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ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA DESAFIOS E LIMITES DA , ARBITRAGEM TRIBUTARIA NO DIREITO BRASILEIRO TATHIANE PISCITELLI* Professora Universitária ANDRÉA MASCITTO* Advogada 6 I CAAD- Arbitragem Tributária I 2018 A complexidade do sistema tr ibu- tár io brasileiro somada à alta carga tr ibutária que recai sobr e as pes- soas jurídi cas são causas de estímu- lo à litigiosidade. Esse cenário, em co njunt o com a dimensão conti - nental do Brasil, resultam em alt o nível de ineficiência na resolução de litígios, seja na esfera judi cial , seja na administrati va . A despei to disso, o debat e sobre os métodos alternativos de resolução de dispu- ta em matéria tributár ia, qu e po- deriam melhorar esse ambiente, ainda é incipi en te. À luz desse contexto, o prese nt e artigo tem por obj etivo apr ese ntar os desafios institucionais que d e- vem ser enfrentados na impl emen- tação da arbitragem em mat éria tributári a. Para tanto, o seguint e percur so seadotado: na pr i- meira seção, serão aprese ntados alg un s números do contencioso no Bras il, de modo a contextuali - zar o leitor quanto à morosid ade, ineficiência e custo dos m éto dos tradicionais e, ainda, apontar as po ssíve is razões para isso. Após, na segunda seção, serão enfrent a- dos os desaf ios propriament e dito s para a impl ementação da arbi tra - ge m tributária. Delineados tais desafios e di ante da conclusão pela possibilidade de sup eração, a seção 3 tratará as mat érias arbitráveis, com vistas a caminhar no sentido da estruturação mais con creta do regim e no Brasil. Finalm e nte, a se- ção 4 se limitará a esboçar as con- clusões gerais dest e t exto. 1. INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA A morosidade e ineficiência do co nt encioso tribut ário brasil eiro, seja na esfera administrati va , seja na judicial, são dados irrefutá- veis. As causas dessa realidade são diversas e é natural que a escassa presença de método s alt er nativos de resolução de conflitos colabore com esse cenár io. Co ntud o, há um ponto preliminar qu e deve ser en- frentado: o fato de a estrutura nor- mativa tributár ia estar desenhada no te xto constituciona l. A evolução e sistematização nor- mativa do direito tributário bra- sil eiro são recentes. Apenas em 1965, com a promulgação da Emenda Constitucional (EC) n. 0 18 à Constituição Federal de 1946, é que se tem um detalhamento só- li do das normas tributárias e da delimitação das co mp etências en- tr e os ent es da Federação. Seguiu- -se a esta EC a publi cação do Có- digo Tribut ário Nacional (CTN), norma geral de direito tr ibut ário, cuj a função central é a unif o rmi za- ção de conceitos, inst itut os e limi- tes voltados ao pod er de b·ibutar. Com a vigência do CT N e as delimitações constantes da EC 18 I 1965 , o dire ito tr ibutári o ganhou foros de au to nomia em relação ao direito finan ceiro e as práticas relativas a essa discipli- na com eçaram a se sofisticar. Em '' O debate sobre os métodos alternativos de resolução de disputa em matéria tributária, que poderiam m elhorar esse ambiente, ainda é incipiente

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ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA

DESAFIOS E LIMITES DA ,

ARBITRAGEM TRIBUTARIA NO DIREITO BRASILEIRO

TATHIANE PISCITELLI*

Professora Universitária

ANDRÉA MASCITTO*

Advogada

6 I CAAD- Arbitragem Tributária I 2018

A complexidade do sistema tribu­

tário brasileiro somada à alta carga

tributária que recai sobre as pes­

soas jurídicas são causas de estímu­

lo à litigiosidade . Esse cenário, em

conjunto com a dimensão conti­

nental do Brasil, resultam em alto

nível de ineficiência na resolução

de litígios, seja na esfera judicial ,

seja na administrativa . A despeito

disso, o debate sobre os métodos

alternativos de resolução de dispu­

ta em matéria tributária, que po­

deriam m elhorar esse ambiente,

ainda é incipiente.

À luz desse contexto, o presente

artigo tem por objetivo apresentar

os desafios institucionais que de­

vem ser enfrentados na implemen­

tação da arbitragem em matéria

tributária. Para tanto, o seguinte

percurso será adotado: na pri­

meira seção , serão apresentados

alguns números do contencioso

no Brasil , de modo a contextuali ­

zar o leitor quanto à morosidade,

ineficiência e custo dos m étodos

tradicionais e, ainda, apontar as

possíveis razões para isso. Após,

na segunda seção, serão enfrenta­

dos os desafios propriamente ditos

para a implementação da arbi tra­

gem tributária. Delineados tais

desafios e diante da conclusão pela

possibilidade de superação, a seção

3 tratará as matérias arbitráveis,

com vistas a caminhar no sentido

da estruturação mais concreta do

regime no Brasil. Finalm ente, a se­

ção 4 se limitará a esboçar as con­

clusões gerais deste texto.

1. INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA

A morosidade e inefici ência do

contencioso tributário brasileiro,

seja na esfera administrativa , seja

na judicial, são dados irrefutá ­

veis. As causas dessa realidade são

diversas e é natural que a escassa

presença de métodos alternativos

de resolução de conflitos colabore

com esse cenário. Contudo, há um

ponto preliminar que deve ser en­

frentado: o fato de a estrutura nor­

mativa tributária estar desenhada

no texto constitucional.

A evolução e sistematização nor­

mativa do direito tributário bra­

sileiro são recentes . Apenas em

1965, com a promulgação da

Emenda Constitucional (EC) n .0

18 à Constituição Federal de 1946,

é que se tem um detalhamento só­

lido das normas tributárias e da

delimitação das competências en­

tre os entes da Federação. Seguiu­

-se a esta EC a publicação do Có­

digo Tributário Nacional (CTN),

norma geral de direito tributário,

cuj a função central é a uniformiza­

ção de conceitos, institutos e limi­

tes voltados ao poder de b·ibutar.

Com a vigência do CT N e as

delimitações constantes da EC

18 I 1965 , o direito tributário

ganhou foros de autonomia em

relação ao direito finan ceiro e as

práticas relativas a essa discipli­

na com eçaram a se sofisticar. Em

'' O debate sobre os

métodos alternativos

de resolução de

disputa em matéria

tributária, que

poderiam m elhorar

esse ambiente, ainda

é incipiente

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1988 , foi promulgada uma nova

Consti tuição (vigente até os dias

de hoje), em face do processo de

redemocratização. O cenário his­

tórico contribuiu para que a Cons­

tituição da República de 1988 ,

além de incorporar grande parte

da estrutura do sistema tributário

forjado em 1965 , também previsse

di ver sos outros direi tos e garantias

aos contribuintes, ampliando ainda

mais a presença do direito tributá­

r io em nível constitucional. Nesse

contexto , o CTN foi recepcionado

com status de lei complementar e

seguiu exercendo o papel de deli­

mitar as normas gerais de direito

tributário.

Como consequência da incorpo­

ração quase que integral do direi­

to tr ibutário na Constituição , as

respostas às questões tributárias

relevantes são com muita frequên­

cia dadas pelo Supremo Tribunal

Federal, a corte constitucional

brasileira . Esse percurso, natu­

ralmente, leva tempo - o prazo

m édio de duração de um processo

tributário na esfera federal é de 12

anos' . Recentem ente, porém , foi

aprovado um novo Código de Pro­

cesso Civil , que trouxe diver sos

m ecanism os de estabilização da ju­

ri sprudência e redução da litigiosi­

dade. Em Unhas gerais, esse efeito

seria resultante da obser vância dos

tribunais e juízes de instâncias in­

feriores de decisões uniformizadas

pelos Tribunais Superiores, conhe­

cido como "sistema de preceden­

tes" . Ainda assim, o reflexo das

alterações não é imediato e ainda

há muita discussão sobre o alcan­

ce das medidas e os limites de sua

aplicabilidade.

Som e-se a esses elem entos um

outro dado relevante : há duas vias

de acesso ao contencioso brasilei­

ro ; o processo administrativo e

o processo judicial. Em regra, o

processo administrativo tem lu­

gar nas hipóteses de impugnação a

um lançamento - são os casos em

que o contribuinte se depara com

a constituição da relação jurídica

tr ibutária pela administração, via

lançamento de ofício , e decide

contestar os termos de tal consti ­

tuição administrativamente, antes

mesm o do debate judicial. Não

raro , as discussões são levadas a

tribunais administrativos e somen­

te diante de uma decisão desfavo­

rável é que o contribuinte2 enfim

acessa o Poder Judiciário.

No âmbito administrativo federal,

apenas, há cerca de € 167 bilhões

em disputa e 12 1. 73 1 processos

pendentes de análisé. Dentre

esses valores , a imensa maioria

concentr a débitos de menor im­

pacto econômico - 96,77% dos

processos discutem débitos de

até € 3.800,004• De outro lado, a

despeito de o Tribunal apresentar

uma evolução constante nos jul­

gamentos, quantidade semelhante

de casos segue sendo apresentada,

de modo que o estoque permane­

ce relativam ente estável ao longo

dos anos .

A inexistência de métodos alter ­

nativos de resolução de conflitos

solidam ente implementados em

matéria tributária contribui para

esse cenár io de ineficiência e m o-

rosidade. A despeito da previsão

no CTN, em nível federal não há

disciplina jurídica relativa à transa­

ção tributária e a discussão sobre

outros m eios consensuais ainda é

embrionária.

É sob esse contexto, portanto, que

o debate sobre a implem entação

da arbitragem em m atéria tribu­

tária deve se desenrolar no Bras il.

Diante de um cenário de pouca

eficiência judiciária, inclusive do

ponto de vista da administração, é

razoável cogitar-se de um sistema

"multiportas", no qual tanto Fisco

quanto contribuintes poderiam

escolher como seguir com as suas

lides. Ao lado da disputa sobre o

crédi to tributário na esfera admi ­

nistrativa e posteriormente judi ­

cial somar -se-ia a possibilidade de

realização de arbitragem , face ao

consenso mútuo das partes sobre

a escolha de tal via.

Para tanto, porém , deve-se tratar

dos desafios institucionais que essa

opção apresentaria - esse será o

objeto da próxima seção. Note-se,

desde logo, que a proposta aqui

apresentada é de lege jerenda, na

m edida em que não há, no orde-

nam ento brasileiro, qualquer pre­

visão nesse sentido. Não obstante,

entendemos que o tema deve ser

enfrentado, mas não apenas em

face dos números do contencioso

tributário. Não se pretende apon­

tar a arbitragem como panaceia à situação atual do contencioso no

Brasil. Para além da possibilidade

de se imprimir maior eficiência e

celeridade aos m eios hoje existen­

tes, trata-se de criar um m ecanis­

m o alternativo que seja capaz de

ampliar as possibilidades de reso­

lução de disputas tributárias, sem

prescindir da necessária proteção

ao crédito tributário e aos direitos

individuais dos contribuin tes . Em

linhas gerais, provar este ponto é o

obj eto central deste artigo.

2. DESAFIOS INSTITUCIONAIS: NORMA GERAL DE DIREITO TRIBUTÁRIO E A (IN) DISPONIBILIDADE DA RECEITA TRIBUTÁRIA

Nos termos em que delineado li­nhas acima, o texto constitucional

é responsável pelo tratam ento ge­

ral do sistema tributário bras ilei­

ro : a partir da delimitação da com ­

petência tributária entre os entes

da Federação, o legislador consti­

tuinte fixou os limites segundo os

quais o exercício da tributação se

daria . Nesse sentido, prescreveu

os princípios e regras que devem

ser obser vados na criação e majo­

ração de tributos, as hipóteses de

imunidades tributárias, além de

estabelecer as bases impositivas

- ou seja, os fatos e as condutas

econômicas passíveis de sofrer a

imposição tributária.

Ainda no texto da Constituição,

há a delegação de competência à lei complem entar para estabelecer

normas gerais de direito tributá­

rio, especialmente sobre elem en­

tos atinentes à relação jurídica tri ­

butária . Conforme destacado no

i tem anterior, esse papel é exerci­

do pelo CTN. Especificam ente no

que se refere ao detalham ento do

CAAD- Arbitragem Tributária I 2018 I 7

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ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA

crédito tributário, o Código prevê

hipóteses taxativas de suspensão da

exigibilidade (artigo 1 51) e, ainda,

as causas de extinção da relação ju­

rídica tributária (artigo 156).

O primeiro entrave institucional a

ser enfi·entado na implementação da

arbitragem tributária no Brasil seria

a necessidade de alteração do CTN.

Considerando a instauração de um

processo arbitral que tivesse por ob­

jeto um crédito já constituído, seria

necessária previsão específica quanto

à suspensão da exigibilidade do tri­

buto em debate até que o termo fmal

da arbitragem. Desse modo, ficaria

a Fazenda Pública impedida de to­

mar quaisquer medidas de cobrança

que colocassem em risco a própria

eficácia da arbitragem. Além disso,

iguahnente seria necessário prever,

dentre as hipóteses de extinção da

relação jw-ídica tributária, a sen­

tença arbitral, cuja resolução seria

definitiva e apenas passível de des­

consideração pelo Poder Judiciário

em face de vícios no procedimento5•

Essas alterações , por óbvio, deverão

ser realizadas via lei complementar.

Superada a previsão geral no CTN,

outro passo relevante seria alterar

a Lei n. 0 9.307/ 1996, que dispõe

sobre arbitragem no Brasil. Nesse

ponto, outro desafio se coloca.

Nos termos do artigo 1.0 da lei,

o uso da arbitragem está limitado

a direitos patrimoniais disponÍI'eis

entre pessoas capazes de contratar.

Após amplo debate público, em

20 I 5, incluiu-se no parágrafo I. o

desse dispositivo a possibilidade de

a administração pública direta e in­

direta utilizarem -se da arbitragem

para dirimir conflitos, desde que

observada a condição geral: direi­

tos patrimoniais disponíveis. Ade­

mais, nos termos do artigo 2. 0,

parágrafo 3. 0, "a arbitragem que

envolva a administração pública

ser;\ sempre de direito e respeitará

o princípio da publicidade". Nesse

caso, portanto, não há que se fa ­

lar na livre escolha das regras que

regerão o processo: os limites são

bem claros.

8 I CMD- Arbitragem Tributária I 2018

O principal entrave de aplicação

do instituto no direito tributário

estaria no atendimento da condi­

ção geral posta pela lei: é incon­

troverso que o objeto da relação

jurídica tributária revela conteú­

do patrimonial. No entanto, seria

esse m esmo objeto um "direito

disponível"?

A indisponibilidade da receita tri­

butária tem por corolário o inte­

resse público vinculado à arreca­

dação e, assim, à manutenção do

Estado e das necessidades públicas

por ele atendidas . Como é sabido,

esse m esmo debate foi enfrentado

em Portugal por ocasião da imple­

mentação da arbitragem tributária

- a redação do artigo 30. 0, n. 0 2

da Lei Geral Tributária prevê, ex­

pressam ente, a indisponibilidade

do crédito tributário, "só podendo

fixar -se condições para a sua redu­

ção ou extinção com respeito pelo

princípio da igualdade e da legali­

dade tributária".

No âmbito do ordenamento ju­

rídico brasileiro, a despeito de a

constituição da relação jurídica

tributária por ato administrativo

vinculado e obrigatório constar

não apenas da definição de tributo

(artigo 3. 0, CTN) mas, também,

na disciplina do lançamento (ar­

tigo 142. 0, CTN), não é possível

dizer que o objeto dessa mesma

relação seja indisponível. A justifi­

cativa para essa afirmação decorre,

em primeiro lugar, do texto cons­

titucional.

Nos termos do artigo 150. 0, pará­

grafo 6. 0 da Constituição, os entes

da Federação poderão instituir

isenções de seus tributos, desde

que o façam por lei específica. Isso

significa que poderão optar pelo

não exercício da competência tri­

butária que lhes foi atribuída e , as­

sim, excluir da incidência tributá­

ria determinados fatos ou condu­

tas. Tal opção pode ter motivação

política, econômica ou social e o

Único requisito constitucional para

tanto é a previsão do beneficio em

lei própria.

Some-se a essa exigência o dever

de o ente prever o impacto que tal

renúncia de receita irá causar no

orçamento, além de outras provi­

dencias relacionadas à responsabi­

lidade fiscal na gestão de recursos

públicos, como a eventual criação

de m edidas (financeiras) de com­

pensação da renúncia, nos termos

do artigo 14. 0 da Lei Complemen­

tar n. 0 101/2000, a Lei de Res­

ponsabilidade Fiscal (LRF).

Ademais, segundo dispõe o CTN,

os entes poderão conceder parce­

lam entos de débitos tributários,

com possível concessão de anistia

a penalidades, sem prejuízo, ainda,

de perdão de dívidas tributárias

já constituídas. A única condição

para tanto é a previsão em lei das

condições e limites das dispensas

de pagamento de tributos, multas

e juros e a observância do artigo

14.0 da LRF.

Conforme se vê, portanto, o or­

denamento brasileiro contem­

pla diversas hipóteses em que o

quantum objeto da relação jurídica

tributária é objeto de disposição.

A condição comum para todas as

hipóteses é a previsão em lei. E

não poderia ser de outro modo.

Sendo o tributo a principal fon ­

te de financiam ento do Estado, a

opção pelo não recebimento inte­

gral da receita tributária deve ser

resultante do processo que revele

a representatividade democrática,

já que estaríamos diante da renún­

cia de uma recei ta essencial para o

funcionam ento do Estado e cujo

não recebimento revela, ainda que

f

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indiretamente, o investimento pú­

blico no setor ou área beneficiada.

A transposição dessa mesma racio­

nalidade para o regime da arbitra­

gem é simples: uma vez estabele­

cidos em lei os critérios jurídicos

segundo os quais a arbitragem

tributária pode se realizar, não ha­

veria qualquer óbice relacionado

à natureza da receita tributária. A

indisponibilidade é um mito que

deve ser superado.

A essas considerações agregue-se,

ainda, duas outras que corroboram

a possível disposição da receita tri­

butária. Na hipótese de impugnação

do lançamento tributário pelo su­

jeito passivo e consequente instau­

ração de processo administrativo,

é possível que, ao fmal dessa etapa,

o Tribunal Administrativo compe-

tente ou conclua p-ela invalidade do

lançamento em todos os seus ter­

mos, ou pela retificação respectiva .

Em quaisquer dos casos, é evidente

que o montante devido será alte­

rado substancialmente. Esse ponto

reforça a disponibilidade do crédi­

to, na medida em que sua alteração

pode se dar no contexto do con­

tencioso administrativo. O limite

segue sendo a legalidade.

De outro lado, conforme já men­

cionado linhas acima, a adoção da

arbitragem seria uma opção a ser

exercida pela administração, em

face, exatamente, de um conflito

cuja solução seria melhor cons­

truída por juízes técnicos . Não se

trata de imposição ao Poder Públi­

co nem sequer solução obrigató­

ria em detrimento da via judicial.

A implementação de um regime

como esse no Brasil teria por fi­

nalidade conferir às partes de um

litígio tributário (atual ou futuro)

a alternativa de acesso a tal meio,

que, em alguns casos, pode se re­

velar mais justo, célere e eficiente

do que os métodos tradicionais de

solução de disputa.

Sendo assim, em vez de se revelar

como algo que colocaria em risco

a integridade do crédito tributá­

rio, a extensão da arbitragem para

causas tributárias seria vetor de

ampliação da segurança jurídica e

realização da justiça fiscal, na me­

dida em que asseguraria a resolu­

ção potencialmente mais eficaz do

litígio, sem prejuízo da observân­

cia de todas as garantias constitu­

cionalmente previstas: isonomia,

legalidade e publicidade são apenas

algumas delas.

' ' A extensão da

arbitragem para

causas tributárias seria

vetor de ampliação

da segurança jurídica

e realização da

justiça fiscal, na

medida em que

asseguraria a resolução

potencialmente

mais eficaz do

litígio, sem prejuízo

da observância de

todas as garantias

constitucionalmente

previstas: isonomia,

legalidade e

publicidade

O princípio da isonomia está pre­

visto no artigo 15 O. o, inciso li da

Constituição e assegura a ausência

de discriminação em matéria tri­

butária ao proibir que os entes da

Federação instituam tratamento

desigual entre contribuintes que

se encontrem em situação equiva­

lente, vedada "qualquer distinção

em razão de ocupação profissional

ou função por eles exercida, inde­

pendentemente da denominação

jurídica dos rendimentos, títulos

ou direitos".

A não discriminação na hipótese

de arbitragem restaria plenamente

observada diante do cumprimento

de uma outra garantia: a publici­

dade das decisões. Como se sabe,

cumprimento da justiça formal

entre os jurisdicionados se dá pela

universalidade das decisões judi­

ciais - este, aliás, é um parâmetro

para aferir a correção da decisão

no âmbito da teoria da argumen­

tação. Sendo as decisões públicas,

por critérios de isonomia, casos

que possuam os mesmos pressu­

postos fáticos e jurídicos devem

ter o mesmo desfecho; salvo, na­

turalmente, elementos discrimi­

nadores que sejam suficientes para

afastar a aplicação do precedente

ou mesmo argumentos superve­

nientes que superem a justificação

da decisão anteriormente tomada.

No que se refere à legalidade,

entendemos que esse requisito

estaria atendido tanto pela altera­

ção às regras do CTN, para que

houvesse a previsão da suspensão

da exigibilidade do crédito du­

rante o processo arbitral, bem

como a inclusão da sentença ar­

bitral como forma de extinção da

relação jurídica tributária, quan­

to pela modificação da Lei n. 0

9.307 I 1996, que dispõe sobre

arbitragem no Brasil. Nesse úl­

timo caso, bastaria a inclusão de

mais um par<'tgrafo ao artigo 1. 0,

para dispor sobre a possibilidade

de a arbitragem com a adminis­

tração pública abranger litígios

com particulares.

CAAD- Arbitragem Tributaria I 2018 19

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ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA

Além disso, não seria desproposi­

tado cogitar-se de limite máximo

do valor em discussão para que

haja a opção pela arbitragem, tal

como ocorre em Portugal, bem

como restrições quanto à maté­

ria especificamente arbitrável,

também à luz da experiência por­

tuguesa, e inclusive para fins de

testar a viabilidade do instituto no

país. Todo esse detalhamento esta­

ria previsto em lei, assegurando-se

a presença do Único requisito para

a disposição da receita tributária:

a representatividade democrática.

A partir dessas considerações mais

gerais, o próximo item terá por

objeto delinear, ainda que modo

exemplificado, quais matérias se­

riam essas. O objetivo é caminhar

no sentido da estruturação mais

concreta do regime, e assim, con­

tribuir para o fom ento do debate

público sobre o tema.

'' A escolha pelo

processo arbitral deve

resultar na renúncia

das outras vias

possíveis de resolução

de disputa em matéria

tributária e a decisão

dela resultante é

definitiva e irrecorrível

para ambas as partes

10 I CAAD- Arbitragem Tributária I 2018

3. LIMITES E APLICAÇÃO POSSÍVEl: CONTROlE DE lEGAliDADE E QUAliFICAÇÃO JURÍDICA DE FATOS

O regime de arbitragem tributá­

ria em Portugal apresenta limi­

tes quanto ao valor da disputa e

em relação às matérias passíveis

de submissão. No que se refere

ao valor, serão arbitráveis causas

de até € 1 O milhões e, quanto às

matérias, o CAAD está limitado à

aferição da legalidade de atos tri­

butários. Resta saber quais seriam

esses limites no Brasil. Desde logo

saliente-se que não entraremos

na especificação dos valores, con­

siderando as restrições de espaço

deste artigo. Nosso foco estará na

construção dos limites relativos às

matérias arbitráveis.

Um olhar específico para o caso

brasileiro revela, de plano, a impos­

sibilidade de submeter à arbitragem

questões relativas à constituciona­

lidade de normas tributárias. Tal

restrição decorre do próprio texto

constitucional, que vincula a apre­

ciação de tais temas à análise do Po­

der Judiciário no geral e ao Supre­

mo Tribunal Federal, em específico

- sequer os tribunais administra ti­

vos detém essa competência.

Aparte dos temas constitucionais,

que permeiam grande parte das

discussões tributárias, temos, ain­

da, a possibilidade de um debate

voltado à legalidade abstrata ou

concreta da norma tributária. Nes­

ses casos, diferente do que ocorre

com a matéria constitucional, não

há uma vedação absoluta quanto à

possibilidade de se arbitrar temas

relacionados com a legalidade. Isso

se dá especialmente nos casos em

que a delimitação do fato passível

de gerar a incidência tributária de­

penda de uma qualificação jurídica

específica e objeto central de dú­

vida. Esse, parece-nos, seria o ce­

nário ideal para atrair a arbitragem

para o direito tributário.

Do ponto de vista da legalidade

in abstrato, seria possível cogitar

de se instaurar a arbitragem antes

mesmo da prática do fato que re­

sultaria na incidência do tributo.

O objetivo seria evitar litígio fu­

turo, pela determinação prévia da

regra tributária aplicada ao caso.

Na hipótese de o lançamento tri­

butário já realizado, por sua vez, a

arbitragem se revelaria como meio

alternativo aos processos adminis­

trativo e judicial. Em quaisquer

dos casos, a escolha pelo processo

arbitral deve resultar na renúncia

das outras vias possíveis de resolu­

ção de disputa em matéria tribu­

tária e a decisão dela resultante é

definitiva e irrecorrível para am­

bas as partes.

Como exemplo de aplicação con­

creta possível do regime no direi­

to tributário, seja antes ou depois

do lançamento, cite-se os casos

de classificação fiscal. No Brasil, a

incidência de tributos aduaneiros

e sobre a produção depende da

correta identificação do bem na

Nomenclatura Comum do Mer­

cosul (NCM), o que implica co­

nhecer detalhes técnicos do pro­

duto. As dúvidas ou o desacordo

entre Fisco e contribuinte sobre a

correta classificação são frequen ­

tes e a interpretação em um ou

outro sentido pode resultar em

alíquotas divergentes e possíveis

autuações.

Recentemente, o Tribunal Admi­

nistrativo federal, denominado

Conselho Administrativo de Re­

cursos Fiscais (CARF), deparou­

-se com a necessidade de decidir

se os calçados produzidos pela

empresa Crocs Brasil Comércio

de Calçados Ltda. deveriam ser:

classificados como "sandália de

borracha" ou "sapato impermeá­

vel". O impacto tributário seria

indiferente, já que em ambos os

casos a alíquota seria zero. No

entanto, tratando-se de "sapa­

to impermeável" ficaria sujeito

a um valor antidumping de US $

13,00 o par6.

Caso semelhante e igualmente re­

cente foi o da Nestlé Brasil Ltda.,

no qual se discutiu, também no

âmbito do CARF, se as barrinhas

de cereal seriam produtos de con­

feitaria ou preparações feitas com

flocos de cereais. Nessa situação,

a classificação fiscal teria impacto

sobre o montante de imposto so­

bre produtos industrializados7.

Some-se a esses tantos outros

debates sobre a correta interpre­

tação de bens na lista da NCM:

em sua grande maioria, são casos

que seriam melhor resolvidos por

técnicos das áreas respectivas que

poderiam, com segurança, indicar

a correta classificação do produ­

to. É evidente, então, que, nessas

situações, a arbitragem tributária

seria um meio mais eficiente e

preciso de solucionar o conflito

- seja preventivamente, seja após

o lançamento tributário, como

forma alternativa ao processo ad­

ministrativo e judicial. Isso porque

o profissional técnico (como um

químico ou um engenheiro, por

exemplo) poderia, ao conhecer de

forma profunda as características

do produto, melhor dizer a sua

classificação, definindo o processo

de subsunção em casos que o ope-

Page 6: ARBITRAGEM TRIBUTARIA NO DIREITO BRASILEIRO · ARBITRAGEM TRIBUTARIA NO DIREITO BRASILEIRO TATHIANE PISCITELLI* Professora Universitária ANDRÉA MASCITTO* Advogada 6 I CAAD-Arbitragem

r ada r do direito pouco consegue

avançar .

Ao lado das questões relacionadas

à adequada classificação fiscal, há

outras hipóteses nas quais o uso da

arbitragem se mostra como forma

mais adequada de se r esolver a dis­

puta tributária . Ainda nos limites

do controle da legalidade do ato

administrativo , há casos em que a

interpretação sobre a qualificação

juddica de determinados fatos , ou

dem anda um profissional especia­

lista no tem a, ou depende de ou­

tras áreas do conhecimento, para

além do direito. Para ilustrar esse

ponto , tome-se como exemplo a

realidade imposta pela economia

digital.

Em muitos desses casos, faz-se

n ecessário um conhecimento

tecnológico apurado para com­

preender a extensão da materia­

lidade da qual r esulta a incidência

tributária - os conceitos técnicos

de Inj rastructure as a Service, Plat­

jorm as a Service e S?Jtware as a Ser­

vice presentes nas operações de

computação na nuvem são fun­

dam entais para a correta deter -

minação da incidência tributária

nessas hipó teses, especialmente à luz do m odelo tributário brasilei­

ro, que traz consigo dois tributos

de competência distinta em nlvel

subnacional. A eleição de um ár ­

bitro com conhecimentos t écni ­

cos n essa área sofisti caria o de­

bate , conferindo maior segurança

tanto à administração quanto ao

contribuinte .

Com o se vê , em todas as situa­

ções m encionadas exemplifica­

dam ente , o obj etivo não é pon­

derar sobre a constitucionalidade

ou não da cobrança tributária:

pre tende-se, apenas, instrumen­

talizar o debate com elem entos

técnicos e esp ecializados, capazes

de fornecer uma convicção m ais

clara e segura acer ca da incidên­

cia tributária . Em n enhum caso,

cogita-se de disponibilidad e da

r eceita tributária ou m esm o na

desconsideração do poder de

tributar. Ao contrário. Pelo uso

da arbitragem, é posslvel atingir

termo justo de incidência , sem

prescindir da segurança juddica

necessária e adequada prestação

jurisdicional.

4.CONCLUSÕES

As observações aqui apresenta­

das tiveram por obj etivo suscitar

o debate sobre a p ossibilidade

da ext ensão do regime de arbi ­

tr agem par a t em as tributár ios

no contexto do o rdenam ento

jurldico brasileiro . Conform e

amplam ente debatido , super ado

o mito da indisponibilidad e da

receita tributária e obser vados

os constrangimentos institucio­

nais, a aplicação da arbi t r agem

no direito tributári o r esulta em

ganhos in·efutáveis , na m edid a

em que se inser e na melhoria do

ambiente institucional no qual os

debates tributários se desenvo l­

vem . Por essa razão, jogar luzes

sobre o t ema é m edida urgente e

necessária.

* Tathiana PiscitelLi , Professora de Direito Tributário e Finanças Públicas da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas. Coordenadora do grupo de pesquisa "Metodos Alternativos de Resolução de Disputa em matéria tr ibutária" na mesma instituição. Doutora e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Uni versidade de São Paulo.

* Andn~a Mascitto , Advogada da área tributária do Pinheiro Neto Advogados. Coordenadora do grupo de pesquisa "Métodos Alternativos de Reso lução de Disputa em matéria tributária" na

Fundação Getulio Vargas. Professora em cursos de graduação e pós-graduação em São Paulo. Mestre em direito tribu tário pela Pontifícia Uni versidade Católica de São Paulo.

I . Cf. Conselho Nacional de Justiça; justiça em números, 2016 ; Pp. 244-245; disponí,-el em:

htt p: l I www.cnj.jus.brl filesl conlcudolarqui ,·o/20161 I Ol b8f46bc3dbbiT34493 1 a9335799 15488.pclf

2. Na mecüda em que não cabe ao Fisco levar a disputa ao Jucüciário quando vencido na djsputa administ1-ativa.

3. Fonte: http:/ l idg.carr.fazenda.gov. br l dados-abertos. RS 655 Bill1ões, dado o câmbio de RS 3,9 167 .

4. Fonte: http: l l idg.carf.fazenda.gov.br l dados-aber tos. RS 15 mi l ao câmbio de RS 3,9 16 7 (151 12120 17) .

5. O artigo 31 da Lei de arbitragem (Lei n° 9. 307 I 1996) equaliza os efeitos da scntcnl-" arbitral e daquela emanada pelo Poder Judiciário. Sua rc,·isão pelo Judiciário estaria restr ita às 8 hipóteses

previstas no artigo 32 ela mesma lej. A jurisprudência Yem admitindo a revisão de modo excepcional, apenas em caso de clara nulidade, ilegalidade ou inconstitucionalidade no procedimento

(questões de ordem formal) .

6. Mais detalhes em: https:/ l "~'·w.jota.infoltributariolcarf-julga-tributacao-de-barra-de-cereal-231 020 17 .

7. https: I I www. jota. infoltributariol carf-julga-tributacao-dc-crocs- 11 092017.

CAAD- Arbitragem Tributária I 2018 111