 29.

41- Como resultado da presença política das mulheres indígenas e quilombolas nos fóruns específicos de mulheres, foi aprovada a moção de solidariedade aos povos indígenas do Espírito Santo na última Conferência Nacional de Políticas Para as Mulheres, ocorrida em Brasília.

42- Mais recentemente, no processo de ocupação de uma parcela do território que se encontra sob o controle da empresa Aracruz, em Linharinho, mulheres que frequentam a Escolinha Quilombola – divulgaram o Manifesto do Grupo de Mulheres da Escola Quilombola, em agosto de 2007.

43- A Escolinha Quilombola é uma iniciativa da Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase) do Espírito Santo.

Amato, Fábio. Produção de álcool no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, p. B5, 18 mar. 2007.

Associação dos Geógrafos do Brasil. Relatório de impactos da apropriação dos recursos hídricos pela Aracruz Celulose nas terras indígenas Guarani e Tupiniquim. Local: AGB, 2004.

Barcellos, Gilsa Helena; Ferreira, Simone Batista. Mulheres e eucalipto: histórias de vida e resistência. Montevideo: Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (World Rainforest Movement - WRM). Coleção do WRM, plantações nº 11, dez. 2007.

Ciccarone, Celeste. Territórios quilombolas no Espírito Santo: a experiência do Sapê do Norte. Apresentação. In: Castanhede Filho, Andréa et al. O incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/Incra, 2006. p. 116-122.

Ferreira, Simone R. B. Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim dos territórios comunais no extremo norte do Espírito Santo. 217 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.

Kaplan, Temma. Uncommon women and the common good: women and environmental protest. In: Rowbotham, Sheila; Linkogle, Stephanie (Ed.). Women resist globalization: mobilizing for livelihood and rights. London: Zed Books, 2001. p. 28-42.

Lage, Nilson; Chernij, Carlos. Filhos da pobreza/queda da natalidade x aumento da miséria. IstoÉ, São Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/1744/ciencia/1744_filhos_pobreza.htm >. Acesso em: 15 jun. 2006.

Morre Ruschi, pesquisador dos pássaros. Folha de São Paulo On Line. São Paulo, 4 jun. 1986. Disponível em: <www.almanaque.folha.vol.com.br/cotidiano_041jun1986.htm-13k>. Acesso em: 5 jul. 2006.

Movimento das Mulheres Camponesas do Brasil. MMC e Via Campesina trancam portões de viveiros de eucalipto seguindo na discussão contra o Deserto Verde. Disponível em: <http://www.mmcbrasil.com.br>. Acesso em: 16 set. 2007.

Oliveira, Ariovaldo Umbelino de. A questão fundiária, entraves, desafios e perspectivas: A questão da propriedade da terra no Brasil. Palestra apresentada no Seminário da Terra. Promoção: Bancada Estadual do Partido dos Trabalhadores e MST/ES. Vitória, em 14 set. 2007.

Oliveira, Osvaldo Martins de et al. Quilombo: autodefinição, memória e história. In: Castanhede Filho, Andréa et al. O incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências. Brasília: MDA/Incra, 2006. p. 123-130.

Paredes Piqué, Susel. Invisibles entre sus árboles. Lima: Centro da Mulher Peruana Flora Tristán, 2005.

Plataforma del Acción. Instituto del Tercer Mundo. Compromisos: resoluções aprobadas por la conferencia. Disponível em: <www. [email protected] >. Acesso em: 2 set. 2007.

Silvestre, Luciana. Mulheres da Via Campesina ocupam porto da Aracruz Celulose. Informe. 09 mar. 2009.

Via Campesina. O latifúndio dos eucaliptos: informações básicas sobre as monoculturas de árvores e as indústrias de papel. Porto Alegre, 2006.

Via Campesina, Fetraf. Manifesto do 8 de março: mulheres camponesas na luta contra o agronegócio, por Reforma Agrária e Soberania Popular. Mar. 2009. Disponível em: <www.mst.org.br>. Acesso em 13 mar. 2009.

RefeRências BiBliogRáficas

Page 77: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

76

Page 78: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

77

• Impactos sobre os recursos hídricos• Impactos sobre o trabalho

PARTE 2

Page 79: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

78

A exuberância da Mata Atlântica foi continuamente destruída para permitir o aumento da monocultura

homogênea do eucalipto: cenário desolador

Tam

ra G

ilber

tson

Page 80: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

79

Os próximos três capítulos abordam os impactos das plantações de eucalipto e fábricas de celulose da empresa Aracruz sobre a água e as comunidades que dependem dela. O primeiro texto, de autoria de Marilda Teles Maracci, aborda principalmente os im-pactos que as plantações de eucalipto nos anos de 1960 e 1970 causaram sobre as comunidades indíge-nas e quilombolas do ponto de vista da sua relação ín-tima com os recursos hídricos, até então abundantes nos seus territórios. Em vez de suprir plenamente as demandas diversas dessas comunidades, os recursos hídricos ganham um destino radicalmente diferente: as árvores de eucalipto e as insaciáveis fábricas de celulose da Aracruz.

No segundo texto, Daniele Meirelles e Marcelo Cala-zans abordam a construção, a partir de 1975, das três fábricas de celulose da empresa e o consumo de água dessas fábricas, construídas pela Aracruz ao lado do bairro de pescadores Barra do Riacho, além das políticas empresariais para justificar e disfarçar esse consumo cada vez mais exorbitante. No terceiro capítulo dessa se-gunda parte, Marilda Teles Maracci apresenta as obras mais recentes de desvio e represamento de água, os im-pactos dessas sobre a vida de comunidades pesqueiras, como Comboios e Barra do Riacho, as irregularidades ocorridas no processo de licenciamento do Canal Cabo-clo Bernardo, bem como a luta das comunidades indíge-nas Tupiniquim e Guarani na tentativa de recuperar os rios Sahy e Guaxandiba, que passam por seu território.

APRESENTAÇÃO“Nossa briga é por causa da Aracruz ter plantado este eucalipto e destruído nosso rio, que antes as mulheres todas lavavam roupa, nós pescava, tomava banho, pegava água para cozinhar e para beber. E hoje está tudo seco e não podemos mais beber água de rio por causa do veneno”.1

Considerando a íntima relação existente entre latifúndio e monocultura, o modelo produtivo monocultor, pelo seu caráter de grande concentração fundiária e de exploração de recursos naturais, seja para produção de eucalipto, soja, cana ou outras culturas inseridas nas demandas do mercado consumidor capitalista mundial, constitui-se em fator gerador de danos sociais e ambientais que vitimam particularmente as populações camponesas e tradicionais. Ou seja, as racionalidades que fundamentam tais práticas produtivas constituem-se num processo de negação e destruição da agricultura de subsistência e dos mundos de viver dessas populações, além do aprofundamento da marginalização econômica e social de amplos setores da sociedade civil.

Nessa perspectiva, a instalação do complexo agro-in-dustrial Aracruz Celulose S/A no Espírito Santo alterou significativamente o padrão de posse e de uso da terra e das águas, atingindo as populações locais preexisten-tes (citando apenas populações atingidas diretamente), aprofundando restrições territoriais e custos ambientais. A expansão da empresa é extremamente acelerada e a di-mensão dos danos sociais e ambientais e os conflitos de-correntes aprofundam-se também em ritmo acelerado.

As comunidades pré-existentes no litoral norte do Espí-rito Santo, integradas à Mata Atlântica, realizavam apro-priações comunitárias da terra e, consequentemente das águas. A partir do final dos anos de 1960, os territórios dos municípios de Aracruz, São Mateus e Conceição da Barra, principalmente, foram invadidos pelos amplos monoculti-

A re-significação da água pelo uso industrialMarilda Teles Maracci1

Page 81: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

80

Page 82: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

81

“Através da análise de fotos aéreas obtidas em 1970/1971, verificou-se que pelo menos 30% da superfície do município de Aracruz era coberta por floresta nativa no início da década de 1970, que foram substituídas por florestas homogêneas de eucalipto para a Arflo.”

[Rima/Aracruz Florestal, 1987, p. 6]

Foto aérea: Rio Piraquê-Açu, município de Aracruz (ES), 1965

vos de eucalipto, matéria-prima fundamental para a pro-dução da celulose branqueada, que, por sua vez, demanda em seu processo de produção a utilização de recursos hí-dricos em quantidades particularmente insustentáveis. Ou seja, a amplitude dos danos ambientais e sociais desse em-preendimento empresarial celulósico apresenta-se tanto pela concentração de grandes extensões de terras quan-to pela utilização de enorme quantidade de água, transfor-mada e reduzida a recurso hídrico industrial.

a substituição da mata nativapor plantio de eucalipto

Especificamente no que se refere à substituição da Mata Atlântica por plantios de eucalipto, os argumentos da em-presa e da respectiva rede de técnicos e pesquisadores conflitam-se com as constatações verificadas em diversos relatos/demonstrações das populações tradicionais que ainda resistem ilhadas pela monocultura. Os relatos des-sas populações encontram correspondência, no entan-to, com diversos outros estudos disponíveis2. Percebe-se nesse conflito que “o que é político, se apresenta como ra-zão técnica (...) práticas desenvolvimentistas comandadas pela lógica econômica que se sobrepõe às temporalidades bio-geo-físico-químicas e culturais distintas de cada lugar” (Porto-Gonçalves, 2006, p. 20).

No contexto da invasão de seus territórios, a devastação da mata nativa, substituída pela monocultura de eucalip-to, configurou-se como o principal elemento de desorga-nização do cotidiano tradicional das populações pré-exis-tentes, como, por exemplo, dos Tupiniquim e dos Guarani.

“Estamos imprensados pela Aracruz Celulose. Há uns trezentos metros da aldeia já começava a plantação de eucalipto, e se um funcionário te visse lá dentro, você tinha que dar um jeito de correr. Tínhamos que cortar lenha pra fazer comida e não havia mais matéria-prima nenhuma nas nossas terras.”

(Djaguareté, liderança Tupiniquim)

De acordo com fotos aéreas datadas de 1965, a região hoje ocupada pelo plantio e pelo complexo fabril celuló-sico era coberta em grande parte pela Mata Atlântica. Da mesma forma, Estudos de Impacto Ambiental e os res-pectivos Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/Rima), feitos em 1986/1987 pelo Instituto Tecnológico da Uni-versidade Federal do Espírito Santo para a Secretaria de Estado da Saúde - órgão responsável pelo licenciamento ambiental à época - , afirmam que:

“Através da análise de fotos aéreas obtidas em 1970/1971, verificou-se que pelo menos 30% da superfície do município de Aracruz era coberta por floresta nativa no início da década de 1970, que foram substituídas por florestas homogêneas de eucalipto para a Arflo.”

[Rima/Aracruz Florestal, 1987, p. 6]3

Page 83: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

82

Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos 66,3% do território capixaba co-berto por florestas nativas em 1950, restavam em 1970, apenas 8,5%. Em 1971, o biólogo Augusto Ruschi denun-ciava o desmatamento da Mata Atlântica pela empresa e o desaparecimento das espécies da ornitofauna nativa.

“Assisti, em áreas da então Aracruz Florestal, coisas como esta: com a derrubada das florestas que margeavam a estrada que vai de Santa Cruz para Aracruz, pelo lado da margem esquerda do Piraquê-Açu, até os papagaios ficavam atônitos ao regressarem à tarde para o pernoite nas matas que tinham deixado pela manhã, pois com os tratores, usando correntões de 50 metros de extensão, nos quais os elos pesam mais de 100 quilos cada, muitos hectares iam sendo derrubados diariamente, e muitas vezes capturei no solo, entre ramagens e mesmo na estrada, exemplares de papagaios. Esse tipo de derrubada afastou impiedosamente um grupo de 600 índios que ali vivia havia mais de 50 anos, conforme descrevi em publicação científica. Pois fiz, pela primeira vez, um estudo sobre a prospecção de uma população indígena e a área mínima que é indispensável para que possa viver em seu habitat, suprida de alimentação e tudo mais que é fundamental para sua sobrevivência.”

(Ruschi, 1954, s/n)4

“As presentes espécies eram abundantíssimas nas matas que ligavam Santa Cruz a Aracruz, onde foram feitas e ainda continuam as derrubadas com dois tratores em paralelo, ligados por um correntão, que avançam sobre a floresta virgem e levam tudo de roldão. Mais de vinte quilômetros em linha reta desta floresta, por mais de seis de profundidade vem sendo derrubada, e a cada dia são centenas de hectares, e após um mês recebem fogo, e logo com a calagem do terreno, vem em seguida o plantio do eucalipto.”

(Ruschi, 1971, s/n, apud AGB-ES, 2004, s/n)

A área de ocupação indígena, quilombola e campone-sa estava prestes a ser transfigurada numa extensa mo-nocultura de eucalipto, provocando impactos de grande magnitude, particularmente nas comunidades indígenas.

Até 1975, foram plantados 51 milhões de pés de eu-calipto, 70% dos 40 mil hectares de terra em Aracruz e 30 mil hectares nos municípios de São Mateus e Con-ceição da Barra, ao longo do litoral norte do estado. Nos 10% restantes do litoral, constituídos por floresta nati-va, 1% era reservado à área de preservação ambiental sob o controle da Aracruz Celulose e inacessível à po-pulação local, impedida de explorar os recursos naturais para sua própria sobrevivência. O município de Aracruz tem 1.435 km², dos quais foram desmatados pelo menos 430 km² da floresta tropical pluvial nativa para dar lugar à plantação de eucalipto (AGB-ES, 2004).

O déficit de águas decorrentes da substituição da mata nativa por plantio de eucaliptos no norte do Espírito San-to é uma evidência relatada pelas populações locais5, que percebem a grande transformação na dinâmica hídrica do complexo geográfico que envolve seus territórios. To-das as comunidades atingidas são unânimes em afirmar a diferença percebida nos níveis dos rios e córregos, o de-saparecimento de tantos outros e de nascentes, a ausên-cia das matas ciliares, a interrupção de rios por barragens e manilhas, além da contaminação por agrotóxicos e es-goto. São impactos evidenciados no meio físico, constata-dos pelas populações locais e verificados por diversos es-tudos, constituindo-se em um dos elementos contunden-tes dos conflitos territoriais em pleno processo no Espíri-to Santo6. O biólogo Augusto Ruschi alertou:

“Em 30 anos, os nossos desertos de eucaliptos estarão ainda mais estéreis, sem pássaros, sem outras árvores. [...] Quem planta uma área totalmente com eucalipto, nas proporções como se está fazendo no Espírito Santo, está fabricando deserto pelo simples fato de ser uma floresta homogênea de espécie exótica, onde não há um ecossistema, mas um único nicho ecológico de consorciação, que é o eucaliptal. Depois, nem os eucaliptos crescerão mais. [...] Como já explanei em outras palestras, a fisiologia de algumas espécies, como o Eucalyptus saligna, o mais plantado no Espírito Santo, exige um consumo monumental de água. Segundo as análises realizadas pelos professores Franco e Inforzato e ainda Villaça e Ferri, em 1954, no boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, nº 173, série Botânica 11, a partir do terceiro ano de vida, uma planta dessa espécie consome por ano 19,6 milhões de litros de água, e um hectare com 2.200 árvores consome 49,6 bilhões de litros de água, dando esse total uma equivalência pluviométrica de 4.000 mm de chuva por ano. Se considerarmos que na região dos eucaliptais da Aracruz Celulose e da CVRD ou Flonibra a precipitação anual chega em média a 1.400 mm/ano de chuva, a diferença necessária de mais de 2.000 mm é retirada do solo e subsolo, tanto pela função osmótica como pela função de sucção das raízes. Retira até mesmo do lençol freático o restante da água de que necessita, e assim a água vai escapando, num déficit que cresce anualmente até atingir maiores profundidades.”

(Ruschi, in Medeiros, 1995, s/n)7

É importante reafirmar que o fator gerador dos grandes danos sociais e ambientais que vitimam populações cam-ponesas e tradicionais é, fundamentalmente, o modelo produtivo de monocultivos em grandes extensões de ter-ra, seja ele de eucalipto, soja, cana etc. O monocultivo de eucalipto para produção de celulose, no entanto, traz em si graves especificidades no que diz respeito ao manejo, à grande escala, à grande proporção de uso de água no pro-cesso produtivo da celulose, e, ainda, ao caráter de expan-

Page 84: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

83

Foto aérea: Rio Riacho, município de Aracruz (ES) 1965

Page 85: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

84

são extremamente acelerada que caracteriza o empreen-dimento papeleiro, cuja demanda de consumo mundial de papéis amplia-se de forma desmesurada.

Por isso, é importante que consideremos a demonstra-ção, aqui, dos efeitos do plantio e do manejo de eucalip-to em larga escala com curtos períodos de corte (entre 5 a 7 anos) sobre os recursos hídricos nos ecossistemas e no modo de viver das populações onde é plantado, fartamen-te documentados nos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação de Territórios Quilombolas publicados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (In-cra-ES), pesquisas acadêmicas, relatórios de 2002 e 2003 da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômi-cos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca), documentá-rios em vídeo8 e reportagens em revistas e jornais locais9. Segundo o jornalista capixaba Rogério Medeiros, até 1995, 156 córregos já tinham desaparecido no município de Con-ceição da Barra10.

No entanto, sendo a disponibilidade de água um fator relevante nos altos indicadores de produtividade apre-sentados pela empresa, a sua apropriação pelo capital, a lógica e as re-significações dos recursos hídricos por tal uso são radicalmente conflitantes às da apropriação/sig-nificação social da água. Este conflito aparece em diversas arenas, mas equipes científico empresariais, nas disputas metodológicas, constroem argumentos a partir de cálcu-los (bastante limitados) do consumo de água nas planta-ções de eucalipto. A ciência empresarial sustenta a “tese da semelhança”, restringindo-se apenas à mensuração do consumo: “o consumo de água nos plantios de eucalipto é semelhante ao da floresta nativa”11, opondo-se sobretudo à realidade experimentada pelas populações tradicionais do Espírito Santo nas últimas quatro décadas.

Não são poucos os documentos, estudos, pesquisas, re-latos, depoimentos, denúncias e demonstrações empí-ricas que compõem acervos de movimentos campone-ses, indígenas, quilombolas, entidades civis, pesquisado-res universitários e ONGs revelando uma outra realida-de, oposta aos resultados demonstrados pelo setor celuló-sico. A Rede Alerta contra o Deserto Verde reúne um amplo acervo de produção coletiva12 nesse sentido, o que possi-bilita, por exemplo, este pertinente questionamento “so-bre a tese da semelhança”:

“Ainda que a tese da ciência empresarial fosse inquestionável e definitiva. Quer dizer, ainda que, ‘o consumo de água nos plantios de eucalipto é semelhante ao da floresta nativa’, fosse uma sentença correta e cientificamente demonstrável, convém pensar ainda nas inescapáveis diferenças e radicais dessemelhanças, tal como comparam os índios Guaranis e Tupiniquins, os quilombolas e campesinos que testemunharam boa parte da Mata Atlântica sendo substituída pelos eucaliptais da empresa, e desde 1968, quando se iniciou a conversão para a monocultura,

contabilizam o sumiço de inúmeros córregos e lagos. Alguns de seus antigos leitos ainda podem ser observados, em meio ao eucaliptal, secos. Ou seja, ainda que o consumo de água fosse semelhante, para os povos da floresta e campesinos, seria melhor que esse consumo estivesse sendo feito pela Mata Atlântica, e não pela monocultura do eucalipto.”

(Fase, 2006, p. 21)13

Ainda no campo acadêmico, são fartos os estudos científicos disponíveis que apontam os efeitos que o plantio de eucalipto causa nos recursos hídricos. Na Índia, por exemplo, Vandana Shiva (1971) demonstra a “estratégia esclerofítica” da planta eucalipto como um perigo ecológico, por possuir sistemas radiculares bem abrangentes, o que permite extrair e armazenar água do solo dando continuidade a altas taxas de transpira-ção mesmo durante períodos de tensão temporária da umidade. Essa habilidade “permite ao eucalipto cres-cer sob condições nas quais outra vegetação, com ne-cessidades hídricas similares, pararia de demandar os escassos recursos de água” (Shiva, 1971, p. 74). O pro-fessor e pesquisador sul-africano Dr. Harald Witt, da Universidade de Natal, em Durban, afirma que os efei-tos da monocultura de eucalipto sobre nascentes, cór-regos e rios foram constatados em pesquisas desde 1936 na África do Sul e que esse debate está superado em seu país (WITT, 2001, s/n)14. No Brasil, o geógrafo Aziz Ab-Saber, o ambientalista Sebastião Pinheiro15 e o naturalista capixaba Augusto Ruschi, dentre outros, sustentam que é alto o consumo de água nas monocul-turas em larga escala, particularmente de ciclo curto de eucalipto, como é o caso em questão.

No Espírito Santo, o que se verifica em toda a extensão das plantações de eucalipto para celulose são práticas de manejo que agravam a condição ambiental e socialmente danosa que é própria das monoculturas em geral. Simone R. B. Ferreira (2002), em sua pesquisa sobre os impactos da monocultura de eucalipto no norte do Espírito Santo, identificou os seguintes problemas de manejo:

“No manejo florestal da agroindústria de celulose estão presentes: o plantio ao redor de nascentes, zonas de recarga hídrica e cursos d’água; a retirada de matas ciliares; o assoreamento dos rios, principalmente na época do corte e plantio, quando o solo fica mais exposto; a diminuição do manto orgânico no solo, provocando a diminuição da umidade local; a contaminação da água e do solo por agrotóxico e herbicida; a morte biológica do solo; o manilhamento e represamento dos rios e córregos, com a construção das estradas para o transporte do eucalipto (realizado por grandes carretas); a abertura de jazidas de barro e areia (para a manutenção de estradas) próximas a cursos d’água e dentro de lagoas”.

(Ferreira, 2002, p. 134)

Page 86: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

85

Com relação às nascentes, observa-se plantios de eucalipto no entorno e sobre nascentes16, em áreas de reservas hídricas superficiais, o que é evidenciado pelo afloramento de água de várias nascentes e pela pre-sença de diversos olhos d´água dentro da área de plan-tio de eucalipto na ocasião das chuvas, constatando que a empresa infringiu a Resolução do Conselho Nacio-nal de Meio Ambiente (Conama), nº 303 de 20 de mar-ço de 2002, (Art 3º, “2”), que estabelece limites e defi-nições referentes às Áreas de Preservação Permanen-te.17 Na ocasião da “CPI da Aracruz” (2002), foi consta-tado em depoimento da geógrafa Simone Ferreira que o plantio de eucalipto da empresa Aracruz Celulose já infringia a Resolução do Conama nº004/8518, ainda vi-gente no período, quando foram observados, por mais de três anos de pesquisa, afloramentos de várias nas-centes dentro do plantio de eucalipto e a ausência de mata ciliar em zonas de recargas hídricas e, ainda, que não foi respeitado o mínimo de 30 metros de mata ci-liar determinado pelo Código Florestal no córrego de Mangabeira, que liga Conceição da Barra à Itaúnas19.

Está colocado em questão, portanto, um processo de grande impacto ambiental como resultado do plantio de árvores de crescimento rápido em grandes exten-sões de terras e do manejo desse cultivo (agrotóxicos, utilização de reservas hídricas do solo e corte em me-nos de 7 anos). É crescente a demanda de produção in-dustrial de celulose branqueada de fibra curta para fa-bricação de papéis especiais, cujo destino é o atendi-mento do elevado e insustentável padrão de consumo dos países do Norte, preferencialmente. Esta produção, por sua vez, exige enorme consumo de água e gran-de descarga de efluentes industriais. No setor indus-trial, a indústria de papel e celulose é tradicionalmen-te uma das maiores consumidoras de água, e de água limpa e fresca.

No complexo industrial da Aracruz Celulose S/A, portanto, além da demanda de volumes consideráveis de água e da geração de grandes vazões de efluentes, algumas características químicas dos efluentes gera-dos na fabricação de celulose, notadamente cor e com-postos orgânicos clorados, são potenciais causadores de danos ambientais. Depois de usada para refrigera-ção ou diretamente no processo industrial da celulose, a água retorna para as outras águas da região, carre-gando consigo os restos dos processos industriais, en-tre eles o cloro, ainda hoje usado no branqueamento da celulose (Fase, 2006).

Uma tonelada de celulose requer 25 a 50 m³ de água. Para produzir papel, o volume de água varia de 6 m³ a 30 m³ - a depender do grau de umidade da polpa (Foe-lkel, 2004)20. Celso Foelkel (2007), pesquisador técnico do setor celulósico, em seu artigo A Fabricação de Ce-lulose Kraft Branqueada de Eucalipto e o Consumo de

Água, reconhece o grande consumo de água no setor quando apresenta dados e discute os custos do grande consumo de água para o setor:

“Como a água sempre custou pouco (apenas o custo de captação, tratamento e distribuição), a filosofia era a de se usar bastante água. O porquê disso é fácil de entender: quanto mais água se usa no processo, mais fácil fica a eliminação de contaminantes indesejáveis que causam cor na celulose e incrustações no processo. [...] não há muito tempo atrás, atingíamos essas enormidades de 150 a 250 m³ de consumo de água por tonelada de celulose e de 25 a 40 m³ por tonelada de papel. Algo definitivamente inaceitável para os padrões de hoje. O mundo mudou nesse período, as empresas e as tecnologias se aperfeiçoaram, procurando consumir menos água e gerar menos efluentes. Chegamos hoje a valores entre 25 a 40 m³/adt [tonelada seca ao ar, corresponde à unidade de medida de celulose – do inglês “air dry ton”] na fabricação da celulose kraft branqueada de eucalipto e a 7 a 15 m³/tonelada na fabricação do papel branco. É uma grande melhora, mas não podemos ainda aceitar isso como bom. A água ainda é muito barata, entre 0,05 a 0,12 US$/m³ (2 a 4 US$/adt), mas o custo do tratamento dos efluentes não é tão barato assim (entre 7 a 15 US$/adt de polpa, dependendo da intensidade e do tipo). Isso tudo só falando em custos diretos, sem depreciação. Há também uma velha regra muito fácil de se entender: quanto mais água uma fábrica capta, maior será o volume de efluentes que ela gerará. Nada mais natural, é a velha lei de conservação das massas de Lavoisier, “tudo o que entra deve sair” para se manter o balanço material. Óbvio, então, que os custos aumentam conforme usarmos mais água, já que haverá mais efluentes a tratar.”

(Foelkel, 2007)21

Nota-se que a inaceitabilidade do enorme consumo de água, do ponto de vista do setor celulósico-papeleiro, re-fere-se apenas aos custos operacionais22, fator prepon-derante que atualmente mobiliza esforços para reduzir as taxas de consumo por toneladas, somados às exigên-cias do mercado internacional quanto à sustentabilidade ambiental. Nessa mesma racionalidade, a Aracruz Celu-lose informa em seu Relatório Anual de Sustentabilidade 2006 que reduziu seu consumo de água para 35,2 m3/tsa (toneladas/ano).

Porém, é importante diferenciar quantidade de consumo por tonelada de quantidade de consumo absoluto de água. Por se tratar de uma empresa de expansão acelerada em segmentos temporais muito curtos, essa diferenciação tor-na-se fundamental na discussão do uso da água enquanto recurso hídrico. Seu consumo de água segue aumentando proporcionalmente ao crescimento de sua capacidade pro-dutiva, ainda que em taxas menores por toneladas, e esses números não são apresentados nem discutidos.

Page 87: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

86

2Papel para o Norte, hiper-consumo de água no Sul: uma hidro-genealogia das fábricasda Aracruz 23

Daniela Meirelles e Marcelo Calazans24

Desviando rios para abastecer seus reservatórios de água para o processo industrial. Lançando seus efluentes nas águas da região. Plantando sua monocultura de euca-lipto sem respeitar lagos, nascentes e córregos. Lançando herbicidas e pesticidas sobre seus plantios industriais. Irrigando mudas nos viveiros e plantios. A Aracruz Ce-lulose S/A sempre requisitou enorme volume de água da sociedade civil em seu entorno territorial.

No complexo industrial da Aracruz Celulose S/A, a água é consumida em vários setores e momentos de seu processo produtivo: no manejo e na preparação dos ca-vacos, no digestor e no branqueamento, na caustificação e no forno de cal, na depuração da polpa branqueada, na secagem e no turbo-gerador e, sobretudo, na alimentação das caldeiras. Também é intensamente utilizada nos pro-cessos de deslignificação, na secagem, no enfardamento e na evaporação25.

Depois de usada para a refrigeração ou diretamente no processo industrial da celulose, a água retorna para as outras águas da região, como efluente, carregando consi-go os restos dos processos industriais.

No viveiro e nos plantios homogêneos de eucalipto de rápido crescimento, a água é elemento fundamental para o desenvolvimento das mudas e da planta, em seu curto ci-clo evolutivo, até chegar à idade de corte. Não apenas o sol dos trópicos, mas também a disponibilidade de água é fa-tor relevante nos altos indicadores de produtividade apre-sentados pela empresa.

Para piorar, os agrotóxicos, herbicidas e pesticidas, lí-quidos ou granulados, são amplamente utilizados na monocultura em larga escala de eucalipto, que afetam diretamente os recursos hídricos das populações tradi-cionais que habitavam a Mata Atlântica e hoje se encon-

tram ilhadas em meio ao eucaliptal da empresa.Difícil, e mesmo impossível, é separar a problemáti-

ca da água das demais temáticas do mesmo território em disputa: a questão da terra, a questão das florestas e da biodiversidade, a temática das culturas tradicionais e do poder. Sem desrespeitar a integralidade e unidade das lu-tas territoriais, apresentamos uma breve historiografia da empresa, desde a perspectiva da água.

História da primeira fábrica no espírito santo - 1978História da água em Barra do Riacho, quem lembrava

era “seu” Abdon, antigo morador do distrito litorâneo, no município de Aracruz. Em sua vizinhança, no final dos anos de 1970, veio se instalar o complexo industrial da Aracruz Celulose S/A.

O pequeno distrito, com cerca de duas mil famílias, era formado principalmente por pescadores. Logo, ele se transformou em hospedagem para milhares de tra-balhadores temporários atraídos para a região durante a construção da primeira planta industrial da empresa. No pico da obra, eram 13.996 trabalhadores26, em sua gran-de maioria homens. As noites de Barra do Riacho nunca foram tão movimentadas: prostituição, violência, tráfico. Um jornal da época estampou a seguinte manchete: “Do-mingo em Barra do Riacho: quando a cidade vira zona”27. Este povoado só voltaria a ser tão movimentado no início dos anos de 1990, quando ocorreu a construção da segun-da fábrica de celulose. Os trabalhadores temporários vêm e se vão, porém a fama de “bairro de prostituição” não abandona a imagem de Barra do Riacho, afetando o coti-diano das famílias que lá habitam.

Mas não era apenas o abrupto impacto da superpopu-lação diante da ínfima infraestrutura local o que indig-nava a população pescadora de Barra do Riacho. Com a nova vizinhança empresarial, a água passou a ser um grande problema.

Sobre o período anterior à conclusão das obras da pri-meira fábrica, em setembro de 1977, em plena ditadura militar, “seu” Abdon lembra que:

“Eles prenderam o rio lá onde o Jiúna encontra com o Riacho pra fazer a barragem móvel. Aí, nós ficamos com a água salgada até o meio. Quarenta barcos vão ficar sem barra pra poder passar. Dentro do Rio Riacho esgota o Rio Constantino, o Córrego do Arrozal, o Águas Claras, o Brejo Grande, o Rio Quilombola, o Araraquara, o Ribeirão da Linha, o Ribeirão do Cruzeiro, a Lagoa do Aguiar, a Lagoa de Baixo, a Lagoa do Meio, o Rio Pavão, o Maruboa, todos eles agora esgotam pra fábrica e nós ficamos sem água porque ela ficou presa”.28

Oito meses depois, em 13 de abril de 1978, o relatório da administração da Aracruz Celulose S/A, referente ao exercício de 1977, divulgava para seus acionistas e pú-

Page 88: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

87

blico em geral, os momentos finais de construção da pri-meira fábrica de celulose no Espírito Santo, então previs-ta para iniciar suas operações em julho de 1978. De fato, conforme lembrava “seu” Abdon, as obras no sistema de águas eram das mais adiantadas. O enunciado do relató-rio empresarial confirma:

“e) Sistema de águas: essa área apresenta um índice ge-ral de conclusão de 92,6 por cento do total da obra. O res-tante prossegue sem que se observe desvios significati-vos no cronograma de execução e sem prejuízo no abas-tecimento de água à fábrica; que vem sendo feito desde agosto de 1977.”29

Como e de que forma conseguiram uma reserva de água suficiente para abastecer a primeira fábrica? E qual era o volume dessa demanda? Quanto pagava? O relatório da empresa sequer tangencia o assunto. No documento, ne-nhuma referência a “seu” Abdon ou aos conflitos em Bar-ra do Riacho. Nenhum aprofundamento quanto à forma-ção de seu reservatório de água. Não eram informações para constar em um relatório da administração. Não in-teressavam aos acionistas e nem era razoável que fossem de domínio público, ainda menos para um público sob in-tervenção política de uma ditadura militar.

À época, no texto da própria empresa, ou conforme ecoado pela mídia regional30, fazia-se sempre referência a um “relatório otimista”, pois a obra estava adiantada, algumas partes já concluídas, e a indústria se preparava para o início da fase operacional.

Quanto ao abastecimento de água para a fábrica, o oti-mismo da empresa era mais que justificado. De fato, não havia “desvios significativos”, ao menos quanto ao “crono-grama de execução”. No entanto, havia sim desvios signi-ficativos, e muitos. Não no prazo da obra, mas no sentido de rios e córregos e lagos, e junto com isso, no destino dos quarenta barcos, inclusive o de “seu” Abdon. Com a chega-da do complexo industrial da Aracruz Celulose S/A, se ini-cia em Barra do Riacho um conflito por água que perdura até hoje, e ainda se amplia, mais de 30 anos depois.

E com a primeira fábrica se inicia também toda a pro-blemática do cloro, amplamente usado no processo de branqueamento da celulose e eliminado através dos efluentes industriais da empresa. Ao contrário da pressa em assegurar o abastecimento de água da fábrica de ce-lulose, no relatório de 1978, consta que a fábrica de clo-ro-soda estava ainda em seu projeto básico, preliminar, pois o início de sua operação estava previsto apenas para 1979. Enquanto isso, segundo a empresa:“o branquea-mento se fará com o uso exclusivo de clorato de sódio no primeiro estágio”.31

Para garantir a pureza e a brancura exigidas pelo con-sumidor do Norte, a fábrica de 1978 lança, por um ano, o cloro elementar e restos de matéria orgânica nas águas da região. E durante 13 anos, contínua e ininterruptamente, o cloro continua um elemento constante nos efluentes da

Aracruz. Até hoje, parte da celulose da empresa ainda usa cloro no processo de branqueamento. A decisão pelo uso ou não do cloro é menos uma filosofia da própria empre-sa e mais uma determinação do mercado consumidor. Se o mercado alemão não aceita cloro e o japonês o aceita, a empresa tem celulose para ambos. E a regulação brasi-leira é flexível o suficiente para absorver as duas formas de produção. Mas nessa época, na Aracruz, ainda não ha-via celulose sem cloro. Esse debate se inicia apenas com a chegada da segunda fábrica.

a problemática ambiental da segunda fábrica – 1991

Inaugurada no dia 27 de maio de 1991, com a presen-ça do presidente Fernando Collor de Melo, a segunda fá-brica da Aracruz Celulose S/A consumiu investimentos de US$ 1,2 bilhão. Para captar esse montante, uma nova e grande orquestração de interesses foi montada. Afinal, como na entrevista de Francisco Gros, então presidente da empresa:“Este é o maior projeto de papel e celulose em todo o mundo e também o maior projeto de execução definida no Brasil no momento, mesmo considerando in-vestimentos públicos”.32

Palavras semelhantes haviam sido ditas em 1978. He-rança direta do discurso da ditadura militar – a idéia de um País gigante que finalmente acorda para seu futuro estrelato no mundo, os mega-projetos de desenvolvimen-to, o discurso do progresso, do País que cresce; a empre-sa repetia: a maior do mundo, o maior empréstimo, a mais avançada tecnologia...

Um ano depois da inauguração da segunda fábrica, ocorreu, no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, mais conhecida como Eco-92. No mesmo período, o presidente do Conselho de Administração da Aracruz Celulose, Er-ling Lorentzen, assinava em Roterdã, na Holanda, a “car-ta de princípios” sobre desenvolvimento sustentável33, da Câmara de Comércio Internacional, com apoio das Na-ções Unidas. Sem abandonar o discurso faraônico da “or-dem e do progresso”, herdado dos anos de 1960. Trinta anos depois, a Aracruz potencializa ao máximo seu dis-curso ambiental. Uma tecnologia de branqueamento da celulose, usando o dióxido de cloro (ECF), e o título de “plantador de florestas”, faziam parte de uma grande jo-gada publicitária. Um marketing estrategicamente verde. Em 1993, Lorentzen ganhou, em Nova Iorque, o prêmio “Personalidade do Ano”, concedido pela Câmara de Co-mércio Brasil-Estados Unidos.

Entretanto, o discurso da modernização ecológica da empresa estava diretamente relacionado à oportunidade econômica do momento, conforme entrevista do próprio Lorentzen à época: “Sem a nova tecnologia, deixaríamos de vender 150 mil toneladas de celulose ao mercado inter-nacional”. Ou ainda, na mesma entrevista: “Rapidamente,

Page 89: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

88

a companhia desenvolveu a tecnologia de branqueamen-to usando somente dióxido de cloro (ECF) ou dispensando totalmente a substância (TCF), técnica que resulta na fa-bricação de quatro novos tipos de celulose, atualmente re-presentando cerca de 30% de sua produção total”.34

O discurso do cloro foi tão massificado dentro e fora da empresa que, repentinamente, boa parte de seus di-retores pareciam acompanhar as mais recentes relações entre cloro e saúde humana. Conforme Armando Figuei-ra, presidente da Aracruz Celulose S/A, em 1991: “Vamos fazer a adaptação utilizando o oxigênio por exigência de nossos compradores, para não perder a competitividade. Alguns especialistas internacionais concluíram que o clo-ro tem substâncias cancerígenas”35.

Na mesma entrevista, um dado raramente transpareci-do pela empresa: “O diretor industrial da empresa, Car-los Augusto Aguiar, ressalta que foi utilizado o que há de mais moderno para o controle ambiental. Todo o trata-mento dos efluentes é feito por sete lagoas de aeração e o volume de água tratada (200 mil m3 por dia) abasteceria uma cidade como Fortaleza, exemplifica o diretor”36.

Certamente que a população de Fortaleza, capital do Ceará, no Nordeste brasileiro, é bem mais expressiva que a população que habitava a imediata vizinhança das duas fábricas, no município de Aracruz.

Não obstante o alarido empresarial acerca dos “30% da produção total” sem cloro, a maior diferença da primeira para a segunda fábrica está relacionada, principalmente, aos distintos contextos históricos de construção e inaugu-ração de ambas.

A primeira, em plena ditadura militar, sem chance de ser publicamente criticada, sem resistência possível. Já durante a construção da segunda, a sociedade brasileira vinha de um intenso processo de re-democratização.

No início da década de 1990, o marketing verde empre-sarial, apoiado substancialmente nos lemas do “free-clo-ro” e da “plantação de florestas”, podia ter um efeito inter-nacional de vasto alcance, porém era inexpressivo regio-nalmente, vis a vis o que a sociedade civil experimenta-va no entorno da empresa: pouca água, pouca pesca, pou-ca mata, pouca caça, pouca terra. Índios guaranis e tupi-niquins, pescadores, pequenos agricultores, trabalhado-res da fábrica e dos plantios, trabalhadores de empreitei-ras sub-contratadas para o manejo, todos já experimenta-dos dos impactos negativos da primeira fábrica, demons-travam seu descontentamento com o projeto em expan-são. A Aracruz Celulose passa a ser publicamente acusa-da com maior intensidade pela precarização das condi-ções de trabalho, concentração de terras e devastação das matas e dos rios da região.

O apoio de um conjunto de ONGs veio se somar à re-sistência das populações locais. O barco do Greenpeace ancorou no porto da Aracruz e um ato público contra a empresa foi realizado na escadaria do palácio do gover-

no, sob o tema: “Não ao Deserto Verde. A Farsa da Ara-cruz”. No cartaz que convocava o ato público, constava uma lista de críticas à duplicação da empresa.

• “Produz 1 milhão toneladas/ano (não aceitável em ne-nhum outro país);

• Cerca de 7 mil famílias, entre camponeses e índios, foram retiradas de suas terras;

• Concentração fundiária. A indústria possui 142 mil hecta-res da área do estado plantada com eucaliptos;

• Expulsão do homem do campo e consequente prolifera-ção de favelas;

• Redução drástica da área cultivável com alimentos básicos;

• Destruição de 80 mil hectares de florestas naturais;

• Desaparecimento de 156 córregos em Conceição da Barra;

• Lançamento de organoclorados e dioxinas no mar e no ar;

• Causa empobrecimento do solo e impede o poder de rege-neração das plantas nativas” 37.

As relações entre a empresa e o ex-governador Al-buíno Azeredo também não eram das melhores38. Ten-do tido sua educação básica em meio à ditadura mili-tar, com o poder federal verticalizado, centralizando to-dos os espaços decisórios, a Aracruz Celulose S/A nun-ca havia precisado negociar com os governos estaduais, menos ainda com a sociedade civil regional, pois tinha acesso direto a Brasília e aos militares.

Ainda que barganhando com o Estado, a empresa pas-sa a perceber que os grandes prêmios e o marketing ver-de internacional e o acesso a Brasília não eram mais su-ficientes para garantir todas as “contratações” necessá-rias para a segurança máxima do retorno dos investimen-tos. Seja na vizinhança de seu mega-complexo industrial, seja ao longo de seus 130 mil hectares39 de monocultura de eucalipto, no norte do Espírito Santo e extremo sul da Bahia, a empresa precisava negociar com os poderes pú-blicos locais, pressionados por índios, pescadores, cam-poneses, quilombolas, trabalhadores do próprio comple-xo e algumas ONGs, igrejas e pastorais.

Interessante observar que, embora violando direitos fundamentais da população tradicional da região desde 1968, quando se iniciam os plantios, a empresa só vem a ser multada pela primeira vez, em 24 de março de 1991, pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Seama), e justamente às vésperas da visita do príncipe Charles (Reino Unido)40.

Page 90: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

89

Meses depois, em setembro de 1991, uma nova manche-te nos jornais estampava: “Seama multa e ameaça fechar a Aracruz Celulose”. Essa foi a segunda multa, de CR$ 704 mil, “por estar lançando efluentes líquidos sem tratamen-to e de forma clandestina no córrego do Engenho”41.

A abertura política em si não significou um pleno pro-cesso de re-democratização do País. Quer dizer, o retor-no a um funcionamento mínimo das instituições políti-cas republicanas (parlamento reaberto, eleições diretas para presidente, independência entre os poderes, direi-tos civis e políticos, fim da censura) não garantiu a re-versão da profunda desigualdade social do Brasil. Assim, a Aracruz Celulose S/A, concentradora de água e terra, de renda e de poder, jamais se viu ameaçada pelo pro-cesso de reabertura política, ainda que o novo contexto a tenha obrigado a negociar minimamente com o estado e os poderes públicos locais.

A partir da década de 1990, a empresa saberia encontrar caminhos de viabilização de seus projetos junto aos poderes públicos locais e regionais. O financiamento de campanhas políticas de parlamentares federais, estaduais e municipais, o apoio direto a campanhas para o poder executivo, em di-versas prefeituras, também ao governo do estado e mesmo à presidência da República42, tal como a construção de fó-runs e espaços para o poder judiciário e recursos para sus-tentar pesquisas e teses nas universidades públicas e priva-das, são exemplos de algumas ações adotadas pela Aracruz nesse período. Mesmo algumas ONGs e sindicatos de traba-lhadores não deixaram de ter suas “cotas” de legitimação da poluição da Aracruz Celulose S/A, em “parcerias” para edu-cação e preservação empresarial do meio ambiente, o cha-mado “ambiental-business”.

A Aracruz Celulose S/A inicia, então, um processo de atuação mais capilar junto à sociedade civil e política local. Já na terceira fábrica, muitos dos políticos e téc-nicos dos órgãos públicos que denunciavam a empre-sa nos anos de reabertura, comemoraram sua inaugu-ração, com a presença de outro presidente, Fernando Henrique Cardoso.

Mais água para a terceira fábrica - 2003Inaugurada no dia 02 de agosto de 2003, a chamada “Fi-

berline C” é a terceira fábrica instalada na mesma região de Barra do Riacho, no Espírito Santo. Com uma capaci-dade produtiva de 700 mil toneladas de celulose/ano, a fábrica C realiza a meta total de 2 milhões de toneladas/ano, tão alardeada nos outdoors e banners e anúncios em jornais, através da publicidade empresarial.

Hoje, o complexo industrial da Aracruz Celulose S/A, em Barra do Riacho, consome cerca de 250 mil metros cú-bicos de água por dia43. Tal quantidade poderia abastecer uma cidade de 2,5 milhões de habitantes, número equi-valente ao da população da região metropolitana de Vitó-ria44. Um hiper-consumo que, ainda, cresce. E, no entan-

to, desde o início das operações da primeira fábrica, em 1978, que a Aracruz Celulose S/A nunca pagou nada pela apropriação e uso privado desse recurso coletivo. Se fosse água captada, tratada e distribuída pela Companhia Es-tadual de Saneamento (Cesan), pelo volume do consumo industrial, a conta de água da Aracruz Celulose seria algo em torno de R$ 16 milhões mensais.

Isso, sem contar o consumo da unidade industrial de Guaíba, adquirida em 2003 da Riocell, S.A., no estado do Rio Grande do Sul, com capacidade para 400 mil tonela-das de celulose/ano. E ainda a mais recente expansão da empresa, a Veracel Celulose, com capacidade de 900 mil toneladas/ano.

A demanda por água nas fábricas da Aracruz Celulose S/A é compatível à sua posição de líder na oferta global de celulose branqueada de fibra curta de eucalipto. Em 2004, a empresa foi responsável por 28% da oferta mun-dial do produto.

Em seu Relatório Anual – 2004, a Aracruz Celulose S/A comemora um “cenário econômico mais favorável”, ten-do em vista um aumento no consumo mundial de celu-lose de 6% ao ano, o dobro da média histórica. O mais re-cente mercado chinês e o aumento do consumo na Euro-pa e América do Norte orientaram para a seguinte meta pra 2006: 32% da celulose de fibra curta de todo o plane-ta45. Quanto maior o consumo de papel no Norte, mais otimismo, pois mais produção e lucro, assim indefinida-mente, diminuindo ou, se possível, externalizando seus custos. É a lógica da empresa, conforme seu Relatório Anual 2004: “O objetivo estratégico da Aracruz é ampliar sua participação no mercado global de celulose de fibra curta nos próximos anos, e se manter entre as empresas com mais baixo custo de produção do setor no mundo, adicionando valor para os acionistas e demais interessa-dos na Companhia.”

No sobre-valor dos acionistas e demais interessados não tem sido debitada a conta d’água, desde a fábrica de 1978, ao contrário da vizinhança, que paga pelo con-sumo doméstico familiar (quando tem água encanada) ou compra água mineral captada e engarrafada lon-ge dos eucaliptais e da indústria. Isso para quem pode, pois, para quem não pode, há sempre uma última al-ternativa, a “alternativa infernal”, qual seja: arriscar-se

Proj

eto

Cone

xão

Sul

O deserto verde dos eucaliptais se espalha pelo Espírito Santo

Page 91: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

Proj

eto

Cone

xão

Sul

90

nos rios e córregos e lagos que ainda restam na região.Hoje, os rios e córregos de “seu” Abdon já não são sufi-

cientes para tamanha escala de consumo industrial. Ou-tros recursos hídricos vêm sendo requisitados para ga-rantir o reservatório de abastecimento e, principalmen-te, a expansão da indústria da celulose, ainda que tenham de ser desviados a distâncias cada vez maiores em rela-ção às fábricas, afetando mais populações e bacias hídri-cas. É o caso do Canal Caboclo Bernardo. Desde sua aber-tura, para abastecer a terceira fábrica, a Aldeia Indíge-na Tupiniquim de Comboios, foi diretamente impactada – na criação de gado, na agricultura de várzea, na pesca do camarão.

A água reclamada pelos índios de Comboios e pelos pescadores de Barra do Riacho abastece hoje os três re-servatórios artificiais do complexo industrial da Aracruz: o Reservatório Águas Claras, o Reservatório Pavor e o Re-servatório Santa Joana46. Desviando rios e córregos e se alimentando das bacias hídricas do Rio Riacho, do Rio Gimuhuna e do Rio Doce, a empresa bombeia toda essa água para sua Estação de Tratamento de Água (ETA), pois a água reclamada pelo processo industrial não pode ser consumida imediatamente, tal como é apropriada junto aos rios. Deve ser tratada pela empresa, ao contrário das águas naturais da população que habita o entorno indus-trial, poluídas para o consumo humano.

Hoje, nas cercanias das três fábricas, um novo vocabu-lário re-nomeia e re-significa todo o território. Se nas po-pulações tradicionais rurais os verbos conjugados com a água eram beber, pescar, nadar, lavar, brincar, transpor-tar, batizar; hoje, a empresa conjuga outros verbos, com a mesma água: desviar, armazenar, branquear, caustificar, depurar, secar, deslignificar, enfardar, evaporar. Também entre os substantivos, uma nova nomeação. Desapare-cem os córregos e rios, ribeirões, lagos e lagoas, e entram em cena os canais e reservatórios, as barragens, elevató-rias e comportas. Apropriada pela empresa, a água é re-significada em seu uso industrial. Não se trata mais de água, recurso de uso coletivo, associado à segurança ali-mentar e a tantos ritos sociais. Para a empresa e seu uso privado, o que importa é o H2O.

Mais água para a aracruzA atual lei de outorga d’água favorece o uso de água

pelas grandes empresas. A Aracruz Celulose já fez a re-quisição de outorga de direito de uso da água em dois pontos do Rio Doce, no córrego Rancho Alto, no Rio Itaú-nas e no Rio Reis Magos, para abastecimento de carro pipa, irrigação de plantações, aplicação de agrotóxicos e combate a incêndios. E ainda deve se beneficiar com a outorga preventiva, em detrimento da água para os pe-quenos agricultores.

Grandes intervenções foram feitas no Rio Doce para garantir o abastecimento de água para as fábricas: população sem acesso

Page 92: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

91

Embora as publicações da empresa não apresentem in-formações transparentes sobre a utilização dos recursos hídricos, agregando informações das indústrias, viveiros, plantações, porto e infraestrutura, e considerando os ci-clos de crescimento e expansão da empresa em curso, po-de-se estimar a dimensão do que representa e represen-tará, dentro em breve, o consumo de água no conjunto das operações industriais e nas monoculturas de eucalip-to da Aracruz Celulose. Esta estimativa é respaldada pe-las próprias constatações e denúncias das populações lo-cais e pelos diversos estudos já realizados. Eles compro-vam os graves danos ambientais e sociais causados pelo processo de apropriação dos recursos hídricos em territó-rios comunais, atualmente sob restritos e “ilhados” terri-tórios dentro do complexo geográfico apropriado por esse mega empreendimento. Consideremos, novamente, a re-lação íntima existente entre latifúndio e monocultura e que a expansão em curso significa ampliação na aquisi-ção de terras, consequente ampliação da utilização de re-cursos hídricos e, certamente, aprofundamento das já tão graves implicações sociais e ambientais.

A Aracruz Celulose anuncia investimentos em aquisi-ção de terras e desenvolvimento de “florestas plantadas” para suportar o projeto de expansão, nos seguintes va-lores, em milhões de dólares: 261 em 2008; 41 em 2010 e 27 em 201147. Como observa Carlos W. Porto-Gonçal-ves (2006), “A extensão territorial tornou-se, novamen-te, quem diria?, estratégica. Área, muita área. Água, mui-ta água. Conflito, muito conflito.” (Gonçalves, 2006, p. 19). Considerando, pois, o complexo geográfico que envolve os conflitos territoriais em questão, a problemática dos recursos hídricos está intimamente relacionada às da ter-ra, das florestas e biodiversidade, das culturas tradicio-nais e das relações sociais e de poder.

O processo de apropriação dos recursos hídricos pela

desvios e represamento de rios: irregularidadese os abusos Marilda Teles Marraci3

agricultura industrial, vinculado ao processo mais amplo de apropriação territorial, além de aprofundar as assi-metrias na distribuição e/ou apropriação social da água, impõe às populações tradicionais atingidas e à socieda-de civil, re-significações da água (e do território) em seu uso industrial.

Um voraz consumo de água Desde sua instalação, uma série de procedimentos -

como desvios de rios e córregos e construção de barra-gens - foram feitos para fins de abastecimento das fábri-cas de celulose. Os desvios e represamentos foram feitos sem a elaboração de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e de Relatórios de Impacto Ambiental (Rima).

Na ocasião da “CPI da Aracruz”, o depoimento de Her-val Nogueira Júnior, então presidente da Associação Co-munitária de Barra do Riacho48, foi bastante esclarecedor sobre a situação dos rios apropriados pela empresa para seu uso industrial:

“Queremos deixar registrados os problemas ocasionados com os desvios dos rios, pois, aquela comunidade [Barra do Riacho] tinha uma cultura pesqueira artesanal antes de ser implantado o empreendimento da Aracruz Celulose, em torno de novecentos moradores. (...) foi feita uma comporta próxima ao norte da Barra do Riacho, acima do Rio Comboios, que desemboca no Rio Riacho. Esse Rio Riacho desemboca na Barra do Riacho, na falada boca da barra. Esse rio tem um braço, o canal do Rio Juuna [Gimuhuna], acima do Rio Comboio indo ao norte. Esse Rio Juuna [Gimuhuna] terminava no Rio Riacho. Porém, vindo para a Barra do Riacho, foi feita essa comporta e essas águas passaram a ter o seu fluxo para aquela barragem artificial, aquela lagoa artificial de propriedade da Aracruz Celulose. Aquela região era rica de nascentes e rios. Essa barragem usufrui tanto do Rio Mãe Boa como do Rio Pavo, do Rio Juuna [Gimuhuna] e do Rio Riacho. (...) o Rio Engenho, ao sul da área urbana da Barra do Riacho (...), fica em torno de quatrocentos metros da linha férrea da Portocel. A nascente desse rio é próxima da barragem.(...). Essa barragem tem também ligação com o Rio Engenho. A oeste está o Rio Mãe Boa e também o Rio Pavo. Todos esses, a barragem acaba concentrando essa quantidade de água para servir a empresa”.

(depoimento de Herval Nogueira Júnior, 2002)49

A apropriação de enorme quantidade de recursos hí-dricos para a fabricação de pasta de celulose deu-se em etapas, de acordo com o ritmo de construção e amplia-ção das unidades fabris. Primeiramente, foi construído um sistema integrado de reservatórios utilizando os rios e córregos a partir de desvios e barragens, conforme de-monstrou o depoimento de Herval Nogueira, para abas-tecimento das duas primeiras fábricas (A e B). As nascen-

Page 93: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

92

tes e grande parte dos cursos dos rios e córregos citados passaram a ser de uso exclusivo da empresa Aracruz Ce-lulose. A segunda etapa foi a grande obra de transposição de bacias (Rio Doce, sob administração federal, e Rio Ria-cho, sob administração estadual) para captação de água com a construção do Canal Caboclo Bernardo para abas-tecimento da terceira fábrica (C), atingindo as comunida-des de pescadores de Barra do Riacho e comunidades in-dígenas Tupiniquim.

a construção do canal caboclo BernardoO Canal Caboclo Bernardo foi construído em 1999 a

partir da demanda criada pela construção da “Fábrica C” da Aracruz Celulose, provocando significativas alte-rações no comportamento hídrico da região. O referido canal, construído perpendicularmente em relação ao Rio Doce50, faz a captação de águas desse rio utilizando os ca-nais de drenagem do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), construídos nos anos de 196051, o Canal do Riacho52, o Rio Riacho53 e o Rio Comboios54, for-mando um sistema integrado de captação de águas para o abastecimento do complexo fabril celulósico. Entre o Ca-nal Caboclo Bernardo e a planta do complexo fabril en-contram-se a Aldeia Tupiniquim Comboios e os povoados de Vila do Riacho e de Barra do Riacho, estes dois últimos com grande contingente de pescadores.

Os canais do DNOS foram construídos para drenagem das áreas pantanosas nos terrenos do Vale do Suruaca55, direcionando os fluxos hídricos ao Rio Riacho, com o ob-jetivo de ampliar a área agrícola e fazendas de criação de gado da região, o chamado processo da “cerca andante” 56

e, logo depois, recuperados, passam a atender a deman-da de água para a indústria de celulose. Segundo a em-presa, “a captação foi feita a 22 km da foz do Rio Doce, na Fazenda Monterrey. A partir daí, construiu-se um canal de apenas 2 km para fazer a interligação de 42 km de ca-nais abertos há mais de 20 anos pelo DNOS, que necessi-taram apenas de recuperação e manutenção. A água flui por gravidade ao longo de todo o percurso”57.

Segundo relatório da Associação dos Geógrafos Brasi-leiros (AGB-ES, 2004), o gerente de Meio Ambiente e Se-gurança Industrial da Aracruz, Alberto Carvalho de Oli-veira Filho, em 2004, comentou que o sistema atua, “de duas formas: no período de estiagem, capta água do Rio Doce e a leva até a região de Aracruz. No período de cheias, faz a drenagem da região”. Quando ele fala que o “sistema atual” devemos entender que o sistema a que ele se refere é operado pela empresa. Assim, por trás da im-pessoalidade do sistema há um sujeito poderoso agindo (AGB-ES, 2004, s/n).

O professor Orlindo Borges, então consultor do proje-to Caboclo Bernardo58, afirmou que: “quando compara-do com a vazão histórica do Rio Doce nos últimos 68 anos, que foi de 952 m³/s, o volume a ser aduzido representa

0,5% (...). E o então secretário de Meio Ambiente do Espí-rito Santo, Almir Bressan, destacou que “o canal, bem ad-ministrado como está sendo, proporciona um balancea-mento maior dos níveis de água, restabelecendo o equilí-brio ambiental da região” (AGB-ES, 2004, s/n). No entan-to, é possível perceber apenas pela observação simples, em campo, da velocidade do escoamento do movimento da água do Canal Caboclo Bernardo, que este se dá em grande velocidade e que o volume captado e transporta-do pelo canal é muito grande.

A água captada do Rio Doce através dos canais Cabo-clo Bernardo, Riacho e DNOS, percorre uma extensão su-perior a 40 km e segue em direção ao complexo fabril da Aracruz Celulose através do leito do Rio Riacho. Junto ao ponto de deságue do Rio Gimuhuna, afluente do Rio Ria-cho, a empresa construiu uma Estação Elevatória que re-tém o fluxo do Rio Riacho, que transporta as águas cap-tadas no Rio Doce e, por meio de um sistema de bom-beamento a motor com alta potência inverte o curso do Rio Gimuhuna de seu caminho natural de deságue para a direção contrária à sua jusante, rumo aos reservatórios das fábricas, utilizando este rio, portanto, como canal de transporte das águas captadas desde o Rio Doce até as represas artificiais de armazenamento de água. Dessa forma, a empresa, além de captar águas da bacia do Rio Doce, converge toda a rede natural de captação de água (afluentes, subafluentes e rede de drenagem) da bacia do Rio Riacho para seus reservatórios industriais.

O geógrafo André Coelho (2005) identificou, em suas pesquisas, transformações provocadas pelo sistema de captação de águas e faz as seguintes constatações:

“Chegando próximo à foz, no distrito de Barra do Riacho, o curso do Rio Riacho desvia-se e começa a correr no sentido contrário do Rio Gimuhuna, em direção à Estação Elevatória na qual a água é levada, por meio de bombas, para um reservatório da indústria situado em nível superior ao terreno circundante (nos tabuleiros costeiros). A outra parte do canal de captação liga à nascente do Rio Comboios, passando por dentro da Reserva Biológica e Indígena de mesmo nome, na qual os índios antes faziam o uso da água para pesca, lazer e abastecimento. Agora, estão limitados de tais usos pelo despejo das águas provenientes do Rio Doce. Nessa complexa rede de canais, existem comportas de controle de vazão da água evitando possíveis inundações na planície, e ao mesmo tempo, dependendo dos períodos de estiagens prolongadas, há a possibilidade de aumentar a vazão de água em direção ao reservatório da referida indústria. Praticamente, não existe qualquer controle pelos órgãos fiscalizadores da quantidade diária de água retirada do Rio Doce. (...) segundo entrevistas realizadas com o presidente da Associação dos Pescadores e também com outros pescadores, não há, como no passado, a abundância de peixes. Segundo eles, nos últimos anos, a foz [do Rio

Page 94: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

93

Doce] tem passado por uma série de mudanças e processos relacionados, sobretudo, com a diminuição da vazão do rio, agravada com [a] construção do canal de captação e transposição das águas do Rio Doce para o abastecimento do reservatório da indústria de celulose”.

(Coelho, 2005, p. 5455)59

Rio Comboios: de um regime fluvialpara um regime industrial

O Rio Comboios foi incluído no sistema de controle das águas captadas do Rio Doce através de diques instalados no Canal Caboclo Bernardo e que regulam a vazão de acor-do com as necessidades de armazenamento da empresa. A abertura das comportas dá-se de acordo com o volume de vazão. Com esse sistema, o nível do Rio Comboios, que an-tes era regulado pelo regime natural de inundação sazo-nal, passou a ser controlado pela empresa. Desse modo, a região do entorno do Rio Comboios - cuja rede natural de drenagem constitui-se de várzeas, brejo e pântano, fatores importantes associados à fertilidade do solo e à prática da agricultura da comunidade Tupiniquim de Comboios – foi drasticamente afetada.

A aldeia de Comboios está próxima à região deltaica do Rio Doce. Essa é uma região de vegetação de restinga e matas de tabuleiro (Mata Atlântica de baixada), com ex-tensas áreas de brejos sob influência de várias lagoas do sistema de várzeas. Essas características físicas permi-tiam aos Tupiniquim de Comboios vivenciar os benefícios da rede de drenagem natural nas proximidades imediatas do Rio Comboios. Segundo depoimentos dos Tupiniquim, o nível de água desse rio subiu consideravelmente depois da construção do Canal Caboclo Bernardo. Dessa forma, as várzeas - antes utilizadas para o cultivo de alimentos (ar-roz, feijão, hortaliças) em períodos de seca sazonal60 - ago-ra, são inundadas pela abertura do canal, de acordo com as necessidades da empresa, o que independe da sazonalida-de61. É importante considerar que mais de 90% do território da aldeia Comboios localiza-se à beira mar, constituindo-se, portanto, de solo arenoso. Com as interferências na di-nâmica hídrica do Rio Comboios, que passou a receber um maior volume de água vinda do Rio Doce, a comunidade Tupiniquim perdeu o controle de parte importante de seu já restrito território para o cultivo de alimentos.

Os Tupiniquim de Comboios62 relataram alterações sig-nificativas na quantidade e na qualidade da água do Rio Comboios, que passou a receber também todos os resídu-os e dejetos que nele são lançados, desde o estado de Mi-nas Gerais, onde nasce, até o Espírito Santo, onde deságua. A qualidade da água prejudicou muito a produtividade de peixe e camarão, que costumavam pescar para consumo e para venda. Relatam ainda que os peixes do rio pratica-mente desapareceram. As águas do Rio Doce transportam peixes para as águas do Rio Comboios mas, segundo rela-tam, são “peixes ruins”63.

Os Tupiniquim de Comboios relatam que o argumen-to técnico utilizado para o convencimento da comunida-de versou sobre a necessidade da construção do canal para corrigir o PH da água do Rio Comboios e para abastecer a população de Vila do Riacho e Barra do Riacho. Segundo Luiz Carlos Cacá Gonçalves, prefeito de Aracruz na épo-ca da construção do canal, “a captação do Rio Doce solucio-nou o problema de falta de água das comunidades de Vila do Riacho e Barra do Riacho e aumentou as áreas irrigáveis para a agricultura (...)”. E, acrescenta: “graças a essa inicia-tiva, agora premiada em âmbito nacional64, o município de Aracruz retomou sua capacidade de desenvolvimento eco-nômico, sobretudo para a sua grande potencialidade que é o setor industrial”65. Como se pode constatar, o desenvolvi-mento se faz em detrimento do modo de viver das popula-ções pré-existentes.

Segundo João Mateus, então cacique da aldeia Com-boios, nunca foi feito um estudo em sua aldeia para o controle da qualidade da água do Rio Comboios, nem an-tes nem depois da construção do Canal Caboclo Bernar-do, que justificasse o argumento da correção do PH da água. Ele acrescenta que: “hoje não temos nosso rio, te-mos é um braço do Rio Doce. A água tem gosto de lama, fede, causa febre, vômitos, encaroça o corpo. Antes era o mesmo que beber água mineral. Tinha lagoas. O canal foi engolindo as lagoas”. Os Tupiniquim afirmam que a cons-trução do Canal Caboclo Bernardo “matou as águas” da região e que, além de inundar nascentes, a inclinação do terreno na construção do canal capta água também das nascentes do entorno, conforme demonstraram em cam-po os Tupiniquim (AGB-ES, 2004, s/n).

Barra do Riacho“A comunidade de Barra do Riacho não recebe nenhuma gota d’água deste desvio para seu abastecimento, pelo contrário, as águas do Rio Riacho diminuíram. A comunidade se vê obrigada a comprar água mineral engarrafada no mercado ou, na pior das hipóteses, utiliza água de um córrego próximo que está contaminado”66.

O Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Aracruz (SAAE), através do Of. 201-02/SAAE-ARA de 18 de ju-nho de 2002, informou que “a captação de água de Barra do Riacho é feita na lagoa Santa Joana, local já sem in-fluência do canal, que não traz benefício às caracterís-ticas físico-químicas da água captada”. Segundo relató-rio da AGB-ES (2004), o mesmo ofício informa que a ca-nalização não beneficiou o distrito de Barra do Riacho porque a captação do abastecimento desse distrito no Rio Riacho está em um ponto, à jusante, anterior ao des-vio das águas para os reservatórios de abastecimento da Aracruz Celulose. Barra do Riacho fica depois desse re-ferido ponto, às margens da foz. Fica evidenciado, assim, que a justificativa do estado quanto à necessidade da

Page 95: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

94

construção do Canal para resolver problemas de abas-tecimento de água do distrito são infundados67. No en-tanto, justamente por localizarem-se às margens da foz, a redução do volume de águas do Rio Riacho que acon-tece após o ponto de inversão de seu curso, atinge subs-tancialmente os pescadores de Barra do Riacho.

Barra do Riacho é vizinha imediata da planta do com-plexo fabril celulósico e está cercada por grandes exten-sões de plantio de eucalipto. Herval Nogueira demons-trou em campo, durante várias caminhadas no entorno de Barra do Riacho, o estado de degradação dos cursos d’água e nascentes e as obras de barragens realizadas pela empresa. Diante da foz do Rio Riacho ele explicou que depois da construção do Canal Caboclo Bernardo ve-rificou-se o estreitamento da boca da foz do Rio Riacho, provocado por bancos de areia formados pelo mar. A di-minuição do fluxo de água do Rio Riacho, a partir do sis-tema de inversão do fluxo do seu afluente Rio Gimuhuna (nas proximidades do povoado de Barra do Riacho), tor-nou insuficiente o movimento de retirada da areia pela água do rio, desequilibrando a dinâmica de movimento

entre o mar e o Rio Riacho, na sua foz. No local, é possí-vel observar claramente um intenso processo de assorea-mento e um estado de desequilíbrio dos processos depo-sicionais e erosionais entre o rio e o mar na foz do Riacho. Com a redução do fluxo de água do Rio Riacho, houve um comprometimento da dinâmica da foz, cujo controle mor-fológico dá-se agora pelo domínio da ação das ondas do mar, reduzindo a capacidade do Rio Riacho em transpor-tar os sedimentos para desobstruir sua foz, resultando no que os pescadores de Barra do Riacho chamam de “fecha-mento da boca da barra”. Observa-se ainda um movimen-to de migração rápida dos bancos de areia motivada pela energia das ondas. Segundo Herval Nogueira, em poucos dias, e até mesmo horas, muda completamente a configu-ração da “boca da barra”.

Com estes problemas, as embarcações de pesca arte-sanal, recurso tradicional de sobrevivência da comuni-dade pesqueira do povoado, não conseguem chegar ao mar e nem retornar em períodos de maré baixa. Esse fato impõe a diminuição das horas de pesca, agora deter-minadas pelas marés e, consequentemente, uma drásti-

Foto

s: R

elat

ório

da

AGB

– Vi

tória

200

4

O desvio das águas do Rio Doce para a bacia do Rio Riacho provocou a degradação dos cursos d’água e nascentes: tudo para abastecer a Aracruz

Page 96: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

95

ca diminuição na produção de peixes. Isso provocou um grande impacto na economia da comunidade de pesca-dores, que já enfrenta a concorrência com grandes bar-cos de pesca empresarial que realizam atividade preda-tória sem fiscalização nas águas desta comunidade, se-gundo os pescadores de Barra do Riacho68. A comunida-de pesqueira de Barra do Riacho reivindicou providên-cias junto à empresa que dispôs uma draga para retirar a areia depositada. Herval Nogueira explica que “a dra-ga retira a areia do canal da foz e a amontoa na praia, do lado direito. O mar, por sua vez, retira a areia do barran-co, à esquerda, na tentativa de repor o material. Em épo-ca de maré alta, o mar passa por cima do barranco”69.

Uma transposição de bacias A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hí-

dricos (Seama) recomendou à Prefeitura Municipal de Ara-cruz a contratação de profissionais especializados em re-cursos hídricos, como o engenheiro Antônio Eduardo Lan-na, do Rio Grande do Sul, e o advogado Cid Tomanik Pom-peu, de São Paulo. O primeiro elaborou um parecer técni-co onde considera que o Rio Doce, em épocas de inundação, como a de 1979, lança suas águas sobre a bacia do Rio Ria-cho e que, por este motivo, o aproveitamento das águas do rio federal ocorreria em sua própria bacia, o que não carac-terizaria “transposição de bacias” (nos termos da Resolu-ção 01/86 do Conama – art. 2, VII e da Lei 4.701/92 – art. 75, VI). Sendo assim, não haveria necessidade de licenciamen-to mediante a exigência prévia de EIA/Rima. O advogado Cid Tomanik Pompeu elaborou um extenso parecer jurídi-co com base nas informações técnicas de Antônio Eduardo Lanna, onde concluiu que o licenciamento poderia ser fei-to sem a elaboração de EIA/Rima70.

A montagem do processo na Seama, sob o manto do in-teresse público personificado numa instituição, a Prefei-tura Municipal de Aracruz, desconsiderou o conceito de bacia hidrográfica estabelecido no art. 6° da Lei Estadual 5.818, de 30 de dezembro de 1998, que dispõe sobre a Polí-tica Estadual de Recursos Hídricos: “área drenada por um curso d’água ou por uma série de cursos d’água de tal for-ma que toda a vazão efluente seja descarregada através de uma só saída, na porção mais baixa do seu contorno”71.

Do ponto de vista legal e geográfico, o Rio Doce e o Rio Riacho têm bacias distintas. Limitadas por divisores de água, tanto a bacia do Rio Doce quanto a bacia do Rio Riacho, cada uma em sua unidade fisiográfica, recolhem a precipitação, agem como um reservatório de água e sedimentos, defluin-do-os em uma seção fluvial única (exutório), cujas drena-gens são exorréicas72. Portanto, se o Rio Doce e o Rio Riacho possuem saídas exorréicas distintas, a chamada canalização das águas do Rio Doce, que é um rio federal, para o Rio Ria-cho (rio estadual) configura, rigorosamente, uma transposi-ção de bacias.

Visando o interesse privado, o consultor jurídico Cid To-

manik Pompeu, mesmo tendo elaborado um parecer ex-tremamente detalhado sobre os aspetos legais e jurídicos do licenciamento, desconsiderou o conceito de bacia hi-drográfica estabelecido na Lei 5.818/98, com o agravante de que nem mesmo os técnicos da Seama, que se pronun-ciaram no processo de licenciamento fizeram menção à lei estadual, omitindo dados essenciais à tramitação do pro-cesso, descuidando-se da defesa do interesse público e da observância da legalidade. O parecer do consultor técnico da empresa, Antônio Eduardo Lanna, foi mais explícito: “a utilização da água derivada do Rio Doce será para atender o Parque Industrial da Aracruz Celulose S/A”73.

licenciamentos: ausência e ilegalidadeOs eventos relatados a seguir demonstram, mais uma

vez, o papel ativo do Estado por meio de autoridades lo-cais, regionais e até federais, no favorecimento dos proje-tos do Grupo Aracruz no território capixaba.

O licenciamento para a construção do Canal do Rio Doce foi concedido pela Seama em processo que durou menos de um mês, sem a exigência de EIA/Rima. Conforme o exposto anteriormente, trata-se de transposição de bacias, sujeita à elaboração do Estudo de Impacto Ambiental, conforme o art. 2°, VII da Resolução 01/86 do Conama.

O promotor público do estado na Curadoria de Meio Ambiente, Dr. José Cláudio Pimenta, manifestou-se so-bre esse processo de licenciamento no OF/CAAB/N° 292/2001, de 27 de agosto de 2001:

“No tocante aos licenciamentos ambientais relacionados com a empresa Aracruz Celulose, que tramitam junto à Seama, constatamos que há uma licença requerida pela Prefeitura Municipal de Aracruz, para adução de água do Rio Doce, mediante um sistema de canais e comportas de controle de vazão e transferência d’água até o Rio Riacho, tendo como beneficiária principal a empresa, com direcionamento do fluxo d’água para o sistema de captação do complexo industrial da fábrica de celulose. Releva salientar que esse licenciamento foi requerido pelo poder público municipal, sob os auspícios de critérios privilegiados, em face ao interesse público subjacente. Nesse caso, de forma inusitada, na fase de acompanhamento e cumprimento das condicionantes impostas, a Seama passou a tratar o assunto diretamente com a empresa Aracruz Celulose, que assumiu as obrigações antes pactuadas pela municipalidade.”

(Dr. José Cláudio Pimenta, APUD AGB-ES, 2004, s/n)

O licenciamento do Canal do Rio Doce foi feito através do Processo n° 295/99 da Seama, onde o município de Ara-cruz, “solicita LP (Licença Prévia) e LI (Licença de Instala-ção) para captação de adução de água para abastecimento público”. No referido processo, foram constatadas irregu-laridades administrativas, cujos desdobramentos são pas-síveis de responsabilização administrativa, civil e criminal

Page 97: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

96

de todos os que participaram das irregularidades.Segundo Relatório da AGB-ES (2004), na página 2 do

processo de licenciamento, verifica-se que a Seama fez o enquadramento da atividade como “aumento da disponibi-lidade hídrica nas várzeas do Rio Riacho nos municípios de Aracruz e Linhares”, onde o responsável pela informação sobre o licenciamento assina em nome da Prefeitura Muni-cipal de Aracruz, na data de 22 de abril de 1999. Mas, quan-do são iniciados os despachos administrativos no referido processo, conforme a folha 12 do processo da Seama, a tra-mitação do processo data de 15 de abril de 1999, constando a seguir que a data de recebimento da Secretaria seria 16 de abril de 1999. A AGB-ES (2004), então, questiona:

“Como é possível um órgão público receber um documento em 15 de abril de 1999, quando o enquadramento da atividade data de 22 de abril de 1999? Confusão com as datas pode ocorrer e não implicar em irregularidade. No entanto, o prefeito municipal, no Ofício (gab) n° 120, de 14 de abril de 1999, onde requer o licenciamento para a obra, enfatiza que ‘reforçamos o caráter emergencial, para análise deste projeto, em função da gravidade e tendência da seca atual’”.

(AGB-ES, 2004, s/n)

Observando as datas em que a Seama recomendou a contratação – Ofício/Seama/GS – nº 301/99 de 07 de maio de 1999, uma sexta-feira, bem como a do parecer do en-genheiro Antônio Eduardo Lanna, datado de 10 de maio de 1999, a segunda-feira seguinte, não é preciso muito es-forço para saber que tal contratação foi feita sem obser-vância da Lei de Licitações, uma vez que o “parecer jurí-dico” é datado de 12 de maio de 1999. Há também o fato da empresa Aracruz Celulose S/A ter assumido o cum-primento das condicionantes da licença de instalação da chamada “canalização das águas do Rio Doce” cerca de um ano após o licenciamento, numa clara demonstração de que a empresa sempre foi a maior beneficiária desse processo (AGB-ES, 2004).

Sem EIA-Rima, fruto de uma enorme omissão e clara ir-responsabilidade do estado e de seus órgãos licenciado-res, o Canal Caboclo Bernardo é prova inequívoca de vio-

lação do direito à água. Consta dos Autos da “CPI da Ara-cruz” um documento do advogado Sebastião Ribeiro Filho (OAB/4.060) no qual são apresentadas as “Condições sobre o Licenciamento da Canalização de Água do Rio Doce para o Município de Aracruz-ES” (Ribeiro Filho, 2002)74. Segun-do o documento do advogado, oficialmente, o pedido de li-cenciamento à Seama para a construção do Canal Cabo-clo Bernardo foi uma iniciativa da Prefeitura Municipal de Aracruz. Primeiramente, um ofício do gabinete do prefei-to municipal (GAB120) requeria o licenciamento à Seama, em 14 de abril de 1999 e, somente em 27 de abril de 1999, o pedido de licenciamento foi elaborado em formulário pró-prio da Seama, tendo anexado o Termo de Referência para elaboração da Declaração de Impacto Ambiental (DIA):

“O Termo de Referência e o DIA, ao que parece, foram entregues ao órgão estadual na mesma data, o que é estranho, pois, o objetivo do primeiro documento (proposto pela empresa consultora que elaborou o DIA para o município de Aracruz, conforme as Fls. 04 a 10 do Processo) é o de orientar a elaboração do segundo e, caso haja a necessidade, o órgão ambiental deve solicitar modificações, inclusão de tópicos a serem analisados – não contemplados na proposta –, e ao que tudo indica, embora não haja referência expressa, o Termo de Referência foi aceito como proposto.”

(Ribeiro Filho, 2002)75

Na análise, realizada por Sebastião Ribeiro Filho, do Pro-cesso Administrativo do referido pedido de Licenciamento Ambiental, técnicos da Seama, em 06 de maio de 1999, indi-caram a necessidade de consultoria externa para embasa-mento técnico-legal e um ofício foi encaminhado ao prefeito de Aracruz, em 07 de maio de 1999, solicitando ao mesmo o pleito dos técnicos do órgão estadual para “... garantir maior agilidade para o processo de licenciamento” (Ofício/Seama/GS-N°301/99)76. Quatro dias depois, em 11 de maio de 1999, um fac-símile chega à Seama, contendo parecer técnico de um engenheiro, do qual Sebastião Ribeiro Filho destaca: (...) merecem transcrição as afirmações das fls. 23 e 24:

“1. Trata-se de projeto de aproveitamento das vazões do Rio Doce e sua própria bacia, mais especificamente no leito maior deste curso de água e que é localizado na região deltaica da sua foz;

2. A utilização da água derivada do Rio Doce será para atender o Parque Industrial da Aracruz Celulose S.A., já existindo outorga neste sentido, concedida pelo Ministério das Minas e Energia; em situações de emergência, poderá associar-se com a prefeitura de Aracruz para realizar abastecimento público da região, tendo em vista a utilização prioritária para esta finalidade.”

(anexo/Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 2.030)

Rela

tório

da

AGB

– Vi

tória

200

4

O Canal Caboclo Bernardo não tem estudo de impacto ambiental: ilegal

Page 98: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

97

Segundo a análise do advogado Ribeiro Filho sobre o processo em questão, já no dia 12 de maio de 1999 téc-nicos da Seama/DLAIA concordavam com a concessão da licença ambiental pretendida. Nesse mesmo dia, ou-tro fac-símile chegou à Seama, apresentando parecer téc-nico77 de um consultor contratado pela prefeitura de Ara-cruz, favorável ao licenciamento do projeto. A partir des-sas informações, Ribeiro Filho avalia em seu documen-to que ocorreu uma celeridade incomum na tramitação do processo de licenciamento do Canal Caboclo Bernar-do: “... atropelando a legalidade administrativa...” 78. Na se-quência, Ribeiro Filho considera inexplicável a Seama ter solicitado a contratação de consultor externo ao municí-pio requerente do licenciamento: “Esta é, no mínimo, im-própria, pois nos quadros do órgão há assessor jurídico com especialização em Direito Ambiental...”79. Por fim, Ri-beiro Filho estranha que tenha sido a Prefeitura Munici-pal de Aracruz a requerente do licenciamento, quando no parecer técnico afirma-se que as águas derivadas do Rio Doce tinham como destinação atender ao parque indus-trial da Aracruz Celulose S.A.80.

Ao contrário do que afirma o parecer técnico encomen-dado pela prefeitura de Aracruz, Ribeiro Filho avalia tra-tar-se de uma transposição de bacias hidrográficas, o que exigiria, com base na Legislação em vigor, a “... elaboração de Estudos de Impacto Ambiental, e não uma Declaração de Impacto Ambiental”81 preparada pela própria reque-rente. Afirma Ribeiro Filho:

“A concessão do licenciamento ambiental pela Seama ao município de Aracruz, para captação de água do Rio Doce e a autorização pelo Idaf [Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal] para a supressão da vegetação considerada como de preservação permanente ferem frontalmente o princípio da legalidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal (...). A legalidade, in casu, é a exigência da elaboração de EIA/Rima, e não a dispensa deste, como fez o órgão estadual e ainda, a prévia autorização do Ibama para a supressão da vegetação à margem do Rio Doce, a despeito da discussão da ilegalidade da Medida Provisória 1.736/99.”

(Ribeiro Filho, 2002)82

Informações sobre o Canal Caboclo Bernardo po-dem ser também colhidas do depoimento de Herval Nogueira Júnior à “CPI da Aracruz”:

“O problema maior foi quando tomamos conhecimento do projeto Rio Doce. Pelo menos pela mídia, vimos o prefeito, em 1999 – tenho uma cópia aqui – que mencionava que esse projeto era salutar para o benefício das comunidades que estavam com problema de água. E o que ocorreu com isso? Onde foi feito um projeto com apoio da Aderes [Agência de Desenvolvimento em Rede do Espírito Santo] e do governo do estado, todos juntos tentando solucionar

esse problema e a Aracruz declarava que não precisava de água, mas sentia um projeto interessantíssimo. Eles conseguiram até fazer nesse canal uma ligação para o Rio Comboios para termos essa água também, só que ela é controlada. Se necessitamos da água, não temos essa prioridade. Essa é a dificuldade dos moradores”.

(depoimento de Herval Nogueira, 2002)83

A luta pela recuperação do Rio Sahye Rio guaxindiba“A água do rio era usada para trabalhar na cozinha, lavar vasilhas, roupas, tomar banho e pescar. As mulheres tomavam banho às 17 horas e os homens só depois, à noite. Era um importante momento, onde todos participavam, desde crianças até os mais velhos. E também, nós, aqui de Pau Brasil, atravessávamos pelo rio para as aldeias Canta Galo, Olho D´água e Caieiras Velha. Era uma forma de visitarmos nossos parentes. Tinha peixes como traíra, tainha, cará, robalo e camarão. A gente comia isso tudo, mas agora, sem ter onde pescar, para comer peixe, temos que comprar.”

(“Seu” Antonino Tupiniquim, cacique de honra da aldeia Pau Brasil)84

Em setembro de 2002, quando foi feita uma revisão do Termo de Ajuste de Conduta (TAC)85 – acordo entre a Ara-cruz Celulose e os indígenas de Aracruz desde a demar-cação de 1998 –, os Tupiniquim e os Guarani pressiona-ram a empresa, acrescentando ao conteúdo do documen-to um importante termo aditivo: “(...) realização de estudo técnico sobre a recuperação total dos rios Sahy e Guaxin-diba a ser entregue às comunidades no prazo de 60 dias contados desta data, com definição de medidas e estima-tiva dos custos necessários a esta recuperação”. A exigên-cia de recuperação dos rios Guaxindiba e Sahy pela Ara-cruz Celulose partiu dos Tupiniquim da Aldeia Pau Brasil e foi apoiada pelas demais aldeias e pelo Ministério Pú-blico Federal (ES).

Interrompidos em seu curso por barragens, cercados por maciços contínuos de plantio de eucalipto, poluídos pelo esgoto urbano da Aracruz, agravado pela expansão urbana no entorno da empresa fomentada pela sua ins-talação86, o destino desses rios está diretamente relacio-nado ao destino dos Tupiniquim de Pau Brasil. A propos-ta de recuperação dos rios apresentada pela empresa não foi aceita por eles que decidiram, através da Associação Indígena Tupiniquim e Guarani (AITG) e por intermé-dio do Conselho Indigenista Missionário do Espírito San-to (Cimi-ES), demonstrar seus próprios argumentos, con-figurando-se um confronto político no campo técnico e metodológico acerca dos procedimentos de estudos e re-cuperação destes rios.

Responsabilizada pelos danos, a Aracruz Celulose te-ria então que se responsabilizar pela recuperação. A empresa, consciente de que se implantou sobre territó-

Page 99: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

98

rios indígenas, assumiu o encargo, apesar de disponi-bilizar apenas R$ 120 mil para uma obra que custaria no mínimo R$ 6 milhões, conforme relatório da pró-pria empresa87. A empresa entregou à Associação In-dígena Tupiniquim e Guarani (AITG) uma proposta de estudo e recuperação sob o título: Estudos de Recupe-ração de Rios e Córregos na Área da Associação Indí-gena88, sem nenhuma consideração quanto à participa-ção das populações indígenas e pescadoras no proces-so de estudo e recuperação. Numa evidência do confli-to de racionalidades distintas, a Aracruz Celulose apre-sentou uma proposta de obras de engenharia hidráuli-ca de escoamento das águas dos rios e/ou córregos em alguns de seus trechos. Estas obras, de caráter paliati-vo e imediato, dirigiam-se apenas a alguns dos sinto-mas do problema ambiental, não tocando nas suas cau-sas e não considerando a bacia hidrográfica dos rios em questão. A exigência dos Tupiniquim e dos Guarani era a de que as intervenções fossem para a recuperação to-tal dos rios, conforme constava no referido acordo assi-nado pelas partes (TAC).

Inconformados com o descaso e paliativos sugeridos pela empresa, os índios solicitaram à AGB-ES um pare-cer técnico sobre a proposta empresarial de estudos. Num encontro de saberes, a equipe de geógrafos demonstrou, em parecer técnico, considerando as causas dos proble-mas hídricos, sobretudo a partir da participação, do saber e do relato dos índios que, para a recuperação total de um rio é indispensável abranger toda a bacia hidrográfica, e não apenas trechos do leito e suas imediações. Depois de exaustivo debate entre empresa e seus técnicos, geógra-fos da AGB, lideranças Tupiniquim e Guarani, os enge-nheiros da Aracruz Celulose reformularam por diversas vezes suas propostas e os estudos foram finalizados em novembro de 2004, ainda aquém do diagnóstico elabora-do pela AGB em março de 2004.

No dia 17 de outubro de 2002, a pedido da comunidade indígena Pau Brasil, a AGB recebeu do Cimi a solicitação de “apoio e assessoria na avaliação do estudo a ser apre-sentado pela empresa Aracruz Celulose, bem como nos trabalhos de recuperação do Rio Sahy, no sentido de ga-rantir que a reivindicação da comunidade fosse realizada integralmente”. Tal estudo referia-se ao Instrumento Par-ticular de Segundo Aditivo a Termo de Ajustamento de Con-duta e Ratificação de Obrigações Recíprocas - Termo Adi-tivo ao acordo de 1998 entre a Empresa Aracruz Celulose S/A e a Associação Indígena Tupiniquim e Guarani (AITG), assinado pelas partes em 04 de setembro de 2002, conten-do o aditivo citado.

Após os pareceres da AGB-ES sobre a recuperação dos rios Sahy e Guaxindiba, previamente discutidos com os Tupiniquim e Guarani, contendo considerações metodo-lógicas coincidentes com o entendimento destes, a equi-pe de geógrafos elaborou junto com as comunidades en-

volvidas, e a pedido destas, um levantamento dos impac-tos sobre os recursos hídricos em seus territórios, onde os saberes mais uma vez se encontraram. O chamado Re-latório da AGB-ES89 foi entregue e apresentado à AITG e às comunidades reunidas na aldeia Tupiniquim Caieiras Velhas, em março de 2004.

A aldeia Tupiniquim Pau Brasil, localizada próxima aos rios Sahy e Guaxindiba, é tradicionalmente ligada a estes rios e sofre grandes impactos negativos provocados pela chegada da empresa Aracruz Celulose e pelo sequente crescimento da população urbana do município de Ara-cruz. Os danos iniciais deram-se pela substituição da ve-getação nativa, incluindo mata ciliar90, pelo plantio do eu-calipto, em fins da década de 1960 e na década de 1970. Alguns resultados do referido relatório serão expostos, resumidamente, a seguir.

Rio Sahy“Nós, Tupiniquim, somos povo do banhado, povo das águas, que se refresca nas águas. O Rio Sahy era onde as crianças tomavam banho, mesmo no batismo. Podia mergulhar e be-ber daquela água, sem medo de se contaminar, de adoecer. Infelizmente, é uma dor no meu coração ver estas águas po-luídas, com mau cheiro hoje”.

(Iara Tupã, Deusdéia, mulher Tupiniquim, liderança da Aldeia de Pau Brasil)91

Sem a presença da vegetação ciliar, o escoamento do Rio Sahy é superficial, por conta do assoreamento. Esse tipo de escoamento provoca o transporte dos sedimentos e entulhos para o rio de forma mais intensa. A inunda-ção do antigo leito do rio por ocasião de altos índices plu-viométricos, ocasiona alagamentos das terras ribeirinhas. Este potencial risco já é mais evidente nessa área estuda-da, devido ao seu relevo suave e à presença de planícies de inundação com presença de várzeas. Em períodos de seca sazonal, a alta porosidade da sedimentação dos alu-viões, que foram depositados no período das chuvas, re-sulta, em uma considerável baixa na disponibilidade dos recursos hídricos na região, por infiltração e/ou por eva-poração. Segundo o relato de uma liderança Tupiniquim da Aldeia Pau Brasil:

“Nossa briga é por causa da Aracruz ter plantado este eucalipto e destruído nosso rio, que antes as mulheres todas lavavam roupa, nós pescava, tomava banho, pegava água para cozinhar e para beber. E hoje está tudo seco e não podemos mais beber água de rio por causa do veneno. Neste rio tinha muitas qualidades de peixe. Os mais velhos contavam que este rio nunca secava. Bem próximo da Aldeia tinha um porto e íamos de canoas até Barra do Sahy, e não tinha mato nenhum no meio do rio, e dava muito peixe. Faziam canoas com vela e iam até o mar. Saíam deste porto e iam até o mar”.

(Liderança Tupiniquim, apud AGB-ES, 2004, s/n)

Page 100: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

99

A área de plantio é atravessada por estradas construí-das pela empresa para o tráfego de veículos no transporte da sua produção. Na construção dessas estradas, a empre-sa utilizou o sistema de manilhas em vários trechos do rio. Segundo depoimento de uma liderança indígena:

“Este rio [Rio Sahy] era limpo, tinha muita água e muito peixe e nós pescava muito aqui de tarrafa e rede e pescava muitos peixes de várias espécies. Mas com a chegada da Aracruz e do eucalipto, construíram esta estrada e desviaram o curso do rio, colocaram estas manilhas, algumas mais alta que o nível do rio e bloquearam a passagem do rio. Antes aqui existia uma ponte de madeira, onde nós passava por baixo dela com as canoas. Hoje a água está parada. Antes desta estrada, o rio era limpo, fundo, com areia fina nas margens e tinha muito camarão pitu. A maré tinha influência até neste ponto. Hoje, virou um brejo. No início, foi até bom, pois ficou muito peixe preso, mas hoje acabou a natureza do rio. A maré não entra, o rio não passa mais, está tudo parado, morto.”

(Liderança Tupiniquim, apud AGB-ES, 2004, s/n)

Em um trecho do leito de Rio Sahy (S 19º 50’ 29” e O 40º 15’ 07”)92, constatou-se o início de uma obra de mani-lhamento do curso natural do rio, realizado pela empre-sa sem autorização dos caciques. Em outro trecho, deno-minado Morro do Carvão (S 19º 49’ 08” e O 40º 14’ 42”)93, existe um manilhamento já construído há alguns anos em uma área de declive, onde são formadas pequenas corre-deiras no canal fluvial inviabilizando a piracema. À mon-tante das manilhas existe um vale de aproximadamente quatro hectares, vestígio de um considerável leito fluvial no passado, por onde seus antepassados deslocavam-se

de canoas. Atualmente, encontra-se apenas um leito de aproximadamente 1,50 m de largura. No entorno, a mata ciliar é mínima, quase ausente. Em outro ponto conheci-do como Ariribá (S 19º 50’ 40” e O 40º 15’ 18”)94, o córre-go Sahy Mirim, afluente do Sahy, encontra-se totalmente seco, devido à construção da Barragem do Inácio à mon-tante, que impede a chegada da água. Esta barragem foi construída em 1972, com a finalidade de captação de água para a fábrica da Aracruz Celulose. Segundo depoimento de uma liderança indígena de Pau Brasil:

“Esta represa foi construída pela Aracruz para irrigar suas mudas de eucalipto. Somente ela sabia desta represa e somente ela usou esta represa. Há dúvidas se ainda ela é usada. O ladrão por onde sairia a água não permite a saída e, desta forma, o rio abaixo deste ponto está morto. Esta represa não permite a passagem da água, matando, portanto, o rio acima da represa, pois represou totalmente o rio, e também abaixo, pois não permite a passagem de água suficiente para manter a vida deste rio.”

(Liderança Tupiniquim, 2004, apud AGB-ES, 2004, s/n)

Próximo à nascente do Rio Sahy (S 19º 49’ 15” e O 40º 14’ 17”)95, a mata ciliar é ausente com presença de pasto e dejetos. Em outro ponto, à jusante, conhecido como Ponte do Morubá (S 19º 49’ 15” e O 40º 14’ 17”)96, o rio está assoreado, sem mata ciliar e com áreas de plantio de eucalipto da empresa. Neste ponto também é grande a emissão de esgoto in natura dentro do rio, com presença de uma rede de aguapés por toda a extensão, vegetação esta que funciona como bioindicador do processo de eutrofização. A foz do Rio Sahy está totalmente assoreada,

Ponto de inversão do curso do Rio Gimuhuna, à esquerda, em direção ao reservatório hídrico da Aracruz Celulose: a morte de um rio

Page 101: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

100

comprometendo a atividade dos pescadores do lugar. Segundo depoimento de uma liderança dos pescadores:

“Eu peguei muito peixe aqui, de tarrafa, na época quando eu comecei pescando. Mais acima tinha um porto de canoas. Hoje está invadido por casas. Depois que chegou a Aracruz, foi acabando o rio, devido aos aterros e barragens. Eu fico triste de ver este rio assim. Está todo sendo invadido. A água está toda poluída. Este rio era largo e entrava barcos grandes. Hoje acabou tudo. Eu acho que o Rio Sahy ainda tem solução. Mas o Guaxindiba é mais complicado. Lá era um rio muito bonito, onde batizavam as crianças, tomavam banho, pescavam. Aquele rio é difícil recuperar. Agora, este é possível. Pode começar fazendo o roncamento, pois permitiria a água do mar entrar e lavar o rio. Mas tem que ter projeto. Eu espero que antes de eu morrer, eu veja este rio vivo de novo. Pois se continuar do jeito que vai, os nossos netos nem rio vão ver mais. Antes da chegada da Aracruz, poucas pessoas moravam aqui nesta vila, tinham apenas três casas, inclusive a da minha avó, e o mar entrava até bem no fundo do mangue, tudo aqui era mangue e lá em cima tudo era mata, com poucas áreas de pasto e roça, de lavradores pequenos, demais era tudo mata. Com a chegada da Aracruz, foi desmatando, foi plantando eucalipto e com isso foi acabando o rio. Hoje é tudo eucalipto e os bichos a Aracruz matou tudo. Hoje ela põe placas dizendo que é proibido caçar e pescar, mas quem acabou com os bichos foram eles. Antes tinham muitos bichos, hoje não tem mais nada, a Aracruz acabou com tudo. Este rio era largo, tinha uma ponte bem comprida,

mas depois que a Aracruz chegou, expulsou as pessoas do campo, que vieram para o litoral e foram invadindo a área do rio e do mangue. Antes, a boca do rio fechava somente uma vez por ano, por no máximo trinta dias. Nós íamos de canoa até o porto de Pau Brasil. Isso não está pior porque eu e outros pescadores resistimos bastante”.

(Liderança de pescadores, apud AGB-ES, 2004, s/n)

Rio guaxindibaQuanto ao Rio Guaxindiba, o relatório da AGB-ES

(2004) apresenta também uma avaliação crítica. Além do desmatamento de praticamente toda a vegetação natu-ral do entorno para o plantio de eucalipto, verifica-se também a ausência da mata ciliar e consequente asso-reamento. Sua nascente encontra-se dentro do períme-tro urbano do município de Aracruz onde recebe esgo-to in natura a partir do Bairro de Fátima. Em seu tra-jeto, o fluxo percorre uma grande área de monocultura de eucalipto pertencente à Aracruz Celulose, recebendo agrotóxicos. A galeria por onde passa todo o esgoto da cidade termina dentro do Rio Guaxindiba, transportan-do os dejetos. São esgotos domésticos, esgoto químico de empresas e outros mais, provocando a morte da fauna e deixando suas águas impróprias para o uso, num evi-dente e avançado processo de eutrofização, chegando à sua foz praticamente sem vida. É deste rio que é capta-da a água para o abastecimento do povoado de Barra do Sahy. O córrego Sahy-Mirim, afluente do Sahy, encontra-se totalmente seco devido à construção da Barragem do Inácio, que impede a chegada da água – esta barragem foi construída em 1972 com a finalidade de captar água

O assoreamento da foz do Rio Riacho é uma consequência das ações irresponsáveis e da ganância da Aracruz: cumplicidade do Estado

Rela

tório

da

AGB

– Vi

tória

200

4

Page 102: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

101

para a fábrica da Aracruz Celulose (AGB-ES, 2004, s/n). Segundo depoimento de uma liderança dos pescadores na foz do Rio Guaxindiba:

“Este rio era a fonte de água da vila. Todos vinham buscar água neste rio. Além disso, este rio era onde tomávamos banho e era usado para celebrações de batismo. Com a chegada dos novos moradores, foram invadindo a área do rio, desviaram seu curso e canalizaram o rio. Este rio nasce em Aracruz. Antigamente, ele tinha bastante água, mas com a chegada da florestal, com o plantio do eucalipto, acabou com a água. Era tudo mata. Peixe, a gente pegava de tarrafa: robalo, tainha, traíra, cará. Várias casas e ruas foram construídas em cima do rio. A água que tomamos ainda hoje é deste rio, daqui ela vai pro SAAE e recebe tratamento químico. E pelo que sabemos, na cabeceira do rio tem um lixão, em Aracruz. E tem muito eucalipto com agrotóxico. Muitas pessoas, quando tomam desta água, sofrem de dor de barriga. Morava numa localidade nas margens do Guaxindiba, subindo o rio numa caminhada pela mata, numa trilha que durava aproximadamente uma hora, onde meus familiares tocavam roça. Isso há pouco mais de quarenta anos, onde hoje tem somente eucalipto. Neste rio, passavam canoas que subiam até Pau Brasil, canoas de duas ou três pessoas”.

(Liderança de pescadores, apud AGB-ES, 2004, s/n)

A tese da “recuperação total” foi, portanto, o ponto de maior conflito entre a Aracruz e as comunidades indíge-nas no processo de negociação da recuperação dos rios Sahy e Guaxindiba. Esta tese, enquanto aditivo do acor-do entre as partes, foi uma grande conquista dos Tupi-niquim e dos Guarani. A empresa insistiu em não con-siderar a “recuperação total” na sua metodologia, bem como a história de uso e danos dos rios e seus principais agentes, descumprindo o acordo assinado com os índios. A AGB-ES conclui assim seu relatório:

“A recuperação destes rios, segundo a visão geossistêmica, deve ser total, em toda a sua bacia, pois a intervenção parcial não recupera a qualidade ambiental hídrica, consequentemente não gerará a solução dos problemas de cunho socioambiental. Para a recuperação total dos rios, faz-se necessária a recuperação das matas ciliares com espécie nativas, da nascente à foz, constituindo um banco de sementes e sendo, posteriormente, acompanhada da restauração da biodiversidade da fauna característica da Mata Atlântica brasileira. Faz também necessário rever as construções das barragens e manejar e/ou eliminar as existentes, uma vez que, além de interromper o fluxo do rio, podem ocasionar problemas à jusante e à montante. Partindo-se do princípio que rio não é somente água, deve-se priorizar a construção de pontes em detrimento do manilhamento, para possibilitar o deslocamento pelo

curso d’água, tanto de pessoas, como de fauna aquática e ribeirinha. É urgente, também, a eliminação do despejo de esgotos, que prejudica as múltiplas atividades neste corpo d’água. Partindo-se da situação crítica atual, urge repovoar os cursos d’água por re-introdução de espécies que habitavam o antigo leito, resgatando as práticas da pesca tradicional. E, integrando-se à Política Nacional de Recursos Hídricos, é necessária a criação de um Comitê de Bacia com a participação da comunidade indígena, pequenos agricultores, pescadores, empresas, municipalidade e demais atores que do rio dependem, espaço de discussão em prol da gestão dos recursos hídricos.”

(AGB-ES, 2004, s/n)

Os Tupiniquim e os Guarani tornaram pública a pro-blemática da água nos seus territórios na forma de ma-nifestos, protestos e passeatas. Em novembro de 2003, foi realizado um grande protesto no próprio Rio Guaxindi-ba, com fechamento simbólico da via de despejo do es-goto ao rio.

Por iniciativa das comunidades Tupiniquim e Guarani, houve uma mobilização envolvendo pescadores, quilom-bolas, agricultores, ambientalistas, o Ministério Público, AGB, Cimi, Fase e demais integrantes da Rede Alerta con-tra o Deserto Verde, com vistas a pressionar a Aracruz a assumir os danos causados e iniciar um processo de re-cuperação total dos rios Guaxindiba e Sahy no municí-pio de Aracruz.

Em março de 2005, no Dia Internacional das Águas, os Tupiniquim e Guarani realizaram uma passeata em Bar-ra do Sahy, bairro balneário do município de Aracruz, de-nunciando a situação de seus rios e córregos.

Na Aldeia Guarani Piraquê-Açu (TI Caieiras Velhas II), está instalada a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), sob a responsabilidade do SAAE. O esgoto deposita-do provém do Bairro Coqueiral97, município de Aracruz, construído pela empresa Aracruz Celulose para seus fun-cionários. Comparado às aldeias indígenas ou aos demais distritos e bairros do município de Aracruz, o núcleo habi-tacional da empresa, o bairro Coqueiral, distingue-se pela infraestrutura urbana. São equipamentos que não estão à disposição dos índios e demais vizinhanças. E, tampou-co, a maior parte dos trabalhadores envolvida no comple-xo Aracruz pode desfrutar desses benefícios; apenas uma pequena parte, notadamente os diretamente contratados para trabalhar na indústria (Fase-ES, 2006, p. 73).

O esgoto deste núcleo urbano é jogado no quintal do vizinho, a aldeia Guarani Piraquê Açu, que teme pela contaminação. Atos de protestos foram feitos no entor-no da ETE. Reuniões com a Funai e o SAAE foram rea-lizadas para discutir o problema. No entanto, os tanques de decantação, chamados pelos Guarani de “pinicão”, es-tão lá até hoje – ignorados pela Aracruz Celulose, indi-ferentes para o SAAE, sem definição pela Funasa, preo-

Page 103: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

102

cupante para o Ministério Público Federal. A ETE está a 50 metros das casas Guarani da aldeia Piraquê Açu. Em-presa e órgãos públicos postergam uma decisão do que fazer. Nas palavras de Severina, mulher guarani da al-deia Piraquê Açu:

“É um absurdo nós vivermos com isso, faz mal à saúde. O cheiro é péssimo, atrai muitos mosquitos, polui até a água do poço artesiano. Então, a empresa pode construir todo um bairro para seus trabalhadores, gerentes e chefes, e nós é que ficamos com o esgoto de toda essa gente? Por que não fizeram os pinicões dentro do próprio bairro Coqueiral e por que vieram lançar seus esgotos em terra indígena? (…) depois de uma chuva forte que deu, lá pelo ano 2000, o pinicão estourou, e uma criança que brincava na água ficou doente, morrendo três dias depois. E até hoje nenhuma providência foi tomada, nem empresa, nem prefeitura, nem nada”.

(Severina, Guarani, aldeia Piraquê-Açu, apud Fase-ES, 2006, p. 74)

Observa-se, portanto, que, conforme afirma Henri Ac-selrad (1998), práticas discriminatórias por parte das polí-ticas governamentais concorrem para a produção de desi-gualdades ambientais, quando os critérios da distribuição locacional dos rejeitos perigosos inclui o fator etnia como indicador potente, além do próprio fator baixa renda (Ac-selrad, 1998, p. 10). Caracteriza-se, assim, um caso de “ra-cismo ambiental”98, que se alinha à idéia da inferiorida-de do outro, legitimando-a, aprofundando-a e constituin-do parte das “múltiplas estratégias de inferiorização” de que fala Boaventura de Souza Santos (1999), por parte da racionalidade dominante, pois, como denuncia o autor:

“o selvagem é a diferença incapaz de se constituir em alteridade. Não é o outro porque não é sequer plenamente humano. A sua diferença é a medida da sua inferioridade”

(Souza Santos, 1999, s/n).

O projeto agro-florestal celulósico no Espírito San-to causou grandes impactos negativos diretos e indire-tos nos territórios indígenas, atingindo particularmente os sistemas hídricos. A racionalidade econômica hege-mônica é pautada na ideologia do desenvolvimento que fundamenta a exploração predatória do que chama de “recursos naturais”, e que se expande e se projeta de for-ma acelerada contra a natureza e os territórios indígenas e de demais populações pré-existentes locais, e dispõe de uma fraca percepção social sobre a conexão entre água e terra, no contexto dos direitos destes povos.

Concordando com Ricardo Verdum (2004), os modelos e práticas indígenas de gestão da água no Brasil têm sido ignorados ou simplesmente desprezados e vistos como ir-racionais ou não adequados à racionalidade econômica hegemônica. A água tem uma importância e um signifi-cado multidimensional para as comunidades indígenas: é

elo entre o visível e o invisível. “À água estão associadas crenças, religião, ritos, mitos, memórias, relações políticas, regras e práticas de reciprocidade, economia, alimentação, usos e conceitos sobre o corpo, enfim, cultura” (Verdum, 2004, s/n). O autor acrescenta: “a pressão hoje existente so-bre os territórios indígenas decorre da idéia disseminada em amplos setores da sociedade nacional” e, infelizmente, essa disseminação atinge comunidades indígenas quan-to à idéia de que “a exploração dos recursos lá existentes pode gerar “desenvolvimento’” (Verdum, 2004, s/n). Para os núcleos do poder econômico e político e para grande parte da sociedade nacional, o desenvolvimento justifica-ria, inclusive, utilizar as terras indígenas para a implanta-ção da monocultura de produtos agrícolas de exportação, como é o caso do atual contexto brasileiro.

O conflito entre matrizes de racionalidades distintas fica claro quando se tem, de um lado, diversas sociedades comunais, tradicionais, não-capitalistas, fundamentadas na relação de reciprocidade, onde natureza e cultura for-mam um complexo. Do outro, o entendimento de mundo a partir da dominação econômica e política dos territórios, fundamentado na visão dicotômica de Natureza e Socie-dade, em concepções que reduzem a Natureza à dimen-são físico-material e de recursos inesgotáveis, externo ao humano99. A idéia de evolução vincula-se na mesma pro-porção da apropriação e domínio fundamentada, antes de tudo, na lógica da produção capitalista e em modelos de desenvolvimento monocultor, exportador, tecnicis-ta. A ciência apropriada por esta concepção hegemônica é transfigurada em tecnologia a serviço do “desenvolvi-mento econômico”, onde o fosso entre Natureza e Socie-dade intensifica-se, firmando a falsa hierarquia do saber científico sobre os saberes tradicionais. O império desta razão é oportuno ao modo de produção capitalista. Espe-cializa-nos. Fragmenta-nos. Grande violência, a violência epistêmica (Maracci, 2006).

Page 104: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

103

1- Liderança Tupiniquim, Aracruz (ES), 2004.

2- Cf., por exemplo, amplo acervo de pesquisas realizadas por Augusto Ferreira Ruschi, disponíveis no Museu de Biologia Prof. Mello Leitão, Santa Tereza –ES.

3- Fonte: Relatório da AGB-ES (2004). Impactos da apropriação dos Recursos Hídricos pela Aracruz Celulose nas Terras Indígenas Guarani e Tupiniquim – ES. Vitória, março de 2004. (OBS: relatório de estudos de impactos solicitados pelos índios à AGB-ES)

4- Ruschi, Augusto. Boletim do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão, Série Proteção à Natureza, nº 18 -16-01-1954.

5- Compreendendo o entorno e interior das plantações de eucalipto: quilombolas, pescadores, indígenas, assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e demais famílias camponesas.

6- Cf. Autos da “CPI da Aracruz” (2002), op. cit. ; Fase (2006), H2O para Celulose X água para todas as línguas – o conflito ambiental no entorno da Aracruz Celulose S/A – Espírito Santo; Ferreira, S.R.B (2002); Relatório da AGB-ES (2004); Gomes, Helder (2002); Relatório GT da FUNAI, 1997; Seminário Internacional Sobre Eucalipto e Seus Impactos, Comissão de Meio ambiente da Assembléia Legislativa, Vitória ES (2001) (Publicação); Ruschi, Augusto (extensa produção de documentos, encontrado principalmente no acervo do Museu de Biologia Professor Mello Leitão, Santa Teresa - ES).

7- Ruschi, Augusto. Desertos de florestas - Biblioteca do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão, Santa Teresa (ES), s/d. Fonte: Medeiros, Rogério, 1995, in: [http://www.seculodiario.com/ruschi], acesso em fevereiro de 2008.

8- Por exemplo: Rede Alerta contra o Deserto Verde (2002). Cruzando o Deserto Verde. Direção Ricardo de Sá, Espírito Santo.

9- Cf. Revista Século e jornal eletrônico Século Diário: www.seculodiario.com.br [acervo on line]; Revista Olhar Crítico – www.olharcritico.com.br [acervo on line].

10- Cf. Jornal Século Diário. www.seculodiario.com.br – acervo; e Ferreira, 2002. Este trabalho traz depoimentos de várias pessoas das comunidades quilombolas como, por exemplo: “A vivência de ‘seu’ Osmar testemunha a morte de quase todos os 14 rios e córregos que atravessavam a estrada entre Itaúnas e a sede de Conceição da Barra. [...] Dona Alaíde, da comunidade negra de São Domingos, também testemunha a seca dos rios e lagoas, criatórios de peixe.” (Ferreira, 2002, p. 130-132).

11- Aracruz Celulose. Box intitulado “Você sabia? - Uso da água: o consumo de água pelos plantios de eucalipto é semelhante ao da floresta nativa”. In: Relatório de Sustentabilidade 2004, disponível em: www.aracruz.com.br.

12- Cf.: Fase-ES (2006), Relatórios DESC 2002 e 2003; Autos da CPI da Aracruz 2002; Boletins diversos da WRM (Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais), particularmente a publicação intitulada Plantações não são Florestas; Relatório da AGB-ES 2004 (2004); Publicações do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e Movimento das Mulheres Camponesas (MMC).

13- Fase (2006). H2O para Celulose X água para todas as línguas – o conflito ambiental no entorno da Aracruz Celulose S/A – Espírito Santo. Espírito Santo, p.21. A Fase-ES é integrante da Rede Alerta contra o Deserto Verde.

14- Cf. palestra O eucalipto e a água: verdade ou falácia?, por Harald Witt, da Ong Timberwatch, in Seminário Internacional sobre o eucalipto e seus Impactos. Vitória, Espírito Santo, Comissão de Agricultura e Meio Ambiente da Assembléia Legislativa. Brasil/2001.

15- Cf. palestras de Aziz Ab-Saber e Sebastião Pinheiro em Seminário Internacional sobre o eucalipto e seus Impactos. Espírito Santo, Comissão de Agricultura e Meio Ambiente da Assembléia Legislativa. Brasil/2001. Sebastião Pinheiro é engenheiro agrônomo e florestal, funcionário do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social da UFRGS; membro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação em Agricultura e Saúde (Gipaas); ambientalista da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Aziz Ab-Saber é geógrafo, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.

16- Segundo Kleerekoper (1944), conforme o modo da água jorrar no solo, três tipos de nascentes podem ser distinguidas: reocreno, limnocreno e helocrenos. Reocrenos são nascentes cuja água ao sair do solo forma imediatamente um riacho, havendo maior ou menor correnteza na própria nascente; limnocrenos são nascentes que formam uma poça sem correnteza em toda a massa de água e, finalmente, helocrenos são nascentes cuja água se espalha numa superfície extensa do solo, formando um brejo sem superfície de água livre. (Kleerekoper, 1990, 2ªedição).

17- Segundo a Resolução Conama Nº 303, de 20 de março de 2002 (Art. 3º, II), constitui Área de Preservação Permanente a área situada ao redor de nascente ou olho d`água, ainda que intermitente, com raio mínimo de cinqüenta metros de tal forma que proteja, em cada caso, a bacia hidrográfica contribuinte. [http://www.cetesb.sp.gov.br/licenciamentoo/legislacao/federal/resolucoes/2002_Res_CONAMA_303.pdf.]

18- A Lei 4.771/65, através de seu artigo 2º, item “c” declarou como de "preservação permanente" as florestas e demais formas de vegetação natural situadas “nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados "olhos d'água", qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinqüenta) metros de largura”. A Resolução Conama 005/85 (art. 3°, III) praticamente reitera o texto. A Lei nº 7754 de 14/04/89 estabelece medidas para proteção das florestas estabelecidas nas nascentes dos rios e dá outras providências. [Nelson Tembra (07 de outubro de 2006) in:http://forum.jus.uol.com.br/discussao/4852/qual-a-definicao-legal-de-margem-ou-leito-de-rio-para-fins-delicenciamento-ambiental/]

19- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 1991 e 1992.

20- Palestra proferida por Celso Foelkel, vice-presidente da ABTCP, sobre o tema Como Administrar o Consumo de Energia, Água e Outros Insumos no Fórum Anave 2004. [Fonte: www.celuloseonline.com.br – acesso em abril de 2005]

21- Cf. Eucalyptus Online Book - Edição n. 11 junho de 2007 http://www.eucalyptus.com.br [acesso em janeiro de 2008]

22- Cf. também, Andrade, 2006: “Nesse processo é gerada uma taxa de cerca de 700 m3/h de água branca e devido às propriedades físico-químicas deste efluente, especialmente seu conteúdo de matéria orgânica e sua alta dureza, não é possível a reutilização total dessa água na etapa de branqueamento sem causar problemas operacionais.” (Andrade, 2006, p.vii)

23- Capítulo extraído do livro: Meirelles, Daniela e Calazans, Marcelo (2006) H2O para Celulose x Água para todas as línguas – o conflito ambiental no entorno da Aracruz Celulose S/A – Espírito Santo. Fase/ES

24- Daniele Meirelles e Marcelo Calazans são técnicos da Fase/ES e membros da Rede Alerta contra o Deserto Verde

25- Conforme Cepemar, Relatório de Impacto Ambiental (Rima) Fiberline C – Relatório técnico, 1999.

26- Relatório de Administração da Aracruz Celulose, 1978.

27- Jornal Posição, 14 de setembro de 1977.

28- Jornal Posição, n. 20, pg.6, 14 de agosto de 1977.

29- Relatório de Administração da Aracruz Celulose S/A, exercício 1977.

30- Vide Relatório de Administração da Aracruz Celulose S/A, exercício 1977 e jornal regional A Tribuna, 31 de outubro de 1978.

31- Relatório de Administração da Aracruz Celulose S/A, exercício 1977.

32- Entrevista concedida ao jornal A Gazeta, em 11 de fevereiro de 1988.

33- O conceito de sustentabilidade foi apropriado pela Comissão Brundtland e, desde

RefeRências

Page 105: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

104

então, se tornou um conceito estruturador do marketing verde empresarial e do discurso da modernização ecológica.

34- Entrevista concedida ao jornal Gazeta Mercantil, 22 de outubro de 1993.

35- Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 25 de agosto de 1991.

36- Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 25 de agosto de 1991.

37- Cartaz de 28 de maio de 1992, convocando ato público. Arquivo Fase-Ibase.

38- Jornal A Gazeta, 09 de maio de 1991.

39- Conforme jornal Gazeta Mercantil, 28 de maio de 1991.

40- Conforme o jornal A Gazeta, de 23 de abril de 1991, essa primeira multa foi de CR$ 600 mil e se referia a problemas técnicos no forno da fábrica, elevando a emissão de gases na atmosfera, quando a empresa realizava ajustes durante a fase de ampliação da fábrica.

41- Jornal A Gazeta, 18 de outubro de 1991.

42- Segundo o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil, nas eleições de 2002, a Aracruz Celulose S/A foi a segunda maior empresa a apoiar as campanhas para os parlamentos (federal e estadual) e também para o governo do estado e presidência da República.

43- Idem.

44- Idem

45- Aracruz Celulose, Relatório Anual 2004.

46- Conforme Cepemar, Relatório de Impacto Ambiental (Rima) Fiberline C – Relatório técnico, 1999.

47- Cf. em: www.aracruz.com.br - “Resultados do 4º. Trimestre de 2007”.

48- Barra do Riacho é um povoado pertencente ao município de Aracruz e abriga o complexo fabril chamado Unidade Barra do Riacho.

49- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 7.274 e 7.275.

50- O Rio Doce nasce em Minas Gerais e deságua no litoral do Espírito Santo, município de Linhares, próximo à aldeia Tupiniquim Comboios. “A Bacia Hidrográfica do Rio Doce está localizada na região Sudeste do Brasil entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, nos paralelos 17°45' e 21°15' de latitude sul e os meridianos 39°55' e 43°45' de longitude oeste. Possui uma extensão total de 853 km e uma área de drenagem com cerca de 83.400 km², dos quais 86% pertencem ao estado de Minas Gerais e o restante (14%) ao estado do Espírito Santo sendo, portanto, uma bacia de domínio federal (ANA, 2001). Limita-se ao norte pela Serra Negra e pela Serra dos Aimorés, a oeste pela Serra do Espinhaço, a sudoeste e sul pela Serra da Mantiqueira, a sudeste pela Serra do Caparaó e leste pelo Oceano Atlântico.” [Coelho, André Luiz Nascentes. Situação Hídrico-Geomorfológica da Bacia do Rio Doce com Base nos Dados da Série Histórica de Vazões da Estação De Colatina (ES) – In: Caminhos de Geografia - revista on line - http://www.ig.ufu.br/revista/caminhos.html - ISSN 1678-6343]

51- O Departamento Nacional de Obras de Saneamento foi criado em 1940 e extinto em 1990.

52- O Canal do Riacho é uma canalização do Rio Riacho realizada pelo antigo DNOS. Foi, portanto, construído antes do Canal Caboclo Bernardo, recuperado, apropriado e re-utilizado pela empresa em seu complexo de captação de água.

53- Os principais afluentes da bacia do Rio Riacho são: Rio Piraquê-açu, Rio Piraquê-mirim, Rio Sahi, Rio Araraquara, Rio Francês e Rio do Norte. Possui uma área de drenagem aproximada de 1.692 km2. [Fonte: http://www.iema.es.gov.br]

54- O Rio Comboios pertence à bacia do Rio Riacho. Nasce no município de Linhares, no alagado da Reserva de Comboios (Área de Preservação criada em 1984, mantida pelo

Projeto Tamar, com 833 hectares e que protege uma área de 14 km no litoral norte do Espírito Santo.) e deságua no Rio Riacho, município de Aracruz. A aldeia Tupiniquim Comboios - oficialmente TI Indígena Comboios - faz limite com a Reserva de Comboios. [Fonte: http://www.brasilchannel.com.br]

55- O Vale do Suruaca constituía-se de terrenos pantanosos, área de várzea contínua, com 145 mil hectares ao norte do Rio Doce e 35 mil ao sul deste Rio e no centro-leste do Espírito Santo, abrangendo os municípios de São Mateus, Linhares e Aracruz. O DNOS esgotou as águas do Vale de Suruaca para permitir a expansão das propriedades rurais, a chamada “cerca andante”. Atualmente, a região sofre um processo de desertificação química que atinge uma área de 32.870 hectares. Com a drenagem da água, aflora a matéria orgânica, originada da turfa. Na sua decomposição, é produzido enxofre. Este, na presença da água, produz o ácido sulfúrico. [Fonte: www.seculodiario.com.br – “Tragédia do Suruaca” - acesso em dezembro de 2007]

56- Na medida em que a água ia sendo drenada, as cercas iam caminhando e aumentando as propriedades. Fontes: Revista Águas do Rio Doce s/d [http://www.aguasdoriodoce.com.br] p. 23; e www.seculodiario.com.br - 27 de outubro de 1999 – acessos em dezembro de 2007.

57- Cf. Relatório da AGB-ES, 2004.

58- O projeto de engenharia final foi elaborado, segundo a empresa Aracruz Celulose, pela CBC - Construtora Base e Comércio Ltda. (CBC) e os estudos ambientais foram elaborados pelo Centro de Estudos Ambientais (CEA), Gestão da Qualidade do Meio Ambiente e Hidrossistema Engenheiros e Consultores (MPS). Os aspectos ambientais foram analisados, segundo a empresa, pela Secretaria de Meio Ambiente do Espírito Santo (Seama), que concedeu uma licença para a implantação da obra, executada pela CBC. (Relatório da AGB-ES, 2004).

59- In: Anais do XI Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada – 05 a 09 de setembro de 2005 – USP.

60- Seca sazonal: período do ano no qual não ocorrem precipitações pluviométricas significativas.

61- Cf. Relatório da AGB-ES (2004).

62- Os Tupiniquim de Comboios nos acompanharam no período da pesquisa de campo pela AGB-ES em 2004.

63- Cf.: AGB-ES. (2004)

64- A Aracruz Celulose recebeu o Prêmio CNI de Ecologia 2000, na categoria Proteção dos Recursos Hídricos pela construção do Canal Caboclo Bernardo. Fonte: Site da Aracruz Celulose (seção “Últimas Notícias”) – Projeto de Captação de Água do Rio Doce conquista Prêmio CNI de Ecologia 2000. [www.aracruz.com.br - acesso em dezembro de 2006]

65- Jornal A Gazeta, Vitória (ES), 12 de junho de 2000.

66- Depoimento de Herval Nogueira, na época, presidente da Associação Comunitária de Barra do Riacho, colhido em janeiro de 2004.

67- Relatório da AGB-ES, 2004.

68- Estas informações, obtidas em pesquisas de campo, também são encontradas nas seguintes publicações: Cf.: Relatórios DESC-A (2001 e 2002), relatório da AGB-ES (2004), Autos da CPI da Aracruz (2002), GOMES, H. (2002).

69- Informações obtidas em trabalho de campo colhidas em diversas visitas à Barra do Riacho durante os anos de 2003 e 2004, 2005, 2006, 2007.

70- Cf. Relatório da AGB-ES, 2004.

71- Cf. Parecer geográfico nos anexos do Relatório da AGB-ES, 2004, s/n.

72- Drenagem Exorréica: quando a drenagem dirige-se ao oceano.

73- Relatório da AGB-ES, 2004.

Page 106: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

105

74- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 2.029.

75- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 2.029.

76- Cf. Autos da CPI da Aracruz, 2002, fls. 2.030.

77- Em 11 de maio de 1999, a Seama recebeu por fac-símile, um parecer técnico do engenheiro agrônomo Antônio Eduardo Lana – consultor contratado pelo município de Aracruz, encaminhado em 11 de maio de 1999 à Seama.

78- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.031.

79- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.031.

80- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.032.

81- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.033.

82- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 2.034-5 – Para acessar maiores detalhamentos sobre essa discussão jurídica, consulte o documento Considerações sobre O Licenciamento da Canalização de Água do Rio Doce para o Município de Aracruz – ES, anexo nos Autos da referida CPI.

83- Autos da “CPI da Aracruz”, 2002, fls. 7.274-5.

84- Fonte: Fase, 2006, p. 67.

85- O referido TAC, um acordo entre a Aracruz Celulose e os Tupiniquim e os Guarani e desde a demarcação de 1998, foi o instrumento utilizado pela empresa para uso dos territórios indígenas desde a demarcação de 1998. Em 1995, foram reconhecidos 13,5 mil hectares como território indígena. Somados à demarcação anterior, totalizavam 18 mil hectares. No entanto, o ministro da Justiça da época, Íris Rezende, assinou a portaria homologando apenas 2,5 mil hectares, restando os 11 mil para serem demarcados. Como forma de compensar a não totalidade da demarcação e amenizar o conflito, foi estabelecido um acordo entre Ministério da Justiça, a Aracruz Celulose, Funai e os índios. No acordo (TAC), a empresa continuaria explorando os 11 mil hectares e pagaria uma indenização em forma de dinheiro e projetos. Com a decisão dos Tupiniquim e dos Guarani em reiniciar a luta, a auto-demarcação feita em maio de 2005 e o referido acordo foi rompido.

86- “A vinda da empresa e de seus trabalhadores atraíram também diversos comerciantes e todo o tipo de serviço, inchando a área urbana em pouco tempo. Com a chegada da Aracruz Celulose, a população da sede do município cresceu 63%, em apenas 7 anos, passando de 6.746 habitantes em 1970, para 10.998 em 1977, um ano antes da inauguração da fábrica.” [Coleção “Faça-se Aracruz!” (subsídios para estudos sobre o município) nº 2 – Setembro/97. – Apud: Fase-ES (2006), p.72].

87- Cf. Relatório da AGB-ES, 2004.

88- No dia 21 de janeiro de 2003, durante reunião na fábrica da Aracruz com a presença das lideranças Tupiniquim e Guarani, Funai, Ministério Público, Cimi e diretores da empresa, a AGB-ES apresentou seu parecer, que foi defendido também pelas lideranças indígenas e acatado pelas demais partes. A empresa pediu um novo prazo para refazer sua proposta, o qual foi aceito pelas lideranças indígenas. O novo documento intitulado “Termo de Referência para a Elaboração de Estudo de Recuperação dos Rios Guaxindiba e Sahy no Município de Aracruz – ES” foi entregue à AITG em 13 de março de 2003 e posteriormente repassado à AGB-ES para nova análise e parecer. (Relatório da AGB-ES, 2004)

89- Relatório da AGB entregue em março de 2004 aos Tupiniquim e Guarani, sob o título Impactos da Apropriação dos Recursos Hídricos pela Aracruz Celulose nas Terras Indígenas Tupiniquim e Guarani – ES.

90- A Lei 4.771 de 15 de setembro de 1965, alterada pela Lei 7.803/89 no Artigo 2o., considera de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural situadas ao longo dos rios ou qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja mínima seja de trinta metros para os cursos de dez metros de largura. O Rio Sahy enquadra-se neste respectivo artigo, pois apresenta uma largura de menos de dez metros.

91- Fonte: Fase-ES (2006), p. 67

92- Relatório da AGB-ES, 2004.

93- Idem.

94- Idem.

95- Relatório da AGB-ES, 2004.

96- Idem

97- “Núcleo Habitacional Bairro Coqueiral: no bairro Coqueiral, cujas obras foram a cargo da subsidiária Santa Cruz Urbanizadora S/A, foram concluídas 671 unidades residenciais, das 835 previstas. As obras de infraestrutura: pavimentação, água, energia, iluminação e telefone, foram totalmente executadas. Os equipamentos comunitários como hotel, escola ativa, clube da orla, centro comercial (primeiro bloco), ambulatório e central telefônica, no final do exercício findo, achavam-se prontos e em pleno funcionamento.” (Relatório administrativo da Aracruz Celulose S/A, de 1978, Apud Fase, 2006, p. 73)

98- “(...) o movimento de justiça ambiental estruturou suas estratégias de resistência recorrendo de forma inovadora à produção de conhecimento próprio sobre os indicadores de desigualdade ambiental. Momento crucial desta experiência foi a pesquisa mandada realizar em 1987 pela Comissão de Justiça Racial da United Church of Christ, que mostrou que ‘a composição racial de uma comunidade é a variável mais apta a explicar a existência ou inexistência de depósitos de rejeitos perigosos de origem comercial em uma área’. Evidenciou-se, então, que a proporção de residentes que pertencem a minorias étnicas em comunidades que abrigam depósitos de resíduos perigosos é o dobro da proporção de minorias nas comunidades desprovidas de tais instalações. (...) Foi a partir desta pesquisa que o reverendo Benjamin Chavis difundiu a expressão ‘racismo ambiental’ para designar “a imposição desproporcional - intencional ou não - de rejeitos perigosos às comunidades de cor.”(Acselrad, 1998, p.10)

99- “Se o selvagem é, por excelência, o lugar da inferioridade, a natureza é, por excelência, o lugar da exterioridade. Mas como o que é exterior não pertence e o que não pertence não é reconhecido como igual, o lugar de exterioridade é também um lugar de inferioridade. Tal como o selvagem, a natureza é simultaneamente uma ameaça e um recurso.” (Souza Santos, 1999)

RefeRências BiBliogRáficasAcselrad, Henri (1998). Seca, Queimadas e Capitais Voláteis. In: Políticas Ambientais, Ano 6, n. 18, outubro de 1998, p10-11, Ibase, RJ.

Associação dos Geógrafos Brasileiros/seção Vitória/ES (2004). Impactos da Apropriação dos Recursos Hídricos pela Aracruz Celulose nas Terras Indígenas Guarani e Tupiniquim – ES. Andrade, Alexandre A. (2006). Redução do consumo de água na etapa de branqueamento da celulose via reutilização de efluentes industriais. Dissertação de Mestrado em Engenharia Química. Universidade Estadual de Campinas.

Cepemar (1999), Relatório de Impacto Ambiental – Rima Fiberline C – Relatório técnico, 1999.

Coelho, André Luiz Nascentes. (2005) A Evolução e a Dinâmica Fluviomarinha Recente na Planície Costeira do Rio Doce: Identificando e Discutindo as Principais Transformações. In: Anais do XI Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada – 05 a 09 de setembro de 2005 – USP

Coelho, André Luiz Nascentes (2005). Situação Hídrico-Geomorfológica da Bacia do Rio Doce com base nos dados da série histórica de vazões da estação de Colatina – ES – In: Caminhos de Geografia. Disponível em <http://www.ig.ufu.br/revista/caminhos.html>

Dalcomuni, Sonia Maria (1990). A implantação da Aracruz Celulose no Espírito Santo – principais interesses em jogo. 285p. Dissertação (Mestrado em Economia) – Programa de Pós- Graduação em Desenvolvimento Agrícola, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1990.

Page 107: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

106

Fase (2006), H2O para Celulose X água para todas as línguas – o conflito ambiental no entorno da Aracruz Celulose S/A – Espírito Santo.

Ferreira, Simone R. B. (2002). Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o fim dos territórios comunais no Extremo Norte do Espírito Santo. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana – USP.

Kleerekoper, H. (1944) Introdução ao estudo da limnlogia. 2 ed. 1990. Porto Alegre: Ed. Universitária/UFRGS.

Maracci, Marilda T. (2006). Ambiente em questão (ou a vida em questão): da relação contra-a-natureza para uma relação com-a-natureza! In: Revista Olhar Crítico (ISSN: 1808-785X), Nº 20, edição mensal: 8/2006

Maracci, Marilda Teles (2008). Progresso da Morte, Progresso da Vida: a reterritorialização conjunta dos Tupiniquim e dos Guarani em luta pela retomada de suas terras-territórios (Espírito Santo - Brasil). Tese de Doutorado em Geografia. Niterói : Instituto de Geociências/Programa de Pós-graduação em Geografia/UFF, 288 pp.

Medeiros, Rogério. Ruschi : o agitador ecológico. Rio de Janeiro. Record, 1995. 223 p.

Porto-Gonçalves, Carlos Walter (2006). A globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Rede Alerta contra o Deserto Verde (2002). Cruzando o Deserto Verde (documentário). Direção Ricardo de Sá, Espírito Santo.

Relatório Administrativo da Aracruz Celulose S/A, de 1978. Disponível em www.aracruzcelulose.com.br. Acesso em out. 2005.

Relatório da Oficina Participativa 4P. Plano de Ação para a comunicação do corredor central da Mata Atlântica. Ilhéus, 5 e 6 fev. 2004. Disponível em: <http://www.conservation.org.br>. Acesso em: out. 2005.

GT/Funai (1994). Relatório Final de Estudo da Identificação das Terras Indígenas Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios; Grupo Técnico, Portaria No. 0783/94 de 30 de agosto de 1994”.

Ruschi, Augusto(1954). Grupos antropológicos indígenas do E. E. Santo. Causas de seu desaparecimento. Dados sobre a população e a área de floresta para sua sobrevivência. In: Boletim do Museu de Biologia. Proteção à natureza. – n.º 18, 16 Jan. 1954. – Santa Teresa: Museu de Biologia Prof. Mello Leitão.

Ruschi, Augusto (1955). Fitogeografia do Espírito Santo. Vitória.

Ruschi, Augusto. Desertos de florestas - Biblioteca do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão, Santa Teresa – ES, s/d. Disponível em: <http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_967.html> acesso em fevereiro de 2008.

Shiva, Vandana e Bandyopadhyay, J. (1991). Inventário ecológico sobre o cultivo do eucalipto. Tradução Ana Lúcia da Costa Pereira. Belo Horizonte, Comissão Pastoral da Terra, Verdum, Ricardo (2004). Água nas Terras Indígenas. In: Orçamento e Política Socioambiental; Inesc, Ano III • nº 9 • junho de 2004.

Villela, S. M.; Mattos, A (1975). Hidrologia Aplicada. São Paulo, McGraw-Hill.

E a rica floresta virou um deserto homogêneo e triste...

Page 108: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

107

Este artigo apresenta e analisa dados sobre emprego e trabalho nas plantações de eucalipto e produção de ce-lulose para exportação no Espírito Santo, mais especifi-camente na empresa Aracruz Celulose, a maior do setor no mundo. Sem a pretensão de se apresentar como um estudo acadêmico, este texto é, na verdade, o relatório de uma pesquisa em que se ouviram trabalhadores e traba-lhadoras da Aracruz Celulose e moradores e moradoras das comunidades vizinhas à empresa. Essa metodologia ajudou também a revelar a situação dessas comunidades, cujas formas tradicionais de trabalho sofreram altera-ções ou foram inviabilizadas em função da implantação das grandes extensões da monocultura do eucalipto no estado. Os nomes de trabalhadores e ex-trabalhadores e sindicalistas entrevistados foram omitidos de modo a preservar a segurança dos mesmos.

A conjuntura atual torna este trabalho ainda mais re-levante se levarmos em conta a recente crise financeira mundial e as ameaças aos trabalhadores que ela repre-senta, já que estes são os primeiros a sentir na pele e no bolso os seus impactos. Em 2008, por exemplo, a Aracruz demitiu cerca de 1.500 trabalhadores.

O setor de eucalipto/celulose utiliza sistematicamen-te a geração de empregos como arma para ‘vender’ seu projeto às comunidades locais e regionais, ao Estado e à opinião pública. Mas, na verdade, os números que o se-tor apresenta ao fazer sua propaganda não se confirmam nem nas suas próprias fontes.

De acordo com o pesquisador Francisco de Oliveira (Ibase, 2004), o capitalismo contemporâneo produz dois tipos opostos de emprego. O primeiro é o emprego de alta performance, bem remunerado e com todos os direitos trabalhistas garantidos; são empregos dedicados a pes-quisas científicas e programas para o progresso técnico, por exemplo. O segundo é o emprego mais banalizado,

Promessas de emprego e destruição de trabalho1

Alacir De´Nadai, Luiz Alberto Soarese Winnie Overbeek4

braçal, mal remunerado e, geralmente terceirizado, como paradoxo do progresso técnico-científico; inclui setores como a indústria, onde se situa a classe operária, e servi-ços. Desta forma, a concentração de renda e as desigual-dades entre as categorias de trabalhadores com e sem direitos garantidos aumentam proporcionalmente. Essa situação é percebida não apenas na Aracruz Celulose, mas em todas as empresas do setor.

Tal questão merece um estudo aprofundado, sobretu-do para desconstruir o discurso empresarial que utiliza a geração de empregos como justificativa para ampliar a plantação de árvores no Brasil para 11 milhões de hecta-res até 2013, o que significa aumentar a capacidade pro-dutiva de celulose. As promessas de emprego se repetem em outros países do Sul, como Equador, Chile, África do Sul e Indonésia, onde as grandes empresas do setor que-rem se instalar ou se expandir para plantar árvores de rápido crescimento na intenção de produzir celulose para exportação. Onde quer que se instalem, os grandes mo-nopólios das plantações de eucalipto e fábricas de celu-lose no Espírito Santo destroem a agricultura campesina, substituem a produção de alimentos e impedem a reali-zação da reforma agrária e a devolução e demarcação de terras quilombolas e indígenas. Esperamos que o estudo seja útil a todos que enfrentam esses problemas.

I – EmpREGo E A ARACRuz

1 - as promessas de empregoe os instrumentos de divulgação

“Forestry activities offer job opportunities even in remo-te areas of the country” (“Atividades florestais oferecem oportunidades de emprego, mesmo nas áreas mais remo-tas do País”).

Esta é apenas uma das muitas frases de propaganda que a Aracruz Celulose divulga através de textos e proje-tos na Internet, e que integra uma mensagem geral que as empresas do setor querem “vender”: o plantio de eucalip-to e a produção de celulose como geradores de empregos, até em regiões onde não existiam outras oportunidades.

No afã de divulgar mensagens positivas, os dados nem sempre correspondem à realidade, outras vezes são ma-nipulados para parecerem verdadeiros. Vejamos, como exemplo, a seguinte frase da Aracruz Celulose, num pro-jeto em inglês, que circulou na Internet em busca de fi-nanciamento: “On average, each hectare of eucalyptus plantation generates four directly related jobs, an indica-tion of the economic and social importance of these plan-tations,...” (“Em média, cada hectare de uma plantação de eucalipto gera quatro empregos diretos, uma indicação da importância econômica e social destas plantações”).

Esta afirmação significa que, no caso da Aracruz, com 247.000 hectares de eucalipto em 2004, a empresa estaria

Page 109: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

108

gerando 988.000 empregos diretos somente nas plantações de eucalipto. Mas, na realidade, a Aracruz gerava, direta-mente, apenas 2.031 empregos (BVQI, 2004).

Além da sua própria publicidade, empresas como a Aracruz Celulose têm muitos parceiros que contri-buem para passar a idéia de grande geradora de em-pregos e renda. Assim como existe o “greenwashing” das empresas para criar uma imagem verde, há tam-bém o “jobwashing”:

PublicidadeA Aracruz faz massivos investimentos em campanhas

publicitárias com o objetivo de influenciar a opinião pú-blica, além de fazer pronunciamentos específicos para responder às críticas que recebe. Essas campanhas são realizadas através de diferentes meios de divulgação, como outdoors e cartazes localizados em pontos de gran-de fluxo de pessoas, nos ônibus e seus pontos de parada, principalmente na região da Grande Vitória, onde a maio-ria da população do estado se concentra. Além disso, são divulgados anúncios nos jornais, rádios e televisão.

Uma campanha publicitária recente da Aracruz abor-dou a questão do emprego, mostrando à população que a empresa “está presente no seu dia-a-dia” através dos inú-meros empregos indiretos gerados a partir da sua pre-sença no estado. Mas a campanha não apresenta dados específicos, como o número exato de empregos diretos e indiretos que gera, por exemplo. Ela simplesmente bus-ca convencer a população de que, de alguma forma, está presente no seu cotidiano, ou seja, que ela é responsável por empregos que não são ligados diretamente às suas atividades, e isso “você pode nem perceber”, conforme fi-naliza a mensagem divulgada.

Mesmo quando a Aracruz apresenta os números dos empregos diretos, estes nunca são específicos, como re-vela a resposta a uma matéria do Jornal do Brasil, que fazia críticas à empresa:

“A Aracruz gera atualmente 4.800 empregos diretos e cerca de 50 mil indiretos, ...”

(resposta da Aracruz à matéria O conflito ambiental da Aracruz ,do JB, de 14 de abril de 2002)

MídiaA Gazeta2 é o principal jornal de circulação diária no

Espírito Santo. Neste veículo, a Aracruz encontrou seu mais fiel parceiro na imprensa estadual. A Gazeta só di-vulga notícias positivas da empresa e sempre minimiza os protestos ou críticas. O compromisso deste jornal com a Aracruz parece se basear na convicção de que os grandes projetos econômicos são fundamentais para o desenvol-vimento do estado. A empresa, por sua vez, veicula cons-tantemente uma grande quantidade de anúncios publici-tários, incluindo cadernos especiais. Provavelmente, todo

esse investimento deve influenciar nas opiniões que são publicadas no jornal. O resultado é uma verdadeira mani-pulação da opinião pública, através de todos os meios de comunicação ligados à Rede Gazeta, que inclui, além do jornal, a TV e o rádio. Todas as tentativas de divulgação de atividades e ações da Rede Alerta contra o Deserto Ver-de ou sobre os impactos negativos causados pela Aracruz Celulose não são bem sucedidos.

Vejamos alguns trechos transcritos do jornal A Gazeta:

- “O setor [de celulose no Espírito Santo] gera 60 mil empre-gos diretos e indiretos e movimenta R$ 2,5 bilhões [US$ 0,9 bilhão] por ano.” (11 de junho de 2002)- “Expectativa com a liberação do plantio de eucalipto: mais 25 mil empregos”. (manchete de 11 de junho de 2002)

Aracruz tenta passar a falsa idéia de que gera muitos empregos

Page 110: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

109

- “As obras da terceira fábrica foram iniciadas em fevereiro de 2001 e quando ela estiver em operação vai gerar 420 empre-gos diretos e 2,4 mil indiretos...” (24 de fevereiro de 2002)- “O plantio de mais 174 mil hectares de florestas no estado, dos quais 70% com eucalipto e pinus (...), vai permitir a gera-ção adicional de US$ 1 bilhão de renda e cerca de 50 mil em-pregos, entre diretos e indiretos, para a economia capixaba.” (dezembro de 1998) - “... a estimativa é o plantio de cerca de 8 mil hectares, com a geração de mais de 300 empregos no campo.” (15 de janeiro de 2004)- “Assim, a Aracruz foi responsável pela criação da maioria de seus prestadores de serviço, que hoje somam 152 empresas, envolvendo um efetivo de 9 mil empregos, entre permanen-tes (...) e temporários.” (Caderno Especial de 05 de agosto de 2003)

governos federal, estadual e municipalO setor de exportação de celulose é estratégico para o

Brasil, já que o País optou pela adoção de uma política econômica que estimula prioritariamente as exportações. O governo federal, por exemplo, havia lançado como meta ampliar a área de plantações de árvores no Brasil em 40% até 2007. Portanto, não surpreende que os governos, em todos os níveis, demonstrem uma grande disposição em colaborar com a divulgação do setor de celulose. O ex-Mi-nistro de Trabalho e Emprego, atual governador da Bahia, Jaques Wagner, disse, durante visita à empresa Veracel Celulose, em janeiro de 2004, que “A Veracel tem a cara do Lula [presidente do Brasil]”, afirmação que ganhou nada menos que manchete no sítio eletrônico da Veracel na internet. Segundo Wagner, “aqui, está a síntese do que acredita o presidente Lula”.

Um outro exemplo vem de um representante do ban-co público federal BNDES: “O chefe de departamento da área industrial do BNDES destaca que o projeto [da Veracel] vai gerar dois mil empregos diretos e oito mil indiretos pelo efeito multiplicador de suas atividades. Segundo ele, cerca de 12 mil empregos serão gerados na fase de pico das obras.” (Gazeta Mercantil, 17 de dezem-bro de 2003)

Nos municípios, os prefeitos não ficam atrás. Cita-mos, a seguir, o ex-prefeito de Cachoeira de Itapemirim, Theodorico Ferraço, na inauguração de um escritório da Aracruz Celulose neste município, no sul do Espírito San-to: “Esse é o grande passo para que a Aracruz traga em-prego e geração de renda à nossa região. A instalação do escritório do programa do Produtor Florestal da Aracruz tem o significado de uma nova fábrica de Itapuã ou de uma Viação Itapemirim3” (Produtor Florestal, Ano I, no 4, julho de 2004, Aracruz Celulose)

Vale lembrar que só a Viação Itapemirim gera em tor-no de 16.000 empregos diretos no País, um número bem maior do que os pouco mais de 2.000 da Aracruz.

Parlamentares A empresa Aracruz influencia de todas as formas os

parlamentares brasileiros. Primeiramente, ela faz ma-ciças contribuições nas campanhas eleitorais de candi-datos de direita, do centro e de esquerda, uma prática comum no País. Uma vez que o parlamentar é eleito, a empresa financiadora espera dele um tratamento espe-cial, além de apoio para suas atividades, mesmo quando estas provocam graves impactos ambientais e sociais. Foi assim que surgiu na Câmara dos Deputados a “Bancada da Silvicultura”, um grupo de parlamentares que defende a expansão das plantações de árvores no Brasil. Um dos membros desta bancada disse:

“Não há como ignorar a importância que o setor florestal brasileiro tem na economia. (...) Dois milhões de empregos diretos...”

(A Gazeta, Coluna do Leitor: Renato Casagrande, deputado federal e engenheiro florestal, 07 de agosto de 2003)

Representantes da silvicultura A silvicultura no Brasil cresceu enormemente nas dé-

cadas de 1960 e 1970, quando as empresas do setor con-seguiram incentivos fiscais suficientes para o fomento de grandes plantios de eucalipto e pinus. Desde então, os engenheiros florestais e suas associações, com raras exceções, se tornaram talvez os maiores defensores das empresas de eucalipto e celulose. A Sociedade Brasileira de Silvicultura (SBS) divulga notícias em seu site na in-ternet, organiza seminários, orienta associados, divulgan-do os benefícios das plantações de árvores, inclusive para a geração de empregos. Um exemplo:

“Com as políticas públicas instituídas nas décadas de 1960

e 1970 objetivando diminuir a exploração indiscriminada dos recursos florestais naturais e de implantar florestas de rápi-do crescimento, o setor passou a contribuir com uma parcela importante para a economia brasileira através da geração de produtos para consumo direto ou para exportação, gerando impostos e empregos e atuando na conservação e preserva-ção dos recursos naturais renováveis”.

(Rede SBS de 16 de agosto de 2004)

secretarias de agricultura, empresas estataisde extensão rural e fiscalização

Órgãos de governo, que atuam na agricultura, fazem propaganda do eucalipto, convencendo produtores ru-rais a aderirem ao programa de Fomento Florestal (atu-almente chamado de Programa Produtor Florestal) das empresas. No Espírito Santo, o programa da empresa Aracruz convence produtores rurais a plantar eucalipto para fins de produção de celulose. No seu trabalho de di-vulgação, os órgãos públicos também utilizam a geração de emprego através do plantio de eucalipto como instru-

Page 111: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

110

mento de convencimento. Um exemplo disso é o convênio firmado em 07 de ju-

nho de 2004 entre a Aracruz, a Secretaria de Agricultura do Espírito Santo (Seag) e o Instituto Capixaba de Pes-quisa e Extensão Rural (Incaper). O convênio prevê que os órgãos estaduais têm como meta promover o plantio de eucalipto nas propriedades rurais e, segundo o ex-secretário estadual da Agricultura, Ricardo Ferraço, esta seria “uma extraordinária oportunidade para o agrone-gócio”. Apesar de o programa se chamar Reflorestamento de imóveis rurais, serão disponibilizadas apenas 60 mil mudas de árvores nativas para os produtores rurais no estado, bem menos que as 1,3 milhão de mudas de eu-calipto previstas no programa. Durante a assinatura do convênio, no sul do estado, o gerente florestal da Ara-cruz, Tadeu Mussi de Andrade, prometeu gerar cerca de 500 empregos diretos e 2 mil indiretos numa área de plantio proposto de 5 mil hectares de eucalipto naquela região (Produtor Florestal, Ano I no4, julho de 2004, Ara-cruz Celulose).

escolasOutro grupo que a Aracruz prioriza para tentar in-

fluenciar é o de alunos e professores. Segundo o dire-tor de Meio Ambiente da Aracruz Celulose, Carlos Al-berto Roxo, “a política social da empresa prioriza a área educacional, principalmente”. É nesse sentido que ela se esforça para receber visitas de escolas à fábrica e, posteriormente, manter os vínculos para que o traba-lho de convencimento das crianças continue. Na prin-cipal feira de meio ambiente do estado, a “Feira do Ver-de”, que acontece anualmente em Vitória, com mais de 70.000 visitantes, a Aracruz garante sempre os melhores e maiores espaços, bem na entrada do evento. O público é composto, principalmente, de grupos escolares de todo o estado.

2 - a geração de empregos

2.1 - Dados do setor de plantações e celulose no BrasilNo Brasil existem muitos números disponíveis sobre

o setor de plantações e sua capacidade de geração de emprego. Os dados são divulgados em sites das empre-sas, em palestras e em artigos de jornais. Vale acrescen-tar que, nesses sites e em outros informes publicitários, o setor de plantações é sempre chamado de “setor flo-restal”. É bom deixar claro que em uma monocultura de árvores de eucalipto ou pinus, além da presença das ár-vores, nada mais tem a ver com uma floresta de verda-de. O setor insiste com o termo “florestal” porque é um termo positivo, que soa melhor para a opinião pública, do que “plantação”.

Apresentamos alguns dados, obtidos de jornais e de si-

tes da internet, que impressionam em termos de quan-tidade – milhões de empregos - mas, ao mesmo tempo, chamam a atenção pelas enormes diferenças entre eles. As fontes não dão maiores detalhes sobre a metodologia utilizada para se chegar a estes números, nem esclarecem as categorias de empregos a que se referem para montar os números. Vejamos alguns exemplos:

- Segundo José Carlos Mendes, gerente florestal da empresa Klabin, em palestra proferida na Alemanha, em setembro de 2004, contando com 5 milhões de hec-tares de plantações, o setor “florestal” gera no Brasil 1,5 milhão de empregos diretos e 5,2 milhões de em-pregos indiretos.

- O deputado federal Renato Casagrande, em artigo no jornal A Gazeta, de 2003, afirmou que a geração de empregos [do setor “florestal”] é de 2 milhões de em-pregos diretos.

- Para Antônio Claret, presidente da Associação Mi-neira de Silvicultura, o setor “florestal” cria 2,5 milhões de empregos diretos e indiretos, conforme entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em 7 de outubro de 2004.

- O jornal Estado de Minas, em editorial no dia 18 de dezembro, prevê que “Um programa sustentado de re-florestamento pode gerar 2 milhões de empregos diretos [no Brasil]”.

Algumas perguntas foram enviadas, por correio eletrô-nico, à Associação Brasileira de Produtores de Celulose (Bracelpa) com o objetivo de esclarecer as diferenças nos números de empregos apresentados e as categorias de trabalhadores incluídos. Apesar de ter respondido, a Bracelpa não esclareceu as dúvidas enviadas pela Rede Alerta contra o Deserto Verde, limitando-se a afir-mar que “acompanha somente a mão-de-obra do setor de celulose e papel”. A entidade informa ainda que no Espírito Santo esse setor gera 5.524 empregos diretos e indiretos. No entanto, em seu site, a Bracelpa afirma que, incluindo plantações e indústria, o setor “florestal” para celulose gera 100.000 empregos diretos no País. (www.bracelpa.com.br). Vale lembrar que a maior par-te da produção de madeira nas plantações destina-se à produção de celulose. Onde se encontram, então, os milhões de trabalhadores?

O site da Sociedade Brasileira de Silvicultura (www.sbs.org.br), informa apenas a geração de 31.004 empregos na “atividade florestal” no Brasil. A fonte citada nesse site é novamente a Bracelpa, que – como mencionado ante-riormente – afirma dispor apenas de dados do setor de celulose e papel.

Conclui-se, portanto, que os dados divulgados não estão baseados em fontes seguras. Quando as fontes das informações são questionadas, como foi o caso da Bracelpa, não se obtém respostas com exatidão. Ao que parece, o principal interesse das empresas é mes-mo o “jobwashing”.

Page 112: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

111

2.2 – Dados da Aracruz CeluloseA tabela abaixo, apresenta dados sobre empregos diretos

e indiretos gerados pela Aracruz Celulose desde 1989.

Tabela 1: Trabalhadores diretos e indiretos na Aracruz Celulose

(Fontes: informações corporativas, Aracruz Celulose: 1989-2003; Rima, 1989; BVQI, 2004, Aracruz Celulose, Fatos e Números, 2007)

Alguns aspectos chamam a atenção quando observa-mos a tabela:

- desde 1991, o número de trabalhadores diretos tem diminuído constantemente; o crescimento registrado en-tre 2001 e 2003 deve-se à compra, pela Aracruz, da em-presa Riocell;

- entre os dados de 1989 a 1996, não foram encontradas informações sobre o número de trabalhadores indiretos. Tal fato merece uma investigação mais profunda;

- a partir de 1997, a empresa começa a apresentar os números de trabalhadores indiretos, provavelmente por causa do grande processo de terceirização implantado no País na década de 1990, que reduziu significativamente os postos de trabalhos diretos;

- houve um grande aumento do número de trabalhado-res indiretos entre 2001 e 2003, o que não pode ser explica-do apenas com a compra da empresa Riocell. Também fo-ram solicitadas à Aracruz Celulose, por correio eletrônico, informações sobre o que teria gerado esse aumento, mas nenhuma resposta foi obtida;

- os números de 2007 mostram um aumento signifi-cativo de trabalhadores diretos e indiretos; de acordo com a Aracruz, o aumento do número de trabalhadores diretos deve-se ao fato de que estão incluídos os fun-cionários do Portocel e de subsidiários internacionais; no entanto, o aumento dos trabalhadores indiretos fica sem explicação;

- para se ter uma avaliação mais precisa sobre a criação de empregos de cada setor é sempre importante relacio-nar o número de trabalhadores a outros parâmetros.

Provavelmente por estar preocupada com seu baixo desempenho em termos de geração de emprego – fato que será demonstrado com mais ênfase mais adiante -, a empresa contratou a Fundação Getúlio Vargas (FGV) para fazer um estudo sobre geração de emprego. Este estudo chega a afirmar que “considerando os empregos diretos e os indiretos, as atividades da Aracruz susten-taram 95,8 mil empregos em 2003. Estes postos foram gerados, em sua maioria, em quatro setores de ativida-de econômica: florestal, comércio, transportes e serviços prestados à empresa.4”

A FGV realizou um estudo semelhante na empresa de porte menor, a Veracel Celulose, resultando na afir-mação de que a mesma sustentaria “29,6 mil empregos”. Em um seminário na Suécia, em abril de 2007, ao ser questionado sobre quais postos de emprego eram exa-tamente esses “29,6 mil empregos”, o presidente da Sto-ra-Enso América Latina, Otávio Pontes, afirmou que se tratavam de empregos que atendiam de alguma forma à empresa Veracel Celulose. Isso significa dizer que, por exemplo, os funcionários dos bancos, dos restaurantes, das oficinas, da locação de veículos, enfim, de todo tipo de serviço prestado para a empresa na região, acabam sendo contabilizados como empregados sustentados pela Veracel, sendo que muitas dessas empresas e insti-tuições prestam também serviços para inúmeras outras empresas e cidadãos. Ou seja, a partir dessa lógica é pos-sível afirmar que a maioria dos integrantes da sociedade sustenta inúmeros empregos, mesmo que não tenha ne-nhum trabalhador contratado.

AnoTrabalhadores

diretosTrabalhadores

indiretosTotal

1989 6.058 (1) Sem dados 6.058

1991 7.095 Sem dados 7.095

1992 6.677 Sem dados 6.677

1993 5.125 Sem dados 5.125

1994 3.275 Sem dados 3.275

1995 2.907 Sem dados 2.907

1996 2.652 Sem dados 2.652

1997 2.393 3.706 7.099

2001 1.794 (2) 3.037 4.831

2003 2.281 7.546 9.827

2004 2.031 6.776 8.807 (3)

2007 2.495 9.515 12.010

(1) 4.729 trabalhadores diretos na área florestal, com previsão de cria-ção de mais 2.201 empregos (projeto de ampliação); 1.329 empregos di-retos na área industrial, com previsão de criação de mais 341 empregos (projeto de ampliação) (Rima, 1989);

(2) 106 trabalhadores diretos no Portocel (porto de exportação da celu-lose); 146 trabalhadores diretos na Aracruz Produtos de Madeira e 1.542 trabalhadores diretos na Aracruz Celulose e subsidiárias internacionais;

(3) Conforme os dados da BVQI [Bureau Veritas Quality International é uma empresa privada que realiza certificações, como ISO 9001 e ISO 14001], a Aracruz possui 6.056 empregados (645 próprios e 5.411 terceirizados) na área das plantações e 1.751 empregados na área industrial.

Page 113: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

112

2.3 - geração de emprego x outros parâmetros

investimentoUma característica das monoculturas de eucalipto para

produção de celulose é a necessidade de grandes investi-mentos. Isso se deve à complexidade tecnológica que re-quer automatização em alta escala e utilização de máqui-nário e tecnologia importadas da Europa. Nesse sentido, vale comparar os empregos gerados com os valores in-vestidos (tabela 2). Acompanhemos esses três exemplos:

a - José Koopmans, ativista de direitos humanos, num estudo sobre os impactos da monocultura no extremo sul da Bahia, indica que o custo da construção da fábri-ca da Bahia-Sul Celulose, inaugurada em 1992, foi de US$ 970 milhões, com uma expectativa de geração de 1.565 empregos. Assim, o custo de cada emprego gerado chegou a US$ 619.808.

b - A fábrica C da Aracruz Celulose, inaugurada em 2002, custou US$ 575 milhões, e geraria 173 empregos diretos e terceirizados, na planta industrial. Este cálculo leva a um custo de US$ 3.323.699 por emprego gerado.

c - A nova fábrica da Veracel, inaugurada em 2005, conta com um investimento de US$ 1,5 bilhão e prome-te criar cerca de 400 empregos, o que significa um custo de US$ 3.750.000 por emprego gerado.

Os três exemplos demonstram que o emprego numa fá-brica de celulose é extremamente caro e que o custo deste emprego ainda tem aumentado nesses últimos anos. Para termos uma melhor noção destes valores, recorremos a outros exemplos (tabela 2).

Segundo Sérgio Leite (Ibase, 2004), professor em De-senvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universi-dade Rural do Rio de Janeiro, o assentamento de um milhão de famílias no campo poderia criar 3 milhões de empregos com um custo de cerca de R$ 8.000 por

emprego criado. Os custos da criação de um emprego na indústria, no setor de serviços e no comércio, através do programa Pro-Trabalho. do governo federal, são res-pectivamente R$ 23.000, R$ 35.000 e R$ 88.300.

extensão territorialA Aracruz Celulose, proprietária - em 2005 - de um

total de 375.000 hectares de terras no Brasil, é a em-presa que ocupa a maior quantidade de terras no Es-pírito Santo: são 154.500 hectares. Considerando que o plantio de eucalipto e a produção de celulose são atividades interligadas, pretende-se avaliar o núme-ro de empregos que a Aracruz gera na indústria e no campo, comparado com a quantidade de terras que concentra (tabela 3).

Com 375.000 hectares de terras e 2.031 empregados diretos, a Aracruz gera um emprego direto por cada 185 hectares de terras. Mesmo que se considere apenas as áreas para o plantio de eucalipto – 247.000 hectares – a geração de emprego não passa de um emprego direto por cada 122 hectares de eucalipto.

No entanto, se considerarmos o cálculo mais fa-vorável para a Aracruz, que inclui também o núme-ro oficial de 6.776 trabalhadores terceirizados (em 2005), dos quais uma parcela atua na área das plan-tações, chegamos a um número de um emprego dire-to e indireto por cada 28 hectares de eucalipto.

No caso da Veracel, segundo um documento da em-presa, com data de 16 de dezembro de 2003, ela possuía 73.000 hectares e 400 empregados diretos, o que gera um emprego direto por cada 183 hectares. Com a fábri-

SetorCusto por

emprego gerado (em US$)

Assentamentos rurais 2.900

Indústria (programa Pró-Trabalho) 8.400Serviços (programa Pró-Trabalho) 12.700Comércio (programa Pró-Trabalho) 32.100

Indústria de celulose (Bahia Sul – 1992) 619.808

Indústria de celulose (Aracruz – 2002) 3.323.699

Indústria de celulose (Veracel – 2005) 3.750.000

Tabela 2: Investimento por emprego criado na produção de celulose, comparado com outros setores

Fontes: Cepedes, 1992; Cepemar, 1999; Veracel Celulose, 2003; Ibase, 2004

A Aracruz é a empresa que mais detém terras no Espírito Santo

Page 114: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

113

ca em funcionamento, atuariam cerca de 2.000 empre-gados diretos e indiretos no campo e na fábrica. Nesse caso, estima-se um emprego direto e indireto por cada 37 hectares de eucalipto.

Observando o caso da monocultura agrícola mais sig-nificante no Espírito Santo, o café, é fácil concluir que a cultura de eucalipto gera poucos empregos. Conforme dados do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), um hectare de café bem cuidado é capaz de criar um em-prego direto. Na época da colheita, entre os meses abril a julho, cada hectare garante trabalho para mais uma a duas pessoas.

Tabela 3: # hectares necessários para gerar um emprego diretoem monoculturas de eucalipto e café

Fontes: Aracruz Celulose, 2004; Veracruz Celulose, 2003; MPA, 2004

3 - Mecanização

3.1 - PlantaçõesNos anos de 1970, a produção de mudas, o plantio, a ca-

pina e o corte do eucalipto eram feitos de forma manual. Nessa época, as plantações de eucalipto geravam muito mais empregos, principalmente para as comunidades lo-cais. A partir dos anos de 1980, iniciou-se a mecanização no campo, primeiramente com a chegada das máquinas de corte. Já em 1984, 30% da colheita era feita de forma meca-nizada. Hoje, praticamente nenhum corte mais é feito por motoserristas nos plantios da Aracruz. O trabalho de mo-toserrista só permanece nas áreas de fomento florestal.

A demissão dos motoserristas aumentou enormemente o desemprego em cidades como São Mateus, Conceição da Barra e Aracruz, onde boa parte desses trabalhadores reside, sendo que a grande maioria continua desempre-gada. Dados contidos em um folder publicado pela em-presa naquela época revelam que o grupo de trabalhado-res envolvidos na colheita caiu de 1.100 para 350, ou seja, 750 trabalhadores perderam o emprego devido à mecani-

zação. O folder mostra que cada máquina para a colhei-ta corta 140 árvores por hora, enquanto um trabalhador consegue cortar ‘apenas’ dez árvores por hora.

Contrariando estes dados da Aracruz, ex-motoserris-tas falam em “milhares de motoserristas” demitidos. Um cálculo simples, utilizando os dados da empresa de que uma máquina de colheita consegue substituir quatorze trabalhadores, e um outro fornecido por um operador de máquina de corte, de que a empresa dispõe de cerca de setenta máquinas, confirmam as declarações de demis-sões em massa de trabalhadores. Se considerarmos ainda a prática de três turnos diários, concluímos que a Aracruz demitiu 2.940 trabalhadores. Este número coincide com a afirmação de um ex-dirigente do Sintral, o sindicato que representa os motoserristas: “... me lembro que, uma épo-ca, aderiram a uma greve da Aracruz Florestal na faixa de 3.000 funcionários...”.

O emprego de operador de máquina parece ser um bom emprego, o trabalhador senta em cadeiras con-fortáveis e cabinas com ar condicionado. No entanto, este grupo de trabalhadores também tem enfrentado problemas, conforme o relato de um operador entre-vistado, que atua na empresa desde 1992: “numa certa época, houve uma máquina que exigiu um controle total e continuado do trabalhador, causando muito estresse nos operadores”, e “algumas pessoas têm dificuldade com o ‘isolamento’ do trabalho, passando 8 horas por dia sozi-nho numa cabina”.

No I Encontro Sul-Americano dos Atingidos pelos Projetos Financiados pelo BNDES, realizado em novem-bro de 2009, no Rio de Janeiro, operadores de máquina lesionados da Fibria (ex-Aracruz) denunciaram os pro-blemas de saúde que enfrentam e o descaso da empresa com a situação deles.

3.2 - indústriaNa indústria de celulose da Aracruz, o processo produ-

tivo é muito mecanizado, desde a inauguração da primei-ra fábrica em 1978. E a exigência de produtividade por trabalhador direto tem crescido de forma constante com o processo de modernização e terceirização, que se intensi-ficou a partir da década de 1990. Em 1989, 1.329 trabalha-dores da indústria produziam 502.000 toneladas de celu-lose, ou seja, cada trabalhador produzia 378 toneladas de celulose. Doze anos depois, 1.543 trabalhadores (a grande maioria ativa na indústria) produziam 1.240 000 tonela-das de celulose, o que quer dizer que cada trabalhador produzia 804 toneladas de celulose em 2001. A inaugura-ção da nova fábrica C, em 2002, elevou a produtividade: cada trabalhador passou a produzir 1.052 toneladas de celulose em 2003.

Um gráfico de 1998 da própria Aracruz, demonstra o aumento da produtividade e redução dos empregados, ao longo dos anos.

Monocultura# terra para gerar 1 emprego direto

(ha)

# terra para gerar 1 emprego direto e

indireto (ha)

Eucalipto (Aracruz Celulose)

122 28

Eucalipto (Veracel Celulose)

183 37

Café 1 <1

Page 115: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

114

A terceira fábrica (C) gerou apenas 173 empregos dire-tos e indiretos. Mas nem isso impediu uma nova onda de demissões, em dezembro de 2002, após ter sido firmado o acordo coletivo entre a empresa e o Sinticel, o sindica-to dos trabalhadores na indústria de celulose. Numa nota publicada no jornal A Gazeta, o Sinticel declara que “vem repudiar o processo de demissão que a Aracruz Celulose desencadeou após o fechamento do acordo coletivo, no início de dezembro. Vários trabalhadores foram demiti-dos nas áreas de secagem, digestor e caldeira”.

O Sinticel mostra que a empresa passou a produzir mais com menos trabalhadores: “Apesar do aumento da produ-ção e das exportações e da garantia de lucro com a alta do dólar, a política da empresa tem sido reduzir os postos de trabalho. Setores como a manutenção, limpeza, vigilân-cia, transporte e algumas áreas administrativas são alvo de um violento processo de terceirização, sem a garantia de absorção da mão-de-obra dispensada pela fábrica. Os que conseguem ser aproveitados pelas empreiteiras ficam su-jeitos a péssimas condições de trabalho e salário reduzido” (A Gazeta, 2002).

Os trabalhadores que “sobrevivem” a esse processo de modernização entram em estado de “pânico”, temendo perder também seus empregos, conforme declara um trabalhador que desde 1980 atua na fábrica da Aracruz. Segundo ele, a frase “se não estiver satisfeito, tem um monte querendo seu lugar” era e é constantemente usada por supervisores e coordenadores das áreas. A redução dos postos de trabalho é justificada com a seguinte afir-mação: “ele sozinho dava conta do serviço”. Vale destacar também que, nos últimos doze anos, os trabalhadores não

obtiveram ganho salarial significativo decorrente do au-mento da produtividade.

Além disso, os entrevistados revelam que foi inten-sificado o controle interno para que os trabalhadores dediquem-se ao máximo à sua tarefa específica no pro-cesso de produção. Hoje, o acesso do trabalhador de um a outro departamento da área industrial, por exemplo, que anteriormente era permitido, só acontece com au-torização prévia, e fica registrado no seu crachá. Esse sistema eletrônico de controle permite que a empresa vigie, por completo, cada trabalhador e seus desloca-mentos dentro da área industrial. Isso significa também que fica mais difícil para os trabalhadores socializarem os problemas enfrentados.

4 - Terceirização = degradação das condições de trabalho

4.1 - o processo de terceirizaçãoA terceirização é o mecanismo pelo qual uma em-

presa transfere para outra as atividades não essenciais aos seus objetivos empresariais. Significa que a empre-sa não pode transferir atividades que fazem parte do seu contrato social, ou seja, ela pode terceirizar apenas ‘atividades-meio’ e não as ‘atividades-fim’ (MPT-Minas Gerais, 2002).

O principal motivo da terceirização é possibilitar que a empresa se especialize na realização da sua própria ativi-dade. A terceirização se efetua quando se realiza o contra-to entre duas empresas, em que uma prestará um serviço (de atividade-meio) para a outra. Em nenhum momento este contrato pode servir como mecanismo para reduzir salários e/ou direitos dos trabalhadores. Se isso aconte-cer, “está-se diante da terceirização fraudulenta, em que o instituto negocial busca substituir, pela maquiagem da forma, o conteúdo trabalhista da relação existente entre o empregado e o empregador, com a interposta prestando, de fato, o serviço de biombo da ilegalidade” (MPT-Minas Gerais, 2002).

Mesmo assim, muitos acham que a terceirização é um fenômeno tipicamente econômico, do qual a Justiça do Trabalho deve se manter distante. Conforme o Ministé-rio Público do Trabalho em Minas Gerais, “... o próprio Judiciário entende de outra forma, o que se observa das várias decisões preferidas em situações específicas de terceirização ilegal.”

Em Minas Gerais, mais de quarenta empresas que plan-tam eucalipto estão sendo processadas desde 2002 pelo Ministério Público do Trabalho por estarem praticando a terceirização ilegal, já que o plantio de eucalipto, tercei-rizado por essas empresas, é claramente uma ‘atividade-fim’ e não uma ‘atividade-meio’. O fato de não existir uma atuação semelhante no Espírito Santo mostra o quão con-troversa é essa questão no meio judicial.

Page 116: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

115

4.2 - Terceirização na Aracruz CeluloseConforme o depoimento de um trabalhador da Aracruz,

que desde 1980 atua no setor de manutenção mecânica, a empresa possuía naquela época cerca de 9.000 traba-lhadores diretos, entre as plantações e a fábrica. Ele afir-ma que até o início da década de 1990, o tempo era de crescimento profissional e de ganhos econômicos para os trabalhadores. Segundo ele, os trabalhadores tinham or-gulho de “vestir a camisa” da Aracruz.

A partir de 1991, quando a segunda fábrica (B) entrou em operação, começaram as mudanças radicais que visavam a adequação da empresa aos novos modelos de produção. Os resultados foram demissão e terceirização em massa, além da fusão entre a Aracruz Celulose e a Aracruz Florestal. Cerca de 6.000 postos de trabalho foram eliminados, o que causou um sério impacto social, sentido profundamente por muitos ex-trabalhadores e suas famílias.

As áreas terceirizadas foram as de manutenção civil (pe-dreiros, carpinteiros, pintores, armadores, jatistas e seus ajudantes), administração, vigilância patrimonial, manu-tenção elétrica e instrumental e empilhamento. Também as plantações foram terceirizadas (brigadas de plantio, ca-pina química, incêndio e trabalhadores no viveiro).

Os funcionários que conseguiram ser recontratados per-deram o plano de saúde, o transporte piorou e a carga ho-rária aumentou. Após alguns anos, o salário era, em média, apenas um terço daquilo que recebiam inicialmente. Algu-mas empreiteiras usavam como referência o piso salarial dos trabalhadores da manutenção mecânica, que desde o início eram terceirizados.

Um ex-dirigente do Sintral afirma: “Eu me lembro muito bem do processo de terceirização da Aracruz Florestal; na época, foram jogados para a rua esta quantidade de traba-lhadores porque não existia máquina de cortar eucalipto, era tudo através de motoserristas e, aí, com esta terceiri-zação colocou empreiteiras e as máquinas de corte, e nas terceiras eles não pagam um salário atuante.”

Parte dos demitidos com problemas de saúde recor-reram ao sindicato para que uma intervenção fosse feita junto à empresa. De acordo com as declarações de um ex-sindicalista, na maioria dos casos, a empresa não se sensibilizava e se limitava a estender a assistên-cia médica por um breve período, que variava de dois a quatro meses.

5 - sindicatos: organização e desmantelamentoSão muitos os sindicatos que representam as diversas

categorias de trabalhadores que atuam na Aracruz Celulo-se ou nas suas empreiteiras. Ouvimos alguns ex-dirigentes de dois dos principais sindicatos: o Sinticel e o Sintral.

5.1 - sinticelO principal sindicato, que sempre atuou na indústria de

celulose da Aracruz, é o Sinticel. Em 1978, foi lançado o embrião da Associação que passou a representar os traba-lhadores na indústria. O diretor industrial da empresa na época estimulava a organização dos trabalhadores, pois entendia que isso era importante, além de ser parte da cultura do seu país de origem, a Grã-Bretanha, onde exis-tiam sindicatos bem estruturados. Já nessa época, vários

Uma fábrica de celulose altera profundamente a micro-região onde ela é instalada. Apesar da afirma-ção de que gera “milhares” de empregos, o processo de construção causa uma série de problemas que afetam principalmente as populações tradicionais. As fábricas da Aracruz Celulose, construídas em ter-ritório da aldeia indígena de Macacos, atraíram uma grande quantidade de trabalhadores de outras regi-ões e estados. Isso acarretou muitos transtornos para o bairro vizinho chamado Barra do Riacho, que era basicamente um bairro de pescadores, e se situa a um quilômetro da fábrica. Este bairro passou de 900 para 10.000 habitantes. Até hoje, Barra do Riacho sofre as consequências: altos índices de desemprego, prosti-tuição infantil e tráfico de drogas.

o processo de construção de uma fábrica de celulose: o caso Veracel

Em 2003, teve início a construção da nova fábri-ca da Veracel Celulose em Eunápolis, na Bahia. Em 2004, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) se-diada no extremo sul da Bahia apresentou à empre-sa uma lista de reivindicações dos trabalhadores do canteiro de obras. A lista continha doze exigências, dentre elas: reajuste salarial de 20%, fim das contra-tações temporárias - que livra as empresas de obri-gações trabalhistas - e alimentação gratuita e de qualidade. Não tendo as reivindicações atendidas, os trabalhadores entraram em greve e, após vários dias cercados e vigiados por centenas de policiais chamados pela Veracel, entraram em acordo com as empresas envolvidas na construção.

Page 117: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

116

gerentes de áreas específicas apoiaram os trabalhadores, enquanto outros, incluindo Carlos Augusto de Aguiar, o atual diretor-presidente da empresa, não os apoiaram.

O Sinticel foi criado em 1979 como Sindicato dos Tra-balhadores nas Indústrias de Papel, Celulose, Pasta de Madeira para Papel, Papelão e Cortiça de Aracruz. Mas só em 1983 o Ministério do Trabalho assinou a carta sin-dical. Nessa época, os trabalhadores confiavam no sindi-cato e questões relacionadas à insalubridade, periculo-sidade e jornada de trabalho estavam sempre na pauta do dia. Algumas conquistas do primeiro período de luta deste sindicato foram: (i) transporte para os trabalhado-res vindos da Grande-Vitória; (ii) redução da jornada de trabalho para quarenta horas; (iii) ampliação da assis-tência médica e odontológica; (iv) pagamento de horas extras acima do que a lei determinava.

Em 1985 houve a primeira tentativa frustrada de greve e, ao mesmo tempo, o início da articulação da empresa contra o sindicato, conforme depoimento de um ex-sindi-calista. No mesmo ano, os primeiros processos de insalu-bridade e periculosidade foram protocolados na justiça. A empresa se negava a discutir a questão por entender que o trabalho não oferecia riscos à saúde do trabalhador. Um dos primeiros processos foi concluído somente em janei-ro de 2001, quando 656 trabalhadores foram beneficiados. Em 1986 foi deflagrada a primeira greve, a maior mani-festação até hoje feita pelos trabalhadores, que ficaram por nove dias acampados em frente à fábrica.

As principais conquistas dos trabalhadores acontece-ram até o início dos anos de 1990. A partir de então só foi possível repor as perdas salariais e garantir eventuais abonos salariais. Após 1994, por força de lei, a empresa começou a negociar a participação nos lucros e resulta-dos. Mas já em 1998 foram retiradas várias conquistas

históricas da classe trabalhadora, o que ocorreu em todas as categorias de trabalhadores. Entre essas perdas está a redução de 50% para 20% da remuneração extra pelas primeiras duas horas dadas além da jornada de trabalho e restrições na assistência médica e odontológica.

O trabalho de desmobilização do sindicato coincide com o processo de demissão em massa na década de 1990, o que fragilizou a base de sustentação do sindicato. Em al-guns casos de trabalhadores com problemas grave de saú-de, o sindicato, através de ações judiciais, conseguiu rein-tegrar o trabalhador aos quadros da empresa com todos os seus direitos restabelecidos. Mas foram poucos os casos, se comparados ao montante de demissões. Nesse período, aconteceram algumas paralisações nas portas da empresa. Apesar da desmobilização, o sindicato conseguiu ampliar sua base para outras categorias afins, e passou a ser cha-mado de Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Celulose, Pasta de Madeira para Papel, Papelão, Cortiça, Químicas, Eletroquímicas, Farmacêuticas e Similares no Estado do Espírito Santo.

A grande mudança veio em 2003, quando uma nova di-retoria assumiu o sindicato, após um processo eleitoral que foi contestado na justiça. Aquela diretoria, segundo declarações de um ex-sindicalista, se caracterizou pela parceria com a empresa. Ele afirma que o sindicato não adota mais a estratégia de mover processos judiciais con-tra a empresa, e a Aracruz se livrou de um dos processos coletivos de insalubridade que estava em curso há muitos anos. Em vez da justiça, buscava-se a via de negociação, uma opção muito mais frágil de garantir os direitos dos trabalhadores.5

Vale lembrar ainda que foram demitidos, posterior-mente, cinco ex-diretores do Sinticel: Jorge de Olivei-ra, Manoel Carlos Gomes, Orlando Monteiro, Silvério Scarpatti e Luiz Alberto Soares Loureiro. A perseguição de diretores sindicais sempre foi uma prática da Ara-cruz. Mas se até as eleições de 2003, o próprio sindicato buscava garantir a reintegração dos seus (ex-)dirigen-tes, entre 2003 e 2009 ele não ofereceu mais apoio para seus associados.

5.2 - sintralO sindicato para os trabalhadores ativos na área de

plantações no norte do Espírito Santo é o Sintral, fundado em 1988, com o apoio de várias entidades, principalmente da Fase-ES e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), além da Igreja Católica. A partir daí aconteceram “... sucessi-vas greves, em 1991, nas Florestas Rio Doce, na Aracruz em 92...”, conforme declara um ex-diretor do sindicato. A principal reivindicação era salarial e os trabalhadores é que decidiam entrar ou não em greve. Os diretores do sindicato não tinham muita experiência, mas estavam “... com muita vontade de lutar. Foi muito bom”. Nos primeiros anos do Sintral, houve uma relação forte entre o traba-

Proj

eto

Cone

xão

Sul

O movimento de carretas transportando eucalipto é grande nas estradas

Page 118: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

117

lhador e o sindicato. Um ex-diretor do Sintral afirma que “a confiança era construída no dia a dia”.

A situação mudou completamente com a terceirização que fragilizou o sindicato e os trabalhadores. Quando conseguiam algum benefício com uma greve, “a empresa reagia de forma a abafar aquilo, ela tirava o benefício atra-vés da terceirização”. Ao mesmo tempo, a empresa come-çou a propor parcerias, “... e alguns diretores começaram a achar interessante...”, diz um ex-diretor.

O resultado desse processo foi a redução do número de associados do sindicato. Mas, ao mesmo tempo, foi cria-da a ‘taxa administrativa’ em que o empregado já entra numa empresa terceirizada como associado do sindicato, e é descontado um percentual do salário. Um trabalhador terceirizado da Plantar com dois anos de contrato afirmou: “nunca vi um diretor do Sintral”, apesar do desconto mensal da ‘taxa administrativa’. Afirmou também não saber nem “onde fica a sede do sindicato; há um médico para os traba-lhadores, mas não sei dizer se este foi contratado pelo sindi-cato ou pela empresa.”

Há um distanciamento grande entre o Sintral e os traba-lhadores a ele associados. Um trabalhador da Plantar diz: “a gente contribui, mas eu não conheço o sindicato, e eles não estão nem aí para nossa situação”. Um ex-diretor do sindi-cato denuncia que “... hoje, a Aracruz é quem manda e banca o sindicato, e a categoria está abandonada”. Ele, inclusive, levanta suspeitas sobre um processo coletivo, no qual o sin-dicato descontou 10% do valor que cada trabalhador ia re-ceber e quando os trabalhadores questionaram o desconto, a direção do sindicato alegou que era determinação da Jus-tiça do Trabalho e que não poderia fazer nada. Segundo um ex-diretor, hoje não existem mais novos processos coleti-vos, apenas os individuais, porque nesses casos o sindicato é obrigado a agir. Um ex-diretor resume que “o sindicato não vai mais ao campo falar alguma coisa, acabou”. E assim acabou-se também a relação de confiança que existia antes entre os trabalhadores e os dirigentes sindicais.

6. Ex-trabalhadores: acidentes e doenças de trabalho nas plantações

6.1 - os mutilados demitidos Nos anos de 1980, a Aracruz Celulose ainda mantinha

cerca de 9 mil empregados, conforme esclarece um ex-sindicalista entrevistado. A maior parte desses traba-lhadores atuava nas plantações e a maioria foi demitida pelos processos de terceirização e modernização. No gru-po dos demitidos, que não foram contratados pelas em-preiteiras, estavam trabalhadores que sofreram acidentes de trabalho e/ou que contraíram doenças ocupacionais. Na realidade, o processo de demissão foi a oportunidade para a Aracruz se livrar daqueles trabalhadores que já não conseguiam mais alcançar uma produtividade dese-jada pela empresa.

A partir da análise dos casos de 33 ex-trabalhadores, cujas histórias foram registradas num dossiê elaborado pelo Mo-vimento dos Mutilados da Aracruz Celulose6, consegue-se ter uma noção dos tipos de acidentes e doenças ocupacio-nais comuns naquela época, entre os trabalhadores:

- acidentes/doenças em função do transporte: o trans-porte na década de 1980 era feito por caminhões, que tinham tábuas de madeira como assentos; as estradas tinham muitos buracos e os constantes solavancos causa-ram problemas de coluna nos trabalhadores;

- acidentes de trabalho em função do plantio de euca-lipto e capina: os trabalhos de plantio, adubação e capina eram manuais e as pessoas tinham que carregar caixas com mudas e produtos químicos pesando mais de 40 qui-los, o que causava problemas na coluna cervical;

- acidentes/doenças em função da aplicação de agro-tóxicos: a monocultura do eucalipto exige a aplicação frequente de agrotóxicos, sobretudo herbicidas e formi-cidas. A bomba utilizada para aplicação desses produtos pesa, em média, 20 quilos e é carregada pelo trabalhador nas costas, causando também problemas na coluna. Além disso, a exposição prolongada ao agrotóxico causa dores de cabeça, vômitos, dores na boca e no estômago, unhas fofas e risco de cegueira, dentre outros males. Naqueles anos, era usada apenas uma máscara para proteger o tra-balhador. Não havia ainda o Equipamento de Proteção Individual (EPI), obrigatório hoje, e não tinha nenhum tipo de treinamento para lidar com o veneno;

- acidentes com o corte de eucalipto: aconteciam que-das de árvores em cima dos trabalhadores, além de aci-dentes por causa do manuseio da motoserra como perdas de dedos, de pé, além de cortes no corpo e rosto;

- doenças em função da manutenção de equipamen-tos e máquinas: a manutenção e reabastecimento da motoserra, realizada por cada motoserrista sem nenhu-ma proteção, causava irritação nos olhos e até cegueira, e também uma doença chamada leucopenia – a diminui-ção da taxa de glóbulos brancos no sangue. Essa doença ocorre também nas pessoas que aplicam agrotóxicos sem proteção ou que manuseiam lubrificantes na manutenção de máquinas florestais;

- acidentes/doenças por causa da limpeza do terreno: o recolhimento dos troncos de eucalipto tanto podia pro-vocar acidentes como problemas na coluna;

Ao analisarmos os 33 casos, chama a atenção que:- o registro dos acidentes de trabalho não fosse prática comum;

Page 119: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

118

- os laudos de médicos especialistas comprovando a exis-tência de doenças ocupacionais não fossem aceitos pelo serviço médico da Aracruz Celulose;- os trabalhadores mutilados por acidentes de trabalho fossem todos demitidos e, hoje, a grande maioria tenta so-breviver desempregada e sem aposentadoria.

Esses trabalhadores enfrentam muitas dificuldades para buscar seus direitos através da justiça. Primeiro, o Sintral, não lhes deu apoio nem orientação quando os mesmos começaram a reivindicar seus direitos, em mea-dos dos anos de 1990. Em segundo lugar, a partir de uma análise dos processos judiciais civis e trabalhistas contra a Aracruz Celulose nos fóruns dos municípios de Concei-ção da Barra e São Mateus, conclui-se que:

“A Aracruz Celulose (...) utiliza-se de todos os recursos judiciais disponíveis para procrastinar os processos judiciais movidos contra ela, o que está a demonstrar a sua total falta de comprometimento com os direitos (sociais e civis) de seus funcionários”.

(Relatório sobre os processo judiciais civis e trabalhistas contra o grupo Aracruz Celulose no Estado do Espírito Santo, Fase: 2003)

Conforme declara um ex-sindicalista, “a Aracruz nunca se interessou por seus ex-trabalhadores”. Mas nestes ca-sos se trataria, antes de tudo, de um dever que tem uma empresa do porte da Aracruz Celulose de indenizar todos aqueles que foram mutilados enquanto davam sua força de trabalho para a implantação da empresa, e que hoje vivem numa situação de total miséria e abandono.

6.2 – Situação atual dos trabalhadoresnas plantações Atualmente, as doenças e acidentes de trabalho ocorrem

com menor intensidade, já que várias atividades manuais, principalmente o trabalho de motoserrista, são cada vez mais escassas. O principal problema de saúde dos traba-lhadores no campo continua sendo a aplicação de agrotó-xicos, apesar das afirmações das empresas terceirizadas de que, utilizando-se os equipamentos de proteção indi-vidual, não há perigos para a saúde do trabalhador.

Na prática, os problemas continuam, conforme alerta um trabalhador da Plantar que, mesmo doente, continua prestando serviços para a Bahia-Sul Celulose:

“Eles forneciam um macacão de pano, luva de borracha, botina e máscara, mas ninguém aguentava usar as másca-ras, pois com o calor o trabalhador tinha sensação de sufoca-mento e era, então, orientado a portar a máscara pendurada no pescoço e colocar no rosto assim que chegasse um fiscal [da Bahia-Sul] mesmo que depois, lá dentro do eucalipto, o trabalhador tirasse”.

Impressiona o fato de que o encarregado não exigis-se o uso constante do equipamento: “Ele só reclamava quando o trabalhador não estava com a máscara pendu-rada no pescoço, para que na hora que a chefia chegasse a gente deveria usar rapidinho”. Outro problema que este trabalhador comenta é que as bombas com agrotóxicos vazavam nas costas. Mas o encarregado dizia que os tra-balhadores tinham que usar, mesmo que não oferecesse proteção. O trabalhador reclama também que as botas de couro, que eram comuns até há pouco tempo, e as luvas de borracha não protegiam suficientemente.

Um ex-trabalhador de 59 anos trabalhou na empresa terceirizada Plantar durante quatorze meses entre 2000 e 2001, aplicando agrotóxicos. Apesar de utilizar um equi-pamento individual de proteção com máscara, roupa, luvas e botas, ele sofreu o primeiro desmaio no campo após quatro meses. “Aí, meu amigo me puxou pra sombra, pegou um chapéu, ficou me abanando até que uns dez mi-nutos depois eu recuperei outra vez. Aí trabalhei a tarde toda. Passaram uns dois, três meses e outra vez eu dei outro desmaio...” (entrevista em 27 de outubro de 2002, Concei-ção da Barra). A partir daí, ele começou a ficar doente e, ao reclamar com o encarregado, foi demitido. “Porque eu mesmo reclamei a um que comandava o campo, que eu estava doente. Eu reclamei a ele hoje, no outro dia, o aviso veio e está acabado. Só que eu não assinei. Mas só que o Jânio quem assinou. Bateu o carimbo e ele mesmo assinou”. Esse trabalhador foi demitido mesmo contra sua vontade. Até hoje, ele luta por seus direitos na justiça.

Este ex-trabalhador conta também o caso de um colega que morreu no campo:“Junio trabalhava no mesmo setor que eu trabalhava e reclamou com os amigos que estava passando mal. Na hora de almoço ele não quis almoçar, não almoçou. Deu hora de pegar o trabalho. Pegaram no traba-

As famílias saíram de uma condição de fartura para uma situação de escassez: destruição da relação família/terra/trabalho

Tam

ra G

ilber

tson

Page 120: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

119

lho e foram trabalhar. Aí eles usam botar o nome da pessoa na carreira que pega. Quando deu 4h40, que é o horário que pára lá no campo, pararam, guardaram as bombas. Quando saíram na estrada, o amigo que viajava com ele deu falta e disse: ‘Cadê Junio? Junio não está aqui’. Isso já ia dar umas 5 horas. Voltaram, quando entraram na carreira, chegaram lá e ele estava caído, com a bomba nas costas”.

Ao que parece, alguns trabalhadores têm mais resistên-cia contra a aplicação de agrotóxicos que outros. O ex-tra-balhador afirma o seguinte: “Porque alguns suporta o vene-no, mas nem todo mundo.” E ao mesmo tempo, faz um alerta: “Agora, ninguém sabe mais tarde, né? Nem todo mundo su-porta. Porque tem pessoas lá que no primeiro dia de serviço deu dois desmaios. Quer dizer que se deu dois desmaios no primeiro dia pode esquecer, não adianta insistir, né?”

A ocorrência de mortes de trabalhadores da Plantar nas plantações da Aracruz Celulose levou, em 2002, o Ministério Público Federal do Trabalho (MPT) no Es-pírito Santo a instaurar um inquérito sob sigilo. O in-quérito levou a um Termo de Ajustamento de Conduta, assinado pelo MPT e pela Plantar, obrigando a empresa a seguir vários procedimentos para assegurar a saúde e a segurança dos trabalhadores.

Um trabalhador da Plantar, que atualmente trabalha na empresa e aparentemente não sofre de problemas de saú-de, afirma o seguinte: “Prefiro trabalhar na enxada do que bater agrotóxico”. Ele diz que o trabalho com agrotóxicos nas chamadas ‘grotas’ é mais perigoso. Também gostaria de ter um outro serviço, mas ao mesmo tempo sente medo de perder o emprego atual, porque sabe o quão difícil é encontrar emprego. Trabalha numa turma com quarenta trabalhadores, mas doze não aguentaram o serviço. Alguns pediram demissão e outros foram demitidos pela Plantar.

Dois outros trabalhadores foram intoxicados em 2003, em São Gabriel da Palha, trabalhando para uma empresa terceirizada, a Emflora. Os dois trabalharam dez dias sem nenhuma proteção, apenas luvas – ainda assim esburaca-das –, batendo uma mistura de três agrotóxicos num novo plantio de eucalipto da Aracruz Celulose de 78 hectares. Cada trabalhador ganharia 280 reais para o serviço. De-pois de alguns dias começaram a sentir dor de cabeça, tonteiras, tremedeiras e dor de barriga. Quando denun-ciaram o caso na imprensa, a empresa legalizou imediata-mente a situação trabalhista, assinando a carteira desses trabalhadores. Eles foram levados ao médico da empresa, que pediu que voltassem imediatamente ao trabalho, afir-mando que estavam bem e que iriam se acostumar ao tra-balho com agrotóxicos. Na verdade, os dois estavam com leucopenia, o que foi constatado por exames realizados na capital do estado, Vitória.

Um ano depois do ocorrido, esses trabalhadores con-tinuam sentindo dores de cabeça. Um deles está proces-sando a Emflora por danos corporais. O caso mostra, mais uma vez, como, na prática, a terceirização pode levar à

precarização das condições de trabalho. Quem se livra dos processos e da responsabilidade é a Aracruz Celu-lose e, enquanto os trabalhadores continuam colocando em risco a saúde e a própria vida sem garantia de seus direitos, os eucaliptais estão crescendo.

7 - os impactos da crise financeira global

Em 2008, a crise financeira global afetou profundamen-te o setor de celulose para exportação, principalmente a Aracruz. Esta empresa perdeu R$ 2,13 bilhões7 devido a transações especulativas no mercado financeiro com ven-das futuras, os chamados derivativos. Além disso, as em-presas de celulose tiveram que reduzir a produção e rever seus projetos de expansão devido ao desaquecimento glo-bal da demanda por commodities por parte dos mercados consumidores no Norte. A Aracruz adiou a ampliação da unidade Guaíba (posteriormente vendida) e a constru-ção, em parceria com a Stora Enso, da segunda fábrica da Veracel Celulose na Bahia. Enquanto, em 2007, a Aracruz obteve um lucro de R$ 1 bilhão, em 2008, a mesma teve um prejuízo de R$ 4,2 bilhões8.

Como se o processo de mecanização e terceirização realizado nos anos de 1990, gerando o desemprego de milhares de trabalhadores, não bastasse, a recente crise financeira se constitui em mais um impacto negativo im-portante sobre a geração de emprego das atividades da empresa, comprovando outra vez que os trabalhadores sempre foram e continuam sendo os primeiros a pagar pelas crises do grande capital.

Os primeiros a serem demitidos foram os trabalhadores terceirizados da Aracruz. Até março de 2009, na unidade de Guaíba, 1,2 mil trabalhadores terceirizados perderam seu trabalho. Conforme um levantamento do Sindicato dos Trabalhadores de Indústria de Papel, Papelão e Cor-tiça, só no mês de janeiro, 600 trabalhadores foram de-mitidos.9 Em março de 2009, a Aracruz também começou a demitir trabalhadores diretos no Espírito Santo e na Bahia, num total de 140 empregados.10

Essa crise, além de revelar o caráter especulativo de empresas aparentemente produtivas como a Aracruz, explicita que o discurso empresarial da geração de em-pregos é realmente frágil. Os trabalhadores sofrem mais que ninguém os impactos das crises que, inevitavelmente, causam desemprego e levam ao desespero milhares de trabalhadores e suas famílias.

ii - eMPRego e TRaBalHo nas coMUniDaDes vIzInHAS DA ARACRuz

1 - Destruição do trabalho Na década de 1970, a expansão demográfica foi maior

no município de Aracruz do que em outras regiões do estado, apresentando o índice de 36,3%. Muita gente foi

Page 121: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

120

atraída pela promessa da Aracruz Celulose de gerar uma grande quantidade de empregos. Segundo o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) produzido em 1989 para o projeto de ampliação da Aracruz Celulose, essa expansão se deu porque “o processo de reflorestamento abriu pos-sibilidade de fixação, em sua origem, de mão-de-obra na região, além de atrair trabalhadores de outras, à procu-ra da expressiva quantidade de empregos permanentes proporcionados pela silvicultura”.

O relatório, porém, não explicita o que viria a ser essa “expressiva quantidade”. Além disso, o que o Rima e ou-tros documentos oficiais omitem é que, na chegada da Aracruz Celulose ao norte do Espírito Santo, a empresa invadiu terras de duas populações tradicionais: os po-vos indígenas Tupiniquim e Guarani e as comunidades

Em todo o estado do Espírito Santo, a Aracruz Celulose incentiva o fomento florestal, isto é, o plantio de eucalipto em propriedades de tercei-ros, geralmente produtores rurais. A partir de um contrato com a empresa, eles reservam uma parte, ou toda sua propriedade, para o plantio do eucalipto. Esse recurso permite o aumento da produção de matéria-prima sem que a empre-sa precise adquirir mais terras. Além de livrar a Aracruz de arcar com as obrigações trabalhistas, essa “terceirização” garante a expansão da mo-nocultura de eucalipto em áreas que a empresa jamais se arriscaria por causa das condições e/ou declividade do solo.

Essa prática estende-se sobretudo à região serrana capixaba, onde os agricultores plantam eucalipto em áreas de alta declividade e difícil acesso, nas quais é muito complicada a utiliza-ção de recursos agrícolas alternativos. O corte de eucalipto e a árdua tarefa de retirada das ár-vores são feitos por motoserristas contratados pelos agricultores.

No ano de 2003, a CPT de Minas Gerais de-nunciou que trabalhadores, iludidos por falsas promessas, estavam sendo recrutados no estado para áreas de Fomento Florestal da Aracruz em Marechal Floriano, município serrano do Espí-rito Santo. Uma fiscalização da Delegacia Regio-nal do Trabalho (DRT) do Espírito Santo, ainda em 2003, comprovou as condições degradantes de trabalho.

Motoserristas continuamno fomento florestal

quilombolas. A maioria das famílias dessas populações, assim como os pequenos agricultores, foram literalmente expulsas e acabaram perdendo seu sustento, como acon-teceu na comunidade da Vila do Riacho, em Aracruz.

comunidades indígenasQuando a Aracruz Celulose chegou no município de

Aracruz, Antônio dos Santos, 65 anos, índio Tupiniquim e ex-cacique da aldeia de Pau-Brasil, morava na aldeia de Cantagalo, uma dentre as mais de trinta aldeias indígenas que foram extintas com a chegada da empresa. Na épo-ca, sua comunidade tinha cerca de vinte famílias. Antô-nio conta que todos os homens e mulheres em Cantagalo trabalhavam, ainda que ninguém tivesse emprego formal. As principais formas de trabalho na comunidade eram as atividades da roça, o trabalho doméstico, os mutirões en-tre famílias para a colheita e a construção de casas, a caça, a pesca e a fabricação e confecção de artesanatos como gamelas, remos e peneiras.

Depois da chegada da Aracruz, Antônio trabalhou du-rante nove anos para a empresa plantando eucalipto, mas saiu, segundo ele “porque eu quis”. Foi morar na aldeia de Pau Brasil e se juntou a outros índios Tupiniquim na luta pela recuperação de suas terras, invadidas pela Aracruz. Mais tarde, muitos índios foram demitidos no processo de mecanização e terceirização.

Diversas atividades tradicionais de trabalho foram in-viabilizadas com a chegada da Aracruz que destruiu, di-reta e indiretamente, os recursos naturais que possibilita-vam a realização dessas atividades, como a Mata Atlântica, os rios e os córregos. Hoje, apenas as roças e as próprias plantações de eucalipto são as principais fornecedoras de trabalho dentro das áreas indígenas. No entanto, esses empregos são insuficientes para a quantidade de índios. Por esse motivo, o desemprego é apontado como um dos principais problemas das comunidades indígenas.

comunidades quilombolasAntes da chegada da Aracruz Celulose em São Mateus e

Conceição da Barra, cerca de 10.000 famílias de comuni-dades remanescentes de quilombos viviam nas áreas ru-rais desses municípios. Viviam de forma semelhante aos índios Tupiniquim e Guarani. Segundo Cloves dos San-tos, 65 anos, morador nascido em Córrego do Santana, “o sustento era tirado da roça; farinha, banana, de tudo dava (...) passava fome nada, se a gente se via com fome ‘poca-va’ pro mato e todo mundo tinha comida, pescava, trocava mercadorias”. Na época, o dinheiro era pouco, mas a troca de produtos era constante. Segundo Cloves,“Sim, trocava muito, um ajudava o outro a trabalhar...”

O produto mais tradicional e, também o principal, era a farinha de mandioca, utilizada para preparar o tradicional “biju”, um alimento à base de farinha e coco. Humberto, outro morador antigo da região, comenta que “Tinha um

Page 122: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

121

comprador de farinha que chegava, jogava farinha assim a granel. Quando chegava o caminhão era 1.000, 3.000 sacos de farinha. Agora vem tudo empacotado. Antigamente, saía daqui para Vitória, agora está vindo de lá para cá”.

Ainda segundo Cloves, a Aracruz dava muito empre-go quando chegou, “mas depois que o eucalipto se fez, ela mandou o pessoal todo embora. Eu trabalhei 15 anos na Aracruz Florestal.”. Enquanto trabalhou na Aracruz, de 1979 a 1994, Cloves aplicava veneno nas plantações, o que lhe causou os problemas de saúde que enfrenta até hoje. Por causa do veneno que respingou em seu olho, ele so-fre com problemas de vista e, além disso, tem problemas na coluna cervical, em função de ter carregado nas costas, durante os 15 anos, a bomba cheia de agrotóxico, que che-gava a pesar mais de vinte quilos.

Hoje em dia, Cloves vive da sua terra, plantando feijão, milho e mandioca para fazer farinha, apesar dos proble-mas nos olhos e na coluna cervical. Ele avalia a chegada da Aracruz na região:“Melhorou por um lado, tinha em-prego perto, muita gente trabalhou. Mas piorou para outro, acabou com a terra, expulsou as famílias para as cidades, que hoje vivem em favelas (...) Eles prometiam empregos para todos e seus descendentes. Eles trabalharam, perde-ram sua saúde e foram para rua, com diversos problemas

de saúde, vistas, colunas, mutilações”.Distribuídas em 35 comunidades, há 1.500 famílias re-

manescentes de quilombolas que sobrevivem hoje em meio aos eucaliptais. Para centenas dessas famílias, cuja pequena porção de terra que têm já não produz como an-tes, a única forma de trabalho possível é a fabricação e a venda de madeira e carvão dos restos dos eucaliptos cole-tados nas extensas áreas de plantio da Aracruz.

Essas famílias sofrem ainda com a perseguição da em-presa Visel, que, com sua milícia armada, cuida da segu-rança das plantações da Aracruz. Tal perseguição é pra-ticada também pela Polícia Militar que, em vez de estar a serviço da população, defende, na verdade, os interes-ses da empresa. Em 2003, seis quilombolas foram presos quando catavam resíduos de uma plantação da Aracruz, numa ação conjunta da Polícia Militar com a Visel. Pos-teriormente, foi fundada uma associação de quilombolas catadores de resíduos que conseguiu firmar um acordo com a Aracruz no sentido de garantir a coleta. Mesmo contra a vontade da empresa, os quilombolas continuam catando os resíduos e enfrentando incidentes, que ainda acontecem de tempos em tempos, entre a população local, a Visel e a Polícia Militar. Organizados, eles estão dispos-tos a continuar enfrentando a empresa para garantir essa

Nesta fazenda, dois trabalhadores da Emflora, empresa terceirizada da Aracruz, foram intoxicados ao trabalhar com agrotóxicos: sem proteção

Page 123: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

122

fonte de sobrevivência que, para muitos, foi a única que restou, enquanto continuam lutando, sobretudo, pela re-cuperação das suas terras.

A comunidade de vila do RiachoVila do Riacho é uma comunidade centenária do muni-

cípio de Aracruz e tem cerca de 5.000 habitantes. Segundo o depoimento de um de seus mais antigos moradores, Luís Lopes Vieira, de 71 anos, antes da chegada da Aracruz Ce-lulose, a região era bem habitada onde “todo mundo tinha trabalho, plantava mandioca, feijão, café, cana-de-açúcar, muitas frutas: banana prata, banana da terra, (...) muitos criavam gado e pescavam (...) ainda que “dinheiro a gente não tinha, mas comida e trabalho não faltavam (...) a gente comia capivara, paca e peixe - nem se fala”. Também fa-ziam artesanato, como cestas, balaios e esteiras.

Quando a Aracruz Celulose chegou, muita gente vendeu suas terras, como foi o caso do pai de Nilton Amâncio Al-meida, 59 anos. Ele costumava caçar e pescar na região, mas depois que vendeu suas terras foi para a cidade de Aracruz. “Lá, ele ficou todo ‘jururu’, nunca mais voltou a ser o mesmo; ele morreu aos 62 anos”.

Luís, por outro lado, com a chegada da Aracruz, conse-guiu emprego. Inicialmente como tratorista na constru-ção da primeira fábrica de celulose e depois no campo, trabalhando na derrubada da floresta nativa: “era um tra-balho muito sofrido, não tinha sol ou chuva”. Assim como ele, muitos moradores de Vila do Riacho trabalharam na Aracruz. Segundo “Dona” Glória, de 52 anos, “a Aracruz Florestal tirava quatro caminhões de peões daqui”.

Hoje, a Vila do Riacho é uma comunidade cercada pelo eucalipto, onde, segundo Luís, “não se pode pegar um fechi-nho de lenha, porque a gente é chamada de ladrão”. Ele se refere à decisão da Aracruz Celulose de proibir a popula-ção de recolher resíduos das plantações, da mesma forma que fez com as comunidades indígenas e quilombolas. Em meados de 2004, moradores tiveram seus fornos para fa-zer o carvão destruídos, numa ação conjunta entre Visel, Polícia Militar e Polícia Ambiental. Outros foram presos ou tiveram seus instrumentos de trabalho apreendidos.

Tudo isso significa que muitas famílias em Vila do Ria-cho perderam sua principal fonte de sobrevivência. Se-gundo Luís, “quase ninguém trabalha mais na empresa”. Além disso, ele afirma que “a empresa boicota os mora-dores de Vila do Riacho, não deixa trabalhar lá e persegue quem quer trabalhar”.

2 - As mulheres e o eucaliptoAs mulheres indígenas, quilombolas e camponesas,

que viviam junto a suas famílias e comunidades nos lu-gares tomados pela eucaliptocultura, tinham seu papel socioeconômico bem definido. Conforme relata Antônio dos Santos, da aldeia Pau Brasil, as mulheres indígenas tinham tarefas específicas. Elas produziam certos tipos

de artesanato, como peneiras, por exemplo, enquanto os homens faziam gamelas e remos. Junto com os homens, elas trabalhavam na roça, plantando e capinando, e tam-bém pescavam. As mulheres quilombolas, por exemplo, produziam o bijú para alimentar suas famílias e também para ser comercializado e gerar renda.

Com a chegada das plantações de eucalipto, as mulhe-res, como os demais moradores da região, vivenciaram as mudanças na organização de seu território e de seu lugar na comunidade, no que se produzia e como se produzia. O seu papel socioeconômico dentro da família e da comu-nidade sofreu alterações e várias dessas mulheres, depois de perderem suas terras, se viram obrigadas a buscar um outro espaço para morar e trabalhar. Migraram com seus filhos e parentes para regiões urbanas, próximas ao local onde viviam, como é o caso de muitas famílias que se des-locaram para as cidades de São Mateus e Aracruz. Outras buscaram a região metropolitana do estado, engrossando as favelas e, para continuar trazendo renda para as suas casas e suas famílias, trocaram as atividades rurais pelas de empregadas domésticas, faxineiras ou lavadeiras de famílias de classe média urbanas.

As mulheres que até hoje resistem no meio das plantações de eucalipto também continuam cuidando das suas casas, da sua família, mas, ao mesmo tempo, enfrentam mais difi-culdades do que antes. Os rios e córregos que eram utiliza-dos para lavar a roupa, de onde se tirava a água para beber e no qual se pescava estão, em sua maioria, contaminados. Doralim Serafim dos Santos, quilombola, conta que “aqui ninguém lava roupa neste córrego, pois a roupa fica amarela e encardida. No tempo que me criei, a gente ia ‘fachiar’ peixe no córrego e a água estava limpinha”.

Outro problema é a falta da mata nativa, fonte da ma-téria-prima necessária para a fabricação do artesanato. Além disso, a contaminação do solo e da água pelo uso de agrotóxicos nas plantações compromete o plantio de ervas medicinais, tradicionalmente realizado pelas mu-lheres. As ervas medicinais são muito utilizadas pelas po-pulações locais para prevenir e combater doenças. A falta de terra boa e suficiente complica também a articulação entre as tarefas domésticas e a produção agrícola. Hoje, as mulheres têm que percorrer longos caminhos para tra-balhar em plantações de terceiros, na lavoura de café e cana-de-açúcar, por exemplo, ficando mais sujeitas a aci-dentes de trabalho.

Vale acrescentar ainda que 26% das famílias no Espíri-to Santo, ou seja 800.000 domicílios, têm mulheres como chefe de família. Isso significa que o Espírito Santo é um dos estados brasileiros que conta, proporcionalmente, com o maior número de domicílios chefiados por mulhe-res. Esse dado indica que o trabalho remunerado para as mulheres deixou de ser apenas uma forma de aumento da renda familiar e passou a ser fundamental para a sub-sistência da própria família.

Page 124: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

123

A fabricação do carvão no Espírito Santo destina-se, sobretudo, a abastecer as siderúrgicas que existem no estado. Antes mesmo da chegada do eucalipto essa já era uma prática corrente, quando se usava a mata nativa como matéria-prima. Com a implantação em larga escala da monocultura do eucalipto no Espírito Santo surge uma nova e abundante fonte de matéria-prima, já que a mata nativa estava ficando cada vez mais escassa.

As famílias que trabalham na fabricação de carvão de eucalipto sempre foram exploradas pelos chamados “ga-tos”, que vêm a ser pequenas empresas que fazem acordo

a exploração pelo carvão

com empresas de eucalipto, dentre elas a Aracruz, para terceirizar a limpeza das plantações após o corte. As con-dições de trabalho dos carvoeiros são precárias e a explo-ração do trabalho infantil é bastante comum. Tudo isso resulta na crescente degradação das relações e condições de trabalho.

Muitas vezes, a única alternativa de sobrevivência para as famílias vizinhas das plantações de eucalipto é a cole-ta dos resíduos e a fabricação de carvão. Essas famílias têm buscado se organizar, de modo que não dependam mais dos “gatos”.

As condições de trabalho nas carvoarias são extremamente precárias, quase desumanas

Tam

ra G

ilber

tson

Page 125: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

124

Há também a experiência das mulheres indígenas que buscaram formas alternativas de contribuir financeira-mente com a família. Algumas se tornaram empregadas domésticas dos chefes da empresa Aracruz. Entretanto, em 1998, após o processo de auto-demarcação das terras indí-genas, foram demitidas em represália. Tiveram que buscar outros tipos de trabalho fora das aldeias. Contudo, algumas deram mais sorte e conseguiram trabalho como educado-ras e agentes de saúde nas próprias aldeias. Todo esse es-forço das mulheres para contribuir com a renda familiar gerou mudanças no seu papel tradicional o que, de alguma forma, vem afetando toda a comunidade. Por outro lado, a empresa busca estar sempre próxima dessa população, promovendo ações de caráter assistencial. Um exemplo é a promoção de cursos profissionalizantes para as mulhe-res, buscando torná-las manicures, pedicures e garçonetes, profissões estranhas a essa população e sua cultura.

Outra situação que merece destaque é a de um núme-ro reduzido de mulheres de comunidades vizinhas que trabalham dentro da empresa Aracruz. Não surpreende que nos anos de 1998, apenas 6,8% dos empregados da empresa fossem do sexo feminino, de acordo com dados da época. Ainda assim, a maior parte das mulheres que trabalhava na Aracruz fazia serviços de limpeza, traba-lhava no setor administrativo da fábrica, ou no viveiro e na atividade do plantio de mudas, talvez por se acreditar que as mulheres são mais aptas para esse tipo de ativida-de que requer um trabalho manual cuidadoso. No entan-to, essa atividade já está quase totalmente mecanizada e a maioria desses serviços foi terceirizada.

No trabalho de campo, as mulheres também sofreram aci-dentes de trabalho. Em 1986, por exemplo, uma ex-trabalha-dora da Aracruz Celulose desceu uma ‘grota’ com uma caixa de 30 mudas de eucalipto, pesando 45 quilos. Ela caiu, fra-turando a coluna. Depois de ser transferida para um serviço de limpeza de escritório, foi demitida porque não conseguia mais ficar de pé. Hoje, com 53 anos de idade, ela não aguen-ta carregar uma cadeira e precisa controlar a dor na coluna com remédios. Nunca mais conseguiu outro emprego.

Muitas vezes, porém, as mulheres, invisíveis, tiveram que cuidar dos seus maridos, doentes e acidentados pelo trabalho realizado nas plantações. Doralina conta que “ti-nha dias que ele chegava aqui com as vistas doendo e quase não podia dormir de noite. Depois ele ficou com as vistas ruins mesmo, não estava enxergando direito. Aí, ele fez uns exames”. Há inclusive mulheres viúvas de ex-trabalhado-res da empresa Aracruz e de empresas terceirizadas que precisam sustentar a casa sozinha, sem qualquer apoio.

3 - Alternativas de geração de trabalho no campoDe acordo com Sérgio Leite (Ibase, 2004), em 1995 e

1996, cerca de 18 milhões de pessoas trabalhavam no cam-po no Brasil, em atividades relacionadas à agricultura. No entanto, mais de 75% desses postos concentravam-se no

setor familiar. O mesmo pesquisador sustenta que o setor de assentamentos rurais, onde se pratica geralmente a pe-quena agricultura, constitui hoje um campo especial para uma política consistente de manutenção e geração de no-vos empregos. Mas é exatamente este setor que encontra dificuldades para se reproduzir e garantir sua permanên-cia, além de estar ameaçado pela expansão de pastagens, pela grilagem de terras e pelo plantio de eucalipto e pinus, assim como pelo incremento de outras monoculturas em larga escala, como a cana-de-açúcar e a soja.

No Espírito Santo, a partir da construção da fábrica C da Aracruz Celulose no período entre 2000 e 2002, ini-ciou-se um novo ciclo de expansão de eucalipto no nor-te do estado. Em artigo, no jornal A Tribuna, em 2001, o vice-prefeito de Sooretama, Clarindo Manthaya, afirmou que “cerca de 400 pessoas já perderam o emprego” em Sooretama devido à compra de terras pela Aracruz. Por esse motivo, a prefeitura começou a elaborar um projeto de lei para impedir a venda de terras para a empresa. No mesmo artigo, Jaceir Alves Fernandes, da Federação de Trabalhadores na Agricultura do Espírito Santo (Fetaes), declara que 15 hectares de eucalipto geram apenas um emprego, enquanto cada hectare de lavoura de café pode dar emprego para até dois trabalhadores.

A Veracel Celulose fez um estudo por conta própria so-bre a geração de emprego nas suas áreas, na Bahia, que totalizam 146.927 hectares (73 mil hectares de monocul-tura de eucalipto), comparando o número de moradores, trabalhadores e empregados nas propriedades compra-das, antes e depois da sua chegada. (tabela 12.1).

Baseada na tabela 4, a Veracel conclui, de forma positiva, que o número de trabalhadores (442) e empregados (297) na área aumentou de 739, antes da sua chegada, para 944, depois que ela chegou. A empresa pretende assim demons-trar que está gerando mais empregos do que eram criados antes, quando havia principalmente fazendas de gado.

Na verdade, o que se pode concluir a partir desses dados é que a Veracel, ao substituir 73.000 hectares de pastagens para a criação de gado, por 73.000 hectares de monocultura de eucalipto, está substituindo uma atividade que gerava um emprego em cada 99 hectares (criação de gado), por outra atividade que gera apenas um emprego por cada 78 hectares (plantio de euca-lipto). E se considerarmos a área total da Veracel de 146.927 hectares (Veracel Celulose, 2003), o plantio de eucalipto gera apenas um emprego em cada 156 hec-tares. Isso significa que mesmo se aceitarmos os dados da própria empresa, que obviamente geram algumas dúvidas e interrogações, o certo é que, em termos de geração de empregos, a Veracel mostra que seu projeto é um desastre total: um emprego em cada 156 hectares das terras que possui.

Ao mesmo tempo, a pesquisa mostra um dado preocu-pante que é a quase ausência de moradores no meio das

Page 126: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

125

plantações de eucalipto: 71 moradores em 146.927 hecta-res. Segundo os dados apresentados na tabela 4, mais de 800 moradores tiveram que sair de suas casas quando a Veracel chegou. Isso significa que as pessoas que moram nas propriedades do entorno ficaram ainda mais isola-das, sem vizinhos. Esse isolamento, conforme depoimen-tos coletados, torna-se uma nova causa do êxodo rural. A ausência de moradores acaba aumentando também a insegurança nessas regiões de eucalipto.

É importante observar também que os números da Ta-bela 4 deixam algumas interrogações. Na Tabela 5, sim-plificamos os dados da Tabela 4 para mostrar isso mais claramente. Em primeiro lugar, chama a atenção o au-mento do número de trabalhadores e empregados no mu-nicípio de Eunápolis, o que permitiria à Veracel afirmar que realmente está gerando muito mais empregos do que existiam antes. Vale ressaltar, entretanto, que o aumento no número de empregos pode ser facilmente explicado pela presença, nesse município, do viveiro da empresa, no qual são produzidas as mudas para todas as áreas de plantio. Além disso, Eunápolis abriga ainda a sede admi-nistrativa da empresa. Dessa forma o aumento do núme-ro de empregos em Eunápolis contrasta claramente com a diminuição do número de empregos na maioria dos ou-tros municípios, nos quais só existem as plantações. Isso coincide com a enorme diminuição de “moradores” nes-sas áreas.

Além disso, os dados gerais apresentados não dizem nada sobre as situações concretas. Os números da própria empresa mostram que para os moradores do município de Santa Cruz de Cabrália, a chegada da Veracel foi uma tragédia de enormes proporções, dado que dos 193 tra-balhadores e empregados que existiam, restaram apenas 56, e dos 240 moradores sobraram apenas quatorze. Pior ainda é a situação em Porto Seguro, onde o número de trabalhadores passou de 88 para dois e o de moradores passou de 138 para nove. Em Itagimirim, dos 26 trabalha-dores sobrou apenas um. Apenas Itapebí, por algum mo-tivo não conhecido, parece ter se beneficiado com um real aumento (48) dos postos de trabalho, enquanto nos outros municípios esse número ficou mais ou menos estável, ou teve alguma perda.

estudo de caso: Vila ValérioNo âmbito do presente estudo, buscou-se fazer um

levantamento no município de Vila Valério, Espírito Santo, onde recentemente foi plantado eucalipto, pela Aracruz Celulose, em função do novo ciclo de expansão da empresa. As áreas ocupadas eram anteriormente uti-lizadas, sobretudo, para o plantio de café. A partir des-ses dados, busca-se comparar a geração de emprego em áreas de eucalipto com áreas de produção de café, sen-do essa última muito mais significativa em termos de geração de emprego, trabalho e renda para a população

rural do que a criação de gado extensiva - referência para o estudo realizado pela Veracel. Busca-se mostrar também qual é a capacidade de geração de trabalho e renda da pequena propriedade dentro da lógica da agri-cultura campesina, defendida pelo Movimento dos Pe-quenos Agricultores (MPA).

informações geraisO município de Vila Valério fica na região norte do Es-

pírito Santo, abrangendo 42.270 hectares. Conta com uma população estimada em 13.899 habitantes, sendo 4.099 habitantes da área urbana (29%), e 9.800 habitantes da área rural (71%).

O município vive basicamente da produção agrícola, principalmente das lavouras de café conillon, que ocu-pam 22.800 hectares (IBGE, 2002), ou seja, 54% do mu-nicípio. A segunda maior lavoura é o plantio de coco que ocupa 986 hectares. Em terceiro lugar está o plantio de eucalipto, que ocupa cerca de 700 hectares. Outros plan-tios, em menor escala, são o milho, o feijão, a banana, a pimenta do reino, frutas e seringueira. Além das planta-ções, cerca de 10.850 hectares do município são ocupa-dos por pastagens.

Outro dado relevante é o grande número de proprie-dades, 1.590. Dessas, 29% são propriedades de 0 a 10 hectares e 58,2% de 10 a 50 hectares. O que significa que a grande maioria das propriedades é de pequeno por-te. Apenas 4,5% das propriedades são grandes, acima de 100 hectares.

Na área urbana, vive-se basicamente da produção de café. Segundo o vereador Moacir Olidonio, existem sete armazéns de café na sede do município e cada um tem em torno de vinte a trinta empregados. Há armazéns também em alguns vilarejos na área rural do município.

Em 1993, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana de Vila Valério e Vila Pavão criou o projeto “Denes”, com a proposta de investir na agricultura familiar. O projeto tem apostado na fruticultura, uma atividade capaz de produ-zir até dez empregos diretos por hectare, conforme afirma Decimar Schultz, assessor-técnico da Fundação Luterana Sementes. Segundo o pastor luterano Christian: “Nos-sa intenção maior é diversificar o plantio de culturas na região, dentro de um conceito ecológico consistente e com uma preocupação de ampliar o mercado para a venda da produção”. Além de questionar o impacto ambiental da monocultura de eucalipto, o pastor Christian diz que ela provoca o êxodo rural, porque tanto o plantio quanto a colheita da lavoura são mecanizados, deixando os produ-tores rurais desempregados.

O plantio comercial de eucalipto e a compra de terras pela Aracruz Celulose em Vila Valério começaram em 2001. Três anos depois, fez-se uma avaliação do plantio de eucalipto em um município que vive basicamente da agricultura do café.

Page 127: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

126

situação de emprego nas áreas da aracruz, antes do plantio de eucalipto

Foram feitas algumas visitas e entrevistas com pessoas que trabalhavam nas maiores áreas compradas pela Ara-cruz Celulose: a Fazenda Breda com 473,44 hectares e a Fazenda de Luiz Meniguelli com 68,60 hectares.

Na Fazenda Breda, cerca de quarenta pessoas estavam vivendo e trabalhando permanentemente como empre-gados do fazendeiro, conforme depoimento de uma ex-empregada, dona Teresa. Na época da safra do café, o número de trabalhadores aumentava para 1.300 pessoas que vinham de outros municípios, inclusive de outros es-tados, como a Bahia. Quando a fazenda foi comprada pela Aracruz, o dono sentou com as famílias e falou que todo mundo teria que ir embora. Desde então, a vila de Ara-ribóia, que vivia basicamente do movimento de pessoas e mercadorias em torno da Fazenda Breda, entrou em decadência. Hoje, isso pode ser constatado por qualquer um que visita a Vila, onde algumas famílias que perma-neceram sofrem com a falta de emprego e de perspecti-va. “Seu” Martim, morador antigo do local afirma que é “... contra invasão de terras, mas esta fazenda deveria ter sido invadida para evitar este plantio de eucalipto”. Outro morador local afirma que o “...problema é que uma vez ocupada pelo eucalipto, nunca mais volta para agricultura”.

Foi entrevistada também uma família de ex-moradores

Município Propriedade Tamanho médio (ha)

Antes da chegada da Veracel1 Depois da chegada da Veracel2

Moradores Trabalhadores Empregados Moradores 3 Trabalhadores Empregados

Belmonte 101 249 213 130 89 2

Todos incluídos

na coluna à direita

206

Canavieiras 5 447 7 3 3 0 1

Encruzilhada 1 98 0 0 0 0 1

Eunápolis 78 511 167 72 57 17 553

Guaratinga 5 400 8 4 2 4 1

Itabela 17 487 60 24 20 15 43

Itagimirim 14 235 32 17 9 4 1

Itapebi 20 186 31 15 13 6 76

Porto Seguro 46 478 136 50 38 9 2

S.C.Cabrália 120 336 240 127 66 14 56

Soma 407 3427 894 442 297 71 944

Tabela 4: Ocupação de terra, antes e depois da compra de terras pela Veracel

1- Todos os trabalhadores estavam morando nas propriedades. Apenas uma parte deles estava formalmente empregada.2- A partir de julho de 20033- 17 empregados e 54 dependentes. Empregados são incluídos na coluna “empregados”

(fonte: Veracel Celulose, 2003)

Município

Antes da chegada da

Veracel1

Depois da chegada da

Veracel2

Depois da chegada da

Veracel

Trabalhadores e Empregados

Trabalhadores e Empregados

Aumento oudiminuição

Belmonte 219 206 -13

Canavieiras 6 1 -5

Encruzilhada 0 1 +1

Eunápolis 129 553 +424

Guaratinga 6 1 -5

Itabela 44 43 -1

Itagimirim 26 1 -25

Itapebi 28 76 +48

Porto Seguro 88 2 -86

S. C. Cabrália 193 56 -137

Soma 739 940 201

Tabela 5: Ocupação de terra, antes e depois da compra de terraspela Veracel (simplificada)

Page 128: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

127

da Fazenda dos Meringueli. Essa família mudou-se recen-temente para a sede do município, depois de ter trabalha-do numa outra fazenda, após ser expulsa pela Aracruz da Fazenda dos Meringueli. Disseram que moravam naquela fazenda com cinco outras famílias, antes da chegada da Aracruz. Sua família era composta de quatro membros que trabalhavam diretamente com uma área de cerca de 12 hectares com 25.000 pés de café, como meeiros, o que significa que a metade da safra era para o patrão. Ganha-vam cerca de 10.000 a 12.000 reais ao ano com o café, e ainda tinham pequenos animais, uma horta, lenha e água à vontade e haviam iniciado um plantio de pimenta-do-reino. Na época da colheita, cerca de trinta a quarenta pessoas trabalhavam na fazenda. Quando a Aracruz a comprou, a família da “dona” Teresa conseguiu negociar a colheita do café ainda por duas vezes. Eles reclamam da dor de ter deixado aquela propriedade e admitem que prevêem muitas dificuldades na nova etapa da sua vida na cidade, já que não têm costume de viver na cidade e não têm nenhuma perspectiva de emprego. Com a com-pra da propriedade pela Aracruz, a casa de “dona” Teresa e as casas dos outros meeiros, com os quais sempre se relacionavam e trabalhavam, foram destruídas.

De acordo com os depoimentos, conclui-se que havia entre sessenta a 100 pessoas trabalhando permanente-mente nas áreas compradas pela Aracruz em Vila Valério, áreas que juntas abrangem em torno de 1.000 hectares (cerca de 700 hectares de terra agricultável e hoje ocu-pada por eucalipto). Essas áreas, conforme diversos de-poimentos, são quase todas planas e consideradas as me-lhores do município para fins de agricultura. A principal cultura nessas áreas era o café.

situação de emprego nas áreas da aracruz, depois do plantio de eucalipto

Com a entrada da empresa Aracruz em Vila Valério, a empreiteira Plantar conseguiu firmar contrato com a em-presa para fazer o plantio de eucalipto e a aplicação de agrotóxicos nas áreas adquiridas. Inicialmente, a Plan-tar contratou quarenta pessoas. Hoje apenas 28 pessoas trabalham diariamente. Ainda assim, conforme um deles, esse grupo trabalha parcialmente no município de Vila Valério, e também em municípios próximos como Soore-tama, Jaguaré e São Mateus. O motivo é que já não há ser-viço suficiente para os 28 trabalhadores nos 700 hectares de eucalipto já plantados em Vila Valério. O trabalhador da Plantar afirma ainda que o trabalho é árduo e o salário bastante baixo. Ele gostaria de ter um outro emprego, de melhor qualidade, e um salário maior.

a proposta do Movimento dos Pequenos agricultores

O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) sur-giu no Espírito Santo em 1998 e defende a permanência

do homem no campo, lutando pela garantia da seguran-ça alimentar dos agricultores e, ao mesmo tempo, con-tra o fortalecimento do modelo agroindustrial do Brasil, que expulsa famílias inteiras do campo, defende a mo-nocultura, a introdução de transgênicos e a aplicação de adubos químicos e agrotóxicos. No Espírito Santo, cerca de 10.000 famílias de pequenos agricultores de um total de 55.000 já participam do MPA, de alguma maneira. Em Vila Valério, existe um núcleo municipal deste movimento.

Houve visitas, com membros do MPA, a vários agri-cultores que trabalham concretamente na implementa-ção da proposta do MPA, a agricultura camponesa. O que chama a atenção é que em poucos hectares (a maioria dos pequenos agricultores tem até 20 hectares de ter-ras), os agricultores são capazes de plantar uma grande diversidade de culturas que praticamente garante a sua segurança alimentar. Nas propriedades há, em média, quatro pessoas trabalhando, considerando ainda que nas épocas de safra, principalmente do café, esse nú-mero pode dobrar ou até triplicar. Não são usados agro-tóxicos, o que diminui o custo de produção e garante a saúde do trabalhador e dos alimentos que ele e sua fa-mília consomem.

O MPA ainda defende o plantio de café, mesmo sen-do uma monocultura, como base de sustentação dos agricultores, nunca como única cultura. Cerca de 3.000 pés de café (cerca de 1,5 hectare) bem cuidados podem garantir anualmente cerca de 150 sacos de café pilado. Com o preço atual, esta quantidade de café pode ren-der para o agricultor cerca de R$ 18.000 ao ano, ou seja, R$ 1.500 ao mês. Há alguns anos que em Vila Valério foi registrada a maior produtividade de café do Brasil na propriedade de Ozílio Paterlli: mais de 208 sacas de 60 quilos por hectare.

O MPA defende uma reforma agrária que garanta que mais pessoas possam viver da pequena agricultura. Con-sidera o latifúndio um dos maiores atrasos no campo, a exemplo das grandes fazendas com pastagens e mo-nocultura de eucalipto. De acordo com o MPA, a mono-cultura mecanizada em larga escala, gera pouquíssimos empregos e causa impactos ambientais negativos, além de concentrar renda nas mãos de poucos.

conclusãoÉ possível comparar, com base apenas em dados quan-

titativos, a geração de emprego no plantio de eucalipto e outras atividades no campo, como a Veracel Celulose fez na Tabela 4. No entanto, verificou-se que a conclusão da Veracel, aparentemente positiva – aumento do emprego com o plantio de eucalipto –, é uma conclusão precipitada porque o tema “trabalho e emprego” nas áreas rurais é algo muito mais complexo.

Neste estudo de caso, baseado nos dados coletados em

Page 129: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

128

Vila Valério, considera-se que é mais correto comparar, não um só, mas diversos aspectos quantitativos e quali-tativos relacionados ao tema ‘emprego e trabalho’ para que se possa avaliar as vantagens e desvantagens de cada alternativa, comparando as monoculturas do eucalipto e do café com a proposta de agricultura camponesa do MPA (Tabela 6).

iii - consiDeRaÇÕes finais

Mais do que apresentar dados específicos sobre a gera-ção de emprego, o estudo pretende oferecer alguns ele-mentos para reflexão sobre um tema complexo. Esta re-flexão é fundamental para que as pessoas, comunidades e movimentos, que enfrentam nas suas regiões projetos de plantio de eucalipto em larga escala para produção de celulose - símbolos de “modernização” e “progresso” -, possam elaborar uma visão mais abrangente e crítica da realidade de emprego e trabalho em torno desse tipo de projeto.

Constata-se que há uma enorme distância entre a “pro-messa” de uma empresa como a Aracruz Celulose e a re-alidade. A empresa está preocupada em apresentar sem-pre números que soam favoráveis aos ouvidos do público em geral. No entanto, um olhar mais cuidadoso coloca em cheque boa parte desses números, sobretudo quando se avalia o volume de investimentos e a extensão terri-torial da empresa. A “promessa” se repete para todo um setor, erroneamente chamado de setor “florestal”. Este se-tor procura expandir as plantações no Brasil para onde puder, em busca de mais lucros para os acionistas das empresas envolvidas. Nessa empreitada, conta com uma série de parceiros, sobretudo o Estado, que infelizmente parece ainda mais otimista do que as próprias empresas em relação às “promessas” de emprego.

O estudo demonstra também a contradição que é se investir tanto no plantio de eucalipto e na produção de celulose, que tendem a necessitar cada vez menos de tra-balhadores, numa sociedade que necessita tanto de mais empregos. A mecanização e a terceirização promovidas

na Aracruz Celulose, nos últimos 20 anos, demitiram mi-lhares de trabalhadores, além de terem estimulado a pre-carização das condições de trabalho e a fragilização dos sindicatos, que deveriam ser um ponto de apoio para o trabalhador, e não para a empresa. Nesse sentido, o drama dos ex-trabalhadores do setor, além da situação daqueles que continuam, por exemplo, aplicando os agrotóxicos ou operando as máquinas no campo, é muito preocupante. Os direitos violados dos ex-trabalhadores ainda esperam por reparações dignas por parte da Aracruz Celulose.

Talvez um dos aspectos mais importantes que este estu-do mostre é que o projeto de expansão das plantações de monoculturas de árvores e produção de celulose, ao gerar um certo número de empregos, destrói outras oportuni-dades de trabalho, mais difíceis de serem quantificadas. Exemplos disso são as diversas atividades tradicionais das comunidades indígenas e quilombolas, além da pro-dução de café por produtores rurais em Vila Valério. Ficou claro, também, que as mulheres são as principais vítimas do projeto dominador da Aracruz. Não há lugar para elas nos planos dos gerentes e estrategistas da empresa.

A perda de “trabalho” não parece ter relevância no mundo moderno de hoje que apenas fala em “emprego”. Uma afirmação da Aracruz mostra como ela mesma é de-fensora dessa visão, para a empresa: “Atividades flores-tais oferecem oportunidades de emprego, mesmo nas áre-as mais remotas do País”. O que significa que para ela, a diversidade de atividades tradicionais de trabalho, uma característica das comunidades indígenas, quilombolas e campesinas, simplesmente não existe.

É preciso revalorizar o trabalho humano que muitas vezes não se traduz num emprego formal, com salário e carteira assinada, como, por exemplo, a situação dos que hoje trabalham na plantação de eucalipto, totalmente de-pendentes de uma empresa, com salários baixos e altos riscos para sua saúde. Ao se pensar na importância do trabalho para as pessoas, é preciso reafirmar a importân-cia da autonomia das comunidades tradicionais e cam-pesinas, que tendem a perder seus recursos e atividades tradicionais por causa da “fome” de empresas que con-tinuam se apropriando de suas terras, prometendo, em troca, alguns empregos.

A Aracruz Celulose nunca respeitou os povos tradicionais da região

Page 130: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

129

Monocultura do eucalipto

Monocultura do café

Agricultura campesina

Capacidade de geração de emprego

Baixa (1 emprego direto e indireto/28-37

hectares)

Alta (até 1 emprego/ha; na safra, até 2 a 3

empregos/ha)

Alta (até 1 emprego/1-2 ha; na safra, até 4 a 5 empregos/ha)

Capacidade de geração de renda

Baixa (1a 1,5 salário mínimo para o trabalhador)

Média-alta (até 1.000 reais por

hectare)

Média-alta (até 1.000 reais, ou mais, por ha; café com outras

culturas)

Riscos à saúde

Alta (cultura com aplicação de agrotóxicos)

Médio-Alta (cultura com,

geralmente, aplicação de agrotóxicos)

Baixo (não usa agrotóxicos; os próprios alimentos, são

saudáveis)

Segurança alimentar

Baixa (precisam comprar alimentos para a

família)

Baixa (precisam comprar alimentos para a

família)

Alta (produzem seus alimentos básicos: feijão, arroz, milho,

hortaliças, etc.)

Risco de perder emprego

Médio-AltoMédio-baixo

(risco médio no caso de diaristas)

Baixo

Conta de água, gás, energia

Alta (trabalhador precisa pagar água, gás e

energia)

Média (sempre tem acesso à água e lenha na roça)

Média (sempre tem acesso à água e lenha na roça)

Circulação da produção no município

Geralmente baixa. Sai do município para fábricas de celulose

da Aracruz

Alta. Circula no município, gerando impostos e

trabalho

Alta. Circula no município, gerando impostos e trabalho

Transporte para o trabalho

Demorado. Com ônibus

Rápido (geralmente, a roça é

próxima da casa)

Rápido (geralmente, a roça é próxima da casa)

Tabela 6: Aspectos relacionados a trabalho e emprego nas monoculturas do eucalipto e do café e na agricultura campesina

Page 131: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

130

RefeRências1- Este texto é uma adaptação, redigida por Winnie Overbeek, do texto original Plantações de eucalipto e produção de celulose: promessas de emprego e destruição de trabalho: o caso Aracruz Celulose no Brasil, escrito por Alacir De´Nadai, Luiz Alberto Soares e Winnie Overbeek, publicado pelo Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, sigla em inglês), Coleção Plantações, nº 2, Uruguai, 2005.

2- O jornal A Gazeta faz parte da principal rede de comunicação do Brasil, a Rede Globo, em mãos da família Marinho, que possui jornais e emissoras de rádio e televisão em todos os estados.

3- Itapuã é uma rede nacional de lojas de roupas, calçados e outros produtos. A Viação Itapemirim é uma das maiores empresas de transportes do Brasil.

4- Das árvores aos lares: a geração de renda, emprego, divisas e impostos da cadeia produtiva da Aracruz Celulose. Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, dezembro 2006.

5- A então diretoria que deixou o Sindicato em 2003, conseguiu ganhar novamente a diretoria do sindicato nas eleições de março de 2009.

6- Este Movimento surgiu em 2004 quando dezenas de ex-trabalhadores da Aracruz Celulose em São Mateus, com graves problemas de saúde, se mobilizaram em torno de um companheiro que estava sendo processado pela Aracruz. Ele tinha chamado a empresa de “assassina” durante a Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, em Brasília, no mês de maio de 2003, depois que ele viu vários colegas morrerem em função de problemas de saúde contraídos quando trabalhavam na Aracruz Celulose. Até hoje, a grande maioria desses ex-trabalhadores não recebeu nenhum tipo de indenização. O Movimento inclui também viúvas de ex-trabalhadores da Aracruz. Todas essas pessoas que estão em busca dos seus direitos, violados pela Aracruz Celulose, reclamam também da omissão do Estado.

7- Barbieri, Cristiane, Fundos: Aracruz não chega a acordo com os bancos, Jornal Folha de São Paulo,03 de dezembro de 2008.

8- Valenti, Grazielli, Auditoria discorda do registro das dívidas da Aracruz, Jornal Valor Econômico, 01 de abril de 2009.

9- Chasque Agência de Notícias, Terceirizadas da Aracruz registram 1,2 mil demissões em Guaíba (RS), 03 de março de 2009.

10- Redação Gazeta Online, Aracruz Celulose demite funcionários para enfrentar a crise, www.gazetaonline.com.br, 18 de março de 2009.

RefeRências BiBliogRáficasAracruz Celulose S.A. Home page: http://www.aracruz.com.br

Aracruz Celulose S.A. Relatório Social e Ambiental. 2003. www.aracruz.com.br

Aracruz News, no 4 – year 2, 1996.

BVQI, Comunicado sobre a certificação Cerflor da Aracruz Celulose no Espírito Santo. São Paulo, novembro de 2004.

Calazans, Marcelo e Overbeek, Winnie. O caso Aracruz Celulose no Brasil: ECAs exportando insustentabilidade. Espírito Santo, Brasil: 2003.

Cepemar. Relatório de Impacto Ambiental – Rima. Fiberline C. Relatório Técnico COM RT 079/99. Dezembro 1999.

Cepedes. Eucalipto: uma contradição. Impactos ambientais, sociais e econômicos do eucalipto e da celulose no Extremo Sul da Bahia. Cepedes/CDDH. Eunápolis, 1992.

Fase-ES. Relatório I da Violação dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientas (Dhesca I) pelo Estado do Espírito Santo e Aracruz Celulose. Vitória, agosto de 2002.

Fase-ES: Relatório II da Violação dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca II) pelo Estado do Espírito Santo e Aracruz Celulose. Vitória, dezembro de 2003.

Fase-ES. Cruzando o Deserto Verde. Filme-denúncia. 2002

Fase-ES. Relatório sobre os processos judiciais civis e trabalhistas contra o grupo Aracruz Celulose no Estado do Espírito Santo, 2003.

Ibase. Democracia Viva 21: Especial Mercado de Trabalho. Rio de Janeiro, abril/maio 2004.

IBGE. Informações do levantamento sistemático da produção agrícola no município de Vila Valério. 2002.

Jornal A Gazeta: Aracruz incentiva plantio de eucalipto: muita gente critica o projeto florestal, acusando-o de ser um dos principais fatores de desertificação do norte do Estado. 01 de abril de 1999.

Jornal A Gazeta: Caderno Especial - Aracruz Celulose: investimento social. 17 de abril de 2002.

Jornal A Gazeta: No último ‘quilombo’, a força da resistência: a comunidade negra de Espírito Santo, em São Mateus, já teve 80 famílias. Hoje são apenas 40. 11 de abril de 1999.

Jornal A Gazeta: Preço da celulose preocupa a Aracruz: empresa admite que lucro será menor por causa da redução no valor da celulose. 11 de abril de 1999.

Jornal A Gazeta: Sinticel exige o fim das demissões na Aracruz Celulose. 14 de dezembro de 2002.

Jornal A Tribuna: Plantio de eucalipto deixa produtores rurais em alerta. 2001.

Jornal Estado de Minas. Luta pelo fim de um mito. 27 de outubro de 2003.

Ministério Público do Trabalho. Procuradoria Regional do Trabalho da 3ª Região; Coordenadoria de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos (Codin). Ação Civil Pública. 2002.

Os Danos Socioambientais do eucalipto no Espírito Santo e na Bahia. Seminário. Movimento Alerta contra o Deserto Verde. Junho de 2000.

Scotto, Gabriela. Uma resenha da exportação brasileira de produtos intensivos de energia: implicações sociais e ambientais de Célio Bermann. Revista Proposta. No 99 Dezembro/fevereiro de 2003/04: p. 54-57.

Veracel Celulose. Homepage: www.veracel.com.br

Veracel Celulose. Documento: Questions and Answers on Veracel, 16 de dezembro de 2003.

Page 132: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

Ao se pensar na importância do trabalho para as pessoas, é preciso reafirmar a autonomia das comunidades, que tendem a perder seus recursos e atividades tradicionais por causa da “fome” das empresas

Page 133: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

132

Page 134: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

133

PARTE 3 • A implementação • Fraudes e ilegalidades

• A construção do simbólico pela mídia

Page 135: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

134

É bastante alto o número de casos de intoxicação e doenças de trabalho nas plantações e fábricas da Aracruz: descaso com o trabalhador

Tam

ra G

ilber

tson

Page 136: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

135

A produção de celulose de eucalipto no estado do Espí-rito Santo tem sua origem na formação da empresa Ara-cruz Florestal S.A. em 1967. O projeto inicial focou na plantação das árvores. Somente em 1978 entrou em ope-ração a primeira unidade industrial, Fábrica A, vincula-da ao processamento químico de madeira, em Barra do Riacho, município de Aracruz, com capacidade de produ-zir 475 mil toneladas de celulose por ano. Para viabilizar a produção dessa primeira fábrica foi constituída a holding Aracruz Celulose S. A., que incorporaria a empresa origi-nal, entre outros empreendimentos associados que foram criados ao longo dos anos. No início da década de 1990, ocorreu a primeira ampliação industrial, com a constru-ção da Fábrica B, elevando o potencial de produção para 1,1 milhão de toneladas/ano. A última grande ampliação do parque industrial da Aracruz Celulose em terras capi-xabas ocorreu no início dos anos de 2000, com a matura-ção do projeto da Fábrica C, o que significou a elevação da capacidade nominal para cerca de 2,3 milhões de tonela-das de celulose ao ano.

Paralelo aos processos de ampliação do parque indus-trial ocorreu também a agregação de áreas territoriais voltadas para a plantação de eucalipto. Se no início as plantações se resumiam ao município de Aracruz, a par-tir do projeto industrial de celulose a monocultura de ár-vores exóticas se espalhou em dois sentidos: a produção em larga escala, em latifúndios, concentrada nos municí-pios do litoral norte; e, o plantio em pequenas glebas, em vários municípios de norte a sul do estado, a partir dos programas de fomento florestal, envolvendo inclusive as pequenas propriedades.

Além da produção no Espírito Santo, a Aracruz Celulose S.A. possui outros investimentos na produção de celulose. O Grupo Aracruz participa do capital social da Veracel, na

1A viabilização da Aracruz Celulosepelo Estado brasileiroHelder Gomes

Bahia, e detém o controle da unidade industrial de Gua-íba, no Rio Grande do Sul1. Juntamente com Minas Ge-rais, esses são os estados que também abrigam as maiores plantações de eucalipto em sua área de abrangência, seja em terras próprias da Aracruz Celulose, atingindo um total de 286 mil hectares de área plantada, seja em terras de outras grandes empresas e nas pequenas glebas.

Este capítulo procura apresentar alguns elementos sobre o processo de constituição e evolução da produção de celulose em terras capixabas, com especial atenção às relações do Grupo Aracruz com o Estado brasilei-ro em suas mais variadas dimensões. Parte-se da pre-missa de que as intervenções públicas, tanto no âmbito federal quanto regional, foram imprescindíveis para a viabilização dos projetos agroindustriais da Aracruz Ce-lulose: além dos incentivos fiscais e linhas de financia-mento, houve também a participação direta no capital social dos empreendimentos, bem como na liberação de terras e na construção da infraestrutura de transportes (porto) e energia.

Desse modo, são apresentados os mecanismos institu-cionais de viabilização dos projetos da Aracruz Celulose nas suas três fases de evolução. São sugeridas algumas indicações sobre o negócio da celulose e as perspectivas de expansão e diversificação da produção, dentro dos pro-pósitos de adequação do País à nova divisão internacional do trabalho. Os desdobramentos dessa opção brasileira apontam para uma especialização em commodities, estan-do a celulose entre os produtos prioritários das agências oficias de fomento e a hidrólise de eucalipto no centro da fronteira de ampliação e viabilização dos projetos fede-rais de produção de agrocombustíveis.

o contexto das antigas articulações pró indústria no espírito santo

Até o início dos anos de 1960, a produção industrial no Espírito Santo se restringia ao beneficiamento do café e a algumas iniciativas isoladas mais próximas do ar-tesanato. Essa realidade começou a sofrer grandes al-terações devido à crise internacional do café e com a montagem de pequenas plantas siderúrgicas e de pelo-tização de minério de ferro na micro-região de Vitória, ao mesmo tempo em que se intensificavam os investi-mentos infraestruturais e o processo de urbanização ga-nhava um grande vulto. Era o momento da combinação de vários movimentos internos e externos, envolvendo intervenções do governo federal e iniciativas locais num esforço extremamente tardio de industrialização re-gional. Isto é, estava em gestação naquele período uma abordagem de integração mais definitiva da região capi-xaba às relações mercantis capitalistas de abrangência nacional, em consonância com o padrão de acumulação e de consumo que se difundia em nível internacional há algumas décadas.

Page 137: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

136

“A construção da infraestrutura de transportes, de energia e de comunicação, promovida a partir do governo federal, sem dúvida, provocou impactos no sentido de estimular a implantação de algumas unidades industriais nas regiões que estavam à margem do processo de industrialização até então. Mas, esses esforços ainda não foram suficientes para deslocar uma grande massa de investimentos industriais do centro hegemônico (Eixo Rio - São Paulo) para as regiões industrialmente mais atrasadas.”

(Gomes, 1998, p. 33)

No entanto, pequenos progressos foram sendo alcan-çados, potencializando mecanismos de integração inter-regional a partir da instalação de unidades industriais nas regiões ainda não integradas e focadas no beneficia-mento de produtos primários. Estes eram voltados para a substituição de importações e para atender à crescente demanda provocada pela rápida urbanização dos centros dinâmicos da economia nacional.

Nesse contexto de alterações na dinâmica de integra-ção inter-regional, as oportunidades de industrialização foram articuladas no Espírito Santo, a partir da Grande Vitória. Mas esse processo esbarrava em grandes dificul-dades estruturais.

“Para as perspectivas capitalistas, o modelo resultante do atrasado processo de colonização capixaba estava assentado em bases bastante precárias. A principal característica da região eram as relações produtivas de base familiar, com insignificantes manifestações de trabalho assalariado. Além disso, as unidades agrícolas eram quase todas auto-suficientes, pois a cultura de subsistência atendia razoavelmente a um padrão de consumo ainda bastante rudimentar.”

(Gomes, 1998, p. 34)

Os investimentos do governo federal se destacavam no processo de urbanização regional, com destaque para a sub-região da Grande Vitória, mesmo que cerca de 72% da população capixaba ainda se encontrasse na área rural, sofrendo os reflexos de mais uma crise da monocultura cafeeira. Nesse rompante modernizador, alguns grupos de interesses locais passaram a se articular institucionalmente. Fundaram a Federação do Comércio, em outubro de 1954, e logo depois a Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes), em fevereiro de 1958. As duas sob o comando do tradicional comerciante Américo Buaiz. Em maio de 1959, foi criado o Conselho Técnico da Federação das Indústrias, contando com as presenças de “... Eliezer Batista, Alberto Stange, Arthur Carlos Gerhardt Santos, Humberto Pinheiro Vasconcelos, Aloísio Simões, Jorge Faria Santos e Bolivar Abreu” (Silva, 1995, p. 360). O objetivo desse conselho seria “... apreciar os mais sérios

problemas regionais equacionando-os e funcionando, também, como órgão auxiliar dos poderes públicos, no que tange aos problemas industriais”

(Silva, 1995, p. 359)

Dos estudos e eventos desse Conselho Técnico da Fin-des resultou uma recomendação ao governo estadual para a elaboração de um plano de ação voltado para uma arti-culação política junto ao governo federal, visando: obras de infraestrutura (energia elétrica, estradas), diversifica-ção industrial - a partir da realização de um antigo sonho de implantação de uma siderurgia na Grande Vitória - e a diversificação agrícola - a partir de incentivos fiscais e a criação de linhas de crédito rural.

Com essas articulações, também obteve sucesso a in-vestida junto ao governo federal para a transferência da sede da Cia. Vale do Rio Doce (CVRD) para Vitória. Além da inauguração da nova sede da CVRD na capital capi-xaba em abril de 1961, conseguiu-se também a nomea-ção do então superintendente da Companhia no Espírito Santo para sua presidência: o engenheiro Eliezer Batis-ta (Silva, 1995, p. 359).

Esse era também o período de uma significativa inter-venção federal sobre a monocultura cafeeira na região capixaba. A erradicação dos pés de café tidos como “an-tieconômicos” destruiu aproximadamente 53,8% dos cafe-eiros plantados no estado, sob o argumento de sua baixa produtividade e reduzida qualidade (Rocha, Morandi, 1991, p. 45-55).

Tabela 1 – Percentual da população cafeeira e da área cultivadacom café atingidas pela erradicação

Fonte: Rocha, Morandi (1991), p. 55

Na verdade, estava sendo operado naquele momento o primeiro grande movimento de destruição da produção agrícola baseada na pequena propriedade familiar.

“A erradicação de cafeeiros acabou gerando dois movimentos interessantes no sentido de acelerar o processo de urbanização, principalmente da Grande Vitória. Ao

EstadosCafeeiros destruídos

Área liberada

São Paulo 26,0 20,5

Paraná 28,4 19,8

Minas Gerais 33,0 41,2

Espírito Santo 53,8 71,0

Outros 29,4 29,9

Média Brasil 32,0 30,5

Page 138: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

137

mesmo tempo, foi possível observar a transformação de ativos antes imobilizados nos cafezais em ativos monetários, através das indenizações aos cafeicultores que tiveram de queimar a plantação sob sua responsabilidade. Mas, também, o Programa Federal acabou destruindo as chances de permanência no campo de muitos pequenos agricultores que, endividados, perdiam ali o crédito necessário à rolagem de seus compromissos com os comerciantes financiadores das seguidas plantações de baixa produtividade. Muitas das famílias que constituíam a leva de pequenos proprietários não tiveram alternativas a não ser a migração para centros urbanos em busca de novas oportunidades.”

(Gomes, 1998, p. 42).

Todos esses movimentos se combinavam naquele pe-ríodo. Eram os sinais objetivos que permitiam a adequa-ção das condições estruturais da região capixaba ao novo impulso de urbanização-industrialização que se preten-dia realizar, ainda que num processo bastante embrioná-rio e gradual, extremamente tardio em comparação com os demais estados do Sudeste brasileiro. Neste contexto de intervenções de nível federal e de esforços locais pela integração aos mercados em plena expansão, começam a se estruturar no Espírito Santo as condições econômi-cas e sociais, mas, também, aquelas de caráter político e ideológico, para a realização dos grandes investimentos externos voltados para a produção em larga escala de se-mi-elaborados para exportação.

Cabe destacar, contudo, que esse não foi um processo tranquilo. Especialmente no campo político, foram ne-cessárias fortes doses de intervenção e de ação repres-sora do Estado, para colocar em execução os planos dos grupos de interesse pela industrialização da Grande Vi-tória, pois tratava-se de um grande rearranjo geopolíti-co interno, envolvendo interesses bastante distintos e até

antagônicos: campo versus cidade, grande indústria na capital versus agroindústrias no interior, organização do trabalho em base familiar versus pressão pelo assalaria-mento, entre tantos outros. Assim, a vitória dos interes-ses industrializantes só começou a se consolidar após o golpe militar de 1964, com as fortes intervenções da di-mensão federal do Estado, determinando “pelo alto” como se daria a localização dos pesados investimentos da des-centralização da indústria de base no Brasil, incluindo a região do Espírito Santo.

Esse foi, portanto, o contexto em que se iniciaram os primeiros investimentos na implantação da monocultu-ra de eucalipto na região capixaba. Como se vê adiante, a acomodação dos interesses das elites locais e a repres-são às comunidades tradicionais, às famílias camponesas e aos movimentos populares formaram a arena propícia à implantação, de fora para dentro, dos chamados grandes projetos de intervenção no Espírito Santo.

a montagem das condições para a monocultura no norte capixaba

Não é de se espantar que empresários ligados à produ-ção de celulose procurem negar todo o processo de arti-culação política que resultou nos programas de incentivos fiscais e nos arranjos para a definição da localização in-dustrial das plantas planejadas.

“A localização do Projeto no estado do Espírito Santo foi espontânea, tomada pela Ecotec, Economia e Engenharia Industrial S.A., em 1966, e resultou de estudos realizados sob a liderança do Prof. Antônio Dias Leite Júnior.”2

Mas, de fato, muitas negociações foram realizadas até a formulação dos esquemas de viabilidade da produção de celulose de eucalipto para exportação a partir dos por-

O golpe militar de 1964 foi determinante para a implantação da Aracruz no Espírito Santo: atendimento dos interesses das elites locais

Page 139: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

138

tos capixabas. Na visão do ex-governador Arthur Carlos Gerhardt Santos:

“O projeto da Aracruz começou no governo do Christiano. A gente começou a ajudá-los lá, [a partir da] legislação que foi criada no governo Médici, de incentivo ao reflorestamento. Foi formulada pelo ministro Antônio Dias Leite. Então, com essa política, um grupo de empresários brasileiros, empresários grandes, o grupo Orax, o grupo Unibanco, (...) vários grupos usaram esse tipo de investimento para construir as florestas que depois propiciaram a criação da indústria de celulose.”

(Gomes, 1998, p. 69-70)

Relações empresariais, políticas e até pessoais forma-vam um conjunto de articulações envolvendo personali-dades locais e internacionais. Um estudo divulgado pela FAO (agência da Organização das Nações Unidas voltada para alimentação e agricultura), em meados dos anos de 1960, apontava para o crescimento da demanda por ce-lulose em nível mundial bem acima da capacidade insta-lada, especialmente no que se refere à oferta de madeira pelos países tradicionalmente produtores. De posse desse documento, várias articulações empresariais e iniciativas governamentais se combinavam na busca de novas opor-tunidades para a celulose de mercado no Brasil e, com isso, o Espírito Santo acabou ficando no centro das priori-dades para a expansão da oferta de madeira, a partir dos estudos encomendados pela Cia. Vale do Rio Doce (com sede neste estado naquele momento).

“A empresa de consultoria Ecotec, com sede no Rio de Janeiro, já vinha realizando trabalhos para a Companhia Vale do Rio Doce, na busca de projetos para a estratégia de diversificação dessa empresa, em que uma das linhas de estudo dizia respeito à exploração de reflorestamentos comerciais com eucalipto.”

(Pereira, 1998, p. 147)

Técnicos da Ecotec foram designados a realizar estu-dos sobre o mercado mundial de celulose com o objetivo de avaliar a oportunidade de sua produção em larga esca-la internamente. Esses técnicos recuperaram estudos, re-alizados por pesquisadores brasileiros em consórcio com centros de pesquisa dos Estados Unidos, que apontavam a monocultura de eucalipto em terras tropicais como a solução para o problema da oferta inelástica de madeira pelos países de terras frias. A combinação de interesses envolvidos naquele momento resultou numa articulação inicial de onze empresários, que se moveram em torno dos serviços da Ecotec, naquela oportunidade, para via-bilizar estudos de localização dos projetos de refloresta-mento com eucalipto para a produção de celulose.

“Os resultados da pesquisa foram apresentados a onze

empresários. Dez do Rio de janeiro e um de São Paulo, os quais assinaram contrato de imediato com a Ecotec; eram eles: Antônio Dias Leite Jr., Erling S. Lorentzen, Otávio Cavalcanti Lacombi, Oliva Fontenelle de Araújo, Fernando Machado Portella, Eliezer Batista, João Maciel de Moura, Álvaro Soares, Afonso Soares, José Chaldas e Renato Grajiollo”.

(Dalcomuni, 1990, p. 188)

As condições endafo-climáticas, o baixo preço das ter-ras e a topografia plana adequada à mecanização agrícola foram os principais fatores apontados nos estudos técni-cos como favoráveis à localização das plantações de eu-calipto na Zona dos Tabuleiros, situada no litoral norte do Espírito Santo.

A articulação política desse grupo de empresários tor-nou-se definitiva quando conseguiram do governo federal várias oportunidades de financiamento do novo negócio. Além dos benefícios fiscais para as plantações de euca-lipto definidos pela Lei nº 5.106/66, ainda existiam na-quele momento as linhas de financiamento vinculadas ao Instituto Brasileiro do Café (IBC)/Gerca, do Ministério da Agricultura, voltadas para a diversificação agrícola e in-dustrial nos estados atingidos pelos programas de erradi-cação de cafezais, como foi o caso do Espírito Santo.

Mas, nas palavras da diretoria da Aracruz:

“A justificativa básica da localização do Projeto Aracruz, neste estado, foi confirmada na prática, e consolidada pela cordialidade, flexibilidade, inteligência e capacidade de progredir no trabalho, características positivas da população do Espírito Santo.”

(Brandão, 1975)

O senso de oportunidade e a capacidade de articula-ção desses empresários ficaram nítidos pelo curto prazo com que conseguiram viabilizar todas as condições fa-voráveis aos investimentos pretendidos. Imediatamente após a confirmação dos primeiros resultados dos estudos da Ecotec, em setembro de 1966, foram articuladas as for-mas de financiamento, via incentivos fiscais. Também de imediato, foram viabilizadas as formas para a aquisição de terras e, uma vez constituída a empresa Aracruz Flo-restal S.A., em janeiro de 1967, iniciaram-se a captação de recursos e, já em 1º de setembro de 1967, iniciaram-se os primeiros plantios de eucalipto pelo grupo econômi-co emergente.

“Definida a localização, os sócios iniciam a aquisição de terras. A primeira gleba de terras foi adquirida junto à Companhia Ferro e Aço de Vitória (Cofavi) – num total de 8 mil ha, a partir da qual passaram a adquirir mais terras em seu entorno, desencadeando um processo de especulação com o preço da terra em Aracruz. Os municípios de

Page 140: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

139

Conceição da Barra e São Mateus foram os escolhidos para o prosseguimento das aquisições até que se regularizassem os preços da terra em Aracruz. Retornaram, posteriormente, e prosseguiram as aquisições naquele município.”

(Dalcomuni, 1990, p. 188-9)

Naquele contexto de euforia, o governo do Espírito Santo tratou de adequar a institucionalidade interna de financia-mento aos plantios de eucalipto, radiante com a possibilida-de de novos investimentos externos na região capixaba. Era o momento em que se iniciavam as nomeações federais dos governadores estaduais após o golpe militar de 1964. Com a posse do governador Christiano Dias Lopes, as condições internas para a implantação dos projetos de monocultura de eucalipto se consolidavam em meio aos demais programas de industrialização proposto pelo novo governo: “o governa-dor Christiano Dias Lopes Filho, informado do Projeto as-segurou, durante todo o seu governo, o apoio necessário ao seu desenvolvimento” (Brandão, 1975). O governo estadual, inclusive, também contratou a Ecotec para a elaboração de estudos de viabilização de seus programas de fomento à sil-vicultura capixaba (Dalcomuni, 1990, p. 190).

Cabe aqui também destacar o papel da Federação das Indústrias do Estado do Espírito Santo (Findes). Esta fe-deração encomendou à empresa Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Social e Econômico (Ined) um Diagnóstico para o Planejamento Econômico do Estado do Espírito Santo, o qual serviu de base para o plano de governo de Christiano Dias Lopes. Este documento, por exemplo, foi citado em boa parte no discurso de posse do governador. O estudo do Ined apontava que as atividades da agricultura tradicional capixaba (café, cana de açúcar, extração de madeira, cacau) não apresentavam grandes perspectivas, exigindo uma reorientação das políticas do governo estadual para o setor (Silva, 1993, p. 111). As arti-culações da Findes também resultaram na intensificação de incentivos fiscais com base no Imposto sobre Circula-ção de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), um tributo estadual.

“Esses incentivos fiscais foram readequados pela Lei nº 2.469, de 23 de dezembro de 1969, que determinava uma bonificação de até 80% do ICMS devido para instalações de novas plantas industriais e projetos agropecuários. Decreto posterior ampliaria esses benefícios fiscais para a aquisição de máquinas e equipamentos, através de conversão das compras em créditos compensáveis no ICMS devido.”

(Gomes, 1998, p 51-2)

Por outro lado, em dezembro de 1969, também ocor-reu a conversão definitiva da antiga Companhia de De-senvolvimento do Espírito Santo (Codes) em Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes), tendo na presidência Arthur Carlos Gerhardt Santos, depois in-

dicado pelos militares como sucessor de Christiano Dias Lopes. Com essa nova personalidade jurídica, o Bandes passou a orientar as linhas de financiamento ao plantio de eucalipto no território capixaba, criando, assim, novas oportunidades para captação de recursos pelas empresas interessadas(Dalcomuni, 1990, p. 190).

Outro esforço do governador Dias Lopes em sua arti-culação com o governo federal resultou no Decreto Lei nº 880 instituindo o Fundo de Recuperação Econômica do Espírito Santo (Funres), baseado na renúncia fiscal de 33,3% do Imposto de Renda e de 5% do ICMS, o qual pas-saria a financiar projetos industriais em nível regional.

“Ao mesmo tempo, também foram operadas negociações com o governo federal para a superação do mais grave entrave à industrialização: a baixa oferta de energia no Espírito Santo. Resultou daí, a fusão das empresas Cia. Central Brasileira de Força Elétrica (CCBFE) e Espírito Santo Centrais Elétricas S.A. (Escelsa), subsidiária da Eletrobrás, o que propiciou investimentos em hidroelétricas e em redes de transmissão e de distribuição de energia.”

(Silva, 1993, p. 198-9)

Estava, assim, montado boa parte do aparato institucio-nal que operaria o sistema de incentivos fiscais no Espí-rito Santo, cujas facilidades contribuíam, mesmo que de forma marginal, para o financiamento das novas planta-ções de eucalipto, preparando o caminho para a viabilida-de dos investimentos industriais, que teriam ainda várias outras contribuições de maior peso por parte do gover-no federal.

os anos de chumboNa virada para os anos de 1970, o povo brasileiro expe-

rimentou o período mais duro do autoritarismo instalado desde o golpe militar de 1964. Foi o momento de exacer-bação do rigor do Ato Institucional n° 5 (AI-5), impos-to desde 1968, quando ocorreu a suspensão de vários dos direitos individuais e coletivos, ao mesmo tempo em que os militares concentravam rigidamente a arrecadação tri-butária e as decisões sobre políticas de desenvolvimento no governo federal, subordinando as iniciativas regionais de fomento.

Desde a posse do presidente Emílio Garrastazu Mé-dici, em outubro de 1969, a economia brasileira vivia as expectativas de promoção de investimentos priva-dos, no que convencionou-se chamar de “Milagre Bra-sileiro”. Num contexto internacional de excesso de dólares para investimentos, o governo federal traçou uma política de promoção de empréstimos externos pelas empresas nacionais e multinacionais estrangei-ras, numa perspectiva de ampliação das exportações brasileiras, dentro do I Programa Nacional de Desen-volvimento (I PND).

Page 141: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

140

“Num ambiente de instabilidade para ampliação dos parques industriais nas economias ditas centrais, a estratégia dos grandes conglomerados multinacionais foi redirecionada para a busca de controle de novos mercados nas economias de capitalismo tardio. Por outro lado, as condições favoráveis à tomada de empréstimos no ‘euromercado’ passou a atrair interesses por essa opção de financiamento de políticas econômicas, justamente naqueles países escolhidos como refúgio para as estratégias competitivas dos grandes conglomerados econômicos.Assim, a economia brasileira experimentava o auge do crescimento econômico no início dos anos de 1970. Alimentada por um novo ciclo de investimentos estrangeiros, foi sendo ultrapassada a fase de crescimento baseada na utilização de capacidade ociosa. A taxa de crescimento anual média situava-se em torno de 11%, considerada bastante elevada.”

(Gomes, 1998, p. 58)

Aquele contexto de expansão econômica com base na pro-moção das exportações, no investimento direto estrangeiro e na captação de financiamentos externos, acabou estimulan-do a indústria de celulose de mercado no Brasil. Atenden-do aos apelos das empresas interessadas na ampliação dos benefícios fiscais ao plantio de eucalipto, o governo federal baixou o Decreto Lei n° 1.134/70, criando uma modalida-de de financiamento diferenciada em relação àquela em-pregada a partir da Lei n° 5.106/66. Se antes os empresários precisavam realizar os investimentos nas plantações de eu-calipto com recursos próprios, para somente depois serem beneficiados pelos incentivos fiscais, com o novo Decreto Lei as empresas passaram a ser financiadas desde o início do projeto, a partir de um fundo criado no Banco do Brasil, cuja base de capitalização era a renúncia fiscal de 50% do Imposto de Renda recolhido por optantes pelo fundo.

Por outro lado, a política de abertura de participação de blocos de capital estrangeiro na ampliação do parque in-dustrial de celulose e papel no Brasil potencializava as oportunidades de novos investimentos, mesmo que ainda aquém da escala pretendida pelos projetos de produção de celulose para a exportação.

“A política de atração de investimentos externos implementada no período, por exemplo, carreou para o setor de celulose, papel e papelão 2,1% do total dos investimentos diretos estrangeiros do triênio 1971-73, representado um montante de US$ 40.830.000,00 (...), volume de recursos 2,33 vezes superior aos efetuados durante o Plano de Metas.”

(Dalcomuni, 1990, p. 66)

Com as experiências de sucesso na expansão da produ-ção de celulose de mercado no Brasil, propiciou-se gran-des expectativas em avançar na ampliação do plantio de eucalipto no território capixaba com vistas à produção de

celulose de mercado. No início dos anos de 1970 toma-va posse no governo estadual o, até então, presidente do Bandes, Arthur Carlos Gerhardt Santos, o qual teve seu governo marcado pela tecnocracia no controle das deci-sões sobre as políticas públicas. A postura política adota-da pelo novo governo tornava a administração regional como uma extensão das agências federais de fomento, em cada área de intervenção e de promoção do crescimento econômico, dando uma roupagem aparentemente técnica à sua própria administração (Gomes, 1998, p. 66).

No campo político, o cerceamento da cidadania e a di-fusão da ideologia do “este é um país que vai pra frente” também contribuíam para a implantação dos projetos de expansão das plantações de eucalipto com vistas à sua transformação industrial em celulose. Após alguns acor-dos internos entre as representações dominantes, partiu-se para a legitimação social, aproveitando-se as restrições autoritárias às manifestações contestatórias, especialmen-te no que tange aos efeitos sobre a devastação ecológica e à poluição ambiental. Assim, vários eram os argumentos favoráveis à instalação dos chamados Grandes Projetos no Espírito Santo: “A posição do governo autoritário assu-mida na Conferência Mundial de Meio-Ambiente, em Es-tocolmo, 1972, foi a de que a pior poluição era a miséria. Ou seja, defendia-se o crescimento econômico a qualquer custo” (Rodrigues, Simões, 1988, p. 51).

Em terras capixabas essa perspectiva se traduzia de forma bastante semelhante, como se verifica em docu-mentos oficiais:

“Os problemas de poluição e qualidade de vida, como todos os riscos acarretados como decorrência dos Grandes Projetos, emergem do despreparo do subdesenvolvimento para o choque com o superdesenvolvido. Da incapacidade local para assimilar o choque, reorientá-lo, complementá-lo. A organização social de uma área subdesenvolvida funciona como fator de resistência a qualquer mudança efetiva. Adicionar simplesmente um enclave isolado não exige a iniciativa de mudança. Associar-se para o desenvolvimento, sim.No choque do superdesenvolvido com o subdesenvolvido, ou nos ajustamos rápido para uma associação de iguais ou a comunidade capixaba entrava o processo e se marginaliza, e se subordina, e se desmantela.”

(Bandes, 1973, p. 69-70)

os arranjos para o projeto industrialde celulose

Uma vez preparadas as condições objetivas e subjeti-vas, o grupo de empresários mencionado anteriormente avançou na consolidação do projeto industrial de celulo-se no Espírito Santo. Foi contratada a Sandwell, empresa canadense, vinculada ao Grupo Billerud, da Suécia, para iniciar os estudos de viabilidade da planta industrial, em-

Page 142: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

141

presa essa que mais tarde viria a compor o capital acioná-rio do Grupo Aracruz. Resulta desses estudos, concluídos em 1971, apontamentos sobre a necessidade de adapta-ção das plantações de eucaliptos a uma estrutura de ma-nejo adequada aos propósitos da produção de celulose em larga escala. Na sequência de evolução dos estudos de viabilidade econômica, foi contratada a empresa Jaakko Pöyri, da Finlândia, cujos estudos reafirmaram a viabi-lidade econômica do projeto, desde que se elevasse a es-cala mínima de produção de 750 t/dia para 1.300 t/dia. Com isso, em abril de 1972, foi criada a empresa Aracruz Celulose S.A., que se constituiria a partir daí como uma holding, convertendo-se a Aracruz Florestal numa subsi-diária do Grupo Aracruz (Dalcomuni, 1990, p. 189).

Porém, o grande salto para a consolidação dos projetos de produção de celulose de mercado em larga escala viria a partir de 1974. Um novo contexto internacional, com o impacto do “1° Choque do Petróleo”, provocou uma drás-tica redução nas taxas de crescimento. Mas isso parecia não convencer os militares instalados no poder central, os quais propunham naquele momento uma avalanche de investimentos diretos estatais no Brasil, com base no endividamento externo.

“Em dezembro de 1974, o General Ernesto Geisel (recém empossado presidente) e seu ministro Mário Henrique Simonsen lançaram o II Plano Nacional de Desenvolvimento, mais conhecido como II PND. Baseado no ufanismo de que o País seria uma ilha de tranquilidade num mar revolto, o Estado brasileiro iniciou uma série de investimentos produtivos, ao mesmo tempo em que ampliou o leque de linhas de financiamento subsidiado, cujos objetivos básicos seriam: i) a internalização da transformação de diversos insumos industriais, antes exportados (minério de ferro, p. ex.); ii) ampliação da produção interna de alguns produtos, nos quais o Brasil apresentasse vantagens comparativas, como a dotação de recursos naturais; iii) redução da dependência energética em relação ao petróleo importado, através da ampliação dos investimentos na prospecção desse mineral e do apoio à produção de álcool a partir da cana-de-açúcar (Pró-Alcool); iv) crescimento da exportação de manufaturados, visando reduzir os desequilíbrios na Balança de Pagamentos; v) orientação dos investimentos estatais na área de insumos básicos para a periferia regional brasileira. O financiamento do Plano estava assentado em empréstimos externos diretamente tomados pelas agências e empresas estatais e na atração de investimentos diretos estrangeiros para a formação de joint ventures.”

(Gomes, 1998, p. 60)

Nessa perspectiva de reversão das baixas taxas de crescimento da economia brasileira no governo Gei-sel, procedeu-se pesados investimentos estatais em as-sociação com blocos de capital estrangeiro. Assim, as

joint ventures se apresentavam como o modelo oportu-no à constituição das empresas produtoras de celulose de mercado para exportação naquele período. Imediata-mente após o lançamento do II PND, o governo federal atendeu aos reclames empresariais, divulgando o I Pro-grama Nacional de Papel e Celulose, instituindo o mo-delo de Distritos Florestais, com o objetivo de promover um zoneamento florestal, o qual seria a base para a con-cessão dos incentivos fiscais em vigor.

“Esses distritos florestais abrangiam áreas dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pará. Além disto, o governo instituiu o Fiset (Fundo de Investimentos Setoriais – pesca, turismo e reflorestamento) (Decreto Lei n° 1.376). Constituiu-se, também nesse período, uma Comissão de Política Florestal composta por membros de vários ministérios, representantes do setor, do Estado Maior das Forças Armadas, sendo presidida pelo IBDF [Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal]. Em complementação a essas medidas institucionais, a canalização de vultuosos financiamentos via BNDE [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico], a participação societária do Estado brasileiro através do BNDE e de estatais e a concessão de incentivos e subsídios à exportação conferiram ao Estado brasileiro um papel fundamental na evolução da indústria de celulose no Brasil.(...) A opção, através do Sistema BNDE e de estatais (CVRD), pelo ‘crescimento com endividamento’ e a priorização da produção de celulose no II PND possibilitou o carreamento de US$ 466.846.200,00 (...), para o setor celulósico-papeleiro, sob a forma de empréstimos, no período 1974-80.”

(Dalcomuni, 1990, p. 85-6)

Nesse novo contexto, o Grupo Aracruz iniciava o proces-so de consolidação de sua primeira grande planta indus-trial. Nas palavras de um de seus dirigentes na época:

“A fábrica da Aracruz Celulose S.A. produzirá, por ano, 400.000 toneladas de celulose branqueada, fibra curta, 92° de brancura, podendo competir, em qualidade, no merca-do internacional. Entrará em funcionamento no segundo se-mestre de 1977. Será usado o processo sulfato, contínuo e automático. A área industrial total é de 2.000.000 m². O con-sumo de madeira será de 4.500 a 5.000 m³ sólidos por dia ou 1.500.000 a 1.700.000 m³ por ano, com casca.”

(Brandão, 1975, p. 6)

O malogro dos primeiros contatos, com vistas ao finan-ciamento junto às agências multilaterais, como o Banco Mundial (BIRD), levou a uma investida mais direta às li-nhas de crédito subsidiado do BNDE. Dessas negocia-ções com o governo federal resultou, em 21 de agosto de 1975, o acordo fundamental para a consolidação da joint

Page 143: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

142

Ano Área plantada

1968 3.252,55

1969 8.649,18

1970 13.713,43

1971 22.955,78

1972 40.567,96

1973 50.499,57

1974 67.780,74

1975 89.642,60

1976 106.104,54

1977 121.781,26

1978 129.827,61

1979 131.356,61

venture para a produção de celulose de mercado no Espí-rito Santo, o que significava a montagem de um orçamen-to global de aproximadamente US$ 536 milhões:

“No que se refere ao financiamento, o Sistema BNDE promoveu 45% do total (32% em financiamento do BNDE e 13% da Finame); o restante do financiamento do projeto foi composto por 36% de capital próprio e 19% de financiamentos externos, constituindo-se no maior financiamento concedido até então a uma empresa privada. Esse aporte de recursos pelo BNDE (...) constituía-se dos seguintes elementos: 8.222.494 ORTNs com recursos do Fundo de Reaparelhamento Econômico; 3.599.396 ORTNs para subscrição de ações da Aracruz; 950.784 ORTNs para participação societária da Fibase (ações sem direito a voto). Além disso, foi concedido à empresa um aval de US$ 44 milhões a financiamentos externos para aquisição de máquinas e equipamentos. E a Finame financiou, ainda, US$ 60 milhões, o que representava 80% do total das compras de equipamentos nacionais (cf. A Gazeta, 31 de outubro de 1978). (...) taxas de juros de 3% ao ano e correção monetária inicial de no máximo 20% ao ano, sendo que qualquer excesso eventual seria abatido do imposto de renda.”

(Dalcomuni, 1990, p. 200)3

O governo estadual também contribuiu nesse ar-ranjo para o financiamento ao Grupo Aracruz. Em março de 1975, o advogado Élcio Álvares foi nomeado para o go-verno estadual pelos militares, em substituição a Arthur Carlos Gerhardt Santos. Demonstrando certa reversão nos critérios de indicações, ele abandonou a linha técnica e adotou uma perspectiva mais favorável aos políticos lo-cais. Enquanto isso, o ex-governador partia em direção à presidência da Aracruz Celulose:

“Com a formalização do acordo de financiamento da unidade de celulose com o BNDE, no segundo semestre de 1975, Arthur Carlos Gerhardt Santos assumia a presidência da Aracruz Celulose S.A., base da joint venture que reunia ações de propriedade estatal federal, associadas às ações de propriedade de empresários nacionais e de unidades de capital estrangeiras.”

(Gomes, 1998, p. 72)

O novo governo facilitava a recuperação do poder da Findes na tomada de decisões sobre políticas públicas, mas a federação praticava uma posição dúbia em relação aos grandes projetos.

“Em sua ação institucional mais global, a Findes continuava vacilante em seu apoio à implantação efetiva dos grandes projetos. Mesmo mantendo a expectativa quanto aos futuros efeitos multiplicadores dos novos empreendimentos, as atenções dos proprietários de unidades de capital local estavam voltadas

para os efeitos imediatos relativos aos financiamentos estatais dirigidos à construção infraestrutural. O governo articulava um empréstimo externo de US$ 10 milhões para a realização do programa rodoviário estadual. Por outro lado, a Findes procurava defender seus interesses sobre o aparato local de controle da arrecadação e dos gastos públicos, mas, mesmo pressionando politicamente o Poder Executivo, não conseguiu barrar a concessão de financiamentos via Funres à Cofavi e à Aracruz Celulose S.A..”

(Gomes, 1998, p. 73)

Mesmo que pouco significativo, em relação aos apor-tes de recursos do BNDE, o Grupo Aracruz forçou um embate com as elites industriais locais e obteve, em junho de 1977, uma linha de financiamento junto ao Geres, a partir do Funres, num volume total de Cr$ 140 milhões (Dalcomuni, 1990, p. 201).

A prioridade do governo Élcio Álvares aos grandes pro-jetos se revelava, também, no veto ao Projeto de Lei nº 93, de 20 de dezembro de 1977, de iniciativa do Poder Legis-lativo, o qual previa a proibição do avanço das plantações de eucalipto em áreas propícias à mecanização agríco-la. Além disso, o governo estadual isentou de impostos a transmissão de bens imóveis para os casos de terrenos destinados ao reflorestamento (Silva, 1993, p. 303-4).

Durante essa fase de implantação do projeto industrial de celulose no território capixaba ampliaram-se as planta-ções de eucalipto. A tabela a seguir demonstra a expansão das plantações tidas como reflorestamento pelos órgãos oficiais. Pode-se afirmar que quase a totalidade dessas novas áreas foram ocupadas com eucalipto para celulose.

Tabela 2 – Evolução do Plantio de Árvores Exóticas no Espírito Santo – 1968-79 • (Em ha)

Fonte: Dalcomuni, 1990, p. 193

Page 144: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

143

Com a consolidação do projeto industrial, a participa-ção acionária na Aracruz Celulose passou por grandes alterações. Uma vez resolvido o problema do financia-mento, com grande peso do BNDE nas operações de crédito, a joint venture se consolidava com a seguinte composição acionária:

Tabela 3 – Participação acionária na Aracruz Celulose S. A.na implantação da Fábrica A

Fonte: Dalcomuni, 1990, p. 201

Verifica-se, pelos dados acima, que o Grupo Aracruz passou por um processo de grande centralização de ca-pital, à medida que a joint venture foi se consolidando com peso significativo do BNDE e de empresas estran-geiras em sua composição acionária. Durante o período de maturação dos investimentos e dos primeiros anos de operação, o BNDE apoiou os empreendimentos do Grupo Aracruz com desembolsos e avais, distribuídos conforme a tabela seguinte.

Tabela 4 – Apoio do BNDE à Aracruz Celulose – 1974/88

Fonte: Dalcomuni, 1990, p. 201

A associação ao capital estrangeiro foi fundamental para o acesso à tecnologia e aos canais de comercialização. A con-tratação da empresa finlandesa de consultoria Jaakko Pöyry facilitou os contatos internacionais, em especial com a Celbi, de Portugal, que já possuía experiência na produção de ce-

Acionista Participação

BNDE 25,90%

Cia. Souza Cruz 25,90%

Fibase 14,72%

Grupo Billerud 6,07%

Grupo Lorentzen 5,08%

Vera Cruz Agroflorestal 3,37%

Grupo Moreira Salles 2,63%

391 acionistas minoritários 16,94%

Ano Desembolsos e avais

1974 US$ 44 Milhões

1974 Cr$ 867 Milhões

1975 Cr$ 429 Milhões

1975 Cr$ 110 Milhões

1976 Cr$ 85 Milhões

1976 US$ 90 Milhões

1977 Cr$ 31 Milhões

1977 Cr$ 11 Milhões

1977 US$ 20 Milhões

1977 US$ 40 Milhões

1978 Cr$ 457 Milhões

1978 Cr$ 280 Milhões

1978 Cr$ 186 Milhões

1978 US$ 10 Mil

1978 US$ 15 Mil

1979 Cr$ 88 Milhões

1980 US$ 25 Milhões

1980 US$ 10 Milhões

1988 Cr$ 27.965 Mil

O setor de papel e celulose é o terceiro em emissão de gases de efeito estufa: grande responsável pelo aquecimento climático do planeta

Page 145: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

144

lulose a partir do eucalipto e que, inclusive, passou a compor a diretoria da Aracruz Celulose, com a presença do senhor News Palls. Além disso, foi contratada a empresa Krebs, da França, para o repasse de know how sobre as instalações eletroquímicas. Os canais de comercialização foram sendo abertos à medida que se consolidavam os acordos com o Grupo Billerud, tradicional produtor de celulose em nível internacional (Dalcomuni, 1990, p. 205-6).

Coube ao Estado brasileiro o suporte à viabilidade da logística de transportes. Além de toda a infraestrutura ferroviária do corredor Vitória-Minas, a Cia. Vale do Rio Doce (CVRD) teve um papel fundamental na construção do Porto de Barra do Riacho, o Portocel. A CVRD detinha estudos de viabilidade portuária no litoral capixaba, que já nos anos de 1950 apontavam para o município de Ara-cruz como possível local para a instalação de terminais portuários para o minério de ferro, para o desembarque de carvão, bem como para seus projetos de diversifica-ção logística. Uma vez abandonado o projeto para o trans-porte de minério e carvão, após a opção pela Ponta de Tubarão, em Vitória, a CVRD repassou seu aporte para o projeto celulósico.

“Como exemplo, citamos o porto. Inicialmente, obtivemos a concessão para construir e operar um terminal portuário privativo da Aracruz Celulose S.A.Atualmente, está sendo concluída uma negociação, para a transformação do terminal portuário em porto, principalmente para exportação de celulose branqueada, sob o controle do DNPVN [Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis] e com participação da Aracruz e da CVRD, que fará, ainda, chegar até o local a sua ferrovia.Será um porto com 14,5 m de calado, podendo receber navios de até 66.000 tdw [unidade de tonelagem dos navios] e com possibilidade de expansões e construção de vários cais. Abre-se, assim, mais uma porta do progresso rápido do Espírito Santo.Chegou-se a uma solução de interesse nacional, somando-

se ao DNPVN a colaboração da Aracruz e da CVRD, com apoio decisivo do BNDE.”

(Brandão, 1975, p. 9-10)

A consolidação dos projetos do Grupo Aracruz no Espírito Santo e os primeiros resultados operacionais contribuíram significativamente para o desempenho das exportações de celulose pelo Brasil. Quase toda a produção da Aracruz Ce-lulose esteve voltada para a exportação. Com isso, a empre-sa chega a participar com 50,29% das exportações brasileiras de pasta de eucalipto, em 1979, e em 1987 alcança aproxi-madamente 60% do total da celulose exportada pelo País. Nesse período, a estrutura organizacional do grupo consti-tuía-se de cinco empresas com unidades produtivas, de pes-quisa, de comercialização e de seguros:

“1) Aracruz Celulose S.A. – Responsável pelo processo industrial. É composta por três unidades:a) Unidade de produção de celulose fibra curta branqueada – tipo Kraft, com capacidade instalada de 475.000 t/ano;b) Unidade de produção de cloreto de sódio – utilizado no branqueamento da madeira, com capacidade instalada de 15.170 t/ano;c) Unidade de produção de cloro soda – utilizada no cozimento da madeira, com capacidade instalada de 12.250 t/ano de cloro e 13.800 t/ano de soda cáustica.2) Aracruz Florestal S.A. – Empresa subsidiária responsável pela produção de madeira e desenvolvimento de pesquisa florestal.3) Aracruz Trading e Aracruz Internacional – Sediadas no exterior, responsáveis pelo apoio aos negócios externos e desenvolvimento de novos mercados.4) Portocel – Encarregada da administração do terminal portuário de Barra do Riacho.5) Aracruz Corretora de Seguros – Presta serviços às demais empresas do grupo agenciando seguros.”

(Dalcomuni, 1990, p. 202-3)

Além de mais de 100 mil hectares de terras distribuí-das entre os municípios de Aracruz, São Mateus e Con-ceição da Barra, compunha ainda o patrimônio do Grupo Aracruz, naquele período, um bairro residencial (Bairro Coqueiral), construído para abrigar parte do pessoal em-pregado e familiares, com estrutura para 850 habitações numa área de aproximadamente 1,6 milhão de m² (Dalco-muni, 1990, p. 203-4).

a primeira grande ampliação da produção de celulose pela aracruz

Em meados dos anos de 1980 processava-se o fim do re-gime militar no Brasil. Entretanto, a transição “pelo alto” para os primeiros governos civis não alterou significati-vamente as formas autoritárias como se decidiam a am-pliação dos grandes projetos no Espírito Santo. Na virada

A mecanização é um dos insumos largamente utilizados pela Aracruz

Page 146: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

145

para os anos de 1990, emergia o processo de privatizações de empresas em nível nacional, num contexto de acirra-mento da crise fiscal do Estado brasileiro, mergulhado em dificuldades de administração do endividamento externo, exatamente quando a baixa capacidade dos países deve-dores de honrar seus compromissos ameaçava os merca-dos internacionais de crédito.

Foi nesse novo contexto de crise fiscal e de privatiza-ções que ocorreu a primeira grande alteração da parti-cipação do Estado brasileiro na composição acionária do Grupo Aracruz, quando o BNDE iniciou o processo de alienação em bolsa de sua participação societária, cujas ações foram adquiridas pelo Banco Safra, que passou a controlar 25,90% do capital social do grupo.

Apesar da desastrosa política industrial na virada para os anos de 1990, o BNDES (agora com o “S” de social) mantinha suas linhas de financiamento concentradas nos mesmos grupos econômicos, como sempre foi sua tradi-ção (Najberg, 1989). Os constantes desequilíbrios no Ba-lanço de Pagamentos brasileiro, devido ao agravamento da crise da dívida externa, determinavam as justificati-vas para a seleção de prioridades, colocando a produção de semi-elaborados para exportação como alvo de exce-lência para os financiamentos públicos subsidiados. Com isso, mais uma vez, o Grupo Aracruz contou com a apro-vação de linhas de financiamento e de participação do BNDES, na ordem de U$ 1.040.280.000,00 (Dalcomuni, 1990, p. 240), para promover a primeira grande expan-são das unidades industriais, que passaria a produção de celulose de 491.000 t/ano para 1.100.000 t/ano, na virada para a década de 1990.

Os arranjos para o financiamento dessa primeira ex-pansão das unidades industriais de Barra do Riacho, com a construção da Fábrica B, exigiram uma nova centraliza-ção de capital e uma alteração significativa na composição acionária do Grupo Aracruz, trazendo de volta inclusive a BNDES-Par a uma importante participação no capital so-cial da empresa.

Tabela 5 – Participação acionária na Aracruz Celulose S. A. na implantação da Fábrica B

Naquele momento, da primeira grande expansão das unidades industriais do Grupo Aracruz no Espírito Santo, quase todas as áreas ocupadas com plantações de árvores exóticas no território capixaba se destinavam à produção de celulose de fibra curta branqueada.

Tabela 6 – Área de plantações de árvores exóticas por empresa e objetivo, Espírito Santo – 1989

Fonte: Ibama. Apud. Dalcomuni, 1990, p. 195

A expansão das plantações de eucalipto logo resultou na elevação dos preços das terras, requerendo a abertura de novas fronteiras. Além da aquisição de terras nos es-tados vizinhos (somente na Bahia foram adquiridos mais de 100 mil ha), a estratégia da empresa Aracruz foi pro-mover programas de fomento florestal, a partir da utiliza-ção de terras de terceiros para a plantação de eucalipto, alcançando inclusive a pequena propriedade de base produtiva familiar.

Todo esse processo de expansão industrial e de novas plantações de eucalipto obedeceu a uma rigorosa incor-poração tecnológica. As exigências internacionais, por elevação do nível de produtividade, qualidade, eficiência e menor preço, exigiram um profundo regime de padro-nização e de redução do tempo de maturação das árvores para o corte. Tais exigências foram satisfeitas com pesa-dos investimentos em pesquisas biotecnológicas e com a utilização de mudas clonais e de novas formas de manejo e mecanização dos viveiros e das plantações.

Acionista Participação

Grupo Lorentzen 28,0%

Banco Safra 28,0%

Cia. Souza Cruz 28,0%

BNDES 12,5%

Outros 3,5%

Empresa Objetivo Área %

Aracruz Florestal S.A.

Celulose 76.817 58,17

Florestas Rio Doce S.A.

Carvão e Celulose

35.190 26,42

Florestas Acesita S.A.

Carvão 7.470 9,70

Cia. Brasileira de Ferro – CBF

Carvão 4363 3,50

Cia. Siderúrgica Belgo Mineira

Carvão 2542 1,90

Cia. Siderúrgica Barbará

Carvão 407 0,32

Inonibrás S.A. Carvão 1.904 1,65

Mucuri Agroflorestal Ltda.

Celulose 380 0,03

Outros Não definido 3.120 2,31

Page 147: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

146

transferência das ações, ocorrerá no dia 1º de novembro de 2001, quando a VCP, através de sua subsidiária no exterior e em substituição à Mondi, formalmente aderirá ao Acordo de Acionistas da Aracruz, formando o grupo de controle com os Grupos Lorentzen e Safra e com o BNDES Participações S.A.”

(Aracruz Celulose, 2001)

Os demonstrativos de resultados dos últimos anos re-velam o desempenho do Grupo Aracruz na captação de linhas de financiamentos internas e externas:

“(a) Moeda estrangeiraEm janeiro de 1994, a Companhia lançou no mercado internacional US$ 120 milhões em Euronotes, sem garantia, com juros de 10,375% a.a. e vencimento do principal em 2002. Os recursos foram usados, principalmente, para o pagamento de parcelas vincendas de financiamentos de longo prazo. Em janeiro de 1997, esses Euronotes foram renegociados contando com a intermediação de agentes financeiros, sendo comprados a 94,527% do seu valor de face e revendidos com um ágio de 4,75% do seu valor de face na mesma data (...).Em novembro de 1994, a Aracruz Trading S.A. estabeleceu um programa de emissão de títulos (Euro-Commercial Paper) no valor original de US$ 100 milhões, garantidos pela Aracruz Celulose S.A. (...). Em 02 de setembro de 1998, este programa teve sua continuidade aprovada por mais três anos, juntamente com um aumento para US$ 200 milhões, junto ao Banco Central do Brasil, inexistindo saldo remanescente utilizado deste programa relativo ao exercício findo em 31 de dezembro de 1999 (...).A Aracruz Trading S.A. efetuou (...) um Programa de Securitização de Recebíveis de Exportação, garantidos pela Aracruz Celulose S.A., no valor total de US$ 200 milhões (...). Em agosto de 1995, a Aracruz Trading S.A. utilizou os recursos oriundos deste programa para adquirir integralmente US$ 150 milhões em títulos (...), emitidos por sua controladora, Aracruz Celulose S.A. (...).Em dezembro de 1998, a Aracruz Trading S.A. efetuou uma captação no montante de US$ 56,9 milhões (...), garantidos por Notas do Tesouro Nacional disponibilizadas pela Aracruz Celulose S.A.. Esta operação foi integralmente liquidada em dezembro de 1999.”

(b) Moeda nacionalEm 31 de dezembro de 1999, a Aracruz Celulose S.A. (...) mantinha empréstimos (...) de R$ 280.657 (mil) [1998 – R$ 316.742 (mil)], substancialmente contratados junto a seu acionista BNDES (...), nas modalidades Financiamento a Empresas (Finem), Infra Estrutura Social (IES) e repasses de financiamentos do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] e do BIRD [Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento],

Diversificação da produção e novos financiamentos

Em 20 de agosto de 1999 entrou em operação uma nova unidade integral do Grupo Aracruz: a Aracruz Produtos de Madeira S.A., voltada para a produção de madeira para uso em móveis e design de interiores. O principal pro-duto dessa nova unidade, localizada em Nova Viçosa, no sul da Bahia, está registrado sob a marca Lyptus. Os in-vestimentos estimados, inicialmente, para essa nova uni-dade representavam cerca de US$ 50 milhões, com mais R$ 12 milhões para uma segunda linha de serragem. O projeto continha capacidade de produção total de 100.000 m³ anuais de madeira. Sua produção está voltada para o mercado interno (96%), mas, também o exterior (França, Itália, Espanha, Estados Unidos, Canadá, entre outros) (Aracruz Celulose, 1999, p. 24).

Ainda em meados de 1999, o Grupo Aracruz iniciou uma operação casada de oportunidade de captação de re-cursos nos mercados financeiros internacionais e de alie-nação da unidade eletroquímica:

“Em 27 de setembro de 1999 foi constituída a Aracruz Eletroquímica Ltda., subsidiária integral da Aracruz Celulose S.A., a qual recebeu, a título de aporte de capital, os ativos da planta eletroquímica da Aracruz, com valor residual contábil de R$ 118.880.Em 17 de dezembro de 1999, a Aracruz Eletroquímica Ltda realizou um lançamento de títulos de dívida no mercado internacional (Fixed Rate Notes), no montante de R$ 105,6 milhões. Nesta mesma data, uma parcela (R$ 99,8 milhões) dos ativos monetários (caixa) da Aracruz Eletroquímica Ltda foi transferida, através de uma operação de cisão parcial, para Aracruz Empreendimentos S/C Ltda, subsidiária integral da companhia, constituída em 6 de dezembro de 1999.”

(Aracruz Celulose, 1999, p. 27)

A partir de 17 de dezembro de 1999, a Aracruz Celulose S.A. alienou sua unidade eletroquímica para a Canadia-noxy Chemicals Holdings Ltd., por R$ 11.065 mil, deixan-do, assim, de operar na produção química. Os acordos dessa transação selaram compromissos mútuos de com-pra e venda para garantir a demanda e o abastecimento durante os 25 anos seguintes à assinatura dos contratos (Aracruz Celulose, 2002, p. 31).

Em outubro de 2001, a acionista Mondi Brazil Limited (“Mondi”) celebrou contrato de compra e venda de ações com a Votorantim Celulose e Papel S.A. (VCP):

“... através de uma subsidiária no exterior, (a VCP) adquirirá da Mondi 127.506.457 ações ordinárias nominativas representativas de 28% do capital votante ou 12,3% do capital total da Aracruz, excluindo as ações em tesouraria, pelo valor de US$ 370 milhões.A consumação da aquisição, com a consequente

Page 148: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

147

sujeitos a juros variando entre 5,5% e 11,50% a.a., a serem amortizados no período de 2000 a 2006.Os financiamentos estão garantidos por hipoteca, em vários graus, da unidade industrial e das terras e florestas, e pela alienação fiduciária de máquinas e equipamentos financiados.”

(Aracruz Celulose, 2000, p. 33)

a fábrica c e aquisições no início dos anos 2000Com as novas oportunidades e com a pressão dos mer-

cados pela necessidade de expansão dos parques indus-triais, sob o risco de perderem a corrida concorrencial, a expansão do parque industrial brasileiro de celulo-se estava projetada desde a virada para a nova década, aguardando apenas as condições de captação de recursos externos e das linhas de financiamento do BNDES.

Oficialmente, a decisão definitiva para os novos inves-timentos da segunda ampliação da produção industrial do Grupo Aracruz ocorreu numa reunião do Conselho de Administração realizada em 5 de junho de 2000. As obras foram iniciadas ainda no ano de 2000, a partir de um projeto que previu a elevação da produção de 1,3 mi-lhão de t/ano para 2 milhões de t/ano. Após os primei-ros testes, iniciou-se a fase de operação da Fábrica C, em maio de 2002, num processo de integração da nova uni-dade à infraestrutura das linhas de produção A e B. O produto dessa nova unidade passa a ser celulose bran-queada do tipo ECF, sem cloro elementar (Aracruz Celu-lose, 2002, p. 31).

O investimento total dessa segunda grande expansão das unidades do Grupo Aracruz no território capixaba alcançaria aproximadamente US$ 825 milhões: US$ 575 milhões para a área industrial, US$ 220 milhões para a área florestal e US$ 30 milhões para infraestrutura logís-tica e outros investimentos.

O novo projeto de expansão industrial previa a neces-sidade de ampliação do suprimento de madeira, exigin-do um incremento de mais 72 mil hectares às reservas de eucalipto de propriedade do Grupo Aracruz. Além disso, para atender seus planos de expansão, o Grupo Aracruz comprou, em 2000, 45% da participação do grupo Odebre-cht na empresa Veracel, por US$ 81 milhões, tornando-se sócia igualitária no empreendimento com a sueco-fin-landesa Stora Enso. Além dos acordos com a Veracel, o Grupo Aracruz ainda aprovou a construção de um termi-nal portuário, no município de Caravelas, na Bahia, bem como a ampliação do Portocel, em Barra do Riacho, para o transporte de madeira do sul da Bahia, com investimen-tos previstos em torno de US$ 20 milhões (Aracruz Celu-lose, 2002, p. 31).

Numa outra linha de política agressiva nos mercados de celulose, a Aracruz partiu para adquirir cotas de parti-cipação da CVRD na Cenibra, num consórcio com a Voto-rantim Celulose e Papel S.A.

“Em leilão promovido hoje (5 de junho de 2001) pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) em sua sede, no Rio de Janeiro, a Aracruz Celulose e a Votorantim Celulose e Papel (VCP), por intermédio da Sociedade de Propósito Específico (SPE) por elas constituída, apresentaram oferta de US$ 670,5 milhões, que foi declarada vencedora para a aquisição do controle compartilhado (51.48% do capital total) da Celulose Nipo Brasileira - Cenibra.Conforme previamente anunciado, a CVRD colocou à venda sua posição no controle compartilhado da Cenibra em leilão privado. A SPE da Aracruz e VCP foi declarada vencedora com a melhor oferta.A Aracruz e a VCP resolveram unir-se para participar do leilão da Cenibra, dada a qualidade e importância estratégica do ativo para ambas as empresas. O fechamento e conclusão da aquisição ainda estão sujeitos à decisão da outra acionista da Cenibra, a Japan Brazil Paper and Pulp Resources Development Co. Ltd. (JBP), de exercer ou não seu direito de preferência.”

(www.aracruz.com.br, 2001)

Entretanto, em 6 de julho de 2001, a Japan Brazil Paper and Pulp Resources Development Co. Ltd., exercendo o direito de preferência pela compra destas ações, assu-miu o controle total da Cenibra a partir de 14 de setembro de 2001. Outra investida do Grupo Aracruz, em sua estra-tégia de expansão, foi a compra da empresa Florestas Rio Doce S.A., controlada, até então, pela CVRD.

Os demonstrativos de resultados do Grupo Aracruz re-lativos ao exercício de 2001 apresentam relatórios afir-mando que, em 31 de dezembro, o saldo remanescente dos títulos emitidos à Aracruz Trading, pela controlado-ra, situava-se em R$ 13,2 milhões. Segundo esses mesmos demonstrativos, os empréstimos da controladora Aracruz Celulose S.A. com o BNDES, a serem amortizados entre 2002 e 2009, atingiram em 2001 cerca de R$ 620 milhões, quando os mesmos estiveram em torno de R$ 209 milhões, no exercício de 2000 (Aracruz Celulose, 2002, p. 35).

Os financiamentos para a Fábrica C do Grupo Aracruz foram os responsáveis pela elevação dos empréstimos junto ao BNDES em 2001, em relação ao ano anterior. Dos cerca de R$ 666,3 milhões aprovados em junho de 2001, via a linha de financiamento especial Finem, o BNDES liberou cerca de R$ 417,8 milhões, com juros variando entre 7,8% e 11,65% a.a., a serem amortizados entre 2002 e 2009, com as mesmas garantias dos empréstimos anterio-res. A Aracruz Trading S.A. também obteve uma linha de financiamento de longo prazo, em torno de US$ 100 mi-lhões, com taxas de juros de 3,5% a.a. e vencimento entre maio e junho de 2004, garantida por exportações futuras da Aracruz Celulose S.A. (Aracruz Celulose, 2002, p. 35).

“A diretoria do BNDES assinou contrato de financiamento no valor de R$ 666,3 milhões com a Aracruz Celulose

Page 149: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

148

S.A., que aplicará os recursos em um projeto de expansão da capacidade de produção de celulose branqueada de eucalipto, de 1,3 milhão de toneladas/ano para 2 milhões de toneladas/ano em sua unidade industrial localizada em Aracruz, Espírito Santo. Os recursos serão também aplicados no plantio – até 2002 – de cerca de 129 mil hectares de florestas de eucalipto em diversas áreas situadas no Espírito Santo e na Bahia. O investimento total no empreendimento é de R$ 1,66 bilhão. O projeto vai criar 200 empregos diretos na área industrial e 2.100 na florestal.”

(BNDES, 2002)

Além dessas linhas de financiamento, via BNDES, entre fevereiro e junho de 2001, a Aracruz Celulose S.A. captou recursos com bancos, a partir de financiamentos via pré-pagamento de exportação, no montante de US$ 180 mi-lhões, com juros variando entre 3,5213% e 6,71% a.a., que seriam amortizados entre maio de 2003 e abril de 2004 (Aracruz Celulose, 2002, p. 35).

Tabela 7 – Participação acionária na Aracruz Celulose S. A.após implantação da Fábrica C e novas aquisições

aspectos TributáriosO crescimento da arrecadação tributária dos municí-

pios abrangidos pelos grandes projetos instalados no litoral norte capixaba sempre foi colocado entre as ar-gumentações apologéticas do Grupo Aracruz. Mesmo que se possa questionar a magnitude dessas taxas de crescimento da arrecadação municipal, bem como sua relação direta com o Grupo Aracruz, não deve haver dú-vidas sobre os impactos que investimentos de tão gran-de monta têm sobre as finanças de municípios que, até então, mantinham atividades econômicas vinculadas à pequena produção familiar e algumas iniciativas no pro-cessamento da madeira para fins tradicionais.

Cabe observar, entretanto, a relação entre os potenciais de arrecadação tributária e as riquezas geradas pelas ope-rações do Grupo Aracruz no litoral norte capixaba, conside-rando os graves impactos econômicos, sociais e ambientais

que esses investimentos têm causado nos últimos anos, o que tem elevado as demandas por grandes investimen-tos públicos na infraestrutura econômica e também so-cial. Essa abordagem requer a consideração dos regimes de tributação nos vários níveis da administração pública que, muito mais que trazer vantagens do ponto de vista fis-cal, facilitam em muito as condições de competitividade de determinados segmentos industriais. Assim, vale a pena tratar dessa questão, em suas diversas dimensões, para compreender as várias oportunidades que a Legislação Tributária tem oferecido ao Grupo Aracruz, considerando que se trata de um grupo econômico que se favoreceu de grandes benefícios fiscais, desde o período das primeiras plantações de eucalipto no território capixaba.

Para desvendar algumas dessas indagações é interes-sante observar os demonstrativos contábeis do Grupo Aracruz referentes aos exercícios de 1999 e 2001. Esses demonstrativos apresentam a evolução dos créditos tri-butários e suas origens, o que permite vinculá-los aos efeitos da Legislação Tributária.

“Em 31 de dezembro de 1999, a Companhia possuía R$ 224.783 (1998 – R$ 391.029) de prejuízos fiscais e despesas de depreciação, amortização e exaustão relativos aos efeitos da Lei n° 8.200/91 a compensar com lucros tributários futuros, sobre os quais foi constituído crédito tributário no montante de R$ 45.647, representado por prejuízos fiscais apurados em 1992 e 1998, nos montantes de R$ 17.738 e R$ 8.299, respectivamente, os quais são imprescritíveis, bem como créditos tributários no montante de R$ 19.610 (montantes em milhares de reais), oriundos da aplicabilidade da Lei n° 8.200/91.”

(Aracruz Celulose, 2000, p. 27)

Se no caso do imposto de renda e contribuição social, a origem dos créditos tributários se dá pela eficiência con-tábil ou pela chamada administração tributária, no caso do ICMS, imposto de competência estadual, os créditos apontados acima tem origem na aplicação da Lei Com-plementar Federal n° 87, a famosa Lei Kandir, e suas re-visões. A Lei Kandir estabelece que estão imunes da incidência do ICMS todas as operações com mercadorias voltadas para o mercado externo, ou seja, para a expor-tação. As revisões da legislação federal, além de propi-ciar alguma compensação por perdas de receitas, mas que não chegam aos patamares dos potenciais de receitas que adviriam da tributação direta das exportações, ainda permitiu que as empresas registrassem como créditos tri-butários o ICMS pago na compra de insumos para proces-samento industrial. E mais, a legislação em vigor permite que esses créditos sejam compensados em operações in-ternas futuras, ou mesmo transferidos a terceiros, desde que reconhecidos e autorizados pelo Poder Executivo Re-gional. Com isso, as empresas que operam com exporta-

Acionista Participação

BNDE 25,90%

Cia. Souza Cruz 25,90%

Fibase 14,72%

Grupo Billerud 6,07%

Grupo Lorentzen 5,08%

Vera Cruz Agroflorestal 3,37%

Grupo Moreira Salles 2,63%

391 acionistas minoritários 16,94%

Page 150: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

149

ção estão acumulando esses créditos e, no caso específico do Grupo Aracruz, existem inclusive ações judiciais im-petradas visando a devolução de seus créditos de ICMS imediatamente. O relatório anual do Grupo Aracruz in-forma o acumulado de aproximadamente R$ 369,5 mi-lhões em créditos de ICMS no final de 2008.

a crise econômica mundial e a aracruzEntre 2007 e 2008, o Grupo Aracruz sentiu fortemente o

impacto da crise mundial e tomou uma série de medidas, com a ajuda sempre presente do BNDES. Num primeiro momento, a empresa teve que suspender temporariamen-te o processo de fusão e/ou aquisição que negociava com o grupo Votorantim, devido às turbulências causadas pelo prejuízo resultante de apostas mal sucedidas/especulação no mercado de derivativos cambiais. A empresa perdeu mais de R$ 2 bilhões de uma só vez. Com o acirramento da crise econômica internacional, houve uma queda subs-tancial nos contratos de exportação de celulose, levando a Aracruz a rever seus planos de produção e de novos inves-timentos. Com isso, de um lado, ficou comprometido o pro-cesso de atualização tecnológica da Fábrica A, que estava em curso, com um volume de investimentos calculado em R$ 240 milhões, boa parte financiada pelos BNDES. Outros investimentos também foram revistos.

“Em comunicado ao mercado divulgado hoje (18 de março), a Aracruz e sua sócia Stora Enso anunciaram a decisão de adiar os planos de expansão da Veracel, na Bahia, por pelo menos um ano. Serão cancelados os investimentos programados para 2009 em compra de terras, formação de florestas e estudo de viabilidade, sendo a parte que cabia à Aracruz orçada em R$ 75 milhões. Segundo o comunicado, os sócios acreditam que essa é uma ação prudente, tendo em vista o atual cenário de mercado. O projeto Veracel II prevê a construção de uma segunda linha de produção, com capacidade de cerca de 1,4 milhão de toneladas anuais. A Veracel, uma joint-venture da Aracruz (50%) e da sueco-finlandesa Stora Enso (50%), está localizada no município de Eunápolis, no sul da Bahia, e tem capacidade de produção anual de 1 milhão de toneladas de celulose branqueada de eucalipto. A empresa possui 211 mil hectares de terras, sendo 90 mil hectares de plantio e cerca de 104 mil hectares de reservas nativas, incluindo a Estação Veracel e áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal. A Veracel entrou em operação em maio de 2005 e é mundialmente reconhecida pela excelência operacional, que lhe confere o mais baixo custo de produção na indústria global. A atividade da empresa incentiva o crescimento social e econômico da comunidade local, por meio de projetos e atendimento às demandas nas áreas de geração de renda, saúde e educação, além de geração de impostos e

empregos. A empresa é responsável pela geração de 4.022 empregos diretos na região, entre colaboradores próprios e parceiros permanentes.”

(Aracruz Celulose, 18 de março de 2009)

De outro lado, a empresa se viu forçada a reduzir o ritmo da produção fabril, provocando a dispensa de emprega-dos das empresas subcontratadas e, também, de trabalha-dores contratados diretamente.

“A Aracruz Celulose está promovendo ajustes no seu quadro de pessoal próprio, tendo em vista fazer face aos efeitos da crise global que vem afetando fortemente a empresa, com redução nas vendas e, consequentemente, no ritmo das atividades produtivas.Desde o início da crise, a companhia já adotou uma série de medidas para reduzir custos e preservar seu fluxo de caixa, incluindo a suspensão temporária de investimentos em expansão - projeto Guaíba II (RS), compra de terras e formação de florestas dos projetos Veracel II (BA) e de Minas Gerais, além do investimento para modernizar uma de suas linhas de produção em Barra do Riacho (ES) - e o cancelamento do pagamento de dividendos e juros sobre capital próprio, entre outras.Também foram revistos contratos com fornecedores e prestadores de serviços, e desmobilizados profissionais terceirizados alocados a projetos de expansão e a outras iniciativas que foram descontinuadas.A persistência do quadro adverso na economia mundial, entretanto, vem exigindo novos ajustes. Entre desligamentos já realizados e em andamento, a redução do quadro alcança cerca de 140 empregados das áreas administrativa e operacional que atuam em diversas localidades da Unidade Barra do Riacho, no Espírito Santo e Bahia. A Unidade Guaíba também passa por ajustes, com redução de 37 pessoas em seu quadro próprio.”

(Aracruz Celulose, 19 de março de 2009)

Passado o susto inicial das perdas com a especulação com derivativos, a Aracruz Celulose retomou as conversações com a Votorantim sobre o processo de fusão/aquisição.

“Em comunicado divulgado hoje (20/1) ao mercado, o Grupo Votorantim, através da Votorantim Celulose e Papel (VCP), informou ter concluído negociações com os integrantes das famílias Lorentzen, Moreira Salles e Almeida Braga (Grupo Arapar) para aquisição de aproximadamente 28% do capital votante da Aracruz Celulose pelo valor de R$ 2,71 bilhões.”

(Aracruz Celulose, 20 de janeiro de 2009)

“Em comunicado divulgado ao mercado ontem, dia 5 de março, a Votorantim Celulose e Papel (VCP) informou ter adquirido da Família Safra 28% do capital votante da Aracruz Celulose. Com a aquisição, a VCP passa a deter o controle

Page 151: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

150

acionário da Aracruz, abrindo caminho para a criação de uma líder global brasileira no setor de celulose e papel.A empresa que resultará da união entre a Aracruz e a VCP vai responder por uma capacidade produtiva de quase 6 milhões de toneladas anuais de celulose, somando mais de 1 milhão de hectares de áreas florestais - dos quais quase a metade destinada à preservação permanente - em seis diferentes estados (ES, BA, MG, RS, SP e MS) do País. Serão cerca de 15 mil empregos (próprios e terceirizados) e receita líquida anual da ordem de R$ 7 bilhões. Com escala e presença globais, 37% do mercado de celulose de eucalipto, 22% do mercado de fibra curta e 12% do mercado mundial de celulose, a empresa planeja duplicar de tamanho até 2020, com foco em projetos de alto retorno alinhados com as melhores práticas em responsabilidade socioambiental.Por ora, as duas empresas continuarão a operar de forma independente.Este anúncio não constitui uma oferta de valores mobiliários, ou uma oferta de compra de valores mobiliários, nos EUA. Quaisquer transações envolvendo ofertas de valores mobiliários, ou ofertas de compra de valores mobiliários, referidas neste anúncio não serão realizadas nos EUA sem serem registradas ou sem que haja uma isenção de registro para as mesmas.”

(Aracruz Celulose, 6 de março de 2009)

Com o novo processo de centralização financeira, o ca-pital social da Aracruz passou a ser composto da seguin-te forma:

Tabela 8 – Participação acionária na Aracruz Celulose S. A. após fusão

Acionista Participação

Grupo Lorentzen 28,0%

Banco Safra 28,0%

Cia. Souza Cruz 28,0%

BNDES 12,5%

Outros 3,5%

RefeRências1- Em 2009, o Grupo Votorantim comprou as ações de outras duas acionistas principais, o Grupo Lorentzen e Banco Safra, para se tornar dono da empresa ao lado do BNDES. O novo grupo que se constituiu assim ganhou um novo nome: a Fibria. Também em 2009, a empresa vendeu a unidade Guaíba para o grupo chileno CMPC.

2- Trecho da Palestra “Complexo paraquímico do Estado do Espírito Santo”, proferida por Leopoldo Garcia Brandão, do Grupo Aracruz, no “Fórum Nacional de Oportunidades Industriais de Espírito Santo”, realizado em Vitória, em 06 de março de 1975. p.1. Antônio Dias Leite, um dos sócios da ECOTEC, chegou a ser ministro das Minas e Energia e Leopoldo Garcia Brandão, de técnico da ECOTEC, passou mais tarde a pertencer a uma das diretorias do Grupo Aracruz Celulose. 3- As ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional) eram títulos públicos da época. A Fibase foi uma das instituições subsidiárias do antigo Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico (BNDE), criada com o intuito da participação direta do banco no capital social dos novos projetos industriais voltados para a produção de insumos básicos, e que, mais tarde, fundida a outras instituições do banco formaram a BNDES-Par. A Finame é também uma agência subsidiária do BNDES e está voltada para o financiamento de máquinas e equipamentos industriais.

RefeRências BiBliogRáficasA Gazeta, 22/05/59, p. 6, apud. Silva, M. Z. Espírito Santo: Estado, interesses e poder. Vitória: FCAA/SPDC, 1995, p. 360.

Aracruz Celulose S.A. Notícias: Aracruz anuncia mudança na sua composição acionária. <www.aracruz.com.br>. Acessado em 04/out./2001.

___. Notícias: SPE de Aracruz e VCP vencem leilão da Cenibra. <www.aracruz.com.br>. Acessado em 04/jun./2001.

___. Resultado Consolidado de 1999. In: Diário Oficial do Estado do Espírito Santo, 01/fev./2000.

___. Resultado Consolidado de 2001. In: Diário Oficial do Estado do Espírito Santo, 15/jan./2002.

___. Notas explicativas da administração às demonstrações financeiras em 31 de dezembro de 1999. In: Diário Oficial do Estado do Espírito Santo, 01/fev./2000. p. 27.

___. Quem somos, 2008. Disponível em: <www.aracruz.com.br>Acessado em 04/out./2008.

___. Relatório Anual 2008. Disponível em: <www.aracruz.com.br> Acessado em 04/mai./2009.

___. Notícias. Disponível em: <www.aracruz.com.br> Acessado em 04/mai./2009.

Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo. Perspectivas de desenvolvimento integrado do Espírito Santo, no próximo decênio, a partir do crescimento econômico assegurado pelos grandes projetos. 1973, p. 69-70. Apud. Rodrigues, Antonio Celso D., Simões, Roberto Garcia. Os grandes diretores do processo de transformação no Espírito Santo – ES século XXI, Vitória, 1988. p. 53.

BNDES. BNDES apóia expansão da Aracruz com R$ 666 milhões. 2002. Disponível em: <www.bndes.gov.br>.

Brandão, Leopoldo Garcia. Complexo paraquímico do Estado do Espírito Santo. In: Fórum Nacional de Oportunidades Industriais de Espírito Santo (anais). Vitória, 06/mar/1975.

Dalcomuni, Sonia Maria. A implantação da Aracruz Celulose no Espírito Santo – principais interesses em jogo. Itaguaí (RJ): UFRRJ. Dissertação (Mestrado), 1990.

Gomes, Helder. Potencial e limites às políticas regionais de desenvolvimento no Estado do Espírito Santo: o apego às formas tradicionais de intermediação de interesses. Vitória (ES): UFES. Dissertação (Mestrado), 1998.

Najberg, S. Privatização de recursos públicos: os empréstimos do Sistema BNDES ao setor privado nacional com correção monetária parcial. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro: PUC/RJ, 1989.

Pereira, Guilherme Henrique. Política industrial e localização de investimentos: e o caso do Espírito Santo. Vitória: EDUFES, 1998. 293 p.

Rocha, Haroldo Corrêa, Morandi, Ângela Maria. Cafeicultura e grande indústria: a transição no Espírito Santo – 1955/1985. Vitória: FCAA, 1991.

Silva, Justo Corrêa da. Espírito Santo: a influência do processo de industrialização na formação da estrutura do poder Executivo – 1967-1983. Belo Horizonte: UFMG/FACE. Dissertação (Mestrado), 1993.

Silva, Marta Zorzal e. Espírito Santo: Estado, interesses e poder. Vitória: FCAA/SPDC, 1995. 498 p.

Page 152: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

151

Aracruz, Espírito Santo, Brasil, 1967. Em plena ditadura militar, o governo decide implantar neste município uma indústria de produção de celulose de fibra curta (produto semi-elaborado, destinado à exportação para outras indús-trias de celulose, principalmente de países da Europa, que fabricam papel higiênico e fraldas).

Espírito Santo – Brasil, 2007, após quatro décadas de atividades da Aracruz Celulose, a empresa faz uma cam-panha publicitária com o mote: “Há 40 anos cumprindo um bonito papel”. No entanto, não é bem assim. Ao lon-go desse período, uma sucessão de fraudes e ilegalidades marcou a trajetória da empresa, demonstrando claramen-te que o “papel da Aracruz” nesse período “não é tão belo” quanto o “quadro pintado” pelos profissionais que fazem o marketing da empresa. Na verdade, está bem longe de ser como a empresa afirma.

Este texto não é uma provocação à Aracruz Celulose S.A., nem aos governos e integrantes dos governos, que em diversas instâncias, ao longo destes 40 anos, atua-ram beneficiando de forma ilegal a empresa. Trata-se de um relato e análise fundamentados em documentos ofi-cias, que comprovam o cometimento de muitas fraudes e ilegalidades ao longo dessas décadas. Muitas já estão em fase de judicialização, porém, algumas estão há vá-rios anos, sem que o Poder Judiciário tenha ainda, nem mesmo em primeira instância, dado as respostas que a

Fraudes e Ilegalidades2

“Aqui, entre a proteção do patrimônio ecológico nacional, permitam-me a alegoria, e os respeitáveis interesses privados, aventados na inicial, em termos de medida liminar, não tenho dúvida, fico com o primeiro”.

Sebastião Ribeiro Filho

sociedade espera. Em nome do interesse coletivo, como maior beneficiária do meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme preconizado no capítulo de Meio Ambiente da Constituição Federal, considerado um dos mais avançados do mundo, era de se esperar que a Justi-ça tivesse uma outra postura. Outras estão em instâncias governamentais, no âmbito administrativo, também sem nenhuma resposta concreta pela morosa tramitação nos meandros burocráticos dos órgãos governamentais, espe-cialmente os do governo do Espírito Santo.

Em boa hora a Rede Brasil sobre Instituições Financei-ras Multilaterais e a Rede Alerta contra o Deserto Verde se juntam para garantir a publicação dessa obra, com tex-tos sobre diversos aspectos da implantação e atuação da Aracruz Celulose, que muito pouco - e na imensa maioria das vezes nenhum - espaço tem nos periódicos de maior circulação no estado, bem como nas mídias de rádio e TV do Espírito Santo.

i- a DesTRUiÇão Da MaTa aTlânTica e a concenTRaÇão fUnDiáRia

Embora a destruição da Mata Atlântica para a implan-tação dos plantios de eucalipto da Aracruz Celulose no município de Aracruz, no final da década de 1960, a prin-cípio não se caracterize como ato ilegal, é fundamental que fique registrado que a empresa foi responsável pela destruição de cerca de 40 mil hectares desse Patrimônio Ecológico Nacional somente naquele município (um cri-me contra a biodiversidade no estado e no País). Tal des-truição foi constatada na análise dos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) da primeira expansão da produção da em-presa – feita pelo Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Itufes), no processo de licen-ciamento ambiental a cargo da Secretaria de Estado da Saúde, em 1987/1988 – quando a produção industrial pas-sou de 450 mil para 1 milhão de toneladas/ano.

O Rima, na sua página 6, registra que:

“Através da análise de fotos aéreas obtidas em 1970/71, verificou-se que pelo menos 30% da superfície do município de Aracruz era coberta por floresta nativa no início da década de 1970, que foram substituídas por florestas homogêneas de eucalipto1 para a Arflo (Aracruz Florestal)”.

Duas dessas fotos aéreas foram anexadas às paginas

1.381 e 1.382 dos autos da Comissão Parlamentar de In-quérito (CPI) da Aracruz juntamente com o depoimento de Fábio Martins Villas, comprovando os dados dos le-vantamentos feitos durante a realização dos estudos de impacto ambiental da ampliação de 1988. Esta CPI foi criada pela Resolução n° 2.028/2002 da Assembléia Le-

(Ministro Sepúlveda Pertence, ADIN 487 – DF – Medida Liminar, 09 de maio de 1991)

Page 153: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

152

gislativa e teve como objetivo investigar possíveis irregu-laridades nos licenciamentos das atividades da Aracruz Celulose S.A..

O município de Aracruz tem 1.435 km2. Pelo menos 430 km2 (cerca de 43 mil hectares) de florestas nativas de Mata Atlântica foram derrubados, só no município, para substituição desse ecossistema de riquíssima biodiversi-dade pela monocultura de eucalipto. Para se ter uma idéia do significado dessa destruição, a Reserva Biológica de Sooretama, maior área protegida no estado, que tem em seu entorno inúmeros plantios da empresa, tem uma área de 24 mil hectares.

Essa destruição foi confirmada pelo depoimento e tes-temunho de Antônio dos Santos, cacique Tupiniquim - então com 66 anos -, perante a CPI da Aracruz Celulose em 21 de maio de 2002:

“... nesse tempo em que passei trabalhando, vi muitas coisas erradas que a Aracruz está fazendo: derrubava a mata com os correntões, juntava com as máquinas pesadas, botava fogo, queimava e destruía tudo as madeiras de lei. Vi muitos bichos queimados no meio da terra arada, da terra destocada pelas máquinas e assimpor diante. Vi muitas coisas erradas sem saber e semter conhecimento”.

Os “correntões” a que se refere o cacique Antônio eram correntes de enormes dimensões e grande peso, atadas em suas pontas a dois tratores que arrastavam as árvores (muitas delas com mais de 30 metros de altura) em amplas áreas.

As consequências dessa destruição e a substituição da flora da Mata Atlântica pela monocultura extensiva de eucalipto não poderiam ter outros desdobramentos se-não a perda irreparável da biodiversidade, que também foi abordada no Rima da primeira ampliação da produção da Aracruz Celulose:

“A substituição de florestas nativas heterogêneas por florestas homogêneas de eucalipto representou um grande impacto ambiental em diversas fases de implantação da Arflo, reduzindo a diversidade biológica e comprometendo a sobrevivência de muitas populações de espécies da flora e da fauna nativas”.

Biodiversidade que, no Espírito Santo, foi reconhe-cida em 1999 como a mais rica do planeta, em matéria de espécies florestais. Essa foi a conclusão da bióloga Luciana Dias Thomaz, após três anos de pesquisas re-alizadas na Estação Biológica de Santa Lúcia, em Santa Teresa. Aquela área de Mata Atlântica defendida vee-mentemente pelo legendário cientista capixaba Augusto Ruschi tinha “a maior diversidade do planeta, com cerca de 476 espécies por hectare”, o que foi noticiado por A

Gazeta, em 22 de agosto de 1999. Posteriormente, esse recorde foi suplantado por uma área também de Mata Atlântica no sul da Bahia. E esses remanescentes, devi-do à sua importância foram erguidos à condição de Pa-trimônio Nacional (art. 225 da CF) e também da Huma-nidade (conforme reconhecimento da Unesco – institui-ção da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), em face não apenas da importância da Mata Atlântica para o Brasil e para o planeta, como também por fazer parte dos ecossistemas mais ameaça-dos do mundo.

A compreensão do significado do “grande impacto” citado no Rima da ampliação de 1988 foi pesquisada e constatada no Rima de outra empresa, a Bragussa, for-necedora de água oxigenada para a Aracruz Celulose, que data de setembro de 1994 e foi elaborado pela Cepe-mar, empresa que presta serviços à Aracruz. Os estudos destacam quatro quadros, com dados comparativos so-bre espécies da fauna em áreas de vegetação natural de restinga em Barra do Riacho (RR), Barra do Sahy (RS) e em áreas de eucaliptos da Arcel (EU). Conforme os da-dos abaixo, não há dúvidas sobre o quanto a substituição dos remanescentes de Mata Atlântica pelos plantios da empresa no município de Aracruz contribuiu significati-vamente para a redução da diversidade da fauna nativa da região:

1) AnfíbiosRR – 15 registros (3 sapos, 10 pererecas e 2 rãs) RS – 13 registros (2 sapos, 9 pererecas e 2 rãs) EU – 4 registros (2 sapos e 2 pererecas)

2) Répteis (Lagartos e serpentes)RR – 17 registros (9 lagartos e 8 serpentes) RS – 15 registros (6 lagartos e 9 serpentes) EU – 6 registros (3 lagartos e 3 serpentes)

3) AvesRR – 27 registrosRS – 32 registrosEU – 6 registros

4) MamíferosRR – 15 registrosRS – 17 registrosEU – 3 registros

Esses quadros demonstram aspectos de impactos ambientais das atividades da Aracruz Celulose especi-ficamente sobre a fauna das áreas de Mata Atlântica. No entanto, aspectos ainda mais perversos - analisa-dos nesta publicação por outros técnicos e cientistas - atingiram e continuam atingindo os recursos hídricos, o solo e, notadamente, as comunidades indígenas, qui-

Page 154: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

153

lombolas, os pescadores e os pequenos agricultores nos municípios onde a Aracruz Celulose faz seus plantios. Daí a importância dessa publicação, que possibilitará uma maior visibilidade do imenso passivo social, cul-tural, econômico e ambiental dessa empresa, não só no Espírito Santo – que é tema específico dos textos deste livro – como em todos os estados onde ela atua.

Em relação à concentração fundiária, a análise pelo Itu-fes do Rima da expansão de 1988 também destacou im-pactos socioeconômicos, alertando que:

“a ocupação de grande superfície territorial (direcionada para uma única cultura), o desequilíbrio já promovido na estrutura fundiária e a própria dimensão do empreendimento, levaram a mudanças sensíveis no sistema de produção agropecuária e condições de vida da população estabelecida no entorno do empreendimento. Tais fatos devem ser levados em consideração, quando se sabe que a concentração de terras em empreendimentos de grande porte tem sido preocupação do poder público, que almeja melhorias na estrutura fundiária atual, diversificação agrícola, aumento de emprego e reversão do êxodo rural, conforme expresso em documento recente do governo do estado do Espírito Santo (Ofício 482/86) anexado a esta análise”.

(pág. 34)

O Ofício 482/86 em referência foi encaminhado pelo então governador do estado do Espírito Santo, Gerson Camata à presidência da Aracruz Celulose, que desta-cou ainda:

“Esse processo de aquisição de áreas, particularmente no norte do estado, vem trazendo grande apreensão junto a lideranças políticas (prefeitos e vereadores), rurais (patronais e trabalhadores) e comunitárias, tendo em vista o seu efeito negativo no que diz respeito ao agravamento da concentração fundiária em nosso estado”.

Tal situação levou o governador a solicitar à empresa: “Paralisar a aquisição de novas áreas em nosso estado”; e ainda a “destinar parte de áreas já adquiridas a projetos de reforma agrária dentro do PNRA [Plano Nacional de Reforma Agrária] aprovado pelo presidente José Sarney para o Espírito Santo.”

Os impactos dessa concentração fundiária no norte do estado também foram objeto de análise em outra CPI, a da Poluição, criada em 1995, perante a qual um repre-sentante da Aracruz Celulose S.A. prestou depoimento. Na ocasião, os plantios da empresa totalizavam 83 mil hectares e ocupavam 1,8% do território estadual. A equi-pe técnica da CPI ressaltou que “a área agricultável no-bre do estado, que são os terrenos mecanizáveis, repre-sentam cerca de 33% do território do Espírito Santo, e a

Arcel ocupa 17,89% desta fatia nobre”. Os impactos provocados pela concentração fundiária

dos plantios da Aracruz Celulose foram traduzidos em números no depoimento da geógrafa Simone Ferreira na CPI que apurou irregularidades nas atividades da em-presa, quando apresentou um quadro preocupante, prin-cipalmente no município de Conceição da Barra, onde a produção agrícola praticamente já não existe:

“Segundo dados da Secretaria de Agricultura de Conceição da Barra, 68% das terras são das empresas de celulose. A Bahia Sul e a Suzano têm uma pequena parte quase na divisa do município em Mucuri; e desses 68% tirando os 20% de reserva legal, 48% são destinados ao plantio de eucalipto para produção de celulose”.

A preocupação com relação à concentração fundiária foi uma das matérias debatidas no processo de elabora-ção da Constituição Estadual, promulgada em 1989, fruto também do processo de ampliação da Aracruz Celulose no ano anterior. O art. 247, § 2° estabelece que:

“Para a concessão de licença de localização, instalação, operação e expansão de empreendimentos de grande porte ou unidades de produção isoladas integrantes de programas especiais pertencentes às atividades mencionadas no parágrafo anterior, o Poder Público estabelecerá, no que couber, condições que evitem a intensificação do processo de concentração fundiária e de formação de grandes extensões de áreas cultivadas com monoculturas. (§ 2° - No planejamento da política agrícola do estado incluem-se as atividades agro-industriais, agropecuária, pesqueira e florestal)”.

No entanto, tanto a Seama (órgão ambiental estadu-al) como o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf, órgão licenciador das atividades de plantio da Ara-cruz Celulose) desconsideraram essas normas nos licen-ciamentos feitos a partir da promulgação da Constituição Estadual, o que contribuiu para que uma série de impac-tos ambientais, sociais, econômicos e culturais permane-cesse sem mitigação ou compensação, conforme prevê a legislação ambiental.

No processo de licenciamento da ampliação que ocor-reu em 1988 deve ser destacado que o estado, ao tomar a decisão restritiva aos plantios, atuou em duas questões de modo bastante incisivo, com consequências que, em-bora contrariassem os interesses da Aracruz Celulose - interesse privado em adquirir mais terras para plantio no Espírito Santo -, estavam voltados para a defesa do interesse público de evitar a ampliação da concentração fundiária da empresa, bem como preservar as áreas pla-nas do norte do Espírito Santo, as melhores terras para a agricultura no estado.

Page 155: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

154

ii- as fRaUDes nas legiTiMaÇÕes De TeRRas DeVolUTas

a- o Que são Terras Devolutas?Segundo a definição do art. 5o do Decreto-Lei No. 9.760,

de 05 de setembro de 1946:

“São devolutas, na faixa da fronteira, nos territórios federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público federal, estadual territorial ou municipal, não se incorporaram ao domínio privado: a) por força da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854, e outras leis e decretos gerais, federais e estaduais; b) em virtude de alienação, concessão ou reconhecimento por parte da União ou dos estados; c) em virtude de lei ou concessão emanada de governo estrangeiro e ratificada ou reconhecida, expressa ou implicitamente, pelo Brasil, em tratado ou convenção de limites; d) em virtude de sentença judicial com força de coisa julgada; e) por se acharem em posse contínua e incontestada com justo título e boa fé, por termo superior a 20 (vinte) anos; f) por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30 (trinta) anos, independentemente de justo título e boa fé; g) por força de sentença declaratória proferida nos termos do art. 148 da Constituição Federal, de 10 de novembro de 1937”.

b- as primeiras fraudes

Os primeiros plantios de eucalipto para a produção de celulose pela Aracruz tiveram início em 1967, quando ain-da existia a Aracruz Florestal. Dessa época, os documen-tos que demonstram o início das fraudes cometidas pela empresa vieram à tona através de cópias entregues à CPI estabelecida em 2002, bem como de depoimentos presta-dos por funcionários e ex-funcionários da empresa.

Um dos documentos entregues à CPI contém uma lis-tagem com sessenta e cinco áreas, requeridas por mais de trinta desses empregados e ex-empregados da empresa – que, após “legitimarem” as terras em seus nomes, repas-saram essas terras para a Aracruz Celulose. Foram mais de 13 mil hectares de “legitimação” de terras, “transferi-das” para a empresa, que as incorporou a seu patrimônio. “Terras públicas”, muitas delas em locais considerados como os melhores no estado para a agricultura, consegui-das de modo fraudulento.

Essas áreas de terras estão concentradas nos municí-pios de São Mateus e Conceição da Barra, na região de-nominada Sapê do Norte, tradicionalmente ocupada de forma comunal pelos escravos libertos a partir de 1888, do Quilombo de Santana (Conceição da Barra). Hoje, os quilombolas estão dispersos em várias comunidades “ilhadas” pelos plantios de eucalipto da Aracruz Celulose, sofrendo todo tipo de pressão e efeitos dos impactos pro-vocados por esses plantios.

Com a suspensão dos trabalhos da CPI por força de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, diversas entidades que integram a Rede Alerta contra o Deserto Verde, com base nas provas das fraudes existentes nos autos dos processos da CPI, fizeram requerimento jun-to à Procuradoria Geral do Estado (PGE) - Protocolo N° 28212827, de 17 de agosto de 2004 - para anulação das legitimações, visando reaver as referidas terras para devolvê-las a seus legítimos donos, os quilombo-las do Sapê no Norte. O pedido teve uma análise prévia por parte da PGE e foi encaminhado ao Idaf, em 28 de novembro de 2005, para levantamento quanto às frau-des denunciadas. Porém, até o início de 2009 o órgão não havia informado o andamento da apuração, mes-mo instado a fazê-lo mediante pedido da Assembléia Legislativa feito no início de 2008.

A comprovação da fraude foi constatada no depoimen-to de funcionários e ex-funcionários da empresa. Ivan de Andrade Amorim, por exemplo, assumiu perante a CPI a prática de “crime de falsidade ideológica” no processo de requerimento das terras (crime que, em tese, já pres-creveu). Junto ao órgão estadual, obteve a legitimação de duas áreas de terras devolutas nos municípios de São Mateus (480 hectares) e Conceição da Barra (44 hecta-res), totalizando 524 hectares.

Em seu depoimento, perguntado se detinha posse de propriedade rural ou se exercia atividade de cultivo ou afim, respondeu: “Nessa época, não, nada!” (fls. 4.494 dos autos da CPI). Afirmou ainda que, após adquirir as terras, as titulou para as empresas Brasil Leste, Vera Cruz e Ara-cruz Celulose, garantindo:

“Fiz isso por liberalidade. A empresa me pediu e não hesitei porque era um pedido da empresa. E por ter sido bem tratado, sempre tive bom relacionamento, titulei, mas nada recebi (...). Na época, assinei o requerimento, depois que a escritura foi liberada, não sei em que período, outorguei a escritura para a empresa.”

(fls. 4.496)

Orlindo Antônio Bertolini também fez requerimento de três áreas de terras devolutas em São Mateus (com 201, 395 e 201 hectares cada), totalizando 797 ha. No processo de legitimação dessas terras apareceu o nome do então presidente do Conselho de Administração da Aracruz Celulose S.A., Erling Sven Lorentzen, que firmou procu-ração – presente em outros processos de “legitimação”, em nome de empregados e ex-empregados da empresa – onde nomeava um dos procuradores que atuou junto a órgãos do estado, para proceder a “transferência” das ter-ras legitimadas pelos empregados e ex-empregados para Arcel, numa atitude que “em tese” corroborava as irre-gularidades cometidas nos processos de “legitimações” e “transferência” das terras.

Page 156: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

155

No depoimento perante a CPI, o ex-funcionário da empresa fez as seguintes afirmações: “Trabalhei para a Aracruz Celulose no período de 1968 a 1998”. Pergunta-do se exerceu alguma outra atividade nesse período, res-pondeu negativamente. Ele afirmou que tinha um sítio no município de Aracruz e perguntado se teve outras áreas, respondeu: “Tive outras e passei para a empresa, depois de legitimada” e que “tinha consciência de que iriam ser re-queridas em meu nome para passar posteriormente, depois de legalizadas, para a empresa Aracruz Celulose” e ainda que “foi de imediato, assim que as adquiri, passei para a Aracruz”. Afirmou também que “essas terras foram só lega-lizadas em meu nome para que eu passasse para Aracruz depois, para uso de reflorestamento de eucalipto”, que não recebeu nada por isto e que “achei que era um modo de estar ajudando a Aracruz”.

Na legislação que regulava a legitimação de terras de-volutas do estado à época estavam a Lei Estadual 617/51, a Lei Delegada 16/67 e o Decreto 2688/68. E entre os re-quisitos para se obter a legitimação dessas terras estava a de comprovação de que o requerente fosse “lavrador ou criador, ou se dedicar a atividades agropecuárias”, sendo que a Lei Delegada Estadual 16/67 impunha ain-da, para a legitimação de posse: “a existência de cultura efetiva, moradia habitual do posseiro no prazo mínimo de três anos e manter, pelo menos, uma quinta parte de terreno em exploração”.

Tendo em conta as normas que regulavam a legitima-ção de terras e o teor de seus depoimentos, é evidente que houve fraude nos processos de requerimento das áreas legitimadas em nome de Ivan de Andrade Amorim e de Orlindo Antônio Bertolini (e, provavelmente, de outros empregados e ex-empregados da Aracruz Celulose, cuja comprovação e providência foi requerida à Procuradoria Geral do Estado). Essas terras deveriam ter sido destina-das para a agricultura, como determinava a legislação, e há mais de 40 anos estão sendo cultivadas com eucaliptos destinados à produção de polpa de celulose. Essa situação não será revertida, ou seja, os eucaliptos permanecerão lá por muitas outras dezenas de anos, caso o estado do Es-pírito Santo não adote medidas para retomar essas terras com a finalidade de destiná-las para sua verdadeira fina-lidade – a prática de agricultura, por agricultores e pelas comunidades tradicionais dos quilombolas.

E ao que parece, essas providências não têm perspec-tivas de brevidade quanto à sua concretização. Como já mencionado, o requerimento protocolado na PGE pelas entidades da Rede Alerta contra o Deserto Verde foi enca-minhado ao Idaf em 28 de novembro de 2005, mas ain-da permanece sem um posicionamento do órgão. Nessas ocasiões, pouco ou nada valem as lutas das entidades da sociedade civil, pois prevalece o poder econômico que move os interesses envolvidos. Mesmo diante da compro-vação de fraude, acaba prevalecendo a ilegalidade que

favorece o interesse privado, em detrimento do interesse público e coletivo de toda a sociedade.

iii - noRMas consTiTUcionais e legais

a- Da constituição federalAs normas da Constituição de 1988 que tratam da pro-

teção ambiental colocaram o Brasil em posição de desta-que no cenário mundial. O art. 225 estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualida-de de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O parágrafo primeiro, inciso IV deste artigo prevê:

“§ 1°. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: IV – exigir, na forma da lei, para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, ao que se dará publicidade”.

A “defesa do meio ambiente” também está entre as medi-das que as atividades econômicas devem adotar, conforme prevê o inciso VI, como um dos princípios elencados no art. 170, que trata da “ordem econômica e a livre iniciativa”.

b- Da constituição estadualA Constituição do estado do Espírito Santo, acompa-

nhando as diretrizes da Constituição Federal, estabeleceu em seu art. 186 que “Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente saudável, impondo-se-lhes e, em espe-cial, ao estado e aos municípios, o dever de zelar por sua preservação, conservação, e recuperação em benefício das gerações atuais e futuras”, e no art. 187 “para a localiza-ção, instalação, operação e ampliação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, será exigido relatório de impacto ambien-tal, na forma da lei que assegurará a participação da comu-nidade em todas as fases de sua discussão”. O parágrafo primeiro complementa “ao estudo prévio do relatório de impacto ambiental será dada ampla publicidade”.

c- o Princípio da legalidadeSegundo Hely Lopes Meirelles (em Direito Administra-

tivo Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, SP), “a efi-cácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei”.

As lições deste reconhecido mestre elucidam de modo cabal as irregularidades pela não observância de normas legais nos licenciamentos:

“Na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na Administração Particular é lícito fazer

Page 157: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

156

tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’, para o administrador público significa ‘deve fazer assim’”.

Não é outra senão esta a exigência constitucional do art. 37, caput da CF, ao incluir o princípio da legalidade entre aqueles que a Administração Pública deve obedecer em todos os seus atos. Nas palavras de Meirelles: “se para o particular o poder de agir é uma faculdade, para o admi-nistrador público é uma obrigação de atuar, desde que se apresente o ensejo de exercitá-lo em benefício da comu-nidade”. (p. 76)

d- impacto ambientalO conceito legal de impacto ambiental está estabeleci-

do no art. 1° da Resolução 01/86 do Conama:

“Art. 1° - Considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que direta ou indiretamente afetam:I) a saúde, a segurança e o bem estar da população;II) as atividades sociais e econômicas;III) a biota;IV) as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; V) a qualidade dos recursos ambientais”.

iV- ilegaliDaDes no licenciaMenToDo Rio Doce

a- Da Tramitação do Processo administrativoO licenciamento ambiental para “adução de água do Rio

Doce e limpeza dos antigos canais do Departamento Na-cional de Obras de Saneamento (DNOS) para aumento da disponibilidade hídrica nas várzeas do Rio Riacho nos município de Linhares e Aracruz”, foi requerido pelo mu-nicípio de Aracruz à Secretaria de Estado para Assuntos do Meio Ambiente (Seama), em 27 de abril de 1999.

A partir de um ponto de captação distante 16 km da foz do rio houve desmatamento em área de preservação per-manente (com autorização do órgão florestal estadual) para construção de um dique de 2 km, com uma comporta para regular a passagem das águas até os canais do DNOS. As águas percorrem os canais por 7 km até outro dique, também de 2 km, que regula sua passagem para os rios Comboios e Riacho. Toda essa obra foi feita “para atender o Parque Industrial da Aracruz Celulose S. A.”, conforme registrado em parecer do engenheiro agrônomo Antônio Eduardo Lana, consultor técnico contratado pela prefeitura de Aracruz para atuar no licenciamento. De fato, a melhoria do abastecimento de Barra do Riacho não ocorreu, pois as águas não chegam até o local de captação do distrito.

A contratação do consultor foi recomendada, em 06 de maio de 1999, por técnicos da Seama que atuaram no li-cenciamento para que fossem “executados serviços de consultoria externa nas áreas de recursos hídricos e le-gislação”. Eles solicitaram à prefeitura de Aracruz “con-tratação de técnicos eminentes na área de recursos hídri-cos para análise do aspecto jurídico e técnico da matéria a prover subsídios e garantir maior agilidade para o pro-cesso de licenciamento”.

A agilidade realmente aconteceu – a despeito de haver técnicos habilitados no estado e o engenheiro agrônomo contratado ser do Rio Grande do Sul – Antônio Eduardo Lana enviou por fac-símile, em 11 de maio de 1999, o pare-cer técnico com algumas afirmações a seguir transcritas:

“1 . Trata-se de projeto de aproveitamento das vazões do Rio Doce em sua própria bacia, mais especificamente no leito maior deste curso de água e que é localizado na região deltaica da sua foz;”“2 . A utilização da água derivada do Rio Doce será para atender o Parque Industrial da Aracruz Celulose S. A. já existindo outorga neste sentido, concedida pelo Ministério das Minas e Energias; em situações de emergência, poderá associar-se com a prefeitura de Aracruz para realizar abastecimento público da região, tendo em vista a utilização prioritária para esta finalidade.”

Desde o início havia um entendimento na Seama de que o licenciamento ambiental seria para “derivação” das águas do Rio Doce e não transposição de bacia, o que foi ratifica-do pelo consultor técnico. Com base nesse entendimento, o órgão repassou à prefeitura um Termo de Referência para a elaboração de uma Declaração de Impacto Ambiental (DIA), ao invés do EIA/Rima, o que - em si - constitui-se em irregularidade, com algumas graves consequências.

A norma do art. 37 do Decreto N° 4.344-N, de 07 de ou-tubro de 1998, que então regulamentava o Sistema Es-tadual de Licenciamento de Atividades Poluidoras ou Degradadoras do Meio Ambiente, Seama, estabelecia que Declaração de Impacto Ambiental:

“é um estudo ambiental obrigatório a todos os casos de licenciamento para empreendimentos ou atividades que possam causar degradação ambiental, não abrangidas pela exigência do EIA/Rima, mas de relevante interesse público, exigível a critério técnico a ser estabelecido pelo órgão estadual competente e aprovado pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente.”

A irregularidade, neste caso, é que não há obrigatorie-dade de realização de audiência pública para licencia-mentos com a DIA, ao contrário dos licenciamentos com EIA/Rima (a Seama chegou a realizar reuniões públicas em Aracruz e Linhares, porém, o rito de audiência públi-

Page 158: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

157

ca é distinto). Desse modo, o processo pôde tramitar com maior rapidez no órgão ambiental, sob pretexto de aten-dimento de abastecimento público – melhoria no abaste-cimento dos distritos de Vila do Riacho e Barra do Riacho (este último, porém, não foi atendido) – e de algumas pro-priedades rurais nos dois municípios.

O licenciamento com o EIA implicaria também em pro-videnciar sua publicação em grandes jornais e disponibi-lizar os estudos para consulta pública pelo órgão ambien-tal pelo prazo de pelo menos 45 dias e dar publicidade a essa disponibilização, findo o qual seria realizada audiên-cia pública. Deste modo, além de desconsiderar que téc-nica e legalmente tratava-se de ‘transposição de bacia’, a decisão do órgão impediu a participação da população de modo mais efetivo no licenciamento.

Outra situação não menos grave foi o fato de o licen-ciamento ter sido requerido pelo município de Aracruz, tendo como principal premissa o interesse público para melhoria do abastecimento. Porém, o interesse privado da Aracruz Celulose em assegurar o abastecimento de seu parque industrial foi o maior beneficiário do licen-ciamento, em face de um iminente problema de escassez de água que estava prestes a ocorrer com um período de seca no final do ano de 1998 e início de 1999. Esse fato está confirmado no parecer do consultor técnico Antônio Eduardo Lana.

José Cláudio Pimenta, quando atuava como Coorde-nador das Curadorias de Meio Ambiente do Ministério Público Estadual, manifestou-se sobre esse processo de licenciamento no OF/CAAB/N° 292/2001, de 27 de agos-to de 2001, que foi encaminhado ao Procurador Geral:

“No tocante aos licenciamentos ambientais relacionados com a empresa Aracruz Celulose, que tramitam junto à Seama, constamos que há uma licença requerida pela Prefeitura Municipal de Aracruz para adução de água do Rio Doce, mediante um sistema de canais e comportas de controle de vazão e transferência d’água até o Rio Riacho, tendo como beneficiária principal a empresa, com direcionamento do fluxo d’água para o sistema de captação do complexo industrial da fábrica de celulose. Releva salientar que esse licenciamento foi requerido pelo poder público municipal, sob os auspícios de critérios privilegiados, em face ao interesse público subjacente. Nesse caso, de forma inusitada, na fase de acompanhamento e cumprimento das condicionantes impostas, a Seama passou a tratar o assunto diretamente com a empresa Aracruz Celulose que assumiu as obrigações antes pactuadas pela municipalidade”.

O parecer do consultor técnico foi utilizado por Cid To-manik Pompeu – consultor jurídico (de São Paulo, apesar de o órgão dispor na época de um assessor jurídico que estava concluindo mestrado em direito ambiental) – con-tratado pelo município de Aracruz, para elaborar parecer

jurídico enviado à Seama por fac-símile no dia 12 de maio de 1999 com transmissão iniciada às 17h04 e concluída às 17h23, manifestando-se favoravelmente ao licenciamento com a DIA, uma vez que o entendimento técnico era de que tratava-se de “derivação” e não “transposição de bacia”.

Importante atentar para o horário, de modo a ressaltar que no mesmo dia 12 de maio a tramitação do processo incluiu: 1) Despacho para o Setor de Licenciamento, para análise do parecer do consultor técnico, com procedimen-to da análise e devolução do processo ao Gabinete; 2) re-cebimento e juntada aos autos de cópia de parecer e au-torização do Idaf para desmatamento na área de implan-tação de dique, às margens do Rio Doce; 3) recebimento e juntada aos autos do parecer do consultor jurídico, no horário destacado; 4) encaminhamento e análise do pro-cesso pela Assessoria Técnica da Seama; 5) devolução do processo ao secretário da pasta, que determinou ao Setor de Licenciamento a emissão das licenças; 6) emissão das licenças de Localização (LL), n° 012/99, e de Instalação (LI), n° 016/99; 7) recebimento das licenças pelo repre-sentante da prefeitura de Aracruz.

Entretanto, o consultor jurídico ignorou a norma do art. 6º da legislação estadual de recursos hídricos - Lei Estadual 5.818, de 30 de dezembro de 1998 - que dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos e esta-belece o conceito legal de bacia hidrográfica como “área drenada por um curso d’água ou por uma série de cursos d’água, de tal forma que toda a vazão efluente seja des-carregada através de uma só saída, na porção mais baixa do seu contorno”.

Desse modo, a conclusão manifestada pelo consultor técnico Antônio Eduardo Lanna de que o aproveitamento de águas do Rio Doce em sua própria bacia, na qual se baseou o consultor jurídico, era equivocada, pois a foz do Rio Doce e dos rios Riacho e Comboios são distintas e, legalmente, como visto, pertencem a bacias hidrográficas diferentes. Logo, o licenciamento foi para transposição de bacia e não derivação de curso d’água como a Seama e os consultores entenderam.

Portanto, trata-se de licenciamento que exigiria análise e aprovação prévia de EIA/Rima, conforme a norma do Inciso VII, Art. 2° da Resolução n° 01/86 do Conama, que exige a elaboração de EIA/Rima para:

“obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos, tais como: barragens para fins hidrelétricos, acima de 10 MW, de saneamento ou irrigação, abertura de canais para navegação, drenagem e irrigação, retificação de curso d’água, abertura de barras e embocaduras, transposição de bacias, diques.”

Norma idêntica foi adotada pela Lei Estadual 4.701, de 01 de dezembro de 1992, em seu Art. 75, Inc. VII.

Está claro que a concessão das licenças pela Seama ao

Page 159: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

158

Em detrimento dos modos de vida das populações tradicionais locais, a Aracruz tentou “civilizar” caçadores, agricultores, erveiras e artesãos: relação moderna de trabalho e afastamento da terrae da natureza

Page 160: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

159

Tam

ra G

ilber

tson

Page 161: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

160

município de Aracruz e a autorização pelo Idaf para su-pressão da vegetação considerada como de preservação permanente ferem frontalmente o princípio da legali-dade , previsto no Art. 37, caput da Constituição Federal, que estabelece: “A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade...”. A legalidade, neste caso, deveria ser a exi-gência da elaboração de Epia/Rima, e não a dispensa des-te, como fez o órgão estadual e ainda, a prévia autorização do Ibama para a supressão da vegetação à margem do Rio Doce, a despeito da discussão da ilegalidade da Medida Provisória 1.736-36/99.

Nos dizeres de Edis Milaré e Antônio Herman V. Ben-jamim (Estudo Prévio de Impacto Ambiental, Editora Re-vista dos Tribunais, 1993, p. 76):

“o EIA não é um instrumento casuístico. Tem uma destinação a cumprir. Diversos são seus objetivos”. E entre esses objetivos os autores destacam: “a) identificação das implicações negativas do projeto e suas alternativas; b) avaliar os benefícios e custos ambientais; c) sugerir medidas mitigadoras; d) informar os setores interessados; e) informar o público de uma maneira geral; e f) influenciar o processo decisório administrativo com o suprimento de informações úteis”.

Paulo de Bessa Antunes assim se pronuncia sobre a exigência de Epia/Rima em sua obra Direito Ambiental (Lumen Juris, p. 161):

“A moderna jus-ambientalista vem se orientando no sentido de entender ser inafastável a exigência de estudos de impacto ambiental, sempre que presentes as condições tratadas no inciso IV do parágrafo 1° do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil. Em primeiro lugar, trago à colação o pensamento do professor Paulo Affonso Leme Machado, pioneiro e maior autoridade nacional em nossa matéria: O estudos de impacto ambiental devem ser exigidos pelo poder público”.

Em Estudo Prévio de Impacto Ambiental, Editora Re-vista dos Tribunais, SP, 1993, p. 92, Édis Milaré e Antônio Herman V. Benjamin declaram que:

“... manifestado o pressuposto da significância, o EIA se transforma em ato que foge à discricionariedade do administrador, não podendo ele dispensá-lo, não tendo o administrado, ademais, direito à licença sem o devido EIA. Sendo o EIA, presente o requisito legal, ato obrigatório, se o administrador, de maneira consciente, afasta sua aplicação, pode praticar crime de prevaricação. A licença ambiental expedida sem o necessário EIA não dá ao proponente do

projeto a garantia de idoneidade de um ato lícito e perfeito, capaz de gerar efeitos insuprimíveis”.

Mais adiante, os autores concluem que ”presente o pressuposto da ‘importância do impacto’, a atividade da Administração, na exigência do EIA, passa a ser vincu-ladamente direcionada, não lhe cabendo fazer, in casu, apreciação de conveniência e oportunidade, pois carece de liberdade de abstenção” [grifo do autor].

E destacam ainda que (ob. cit. p. 118), “é bom salientar que, em sede ambiental, aquilo que denominamos “participação pública” nada mais é que um contrapeso a fenômeno co-mum na Administração Pública: a “participação econômica”. Em outras palavras, os diversos agentes econômicos sempre tiveram – e continuam tendo – acesso direto aos agentes do poder de decisão, fazendo com isso prevalecer seus pontos de vista, nem sempre coincidentes com o mandato conferido ao administrador pela cidadania como um todo. É difícil não aceitar a tese de que a participação pública produz um pro-cesso decisório mais racional, já que permite a consideração de uma “multiplicidade de pontos de vista e prova ”.

Para José Afonso da Silva (Direito Ambiental Constitu-cional, Malheiros, p. 206) “A Constituição vai além, quer que o próprio estudo de impacto ambiental tenha publi-cidade, o que é mais do que a simples publicação do pe-dido de licenciamento da atividade”. E, para a apreciação dos Estudos Prévios de Impacto Ambiental, é indispensá-vel a ampla publicidade do processo administrativo para oportunizar à população o acesso ao Relatório de Impacto Ambiental (Rima), bem como à possibilidade concreta de realização de Audiência Pública, onde deverão ser leva-das em conta as sugestões e manifestações dos partici-pantes, bem como a manifestação do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), que tem poder de decisão quanto à aprovação do EIA/Rima.

Conforme ensina Paulo de Bessa Antunes (obra citada, p. 180), a Audiência Pública:

“é um ato oficial e que, nesta condição, deve ter os seus resultados levados em consideração. Cabe, no entanto, observar que o artigo 5° da Resolução n° 009/87 vem sendo pouco explorado. Determina o artigo mencionado que: ‘art. 5° - A ata da (s) audiência (s) pública (s) e seus anexos, servirão de base, juntamente com o Rima, para a análise e o parecer final do licenciador quanto à aprovação ou não do projeto’. Qual o alcance desta norma? Penso que, aqui, se estabeleceu um dever de levar em conta a manifestação pública. Este dever se materializa na obrigação jurídica de que o órgão licenciante realize um reexame, em profundidade, de todos os aspectos do empreendimento que tenham sido criticados, fundamentalmente, na audiência pública”.

No entanto, a não exigência de elaboração de EIA/Rima no licenciamento do projeto de derivação de

Page 162: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

161

águas do Rio Doce propiciou ao órgão ambiental não realizar audiência pública para o debate do projeto, ne-gando, deste modo, à população, um de seus direitos, que é o da participação, previsto e recomendado inter-nacionalmente.

Essa participação comunitária foi definida como um dos

princípios da Declaração do Rio, assinada pela maioria dos países que participaram da ECO 92 (Conferência das Na-ções Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento). Trata-se do Princípio n° 10, que tem enorme relevância para a tutela do meio ambiente e afirma que:

“O melhor modo de tratar as questões ambientais é com a participação de todos os cidadãos interessados, em vários níveis. No plano nacional, toda pessoa deverá ter acesso adequado à informação sobre o ambiente de que dispõem as autoridades públicas, incluída a informação sobre os materiais e as atividades que oferecem perigo em suas comunidades, assim como a oportunidade de participar dos processos de adoção de decisões. Os estados deverão facilitar e fomentar a sensibilização e a participação do público, colocando a informação à disposição de todos. Deverá ser proporcionado acesso efetivo aos procedimentos judiciais e administrativos, entre os quais o ressarcimento dos danos e os recursos pertinentes”.

Para Édis Milaré:

“o direito à participação pressupõe o direito de informação e está intimamente ligado ao mesmo. É que os cidadãos com acesso à informação têm melhores condições de atuar sobre a sociedade, de articular mais eficazmente desejos e idéias de tomar parte ativa nas decisões que lhes interessam diretamente”

(Direito do Ambiente, Editora Revista dos Tribunais, SP, 2000, p. 99).

Assim, a dispensa da elaboração dos Estudos Prévios de Impacto Ambiental no caso em exame, por não ter respal-do legal, é um ato que contraria o princípio da legalidade previsto no Art. 37 da CF, motivo pelo qual foi requerida a anulação das licenças por entidades da sociedade civil e pelo Ministério Público em ação judicial. No entanto, o Poder Judiciário não procedeu a anulação.

Isso ocorreu apesar da comprovação de que a Prefeitu-ra Municipal de Aracruz sequer se preocupou em assegu-rar que a “canalização”, que seria para melhorar o abas-tecimento público de Barra do Riacho e Vila do Riacho (distritos do município), atendesse ao primeiro distrito pois, quando questionado sobre essa melhoria, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Aracruz, através do Of. 201-02/SAAE-ARA, de 18/ de junho de 2002 – fls. 8.25 dos autos da CPI – informou que “a captação de água de Barra do Riacho é feita na lagoa Santa Joana, local já sem influ-

ência do canal, que não traz benefício às características físico-químicas da água captada”. Como já foi explicita-do, a captação do abastecimento desse distrito é feita no Rio Riacho em um ponto anterior à derivação das águas para as represas de abastecimento da Aracruz Celulose. Ou seja, é inegável que o interesse privado da Aracruz foi sobreposto ao interesse público dos moradores de Barra do Riacho.

b- Da ilegalidade do Procedimento administrativo e suas consequências

b.1- Da ilegalidade do Procedimento administrativo na seama e no idaf

O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf), órgão estatal que licenciou o desmatamento ocorrido às margens do Rio Doce para a construção do dique, levou em consideração para autorizar a “supressão da vegeta-ção localizada na faixa de 50 metros de largura por 2.000 metros de comprimento”, apenas a legislação florestal estadual, a despeito de a Constituição Federal estabele-cer expressamente em seu art. 24, e §§, a prevalência das normas gerais da União sobre as normas dos estados, o que foi ignorado pelos técnicos do Idaf.

Segundo Paulo Affonso Leme Machado, “o Código Flo-restal de 1965 institui dois tipos de florestas de preser-vação permanente criadas pelo ‘só efeito desta lei’ (art. 2°) e as florestas de preservação permanente instituídas por ato do Poder Executivo (art. 3°). Ambas as florestas estão inseridas em um espaço, que passou a ser modi-ficável somente por uma lei. Assim, o art. 3° parágrafo único do Código Florestal está implicitamente revogado pela Constituição Federal, pois diz a nova redação desse parágrafo: ‘A supressão total ou parcial de florestas e de-mais formas de vegetação permanente de que trata esta lei, devidamente caracterizada em procedimento admi-nistrativo próprio e com prévia autorização do órgão fe-deral de meio ambiente, somente será admitida quando necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social, sem prejuízo do licenciamento a ser procedido pelo órgão ambiental competente’ (Medida Provisória n° 1.736-36 de maio de 1999)”. (O Direito Ambiental e a Proteção das Florestas no Século XXI – Anais do 3° Congresso Interna-cional de Direito Ambiental, 1999, p. 7).

Sérgio Turra Sobrane, na conferência A Lei de Improbi-dade Administrativa e sua Utilização na Proteção das Flo-restas Brasileiras: Um Caso Concreto (A Proteção Jurídica das Florestas Tropicais, Anais do 3° Congresso Interna-cional de Direito Ambiental, 1999 – p. 401), assevera que “descurando-se da observância dos princípios que regem a Administração Pública, dolosamente ou não, estará o agente público incorrendo na prática de atos de improbi-dade administrativa”. E mais adiante conclui “verificada

Page 163: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

162

a inobservância, pela autoridade pública de uma regra normativa que deveria ser aplicada e observada, seu ato estará dissociado do princípio da legalidade, impondo-se a nulificação e responsabilização do agente” (p. 405).

Deve se ressaltar que entre os atos que implicam em improbidade administrativa previstos na Lei 8.429, de 02 de junho de 1992, estão não apenas os que determinam o enriquecimento ilícito (art. 9°), ou os que causam prejuízo ao patrimônio público (art. 10), como também os atos que atentem contra os princípios da administração pública (art. 11) que é o dispositivo legal aplicável aos agentes pú-blicos que atuaram nos Processos Administrativos, tanto da Seama como do Idaf. Diz o Art. 11 da Lei 8.429/92:

“Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente: I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”.

Houve concreta infringência à legalidade com a prática dos atos que levaram ao licenciamento ambiental e à au-torização da supressão da vegetação de preservação per-manente, e a prática desses atos sujeita os agentes por eles responsáveis às penas previstas no art. 12 da referida lei.

No entanto, apesar de várias irregularidades cometidas, tanto por técnicos como por dirigentes do órgão ambien-tal e florestal do estado, o Ministério Público capixaba não adotou nenhuma medida visando a responsabiliza-ção dos mesmos.

V- Das ilegaliDaDes nos licenciaMenTos Dos noVos PlanTios

a- ilegalidades nos Plantios da Própria empresa

Além das críticas feitas por diversos grupos da socie-dade civil à primeira ampliação da produção da Aracruz Celulose, em 1988, que passou de 550 mil para 1 milhão de toneladas/ano, o governo do Espírito Santo manifestou oficialmente junto à empresa preocupação com a concen-tração de terras, bem como a ocupação de terras agricul-táveis com o plantio de eucalipto destinado à produção industrial de celulose. Essa preocupação teve como maior resultado a condicionante n° 15 da Licença de Instala-ção – LI n° 01/88: “A Aracruz Celulose S.A. e a Aracruz Florestal S.A. ou empresas das quais estas participem só poderão adquirir, para o seu projeto de ampliação, áreas de propriedade (ou posse) de pessoas jurídicas e que já estejam reflorestadas.”

Entretanto, no licenciamento ambiental da ampliação da empresa em 2000, quando a produção passou de 1,2 milhão para 2 milhões de toneladas/anos, o governo es-tadual, adotando uma posição diametralmente oposta à de 1988, revogou a condicionante da licença de 1988. A Seama desonerou a empresa da restrição através da “con-dicionante” n° 24 da Licença de Instalação – LI n° 09/2000 (de 16 de março de 2000):

“Para fins de esclarecimentos, fica deliberado que não existe qualquer tipo de proibição no estado do Espírito Santo para o plantio de eucalipto e compra de terras pela Aracruz Celulose S.A., dirimindo quaisquer dúvidas decorrentes da interpretação da condicionante 15, imposta pela licença ambiental da Fábrica “B” em 1988, desde que, seguidos os critérios ambientais”.

Esta “deliberação” não foi apenas equivocada – por ignorar as preocupações com questões como aumento da concentração fundiária e garantia de preservação de áreas agricultáveis – como também ilegal, uma vez que o licenciamento ambiental era da ampliação da produ-ção de celulose, sem previsão nos estudos ambientais, de plantios no território do Espírito Santo, caracterizando, claramente, desvio de finalidade, a inclusão dos plantios no licenciamento do empreendimento.

Afirmações de técnicos da Seama de que o licenciamen-to ambiental resumia-se à ampliação da produção indus-trial, sem qualquer relação com os plantios de eucalipto da Aracruz Celulose, demonstraram de modo cabal o desvio de finalidade, que foi a inclusão dos plantios na licença:

I – “O empreendimento que está sendo licenciado não é referente à plantação de eucalipto” - declaração do Coordenador de Controle Ambiental do órgão - João Carlos A. Vianna, em reunião prévia ao licenciamento da ampliação, realizada em 01 de janeiro de 2000 no distrito de Barra do Riacho, município de Aracruz;II – “Observa-se, no entanto, que o empreendimento em análise não visa ampliação da área plantada de eucalipto no estado do Espírito Santo, tendo em vista que o incremento de eucalipto necessário para a alimentação da Fiberline “C” será todo adquirido no sul do estado da Bahia e, se necessário, importado de países do Mercosul, como o Uruguai” - Parecer Técnico do engenheiro agrônomo Fabrício Meneguelli Barros, da Seama, referente à análise do Meio Biótico - Área Florestal, relativo à Expansão da Aracruz Celulose.

“Exonerada” da restrição da LI n° 01/88, irregularida-des ainda mais graves ocorreram nos licenciamentos dos novos plantios da Aracruz Celulose pelo Idaf. O órgão simplesmente licenciou plantios em vários municípios, em processos repletos de ilegalidades, entre elas a de “exonerar” a empresa da elaboração de EIA/Rima para

Page 164: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

163

plantios em áreas superiores a cem hectares (uma vez que os licenciamentos foram feitos mediante a elabora-ção de estudos ambientais simplificados ou Declaração de Impacto Ambiental) e a de incorporar o licenciamento de cada nova área – independente de sua localização – Linhares, Jaguaré, Sooretama ou outro município, a uma única licença (LO 03/99).

O Idaf não poderia licenciar esses novos plantios senão seguindo as normas do Decreto N° 4.344-N/98, que à épo-ca era a norma reguladora do Sistema Estadual de Licen-ciamento de Atividades Poluidoras (SLAP), com a expedi-ção das seguintes licenças: Licença Prévia (LP) - expedida quando não há impedimento para a atividade no local da instalação; Licença de Instalação (LI) - expedida após o cumprimento das condições da LP; e Licença de Operação (LO) - expedida após o cumprimento da LI, conforme es-tabelecia o art. 14, Inc. I, II e III, do Decreto. Em ampliações de atividades, também deve ser levada em consideração, primeiramente, a localização pretendida para expedição da LP. Somente após a expedição desta podem ser libera-das as das demais licenças (LI e LO). O órgão deveria abrir um processo para a nova área licenciada.

No entanto, todos os novos plantios licenciados pelo Idaf, após a revogação da condicionante restritiva da am-pliação da Aracruz em 1988, conforme apurado pela CPI que investigou irregularidades nos licenciamentos da empresa, foram “incorporados” à Licença de Operação - LO n° 039/99, e essa ilegalidade permaneceu sem que sua revisão tenha sido feita pela própria Administração ou pelo Judiciário. Além da ilegalidade da dispensa da ela-boração de EIA/Rima para o licenciamento.

E essa dispensa irregular quanto à elaboração do EIA para o licenciamento dos novos plantios fere não apenas as normas do art. 2°, inc. XIV da Resolução 01/86 do Co-nama, que elenca o rol de atividades sujeitas à elabora-ção do referido instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, como também a norma que foi inserida na Lei Estadual 4.701/92, em seu art. 75, XIV:

“Art. 2°. Dependerá da elaboração de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (Epia) e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima), a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do Ibama em caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: XIV – Exploração econômica de madeira ou lenha, em área acima de cem hectares ou menores, quando atingir áreas significativas em termos percentuais ou de importância do ponto de vista ambiental”.

O art. 75, XIV da Lei 4.701/92 estabelece que:

“Dependerá da elaboração de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (Epia) e respectivo Relatório de Impacto ambiental (Rima), a serem submetidos à apreciação do órgão estadual

competente, e o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: XIV – Exploração econômica de recurso florestal, em áreas acima de cem hectares, ou menores, quando atingir áreas significativas em termos percentuais ou de importância do ponto de vista ambiental”.

Sem a exigência de EIA/Rima na fase do licenciamento prévio (LP) e a incorporação de cada nova área licenciada à LO 03/99, os licenciamentos se limitaram aos “gabine-tes” do Idaf, feitos apenas com a participação de técnicos do órgão e da Aracruz Celulose, sem que fosse assegura-do o “direito de participação” da sociedade, privada deste direito pelo estado e impedida de discutir nos processos de licenciamento os impactos dos plantios de eucalipto, em flagrante contrariedade com as normas da Carta Mag-na e da legislação federal e estadual.

O engenheiro agrônomo Fabrício Meneguelli Barros, também registrou em seu parecer técnico que:

“... os plantios de eucalipto têm sido reconhecidos como atividade impactante, já que os setores técnico e ambientalista demonstram preocupação com relação a seus efeitos sobre o meio ambiente. Deste modo, pode-se compreender a necessidade de direcionar esforços para melhor entendimento das alterações ambientais promovidas pelos plantios florestais, com o objetivo de compor a base científica que tratará da minimização e da potencialização dos seus impactos ambientais negativos e positivos, respectivamente”.

Nos dizeres de Aristides Almeida Rocha in Curso Inten-sivo Sobre Avaliação de Impacto Ambiental e Saúde Pú-blica (Aspectos Hidrobiológicos na Avaliação de Impactos Ambientais), publicação da Faculdade de Saúde Pública – Departamento de Saúde Ambiental/USP, SP, p. 1, “ne-nhum empreendimento, por mais benéfico que seja, deixa de apresentar algum impacto negativo. Cabe à autoridade ambiental decidir sobre a importância deste em face dos benefícios alcançados”.

Deve ser destacado, que quando se fala em impactos ambientais, estes abrangem não apenas os componentes naturais do meio ambiente, como também efeitos dele-térios sobre as atividades sociais e econômicas nas áre-as de influência das atividades objeto de licenciamento, exigindo, desse modo, para plantios em áreas com deter-minadas dimensões (notadamente as que têm área su-perior a cem hectares), a elaboração e análise de Epia/Rima, bem como a garantia do direito da sociedade de requerer a realização de audiência pública para discus-são dos licenciamentos.

Esses impactos foram motivo de preocupação dos pro-dutores rurais de Sooretama, município do norte do esta-do, quanto ao desemprego no campo que os plantios de eucalipto estavam provocando. Na fazenda que pertencia

Page 165: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

164

à família de Luiz Meneghelli, em Vila Valério, conforme o depoimento de João Batista Marré à CPI da Aracruz Ce-lulose, cerca de 11 famílias de meeiros tiveram que deixar as casas (que foram derrubadas) e os empregos, depois que a mesma foi adquirida para plantios de eucalipto da empresa. A propriedade, que produzia café, passou a pro-duzir madeira destinada à produção.

Além disso, a compra de terras pela empresa para os novos plantios provocou outro impacto significativo, já que houve uma elevação dos preços das terras. Este as-sunto foi objeto de matéria publicada pelo jornal A Ga-zeta, em 27 de outubro de 2002 (Preço da terra dificulta assentamentos no norte). Conforme registrou o jornal, a elevação dos preços da terra estava “inviabilizando a im-plantação do Projeto de Crédito Fundiário e Combate à Pobreza na região”, dentro de um programa do governo federal de apoio a assentamentos de agricultores, provo-cando ainda mais impactos sociais e econômicos sobre o setor agrícola no estado.

Apesar de todos os impactos descritos em diversos do-cumentos oficiais, estudos, pareceres, matérias de jornais e até em decisão do Supremo Tribunal Federal em uma ação que julgou inconstitucional e suspendeu uma norma da Constituição do estado de Santa Catarina que deso-nerava as empresas de elaborar EIA/Rima para plantios como os da Arcel, o Idaf não exigiu a elaboração desses estudos e, consequentemente, afastou a possibilidade de participação da população nos processos de licenciamen-to dos plantios da empresa.

A decisão do STF mencionada acima foi na Ação Di-reta de Inconstitucionalidade n° 1086-7, requerida pela Procuradoria Geral da República em face da Assembléia Legislativa de Santa Catarina. A ação foi julgada em 1° de agosto de 1994 e na Ementa do Acórdão é a seguinte: “Constitucional, Ação Direta, Obra ou Atividade Poten-cialmente Lesiva ao Meio Ambiente, Estudo Prévio de Impacto Ambiental”. E especifica que:

“... diante dos amplos termos do inc. IV do § 1° art. 225 da Carta Federal, revela-se juridicamente relevante a tese de inconstitucionalidade da norma estadual que dispensa o estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais. Mesmo que se admitisse a possibilidade de tal restrição, a lei que poderia viabilizá-la estaria inserida na competência do legislador federal, já que a este cabe disciplinar, através de normas gerais, a conservação da natureza e a proteção do meio ambiente art. 24, inc. VI, da CF, não sendo possível, ademais, cogitar-se da competência legislativa a que se refere o § 3° do art. 24 da Carta Federal, já que esta busca suprir lacunas normativas para atender a peculiaridades locais, ausentes na espécie.”

Destaque-se que o Ministro Ilmar Galvão, relator da re-

ferida ADI, ressaltou que:

“a atividade de florestamento ou reflorestamento, ao contrário do que se poderia supor, não pode deixar de ser tida como eventualmente lesiva ao meio ambiente, quando, por exemplo, implique em substituir determinada espécie da flora nativa, com suas próprias especificidades, por outra, as mais das vezes, sem qualquer identidade com o ecossistema local e escolhidas apenas em função de sua utilidade econômica, com ruptura, portanto, do equilíbrio e da diversidade da flora local”.

Portanto, ficam patentes as irregularidades nos li-cenciamentos feitos pela Seama e pelo Idaf, que inclu-sive desconsiderou a decisão do STF cujo resumo foi aqui transcrito.

b- ilegalidade pela falta de compensaçãoComo forma de compensar os impactos ambientais

previstos nas cinco modalidades elencadas na Resolu-ção 01/86, dos quais pelo menos quatro podem ser cons-tatados nas atividades da Aracruz Celulose, o Conama baixou a Resolução 02/96 (revogada com a vigência de Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC), que em seu art. 1º e 2° estabelecia:

“Art. 1°. Para fazer face à reparação dos danos ambientais causados pela destruição de florestas e outros ecossistemas, o licenciamento de empreendimentos de relevante impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente com fundamento no EIA/Rima, terá como um dos requisitos a serem atendidos pela entidade licenciada, a implantação de uma unidade de conservação de domínio público e uso indireto, preferencialmente uma Estação Ecológica, a critério do órgão licenciador, ouvido o empreendedor”.

O art. 2° da Resolução estabelecia:

“o montante dos recursos a serem empregados na área a ser utilizada, bem como o valor dos serviços e das obras de infraestrutura necessárias ao cumprimento do disposto no artigo 1°, será proporcional à alteração e ao dano ambiental a ressarcir e não poderá ser inferior a 0,5% (meio por cento) dos custos totais previstos para implantação do empreendimento.”

Como já mencionado, Édis Milaré e Antônio Herman V. Benjamin afirmam que:

“... sendo o EIA, presente o requisito legal, ato obrigatório, se o administrador, de maneira consciente, afasta sua aplicação, pode praticar crime de prevaricação”. Eles também entendem

Page 166: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

165

que ”presente o pressuposto da ‘importância do impacto’, a atividade da Administração, na exigência do EIA, passa a ser vinculadamente direcionada, não lhe cabendo fazer, in casu, apreciação de conveniência e oportunidade, pois carece de liberdade de abstenção”.

(p. 109)

A Seama, à época do licenciamento da Arcel em 2000, deliberadamente desonerou a empresa da obrigação de repassar 0,5% do montante aplicado na ampliação para ações de conservação, conforme as normas citadas. A em-presa informou à CPI que o custo da ampliação foi de R$ 2 bilhões de reais, ou seja, o órgão deixou, de forma ilegal, de exigir da Aracruz Celulose R$ 10 milhões de reais para tal finalidade. E esta foi mais uma irregularidade que fi-cou sem resposta das autoridades, inclusive do Ministério Público, cabendo à sociedade civil a sua cobrança, confor-me feito pela Federação de Órgãos Para Assistência Social e Educacional (Fase/ES), em ação civil pública perante a Justiça Federal de Vitória, em 2005.

Deve se destacar também que a Cepemar, empresa con-tratada pela Aracruz Celulose para elaborar o Epia/Rima da expansão industrial neste processo de licenciamen-to de ampliação, ainda que já tivesse contratado toda a equipe que atuou nos levantamentos em 30 de novembro de 1999, data do início do processo de licenciamento na Seama, não teria como realizar as avaliações e estudos do Epia/Rima até o dia 23 de dezembro de 1999, prazo regis-trado pela Seama como tendo sido o de recebimento do Rima, e por conseguinte, também dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA), conforme consta da CI/Seama/CCA n° 023/99 (juntado aos autos da CPI). Um Estudo Prévio de Impacto Ambiental de tamanha complexidade (da maior indústria de celulose de fibra curta do mundo) - por mais dados que a Cepemar e a própria Arcel tenham em seus arquivos sobre os monitoramentos das atividades da em-presa - não tem como ser elaborado em apenas vinte e três dias. Esta é mais uma das situações incongruentes que cercam os licenciamentos das atividades da Aracruz Celulose que permanece sem esclarecimento, apesar dos esforços da sociedade civil organizada na busca destes esclarecimentos, tanto junto à Administração, como junto ao Judiciário.

c- ilegalidades no licenciamento dos Plantios do fomento florestal ii

Na condicionante 10 do licenciamento da ampliação (Licença de Instalação – LI n° 009/2000) da Aracruz Celu-lose para implantação da chamada “Fábrica C”, a Seama estabeleceu que a empresa deveria:

“... implantar em sete anos, a partir de 2001, programa em parceria com produtores rurais, para produção de madeira de eucalipto, com área de pelo menos 30 mil hectares,

dando aos produtores opção contratual para exploração visando, além da celulose, a produção de sólidos de madeira, propiciando dessa forma condição básica para a implantação no estado de pelo menos uma Unidade de Sólidos de Madeira (Serraria) de grande porte. Prazo: noventa dias para junto à Seama e SEAG estabelecer as base do referido programa.”

O licenciamento desses plantios, que constituíram o Programa Fomento Florestal II, foi mais um processo que violou de modo flagrante o princípio da legalidade do art. 37 da Constituição Federal. Além disso, desconsiderou o Termo de Ajustamento de Conduta firmado tanto pelo Idaf como pela Seama em uma ação civil pública movida pela Procuradoria da República no Espírito Santo pela falta de exigência de EIA/Rima no licenciamento do Fo-mento Florestal I pelo órgão ambiental, em 1988. Esses programas são uma forma da empresa garantir uma “re-serva” de estoque de matéria-prima (madeira), mediante contratos de plantios que firma com proprietários rurais, em praticamente todos os municípios do estado.

Mesmo após obrigar-se a elaborar o EIA do primeiro programa, o Idaf licenciou o Programa Fomento Flores-tal II em exatos vinte e dois dias entre o requerimento de licenciamento, com a abertura do Processo Administrati-vo n° 18053432, em 22 de maio de 2000, e a concessão da Licença de Operação 001/2000, em 12 de junho de 2000, assinada pelo diretor técnico do órgão florestal, Antônio Francisco Possati. O Idaf não exigiu para este licencia-mento a elaboração de novo EIA – o que deveria ter sido feito, uma vez que se tratava de um novo licenciamento, em áreas distintas das que foram objeto do licenciamen-to do primeiro programa.

Os técnicos do Idaf, além de defenderem que os plan-tios não provocam impactos significativos (justificativa técnica, que não se comprova na prática), argumenta-ram no mesmo sentido do ex-secretário de Estado da Agricultura, Pedro de Faria Burnier, à época do licen-ciamento, em depoimento perante a CPI em 18 de junho de 2002:

“O processo de licença da SEAG é específico do Fomento Florestal II. Quer dizer, o Idaf emitiu uma licença do Programa Florestal II, e nesse caso específico o que se licenciou foi um programa e não um projeto”; e ainda “devo adiantar que com relação ao programa – não o projeto – de Fomento Florestal II foi seguido o mesmo conceito técnico do Programa Fomento Florestal I. Foi exatamente o mesmo conceito”.

(pág. 7553 e 7554)

Inquirido sobre o porquê não foi exigida pelo Idaf da Aracruz Celulose S/A a elaboração prévia do licencia-mento de EIA/Rima para o licenciamento do Programa

Page 167: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

166

Fomento Florestal II, em cumprimento ao art. 75, XVI da Lei 4.701/92 que exige os estudos, o ex-secretário respon-deu que (pág. 7556):

“O aspecto de nós analisarmos isso é exatamente o aspecto de entendermos a silvicultura e, especificamente, o plantio de eucalipto como um cultivo de uma espécie arbórea, como é o caso de um laranjal, como é o caso da cafeicultura. Por isso, o governo faz programas e para esses programas não se faz pelo menos necessário, para nenhum deles, estudo de impacto ambiental, EIA/Rima, porque são apenas programas”.

Questionado acerca da existência ou não de parecer ju-rídico que desse respaldo à decisão do Idaf em não exigir a elaboração prévia de EIA/Rima para o licenciamento do Programa Fomento Florestal II, desconsiderando a norma do art. 75, XIV da Lei 4.701/92, o ex-secretário da Seag respondeu: “não tem” (pag. 7557).

Enquanto o discurso dos técnicos do Idaf e da direção superior do órgão e da Seag justificavam a não exigência de EIA/Rima para os plantios, com o argumento de que não seria possível a priori definir as áreas de plantio e, desse modo, os estudos não poderiam ser exigidos pre-viamente ao licenciamento por tratar-se de “programa” e não de “projeto”, os plantios, conforme informações le-vantadas pela CPI (fls. 4.560), já haviam alcançado uma área superior a quatro mil hectares.

Além dos impactos já descritos, há ainda os impactos do transporte da madeira nas estradas, vilas e cidades do interior do estado; da presença dos plantios e como eles podem interferir nos ecossistemas de Mata Atlânti-ca dos municípios da região montanhosa, por exemplo; de plantios em áreas de preservação permanente (com casos comprovados em auditoria realizada pelo próprio Idaf), dentre outros.

Uma ação popular foi ajuizada em 2001 com requeri-mento da anulação da LO 001/2000 do Idaf, que autori-zou o início do Fomento Florestal II. Apesar de ter obtido liminar suspendendo os plantios, a liminar foi cassada pelo Tribunal de Justiça. E passados quase 10 anos de tramitação da ação, não há, ainda, previsão de decisão em primeira instância. Quando ocorrer a decisão, ain-da há possibilidades de recurso ao Tribunal de Justiça no estado e ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Ou seja, poderão se passar algumas décadas sem uma decisão final de uma demanda que grupos da sociedade civil apresentaram ao Judiciário, ante os atos omissos e comissivos dos órgãos licenciadores e a omissão do Mi-nistério Público.

Essa omissão ocorreu a despeito do Coordenador do CAAB – Ministério Público Estadual, responsável pelas Curadorias de Meio Ambiente, José Cláudio Rodrigues Pimenta, ter manifestado, em expediente encaminhado

ao deputado Cláudio Vereza, a constatação de “incon-gruências técnicas entre o EIA/Rima e o licenciamento ambiental”, entre elas, a que “impõe como condicionante à Licença de Instalação n° 009/2000, que o empreende-dor promova no prazo de sete anos a implantação de 30 mil hectares de plantio de eucalipto para celulose e ma-deira”, concluindo:

“Ora, se essa atividade específica de florestamento de per si necessita de EIA/Rima, como pode se transmutar em condicionante ambiental?” e ainda “a inserção de tal requisito, além de violar a essência do procedimento de licenciamento ambiental, constitui-se em desvio de finalidade e promove de forma clandestina a supressão do debate técnico e social de parcela significativa de aspectos relevantes do projeto de expansão”. O promotor afirma “assim agindo, o órgão ambiental passa a exercer uma atividade de promoção industrial, tal como uma agência de desenvolvimento” e, “nessa condição, o estado passa da condição de regulador a de promovedor e parceiro de uma atividade impactante”.

Em outro expediente – o OF/CAAB n° 592/2002, de 23 de dezembro de 2002 –, o promotor destaca também que “em hipótese alguma, poderia a autoridade ambiental criar uma obrigação desvinculada de tal finalidade, sobretu-do quando se aparta de seu foco e se projeta a atender interesses logísticos e econômicos da empresa e não ao interesse geral”.

d- ilegalidades no licenciamento da agropecuária Riacho Ltda – Agril (um caso à parte)

Através dos Processos Administrativos n° 18549390 e 18442269/2000, o Idaf licenciou o plantio de eucalipto fei-to em nome da empresa Agropecuária Riacho Ltda (Agril), no distrito de Vila do Riacho, em Aracruz, cuja destinatá-ria da madeira foi a Aracruz Celulose S.A. para a produ-ção de sua fábrica. Em função das dimensões do plantio, o órgão encaminhou Termo de Referência à empresa, para elaboração de Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima).

No entanto, em 18 de julho de 2000, com requerimen-to pela empresa Rhea – Estudos e Projetos Ltda e as-sinado pelo engenheiro Álvaro Garcia, procurador da Agril, a área, que inicialmente era de 5.400 hectares, passou a ser de 6.678 hectares, nas fazendas Bacia do Riacho e Retiro Grande, abrangendo parte dos territó-rios dos municípios de Linhares e Aracruz.

Entre as irregularidades verificadas no trâmite do pro-cesso de licenciamento do plantio da Agril está o fato de parte da área ser constituída de terra devoluta. O art. 250 da Constituição Estadual determina: “É vedado ao Esta-do: II – promover a legitimação ou alienação de terras públicas ou devolutas para fins de reflorestamento com

Page 168: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

167

espécies exóticas”. E para dar uma solução para a norma constitucional, o Idaf se baseou em um parecer jurídico do advogado Rodrigo Loureiro Martins (contratado pela empresa Rhea, procuradora da Agril) e um dos advogados que a Aracruz Celulose S.A. contratou para acompanhar os trabalhos da CPI.

Em depoimento prestado à CPI, em 18 de junho de 2002, o procurador do Idaf, advogado Sérgio Moraes Neto, declarou o seguinte acerca do licenciamento da área da Agril:

“Outro caso importante que deve ser dito aqui é o seguinte: a empresa nesse licenciamento aqui vai plantar eucalipto em terra devoluta. Acho que isso não é correto. A questão fundiária dessa área foi um assunto que citei na reunião de Santa Cruz e que não fui bem ouvido, e na qual a empresa requereu um parecer de um outro advogado falando que a comissão tinha competência para tal e que não tínhamos que nos meter na vida da empresa. Nesse ponto já fiquei com a ‘orelha em pé’ e falei assim: ‘temos uma lei estadual que regula a questão da regularização e da legitimação fundiária’. Como essa empresa pode querer plantar eucalipto numa terra que está com a situação fundiária irregular? Essa terra é devoluta”.

Mas não apenas o plantio em terra devoluta, como tam-bém o procedimento para o licenciamento foi conduzido de modo irregular, ao não cumprir as etapas de licencia-mento estabelecidas no § 1º art. 10 do Dec. n° 4.344/98 (SLAP) a saber:

“O procedimento para o licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas:I - definição fundamentada pelo órgão ambiental competente dos documentos, projetos e estudos ambientais e de saúde pública necessários ao início do processo de licenciamento correspondente à licença a ser requerida, com a participação do empreendedor.II - requerimento da licença ambiental pelo empreendedor, acompanhado dos documentos, projetos e estudos ambientais pertinentes, dando-se a devida publicidade;III - análise pelo órgão estadual competente, integrante do Sisnama [Sistema Nacional de Meio Ambiente], dos documentos, projetos e estudos ambientais apresentados e a realização de vistorias técnicas, quando necessárias;IV - solicitação de esclarecimentos e complementações pelo órgão competente, integrante do Sisnama, uma única vez, quando couber, e com base em norma legal ou em sua inexistência em parecer técnico fundamentado, em decorrência da análise dos documentos, projetos e estudos ambientais apresentados, podendo haver a reiteração da mesma solicitação apenas nos casos em que os esclarecimentos e complementações,

comprovadamente, não tenham sido satisfatórios, nos termos da lei e deste Decreto;V - audiência pública, quando couber, de acordo com a lei e com este Decreto;VI - solicitação de esclarecimentos e complementações pelo órgão competente, decorrentes de audiências públicas, quando couber, podendo haver reiteração da solicitação quando os esclarecimentos e complementações não tenham sido comprovadamente satisfatórios, nos termos da Lei e deste Decreto;VII - emissão de parecer técnico conclusivo e, quando couber, parecer jurídico;VIII - deferimento ou indeferimento do pedido de licença, dando-se a devida publicidade.”

O Idaf conduziu o processo mediante a exigência prévia de EIA/Rima e, em 09 de agosto de 2000, publicou edital colocando o Rima do empreendimento à disposição dos interessados no prazo de 45 dias, prazo que terminaria no dia 23 de setembro. Entretanto, o órgão concedeu a Licença Prévia – LP 001/2000 - à Agril em 12 de setem-bro de 2000, 12 dias antes do término do prazo em que o Rima deveria ficar à disposição da população para con-sulta e solicitação de audiência pública. Esta condução do processo, abreviando o trâmite legal do licenciamento é - sem controvérsia - ilegal. A audiência foi requerida e realizada em 4 de dezembro de 2000, depois do Idaf já ter concedido a licença prévia à Agril, o que demonstra o descaso do órgão no que tange ao cumprimento da legali-dade nos processos de licenciamento.

Na mesma data da expedição da LO 001/2001 para o plantio feito pela Agril, em 15 de janeiro de 2001, a Seama forneceu certidão negativa de débito ambiental atestando que “nenhum débito ou irregularidade quanto às ques-tões ambientais foi encontrado em nome da Agril – Agro-pecuária Riacho Ltda”.

No mesmo sentido, a Coordenação de Controle Am-biental da Seama em atendimento a pedido do Ministério Público informou:

“Quanto à solicitação de informações de pendências ambientais da empresa Agril – Agropecuária Riacho Ltda - em outros processos que se encontram nessa Seama, vimos informar que nenhuma irregularidade quanto às questões ambientais foi encontrada nos processos 1052/92 e 1283/89, referentes à Licenciamento de Entreposto de Pescado e Obstrução de Lagoa, respectivamente, ambos em nome da Agril”.

No entanto, houve omissão quanto ao Processo 1283/89, que havia sido arquivado e posteriormente reaberto, cul-minando com a aplicação de penalidade – Auto de Multa 2507, de 07 de fevereiro de 1996 – no valor de 2.000 uni-dades padrão fiscal do estado.

Page 169: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

168

Vi- Da RePResenTaÇão cRiMinal feiTa eM face Das ilegaliDaDes

Inconformadas com a omissão das autoridades quanto à adoção de medidas tanto a nível administrativo, como cível – neste campo foram ajuizadas as ações citadas anteriormente, uma popular contra o licenciamento do Fomento Florestal II, e duas ações civis públicas, uma contra as ilegalidades nos processos de licenciamento da ampliação da Arcel e dos novos plantios, e outra contra as ilegalidades no licenciamento da transposição das águas do Rio Doce –, 12 entidades que integram a Rede Alerta Contra do Deserto Verde deram entrada, em abril de 2004, junto à Procuradoria Geral de Justiça e à Delegacia Esta-dual de Investigação de Crime contra o Meio Ambiente (com cópia para autoridades e órgãos como o governador e o Ibama), em uma Notícia Criminal narrando os fatos que, em tese, configuravam crimes cometidos por técni-cos que atuaram em processos, bem como por diretores, chefes e secretários dos órgãos que licenciaram as ativi-dades da Aracruz Celulose. As entidades juntaram à de-núncia diversos documentos reproduzidos dos autos da CPI e de outros processos, como forma de comprovação das denúncias.

Entre as modalidades de crimes que foram objeto da denúncia, estava o de improbidade administrativa previs-ta no art. 11 da Lei 8.429/92, que estabelece:

“Constitui ato de improbidade administrativa, que atenta contra os princípios da Administração Pública, qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições e, notadamente: I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”.

Para Pazzaglini Filho, Elias Rosa e Fazzio Júnior:“Na situação indicada, o agente público pratica ato nulo, por ilicitude do objeto ou por incompetência. É o desvio de finalidade, seja porque atua com fito pessoal (por exemplo, vingança, protecionismo, etc.), seja porque tem em mira finalidade administrativa diversa da determinada pela lei, e para que se configure o disposto no inciso, basta que o ato inquinado vise fim ilícito ou extrapole a esfera de competência do agente público”.

(Improbidade Administrativa – Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público, p. 113/114, Atlas)

Por sua vez, segundo Marcelo Figueiredo (Probidade Administrativa – Comentários à Lei 8.429/92 e legislação complementar, p. 61 Malheiros Editores):

“O princípio da legalidade é, sem dúvida, um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Ao lado dele convive o

princípio da supremacia do interesse público ou princípio da finalidade pública. De fato, a Administração Pública, ao cumprir seus deveres constitucionais e legais, busca incessantemente o interesse público, verdadeira síntese dos poderes a ela atribuídos pelo sistema jurídico positivo, desequilibrando forçosamente a relação administração-administrado. Ausentes os poderes administrativos, não seria possível realizar uma série de competências e deveres institucionais (os sacrifícios a direitos, as intervenções, desapropriações, autorizações, concessões, poder de polícia, serviços públicos, etc.). Contudo, forçoso reconhecer que a atividade administrativa não é senhora dos interesses públicos, no sentido de poder dispor dos mesmos a seu talante e alvedrio. Age de acordo com a ‘finalidade da lei’, com os princípios retores do ordenamento, expressos e implícitos. A administração atua, age, como instrumento de realização do ideário constitucional, norma jurídica superior do sistema jurídico brasileiro”.

Também noticiariam que, em tese, houve o cometimen-to de “crime contra a administração ambiental”, previs-tos nos artigos 66 e 67 da Lei 6.905/98 (Lei de Crimes Ambientais),conforme transcrito:

“Art. 66 - Fazer o funcionário público afirmação falsa ou enganosa, omitir a verdade, sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimentos de autorização ou de licenciamento ambiental. Pena: reclusão, de um a três anos, e multa”.“Art. 67 - Conceder o funcionário público licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja realização depende de ato autorizativo do Poder Público. Pena: detenção, de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa”.

Com relação à modalidade de conduta prevista no art. 66, foram denunciados técnicos que prestaram infor-mações em processos de licenciamento das atividades da Aracruz Celulose que não condizem com a verdade, omitindo o conhecimento de normas legais que exigiam o licenciamento a ser feito mediante EIA/Rima (com pos-sibilidade negligenciada à população para requerer au-diência pública para discussão dos licenciamentos), bem como omitindo e mesmo negando a constatação de que os plantios de eucalipto são causadores de impacto am-biental (incluindo os impactos socais, econômicos e cul-turais). Quando subscreveram pareceres (que deram pra-zo à posterior expedição de licenças para a implantação dos plantios), os técnicos afirmaram que “o projeto não é impactante ambiental e socio-economicamente”, e “pelas suas características, o empreendimento proposto não ne-cessita de Declaração de Impacto Ambiental (DIA)”.

Page 170: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

169

Edis Milaré e Paulo José da Costa Júnior, na obra Direito Ambiental Penal, editora Milennium analisam o dispositi-vo da seguinte forma, o art. 66 da Lei 9.605/98:

“O tipo penal presente mantém semelhança com os crimes contidos nos arts. 299 (falsidade ideológica) e 319 (prevaricação), embora esteja especificamente voltado para a administração ambiental”. Sujeito ativo é o funcionário público (crime próprio)”. “Conduta – a conduta típica é fazer o funcionário público: 1) uma afirmação falsa ou enganosa, que é diversa da verdade; 2) omitir a verdade, equivalente à falsidade negativa; 3) sonegar informações ou dados técnico-científicos, consistente no não fornecimento de elementos de natureza, necessários à concessão da autorização ou licenciamento ambiental. A afirmação ou sonegação deverão ser relevantes, para configurar-se o crime”. “Consumação – apresenta-se com a mera ação ou omissão, independentemente do resultado. Basta o perigo de dano ao meio ambiente, para aperfeiçoar-se o crime”.

Os autores citados anteriormente analisam da seguinte forma o art. 67:

“Sujeitos – o crime é próprio. Sujeito agente haverá de ser o funcionário público”. “Conduta – acha-se representada pela concessão irregular da licença, autorização ou permissão. O tipo encerra elemento normativo, o qual exige que a licença, autorização ou permissão sejam concedidas em desacordo com as normas ambientais que disciplinam a matéria”. “Consumação – aperfeiçoa-se o crime com a efetiva concessão, por parte do funcionário público, da autorização, licenças ou permissão, independentemente de vir a ser executada, ou de causar danos ao meio ambiente”.

Ou seja, a conduta independe da intenção do cometi-mento do crime, pois é indissociável da repercussão no licenciamento, se houve omissão da verdade ou sone-gação de informação ou dados técnico-científicos. Se no processo de licenciamento esse tipo de conduta leva à ex-pedição de licença, em descumprimento da legislação, a conduta está configurada como criminosa, ainda que não fosse esta a intenção do servidor, pois neste caso, não há modalidade culposa.

Após ouvir os denunciados e também representantes da entidades que deram entrada na notícia criminal, o delegado que respondia pela Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente e ao Patrimônio Cultural concluiu o Inquérito Policial 087/2004 em 11 de janeiro de 2006 e no seu relatório fez as seguintes afirmações:

“Os funcionários denunciados, é bom lembrar, são técnicos e não burocratas, estando adaptados ao trabalho de campo. Seria incongruente responsabilizá-los por uma vasta ‘conspiração’, visando beneficiar a Aracruz Celulose, que só

poderia se realizar nos bastidores e gabinetes dos órgãos envolvidos. No entanto, pelo que se infere dos Autos, a empresa passou pelas fases habituais do licenciamento ambiental, não se evidenciando nenhuma irregularidade”.“Há entidades que buscam, num esforço de ‘politização’, levar a discussão sobre a outorga de licença ambiental do campo técnico para o político, do procedimento administrativo de licenciamento para a sala de assessores ‘politizados’. Com que direito? Com que critério? Com isso, todo o avanço alcançado na legislação ambiental corre o risco de perder credibilidade. O objeto legítimo e legal de um empreendimento goza de presunção de boa-fé e dos favores do direito. O empreendedor legítimo e bem orientado conta com o amparo do art. 170 da Constituição Federal”.“Por fim, convém recordar que o abuso de poder,a demora injustificada ou de má-fé nos procedimentos licenciatórios, por atentarem ao direito e ao bom senso, devem ser configurados, também, como atos de improbidade administrativa”.“Analisando os Autos, não subsistem elementos para indiciamento criminal dos acusados. Com estas considerações, após este relatório final, remeto o presente feito ao douto representante do Ministério Público para análise”.

Vii - conclUsÕes

Foram muitas as fraudes e ilegalidades descritas neste texto. Todas elas estão comprovadas nos documentos dos processos de licenciamentos das atividades da Aracruz

Proj

eto

Cone

xão

Sul

O deserto verde não permite a existência de outras espécies

Page 171: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

170

Celulose pelos órgãos florestal e ambiental do estado do Espírito Santo, bem como em documentos outros, como os depoimentos perante a Comissão Parlamentar de Inqué-rito, que investigou as irregularidades nos licenciamen-tos, e outros juntados aos autos da CPI.

É lastimável que os órgãos, instados a adotarem medi-das para correção dessas fraudes e ilegalidades, tenham ou se omitido ou protelado as apurações e respostas às demandas das entidades da sociedade civil (como no caso das fraudes nas legitimações de terras, conforme o capí-tulo que tratou deste assunto); ou simplesmente fazem dessas demandas, verdadeiro escárnio, como o Relatório cujos trechos foram transcritos no tópico anterior, o que deixa nas entidades e seus representantes a sensação de que os direitos coletivos destinatários de ações em prol da garantia do interesse público pelos órgãos, dirigentes e técnicos da Administração Pública, seguirá sendo relega-do ao plano inferior, quando se confrontam com o interes-se privado onde esteja em jogo o poder econômico do qual falam Édis Milaré e Antonio Herman Benjamin.

Por este motivo, repetimos o seguinte trecho:

É bom salientar que, em sede ambiental, aquilo que denominamos ‘participação pública’ nada mais é que um contrapeso a fenômeno comum na Administração Pública: a ‘participação econômica’. Em outras palavras, os diversos agentes econômicos sempre tiveram – e continuam tendo – acesso direto aos agentes do poder de decisão, fazendo com isso prevalecer seus pontos de vista, nem sempre coincidentes com o mandato conferido ao administrador pela cidadania como um todo”.

Há ainda duas instâncias que não estão totalmente exauridas neste processo. O Ministério Público, quanto à possibilidade de discordância quanto ao Relatório do Inquérito Policial transcrito acima, bem como sua atua-ção em processos contra os licenciamentos das atividades da Aracruz Celulose, em andamento na Justiça Estadual e Federal e, o Poder Judiciário, última instância quanto à decisão final dessas demandas das entidades. Porém, como todos sabem, a Justiça em nosso País é morosa, devido a vários fatores, entre eles a enorme possibilida-de de recursos - notadamente quando estão em disputa interesses que envolvem grandes empresas, que podem contratar os mais renomados escritórios de advocacia do Brasil. Assim, essas soluções embora sejam plausíveis, podem demorar mais de uma década para se tornarem realidade, talvez décadas e, com isso, o prejuízo é de toda a coletividade, detentora do direito ao meio ambiente eco-logicamente equilibrado, preconizado pela nossa Consti-tuição Federal, mas negado aos cidadãos, como tem sido, até então, nos casos das fraudes e ilegalidades cometidas nos licenciamentos das atividades da Aracruz Celulose no Espírito Santo.

RefeRências1- Registro aqui a discordância quanto ao conceito de “florestas homogêneas” quando se fala de plantios de eucalipto ou outra qualquer monocultura de árvores, por entender que o termo floresta só deveria se aplicar para as áreas onde há biodiversidade de espécies florestais, notadamente de Mata Atlântica, nas regiões de seu domínio geográfico, que abriga em seu interior outra biodiversidade que os plantios monoculturais não abrigam, a da fauna de animais vertebrados e invertebrados.

RefeRências BiBliogRáficas Meirelles, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, SP.

Milaré, Edis e Antônio Herman V. Benjamim, Estudo Prévio de Impacto Ambiental, Editora Revista dos Tribunais, 1993.

Antunes, Paulo de Bessa, Direito Ambiental, Lumen Júris.

da Silva, José Afonso, Direito Ambiental Constitucional, Malheiros.

Édis Milaré, Direito do Ambiente, Editora Revista dos Tribunais, SP, 2000

Leme Machado, Paulo Affonso, O Direito Ambiental e a Proteção das Florestas no Século XXI – Anais do 3° Congresso Internacional de Direito Ambiental, 1999.

Sobrane, Sérgio Turra, A Lei de Improbidade Administrativa e sua Utilização na Proteção das Florestas Brasileiras: Um Caso Concreto, Anais do 3° Congresso Internacional de Direito Ambiental, 1999.

Pazzaglini Filho, Elias Rosa e Fazzio Júnior, Improbidade Administrativa – Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público, Atlas.

Figueiredo, Marcelo, Probidade Administrativa – Comentários à Lei 8.429/92 e legislação complementar, Malheiros Editores

Milaré, Edis e Paulo José da Costa Júnior, Direito Ambiental Penal, Milennium.

Outras fontes de consulta:- Rima da ampliação da Aracruz Celulose de 1988 e respectiva análise feita pelo Instituto Tecnológico da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

- Rima da ampliação da Aracruz Celulose de 2000.

- Cópias de processos administrativos relativos aos licenciamentos da Aracruz Celulose pela Secretaria de Estado Para Assuntos do Meio Ambiente, Instituto Estadual do Meio Ambiente e Instituo de Defesa Agropecuária e Florestal.

- Cópias de documentos dos Autos da CPI da Aracruz Celulose.

Page 172: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

171

Atualmente, ao se observar os diversos fatores que con-tribuem para a expansão da monocultura do eucalipto por empresas como a Aracruz Celulose no Espírito San-to, nota-se, além dos investimentos financeiros nesse se-tor do agronegócio e do apoio político de órgãos dos mais diferentes níveis do Estado, que existe um outro tipo de apoio muito mais sutil, porém essencial para a manu-tenção desse tipo de empreendimento no estado: o apoio dos meios de comunicação de massa, principalmente por meio da informação jornalística veiculada na televisão, no rádio e em jornais; ou seja, o apoio ideológico.

Nesse sentido, a atuação dos meios de comunicação costuma ocorrer de forma combinada: ao mesmo tempo em que cria-se um discurso e uma imagem das empre-sas de celulose, supervalorizando suas “ações sociais”, seus índices de faturamento, os “benefícios” de ordens diversas em prol do Espírito Santo - e ocultando, eviden-temente, os impactos socioambientais dessas empresas -, é realizado um trabalho de distorção do sentido das lutas sociais que questionam esse tipo de empreendi-mento, apresentando-as como desnecessárias, deslegíti-mas ou como uma perturbação à ordem estabelecida.

Tendo em vista esse cenário e considerando que, atu-almente, a maior parte das informações chega à popula-ção através dos meios de comunicação, é necessário cons-truir uma reflexão profunda sobre o que é difundido pela mídia e como isso influencia a opinião pública. A dispu-ta entre o projeto do agronegócio e o projeto dos movi-mentos sociais também se dá em âmbito ideológico, pela construção simbólica e de sentidos das lutas e da própria concepção do que é desenvolvimento para cada uma das partes antagônicas. Isso significa que a formação da opi-nião pública sobre o tema do deserto verde passa primor-dialmente pelas informações que a população tem ou não acesso e que são mediadas e selecionadas pelos grandes meios de comunicação.

Por isso, neste artigo, pretende-se refletir sobre o papel dos meios de comunicação na mediação das informações, a fim de aprofundar a temática da construção de sentidos e do imaginário social a partir da mídia, enfocando nos estudos dos discursos a respeito da empresa Aracruz Ce-lulose no Espírito Santo e sobre as lutas dos movimentos sociais, em especial dos índios Tupiniquim e Guarani de Aracruz; das comunidades quilombolas do Sapê do Norte; dos Sem Terra, organizados no Movimento dos Trabalha-dores Rurais Sem Terra (MST) e dos camponeses organi-zados pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), contra o chamado deserto verde.

Inicialmente, será feito um estudo sobre a atuação dos meios de comunicação de massa, sua constituição em-presarial e simbólica. Posteriormente, serão apontados alguns enfoques pelos quais a mídia trata a questão do deserto verde no Espírito Santo, relacionando o discurso sobre a empresa Aracruz Celulose ao discurso sobre (ou contra) as lutas sociais. Por fim, apontam-se algumas ne-cessidades de alternativas para os movimentos sociais a fim de que a informação sobre esse tema consiga, de fato, ultrapassar as barreiras do monopólio midiático, tanto no Espírito Santo quanto no Brasil.

a mídia e a construção do imaginário socialPara compreender a postura protetora adotada pelos

meios de comunicação em relação às empresas de celulo-se e a maneira hostil como são abordados os movimentos sociais, é necessário conhecer, em primeiro lugar, as duas lógicas de funcionamento da mídia: a lógica econômica e a lógica simbólica, assim explicadas:

“[...] uma lógica econômica que faz com que todo organismo de informação aja como uma empresa, tendo por finalidade fabricar um produto que se define pelo lugar que ocupa no mercado de troca dos bens de consumo (os meios tecnológicos acionados para fabricá-lo fazendo parte dessa lógica); e uma lógica simbólica que faz com que todo organismo de informação tenha por vocação participar da construção da opinião pública.”1

Pela lógica econômica, os meios de comunicação atuam como empresas na produção e comercialização de bens simbólicos. Sendo assim, as informações jornalísticas tam-bém são fruto dessa dinâmica, conforme explica Berger:

“Neste enunciado encontram-se os indicadores para a compreensão do jornalismo: os vínculos com o mercado – dos patrocinadores e dos consumidores – e a equação do vivido num espaço editável. Alguns jornais tendem a uma postura mais independente e, assim, menos submetidos à intenção de lucro e ao comprometimento com o poder. Porém, a tendência predominante e que veio se acentuando ao longo do desenvolvimento do capitalismo

A construção simbólica da Aracruz Celulose e dos movimentos sociais pela mídiaLuciana Silvestre Girelli3

Page 173: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

172

é sua função mercadológica e o estreitamento de seus vínculos com o poder econômico e político.”2

Ao se aproximar essa lógica de funcionamento ao es-tudo da relação midiática com as empresas de celulose, nota-se que essas empresas do agronegócio mantêm re-lações estreitas com os meios de comunicação, como por exemplo, por meio de anúncios de publicidade, fato ob-servável entre o jornal A Gazeta, principal meio de comu-nicação do estado, e a Aracruz Celulose. Existe, portanto, uma relação de sustentação econômica entre as empresas do agronegócio da celulose e as empresas de comunica-ção, o que começa a justificar a atuação desses meios em relação às lutas sociais.

Essa ligação é tão evidente que a Rede Globo, principal emissora de comunicação de cadeia nacional e da qual a Rede Gazeta no Espírito Santo é afiliada, integra a As-sociação Brasileira do Agronegócio (ABAG), mesmo sem ser diretamente desse ramo. Nesse sentido, percebe-se que a mediação da comunicação a partir dos grandes meios está sob o controle de empresários/proprietários que possuem relações econômicas bastantes explícitas no mercado com essas empresas.

Além da manutenção desse tipo de relação econômi-ca com os grupos financeiros do agronegócio, o que, de certa forma, está na ordem do dia do funcionamento das empresas capitalistas, que vivem sob a lógica da concor-rência, há uma problemática ainda maior envolvendo es-sas emissoras de comunicação: o monopólio midiático. Um número reduzido de famílias detém o controle dos meios de comunicação, logo, das informações que circu-lam em todo o País. Sendo assim, não há espaço nesses meios para opiniões que sejam divergentes de sua linha editorial, que, como já foi apontado, é baseada, na maio-ria das vezes, nas relações econômicas e políticas que os proprietários dos veículos têm.

Os dados a seguir dão uma boa demonstração de como ocorre a concentração midiática no Brasil:

“Verificou-se que em 19 estados da federação os sistemas regionais de comunicação são constituídos por duas “redes” principais: (a) um canal de televisão, largamente majoritário, quase sempre integrante da Rede Globo; (b) e dois jornais diários, sendo que o de maior circulação está sempre ligado a um canal de TV, e quase sempre ao canal de televisão afiliado à Rede Globo; e, sempre paralelamente, ligado a uma rede de emissoras de rádio, com canais AM e FM. Cada um desses jornais, em quase todas as capitais, reproduz as principais seções de O Globo e seu noticiário é alimentado, predominantemente, pelos serviços da Agência de Notícias Globo.”3

Uma pesquisa mais recente realizada pelo Intervozes

– Coletivo Brasil de Comunicação – a partir de dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), revela que seis redes privadas nacionais de televisão aberta e seus 138 grupos regionais afiliados detêm a propriedade de 667 veículos de comunicação, entre emissoras de TV, rádios e jornais. Somente as organizações Globo detêm 32 concessões de TV e possuem 113 afiliadas no País, ob-tendo 54% da audiência.

Partindo dessas informações, constata-se que há um problema estrutural nos meios de comunicação no Brasil, tendo em vista que existe uma grande concentração na propriedade desses meios. Isso irá influir diretamente no tipo de informação que circula na sociedade, que tende a ser unilateral, conforme a linha política dos proprietários dos veículos. O apontamento dos benefícios do plantio da monocultura do eucalipto e a não divulgação de seus im-pactos socioambientais deve-se, em grande parte, a isso, por exemplo.

A lógica econômica do funcionamento da mídia apon-ta algumas explicações para que esses meios ajam des-sa forma em se tratando das empresas de celulose e dos movimentos sociais, mas a ela precisam ser acrescenta-dos outros determinantes. Existem elementos “anôni-mos”, “invisíveis”, que compõem a lógica simbólica des-ses meios, sobretudo no âmbito jornalístico, que também precisam ser apreciados.

A produção jornalística das notícias e informações não é apenas fruto das influências econômicas e políticas ex-ternas a essa prática. Ocorre, de certa forma, uma inter-nalização da lógica da concorrência entre os próprios jor-nalistas, como explica Bordieu:

“A concorrência econômica entre as emissoras ou jornais pelos leitores e pelos ouvintes, ou, como se diz, pelas fatias de mercado realiza-se concretamente sob a forma de uma concorrência entre os jornalistas, concorrência que tem seus desafios próprios, específicos, o furo, a informação exclusiva, a reputação na profissão etc., e que não vive nem se pensa como uma luta puramente econômica por ganhos financeiros, enquanto permanece sujeita às restrições ligadas à posição do órgão de imprensa considerado nas relações de força econômicas e simbólicas.”4

Essa percepção é importante a fim de se compreender um outro nível da produção da informação, a que passa pelo próprio jornalista a partir da sua relação com o ve-ículo de comunicação em que trabalha e com os outros campos sociais. Nesse sentido, nota-se que o jornalista, sujeito que produz concretamente a informação, recebe uma consideração social muito grande, por parte, inclu-sive, daqueles que têm um conhecimento mais especiali-zado sobre certos assuntos, como a categoria dos intelec-tuais, ou daqueles que exercem, por direito, cargos de au-toridade pública. Esse “assédio” é um fator que influi na

Page 174: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

173

Antes da chegada da Aracruz, as pessoas se dedicavam à agricultura, caça, pesca, artesanato: hoje, são desempregados ou mão de obra barata

Tam

ra G

ilber

tson

Page 175: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

174

produção noticiosa, bem como a própria concorrência en-tre jornalistas de veículos diferentes, como já citado ante-riormente por Bordieu.

Em se tratando especificamente da profissão jornalís-tica na produção de sentidos, percebe-se que ela exerce “uma forma raríssima de dominação: tem o poder sobre os meios de se exprimir publicamente, de existir publica-mente, de ser conhecido, de ter acesso à notoriedade pú-blica”5. Logo, o jornalista pode “impor ao conjunto da so-ciedade seus princípios de visão do mundo, sua problemá-tica, seu ponto de vista”.6

Tendo em vista, então, que existe uma série de fato-res que influem na produção da notícia, faz-se necessária uma reflexão maior sobre o caráter do jornalismo, ampla-mente difundido como uma prática que busca acima de tudo a neutralidade, a objetividade e a imparcialidade na produção da informação. No entanto, a prática jornalísti-ca demonstra que o enunciar desses “méritos” contribui apenas para tornar a opinião do jornal a (única) opinião verdadeira para o conjunto da sociedade.

Sendo assim, será feito a seguir o estudo de como o jor-nalismo se auto-constrói como um instrumento de ver-dade coletiva. Isso é primordial para a compreensão da grande influência que essa atividade possui no conjunto da população, ou seja, que faz com que a sociedade acre-dite, de fato, no que é veiculado nesses meios. Para isso, serão trabalhados – e desmistificados – os discursos da objetividade e da credibilidade jornalística.

O jornalismo difunde o discurso do seu importante pa-pel de informar, de levar a síntese do que ocorre na so-ciedade para as casas das pessoas. Essa “função”, assim alardeada, apresenta-se de modo muito natural, como se não houvesse um processo de seleção, de recorte do que acontece no mundo pelos jornalistas ou mesmo como se

a notícia apresentada não contivesse o ponto de vista de quem a produziu. Assim é caracterizada essa prática:

“O jornalismo vale-se, portanto, desta máscara. Muito diferente disto, na prática, jornalismo é uma forma de se realizar a luta pela poder. A imprensa instrumentaliza as informações que colhe, recebe ou mesmo fabrica-as, transformando-as em notícias para usá-las no jogo político-ideológico, em uma palavra, no jogo do poder.”7

Nesse sentido, a percepção de que o que é veiculado pe-los jornais é a pura verdade é um poderoso instrumento para legitimar o discurso produzido pelos meios de comu-nicação e uma forma de apresentar uma visão da socieda-de (a visão das grandes empresas e de seus aliados) como a única e verdadeira visão da sociedade.

Ainda sobre a suposta objetividade jornalística, dois elementos precisam ser considerados como centrais no seu questionamento: a seleção que existe durante todo o processo de produção de notícias e a recriação dos fatos, convertidos em notícias no mundo midiático.

O processo de seleção no campo jornalístico não acon-tece apenas na escolha das pautas, do que é de “interes-se público” conforme o ponto de vista do jornalista e da linha editorial do veículo, mas também nas escolhas que se faz a fim de produzir determinado sentido, como elu-cida Charaudeau:

“Comunicar, informar, tudo é escolha. Não somente escolha de conteúdos a transmitir, não somente escolha das formas adequadas para estar de acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas escolha de efeitos de sentido para influenciar o outro, isto é, no fim das contas, escolha de estratégias discursivas.”8

Nesse sentido, é importante frisar que o que se publi-ca ou não sobre a empresa Aracruz Celulose nos meios de comunicação, por exemplo, faz parte de uma intenciona-lidade concreta do veículo, conforme o que se deseja ou que se tenha que divulgar naquele momento.

O outro elemento questionador da objetividade jorna-lística é a recriação do fato a partir da sua conversão em notícia. Pode-se dizer que o “fato” existe independente da imprensa, apesar de muitos estudiosos considerarem que, cada vez mais, os fatos são “provocados pela própria imprensa ou construídos para que a imprensa os utilize”.9 Porém, o sentido apresentado ao fato, muitas vezes che-ga a recriá-lo, a torná-lo irreconhecível inclusive para os que participaram concretamente do acontecido.

Isso é muito comum, sobretudo, em cobertura de mani-festações de movimentos sociais, como no caso dos indí-genas nas atividades de enfrentamento à empresa Ara-cruz Celulose. O sentido atribuído a essas manifestações chega a ser irreconhecível àqueles que participam ativa-A Aracruz conta com os veículos de mídia para mascarar sua real imagem

Page 176: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

175

mente delas, criando uma nova caracterização e roupa-gem aos personagens dessa notícia, ou seja, desse fato re-criado. Para exemplificar a não neutralidade da impren-sa diante das manifestações sociais, por formas diversas, Christa Berger faz a seguinte consideração:

“Todo leitor que acompanhou a cobertura de alguma reivindicação social na qual esteve envolvido - seja um professor em greve, um colono sem terra, um funcionário público de instituição em vias de privatização - sabe por experiência que o jornal não foi isento. Pode até ter trazido as duas versões, mas a legenda na foto, o número de manifestantes, a palavra que designa o movimento, a edição da página, tomam posição. E a posição negada em nome do princípio liberal do jornalismo - a imparcialidade - é que confirma a função que a história reservou à imprensa. A ela cabe, em última instância, organizar discursivamente o mundo como convém a quem o domina.”10

Apesar de a mídia organizar discursivamente “o mun-do que convém a quem o domina”, isso não é facilmen-te percebido pelos “dominados”, uma vez que ela utiliza vários mecanismos para encobrir essa percepção. Desse modo, ela adquire uma credibilidade por parte da popu-lação, que acaba vendo na imprensa um canal de expres-são coletiva para suas aspirações e insatisfações. Assim exemplifica Ciro Marcondes Filho:

“O poder de falar alto não é só dos empresários. O governo pode impor seu discurso nas falas oficiais de rádio, na requisição de rede de emissoras de TV, nos diários oficiais. A Igreja pode fazer um trabalho de doutrinação com fiéis através de seus boletins; a universidade, pelo seu jornal interno; o partido, pelo seu tablóide; o sindicato, pelo seu serviço noticioso. Só o primeiro tipo – o do empresário – é um falar genuinamente jornalístico. Todos os demais são veículos oficiais de transmissão de opiniões particularistas.”11

É importante ressaltar exatamente isto: o falar jorna-lístico não é identificado como uma transmissão de infor-mações particulares, mas sim informações “gerais”, “neu-tras” e “objetivas”. Daí a criação da credibilidade jornalís-tica, apesar de as informações serem construídas a par-tir de visões de mundo. Justamente por isso, as informa-ções veiculadas no jornal A Gazeta, por exemplo, transpa-recem como sendo imparciais e não vinculadas à própria Aracruz Celulose.

Esse talvez seja o ponto central do jornalismo e da mí-dia: a população acredita que o falar verdadeiro e neu-tro é o falar dos jornais. No entanto, não existe a percep-ção de que esse falar mediado possui também uma opi-nião, que, a propósito, é a opinião dos empresários da co-municação que possuem vínculos políticos e econômi-

cos com empresas como a Aracruz Celulose. Esse arti-fício construído historicamente pela imprensa é um dos fatores para se compreender como esses meios conse-guem tamanha credibilidade junto à população apesar do que publicam.

Partindo dessas considerações, serão apresentadas a seguir as visões sobre a Aracruz Celulose e sobre os mo-vimentos sociais difundidas por esses meios de comuni-cação e que são consideradas verdades socialmente reco-nhecidas. Tais “imagens” foram extraídas a partir da aná-lise de discursos veiculados no jornal A Gazeta e são im-portantes para se ter um termômetro de como a questão do deserto verde circula pela opinião pública.

a aracruz celulose representada na mídiaAo se observar o discurso sobre a Aracruz Celulose nos

meios de comunicação do estado, percebe-se uma movi-mentação em dois sentidos: uma, no sentido de publicar constantemente matérias que tratem de todos os aspec-tos que tornam positiva a atuação da empresa no Espírito Santo, como a suposta geração de empregos ou parcerias sociais que ela tem com órgãos do estado ou diretamente com comunidades locais; e, a outra, no sentido de justifi-car a atuação da empresa nos casos em que aparece con-flito com as comunidades tradicionais, numa tentativa de “absolvição”, ao mesmo tempo em que há uma deslegiti-mação dos movimentos sociais em luta.

Dentre os aspectos considerados positivos relacionados à empresa, destacam-se as parcerias que ela estabelece e que trazem alguns benefícios à população, que na verda-de, são direitos sociais que deveriam ser assegurados pelo Estado, mas que são transferidos para a iniciativa priva-da como, por exemplo, investimentos em educação e ge-ração de empregos para a juventude. Os programas assis-tencialistas da empresa são amplamente divulgados pelos meios de comunicação, como um papel importante que a empresa vem cumprindo no estado. Nesse sentido, é im-portante destacar que nem sempre o reconhecimento so-cial da Aracruz Celulose se dá pelo que ela produz (celu-lose), mas pela contribuição que se diz que ela tem no de-senvolvimento do estado. Isso ocorre no caso do programa Produtor Florestal:

“Em 2005 o programa movimentou quase R$ 70 milhões, abrangendo cerca de 80 mil hectares. Foram três mil contratos com pequenos, médios e grandes produtores rurais, em 150 municípios dos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. O programa, segundo a Aracruz, responde atualmente pela geração de mais de cinco mil empregos no campo. Os contratos prevêem o fornecimento de mudas de eucalipto e de árvores nativas (para recomposição ambiental), insumos, assistência técnica, além da garantia de compra da madeira pela Aracruz.”12

Page 177: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

176 O site da Aracruz contém mensagens extremamente positivas sobre sua atuação social, ambiental, trabalhista, econômica: construção simbólica

Page 178: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

177

Vale ressaltar ainda que a geração de empregos – e de supostos bons empregos – é um ponto bastante explora-do pela mídia. Mesmo que a empresa gere menos de dois mil empregos diretos no estado atualmente, há uma am-pla divulgação de que ela emprega bem e com expectati-va de ampliação no número dos postos de trabalho. Existe uma analogia entre modernização tecnológica e geração de empregos e a Aracruz Celulose figura como uma das empresas que se enquadram nessa equação, o que contri-bui para o fortalecimento de sua imagem positiva junto à opinião pública. Isso é comprovado no seguinte trecho:

“Entre as empresas que atuam no estado e que aparecem no Guia 2006, a Arcelor ficou em sexto lugar, e a Aracruz Celulose figurou entre as 150 melhores empresas para trabalhar no País pelo terceiro ano consecutivo. A escolha teve como base questionários respondidos pelos próprios trabalhadores.”13

Um elemento também a se considerar é a idéia de gran-diosidade do empreendimento da Aracruz Celulose veicu-lada pelos meios de comunicação: algo em que se investe muito dinheiro (o próprio Estado investe; logo, parece que é algo que traz grande retorno à sociedade); um empreen-dimento que investe em muita tecnologia constantemente (o que cria a ilusão de muitas novas oportunidades de tra-balho); um negócio que gera muitos empregos (muitos e supostamente bons empregos); um empreendimento que coloca o “nosso” estado no cenário mundial da economia (sensação de se sentir representado, por ser uma empresa da “nossa” terra, embora seja uma transnacional).

Toda essa grandiosidade por meio de cifras, números, quantidades, faz parte do discurso atual do agronegócio para “tentar mudar a imagem latifundista da agricultura brasileira”14, como explica Bernardo Mançano:

“O latifúndio carrega em si a imagem da exploração, do trabalho escravo, da extrema concentração da terra, do coronelismo, do clientelismo, da subserviência, do atraso político e econômico. É, portanto, um espaço que pode ser ocupado para o desenvolvimento do País. Latifúndio está associado com terra que não produz, que pode ser utilizada para reforma agrária. [...]. A imagem do agronegócio foi construída para renovar a imagem da agricultura capitalista, para “modernizá-la”. É uma tentativa de ocultar o caráter concentrador, predador, expropriatório e excludente para dar relevância somente ao caráter produtivista, destacando o aumento da produção, da riqueza e das novas tecnologias”.15

Isso é tão evidente no caso da Aracruz Celulose que, mesmo não gerando a quantidade de empregos condizen-tes com seu porte, concentrando muitas terras, expulsan-do as comunidades tradicionais e provocando um passi-

vo ambiental enorme, ela é representada midiaticamente como um empreendimento grandioso, que traz inúmeros benefícios para a população. Nesse sentido, o que não é explicitado, o que não é dito na mídia também possui uma ampla significação nos textos jornalísticos.

O não-dito na mídia, nesse caso, tem um peso igual ou até superior ao que é dito sobre o agronegócio, ou seja, “ao longo do dizer, há toda uma margem de não-ditos que também significam”16. É o que se caracteriza como “silên-cios” do discurso, como explica Orlandi:

“Este (o silêncio) pode ser pensado como a respiração da significação, lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido se faça. [...]. Esta é uma das formas de silêncio, a que chamamos silêncio fundador: silêncio que indica que o sentido pode sempre ser outro. Mas há outras formas de silêncio que atravessam as palavras, que ‘falam’ por elas, que as calam.”17

Entre essas outras formas de silêncio está a que rela-ciona o silêncio ao que não pode ser dito por conta de uma determinada conjuntura, como a que envolveu a empre-sa Aracruz na demarcação das terras indígenas. Sobretu-do no período em que houve um acirramento da luta in-dígena pela demarcação, nos anos de 2006 e 2007, houve um comportamento silencioso dos meios de comunicação no sentido de não expor todos os problemas citados que possuem relação direta com a empresa, como multas am-bientais que ela recebeu, a fim de preservar sua boa ima-gem. Esse tipo de censura textual é assim esclarecido:

“As relações de poder em uma sociedade como a nossa produzem sempre a censura, de tal modo que há sempre silêncio acompanhando as palavras. Daí que, na análise, devemos observar o que não está sendo dito, o que não pode ser dito, etc.”18

Vinculada à idéia de grandiosidade do agronegócio en-contra-se a idéia de que todo esse empreendimento es-tende seu benefício para todos, é distribuído, comparti-lhado com a sociedade, por diversas maneiras, tais como pelo investimento em educação, geração de emprego para jovens urbanos e geração de emprego e renda para pro-dutores rurais. Isso é bastante explorado pela mídia, em-bora os lucros da Aracruz Celulose beneficiem unicamen-te os seus proprietários e o capital financeiro internacio-nal, e não a população do estado.

A ampla divulgação dessas ações fortalece a propa-ganda da própria empresa de que “ela está no cotidia-no dos capixabas”. Logo, é algo que se torna importante, constante, que supre necessidades concretas da popula-ção – educação, emprego, renda -, ou seja, direitos sociais, que deveriam ser assegurados integralmente pelo Esta-do, mas não são.

Page 179: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

178

A Aracruz Celulose, de certa forma, aparece midiatica-mente fornecendo “respostas” a algumas necessidades da população capixaba, ou seja, ela aparece como uma das possibilidades de solução para esses problemas, embora, na realidade concreta, não seja. Mas, no plano imaginário, simbólico, de construção de sentidos, transparece como sendo. Esse é um dos grandes papéis da mídia: construir sentidos simbólicos, por meio do discurso, embora nem sempre isso tenha equivalência no plano real. Isso pode ser facilmente identificado no exemplo abaixo.

Uma passagem da coluna “Economia Capixaba”, do jor-nal A Gazeta do dia 13 de agosto de 2006, caracteriza da seguinte forma o Programa Produtor Florestal, da empre-sa Aracruz Celulose: “Representa (o programa) resposta vigorosa da silvicultura à abertura de postos de trabalho, inserção social, geração de renda e fixação do homem no campo, evitando o êxodo rural – sempre aventureiro”.19 Por esse fragmento, percebe-se que o que é atribuído ao Programa, logo, à empresa, não condiz com sua real atua-ção no Espírito Santo. Porém, em âmbito do discurso mi-diático, ela aparece fornecendo respostas a diversos pro-blemas sociais do campo capixaba. Torna-se uma realida-de discursivamente construída.

Em síntese, pode-se dizer que a promessa do agro-negócio e da empresa Aracruz Celulose possui uma grande inserção no imaginário social, em certa medi-da, porque o que se anuncia sobre suas ações preen-che lacunas importantes de demandas sociais urgen-tes da população capixaba. A empresa se torna refe-rência não apenas pelos recordes adquiridos com a

produção de celulose, o que pouco “dialoga” com o co-tidiano da população, mas pelas ações que ela reali-za junto a outros setores sociais e que a torna apa-rentemente presente na vida das pessoas; ações mui-tas vezes reforçadas ou criadas pelo discurso da mí-dia. A isso se soma a imagem de progresso da empre-sa, de avanço tecnológico, que torna a economia capi-xaba um destaque internacional, aliado a uma blinda-gem legal, que é assegurada pelo discurso da legali-dade, de agir conforme as normas.

O discurso midiático sobre a Aracruz Celulose, portan-to, se sustenta numa agenda de ações positivas, publica-das constantemente, que criam uma pré-concepção da empresa no imaginário social coletivo, a qual terá uma relação direta com a empresa que é “atacada” pelos mo-vimentos sociais. Um discurso midiático se inter-relacio-na com outro, ou seja, uma boa construção diária da ima-gem da empresa é essencial para tornar menos legítimas as lutas dos movimentos, pois seu enfrentamento não se dá contra qualquer empresa, mas contra a Aracruz Celu-lose construída simbólica e midiaticamente.

os movimentos sociais representados na mídiaComo já foram levantadas as imagens e principais cons-

truções discursivas envolvendo a empresa Aracruz Celu-lose, serão também apontados os discursos midiáticos en-volvendo os movimentos sociais em luta contra a empre-sa, tendo em vista os diversos impactos que a monocultu-ra do eucalipto lhes causou e ainda causa.

Nesse sentido, é preciso dizer que se percebe um com-portamento geral da mídia em relação aos movimentos sociais, mas também um tratamento de modo específico conforme a conjuntura de cada luta. Neste artigo, se bus-cará apontar o discurso geral sobre os movimentos, mas também indicando as especificidades do tratamento de algumas lutas, sobretudo a luta indígena pela demarcação das terras, por meio de alguns exemplos.

Em geral, percebe-se que o tratamento midiático às lu-tas dos movimentos é marcado pela invisibilidade desses grupos, o que pode se dar de diversas formas. A primeira delas é simplesmente a não divulgação das lutas. A não publicação ou exibição das atividades de manifestação dos movimentos significa negar a sua existência, o acon-tecimento, não permitindo que haja um compartilhamen-to social do que está de fato em questão.

Se for considerado que a maior parte das informações que circula atualmente parte dos meios de comunicação de massa, significa dizer que tornar as lutas sociais in-visíveis midiaticamente também significa torná-las invi-síveis socialmente. Nesse sentido, pode-se dizer que um primeiro ponto da problemática da mídia seria justamen-te a falta de informação para a população sobre as lutas dos movimentos e, principalmente, sobre os motivos que impulsionaram essas lutas, ou seja, os impactos da mono-

Empresa se “vende” como a salvadora das regiões onde se instala

Page 180: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

179

cultura do eucalipto para essas populações.Complementando esse ponto da invisibilidade total, no-

ta-se que, ao contrário do que ocorre com a Aracruz Celu-lose, os movimentos sociais não possuem uma agenda de ações positivas divulgadas constantemente pela mídia. O modo como as populações indígenas e quilombolas pre-servam a Mata Atlântica, o quanto a agricultura dos cam-poneses, com produção agroecológica, produz alimentos saudáveis ou como a reforma agrária distribui renda e gera empregos não está na ordem do dia da mídia. Não existe uma pré-construção de uma imagem positiva dos movimentos nos meios de comunicação. Logo, a popula-ção tende a saber de sua existência exclusivamente nos momentos de luta, ou, como sempre é divulgado, nos mo-mentos de conflito. Esse é um ponto bastante importan-te de se considerar, pois existe um desequilíbrio enorme entre o que é construído diariamente pela mídia sobre a empresa Aracruz Celulose e sobre os movimentos.

Partindo para outras formas de invisibilidade, existe a que é utilizada nos tais momentos de conflito, quando as lutas são, então, divulgadas, mas a intervenção dos movi-mentos para explicar suas motivações, objetivos, é mui-to restrita, insuficiente para expor à população os reais problemas que estão enfrentando. Existe um descompas-so muito grande entre a narração do jornal que destaca o lado da empresa e as possibilidades de explicação por parte dos movimentos.

Esse descompasso pode se exprimir de diversas formas, como pelo espaço gráfico destinado no jornal aos movi-mentos e pelo tempo de fala na televisão que lhes é con-cedido, ou por meio de intervenções de autoridades em favor da empresa e contra os movimentos, o que já com-plexifica a questão. Quando a polícia, representantes do governo ou os donos da Aracruz, que são autoridades so-cialmente reconhecidas, têm sua opinião registrada nos meios de comunicação, o “lado” que eles defendem tende a ser considerado mais legítimo pela população. Isso é es-clarecido no seguinte fragmento:

“Segundo essa noção, podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz. [...] Como nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na ‘comunicação’.”20

Isso significa que existe um “peso” diferenciado entre a fala de um quilombola e a fala de um dono da Aracruz Ce-lulose, uma vez que ambos estão em hierarquias diferen-tes nas relações sociais de poder na sociedade capitalis-ta. E os meios de comunicação, que constroem subjetiva-mente a opinião na sociedade, reproduzem essas desigual-dades ao invés de desconstruí-las. Por isso, mesmo que os movimentos sociais tenham o mesmo espaço (número de linhas, tempo) nesses veículos, aparecem em situação de-

sigual de enfrentamento, dado que a reprodução das hie-rarquias de poder ocorre também na mídia. Isso é possível devido à forma como esses meios (re)produzem discursi-vamente o mundo, logo, também as relações de poder.

Portanto, é necessário enfatizar: mesmo que a reivindi-cação ou a crítica dos movimentos seja apresentada, em muitas matérias, por meio de aspas, isso não significa que elas tenham o mesmo “peso” que a argumentação da em-presa. Não é pela quantidade de linhas destinadas a um lado ou a outro que se determina “quem vence” no discur-so, embora isso também seja um fato a se considerar. É a partir da observação da forma de construção textual que os sentidos passam a emergir.

Esses são alguns recursos midiáticos importantes de serem percebidos a fim de se compreender que há diver-sas maneiras de tratar as lutas sociais, que não passam apenas pelo “falar bem” e “falar mal” dos grupos em ques-tão. Há muitas sutilezas nessa construção simbólica, im-portantes de serem identificadas e comentadas.

Para além da invisibilidade desses movimentos na mí-dia, existe um outro processo de tratamento midiático, que é a forma de abordagem desses sujeitos sociais quan-do aparecem em luta. Como já foi dito, são nesses mo-mentos de atividade que os movimentos existem social-mente pelos meios de comunicação; logo, o tipo de abor-dagem influi na caracterização que a opinião pública terá desses sujeitos.

O que se nota, em linhas gerais, é que o modo como a mídia apresenta essas lutas as torna deslegítimas, des-qualificadas, desmoralizadas, diluídas, espontâneas ou desnecessárias, conforme os recursos discursivos textuais utilizados na produção da notícia. As seguir, alguns tre-chos que exemplificam as diversas considerações apon-tadas acima.

Sobre as comunidades quilombolas, a partir de uma coluna de opinião do jornal A Gazeta. Nota-se que a iden-tidade desses povos é colocada em xeque:

“Outro dia, no Senado, o senador Gerson Camata mostrou um mapa do Brasil com territórios quilombolas, a serem efetivados. Segundo ele, falsos quilombolas estão se multiplicando em todo o País, com carimbo oficial; estão pregando o ódio racial. O governo federal, a polícia, proprietários rurais de diversos pontos sabem que existem falsos quilombolas, falsos índios, falsos sem-terra, falsos sem-teto, falsos desempregados e outras categorias de mentirosos e aventureiros, protegidos por organismos nacionais e até estrangeiros, que chegam aqui com o objetivo de insuflar, revolucionar, inverter o processo político. Há muitos anos que esses grupos invadem propriedades, prédios, repartições públicas, até o Congresso Nacional e, ainda, recebem ajuda oficial – os mais abusados recebem condecorações, prêmios em dinheiro, benesses as mais diversas, até aposentadorias como heróis! O que está acontecendo no Brasil, ao sabor desse tipo de gente?”21

Page 181: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

180

Sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tendo em vista a ocupação da fazen-da Agril, da Aracruz Celulose, no município de Aracruz, percebe-se que a empresa transparece tendo muito mais autoridade e legitimidade que a luta do movimento:

“Aracruz. Na madrugada de ontem cerca de 200 famílias, integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST), reocuparam a Fazenda Agril Agropecuária, localizada no distrito de Vila do Riacho, em Aracruz, norte do Espírito Santo. A ocupação começou por volta das duas horas da madrugada. Os manifestantes montaram barracas e tendas de lona, ocupando uma área de quase nove mil hectares da fazenda, que pertence à empresa Aracruz Celulose.”

O outro lado Aracruz recorrerá à Justiça pedindo a desocupação “A assessoria de imprensa da Aracruz Celulose informou que empresa é a proprietária legal de toda a área, e vai recorrer à justiça para que o local seja novamente desocupado. A empresa afirma que, dos quase nove mil hectares da fazenda Agril Agropecuária, 6,8 mil são de área preservada e 1,3 mil de plantio de eucalipto.”22

Ainda sobre o MST, é interessante notar como a refor-ma agrária a partir da ocupação de terra, ou seja, forma mais elementar de pressão social, é vista como algo des-necessário. No fragmento abaixo, há um incentivo do jor-nal para uma reforma agrária mais “digna”, pela compra e não pela ocupação de terra:

“Os novos donos das terras são empreendedores que se sentem valorizados por terem tido a oportunidade de comprar sua propriedade rural, não importa o tamanho da

área”, destaca Freitas. Sem invasão. “Esse é o lado silencioso, sem lona preta, sem pneu queimado, sem invasão de propriedades, sem discursos inflamados na busca dessas famílias pelo seu pedaço de terra”, enfatiza Freitas. Os projetos aprovados para o crédito fundiário são quase todos associações e cooperativas que reúnem grupos de trabalhadores rurais.”23

Sobre o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), numa mobilização contra o agronegócio da Aracruz Celu-lose, no município de Linhares, pode-se notar uma crimi-nalização bastante explícita da luta, atribuindo-lhes o ca-ráter de “vândalos”:

“Uma passeata, marcada por momentos de tumulto, protestos e violência tomou conta da cidade e da BR 101 Norte, ontem. As cenas foram protagonizadas por integrantes do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). Apesar da violência, de acordo com dirigentes da entidade tratava-se de uma manifestação pacífica. Exibindo bandeiras vermelhas e gritando palavras de ordem contra o capitalismo e o agronegócio, dentre várias ações, os agricultores bloquearam o trânsito na rodovia BR 101, quebraram vidraças da porta principal do prédio onde funciona a prefeitura, agrediram um agente da Polícia Rodoviária Federal, que estava à paisana, e tentaram impedir o trabalho de jornalistas e cinegrafistas. Uma repórter, inclusive, foi atingida por uma pedra. Elegendo a Aracruz Celulose como o principal alvo dos protestos – empresa que, segundo os manifestantes, estaria planejando outra intervenção para desviar água do Rio Doce, como forma de atender a demanda de suas indústrias –, eles seguiram até o prédio da prefeitura. ‘Nunca tinha visto uma coisa assim aqui em Linhares’, comentou assustado um funcionário que por pouco não foi agredido. Outros, temendo a violência, permaneceram no interior do prédio. Um manifestante atirou uma pedra quebrando a vidraça da porta principal, enquanto outros retiraram dos mastros as bandeiras que estavam hasteadas em frente ao prédio. Um dos coordenadores do MPA, Joel Hollunder, explicou que o movimento está inserido na programação da Semana Nacional de Luta Contra o Agronegócio em Favor da Agricultura Camponesa. Eles reivindicam subsídios agrícolas, linhas de crédito, financiamentos e incentivos para os trabalhadores camponeses. Destacou que Linhares foi escolhida para a manifestação por concentrar os principais movimentos do agronegócio capixaba.” O outro lado Aracruz afirma desconhecer projeto “O diretor de Operações da Aracruz Celulose, Valter Lídio Nunes, afirmou desconhecer a existência do projeto de

A Aracruz desencadeou uma campanha difamatória e racista contra os índios

Page 182: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

181

desvio das águas do Rio Doce, visando ao favorecimento da indústria. Ele acredita que a empresa foi o alvo escolhido pelo movimento que declarou guerra ao agronegócio devido à sua importância no setor”.24

Por esse último fragmento, nota-se que a notícia deixa subentendido que o motivo original apontado pelo movi-mento para a luta (tentativa de desvio do Rio Doce pela Aracruz Celulose) parece ser apenas um “pretexto para a baderna”, desqualificando a manifestação.

Sobre a Rede Alerta contra o Deserto Verde e seus movimentos, o jornal é sintético e taxativo em sua carac-terização como “ameaça à ordem”:

“Índios e integrantes do MST e da Rede Alerta contra o Deserto Verde voltaram a invadir área da Aracruz Celulose. No último dia 7, eles já haviam derrubado eucaliptos na área próxima à fabrica. Ontem, 100 manifestantes ameaçaram e roubaram motosseras de funcionários que trabalhavam na área.”25

Essa forma de mediação, então, dificulta profundamen-te a interlocução desses movimentos sociais com a opi-nião pública, pois além desses meios construírem coti-dianamente uma boa imagem da Aracruz Celulose, dis-torcem profundamente os momentos de luta, de reivindi-cação, de exposição pública desses sujeitos sociais, com-prometendo, então, que a população conheça os impactos causados por essa multinacional.

Feita essa exposição geral, será feito um estudo de caso especificamente sobre o tratamento aos índios Tupini-quim e Guarani, de Aracruz, na sua luta pela demarcação das terras. A análise foi feita por um período de três me-ses do jornal A Gazeta, no ano de 2006.

a luta indígena no jornal a gazetaO enfrentamento dos índios à empresa Aracruz Celulo-

se se deu, historicamente, na luta pela retomada de suas terras, roubadas pela empresa para a implantação de sua fábrica e de seus monocultivos de eucalipto, desde sua

chegada ao Espírito Santo. A partir de 2005, com o novo impulso da luta indígena, fo-

ram realizadas inúmeras atividades de mobilizações, des-de a auto-demarcação da área até a ocupação do Portocel e da fábrica da empresa. Toda essa disputa foi acompanhada midiaticamente e a proposta é apresentar qual a mensa-gem dessa situação que foi passada para a população.

O que se pode notar é que a mídia tratou o caso sob três enfoques: reforçando o argumento da legalidade da Ara-cruz Celulose, apelando emocionalmente para os danos causados à empresa pelos índios e criminalizando expli-citamente as ações das comunidades. A seguir serão da-dos exemplos desses enfoques.

No argumento da legalidade, o jornal A Gazeta tratou a questão a partir das provas apresentadas pela Aracruz Celulose, as quais tentam comprovar a aquisição legal das terras por parte da empresa e, além disso, a não-existên-cia de índios na região. O exemplo abaixo confirma isso:

“Para provar que é legítima dona, a empresa elaborou um relatório de contestação ao laudo da Funai. [...], o documento levou oito meses para ficar pronto. A contestação contém mais de 15 mil páginas. [...] Ao todo, mais de vinte profissionais participaram da elaboração.26

Entre as diversas provas apresentadas pela empresa, está um censo do Ministério da Agricultura, elaborado em 1920. Segundo a Aracruz, o censo ‘não indica a presença de uma única aldeia indígena na região’27. Fotos aéreas, tiradas em 1957 pelo Instituto Brasileiro do Café, também foram usadas como prova.”28

Na matéria citada, em nenhum momento foi entrevista-do sequer um representante da Funai para prestar escla-recimentos sobre o parecer do órgão, favorável à demar-cação das terras indígenas, por exemplo. Nesse sentido, a matéria traz apenas uma informação unilateral, da empre-sa, excluindo, além da fala indígena, a fala do órgão oficial do Estado que trata da questão e que seria essencial para esclarecer o processo de estudo e demarcação da área.

Então, sob o marco legal, o problema em si, ou seja, a aquisição ilegal das terras indígenas pela Aracruz Celu-lose e, por isso, a luta pela demarcação da área, foi pouco esclarecido para a população. Há muitas lacunas de in-formação que precisariam ser preenchidas para uma me-lhor compreensão do caso. Citando mais um exemplo: os direitos garantidos aos índios pela Constituição Federal não são sequer mencionados ao longo das diversas publi-cações dos meios de comunicação, o que fez com que sua reivindicação aparecesse para a população como opor-tunista, pois transparece como “um grupo que, aleatoria-mente, quer terra alheia, de uma empresa que dá certo”.

No aspecto da legalidade, então, evidencia-se que há majoritariamente espaço para as provas históricas e vi-suais da empresa; acima, inclusive, do órgão oficial do Es-

A empresa questionava o direito à terra e a indianidade dos Tupiniquim

Page 183: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

182

tado com competência para isso, a Funai.O outro enfoque da construção de sentidos da luta dos

índios é o que trabalha com a comoção (pena) diante dos estragos sofridos pela empresa e provocados pelos índios no período de luta; e também com a comoção (emoção) diante do apoio que a empresa recebeu de seus funcioná-rios em dado contexto.

É um momento do discurso sobre a luta indígena em que as consequências das ações se sobrepõem às justifi-cativas das manifestações, isolando, de certa forma, os su-jeitos de suas “justas motivações” e associando-os aos im-pactos imediatos (prejuízos econômicos, principalmente) advindos dessa forma de luta, em que há o corte e queima dos eucaliptos da empresa.

O isolamento dos sujeitos também é reforçado pelo apa-recimento de outros personagens em cena, os trabalha-dores da empresa, que surgem como aliados da Aracruz, fato bastante exaltado. Os índios, embora realizassem as atividades com o apoio de diversos movimentos sociais e também de autoridades políticas, aparecem sempre iso-lados na sua luta.

A comoção apresenta-se, então, pela “dramatização” da narrativa, conforme os exemplos a seguir, junto dos quais há comentários:

• Sobre a queima de eucaliptos: “Desde o início do protesto os integrantes [...] já derrubaram mais de cem hectares de plantações de eucalipto. Outras centenas de árvores foram incendiadas”29 [parece que outras árvores além do eucalipto foram incendiadas, o que não aconte-ceu]; “Depois de uma longa conversa com os manifestan-tes, eles decidiram continuar com a derrubada e também com a queima das árvores”30 [índios como pessoas insen-síveis, irredutíveis]; “O clima seco e o vento forte contri-buíram para alastrar as chamas. O incêndio foi provoca-do a poucos metros do viveiro de mudas da Aracruz Ce-lulose. No local trabalham cerca de quatrocentos funcio-nários”31 [índios provocam risco de morte para os fun-cionários]; “Em poucos minutos dezenas de metros qua-drados de plantação foram destruídos. Árvores com mais

de 15 anos foram consumidas pelas chamas”32 [associa a um crime ambiental, destruição de árvores nativas; apaga da memória que o eucalipto é plantado para o corte, não para preservação]. E para finalizar, o socorro: “O fogo teve que ser combatido pelas brigadas de incêndio da empre-sa”;33 “Depois de muito trabalho os brigadistas consegui-ram apagar as chamas”.34

• Sobre o prejuízo causado à empresa: “Desde maio de 2005, a Aracruz Celulose é alvo de queimadas e cortes de árvores, o que desde então gerou um prejuízo de R$ 5 milhões e causou um estrago em 450 hectares – o que equivale a 450 estádios do Maracanã”;35 “O gerente regio-nal florestal da empresa, Marcelo Ambrogi, disse que a Aracruz já está extraindo eucalipto de São Mateus por-que não pode cortar árvores”;36 “A Aracruz já protocolou [...] pedidos de reintegração de posse e proteção da área, mas não tem como combater os focos de incêndios”.37

Nota-se que há um esforço para tornar a empresa uma verdadeira vítima dos “ataques” dos índios. Pelo que é dito, parece que a Aracruz nunca precisou usar os eucaliptos de São Mateus, sendo este município, juntamente com o de Conceição da Barra, os maiores locais de plantio de euca-lipto da empresa no estado. E o “estrago” de 450 hectares parece gigantesco se observado isoladamente, mas compa-rado à área total da empresa (279 mil hectares), torna-se bastante pequeno. O que está se tentando fazer é relativi-zar as informações a fim de que se torne perceptível o exa-gero de muitas afirmações, recurso da “dramatização”.

• Sobre a manifestação dos trabalhadores da Ara-cruz: esse ponto merece uma breve consideração por se tratar de uma manifestação de apoio à empresa por par-te dos trabalhadores. Há uma exaltação tão grande da ati-vidade, uma descrição tão empolgante da passeata, que o “clima” pode ser sentido pelo leitor. Isso praticamente nunca é observado no jornal quando se trata de manifes-tações, mesmo passeatas, de movimentos que questionam a empresa, a ordem.

Observa-se que, neste caso, mesmo com “as ruas toma-das de gente” e com a carreata, nenhum transtorno ao trânsito foi mencionado, por exemplo; numa clara posição do jornal em relação a qual lado da disputa se encontra.

Os fragmentos seguem: “Os manifestantes lotaram a Praça da Paz, no centro da cidade, e comerciantes fecha-ram as portas para aderir ao movimento. Por volta das 15h30, centenas de pessoas começaram a chegar ao lo-cal. Em pouco tempo a rua ficou tomada de gente. Ao todo, mais de cinco mil participaram da manifestação”38; “Às 16 horas, a rua em frente à praça já estava lotada. A todo momento ônibus chegavam vindos de diversas empresas da região. Quem descia carregava apitos, faixas e cartazes com palavras de apoio”39; “Conforme a carreata avançava pela avenida, os comerciantes baixavam as portas das lo-jas. Quem estava no trabalho, na hora do protesto, encer-rou o expediente mais cedo para aderir à manifestação”.40

O território indígena foi conquistado e construído durante séculos

Page 184: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

183

E a avaliação da manifestação foi concedida à empresa: “Foi uma prova do amadurecimento dos movimentos sin-dicais e também da própria democracia”.41

Para encerrar a análise, será abordado o momento “ter-ror”, ponto máximo da deslegitimação da luta indígena pela atribuição de um caráter quase terrorista aos índios, no que tange ao aspecto da violência a eles atribuída, e pe-los empecilhos que suas ações vinham causando ao cresci-mento da empresa, logo, ao desenvolvimento do estado.

O caráter quase terrorista atribuído aos índios é obser-vado em diversas passagens. O jornal passou dos termos “invadir”, “queimar”, para “roubar” e “agredir” com bas-tante naturalidade, sem qualquer argumentação de de-fesa por parte dos índios. São, de fato, acusações, como as que seguem: “Ontem, 100 manifestantes ameaçaram e roubaram motoserras de funcionários que trabalhavam na área”42; “[...] um grupo de 40 colaboradores da Aracruz, destacados na empresa DP, foram agredidos por cerca de 100 manifestantes”. No texto do documento consta ain-da que os trabalhadores que desobstruíram a estrada dos eucaliptos derrubados foram abordados e tiveram quatro motoserras roubadas.43

Somadas às acusações acima, existem aquelas a par-tir da voz da empresa, que também aparecem nas maté-rias: “Desde ontem, registramos queixa-crime na delegacia para que a polícia e a justiça tomassem providências con-tra esse roubo, um crime a céu aberto, mas nada foi feito”44; e ainda “Muito antes de serem atos de protesto, são ações de violência, roubo e intimidação de trabalhadores”45.

Com a idéia de agressão física e de roubo há um rebai-xamento da luta indígena, a partir da desqualificação mo-ral dos índios, atribuindo-lhes falta de honestidade e ca-ráter agressivo.

Além disso, há uma constante referência à possibilida-de de os índios repetirem a mesma ação “vândala” das mulheres da Via Campesina no Rio Grande do Sul aos vi-veiros da Aracruz. Isso aparece como forma de “rumor”, criado pelo próprio jornal para associar a ação dos índios à ação das mulheres, amplamente criminalizada pela mí-dia. Eis a referência: “Ontem à tarde havia rumores de que os índios planejavam invadir os laboratórios da em-presa, mas a informação foi desmentida pelas lideranças indígenas”46. A própria empresa também enfatiza esse te-mor nas suas falas nas matérias: “Tememos por uma in-vasão como aconteceu em Guaíba, no Rio Grande do Sul – onde integrantes do Movimento Sem Terra destruíram o laboratório e viveiro da Aracruz”47.

O momento “terror” também é constituído pela apre-sentação dos índios como uma ameaça à empresa, à vida dos trabalhadores e a seus postos de trabalho, ao desen-volvimento do estado, enfim. Isso é constante e explici-tamente divulgado pela empresa em seus depoimentos: “Essas invasões põem em cheque investimentos, empre-gos e o desenvolvimento futuro não apenas de um setor

produtivo, mas de todo país” 48.E nesse contexto, há uma “confissão” da empresa de

que a quarta fábrica da Aracruz não foi sediada no Espí-rito Santo justamente por causa dessas ações dos índios: “No dia 30 de julho, Aguiar revelou que o estado era for-te candidato a sediar a quarta fábrica da Aracruz, mas perdeu o investimento superior a US$ 1,3 bilhão para o Rio Grande do Sul”49; e prossegue: “A decisão seria con-sequência: 1) dos conflitos com os indígenas que reivin-dicam posse de terras; 2) do trabalho contra a empresa junto a grandes clientes no exterior por parte de grupos defensores dos índios; 3) tentativas da Assembléia Le-gislativa de impedir novos plantios de eucalipto; 4) das comissões de inquérito instaladas contra a Aracruz”50.

A associação entre a perda de investimentos para o Es-pírito Santo e a luta indígena é imediata, o que também cria uma sensação de que “não se pode prejudicar um es-tado inteiro por conta dessas atitudes dos índios”; outro elemento que deslegitima a luta indígena, uma vez que o “interesse coletivo” (o interesse da empresa, na verdade) aparece ameaçado por conta de um pequeno grupo.

Então, ao invés de haver um debate no mesmo nível, ou seja, uma resposta condizente ao problema levantado, há uma acusação ou uma desmoralização dos índios, tiran-do completamente o foco do debate. É como se os direitos constitucionais garantidos aos índios fossem postos em cheque por uma questão de “desvio de moral”; como se eles tivessem que “merecer” as terras a partir de um bom comportamento, ou seja, não fazendo nenhuma ação de pressão contra a empresa, a Funai ou o Ministério da Jus-tiça. O debate a partir de elementos históricos, antropoló-gicos, e mesmo legais é totalmente suprimido.

Então, na medida em que os índios são identificados como uma ameaça à empresa, imediatamente há uma associação de sentidos entre eles e à de perda de empregos, de gera-ção de renda, de investimentos em educação, de moderni-zação tecnológica para o estado, de financiamento de novos empreendimentos que possam gerar mais empregos, etc. A representação “índios em luta” passa a significar um em-pecilho a todo um conjunto de “oportunidades” criadas (na maioria das vezes apenas discursivamente) pela empresa e por todo projeto que ela representa, ou seja, coloca em risco o conjunto de promessas feitas pelo agronegócio.

Portanto, o discurso da luta indígena não é construído apenas nos momentos em que os índios se encontram em situação de luta concretamente. Já vem sendo tecido histo-ricamente e continua sendo elaborado cotidianamente, seja pelas referências diretas a eles, quando se fala sobre eles mesmos, seja pela referência indireta, quando se trata de algo que se relaciona de algum modo com eles, como o dis-curso criado para o projeto do agronegócio representado pela Aracruz, que tem a ver com eles na medida em que há um processo histórico de apropriação indevida das terras indígenas por essa empresa.

Page 185: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

184

Uma mídia democrática e alternativa é necessáriaConforme os estudos feitos, nota-se que existe uma ne-

cessidade urgente por parte das diversas organizações sociais em repensar a mediação pública das informa-ções diante desse contexto de extrema concentração dos meios de comunicação de massa no País. Isso é muito im-portante, pois a disputa em âmbito “subjetivo” e simbólico é uma disputa pela manutenção do ponto de vista domi-nante, ou pela transformação do ponto de vista domina-do da ordem vigente. Isso se aplica na luta da Rede Alerta contra o modelo implantado pela Aracruz Celulose, pois além da disputa pela retomada do território dos povos, por exemplo, há a disputa também por uma interpreta-ção da história, por uma concepção de viver na terra e no campo, enfim, por um projeto de desenvolvimento para a sociedade que é construído subjetivamente pelos meios de comunicação.

Assim sendo, o ponto principal de reflexão encontra-se em como dialogar com a sociedade, comunicar as lu-tas sociais, os pontos de vista sobre os problemas advin-dos com o projeto do agronegócio, diante da influência de toda a construção cotidiana simbólica massiva feita pelos meios de comunicação.

Partindo disso, é necessário que os movimentos tam-bém façam lutas no âmbito da comunicação em dois sen-tidos: na tentativa de democratizar os meios de comu-nicação que existem, a fim de desconstruir o monopólio hoje existente; e na produção de meios alternativos de comunicação, com conteúdos e formas diferenciados do que é (re)produzido pela grande mídia. É preciso aden-trar no campo da construção simbólica também, compre-ender e construir os elementos dessa disputa, mas dife-renciando-os dos padrões dominantes já evidenciados.

A intenção deste artigo foi, partindo de exemplos viven-ciados pelos movimentos sociais do Espírito Santo, realizar um exercício de analisar e observar, de modo menos natural, o que é produzido como informação. Algo que deve se tornar uma prática constante e que pode suscitar uma relação dife-renciada com a mídia. Além disso, serve de estímulo para se pensar em novas formas de comunicação, nas quais sejam produzidos outros sentidos, condizentes com os princípios de uma sociedade mais justa e igualitária.

RefeRências 1- Charaudeau, Patrick, Discurso das mídias, São Paulo, Contexto, 2006, p 21.

2- Berger, Christa, Do jornalismo: toda notícia que couber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar, a gente publica, In. Porto, Sergio Dayrell (org.), O jornal: da forma ao sentido, 2ª ed., Brasília, UnB, 2002, p. 274.

3- Lima, Venício A. de, Mídia: teoria e política, São Paulo, Perseu Abramo, 2001, p. 103-104.

4- Bordieu, Pierre, Sobre a televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 58.

5- Bordieu, Pierre, Sobre a televisão, ob. cit, p. 66.

6- Bordieu, Pierre, Sobre a televisão, ob. cit, p. 66.

7- Marcondes Filho, Ciro, Jornalismo Fin-De-Siècle, São Paulo, Página Aberta, 1993, p.127.

8- Charaudeau, Patrick, Discurso das mídias, ob. cit, p. 39.

9- Marcondes Filho, Ciro, Jornalismo Fin-De-Siècle, ob. cit, p. 129.

10- Berger, Christa, Do jornalismo..., ob. cit, p..279.

11- Marcondes Filho, Ciro, Jornalismo Fin-De-Siècle, ob. cit, p. 143.

12- A Gazeta, Programa florestal da Aracruz faz 15 anos. Edição de 31.08.2006, p. 18.

13- A Gazeta, Arcelor e Aracruz estão na lista. Edição de 17.08.2006, p.18.

14- Fernandes, Bernardo Mançano, O agronegócio e a reforma agrária, In.: http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=501, ago./2004, acesso em 20 de janeiro de 2007.

15- Fernandes, Bernardo Mançano, O agronegócio e a reforma agrária, ob. cit., acesso em 20 de janeiro de 2007.

16- Orlandi, Eni Puccinelli, Análise de discurso: princípios e procedimentos, ob. cit, p. 82.

17- Orlandi, Eni Puccinelli, Análise de discurso: princípios e procedimentos, ob. cit, p. 83.

18- Orlandi, Eni Puccinelli, Análise de discurso: princípios e procedimentos, ob. cit, p. 83.

19- Passos, Ângelo, Coluna “Economia Capixaba”, Jornal A Gazeta, edição de 13.08.2006, p. 29.

20- Orlandi, Eni Puccinelli, Análise de discurso: princípios e procedimentos, ob. cit, p. 40.

21- A Gazeta, Coluna Opinião. Falsos quilombolas, por Uchôa de Mendonça. Edição de 28.08.2007.

22- A Gazeta, MST volta a ocupar Fazenda da Aracruz Celulose. Edição de 27.04.2006.

23- A Gazeta, Famílias têm crédito barato para comprar terra e produzir. Edição de 28.08.2007.

24- A Gazeta, Protesto de Agricultores fecha BR 101 por 4 horas em Linhares. Edição de 30.03.2006.

25- A Gazeta, Interior: Aracruz. Edição de 12.09.2006, p. 09.

26- A Gazeta, Índios permanecem em área da Aracruz até parecer de ministério, Edição de 14.09.2006, p. 12.

27- A Gazeta, Índios permanecem em área da Aracruz até parecer de ministério, Edição de 14 de setembro de 2006, p. 12.

28- A Gazeta, Índios permanecem em área da Aracruz até parecer de ministério, Edição de 14 de setembro de 2006, p. 12.

Page 186: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

185

29- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de setembro de 2006, p. 09.

30- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de setembro de 2006, p. 09.

31- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de setembro de 2006, p. 09.

32- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de setembro de 2006, p. 09.

33- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de setembro de 2006, p. 09.

34- A Gazeta, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de setembro de 2006, p. 09.

35- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de setembro de 2006, p. 13.

36- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de setembro de 2006, p. 13.

37- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25.09.2006, p. 13.

38- A Gazeta, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de setembro de 2006.

39- A Gazeta, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de setembro de 2006.

40- A Gazeta, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de setembro de 2006.

41- A Gazeta, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de setembro de 2006.

42- A Gazeta, Interior: Aracruz. Edição de 12 de setembro de 2006, p. 09.

43- A Gazeta, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de setembro de 2006, p. 10.

44- A Gazeta, Índios derrubam eucalipto da Aracruz para protestar, Edição de 08 de setembro de 2006, p. 08.

45- A Gazeta, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de setembro de 2006, p. 10.

46- A Gazeta, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de setembro de 2006, p. 10.

47- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de setembro de 2006, p. 13.

48- A Gazeta, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de setembro de 2006, p. 10.49- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de setembro de 2006, p. 13.

50- A Gazeta, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios. Edição de 25 de setembro de 2006, p. 13.

RefeRências BiBliogRáficasA Gazeta, Protesto de Agricultores fecha BR 101 por 4 horas em Linhares. Edição de 30 de março de 2006.

____, MST volta a ocupar Fazenda da Aracruz Celulose. Edição de 27 de abril de 2006.

____, Ângelo Passos, Coluna “Economia Capixaba”. Edição de 13 de agosto de 2006.

____, Arcelor e Aracruz estão na lista. Edição de 17 de agosto de 2006.

____, Programa florestal da Aracruz faz 15 anos. Edição de 31 de agosto de 2006.

____, Índios derrubam eucalipto da Aracruz para protestar, Edição de 08 de setembro de 2006.

____, Interior: Aracruz. Edição de 12 de setembro de 2006.

____, Índios mantêm ocupação de área próxima à Aracruz, Edição de 13 de setembro de 2006.

____, Índios permanecem em área da Aracruz até parecer de ministério, Edição de 14 de setembro de 2006.

____, Posse de área em Aracruz será definida dentro de 30 dias, Edição de 15 de setembro de 2006.

____, Disputa por terras provoca protestos em Vitória e Aracruz, Edição de 16 de setembro de 2006. ____, Aracruz denuncia prejuízo de R$ 2,4 milhões com incêndios.Edição de 25 de setembro de 2006.

____, Famílias têm crédito barato para comprar terra e produzir. Edição de 28 de agosto de 2007.

____, Coluna Opinião. Falsos quilombolas, por Uchôa de Mendonça. Edição de 28 de agosto de 2007.

Bourdieu, Pierre. Sobre a televisão. Tradução de Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Charaudeau, Patrick. Discurso das mídias. Tradução de Ângela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006.

Fernandes, Bernardo Mançano. O agronegócio e a reforma agrária. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=501, ago./2004, acesso em 20 de janeiro de 2007.

Girelli, Luciana Silvestre. A mídia e o agronegócio no Espírito Santo: a construção de sentidos da empresa Aracruz Celulose e da luta indígena. Monografia de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2007.

Kuschick, Christa Liselote Berge. Do jornalismo: toda notícia que couber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar, a gente publica. In.: Porto, Sergio Dayrell (org.). O jornal: da forma ao sentido. 2ª ed. Brasília: UnB, 2002, pp. 273-284.

Lima, Venício. Mídia: teoria e política. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.

Marcondes Filho, Ciro. Jornalismo fin-de-siécle. São Paulo: Página Aberta, 1993.

Orlandi, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5ª ed. Campinas: Pontes, 2003.

Página na internet do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação: www.intervozes.org.br

Page 187: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

186

Page 188: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

187

PARTE 4• Mudanças climáticas • Consumo excessivo

• Ficção sobre o mercado de carbono

Page 189: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

188

Conforme o debate em torno das mudanças climáti-cas tem mostrado nos últimos 18 anos, o atual modelo de produção e consumo ocidental baseado na queima dos chamados combustíveis fósseis (petróleo, carvão mine-ral e gás natural) e a lógica capitalista hegemônica, volta-da para a maximização de lucros, que vem aprofundan-do cada vez mais este modelo, são os principais respon-sáveis pela atual crise climática. As mudanças climáticas já afetam muitas populações rurais no hemisfério Sul e colocam em cheque a sobrevivência da humanidade.

Para atender a demanda de consumo excessivo de papel descartável - que atende a apenas 20% da huma-nidade -, a produção de celulose, a partir da monocultu-ra do eucalipto em larga escala, é realizada no hemisfério mais rentável: o Sul global, com destaque para o Brasil e, dentro deste, o Espírito Santo. Além da ampla utilização de insumos produzidos a partir do petróleo, como os agro-tóxicos, a importação de máquinas da Europa, a exporta-ção da celulose para os continentes de maior consumo e o deslocamento das atividades agrícolas para outras regiões do Brasil, devido à expansão das áreas plantadas com eucalipto, fazem com que o setor de papel e celulose, incluindo a Fibria/Aracruz, seja um considerável emissor de gases poluentes e um dos grandes responsáveis pela crise climática.

No entanto, o Protocolo de Quioto deixou a Aracruz/Fibria em uma situação bastante confortável. O Protoco-lo, além das ínfimas metas de redução de emissões, intro-duziu o chamado comércio de carbono a partir da falsa suposição de que é possível que os países industrializa-dos do hemisfério Norte reduzam menos a emissão de CO2 (ou seja, possam queimar mais petróleo, óleo e gás natural) desde que haja a compensação de suas emis-sões através de atividades que evitam emissões de gases

Mudanças climáticas: uma lucrativa oportunidade1

de efeito estufa ou que tiram esses gases da atmosfe-ra em países do Sul global, como o Brasil. É óbvio que a Aracruz/Fibria e outras empresas identificaram neste comércio, ou mercado de carbono, uma tremenda oportu-nidade para fazer novos negócios e obter mais lucros.

Uma rápida visita ao site da Aracruz/Fibria mostra primeiramente uma preocupação que as mudanças climá-ticas possam afetar negativamente a produção de euca-lipto, ou seja, possam afetar seu principal negócio. O que chama a atenção é que, apesar de informar que também realiza o chamado ‘inventário de carbono’, a Aracruz/Fibria não assume em nenhum momento sua responsa-bilidade por ter contribuído de forma significativa para os problemas climáticos atuais. Isso seria fundamental, já que em sua história de pouco mais de 40 anos é evidente que ela tem uma dívida climática histórica na região por ter, dentre outros motivos, destruído milhares de hectares de Mata Atlântica quando iniciou seus plantios de euca-lipto, de acordo com os depoimentos de indígenas Tupini-quim e Guarani e de quilombolas do Sapê do Norte, apre-sentados neste livro.

Em seguida, a Aracruz/Fibria informa no seu relatório de sustentabilidade de 2009 que está estudando várias oportunidades para poder vender os chamados ‘crédi-tos de carbono’. Neste sentido, a empresa elaborou dois projetos nos moldes do Mecanismo de Desenvolvimen-to Limpo (MDL) e busca registrar estes projetos junto à ONU. Sem apresentar maiores informações e deta-lhes sobre nenhum dos projetos, ela busca obter com a suposta redução de emissões de gases de efeito estu-fa destas propostas mais um subsídio para seus negó-cios já altamente rentáveis. É explícito que o MDL é um mecanismo totalmente inacessível para a participação da sociedade civil através de, por exemplo, audiências públicas, além de ter promovido, em geral, mais emis-sões de carbono por ter aquecido os negócios de gran-des empresas, já que trata-se de um verdadeiro subsídio para a atividade industrial.

Em seu sítio eletrônico, a Aracruz afirma que está fazen-do um levantamento da quantidade de carbono armaze-nado em suas ‘reservas nativas’. Junto com o argumento de que as áreas de plantações de eucalipto em si já seriam importantes sumidouros de carbono, a empresa busca convencer a todos de que ela vem contribuindo significa-tivamente para reduzir os problemas do clima através das árvores, abundantes no seu território de mais de 1 milhão de hectares, sejam elas eucalipto ou nativas.

É importante salientar que plantar eucaliptos ou árvo-res nativas e/ou preservar áreas de floresta nativa não resulta em nenhuma contribuição de longo prazo para esfriar o planeta. Árvores em crescimento garantem apenas uma absorção temporária de carbono (CO2) da atmosfera. Quando, no caso de eucalipto, as árvores são cortadas depois de 6 - 7 anos, transformadas em celulo-

Winnie Overbeek

Page 190: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

se e, mais tarde, em papéis, sobretudo descartáveis que viram lixo, o carbono ‘armazenado’ é novamente libera-do. No caso de árvores nativas, o processo pode ser mais demorado, mas tem o mesmo resultado final quando a árvore morre ou é queimada. Por isso, por mais que o reflorestamento com árvores nativas seja um ato louvá-vel e necessário, é inaceitável que o carbono armazenado em árvores justifique a emissão de uma quantidade equi-valente de carbono da queima de combustíveis fósseis por empresas poluidoras dos países industrializados do Norte. Isto resulta em um aumento líquido da quantida-de de carbono em circulação entre a atmosfera, biosfera e o solo, aprofundando ainda mais a crise climática. Mesmo assim, empresas poluidoras como a Aracruz ganham um subsídio a mais para continuar poluindo e lucrando.

O que mais impressiona nesse processo é a capacidade da Aracruz/Fibria, uma grande contribuinte para a atual crise ambiental, em se transformar em um agente que seria parte da ‘solução’ do problema. Além das propos-tas já citadas, a Aracruz informa no seu site que preten-de participar da edição do chamado Índice de Carbono da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Esta é outra comprovação de que o comércio de carbono, na verda-de, reforça o capital financeiro que pratica a especulação, neste caso, com o carbono, ou seja, com o ar. Ironicamen-te, a Aracruz/Fibria, que em 2008 sofreu uma perda de mais de R$ 2 bilhões com atividades especulativas, agora se prepara para investir fortemente na exploração deste mercado, que só existe para proporcionar lucros ainda maiores para as empresas poluidoras.

Cabe à sociedade civil organizada e crítica denunciar publicamente mais este mecanismo perverso que, além de não resolver o mais grave problema ambiental da humani-dade, vem, com falsas soluções, agravar o mesmo e aumen-tar os lucros a curto prazo de empresas como a Aracruz/Fibria, enquanto o planeta e, principalmente, as populações mais vulneráveis, têm suas sobrevivências ameaçadas.

Neste momento, além dos gritos de mulheres e homens indígenas, quilombolas, camponeses e pescadores, a própria natureza grita que este modelo de produção que a Fibria/Aracruz vem implantando no Espírito Santo há mais de 40 anos está falido. Se os governos dos países do Norte quiserem garantir para suas populações um consu-mo de papel no nível estadunidense ou europeu, esses governos precisam criar as condições para isso nos seus próprios países. E se isso não garante os lucros monstruo-sos que empresas como a Aracruz/Fibria obtêm no Brasil, talvez seja momento de finalmente permitir que as popu-lações dessas sociedades possam decidir sobre o futuro que querem ter: um que priorize e garanta alta lucrativi-dade para as grandes corporações ou um outro que parta de um modelo e lógica de produção e consumo construído local e regionalmente, capaz de esfriar o planeta e, desse modo, garantir um futuro para a humanidade.

Page 191: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

190

Um tema que não poderia ficar de fora deste livro é o do consumo excessivo de papel. Por ser considerado a causa motriz de todo o atual processo de produção, ele está intimamente vinculado a todos os diferentes tipos de destruição (cultural, ambiental, social, econômica, territo-rial) consequentes da monocultura de eucalipto. Portan-to, além de expor as mazelas do processo de produção de uma mega-empresa como a Aracruz, também é funda-mental atentarmos para o que ocorre na outra ponta e denunciar a distribuição desigual do papel e o irracional desperdício que caracterizam o consumo mundial dessa matéria prima. Aqui, é fundamental compreender que, mais do que qualquer outra coisa, o consumo de papel é uma questão política.

De acordo com o Movimento Mundial pelas Flores-tas Tropicais (WRM, sigla em inglês), desde o começo da década de 1960, o consumo de papel e papelão em todo o mundo tem aumentado quase sete vezes. Sua produ-ção usa quase a metade da madeira obtida industrial-mente do planeta, mais água que qualquer outro produ-to industrial e uma quantidade de energia por tonelada similar à utilizada para a fabricação do aço. “Cada tonela-da de papel requer 98 toneladas de outros recursos para sua fabricação e o papel é o maior contribuinte para o fluxo de lixo na maioria dos países consumidores. Redu-zir nossos impactos no planeta usando menos papel é um bom ponto de partida”, afirma a organização.

Os países do Norte consomem 57 vezes mais papel do que os do Sul. Ou seja, 2,5 bilhões de pessoas mais pobres têm 57 vezes menos papel disponível que um europeu ou estadunidense médio. Enquanto a média mundial per capita é de 54 kg/ano, na Finlândia, consome-se 324 kg/ano; nos EUA, 297 kg/ano; e na França, 178 kg/ano. Do outro lado da balança estão os países que consomem abaixo da média mundial: na Tailândia, consome-se 50

Um f im para a cultura do consumo excessivo12Patrícia Bonilha

Page 192: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

191

kg/ano; no Brasil, 39 kg/ano; Equador, 23 kg/ano; Indo-nésia, 20 kg/ano;Vietnã, 15 kg/ano; Camarões, 3 kg/ano; Camboja e Uganda, 2 kg/ano; e Laos, 1 kg/ano apenas.

Grande parte do papel consumido no Norte é totalmen-te desnecessário. Os funcionários de escritórios no Reino Unido imprimem 120 bilhões de folhas de papel ao ano, suficientes para criar uma pilha de mais de 13 mil quilô-metros de altura. Dois terços desse papel acabam nas lixeiras antes do fim do dia. Os estadunidenses usam 130 bilhões de copos de papel ao ano. Depois de 15 minutos de uso, eles são descartados.

Para dar conta de manter essa cultura de desperdício, desvalorização do papel e despreocupação/desinforma-ção sobre as suas consequências, as comunidades rurais e tradicionais em diversos países do Sul estão enfren-tando a rápida expansão das plantações de eucalipto. No Laos, por exemplo, apesar de usarem em média menos de um quilograma de papel ao ano, as pessoas estão sofren-do diretamente os mais diversos impactos para satisfa-zer as exorbitantes demandas de matéria prima barata da indústria global do papel.

Apesar dos fatos comprovarem a desigual e injusta

distribuição do papel e o seu consumo excessivo, é muito comum – e ideologicamente interessante - relacionar o alto consumo do papel às taxas de alfabetização ou ao nível de escolaridade e erudição. Mas esta relação é equi-vocada. A Finlândia, por exemplo, consome 324 kg/ano, e tem uma taxa de 99% de alfabetizados. O Canadá conso-me 263 kg/ano e tem 99%. Já Costa Rica consome 191 kg/ano e 95% de sua população é alfabetizada. Chile conso-me 52 kg/ano e 96% da população é alfabetizada. No Viet-nã, 15 kg/ano são consumidos por pessoa, enquanto 93% da população é alfabetizada.

Outros dados – bastante impressionantes - que confir-mam essa falsa relação:

* apesar de os EUA ser o país que mais consome papel no mundo, 58% da sua população adulta nunca leu um livro depois de ter deixado a escola e 80% das famílias dos EUA não compraram nem leram um livro em 2007;

* apenas 1/3 da produção de papel é usada para escre-ver e imprimir (livros, jornais, periódicos), uma grande parte é usada para publicidade e quase a metade de todo papel produzido é utilizado para embalagens e, portanto, é rapidamente descartada;

Atualmente, o Brasil é o 11o produtor mundial de papel, o 4o maior produtor de celulose2 e o maior pro-dutor mundial de celulose de eucalipto3. O País tam-bém ocupa a 4a posição na produção mundial de ma-deira, participando com 6% do total.

As florestas plantadas de eucalipto e pinus tive-ram uma expansão de 5% ao ano, no período de 2005 a 2008 no Brasil. Em 2009, por conta da crise econô-mica, houve um desaceleramento de 2,5%. De acor-do com o Anuário Estatístico da Associação Brasilei-ra de Produtores de Florestas Plantadas (Abraf), em 2009, essas áreas de plantações de monocultura ocu-param 6,3 milhões de hectares.

A área ocupada por florestas de eucalipto está em franca expansão em vários estados brasileiros. Atu-almente, os maiores produtores são: Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul, Espírito San-to e Mato Grosso do Sul. Em 2009, a área de plan-tações de monoculturas de árvores no Espírito San-to foi de 208.510 hectares, sendo que 40.400 hecta-res ficam nas áreas de fomento florestal (plantio de eucalipto por agricultores)4. As principais empresas que atuam no Espírito Santo são a Aracruz/Fibria e a Suzano Papel e Celulose.

No Brasil, a Aracruz possui um total de 1,043 mi-

Mapeando o eucalipto, a celulose e a aracruz

lhão de hectares; destes, 585 mil hectares são de mo-nocultura de eucalipto. Desse total, 185 mil hectares estão no Espírito Santo, e, destes, 104 mil são plan-tados com eucalipto. A produção nacional de celulo-se dessa empresa em 2009 foi de 5,19 milhões de to-neladas; destas, 2,3 milhões de toneladas foram pro-duzidas em terras capixabas. Cerca de 90% da produ-ção total da Aracruz no Brasil foi exportada, em sua maioria, para Ásia (36%), Europa (31%) e América do Norte (23%). Os principais produtos finais foram len-ços de papel e papel sanitário, ou seja, papéis descar-táveis (43%). Outros 23% foram papéis especiais, in-clusive papéis de luxo; 33% da produção foi destina-da para papéis para escrever e imprimir.

Após a fusão da Votorantim com a Aracruz Celu-lose, ocorrida em 2009, a estrutura societária da em-presa ficou da seguinte maneira: Votorantim Indus-trial S.A. (29,34%), BNDESPar (30,42%), Tesouraria (0,07%) e Flutuação Livre - percentual do capital da empresa que se encontra em mãos de acionistas com participação inferior a 5% - (40,17%). Além disso, a Aracruz/Fibria é proprietária de 50% da Veracel Ce-lulose S.A. (Bahia) e 50% da Conpacel (São Paulo).

O lucro líquido da Aracruz/Fibria no ano de 2009 foi de R$ 558 milhões.

Page 193: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

192

* o serviço de correios dos EUA envia 20 bilhões de catálogos de produtos por ano, o que representa pouco mais de três catálogos para cada ser humano vivendo neste planeta;

* o papel é a base de quase metade de todas as emba-lagens fabricadas.

As indústrias de celulose têm cada vez mais se expan-dido em países como Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Colômbia, Equador, Congo, África do Sul, Tailândia, Indo-nésia, Malásia e Suazilândia. Os principais motivos que estimularam a instalação das fábricas nesses países são: o acesso barato à terra; os generosos subsídios, apoio e, muitas vezes, o próprio financiamento do Estado; o fato de o clima e o solo favorecerem o rápido crescimento das árvores (5 vezes mais que no Norte); os custos com mão de obra serem muito inferiores se comparados aos de países “desenvolvidos”; a regulamentação ambiental ser flexível e a fiscalização ser deficitária e questionável; e, por fim, a garantia de lucros exorbitantes, às custas das pessoas e dos ecossistemas.

Portanto, é explícito que a indústria de celulose se deslocou para os países do Sul com o objetivo de barate-ar os seus custos. Para além disso, o setor divulga cons-tantemente os seus planos de aumentar essa produção barata, criando novas necessidades de produtos descar-táveis, como toalhas, lenços, guardanapos, copos, embala-gens, com o objetivo único e exclusivo de aumentar ainda mais os seus já astronômicos lucros.

Quem paga a conta desse modo de produzir, que proporciona celulose cada vez mais barata e mais lucra-tiva para as empresas, são as populações atingidas dire-tamente. Contraditoriamente, elas estão “pagando” um preço cada vez mais alto por essa produção, já que ficam com todos os impactos. As indústrias de celulose agem sempre da mesma forma agressiva e desrespeitosa em relação aos povos e ao meio ambiente, seja na África, Ásia ou América Latina: são uma das maiores poluentes do ar e da água; estão entre as maiores usuárias de matérias primas; ocupam a 1a posição no consumo industrial de água doce; a 3a em emissão de gases de efeito estufa; a 5a posição em uso de energia industrial; utilizam largamen-te insumos como adubo químico, mecanização e agrotó-xicos; desestruturam a economia local; causam o empo-brecimento das populações; se apropriam indevidamente das terras e causam o deslocamento de antigos morado-res; degradam os solos; destroem a biodiversidade, dimi-nuindo drasticamente os animais e plantas endêmicos; impactam na oferta de trabalho da região onde se insta-lam; causam a diminuição da produção de alimentos e a perda da segurança alimentar; e substituem os ecossiste-mas naturais por desertos verdes.

Em seu site, o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais avalia que “essa situação já atingiu limites into-leráveis e a sua solução requer políticas que desestimu-

lem o consumo desnecessário, promovendo um uso racio-nal e socialmente apropriado do papel, garantindo uma distribuição equitativa entre os países e dentro dos países, facilitando o desenvolvimento de modelos diversificados em menor escala para a produção de pasta, respeitando tanto as pessoas quanto o meio ambiente. O único e real obstáculo é o interesse econômico das grandes compa-nhias cujo objetivo é continuar obtendo lucros através da imposição de um consumo crescentemente grande e ilimitado de papel”.

O enfrentamento do problema dos monocultivos de eucalipto e da produção de celulose, portanto, passa também por uma urgente mudança estrutural no modo de consumo. É preciso investir em uma nova cultura radi-calmente oposta ao consumismo e ao desperdício, em que a orientação seja a de reduzir drasticamente o consu-mo, reutilizar/reaproveitar produtos e reciclar/reinven-tar materiais. Para isso, é fundamental adotar práticas responsáveis como banir ou evitar ao máximo os produ-tos descartáveis. Precisamos também desenvolver uma maior capacidade de vincular o produto-papel com os graves impactos causados pela forma como ele é produ-zido, nos responsabilizando pelo que estamos compran-do/causando. Neste sentido, é importante evitar comprar produtos de empresas como a Aracruz, apesar da dificul-dade de colocar este tipo de boicote em prática devido aos monopólios de mercado.

Desconstruir o atual modelo de produção e consu-mo exige uma relação totalmente diferente e muito mais profunda com as pessoas, a natureza e com a vida. Ao invés de seguir um modelo de sociedade movido pelo lucro, pela competitividade e pelo crescimento ilimitado, praticar uma vida fundamentada no respeito, na gentile-za, no amor e na compreensão de que o “meio ambiente” é um reflexo do “meu ambiente” de cada um de nós. Para caminharmos neste sentido, é preciso resistir e enfren-tar o histórico modelo de sociedade que nos é imposto. E, justamente, em nome de uma vida em sintonia com a natureza e com as verdadeiras riquezas de nossos povos, e por uma sociedade justa, é que devemos seguir firmes na luta contra empresas destruidoras como a Aracruz.

RefeRências

1- Os dados da primeira parte do texto foram extraídos do sítio eletrônico do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, em inglês) e do documentário Montanhas de Papel, Crescente Injustiça, produzido em 2008, por essa mesma organização.

2- Segundo a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa)

3- Segundo a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa)

4- A partir desse trecho, todos os dados são do sítio eletrônico da Aracruz/Fibria:www.fibria.com.br.

Page 194: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

193

3segunda-feira, 22 de abril de 2010Londres, Inglaterra, 6h30Quarto de hotel.

Descarga. Água e papel sanitário se esvaindo pelo ralo.Gripado, talvez febril, Dr. A traz sob o braço o relató-

rio semanal que estivera lendo. Dois dias de planejamento estratégico haviam se passado. Com Proctor & Gamble e Kimberly Klark, a reunião de logo mais seria decisiva: 45% das exportações de sua empresa estavam em jogo. Vincu-ladas às 2,7 milhões de toneladas de celulose branqueada de fibra curta de eucalipto.

Orgulhoso de si, Dr. A corrige o nó da gravata frente ao espelho. Projeta o futuro como quem deduz o desa-bar milimétrico de peças de dominó – no Norte, uma epi-demia de lenços de papel Tempo ou Kleenex, perfuma-dos com aloe vera, para narizes sensíveis. No Sul, mais três fábricas de celulose, no Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina, onde quer que fosse. Não im-porta. Onde oferecessem o melhor lance: baixos custos, altos lucros.

Fundamental era que o Estado receptor garantisse, não importa como, um novo ciclo de expansão dos plantios uniformes de eucalipto geneticamente modificados. “Me-lhor que dinheiro no banco!” disseram os pós-graduados Drs. Jeremias & Jeremias, seus consultores junto ao Banco Mundial. Os créditos de Carbono seriam suficientes para fazer re-girar todo o circuito do capital. Os dólares nun-ca foram tão verdes! “Esta é a ocasião”, repetia Dr. A con-sigo mesmo.

O ano é 2010.Marcelo Calazans e Renata Valentim exploram duas diferentes experiências no Mercado de Carbono.

Ficção quilombola e mercado de carbono

Page 195: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

194

Durante seguidas noites, aprendera a sonhar com pro-jetos, indicadores, monitoramentos, mensurações, contro-les. Alguém tinha que pensar nisso. Uma enorme enge-nharia global: O Banco Europeu de Investimento (EIB), o Banco Nórdico de Investimento (NIB), o Fundo de Pe-tróleo da Noruega, as Agências de Crédito de Exportação, as transnacionais. Agora, o Fundo de Carbono do Ban-co Mundial coordenava o negócio das árvores no Sul, en-quanto garantia, por anos, um amplo suprimento de Car-bono para britânicos, holandeses e noruegueses. Era só uma questão de tempo, para que outros se interessassem no sequestro.

O celular. O táxi aguardava. Nas esquinas de Londres, os jornais estampavam: Brasil e Costa Rica abrem a Co-pa do Mundo. Onde fica mesmo o Terceiro Mundo? Es-tranho dia de Primavera.

Conceição da Barra, Espírito Santo. Brasil. 6h30.Quilombo angelim.em meio à plantação de mandioca.

Benedito Meia-Légua estivera por toda a noite à esprei-ta. Dormira fora de casa. Na dúvida, melhor era o risco da fuga. Sempre haveria outros, negros como ele, e mais adiante, no mesmo caminho, uma mesma sina. Lei natu-ral dos encontros. África, Brasil, Espírito Santo. Todo um Atlântico já o separava de um passado improvável.

Na semana anterior, Benedito, Rugério e Nega foram presos. A negrada reclamou. Na mesma noite, juntaram uns vinte, foram na delegacia de polícia, e tiraram eles de lá. A polícia ainda ofereceu alguma resistência.

Processados, já nem se lembrava quantos: só no qui-lombo São Domingos eram uns 70. Cercados de eucalip-to por todos os lados, mas nada daquilo era pra eles. E fo-ram presos por uns tocos, geneticamente degenerados, que sequer serviam pra celulose. No quilombo de Roda d’Água, pegaram Dealdina tentando uma pesca à toa, na lama do rio seco, e com ela as duas mais novas de Maria. Levaram todas, com rede e tudo.

Tal como Meia Légua, eram todos acusados pela lei do Estado, e pelos princípios e critérios do Banco Mundial, dos selos verdes, das certificadoras: Não podiam coletar a biomassa da madeira, com que construíam suas casas de estuque. Não podiam queimar combustíveis fósseis em seus fogões a lenha. Não podiam invadir a proprie-dade privada. Não podiam pescar nem caçar nos cria-tórios de peixes, pacas e tatus. Até seu Antonino, com seus cabelos brancos, ficou 12 dias preso. Coletava pal-mito em uma instalação de Mata Atlântica in vitro. Pro-cessado como criminoso. Formação de quadrilha. Mar-ginal. Quem seria o próximo?

Desde 2006 que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concluíra as pesquisas de deli-mitação e demarcação das terras quilombolas do Sapê do Norte. Nos estudos, dois momentos. Nos anos de 1970,

antes da monocultura, 12 mil famílias, 256 mil hectares quilombolas. Em 2006, 1,3 mil famílias em 32 comuni-dades-ilha, em meio ao eucaliptal. O Estado já conhe-cia esses números, a lei garantia a posse, as pesquisas asseguravam a legitimidade do direito. Que nada. Qua-tro anos já se passavam e o segundo governo Lula não se decidia.

Desde então a negrada parou de esperar. Milhares de negros e negras marchando pelas ruas, cartas públicas, assembléias, debates, mobilizações de resistência e con-fronto. Não pediam mais autorização para acessar o que era deles. A milícia armada de Dr. A e a PM que viessem.O sol do Outono era seco, não diferente do resto do ano. Qualquer fagulha e era uma vez aquela paisagem unifor-me de plantação homogênea. Não conseguia imaginar a escala: 66% de Conceição da Barra incendiaria com o eu-calipto. Outros 15% com cana de açúcar. O Terceiro Mun-do é aqui.

Nessa hora, por todo o Sapê do Norte, já se prepara-va o café, o beiju, o bolo de aipim, o cuscuz de coco, o fei-jão tropeiro e o agrião. Não era dia de plantar nem colher mandioca. Não iam coletar os resíduos de eucalipto, nem fazer carvão. Nem arriscar uma pesca ou caça. Hoje não haveria nenhum confronto. Em Linharinho, Meia Légua haveria de arranjar alguma TV. A seleção brasileira estre-ava na Copa. Uma pequena trégua.

Londres, Inglaterra. 10h15.sala de reunião.

- Considerações de apreço ao Sr. Diretor.- Um novo Tempo e outro Kleenex já se anunciam nas

propagandas.- O processo de deslignificação garante a brancura.- A uniformidade da fibra garante a textura.(Café. Chá. Leite)- Escala nunca foi problema.- Nem o Estado.- Nem os selos verdes.- Responsabilidade social é não ter vizinhança.(Troca de cartões)

Conceição da Barra, Espírito Santo. Brasil. 11h.Quilombo de Linharinho.

Ronaldinho Gaúcho era um novo Pelé? Na tela verde, não tinha vez pra branco. A negrada se acotovelava diante da TV. Em cima dela, uma pequena escultura de São Jor-ge guerreiro, domador de dragões.

No último encontro da Rede Alerta contra o Deserto Ver-de tinha vindo um costarriquenho. Meia légua não se lem-brava ao certo do nome em espanhol, mas lá tinham os “garífunas”, (seria isso mesmo?). Não se prendia à grafia. Importa é que eram negros, como os quilombolas daqui, filhos de uma mesma América Colonial. Contra a Costa Rica, era jogo entre irmãos. Queria mesmo era enfrentar

Page 196: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

195

a Noruega ou a Alemanha ou ainda os ingleses. Preto no branco, no campo era 11 x 11. Fim de jogo.

De volta à guerra.Dominguinhas, Rosa, Edu, Antônio, Zeca de Neuza, Pin-

to, Careca, Mara, Silvio, Nem, Dona Grande, Seu Antoni-no, Zé da Baiana, Severino, Osvaldo, Dona Maria, todos os de São Mateus estavam por lá. Os da Barra vieram em pe-so, uns 30. Durante a farofa, uma assembléia. Em Linhari-nho, dia de jogo era álibi, tal como o Congo, o Jongo, o Ti-cumbi, o Reis de Boi, o Samba, a Capoeira, as Ladainhas. Cabula. Salve Santa Bárbara. Estava decidido. Por todo o Sapê do Norte já corria o rumor: as terras iam ser retoma-das. No dia de São Jorge! Era meio a meio, pau a pau.

Londres, Inglaterra. 14h.Quarto de Hotel.

Depois de três aspirinas, já não tinha febre. Na ponta do consumo estavam garantidos os processos de venda. Dr. A estava feliz, quer dizer, satisfeito. Tinha devorado dois hamburguers e refrigerantes. Repousava no sofá, duran-te um re-planejamento estratégico. Na idéia, mais três mi-lhões de toneladas de celulose ao ano. Uma nova missão, uma nova planta industrial. Na tela da Microsoft, reluzia a longa lista de fornecedores e reuniões: as turbinas da Akz, as torres e filtros da Beloit, o digestor da Kamyr, as pontes rolantes da Mannesmann, as linhas de secagem da Voith Paper e os geradores da BBC Brow e ainda Siemens, Kva-erner, Metso, ABB, Andritz-Ahlstrom, Jaakko Poyry. Ufa. Um grande horizonte de sentido para sua vida.

Quem sabe pudesse ganhar novamente o prêmio do Environmental Business Institute, da Câmara de Comér-cio Internacional. Não faltaria quem o indicasse. Lembra-va da época da pré-inauguração da segunda fábrica no Espírito Santo, com presença até do Príncipe Charles, na-quele abril de 1991. Não tinha culpa se o planeta aquecia, se os rios tinham sido desviados sem Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), se os motosserristas mutilados e depois desempregados. Não era de sua conta, se a Mata Atlântica tinha sido der-rubada aos correntões e tratores da empresa, se nunca havia pago pelo consumo de H2O, se os agrotóxicos con-taminavam. Tudo legal! A empresa construíra os fóruns do Poder Judiciário, financiara as campanhas parlamen-tares para o Poder Legislativo e sempre apoiara o Poder Executivo, inclusive no setor de segurança, estruturando os batalhões de choque. No Brasil, no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo, sentindo-se soberano, Dr. A dizia: “O Estado sou eu”. E quem poderia negar?

Dr. A só despertou com o som da TV programada. Sem-pre monitorava as ações nas bolsas, os níveis de risco dos investimentos, as mais novas tecnologias de segurança patrimonial. Jeremias e Jeremias Consultores e uma pen-ca de ambientalistas e tecnocratas garantiam a equação

de Quioto. Os problemas sociais e ambientais eram ques-tões estritas ao Estado. O Carbono, o Banco Mundial fi-nanciava, e novamente a empresa garantia um curto ciclo de sequestro. O único problema agora é o aeroporto.

As passagens, o passaporte, os celulares, notebook, re-lógio, agenda digital, carregadores, baterias, planilhas, re-latórios, papéis. Com o tempo, adquirira uma estranha neurose, de tanto sair de quartos de hotel. Sempre achava que havia algo esquecido. Eterno retorno. Curto circuito. Círculo vicioso: tempo/fábrica/eucalipto/terra/água.

O táxi. Rush de fim de tarde. Dr. A pensava: “Por que as ruas estão sempre entupidas de automóveis?” Sua alergia voltava. Dr. A abre um novo Kleenex e assoa o nariz. Logo estaria longe dessa Primavera londrina.

Londres, Inglaterra. 19h.Aeroporto. Check In. vôo 721 BA.

Dr. A interroga pelas milhas, na companhia aérea. Da última vez que reviu suas anotações, tinha o suficiente para sete voltas ao planeta. Quase uma viagem espacial. Londres, Madri, São Paulo, Vitória, Aracruz, Conceição da Barra. Na próxima semana percorreria o eixo nórdico. Gostava de viajar. No avião, depois dos anúncios de se-gurança, a decolagem, um pequeno Lexotan e pronto. So-nhava por sobre o Atlântico, do Norte para o Sul, do Sul para o Norte, já não distinguia sonho e vigília.

Era Cabral e Colombo, corsário, pirata, capitão. Depois era um Viking, e o vento norte era quente e úmido. E não havia mais verões nem invernos. O Velho Atlântico se alar-gava e afastava ainda mais os continentes. De lá da camada de ozônio e da atmosfera, a Terra era mais azul. Em Con-ceição da Barra o mar invadia a cidade e devorava as casas de sua orla. Um novo dilúvio ameaçava a grande planície capixaba. Os eucaliptais estavam em risco! A comissária aparece sorrindo. Jantar. O vôo. Que horas são? Longa noi-te atrás do sol poente. A cadeira começa a apertar. A alergia ataca novamente. Mais um Kleenex. Mais um Lexotan.

Agora dormia na arca, em pleno dilúvio. Água, solvente universal. O que seria de sua monocultura? Seu sertão de eucalipto virava mar. Uma incontrolável onda varria seus sumidouros de Carbono, composta por Antônios Conse-lheiros, Virgulinos, Coriscos, quilombolas, guaranis, tu-piniquins, sem terra, mulheres camponesas, pescadores. A febre voltava. Esqueceu-se da aspirina. Já não dormia dentro da arca. Estava em pleno mar. Quioto, o Estado, Je-remias & Jeremias, os florestais e advogados, a monocul-tura. Onde estavam todos? Teriam lugar dentro da arca?

Terça, 23 de abril de 2010.Conceição da Barra, Espírito Santo. Brasil. 5h.sapê do norte.

Dois mil negros e negras marcham pela BR 101 no norte do Espírito Santo. O Estado, a empresa e mesmo Lula não têm contingente policial suficiente pra asse-

Page 197: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

196

gurar a perpetuação do racismo ambiental. São milha-res de Beneditos e Beneditas. Por cada comunidade que passam, crescem como bola de neve. Não reivindicam mais os restos de eucalipto pra fazer carvão. Nunca fo-ram carvoeiros. Querem suas terras tradicionais de vol-ta, aquelas mesmas que o Incra denominava “devolutas”. Na linguagem do Estado, eram terras da União, isto é, de todos e de ninguém. Para negros e negras que lá sempre habitaram, eram terras quilombolas.

O Brasil avança pras quartas de final. Contra a Norue-ga. Quero ver você olerê, olará. Você me pegar. A auto-demarcação era apenas o começo. Os Beneditos e Bene-ditas queriam mais. Queriam re-viveiros de mudas de Mata Atlântica, suas frutas e raízes e cipós e sementes. Sonhavam com a recuperação de seus rios, córregos e nascentes; com suas caças e pescas, com sua agroecolo-gia familiar. Inventaram até de re-aprender Nagô e Yo-rubá. Ficavam horas a trançar cabelos e balaios, feste-javam noites inteiras no calor dos tambores. No dia se-guinte, mutirão pra destocar eucalipto e plantar mandio-ca. Não tinham pressa. Tinham todo o futuro pra re-es-crever sua história.

Page 198: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

197

SOBRE OS AUTORES

Alacir De´Nadai - Técnica da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase)-ES e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde

Daniele Meirelles - Técnica da Fase-ES e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde

Fabio Martins Villas - economista, com especialização em cooperativismo, indigenista e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde

Gilsa Helena Barcellos - graduada em serviço social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e doutora em geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), integrante do Fórum de Mulheres do Espírito Santo e da Rede Alerta contra o Deserto Verde

Helder Gomes - mestre em economia (UFES) e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde Luciana Silvestre Girelli - jornalista (UFES), atuou no setor de comunicação da Via Campesina no Espírito Santo entre os anos de 2006 e 2009

Luiz Alberto Soares - ex-trabalhador da Aracruz Celulose, ex-líder sindical e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde

Marcelo Calazans – sociólogo, coordenador da Fase/ES e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde

Marilda Teles Maracci - doutora em geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde

Patrícia Bonilha - assessora de comunicação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais

Renata Valentim - psicóloga e professora Selma dos Santos Dealdina – quilombola moradora da Comunidade Angelim III, em São Mateus (ES) cuja família, assim como centenas de famílias quilombolas no norte do estado, teve suas terras usurpadas pela Aracruz Celulose

Simone Raquel Batista Ferreira - mestre em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em geografia (UFF)

Winnie Overbeek - membro da Rede Alerta contra o Deserto Verde e do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia (Cepedes/Ba) e integrante da coordenação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais

Page 199: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

Os Tupiniquim e Guarani são símbolos da resistência contra o perverso modelo de desenvolvimentoque a Aracruz representa

Page 200: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

199

Page 201: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES
Page 202: Aracruz credo: 40 anos de violação e resistência no ES

ARACRUZCREDO

40 anos de violações

no ESe resistênciano ESe resistência

40 anos de violações

e resistênciano ESno ESno ESno ESno ESno ESno ESno ESno ESe resistênciae resistênciano ESno ESno ESe resistênciano ESno ESno ESe resistênciae resistênciae resistência

CREDO40 anos de violações

e resistênciano ESe resistênciae resistência

40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciaCREDOCREDO

40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violaçõesCREDOCREDO

40 anos de violaçõesCREDO

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações40 anos de violações

e resistênciae resistência40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciaCREDO

40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações

e resistência40 anos de violações

e resistência40 anos de violações40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações

e resistênciae resistênciae resistênciae resistência40 anos de violações40 anos de violações

e resistência40 anos de violações

e resistência40 anos de violaçõesCREDOCREDOCREDO

40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDO

40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDOCREDOCREDOCREDO

40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violações40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violações40 anos de violaçõesCREDO

40 anos de violaçõesCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDO

ARACRUZCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDO

ARACRUZCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDOCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZCREDOCREDO

ARACRUZARACRUZARACRUZCREDOCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZCREDO

ARACRUZARACRUZARACRUZCREDO

ARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZARACRUZ

A história de 40 anos da maior empresa de celulose branqueada de eucalipto do planeta é marcada por severos e irreversíveis impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos no estado do Espírito Santo. Com vultosos financiamentos públicos e o incondicional apoio político do Estado, a Aracruz Celulose se apropriou indevidamente de territórios indígenas e quilombolas, destruindo o modo de vida comunal desses povos. Responsável por impor drásticas mudanças também na vida dos camponeses, essa empresa destruiu milhares de hectares de Mata Atlântica, sempre movida pela obsessão de lucros continuamente crescentes.

Ao publicar , a Rede Alerta contra o Deserto Verde e a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais pretendem explicitar a perversidade do atual modelo de “desenvolvimento” a partir da realidade dos territórios onde atuam as mega empresas. Por outro lado, é fundamental dar visibilidade e registrar o histórico processo de resistência e enfrentamento das comunidades locais contra a Aracruz. Atingidas diretamente pelos impactos, irregularidades e ilegalidades cometidas por essa empresa, os povos da região lutam desde a sua implantação – em plena ditadura militar – até os dias de hoje para ter os seus direitos fundamentais respeitados.

ARAC

RUZ

CRED

O 4

0 an

os d

e vi

olaç

ões

e re

sist

ênci

a no

ES

REDE ALERTACONTRA O DESERTO VERDE

C

M

Y

CM

MY

CY

CMY

K