Aracy Balabanian Nunca Fui Anjo

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Aracy Balabanian1

Nunca Fui Anjo

GovernadorSecretrio Chefe da Casa Civil

Geraldo AlckminArnaldo Madeira

Imprensa Oficial do Estado de So PauloDiretor-presidente Diretor Vice-presidente Diretor Industrial Diretora Financeira e Administrativa Ncleo de Projetos Institucionais Hubert Alqures Luiz Carlos Frigerio Teiji Tomioka Nodette Mameri Peano Vera Lucia Wey

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Fundao Padre AnchietaPresidente Projetos Especiais Diretor de Programao Marcos Mendona Adlia Lombardi Rita Okamura

Coleo Aplauso PerfilCoordenador Geral Coordenador Operacional e Pesquisa Iconogrfica Reviso Projeto Grfico e Editorao Assistente Operacional Reviso Ortogrfica Tratamento de Imagens Rubens Ewald Filho Marcelo Pestana Cludia Rodrigues Carlos Cirne Andressa Veronesi Gilberto Gargiulli Jos Carlos da Silva e Tiago Cheregati

Aracy BalabanianNunca Fui Anjo3

por Tania Carvalho

So Paulo - 2005

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao elaborado pela Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de So Paulo Carvalho, Tania Aracy Balabanian : nunca fui anjo / por Tania Carvalho. So Paulo : Imprensa Oficial do Estado de So Paulo : Cultura - Fundao Padre Anchieta, 2005. 224 p. : il. (Coleo aplauso. Srie perfil / coordenador geral Rubens Ewald Filho). ISBN 85-7060-233-2. (Obra Completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-341-X. (Imprensa Oficial) 1. Atores e atrizes de teatro Biografia 2. Atores e atrizes de televiso Biografia 3. Balabanian, Aracy I. Ewald Filho, Rubens. II. Ttulo. III. Srie. 05-2764 CDD 791.092

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ndice para catlogo sistemtico: 1. Atores brasileiros : Biografia : Representaes pblicas : Artes 791.092

Foi feito o depsito legal na Biblioteca Nacional (Lei n 1.825, de 20/12/1907).

Imprensa Oficial do Estado de So Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - So Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: [email protected] SAC 0800-123401

Para Seu Raphael e Dona Esther Balabanian que me ensinaram que, apesar de uma guerra, um genocdio, no se perde o amor e a ternura nunca. Aracy Balabanian5

Para as minhas amigas, solidrias e talentosas como Aracy Tania Carvalho

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Apresentao

Aracy uma pessoa muito especial. Daquelas amigas mezonas, que do conselhos precisos, quando o assunto dor de amor ou esttica. Depois dos 40 anos, no d para sair na rua de cabelos molhados. O que era descontrao na juventude, vira desleixo na maturidade, por exemplo. Sem nunca ter tido filhos, ela foi me de vrios amigos, colegas de trabalho e sobrinhos. Hoje, continua exercendo fortemente esse lado com a afilhada Antnia, que tem apenas 2 anos e sobre quem ela fala sem parar e possui retratos pelos quatro cantos da casa. Ela teve me de sobra me para mim genrico pois alm de Dona Esther, ela foi criada por suas quatro irms. Eram elas que iam ao colgio, discutiam com os professores e, mais tarde, at com meu analista. Por isso, talvez, seja to generosa com quem a cerca. Gosta de mimar e de ser mimada. Alguns dos irmos eram seis, juntando os dois lados e contando os dois homens apoiaram a sua

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escolha em ser atriz, ainda muito menina, com 12 anos. Outros, nem tanto. Mas seu desejo era to forte que venceu a oposio at de Seu Raphael, o mascate armnio, que se instalou em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, com quatro filhos; casouse novamente com uma jovem armnia que havia ficado viva com um filho e com ela teve a caula, se no a predileta, a que ficou at o fim do lado dos pais. E, logo, esta resolveu ser atriz! A resistncia foi muita, at ver Aracy ao lado de Srgio Cardoso, e perceber que a filhinha havia chegado a um patamar, como atriz, de onde no dava para voltar. E para comemorar fazia pratos armnios para o famoso ator, dentre eles, o preferido de Srgio: arroz com lentilhas. Aracy se autodefine como faladeira. E foi assim desde criana. Quando fiz uma pea com a Glria Menezes, havia uma disputa de quem falava mais. Por isso, no foi difcil fazer este livro. Os assuntos nem sempre eram encadeados: Aracy pode ir de uma sesso de anlise discusso sobre a sua virgindade quando estreou no teatro, em uma frao de segundos. Mas isso no tem a menor

importncia. Tudo o que ela conta engraado, emocionado e sempre marcado por comentrios inteligentes e intensos. Tenho a maior vocao para herona trgica ironiza, no se levando a srio, o que faz freqentemente. Nossas entrevistas foram feitas semanalmente em seu belo apartamento de cobertura na Gvea. Como boa anfitri, no primeiro dia fez questo de mostrar toda a casa, que ainda curte como um brinquedo novo. Seu cantinho especial, porm, um pequeno quarto, destinado a um sobrinho que afinal no veio morar com ela. L, esto a sua chaise longue predileta, uma televiso, vrias fotografias, muitos livros e uma bela montagem com fotos de um de seus espetculos: Clarice Lispector Corao Selvagem. Durante a conversa, Aracy mudava sempre de posio. Como em uma sesso de anlise em que, alis, sempre se recusa a deitar no div ela preferia, muitas vezes, em vez de se recostar na chaise, sentar-se para ficar cara a cara comigo. E a analogia com a terapia no gratuita:

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Aracy faz anlise segundas e quartas. Nossas rodadas de entrevistas aconteciam sempre s teras. Estou sentindo como se estivesse fazendo anlise trs vezes por semana. O que converso aqui, vai para o consultrio; o que discuto l, vai acabar no livro. O ttulo talvez surpreenda. Nunca Fui Anjo, porm, foi aprovado com uma enorme gargalhada pela atriz. Talvez porque tenha convivido por tantos anos com vrios rtulos: combinadinha, virgenzinha, burguesinha, boazinha, entre tantos outros. Tirando o combinadinha eu adoro um conjunto, tenho o de sair, o de ir a enterro, o de ir a estria e estou sempre arrumada quem ler o livro vai ter certeza de que Aracy simplesmente pagou o preo de levar uma vida discreta, o que nos tempos de hoje, quando se namora, se casa e se separa nas pginas das revistas, soa meio anacrnico. Mas essa foi a sua opo, sem que ningum soubesse de suas dores e amores. Em um momento, porm, a tragdia foi to grande, que no deu para Aracy ocultar. Um incndio

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destruiu a sua casa e tudo o que tinha. Sobraram os amigos. Muitos amigos, a quem ela faz questo de creditar o fato de ter renascido, como uma fnix Eterna Fnix era a outra opo para ttulo mais forte e mais destemida. esta Aracy, que descobriu ser capaz de comear tudo outra vez, que aparece nas pginas deste livro. Ainda que no tenha sido anjo em todos os sentidos, descubra Aracy , sem dvida, uma das atrizes mais importantes no teatro e na TV brasileira. Algum que acreditou em um sonho praticamente impossvel. Que largou uma faculdade para se dedicar somente Escola de Arte Dramtica, onde se formou com as melhores notas (Eu e o Juca de Oliveira competamos o tempo todo pela nota 10) e sem nunca ter faltado a uma aula. Que transgrediu os parmetros, ao se tornar a mocinha dos mais cobiados gals, quando na verdade era para eu ser sempre a sofredora, que chorava porque o gal ficava com a mocinha linda. Que na maturidade no teve medo algum de enfrentar o humor, tanto em um personagem inesquecvel de novelas, como Dona Armnia, quanto no

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semanal humorstico Sai de Baixo, que entrei sem saber o que fazer, s conseguia rir. Com uma sinceridade desconcertante, Aracy fala de tudo isso e muito mais. Em diversos momentos, Aracy se emocionou. Um captulo inteiro, por exemplo, dedicado a dois amigos muitos queridos e que j morreram: Ademar Guerra e Myriam Muniz. Alis, a veterana atriz paulista morreu em dezembro de 2004, em meio s nossas conversas e Aracy fez questo de se declarar de luto e passar algumas horas falando dela. Depois de alguns goles de vinho, que serviram como relaxante e consolo, ela repetiu as histrias de Myriam, com intensa emoo, que a fizeram tremer. Mas nem sempre nossas conversas foram tristes. Ao contrrio, Aracy dona de um senso de humor insupervel, que faz com que ela nem se leve to a srio assim, pois capaz de anlises cortantes, sobre o mundo e a respeito de si mesma, que nos fizeram dar boas gargalhadas. Para ela, a minha homenagem! Tania Carvalho

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Captulo I A Fnix

Eu nasci em 1940 e posso dizer que renasci em 1994. Neste ano, um incndio acabou com meu apartamento. O fogo lambeu os mveis, as janelas, dinheiro, roupas, capas de revista, fotos, a minha histria. Fiquei uma pessoa sem lembranas, e isso foi o que mais doeu. Dizem os espiritualistas que o fogo limpa. E como uma fnix renasci, sem medo, porque descobri que sempre se pode comear de novo. Eu estava no dentista na Marqus de So Vicente, a rua principal da Gvea, quando fui avisada que meu apartamento estava em chamas. Sa correndo e ao chegar em frente ao prdio, s tinha duas preocupaes: a minha empregada e o beb que morava no apartamento em cima do meu. Encontrei minha empregada na rua, ai que alvio! E o nenm? A minha vizinha tinha acabado de ter filho, o marido estava viajando, e eu

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precisava saber se estava tudo bem com eles. Graas a Deus, ela e a criana no estavam em casa na hora. Nosso encontro foi emocionante, nos abraamos muito, totalmente irmanadas naquele momento duro de perda. At hoje, me encontro com ela e a vida do casal melhorou demais depois do incndio. Para mim tambm foi um salto. Eu perdi o medo de perder. E tambm descobri a importncia de ter amigos. Tive muita ajuda dos amigos e dos desconhecidos. Eu andava na rua e as pessoas me davam panos de prato bordadinhos. A Hebe Camargo disse, no ar, o que havia acontecido comigo e pediu doaes de roupas. No manda coisa rasgadinha, no, porque ela no indigente. Ela chique, s usa sedas, linho... coisa boa. A Nair Belo vinha para o Rio, semanalmente, com malas cheias de roupas, recolhidas pela Hebe. Tive at que dar muitas coisas, porque nem havia necessidade de tanto. O Slvio de Abreu, que estava para viajar, depositou um dinheiro na minha conta. Eu no vou conseguir gastar um centavo, sabendo que tenho uma amiga sem ter onde

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morar. Vou deixar um dinheiro em sua conta para o que voc precisar. A Arlete Salles passou na casa da Denise Saraceni, onde fiquei nos primeiros dias e, como boa nordestina, me levou uma muda de roupa, o melhor que ela tinha em seu guarda-roupa: uma cala de linho, uma camisa de seda, calcinha e suti novos, um sapatinho. Saiu chispada para falar com o Boni, avisou para a secretria que sabia que ele estava l e que o assunto era urgente. Ela conta, e de chorar de rir, que a secretria voltou com uma ma e uma faca na mo e ela pensou: Ai, meu Deus, o Boni falou: mata a Arlete para ela parar de me encher. O Boni mandou me contratar na mesma hora, quando soube o que havia acontecido. O contrato era baixo, mas era um dinheirinho que entrava todos os meses. No enterro do Marco Aurlio o figurinista mais amado por todas as atrizes da TV brasileira eu e a Marieta Severo conversvamos, entre lgrimas, sobre geladeira. Uma situao absolutamente surrealista. Eu dizia que o Jorge Takla ia me dar uma e ela, aos prantos, me pedia: O Takla

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d outra coisa, agora j botei na minha cabea que vou dar a geladeira. O Carlos Armando, um amigo querido que morreu vilmente assassinado dentro de sua prpria casa, me ofereceu uma cama. Uma cama de estrela. Ai, meu Deus pensei ele vai me dar uma cama imensa, com dossel, e moro em um apartamento de 85 metros quadrados, mas, que nada, me deu uma cama chiqurrima, adequada, linda. O Marco Nanini me deu um caderno, mas havia alguma coisa escrita na primeira pgina. Ele arrancou a folha e ficou novinho, perfeito, maravilhoso. Tudo servia para mim. O cengrafo Raul Travassos, to meu amigo, me perguntou o que queria: respondi que precisava de uma caneta. Ele me mandou uma papelaria inteira. At hoje uso papel que ele me deu de presente. E muito mais, os exemplos so inmeros. Espero que ningum fique chateado por no ter falado de sua ajuda. Foram tantos, tantos presentes, que levaria um livro inteiro s falando deles. Por causa da generosidade dos amigos, outra coisa mudou em mim: eu aprendi a receber.

Antes no dava tempo para algum me dar nada. No deixava. Depois do incndio me perguntei muitas vezes: Por que isso aconteceu comigo? O que devo aprender desta experincia? Pois bem, aprendi a aceitar o amor das pessoas por mim e seus presentes. H uma histria hilariante e que exemplifica bem isso. Tive um problema com a minha operadora de TV a cabo, que queria me cobrar, exigia o boletim de ocorrncia, que demorava a ficar pronto, e resolvi pegar o telefone e ligar para o diretor de l, com quem havia tido um romance trrido. Ele, que sempre gritara, falava aos berros no telefone: Precisa de tijolo? De cimento? Eu respondia que no queria nada, s resolver o problema burocrtico. Mas ele insistiu: Quando tudo estiver pronto, vou mandar reinstalar o cabo e colocar dois aparelhos de TV novos na sua casa. O apartamento ficou em reforma por bastante tempo. Havia sobrado quase nada e meu amigo, arquiteto e acupunturista Juan Vairo, assumiu a tarefa de criar algo novo dos escombros, sem me cobrar nada. Mais

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um amigo solidrio. Quando, finalmente, o apartamento ficou pronto, liguei para avisar que j estava na hora de instalar a TV a cabo. Ele me disse que ia me mandar um televisor lindo para colocar no escritrio. Eu fiz questo de lembrar: voc disse dois. Deve ter sido uma coisa de louco, porque, quando namorvamos, eu no aceitava absolutamente nada. E ele achava isso absurdo, nem entendia muito bem como no precisava de nada que poderia me dar. Nunca fui de ganhar presente de namorado. Acho que a minha postura, meu jeito de lidar com a relao, afastava qualquer possibilidade de carinho ser confundido com algo material. Tenho muitas amigas que ganhavam brilhantes de no sei quantos quilates. Eu, nem aquele anel de raspa de diamante, que d bolinha em suter. O fogo, porm, me mudara. Hoje em dia, para falar de mim, conto com a minha memria. E ela pode ser traioeira demais. Perdi todas as minhas fotos, a histria da minha vida. S sobrou uma fotografia: eu, Ney Latorraca e Guta, que ficou grudada no vidro do por-

ta-retratos. Se tentasse tir-la, a rasgaria. Coloquei-a, com vidro e tudo, em outro porta-retratos. Como diz o Ney, com seu humor habitual: A nica coisa que ela achou, no meio de toda a sua fortuna em dlares, jias, foi uma foto minha. E ele, de certa forma, tinha razo. Embora tenha conseguido recuperar alguns graminhas de ouro, garimpadas pelo meu querido Edney Giovenazzi no meio das cinzas, foi muito importante ter salvado uma foto, um pedacinho desta minha histria. Perdi, ainda, a histria da minha carreira. Sobraram capas de revista chamuscadas. E me lembro que, a cada dia que entrava no apartamento, as revistas, que ficaram amontoadas na sala, estavam em posies diferentes. Era estranho ver aquelas fotos retorcidas, pedaos do meu trabalho, que ainda interessavam a algum, pois eram reviradas diariamente. O pblico brasileiro, porm, muito generoso. E, graas a diversos fs, fui recuperando a iconografia da minha vida. Recebi mais de 20 lbuns, que haviam sido publicados sobre a novela Antnio Maria; um elep da19

Vila Ssamo, com todo o elenco na capa; diversos recortes de jornal e muitas fotos. Recuperei at algumas de criana. No passado, havia uma tradio bonita de enviar fotografias dos filhos, quando se estava distante dos amigos. A neta de uma amiga da minha me havia colocado em um porta-retratos algumas fotos minhas e me mandou. Foi emocionante resgatar a minha infncia e ler a dedicatria que minha me havia escrito para a amiga, em armnio. Como os meus pais, eu comecei uma nova vida. Eles recomearam em um novo pas, em outra lngua, sem uma fisionomia que identificassem. Tiveram fora para seguir adiante, sem desanimar. Renasci, purificada pelo fogo, com a ajuda de meus amigos, me reinventando e me tornando uma Aracy melhor.

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Captulo II Filha de Contrato

Muita gente pensa que sou armnia, mas nasci no Brasil e meus pais, Raphael e Esther, ambos armnios, sempre tiveram uma enorme preocupao: que seus filhos fossem bons brasileiros. A Armnia permanece viva para mim, nas histrias que ouvi, a minha vida inteira, o meu pai e a minha me contarem com muita emoo. A Armnia um tiquinho de terra, na sia Menor, a leste da Turquia. Os turcos so inimigos h sculos e foram responsveis por um grande genocdio na Armnia em 1915. A maior ofensa que se pode fazer a um armnio cham-lo de turco o que acontece com a maior freqncia, pois os imigrantes so sempre confundidos. Se a pessoa daquela regio e tem o nariz adunco, pode ter certeza que vai ser chamado de turco. A Armnia foi a primeira nao a adotar o Cristianismo, no sculo IV, e tem muito orgulho disso.

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Durante sculos, a Armnia foi subjugada por vrios imprios: romano, bizantino, rabe, persa e otomano. Em 1828, foi incorporada Rssia e em 1920, Unio Sovitica. Com a queda da URSS, os armnios ficaram perdidos. Vi uma reportagem que me comoveu demais, os armnios na rua com placas: vendo metade de uma casa; vendo terreno. O armnio sempre teve foras para sobreviver s crises por causa do comrcio. o que ele sabe fazer: vender. Nunca estive na Armnia e nem me dou muito com a colnia aqui no Brasil. Admiro, porm, o povo armnio, que sobrevive h sculos opresso, passou por um genocdio, e consegue no ter rancor, nem dio. Meu pai era um homem do campo, pastor de ovelhas, e saiu da Armnia, aos 14 anos, pela Sria. Ele e mais trs primos vieram depois para a Amrica do Sul. Dois ficaram na Argentina e dois vieram para o Brasil. E assim ele foi fugindo, fugindo, fugindo at chegar em So Paulo, j casado com uma jovenzinha. Todos os seus filhos nasceram no Brasil, enquanto ele vendia limonada no Viaduto do Ch e depois mascateava pelo interior de

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So Paulo at chegar em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Ali, ele achou que havia encontrado um lugar para se instalar e vender suas mercadorias, sem ter de ficar levantando as malas para o ar a fim de fingir para os fiscais que no havia nada dentro, assim escapando dos impostos. Minha me teve trajetria diferente. Com a sua famlia se mudou para Istambul. Teve uma educao mais refinada, estudou em bons colgios na Turquia, falava francs. Uma de suas irms se tornou freira e ela se casou com um homem rico. Junto com o marido ela veio para So Paulo, teve um filho e ficou viva. Sem dinheiro, aps gastar todas as economias, minha me precisou trabalhar. A vizinhana comeou a ajud-la, levando roupas para ela costurar. Isso uma boa moa de famlia sabia fazer, no precisava ter uma origem humilde para aprender a costurar. E l ia ela, entregar as costuras, de bonde, com o filho pelas mos... sem reclamar... sem esmorecer. At hoje me emociono com a histria dos meus pais, gente valente, que no desistia, filhos do xodo!

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Meu pai j estava com cinco filhos, quando a mulher morreu aos 28 anos de uma crise de vescula. Naquela poca, no dava para ter crise de nada! Os parentes da mulher do meu pai comearam a se preocupar com o vivo cheio de crianas. A comadre da minha me armou o casamento. Os casamentos armnios sempre foram feitos nesta base, de algum arrumar um par para o outro. Meu pai foi a So Paulo, conheceu a minha me e em uma semana assinaram um contrato. E minha me passou a cuidar dos seis filhos: cinco do meu pai e um dela. Deste novo casal, nasci eu. Como diz o Daniel Filho, a nica filha de contrato que ele conhece. Na verdade, s fui entender a realidade da minha famlia quando comecei a ler e vi que o meu sobrenome era diferente dos meus irmos. Havia uma harmonia bem grande na minha casa. Eu adorava ser a nica que era irm de todos: Maria, Yeranui, Amenui, Arshaluz, Avediz, os filhos do meu pai, e Armem, o filho de minha me, que era o orgulho da famlia. A paixo. Ele fazia tudo o que as minhas irms queriam, ia

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igreja, estava sempre arrumadinho e bonito, do jeito que elas o colocavam sentado. O irmo delas, Avediz, nico Balabanian, morria de cimes. Mas ele era malandro, se sujava e deu muitos problemas. Meu pai no final da vida me disse um dia: Meu Deus, por que no tive somente filhas mulheres? Eu era a bonequinha de todos. Talvez fosse usada um pouco para ajudar a harmonia da casa. No Dia dos Pais, por exemplo, meu pai no deixava que ligassem para uma das filhas que estava casada. Se ela quiser vir, ela vem. Quando ele saa, minha me pedia para eu ligar. Enfim, era o grande elo de ligao da famlia. Meu nome deveria ter sido Arakcy um rio da Armnia mas meu pai resolveu homenagear o Brasil e tirou o k armnio do meio. Ficou Aracy, que em tupi-guarani quer dizer me da luz. Como disse, havia a grande preocupao dos meus pais que fssemos bons brasileiros, que agradssemos s pessoas e que elas gostassem da gente. Meu pai dizia: Vocs no vo gostar

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do meu pas, que nem conhecem, mas vo gostar do de vocs como eu gosto do meu. Ele se naturalizou brasileiro e nesse dia voltou chorando para casa, porque os termos do juramento eram demasiadamente duros. Mas ele dizia que, conscientemente, era brasileiro, porque o Brasil tinha dado tudo para ele. Sempre fui primeira aluna, porque gostava de estudar, mas isso no era festejado. Meu pai dizia que no fazia mais do que a minha obrigao. O que voc fizer, minha filha, tem de fazer bem feito, seno no faa. Ele nos incentivou a ser independentes. Minha irm, por exemplo, quis parar de estudar depois que acabou o primeiro grau (o antigo ginsio) e ele concordou, desde que ela fosse trabalhar em sua loja, porque precisava arranjar um jeito desta moa sobreviver. Ao mesmo tempo ele queria que ns casssemos, vivia tentando arrumar marido para a gente. Armaram um casamento para minha irm, e ela, que no queria casar, no dia do noivado jogou pesado com o futuro marido dizendo ter um amante em Campo Grande.

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Ele achou que ela havia passado do limite. E no teve noivado. Ela ficou um ano de castigo em casa. Ela, a terceira irm, abriu a porta para todos ns, que vnhamos atrs. E eu, que estava decidida a ser atriz desde os doze anos, conversei muito com meu pai, muito mesmo. Afinal ele havia me ensinado a ser independente desde pequena. No colgio, por exemplo, eles ficavam desesperados porque eu era faladeira demais. Um dia resolveram que precisavam chamar o meu pai no colgio, para ver se ele resolvia esta questo. Ele tranqilamente respondeu: No vou fazer papel de palhao, passar vergonha, alis, no quero nem que o diretor saiba quem eu sou. O problema seu, voc resolva. E foi assim sempre, nos criando para a vida, para no depender de ningum. Por isso mesmo acho que tivemos conversas to francas. Foi o senhor que nos ensinou e agora quer que a gente deixe de ser independente para fazer o que o senhor quer? Eu quero ser independente, inclusive de homem. Como o senhor quer que me case com um homem que vai me tornar dependente dele?

Um dia, um casal esteve na casa dos meus pais para me conhecer. O filho do casal estava interessado em casar comigo. Meu pai disse que nem ia me perguntar, porque eu tinha uma outra vida. E arrematou: Hoje em dia, meu caro, elas querem amar. Tenho paixo por esta frase. Quando resolvi ser atriz, tambm foi um alvoroo na famlia. Meu pai foi contra at um dia que chegou e disse: Continuo no querendo, porque acho que ser atriz, no Brasil, lamentvel, no respeitvel. Em qualquer lugar do mundo uma profisso linda, aqui no. Sabe que acho que neste aspecto ele tinha razo! Mas eu vou te ajudar completou. E me deu um carro, depois das minhas irms azucrinarem bem a cabea dele que eu no podia voltar para casa tarde, sozinha e de nibus. Nessa poca fazia teatro, televiso e cuidava da minha me, que ficou doente por oito anos, com um cncer. E ele me ajudou muito, virou meu f, de andar com retrato na carteira. No dia em que ele morreu, eu estava cumprindo um compromisso que ele acertara, a apresentao de um baile de

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debutantes em Trs Lagoas, em Mato Grosso do Sul, perto de onde a gente havia morado. Ele havia combinado tudo e quando perguntei quanto ia receber ele me disse: Voc s pensa em dinheiro. Est precisando de alguma coisa, eu dou. Quanto voc quer? No adiantou argumentar que era a minha profisso, que precisava cobrar, tive de ir de graa mesmo, porque ele achava uma honra que a mulher do prefeito tivesse me convidado. Quando entrei no baile, recebi um telefonema: meu pai havia tido dois infartos e morrido. Minha me, que j estava em estado terminal, morreu trs meses depois. Foi um duro golpe para mim. Eu era a filha que ainda estava em casa, que cuidava deles. Desde que a minha ltima irm saiu de casa, abri mo de qualquer compromisso no domingo. Era dia de almoar com eles. E no perdi nada. Se o tempo voltasse, faria tudo da mesma forma. Uma vez estava assistindo ao TV de Vanguarda um programa com adaptaes de peas teatrais com ele, e a histria era sobre filhos que se renem para discutir a venda

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da casa dos pais e a colocao deles em um asilo. Eu chorava tanto, mas tanto, que ouvi meu pai dizer para a minha me, quando se recolheu: Mulher, pode ficar tranqila, tem uma filha que no vai nos abandonar nunca. Nos ltimos meses de vida da minha me ela viveu bem com o cncer por seis anos, os ltimos dois foram mais penosos meu pai me disse que as minhas irms estavam decidindo com quem ele iria morar, depois que mame se fosse. Sei que ele sentiu um alvio danado quando deixei claro que ele tinha a prpria casa, que eu morava com ele e jamais iria deix-lo. E teria ficado com ele at o final de sua vida. Por ironia, ele morreu antes da minha me. Na verdade, os dois me fizeram at essa gentileza: de morrerem bem juntinhos um do outro. Meu pai foi fundamental na minha vida. At hoje, brinco que jamais encontrei um homem com o carter dele, que e sempre ser a minha referncia. Hoje, percebo melhor a importncia da minha me.

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Se no fosse ela, meu pai perderia as estribeiras mais facilmente. Alm disso, ela era de uma generosidade imensa, de amar aqueles filhos como se fossem dela. Uma das minhas irms, a Aurora (que a traduo de Arshaluz) adorava namorar os rapazes pelos quais me interessava. E eu perguntava para a minha me: Eu sou feia? No, voc simptica, tem um sorriso muito bonito, inteligente e sabe conversar respondia. E a Aurora? insistia na conversa. A Aurora linda. Ao mesmo tempo em que tinha de me conformar que no era linda, porque a minha me estava dizendo, e isso me entristecia, ficava feliz ao ver que ela era capaz de elogiar uma filha que no era dela. Meu pai conseguiu vencer todos os seus preconceitos, me aceitar como atriz, porque era o que queria. Voc podia me pedir para te apoiar em muitos caminhos e foi pelo mais difcil. Eu sou obrigado a te respeitar. Uma vez ele foi me ver, sem que soubesse. Alis, ele tambm nunca me contou, soube pela minha irm, porque a minha me havia relatado para ela.

Minha me j estava bem doente, ia me ver acompanhada de uma das minhas irms, mas na ltima hora ela no pde ir e meu pai resolveu lev-la. Quando eu entrei, e fiz o primeiro monlogo, o pblico delirou. E meu pai disse minha me: Bate palma, que esto aplaudindo a sua filha. Tenho certeza de que, naquele momento, ele estava sentindo orgulho de mim, embora temesse demonstrar. Foi o primeiro sinal que ele havia realmente aceito a minha opo pela arte. Depois que fui trabalhar com o Srgio Cardoso, a, ele capitulou de vez. Afinal, eu era atriz suficiente para estar do lado de algum que ele admirava muito. E um dia ele havia dito: Voc nunca vai chegar l. Havia chegado. Outro dia gravei no Mercado Municipal de So Paulo e senti muita falta do meu pai, que fazia compras l e nunca podia acompanh-lo (como ele gostaria que eu tivesse ido com ele!), da minha irm mais velha que morava na regio, saudade de uma vida que vivi e que me parecia, na poca, muito boa. Passeei pelas bancas, olhando tudo, com uma nostalgia imensa.

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Andei tanto com uma sandalinha rasteira, que acabei com a sola dos ps cheia de bolhas. Acho que foi uma metfora de como estou me sentindo hoje em dia. At disse ao meu analista: Minha base est magoada. Estou no momento brigada com a minha famlia meus trs irmos que ainda esto vivos, Yeranui e Armenui, as mulheres, e Armen, o homem. Eles esto amuados comigo. E, em conseqncia, meus sobrinhos, meus sobrinhos-netos. Sempre fui a boazinha: a menina que elas fantasiavam de boneca e ficava limpinha at o final da festa, sentadinha, linda. Eu no podia nunca estar errada, suja. Fazia tudo o que elas mandavam. Vivia dizendo na escola: Minha irm disse isso, minha irm mandou aquilo. Meus colegas ficavam intrigadssimos e me questionavam: Voc no tem pai nem me, s irms? Agora elas esto supremamente ofendidas porque ousei dizer: Vocs no mandam em mim, no so minhas mes. Sou uma senhora e cansei de ser boazinha. J disse algumas vezes para eles: Vocs deviam ter na famlia uma atriz meio louca, sempre metida em confuses, drogada. Acho que seria melhor para eles. Sabe que eles no vo a pea alguma que passa

por Campo Grande? Os atores ligam e eles nem aparecem. Como se dissessem para mim: No gosto da sua profisso. Sinto falta deles? No, at sonhei outro dia que estava mandando a minha irm mais velha tomar naquele lugar. Acordei felicssima. Sei que, se eu no procur-los, vai ficar tudo como est. Se for boazinha e mais uma vez bancar a conciliadora, vai ficar tudo bem. Mas no estou com muita vontade de ser boazinha. Sou muito amorosa, gosto de gostar, mas no momento no estou conseguindo trocar afeto com a minha famlia. Afeto que me foi ensinado pela prpria famlia, pelos meus pais e meus irmos. Esta foi a base da minha famlia, o carinho. Minha me cuidando dos cinco filhos que no eram seus; meu pai colocando o filho da minha me para estudar, sem obrig-lo a trabalhar. Tenho orgulho de ter nascido de seres to especiais, de ser filha de contrato de duas pessoas que enfrentaram o xodo com carter e sabedoria, e que transmitiram tanto para seus descendentes. Enfim, me orgulho de ser uma Balabanian.

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Aracy no colo da me (canto inferior esquerdo) em festa da colnia armnia

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Captulo III Nunca Fui Anjo

Aos quatro anos, eu sabia que ia ser atriz. No sei como, porque nem entendia bem o que era teatro, mas sabia. O Paulo Coelho diz que nessa idade que as pessoas estabelecem a sua lenda de vida. Eu escolhi a minha. Teatro no existia em Campo Grande. Ia ao cinema com as minhas irms, assistia ao filme que elas queriam ver. Em geral, neo-realismo italiano. Elas odiavam filme norte-americano. Alis, fiquei muito sem papo com Daniel Filho por causa disso! Desde pequena, porm, eu brincava de estar no palco representando: colocava uma cortina, fazia roupa de papel crepom, inventava a pea. Um dos meus sonhos era ser anjinho na festa do ms de maio, mas a professora de catecismo implicava comigo e sempre colocava duas amigas minhas, lourinhas, uma com olhos azuis.

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Eu era lourinha tambm, mas tinha o nariz grande e os olhos cados, caractersticas dos armnios. E ela dizia: Como voc vai ser anjinho com esta cara de turca? No tem anjinho turco. E sofria demais. Quando cismei de fazer a primeira comunho, minhas irms no deixaram, porque haviam sido maltratadas em colgio de freiras. Ento eu no podia comungar na missa dos domingos. Mas queria tanto que entrei um dia na fila, mas Dona ngela a professora de catecismo de novo! me disse que eu no podia, porque nunca havia feito primeira comunho. J meio atriz, me virei para ela e contestei: Fiz, sim, quando estive com a minha famlia em So Paulo. Depois disso, graas a Deus, me confessei com um padre moderno, que me mandou rezar 1000 Ave-Marias e 1000 Padre-Nossos, porque havia acabado de mentir para a professora de catecismo. Mas comunguei. Anjinho, nunca! Embora jamais tenha perdido a ligao com Campo Grande minha irm continuou morando l eu descobri realmente a cultura, o teatro, quando

me mudei para So Paulo. Meus pais acharam que era o momento de ir para a capital paulista, para que meus irmos cursassem a faculdade. Estava com 10 para 11 anos e minha irm me fez fazer o quinto ano de novo, porque achou que eu estava fraca. Viu a importncia que minhas irms tiveram em minha vida? Tive me demais. Acho que esse foi o meu mal. E meu bem. Fui estudar em um bom colgio, o Bandeirantes. Eu era tima aluna. A professora de portugus nos mandava ir a concertos, exposies, teatro. Uma maravilha. Aos 12 anos, minhas irms me levaram para ver uma pea da Cia. de Maria Della Costa. Era uma matin, elas me colocaram l dentro, porque no tinham dinheiro para entrar tambm. Eu chorei o tempo todo e tive a certeza que meu lugar era no palco. Um dia, o grmio levou o Augusto Boal ao colgio. Ele estava em Ratos e Homens, pea que havia visto 20 vezes, e me pendurei nele. Foi a que ele perguntou: Voc gosta tanto de teatro, porque no vai fazer um teste para o Teatro

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Paulista de Estudantes? Conhecia bem o TPE, do qual faziam parte o Gianfrancesco Guarnieri, o Vianinha, a Vera Gertel, e na sexta-feira, hora marcada, l estava eu, certa que ia levar um bolo. Mas fiz o teste, conheci Beatriz Segall, que havia retornado ao teatro, depois de ter se casado e tido filho, e com ela aprendi muito sobre teatro e sobre a vida. At hoje, agradeo a Beatriz por tudo o que ela fez por mim e ela sempre retruca: Voc uma exagerada. Garanto que no sou. Minha primeira pea, como amadora, foi dirigida por ela. Eu tinha 14 anos. A Beatriz era uma pessoa importante no meio e todo mundo foi ver o espetculo. O crtico Dcio de Almeida Prado escreveu: Ontem, nasceu uma estrela. Guardem este nome: Aracy Balabanian. Beatriz, Sadi Cabral, Guarnieri, Vianinha, Boal se reuniram para comentar a crtica e me disseram: Ns achamos a mesma coisa, mas voc tem de estudar. E eu fui. Entrei na USP em Cincias Sociais e na Escola da Arte Dramtica, a EAD. Larguei a faculdade no terceiro ano (uma besteira, devia ter-

me formado) e me dediquei somente EAD. Formei-me depois de quatro anos. E foi uma maravilha! Tive os melhores professores que podia ter, em especial Dr. Alfredo Mesquita, o criador da escola, que me abriu muitas portas. Ele era uma pessoa preocupada com valores. No podia faltar, chegar atrasado, falar mal portugus. O Dr. Alfredo sempre comeava a aula dizendo assim: Nossos maiores atores so autodidatas, ningum fez escola, a porta est aberta. Mas a gente sabia o quanto os autodidatas haviam suado e agora ajudavam Dr. Alfredo a levar adiante a escola. Srgio Cardoso dava aula de maquiagem, que havia aprendido sozinho. Cacilda Becker tambm dava aulas. Guarnieri fazia palestras. Era verdade que, por alguns setores da esquerda, a escola era malquista. Coisa dos Mesquita era o argumento. Dr. Alfredo, no entanto, havia colocado todo o seu patrimnio, vindo dos Mesquita e do jornal Estado de S. Paulo, na EAD, porque a maioria dos alunos era bolsista. A escola comeara em 1948 na manso de uma amiga, prxima dele; depois passou para o

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Liceu de Artes e Ofcios e depois para a USP o que sonhava h anos e neste momento deram um chute nele. A EAD oferecia cursos de interpretao, cenografia e dramaturgia e crtica teatral. No programa do curso de interpretao havia dico, expresso corporal, psicologia, mmica, histria do teatro universal e do teatro brasileiro, mitologia, portugus, preparao de um ator e comdia e drama. Fui da dcima segunda turma da EAD, de 1959 a 1962 na poca o curso durava quatro anos, depois foi reduzido para trs. Eram da minha turma: Ademir Rocha, Carlos Eugnio M. Moura, Edgard Gurgel Aranha, Gilberto de Nichile, Luiz Nagib Amary, Nilson Demange, Ricardo de Lucca e o Juca de Oliveira, que no se formou. Na escola ganhei meus primeiros prmios, como a melhor interpretao do ano em 1961 junto com a Myriam Muniz em O Defunto, de Ren Obaldia e, em 1962, por Macbeth. At hoje, so os prmios que mais me do orgulho. Dr. Alfredo sempre trazia de casa um panelo de sopa. E ns, que chegvamos da escola, do

trabalho, tnhamos o que comer: pozinho, sopa e uma sobremesa. Ningum estudava com fome. Ele era professor de tudo, a alma da escola. Sabia ensinar um ator a subir a escada como um rei e descer como um mendigo. A Maria Jos de Carvalho, uma louca maravilhosa que dava aulas de voz, exigia uma coisa do ator: atitude. Na hora da prova ela podia dizer: Isso no a roupa que um artista veste. Zero. Ou ainda: O ato est correto, mas a postura est errada. Senta. Uma maravilha! Era uma mulher linda, que usava um chapelo, mulher do Diogo Pacheco e com ela aprendi muito. Dcio de Almeida Prado e Sbato Magaldi foram tambm mestres inesquecveis. A EAD nos deu a oportunidade de saber o que existia a ser estudado, o que era imprescindvel saber. A partir da, um ator segue pela vida. Juca de Oliveira era meu colega de turma. Fizemos uma pea juntos, de Almeida Garret. Minha me foi ver e sa correndo para saber o que ela havia achado. Vai em frente, filha. Vai que voc tem jeito, mas aquele moo j ator. Aquele j est pronto. E ela tinha toda razo. Era verdade.

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Por isso mesmo foi chamado por Flvio Rangel para fazer uma pea e saiu antes de acabar a escola. Mesmo assim, Dr. Alfredo deu-lhe o diploma. Ele concordava com a minha me: Juca estava pronto. Durante os dois anos que estudamos juntos, brigamos sempre pela primeira nota. O Sbato Magaldi, por exemplo, era o nosso professor de Histria do Teatro e de Histria do Teatro Brasileiro. Eu me lembro da primeira frase dele na primeira aula: A organicidade do teatro brasileiro deve-se a Jos de Anchieta. Em suas provas de Histria do Teatro ele exigia, por exemplo, que apontssemos as diferenas e as semelhanas entre textos de Molire e Racine. Eu estudava sem parar, com livros emprestados, uma loucura. No dia de uma das provas, o Juca faltou, arranjou um atestado mdico, s para poder estudar mais do que eu. O professor ligou para ele: No adiantou nada a sua estratgia, porque a Aracy j tirou 10. Voc no vai poder tirar mais de 10. Samos da escola empostados, sim, mas muito bem preparados.

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Patrcia Galvo, a Pagu, era ouvinte no curso do Sbato. Qualquer dvida, ela tirava comigo. Ia para o bar, na Esquina da Av. Tiradentes, com ela, que tomava fogo paulista, enquanto eu tomava um guaran. Todos ficavam assustadssimos ao ver aquela mulher j velha, com o rosto e os dentes arrebentados pela polcia e aquela jovenzinha ao seu lado. Ela, at o final de sua vida, foi importante na vida cultural de So Paulo. Seu marido era redator-chefe do jornal de Santos e Pagu levava grupos, diretores, atores para se apresentarem l. Muitos atores em Santos surgiram a partir disso. Na verdade, era um momento de muita ebulio cultural. Voc ia ao MASP e podia se encontrar com Manabu Mabe, fazer uma pergunta e ele ficar conversando um tempo com voc; em uma livraria, a mesma coisa, voc podia topar com um escritor famoso que no se importava de responder s perguntas dos jovens. No dia em que ele, o Dr. Alfredo, me convidou para ir sua casa, com mais alguns alunos, fiquei deslumbrada. Suas irms moravam em uma ala e ele, em outra. No hall, que unia essas duas alas, havia

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um Rodin. Isso para mim era sempre um acontecimento. Ah, como sinto falta dessa poca! Meu analista me disse que tenho uma nostalgia de um tempo em que era mais reconhecida. No! O que me preocupa que se esquea do que foi feito neste pas e como caminhamos para trs. No me chateio que no se lembrem que fiz Antgona na TV ou a novela Antnio Maria, mas que se esqueam que existiu uma Cacilda Becker, uma Dulcina de Moraes, um Dr. Alfredo Mesquita, uma Myriam Muniz, pessoas generosas de um tempo em que no se mediam esforos para ensinar aos outros. Sinto falta de um tempo em que o ator esperava a crtica no dia seguinte, para se orientar, ajustar, se necessrio, modificar o seu trabalho. Sinto falta, ainda, da consistncia daqueles tempos. Ns tnhamos nas mos o instrumental, e isso nos fazia entender a arte e a vida. Os atores eram uma classe unida. Que participava, discutia, se insurgia contra o regime ditatorial do Pas. Em 1968, estava no elenco de Feira Paulista de Opinio, es-

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crita por seis autores: Lauro Csar Muniz, Gianfrancesco Guarnieri, Brulio Pedroso, Oduvaldo Vianna Filho, Jorge Andrade e Augusto Boal que tambm dirigia o espetculo. Ns sofremos muita presso da censura, que demorou muito tempo para liberar a pea, o que nos obrigou a apresentla sem a autorizao da censura, em um ato de desobedincia civil. Alm disso, amos a todos os teatros e interrompamos a apresentao, dizamos que estvamos censurados e mostrvamos um trechinho do Feira Paulista de Opinio. Foi importante demais essa movimentao e o espetculo acabou liberado. Finalmente, estreamos, aps meses de espera da deciso da censura, no Teatro Ruth Escobar. Nos apresentvamos na sala de baixo e na sala de cima estava a montagem de Roda Viva, do Chico Buarque. Naquela poca, a primeira sesso era bem cedo, s quatro da tarde e a outra s nove. Tnhamos tempo de fazer um lanche, ficar lendo um livro, perambulando pelo teatro. De repente, ouvimos um enorme barulho, subimos e encontramos o teatro de cima totalmente arrebentado. O pessoal do Comando de Caa aos Comunistas CCC, havia atacado o elenco

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de Roda Viva. Assim que o espetculo terminou, eles subiram no palco, bateram nos atores, destruram todo o cenrio, a aparelhagem de som. Depredaram tudo. A classe se mobilizou imediatamente. Cacilda Becker, a grande dama do teatro brasileiro, foi avisada em uma festa e imediatamente se reuniu com os colegas e ficou decidido que ela iria casa do governador Abreu Sodr. Eu fui com ela. Ele morava ainda no Jardim Europa. Batemos em sua porta, os seguranas tentaram impedir, o governador abriu a janela e perguntou o que estava acontecendo e Cacilda, com sua voz peculiar, respondeu: O teatro brasileiro est sendo agredido. E estava mesmo e lutar era preciso. Depois da agresso do CCC, em uma sesso do Feira Paulista, diversas cpsulas de gs lacrimogneo haviam sido espalhadas pelo cho e foram estouradas, quando o pblico saiu e pisou nelas. Foi preciso interditar o teatro por uns dias. Eram tempos difceis, mas a classe, como disse, era unida, coesa, engajada na luta contra a ditadura. Em todas as passeatas, l estavam os atores na linha de frente. Quando avisava para o meu pai que ia participar de uma manifestao, ele s dizia: Se

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vista bem e leva um dinheirinho no bolso. Era sua forma de dizer que me apoiava. Hoje, ator quer ter Audi, Pajero, ganhar dinheiro, ser capa de revista e ter um assessor de imprensa. E s. Um ego do tamanho de um bonde. Nossa, que expresso de poca! Ningum sabe nem mesmo o que bonde... Outro dia, dei uma bronca em uma atriz que adoro, a Thas Arajo, porque ela me ligou aos prantos que estava sendo seguida pela imprensa. Perguntei por que ela estava se escondendo, se solteira e o namorado tambm. No seria muito mais fcil tirar a foto de mos dadas (beijo, no!) e pronto, ir embora sem ningum seguindo? Alis, dei uma segunda bronca quando vi uma entrevista sua no programa da Marlia Gabriela. Eu chamei o Ulysses Cruz para dirigir a minha pea porque queria fazer teatro. Disse para ela que, primeiro, ela devia saber o que dizia a expresso teatro, antes de us-la. Foi a turma do teatro poltico, engajado, que chamou todo o resto de teatro. O Ulysses de outra gerao, nem do teatro poltico, nem do teatro. Acho que no

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perco a mania de tentar ser meio professora, mentora, assim como muitas pessoas o foram para mim. Assim como no deixo de seguir as pessoas que admiro e puxar uma conversa com elas. Fiz isso, quando estava gravando Sai de Baixo, e enquanto aguardava na porta do teatro, vi a Lygia Fagundes Telles passar. Sa atrs dela, falei da minha admirao, conversamos sobre Dr. Alfredo, de quem ela era amiga, e tenho certeza que aprendi muito e cresci como pessoa e como atriz depois desta conversa. Sempre reajo quando algum diz: Ah, mas no tinha ambiente e por isso no fiz teatro. Eu no tinha ambiente algum, era filha de imigrantes, que eram contra a minha opo, tive de lutar bastante, no conhecia ningum, mas fui buscar o meu sonho, o meu desejo. E encontrei muita gente bacana que me ajudou. Um dia estive em Campo Grande para inaugurar o Teatro Aracy Balabanian e que ator no se sentiria honrado com isso! E contei a histria de como queria ter sido o anjinho e que ningum53

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devia abandonar seu sonho. Tempos depois, quando a TV Morena, de Campo Grande me pediu uma mensagem de Natal, insisti na mesma tecla: No abandonem sonho algum. O que voc quiser hoje, lute que conseguir amanh. Eu queria muito ser anjinho aqui em Campo Grande. Fui para So Paulo, estudei, batalhei, fiz milhares de personagens e ontem noite fui a Virgem Maria, tendo ao meu lado Walmor Chagas. E o Arcebispo do Rio de Janeiro, que estava l me assistindo, me disse que Nossa Senhora talvez tenha sido armnia. Em todas as imagens medievais, Nossa Senhora tem os olhinhos caidinhos, o rosto comprido que nem o meu, e ele achou que eu estava at parecida com Nossa Senhora! No fui anjinho, porque era turca, mas fui a Virgem Maria por ser armnia. Ento, vale a pena lutar. Realmente acredito nisto.

Captulo IV Segredos de Atriz

O maior presente que ganhei foi ter sabido o que queria fazer. Muita gente passa a vida inteira sem achar o que ama. Eu fao por 42 anos ininterruptos aquilo que amo mais: representar. E fui caindo nos lugares certos, com as pessoas certas, que me indicaram caminhos, me orientaram e me apoiaram. A primeira pea que fiz profissionalmente foi Os Ossos do Baro, do Jorge de Andrade, com direo de Maurice Vaneau, em 1963, no TBC. Eu havia recebido um convite para ser a protagonista de uma pea de jovens; e outro para ser coadjuvante no TBC. Achava que no estava preparada para ser o primeiro papel e que tinha muito a aprender no TBC. No estava errada. Entrava na primeira cena ao lado da Cleyde Yaconis, com um tubinho, bem jovenzinha. Eu tremia tanto que meus joelhos batiam.

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Em Os Ossos do Baro

Ela me garantiu: Isso passa! Na terceira pea, voc nem lembra mais de tremer. Pois bem, j se passaram mais de 40 anos e continuo tremendo. At hoje, quando se aproxima a estria de uma pea ou mesmo de uma novela, penso: Ai, meu Deus! agora que as pessoas vo descobrir que sou um blefe. E tremo mais. Alis, as pessoas implicam porque eu tremo. E isso aparece, especialmente na TV. Mas, o que posso fazer se as emoes me fazem tremer? As emoes boas e as ruins. Quando vou falar com o diretor, especialmente se for sobre dinheiro, no aceito nunca um caf, no mximo um copo de gua. O caf vai derramar, com toda a certeza. O copo de gua, posso segurar com as duas mos, j desenvolvi uma tcnica. Durante as gravaes, no d para reprimir a tremedeira. Eu me emociono muito com as cenas, fao-as como se fossem as ltimas da novela, sempre. Tento tirar da cena o mximo que posso, porque no sei se vai vir uma melhor ou uma pior depois. Eu me entrego, fao no limite. E, por isso, tremo.

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Sou assim em tudo na vida. Intensa. Exagerada. Paladina da justia. As pessoas me aconselham a no ser to assim, porque, claro, sofro muito mais do que deveria. Alguns dizem: Voc precisa se conformar: tem amigo para ir ao cinema, outro que para jantar. No, quero encontrar um amigo que possa me dar tudo, como quero dar a ele o mximo. O meu analista vem tentando arrefecer esta obsesso. Como diz o Joo Curvo, sou totalmente yang. Sofro, tremo, mas no sei viver de outra forma, me dando totalmente, fsica e emocionalmente. E, tambm, no consigo ser atriz de maneira diferente, no piloto-automtico. Por vezes, claro, acontece e fico com a maior vergonha quando percebo, quando me dou conta que o personagem foi embora e sou eu que estou fazendo, somente com a tcnica, usando a cabea, sendo racional. A tcnica existe e precisa ser usada. Depois de cinco horas no sol, na Marina da Glria, com o per balanando, ter de chorar porque o Paco e a Preta foram embora no fcil. Para isso existe a tcnica: aperto um pouco o olho e a lgrima vem. Se preciso limpar a voz, fao vrios exerccios. Isso tcnica. Mas com certeza

muito melhor chorar quando a lgrima vem da alma da personagem. Sou uma atriz stanislavskyana. Apesar de todos os outros mtodos que surgiram depois, e que aprendi, sempre o meu trabalho passa pelos ensinamentos de Stanislavsky e a memria afetiva. Mesmo que no tenha vivido todas as experincias da minha personagem, tento me aproximar o mximo possvel dela, conhec-la a fundo. E assim vou entrando no ser humano que vou conhecendo. Imaginando a sua vida, como ela se veste, o que ela sente, at me fundir com a personagem. Nesse momento, eu encontro dentro de mim a personagem. No que fique possuda, que baixe um santo, sou totalmente consciente quando estou representando, mas estou de tal maneira envolvida com aquela pessoa, que j penso, sinto e ajo como ela. Na formatura da EAD, fiz a Lady Macbeth Dr. Alfredo me achava uma aluna to boa, que colocou o professor de Histria do Teatro, Paulo Mendona, para contracenar comigo. E aquela mulher ambiciosa, louca, existia dentro de mim, que tinha apenas 18 anos.

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Fao anlise, com diversas interrupes, h vrios anos. E acho que gosto tanto do processo, porque ele me ajuda a ser uma atriz melhor. Falando de mim, da minha vida, o que fiz dela e o que pretendo fazer, creso como pessoa e, conseqentemente, como atriz. Consigo, tambm, humanizar cada vez mais as minhas personagens, para que elas sejam realmente pessoas completas, no esteretipos. buscando pequenos detalhes do ser humano e isso o que voc mais encontra na anlise que voc consegue enveredar nas personagens, busc-las de dentro para fora. Assim fujo de uma interpretao chapada, sem nuances, sem credibilidade, mecnica. A minha matria-prima o ser humano. Que instrumento melhor de conhecimento do que anlise? Sempre tive vontade, curiosidade, interesse, li muito sobre a psicanlise. Quando meus pais morreram, fiquei completamente sem cho. Ia ao cemitrio todos os dias. Eu trabalhava com a Joana Fomm e gostava especialmente dos comentrios que ela fazia. Pois foi a Joana quem me indicou o meu primeiro analista. Ele era um

freudiano bravo. Nossa primeira conversa foi difcil. Ele me disse que o tratamento era caro. Eu sei: mas quando tenho dinheiro no tenho tempo; quando tenho tempo, no tenho dinheiro. E pretendo resolver essa questo aqui, no consultrio. Tinha muito problema em lidar com dinheiro. Minha irm sempre uma das minhas irms foi ao consultrio, chamou-o de vigarista, disse que ele queria me explorar, porque eu era a nica pessoa saudvel da famlia. Evidentemente, depois disso, ele percebeu o quanto precisava da anlise.61

Freudiano estrito, ele era absolutamente formal. Eu chegava bem cedo as sesses eram s sete horas da manh, olha como estava precisando ficava aguardando-o, ele passava por mim, nem me cumprimentava. Alguns momentos depois, ele abria a porta e me mandava entrar. Eu era tmida, cheia de medos e precisava de alguma forma superar a morte dos meus pais, porque estava querendo ir embora tambm. Fez-me bem demais. Nem consegui seduzi-lo, coisa que exero desde ento, at deitei no div o que

no fao mais, diga-se de passagem. Quando vim para o Rio de Janeiro e no podia pagar a Ponte Area para fazer anlise, descobri um outro caminho: a anlise transacional. Na poca, foi importante parar de falar em pai, me, av e fazer um trabalho mais focado sobre papis familiares convenhamos que, com a famlia que tenho, foi a terapia perfeita! Depois de alguns anos longe do consultrio, senti necessidade de voltar. Quebro um pouco os parmetros com ele, me recuso a deitar no div, converso cara a cara e sempre tenho muitos ganhos. O ator mexe com diversas coisas dentro dele, na maioria das vezes, impunemente. Alm disso, temo uma certa tendncia ao isolamento. Os piscianos so assim, dados a grandes mergulhos. Quando chego ao fundo do poo, porm, bato no fundo e volto. Minha irm Aurora era linda e tudo o que ela tocava se tornava bonito tambm. Ela tinha, porm, uma forte tendncia depresso. Oito anos mais velha do que eu, participou do movimento existencialista. Eu me lembro dela com uma capa preta, cabelos negros

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cados pelos ombros, sempre falando em suicdio. Implorava que ela no se matasse. Ela se casou com um depressivo, que se suicidou. Pensei: Agora ela est livre. Mas, de certa forma, ela tambm se matou, fumando desbragadamente, at mesmo na cama do hospital. Fiz o caminho inverso, incentivada por ela, que no queria que seguisse o seu caminho. Muitas vezes as pessoas acham: Aracy acabou. Mas logo surjo renascida, como uma fnix. E a anlise me ajudou muito em todos os processos de renascimento. Sou uma pessoa, tambm, que gosta de rituais. Quando estou fazendo teatro, quando d 6 horas da tarde comeo a acender todas as luzes da casa em geral, gosto de luz baixa. Quando chego no camarim, a mesma coisa: deixo tudo bem aceso. Tem gente que apaga a luz para meditar. Eu quero tudo bem claro para ficar bem assanhada e entrar no palco para me exibir. No gosto, porm, de conversas alheias ao trabalho no camarim. Se isso acontece porque freqente dividir o camarim com outros atores levo um tempo me concentrando na coxia, antes de o espetculo comear.63

Quando fiz Clarice Lispector nossa, que personagem difcil, todo mundo tinha a sua idia de Clarice sabia que ela era muito vaidosa, usava batom de cor forte, pintava sempre as unhas, e a partir disso inventei uma coisa: todas as noites antes de entrar em cena colocava Eternity, do Calvin Klein, em mim e borrifava em todas as pessoas do elenco. Alis, como importante para um ator ter um bom grupo sua volta! Em termos artsticos, digo com a maior sinceridade, se voc no tem com quem dividir, bater bola, no faz gol nunca. No existe a estrela solitria. No existe ator maravilhoso que faa bem o seu papel, se estiver cercado por pssimos atores. Quero gente mais talentosa do que eu em volta. No me sinto comprometida com o star system, fao primeiros papis, desde o incio da minha carreira, mas tambm coadjuvantes, at mesmo participaes afetivas, como na novela Da Cor do Pecado, em que interpretei a governanta Germana, que seria um papel pequeno.

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Clarice

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Da Cor do Pecado, com Lima Duarte

Foi um estouro a relao dela com o Lima Duarte. Como brinca a Thas Arajo falo muito nela, porque a admiro demais na mo leve, bem devagarzinho voc roubou minha protagonista. O Rubens de Falco, porm, pensava diferente. Na pea em que estreei, ele fazia o meu pai e ele ODEIA quando conto isso. Muitos anos depois, a Dina Sfat sugeriu que eu e o Rubens pegssemos a produo de Uma Mulher do Outro Mundo, porque ela estava doente. O Rubens foi categrico: Com a Aracy no fao, porque ela no tem o meu nvel. Dina ficou furiosa e me convidou para tomar umas caipirinhas na Academia da Cachaa, um bar perto de sua casa. E tomei muitas, muitas mesmo, de maracuj. Quando levantei, estava tontinha. Mas era o que precisava, porque fiquei triste demais com essa histria. Acho que por essas e outras histrias que importante tambm ter em um elenco pessoas boas, alm de bons atores. Muitas vezes um grande talento te atormenta tanto na coxia, que prefervel morrer do que continuar com o

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espetculo. Em uma pea, que fez enorme sucesso pelo Brasil, eu contracenava com uma atriz bastante talentosa, mas muito difcil de conviver. E ela sabe disso, tanto que me ama porque a agentei. E a amo tambm. Mas foi duro! Um dia, quando estvamos em excurso pelo Brasil, ela anunciou: Amanh meu dia de folga e no quero falar com ningum. E colocou uma placa de No perturbe na porta. No dia seguinte nos encontramos no elevador e ela comeou a falar comigo e eu s dizia hum, hum. Num momento ela se tocou e perguntou porque no estava falando com ela. Eu respondi que estava seguindo o que ela dissera, o pacto de mudez. E voc me leva a srio? Acredita no que falo? E vivemos assim por muito tempo, entre tapas e beijos. Genial ter como companheiro algum divertido, bom carter, que tenha o mesmo prazer de trabalhar que voc. fcil? No, claro que no . Isso no me impede de buscar. Como escolho as minhas personagens? Nem sempre a gente escolhe. Em teatro, sim, porque

voc pode optar muito mais pelo que deseja interpretar. J disse no para diversos espetculos, por motivos variados. Por exemplo: minha me ficou doente por oito anos. Quando me chamaram para fazer uma pea sobre doentes terminais, Caixa de Sombras, recusei. Eu sabia que no tinha condies de lidar no palco, com um problema que estava vivendo. Alguns anos depois, fui convidada para viver outra paciente em estado terminal, mas de novo no consegui aceitar, no agentaria reviver o que para mim j virara uma sombra. Llian Lemmertz e Glria Menezes, respectivamente, foram maravilhosas nos dois personagens. Em televiso diferente. Quando se contratada, as personagens chegam. E sempre acabo gostando delas. E sou capaz de brigar por elas. Quando a novela acaba, de algumas sinto uma falta enorme, uma grande saudade, como de um amigo que um dia partiu. Sinto como se tivesse levado um amigo ao aeroporto para uma longa viagem. Sei, porm, que novos amigos chegaro.

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Captulo V Histrias do Teatro

Minha carreira no teatro feita de sucessos e fracassos. Sucessos que demoraram anos em cartaz. Fracassos que logo acabaram. Ambos me ensinaram muito. Jamais deixei de analisar o porqu de um ou de outro. Embora ningum saiba a frmula, como a receita de um bolo. Uma vez d certo, na outra o bolo fica solado. Estreei sendo dirigida pelo Maurice Vaneau e, logo depois, fui trabalhar com Antunes Filho em Vereda da Salvao. Eu era sua pupila, e me dava bem com ele. Em Vereda da Salvao, ele j procurava um novo jeito, uma forma mais brasileira de representar. Era bab, chofer, era tudo dele. Quando a Maria Bonomi, com quem Antunes era casado, chegou da Europa, me trouxe um perfume o

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primeiro perfume francs que usei na minha vida. Ela me disse que era para a ex-futura amante do marido, porque certamente ele estava querendo me comer, mas no deve ter conseguido. Ficamos muito amigas. Era uma grande turma querida: Antunes, Ademar Guerra, Bonomi, Armando Bgus, Irina Greco.

Com Maria Bonomi

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Foi com Antunes que fiz o meu maior fracasso: Jlio Csar. A histria dessa montagem mais bem contada pelo Luiz Gustavo. Todas as vezes que escuto, rolo de rir. Mas foi um fracasso engraado mesmo. Todos ns temos na vida um grande fracasso. Ainda bem, mas esse foi demais. O elenco era inacreditvel, as maiores estrelas da poca: Sadi Cabral, que fazia o Jlio Csar, e era um mestre na arte de representar; Jardel Filho e Raul Cortez, que disputavam quem usava a menor sainha eles tinham pernas lindas e a maior peruca; Juca de Oliveira e Luiz Gustavo, que faziam piada de tudo; Glria Menezes, como Prcia, a mulher de Marco Antnio e eu, que vivia a mulher de Jlio Csar e que, em trs horas de espetculo, entrava dez minutos, contava um sonho e mais nada. Os figurinos eram da Bonomi ficava poucos minutos em cena, mas tinha duas roupas maravilhosas. Enfim, tudo era lindo, grandioso, maravilhoso. O ensaio geral foi o mais longo de que participei na minha vida. Chegamos um dia s duas da tarde e samos dois dias depois s oito da noite.

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A Glauce Rocha era namorada do Jardel e acompanhou o ensaio. Fui com ela at a padaria comprar sacos de po e muita manteiga para que as pessoas no morressem de fome. J tinha figurante desmaiando. Era uma multido no palco, uma confuso infernal de entradas e sadas, gente que no entendia que a cena havia sido cortada, um homem explicando para o Antunes que no se chamava Pedro no meio daquela balbrdia. O Antunes gritava, esbravejava, espumava. Estreamos. Teatro Municipal de So Paulo. Na primeira cena, Sadi cai da escada e fratura a clavcula. Ficou cado l atrs, com a coroa de louros tombada, uma tristeza. Fez o espetculo at o final, morrendo de dor, superprofissional. E foi obrigado a ouvir a gargalhada geral na platia, quando depois do monlogo de Marco Antnio o famoso At Tu, Brutus os soldados carregam o caixo de Jlio Csar e mostram-no para a platia. E aparece a bunda de Jlio Csar. No outro dia, ele foi substitudo pelo Slvio Rocha, que no teve tempo de decorar o papel e fez a pea toda de toga e... culos.

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Foi um fracasso retumbante. Quinze dias em cartaz. Nesses poucos dias, eu e a Glria ficvamos nos camarins tagarelando, pois precisvamos esperar at o final, para os agradecimentos. No preciso dizer que sou faladeira, mas a Glria tambm , e para me fazer calar a boca, para ela poder falar, ela me cutucava insistentemente. Meu vestido, que era de veludo, ficou marcado pelos cutuces da Glria. O fracasso doeu? Acho que doeu, sim, porque a Ruth Escobar no pagou a ningum e ainda processou o Antunes pelo fracasso. Eu recebi um cheque sem fundos, que anexei ao processo, bem justiceira. Antunes foi muito importante na minha carreira. Em determinado momento, porm, vi que no era mais possvel trabalhar com ele: na ltima pea que fiz, em que ele era o diretor, ensaiei durante seis meses, de uma s sete da noite. Depois do espetculo, continuvamos a ensaiar. Ou seja, era difcil ser um ator profissional e trabalhar com ele.

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Antunes tambm desprezava quem trabalhava com outros diretores, quem ia para a televiso era uma merda, esculhambava quem se desligasse da sua companhia. Tudo, porm, foi um grande aprendizado. Como tambm a temporada de Depois da Queda, com a Cia. de Maria Della Costa. Fiz uma substituio na excurso pelo Brasil e foi um prazer e uma aula de profissionalismo trabalhar com Maria. Houve um momento em que ela estava muito mal, com a barriga inchada ela fazia a Marilyn Monroe, lindssima, e a roupa nem fechava mais e fizemos uma greve para que ela parasse para se tratar. Eu contracenava com o Paulo Autran. Uma vez, a luz, que deveria acender em cima de mim, queimou. O Paulo no teve dvidas: foi at onde estava, me trouxe para a luz, virou o meu rosto para que ficasse bem iluminado. Que colega! Quando eu saa de cena, ficava sentadinha na coxia vendo o espetculo e o Paulo se intrigava com isso at eu dizer que no podia deixar de ficar admirando o trabalho dele. Realmente ficava fascinada vendo aquele monstro em cena.

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Srgio Cardoso era outro que me fazia babar. Era um ator que admirava muito, mesmo antes de contracenar com ele. Fiz com Srgio Gog e Magog, de autores norte-americanos pouco conhecidos, em que ele vivia um homem com dupla personalidade. Eu era a mulher dele e nunca sabia quem era um e quem era o outro. Foi um pouco a volta do Srgio aos palcos, mas no fez muito sucesso. Contracenar com ele, porm, foi um presente. No dia da estria, tudo deu errado. No havamos tido tempo de ensaiar a pea toda, tnhamos rolado pela escada um pouco antes de a platia entrar. O Srgio era mope e arrumava tudo no palco, para que ele soubesse sempre onde estavam os objetos de cena. Neste dia no deu e ele foi esbarrando, sem achar nada. Meu chinelo no ficou pronto e entrei em uma cena de salto alto, com uma bandeja na mo. Este enganchou em uma ranhura do cho e eu voei para o outro lado do palco. Ele improvisou: Toda vez que voc fala da sua me, acontece alguma coisa. Peguei o improviso e fui adiante. A platia delirou.

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Essa ou no a grande magia do teatro? Tudo acontece no momento. verdade que no existe o registro, s na memria das pessoas. Gosto, porm, desse carter efmero do teatro. isso que o torna to mgico. Mas, como diz o meu analista, contanto que o efmero no seja vivido como tal no momento. Na hora tem de parecer eterno.

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Captulo VI Ademar Guerra e Myriam Muniz

Ademar Guerra foi o diretor com quem mais trabalhei: Marat/Sade; Oh, que Delcia de Guerra; Hair; Brecht Segundo Brecht; ltimo Dia de Aracelli; Boa Noite, Me. Sou chamada de ademarete por causa disso. Ele foi assistente do Antunes Filho. Um assistente de fato, no aqueles que servem para levar cafezinho. Quando Ademar se afastou do Antunes e ele ficou possesso e comeou a sua carreira solo, fiquei sendo a queridinha dele a segunda, porque a primeira era a Irina, mulher do Bgus, ator pelo qual Ademar tinha verdadeira paixo. Irina era sempre a protagonista. Eu fazia os segundos papis, mas adorava aquela turma. Em Marat/Sade, claro, a Irina fazia a protagonista feminina, Charlotte Corday. Eu era, praticamente, parte do coro, a cantora Rossignol, um tipo bem popular, meio comediante de feira,

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que, junto com outros trs cantores, se misturava aos loucos. Na poca, fazia novela, estava com a minha me doente e o papel exigia uma energia gigantesca. No sei como conseguia. Foi um trabalho insano, mas recompensador. Eu sentia que a platia me procurava com os olhos durante o espetculo. Danava, cantava, fazia amor, uma loucura. O Rgis Cardoso costuma dizer que sou a nica coisa que ele lembra de Marat/Sade, o que muito me orgulha.

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E se consegui presena to marcante, devo demais a Ademar Guerra, que foi um diretor soberbo. Fui apaixonada pelo Ademar. E ele por mim. ramos amantes do teatro e isso nos unia. Muita gente achava que a nossa relao era de homem/ mulher. Podia at existir essa paixo, mas nunca foi realizada. Alis, nunca soube nada da vida sexual do Ademar. Briguei muito com o Juca de Oliveira por causa disso. Ele adora me provocar e me perguntava: Aracy, aquele rapaz que estava com o Ademar era namorado dele? Eu ficava furiosa: No vou comentar nada da vida do meu amigo com voc. Anos depois, no Rio de Janeiro, estvamos na praia no Jo, onde morvamos, a mulher dele estava grvida, eu os coloquei sentadinhos, bem delicada. A, ele veio de novo com a histria do namorado do Ademar. Tirei as cadeiras, recolhi os jornais e fui embora. A Zu, mulher dele disse: Juca, ela avisou. Coisa de mulher apaixonada e passional. Ademar era para mim o amigo para todas as horas e para tudo. Sinto uma falta disso! A primeira vez em que fui para Europa, ele fez um

roteiro completo para mim, como se estivesse estado em todos aqueles lugares. No, nunca tinha ido, mas pesquisou exaustivamente para fazer um roteiro para mim. Temperamental ele era. Xingou-me muitas vezes. Mas a gente se entendia com o olhar. Nos ensaios, bastava ele cruzar os olhos comigo, que eu j entendia que ele queria dizer menos, Aracy, menos. A presena da Mrika Gidali suavizou-o muito. Foi ele quem levou a Mrika para o teatro, para fazer coreografias. E a Mrika levou o teatro para o bal por causa dessa unio. Foi frutfera a relao dos dois. Era com ela que me queixava quando o Ademar nem olhava para mim no ensaio. Deixa de ser boba! Ele no est olhando, porque voc est fazendo direito, perfeito. No fundo, porm, achava ruim que ele s olhasse para a Irina, que era linda, maravilhosa. Ele respeitava o meu modo de ser. Sabia ser violento quando necessrio. Quando meus pais morreram, eu estava muito cada, ele me chamou e foi definitivo: Eles morreram, acabou, voc tem de seguir em frente. Achei uma

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crueldade, mas ele tinha razo. Ao mesmo tempo, quando uma sobrinha morreu, com cinco anos e meio, ele foi para a minha casa ser solidrio com meu irmo e minha cunhada. Nesse dia, alis, insisti para lev-lo em casa. Quando chegamos na porta, ele estourou: Muito bem, sua chata, eu havia marcado um encontro na frente do Museu de Arte de So Paulo, agora vou ter que pegar um txi e voltar para l. Minha casa ficava na esquina do MASP. No meio da temporada do Hair, fiquei doente. Estava com reumatismo infeccioso, em conseqncia de um problema srio de garganta e j havia emagrecido muito. Ele percebeu a gravidade do problema, me despediu e eu fiquei indignada, claro para que pudesse fazer o tratamento. Ele me salvou, se continuasse no espetculo provavelmente teria morrido. Eu amava tambm o seu senso de humor. Na mesma temporada de Hair, inventei uma bossa para o meu personagem: a figurinista tinha-me vestido com uma saia-cala, botas, camisa amarrada e o cabelo solto. Um dia, amarrei uma faixa na cabea

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e fiz umas tranas. Ele no teve dvida: Voc estava pensando em fazer uma ndia apache? Deu errado. Virou odalisca. Aprendi demais com Ademar. Ele faz muita falta, porque as pessoas que sabem, hoje em dia, no esto muito dispostas a ensinar. Ele tinha uma frase-chave: Isso psicolgico. Que servia para muitas coisas. Quando fui ver Romeu e Julieta do Zefirelli, adorei. No tive coragem de contar para o Ademar na hora, mas depois de algum tempo confessei que estava apaixonada pelo filme. E ele disse: Isso psicolgico. pssimo o filme! Ns ramos mais do que amigos, ramos irmos. Um dia ele se foi, morreu. Acho que no agentou ver o Bgus doente. Todo mundo enchia o saco dele, porque seus dentes eram mal-tratados, insistiam que ele devia se cuidar. Ele foi para o Albert Einstein fazer um check-up e disse que tinha certeza que no ia sair vivo de l. Vocs esto me botando neste hospital, mas vou ficar aqui, porque,

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meia noite, eles do um chazinho para os velhinhos morrerem, porque seno no cabe mais ningum. Olha que ironia! Na manh seguinte, a enfermeira entrou no quarto e ele estava dando o ltimo suspiro. A Mrika correu para l e pegou na cabeceira um caderninho em que o Ademar escrevia sempre era nosso tormento aquele caderninho! jogando-o em sua bolsa. Ela sabia que ali havia segredos, que ele gostaria que continuassem segredos. Na hora em que ele foi enterrado, ela jogou em seu tmulo. Lindo, no?86

Seus segredos e seu talento foram enterrados junto com Ademar. Ai, que saudade! E esse tipo de saudade no passa nunca. Ningum ocupa o mesmo lugar que ele. Como ningum jamais ocupar o lugar de Myriam Muniz, minha amiga querida que acabou de ir embora. Estou de luto. Conheci a Myriam na EAD, ela era de uma turma acima da minha. E me adotou integralmente. Sei que ela me amava, me idolatrava, queria que eu fosse o mximo. Seus filhos eram lindos e eu vivia dizendo que gostaria

de ter filhos como eles. Quando os meninos a chamavam de mame ela respondia sempre: Que isso? So loucos? Sua me ela dizia apontando para mim. Sua generosidade era to grande, que at os filhos ela gostava de dividir comigo. Foi Myriam que me ensinou muita coisa sobre a vida. At coisas ntimas. Um dia, perguntei qual era a diferena entre uretra e vagina (jamais teria coragem de perguntar minha me ou s minhas irms) e ela na hora pegou um espelho, fez com que me olhasse bem, enquanto me dava todas as explicaes.87

Ela achava que eu era melhor atriz que ela. Imagina! Ela era soberba. Fizemos Os Persas na EAD. Ela era a rainha e eu, responsvel pela sonoplastia, que fazia com uns tmpanos. Era o momento de retribuir tudo o que ela j me dera, queria que fosse maravilhoso, melhor do que ela fazia tantas vezes para mim. Eu bati nos tmpanos com tanta fora, que a baqueta foi parar no meio do palco e quando a pea comeou estava me arrastando para recuper-la. Ramos muito dessa histria juntas, e ela acabou colocando em seu livro.

Flvio Imprio fez um quadro lindo, ela como a Dorina de Tartufo (era deslumbrante a maneira que ela a interpretava), e colocou de um lado a sua famlia e do outro os amigos mais ntimos, dentre eles, eu com o gesso no nariz foi na casa dela que me recuperei da cirurgia plstica. Eu tinha muitos quadros do Flvio, que se foram com o incndio ou emprestados para exposies, que jamais voltaram. Um dia disse a ela que no tinha mais nada do Flvio. Ela tirou o quadro da parede e me deu. Ela era assim, tirava a roupa do corpo para dar a um amigo.88

Myriam foi, sem dvida, uma referncia muito forte em minha vida. Acho que represento um pouco como ela. Dina Sfat tambm representava. Sua fora no palco foi um marco para a nossa gerao. Era uma mulher feia, que, um minuto depois, todos comeavam a achar linda. Ela era o centro de tudo: no palco e na vida. Ela era instrumentadora antes de entrar na EAD, casou cedo com um homem especialmente bonito, seu segundo filho nasceu com problemas, foi atropelado e morreu aos 18 anos. Comeou a dar aulas,

se juntou a um rapaz muito mais jovem e teve srios problemas, inclusive de dinheiro, e era ajudada pelos amigos. Myriam gostava de ensinar, de ensaiar, quando o espetculo estreava nem queria saber mais. Ela teve uma vida trgica e no podia ser diferente. Acho que ela foi enlouquecendo um pouco ao longo da vida, porque tinha um tamanho que no cabia no mundo. Myriam detestava fazer televiso. Achava que ela precisava trabalhar para, inclusive, pagar os melhores mdicos para o filho. E no faltavam convites para ela, mas quem disse que ela queria? Na poca de Nino, o Italianinho eu levantava duas horas antes para passar na casa da Myriam, acord-la, tir-la da cama, para que ela fosse s gravaes. E ela fez deslumbrantemente a mezona italiana, que era como ela. Sua casa sempre esteve aberta para todos, a comida era farta na mesa para quem chegasse. Para mim ela fazia arroz com lentilha, quibe, essas coisas de que voc gosta dizia. Quando as perdas foram acontecendo em nossas vidas, ns sempre nos comunicvamos. Nosso ltimo encontro foi

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na morte do meu afilhado, filho do Silney Siqueira, nosso companheiro tambm de EAD. Ela me ligou, eu disse que ia para So Paulo, que passaria na casa dela antes, para que fssemos juntas na casa do Silney. Ela, na mesma hora, respondeu: Chega, chega, j cansei de chorar, no vou nada. Cheguei l, ela tinha preparado as comidas rabes (come, come logo), um quarto para eu dormir. Almocei e disse que ia chamar um txi para ir casa do Silney. Que txi, est louca? E vou deixar voc ir sozinha? Chamou o namorado e l fomos ns em um carro caindo aos pedaos, aos trancos e barrancos. Na hora de ir para o aeroporto, a mesma coisa, a mesma charanga. E, no meio da nossa tristeza, ainda ramos por causa do calor. Essa era Myriam, a companheira para todas as horas, aquela que trazia sempre um presente original nas minhas estrias: um robe que havia feito, com um pano especial que escolhera; um espelho, em que ela gravou a data da minha estria profissional 8 de maro de 1963 e que guardo at hoje com o maior carinho. A amiga que tinha um corao to grande, que nem cabia dentro dela. Uma

vez, no casamento da minha irm, ela deu vrios presentes, todos que eu havia dado para ela. Quando fui reclamar, ela respondeu com a sua lgica generosa: Voc no deu para mim? Ento posso fazer o que quiser. Nunca vi pessoa mais desapegada. Quando meus pais voltavam do enterro de algum amigo, via em seus rostos o medo e a preocupao de serem os prximos. Eu no sinto isso, mas tenho muito mais medo do que meus pais, porque a minha grande preocupao : quem vai ficar no lugar deles? J se foi tanta gente maravilhosa e no vejo ningum com capacidade para substitu-los. Dr. Alfredo, Flvio Imprio, Ademar Guerra, Myriam Muniz, quem pode ocupar o vazio que eles deixaram? Sempre pensei que eles eram imorrveis. A minha saudade no tem tamanho.

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Captulo VII Mais Histrias de Teatro

Vim morar no Rio de Janeiro por causa do contrato da TV Globo. Na minha cabea era provisrio: vim com a minha Braslia, meu cachorro, trs mudas de roupa de cama, trs mudas de banho e umas pecinhas minhas. E fui ficando. A primeira pea que fiz aqui no Rio foi Direita do Presidente, do Mauro Rasi e do Vicente Pereira, com o Gracindo Jr. Todas as vezes que vou ao Teatro Joo Caetano tenho vontade de pedir o cartaz da pea que est l, amarelecendo na bilheteria. Eu no conseguia entender muito bem, mas odiava tudo, o diretor, os autores, o elenco. Todos os dias pensava em uma maneira elegante de sair, ainda mais porque era a nica mulher do elenco. Um dia, troquei de carro e comprei um com ar-refrigerado. O mundo mudou. Cheguei no teatro felicssima, sem entender por que estava chateada com aquelas pessoas maravilho-

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sas. Era o calor do Rio que estava me matando! No tinha nada a ver com o espetculo. Anos depois, o Mauro Rasi tirou o nome do Vicente e estreou a pea com outro nome, A Dama do Cerrado, com a Suzana Vieira. O Ney Matogrosso me ligou para falar que estava chateado, porque os pais do Vicente estavam velhinhos e no iam receber nada pela pea. Eu pedi para algumas pessoas verem, porque seria estranho se aparecesse. A Louise Cardoso, que havia gostado muito de mim, no espetculo, me garantiu que era igualzinho. Quando a Louise saiu do teatro, o Mauro avisou: Se voc achar alguma semelhana, mera coincidncia. Aqui, porque o lugar que moro, fiz O Tempo e os Conways. Foi uma experincia maravilhosa porque trabalhei com o grupo Tapa, dirigida pelo Eduardo Tolentino. Em seguida, viajei pelo Brasil com o Walmor Chagas e a Luclia Santos. Ns tnhamos feito um sucesso enorme na novela As Locomotivas e queramos fazer uma excurso, mas no gostaramos de fazer mais um espe-

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tculo comercial. O Ademar nos trouxe um texto do Oswaldo Mendes, Brecht segundo Brecht. As pessoas iam ver o trio da TV e encaravam um Brecht. Foi um sucesso enorme, ganhamos muito dinheiro, mas eles decidiram parar. Os deuses do teatro se vingaram e sempre assim, quando se despreza um sucesso, pode ter certeza, vai perder em um fracasso todo o dinheiro ganho.

Com o Grupo TAPA, em O Tempo e os Conways

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Aconteceu conosco. Todos os trs investiram em novos projetos que no deram certo. Eu, porm, no me arrependo. Produzi a pea ltimo Dia de Aracelli, de Marclio Moraes, baseada no livro de Jos Louzeiro. Era uma pea-reportagem sobre o caso da menina Aracelli, que, aos 9 anos, foi drogada, estuprada e silenciada em Vitria, no Esprito Santo. Aracelli era uma menina muito bonita e foi levada por alguns jovens ricos para um quarto em cima de uma boate, onde sofreu todo o tipo de abuso at no resistir. Era 1980, e estvamos falando de um problema que s se agravou nos ltimos vinte anos. Era um espetculo bastante interessante, forte, mas que as pessoas no queriam ver. Fomos muito ameaados, tambm, mas isso no nos intimidou. Sabe de uma coisa? Prefiro morrer defendendo uma causa. O Carlos Vergueiro, o Vergueiro, pai do compositor, um gentleman, que havia sido do TBC, depois largou o teatro e era diretor da Rdio Eldorado, voltou aos palcos em Aracelli. Ele jogava que nem um louco na loto para ver se conseguia dinheiro, porque

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em Aracelli

morria de pena de mim, que estava perdendo tudo que havia investido na montagem. No deu certo, mas tenho muito orgulho de ter esta pea em meu currculo, porque as Aracellis continuam soltas por a, desprotegidas. Sempre batalhei pelos meus personagens. No posso dizer que ganhei alguma coisa de mo beijada. s vezes tive de brigar bastante por eles. Por exemplo, Boa Noite, Me, de Marsha Norman. O Ademar no queria que fizesse o papel da suicida. Ele achava que eu, tendo a mesma idade da personagem, ia achar que a nica soluo para a minha vida era me matar. Liguei para o meu analista, ele leu a pea e concluiu: Vou perder uma cliente. A pea vai te obrigar a uma catarse diria. E ele tinha razo. O Ademar ficou furioso, porque no me queria, mas eu, a cada dia, ia fazendo melhor a personagem. E a catarse no era s minha. Pela primeira vez, vivenciei crises de pessoas na platia. Uma me, cujo filho havia-se suicidado, chorou o espetculo inteiro e no final quando fora de cena ouvia-se o estampido deu um enorme

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grito. Outra mulher comeou a gritar que aquela era a histria de sua vida. A Glria Menezes, que estava na platia, no entendeu por que ela tinha se identificado com a solitria personagem, porque a mulher estava acompanhada do marido. Ora, h solides e solides. Quem dava o tiro era o contra-regra. Eu no chegava nem perto da arma. Um dia, sa de cena, entrei no camarim e uma psicanalista me perguntou de chofre: Onde ela deu o tiro? Nunca havia pensado sobre isso, mas respondi imediatamente: No ouvido. E ela me explicou que o mais comum, que as mulheres no do tiro no corao, talvez porque tenham o seio, smbolo feminino. Tive a certeza de que estava inteiramente entrosada com a personagem. Noite Feliz uma pea linda do Flvio Marinho, que eu gostava muito de fazer. Era a histria de uma me severa, que tem um filho homossexual e que acaba se abrindo com ele em uma cena emocionante, que adorava. Na poca, estava em Sai de Baixo e quebrei o p, quando tropecei no

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teatro onde eram feitas as gravaes. Na pea, eu entrava reclamando porque havia subido trs andares de escada. Como fazer isso, com a perna quebrada? Inventei um caco que o zelador me levava escada acima nesses andares. Um dia, quando ele me trazia na cadeira de rodas, eu disse: Obrigada, Ribamar. Sai de Baixo era um sucesso enorme e a platia veio abaixo. S ouvi uma voz, era Stela Freitas, que fez o seguinte comentrio: Era s o que faltava... Bastou, tive uma crise, disse que odiava a todos, que eles eram pssimos companheiros, sem humanidade, que no haviam me dado a menor assistncia vendo que estava em uma cadeira de rodas e sa do elenco. Eu e o Flvio Marinho voltamos s boas depois de um certo tempo, mas no tenho saudade alguma daquele elenco. Tenho certeza de que, mesmo em cadeira de rodas, no deixei a pea cair. Mal comparando, segui o exemplo de Cacilda Becker, que esperou o pano fechar no primeiro ato, para s ento dizer ao Walmor que estava tendo, provavelmente, um derrame e ir para o hospital.

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Eu me dedico incondicionalmente s minhas personagens. E as adoro em geral. Um dos mais gratificantes de fazer foi, sem dvida, Clarice Lispector. Foi muito difcil interpretar uma pessoa admirada por milhares. Eu havia parado de fumar por causa de um problema srio nas cordas vocais , mas um pouco antes de a pea comear, ficava lendo as frases de seus textos, que a Analu Prestes tinha colocado no cenrio, o contra-regra colocava um cigarro entre os meus dedos, ouvia a voz rascante da Cssia Eller cantando sou inquieta, spera e desesperanada, dava uma enorme tragada e a personagem aparecia. Parecia coisa de santo. Quando chegava em casa, a vontade de fumar passava imediatamente. Era uma personagem maravilhosa com sua inteligncia, emotividade e a capacidade de ir fundo em tudo o que fazia. Muita gente pode no ter gostado, mas foi um dos espetculos mais importantes que fiz. Comeou como um evento, patrocinado pela Avon, para o Dia Internacional da Mulher. Fiquei dois anos viajando com o espetculo.

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Clarice

O prximo? Ainda no sei, mas haver. Ns, atrizes brasileiras, somos muito boas e corajosas. Em toda a histria do teatro brasileiro, as mulheres que comandaram, criaram as grandes companhias, se tornaram produtoras do seu prprio trabalho. Sigo a lio de Cacilda, Maria, Fernanda, mais uma vez. No tenho problema algum em colocar um tailleur Chanel, uma camlia na lapela, um salto alto, colarzinho de prolas e ir conversar com os diretores de marketing das grandes empresas.104

No existe muita opo para os artistas: ou se produzem ou entram como scios, quando so convidados, recebendo uma porcentagem da bilheteria. Fao questo de trabalhar muito nos dois casos. Quero que o meu investimento ou a minha porcentagem renda bastante. No fico de braos cruzados, esperando o pblico aparecer. Acordo s cinco horas da manh, se necessrio, para aparecer no noticirio. Arrumo-me toda, chego l rindo para vender o que tenho, o meu trabalho.

Nunca me faltou trabalho. Quando penso que uma porta est fechada, outra se abre. E no me fao de rogada. Vou onde houver trabalho. S se eu no gostar mesmo e isso j aconteceu que sou capaz de desistir de fazer uma pea, ainda nos ensaios. Acho que, em meus 42 anos de carreira, aprendi a dizer no. E isso era necessrio. O Chaplin falava que a Sophia Loren era uma pessoa encantadora, mas com um grande defeito: no sabia dizer no. No fundo, a gente no diz um no para agradar; e no quer ouvir um no, tambm para agradar.105

No quero mais agradar ningum, sendo infeliz. E quero trabalhar bastante e muito feliz.

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Captulo VIII Nunca Fui Santa

Burguesinha, combinadinha e, pior de tudo, virgenzinha estes foram rtulos que me colocaram no incio da minha carreira. A Cleyde Yaconis me chamou de pequena-burguesa quando cheguei de carro no teatro. Ela tambm vivia implicando com as minhas roupas: Tudo combinadinho, ai, que horror! E eu passava horas em casa, olhando para o armrio e tentando-me desfazer, s para agradar a Cleyde. Era difcil, porque comprava uma blusa j sabendo que ela ia combinar com a saia e o sapato que estavam no armrio. Eu sempre fui muito discreta, como a Clia Biar, que achava uma das mais elegantes colegas nossas. E ela dizia assim: Eu sou clssica, porque sou tmida. Eu me lembro que uma vez minha me me deu um dinheiro para comprar uma roupa, eu comprei um vestidinho de l, Prncipe de Gales. Ela me perguntou se no tinha uma coisa mais alegrinha, mas era assim.

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At hoje, sou discreta, uso diversos conjuntos de cala e camisa e estou sempre bem arrumada. O Miguel Falabella que diz que tenho conjunto para tudo, para ir a velrio, ao Caneco. E ele, de certa forma, tem razo. Olha que a Cleyde tentou! A minha virgindade, porm, foi o que mais incomodou classe artstica. Em Ossos do Baro, no ensaio geral, todos elogiaram muito o meu trabalho, mas fizeram uma ressalva: Ele no chegava l, no descia at o tero, porque, claro, eu era virgem. Sa, tarde da noite, pensando sobre o assunto e at cogitei dar para o primeiro que passasse, s para melhorar a minha interpretao. Afinal, queria estar bem na estria! Em Vereda da Salvao, a controvrsia continuava. Fiz a pea, mas na hora do filme no deixaram que eu interpretasse a personagem, porque faltava teso, vivncia afinal continuava virgem e tambm por no ter cara de cabocla brasileira. Isto, no tinha mesmo, mas todo mundo sabe que a arte faz milagres, como provei outras vezes.

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At me chamaram para fazer o teste, mas o Jorge de Andrade me desaconselhou a ir, porque no seria escolhida mesmo e estava sendo usada para valorizar e melhorar a interpretao dos outros. Fiquei frustrada, chorei muito. Depois de um tempo, o Anselmo Duarte me chamou para dublar o filme. Deixei-o esperando e meu pai achou um absurdo, como eu podia fazer isso com uma pessoa to importante? Quando falei com ele, recusei o convite. Por qu? A minha voz de virgem, a interpretao de virgem, porque eu continuo virgem.109

Achava tudo isso uma loucura das pessoas. Tantas haviam dado e nem por isso eram boas atrizes, mais talentosas. Em Marat/Sade eu danava, cantava e... fazia sexo em cena. Era uma cena forte, maravilhosa e muita gente no entendia como conseguia faz-la sendo... virgem. Uma vez me perguntaram como eu realizava melhor esta cena do que outra atriz, mais experiente na vida.

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Simples, penso em todas as coisas que me do prazer. Em Hair, o Ademar me deixava em pnico, na poca dos ensaios, com a cena do nu, porque dizia que o Dcio de Almeida Prado, o Sbato Magaldi, todos os crticos e toda a platia iam ficar dizendo: Olha os peitinhos da Aracy. Eu queria morrer. No fiquei nua em Hair, mas no por isso, mas porque o Ademar resolveu deixar os atores mais conhecidos vestidos em cena. No fim, todo mundo enlouqueceu e tirou a roupa. O elenco todo teve problemas de voz e um mdico tascou cortisona na gente. Juntando com o que todo mundo tomava, foi um tal de tirar a roupa... Por que era virgem, em tempos em que era politicamente incorreto no fazer sexo? Talvez por respeito aos meus pais, porque no queria mago-los de jeito algum. Talvez essa fosse a desculpa que desse para mim mesma, enquanto aguardava chegar um cara legal, de quem eu realmente gostasse. Confesso que sentia um pouco de vergonha da minha virgindade, ia a uma festa, nem sabia muito bem onde sentar, e

com quem conversar. A, comecei a flertar com um ator e tudo aconteceu como achava que iria acontecer. Agradeo at hoje a ele, que foi delicadssimo. Dei para um ator de segunda, coadjuvante, que jamais me perdoou por eu ser uma estrela. Nossa relao durou dois anos, mas quando transpirou no foi adiante. A, fui dando, dando, desvirginando uns e outros, sempre adorei homem. Mas nunca dei em troca de trabalho. Um diretor, que j morreu mas prefiro no dizer o nome, porque no gostaria que seus filhos lessem se vingou at o resto da vida por no ter dado para ele. Ele vivia me cercando, aparecia no teatro, arrumava convites para as festas que eu ia, me dava carona. Um dia deixei bem claro: Posso at dar para voc, mas no vai ser para conseguir um contrato. Ele disse que eu era muito pretensiosa e jamais me perdoou. Uma vez, ele me chamou para uma reunio de elenco e, na hora, me pediu que fosse na sua sala. Pensei bem e acho que voc no serve para o papel. E tive de ir embora na frente de todo o mundo e dar o meu lugar para a Tereza Raquel. Veja o que me custou ter ferido o ego desse

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diretor. Eu podia ter disfarado, enquanto ele me paquerava, ir cozinhando-o, neste ms, no, quem sabe no prximo. Mas sou assim, adoro colocar tudo em pratos limpos. E tenho de pagar o preo. Nada foi muito fcil para mim, embora parea o contrrio. Sempre enfrentei lutas e cobranas. Depois da virgindade, veio a questo do casamento. At hoje, sempre aparece algum para perguntar porque eu no me casei. Outro dia foi uma jornalista, com uma voz de jovenzinha, que me ligou fazendo essa pergunta. Ora, minha filha, me respeite, sou uma senhora. Isso no se pergunta para uma mulher da minha idade. O que ela esperava que eu dissesse, que tenho problemas sexuais? Para muita gente, porm, isso um problema. Acho que, s vezes, at para o meu analista. Na verdade, namorei muito, me senti casada diversas vezes, mas como sempre fui discreta, as pessoas no ficaram sabendo. O Ney