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1. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo realizar um estudo comparativo entre as obras “Marília de Dirceu” de Tomás Antônio Gonzaga e “O Romanceiro da Inconfidência” de Cecília Meireles. Aqui faremos uma breve análise dos poemas desses célebres autores através da demarcação e confronto de passagens da poesia de Cecília que venham a ter alguma identificação ou mesmo pontos que se contraponham com as características da poesia de Tomás Gonzaga. 2. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA E A SUA MARÍLIA Marília de Dirceu, obra de Tomás Antônio Gonzaga é uma lírica amorosa que foi publicada em livro em 1792. Esta obra poética de Gonzaga conta uma história de amor vivida pelo próprio autor, que se intitula Dirceu. A obra conta a história de amor vivida por Tomás Antônio Gonzaga e sua noiva Maria Dorotéia Joaquina de Seixas (Marília). Uma história de amor que vem a acabar com força política numa fase em que o absolutismo português tentava garantir seu poder sobre a colônia brasileira. A obra de Gonzaga expõe e nos ajuda a compreender o papel da mulher na sociedade brasileira durante o período da Inconfidência. Dirceu um homem já de meia idade se apaixona por uma jovem moça, Marília que de pronto o corresponde. Eles começam a viver uma grande história de amor e apaixonados para o futuro e planejam o casamento, no entanto, seus planos são rompidos em face da prisão de Dirceu que julgado

Arcadismo - Trabalho

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Arcadismo brasileiro

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1. INTRODUO O presente trabalho tem por objetivo realizar um estudo comparativo entre as obras Marlia de Dirceu de Toms Antnio Gonzaga e O Romanceiro da Inconfidncia de Ceclia Meireles. Aqui faremos uma breve anlise dos poemas desses clebres autores atravs da demarcao e confronto de passagens da poesia de Ceclia que venham a ter alguma identificao ou mesmo pontos que se contraponham com as caractersticas da poesia de Toms Gonzaga.

2. TOMS ANTNIO GONZAGA E A SUA MARLIAMarlia de Dirceu, obra de Toms Antnio Gonzaga uma lrica amorosa que foi publicada em livro em 1792. Esta obra potica de Gonzaga conta uma histria de amor vivida pelo prprio autor, que se intitula Dirceu. A obra conta a histria de amor vivida por Toms Antnio Gonzaga e sua noiva Maria Dorotia Joaquina de Seixas (Marlia). Uma histria de amor que vem a acabar com fora poltica numa fase em que o absolutismo portugus tentava garantir seu poder sobre a colnia brasileira. A obra de Gonzaga expe e nos ajuda a compreender o papel da mulher na sociedade brasileira durante o perodo da Inconfidncia.Dirceu um homem j de meia idade se apaixona por uma jovem moa, Marlia que de pronto o corresponde. Eles comeam a viver uma grande histria de amor e apaixonados para o futuro e planejam o casamento, no entanto, seus planos so rompidos em face da priso de Dirceu que julgado pela conjuntura mineira condenado priso. E chegando ao fim a Inconfidncia Mineira, Dirceu exilado para Moambique, este fato acaba de vez com as esperanas de Dirceu em casar-se com Marlia. Mas a moa apesar da distncia permanece apaixonada e fiel ao seu amado at a morte. Dirceu comea a contar sua histria de amor em um perodo que antecede a sua priso, relata a histria de um homem apaixonado que no consegue se aproximar de sua amada porque a famlia da moa no aceita o cortejo de um homem mais velho e pobre, por isso tentam arranjar-lhe outro pretendente. Nesta etapa o homem enaltece a beleza da mulher amada ao mesmo tempo em que tenta provar que o homem ideal para ela. O romance que j no iniciou muito bem envereda por caminhos ainda mais difceis, depois de conseguir noivar com a moa a muito custo, Dirceu preso por est em uma reunio na qual junto a fazendeiros, padres e soldados e seu amigo Claudio discutem sobre poltica e falam sobre a independncia da colnia. Trados eles so denunciados e acabam julgados pela conjurao mineira.Mas tendo tantos dotes da ventura,S apreo lhes dou, gentil pastora,Depois que teu afeto me seguraQue queres do que tenho ser senhora. bom, minha Marlia, bom ser donoDe um rebanho, que cubra monte e prado;Porm, gentil pastora, o teu agradoVale mais que um rebanho e mais que um trono.Graas, Marlia bela,Graas minha estrela!Os teus olhos espalham luz divina,A quem a luz do Sol em vo se atreve;Papoula ou rosa delicada e finaTe cobre as faces, que so cor da neve.Os teus cabelos so uns fios douro;Teu lindo corpo blsamos vapora.Ah! No, no fez o cu, gentil pastora,Para glria de Amor igual tesouro!Graas, Marlia bela,Graas minha estrela!Como podemos observar no trecho destacado da primeira parte da obra de Gonzaga, ele tenta provar que um bom partido para moa mostrando os dotes que ele pode oferecer a sua amada. Ao mesmo tempo ele enaltece a beleza de Marlia. Para Dirceu tudo lembra a sua amada, a beleza simplria da vida pastoril descrita por ele parece querer demonstrar a leveza do amor sublime que Dirceu sente por aquela. Percebe-se tambm em seus versos neste primeiro momento a valorizao da natureza e a forma como suas palavras so capazes de projetar a imagem do que descrito para o leitor. Podemos afirmar que h a caractersticas que so comuns ao arcadismo como a escolha de um cenrio rstico e campestre que parece completar o cenrio de um amor sublime. E tudo isso sem exageros, a no ser na demonstrao clara do amor que Dirceu sente por Marlia. J na priso, Dirceu escreve em versos o amor que sente por Marlia, o autor enaltece a beleza da moa de forma singela e descreve em sua poesia a imensa saudade que sente de sua amada. Nesta fase o autor mostra sua angstia e insegurana com relao ao futuro. O sentimento de injustia e a solido, somados a expectativa de sua morte rompem com o equilbrio e linearidade da poesia clssica. O tom sereno at ento impresso em sua poesia substitudo pelo sentimentalismo e pelo relato emocionado de um homem que v seu futuro nas mos de pessoas injustas.

Lira XI

Minha bela Marlia, tudo passa;A sorte deste mundo mal segura;Se vem depois dos males a ventura,Vem depois dos prazeres a desgraa.(...)

A devorante mo da negra MorteAcaba de roubar o bem que temos;At na triste campa no podemosZombar do brao da inconstante sorte:Qual fica no sepulcro,Que seus avs ergueram, descansado;Qual no campo, e lhe arranca os frios ossosFerro do torto arado.

Ah! enquanto os Destinos impiedososNo voltam contra ns a face irada,Faamos, sim, faamos, doce amada,Os nossos breves dias mais ditosos.Um corao que, frouxo,A grata posse de seu bem difere,A si, Marlia, a si prprio rouba,E a si prprio fere.

A segunda parte da lira de Gonzaga traz as marcas de sua priso. Ele demonstra nestes versos a dor pela distncia da mulher amada, pela injustia sofrida e pela solido do exlio. Toda essa amargura descrita por Dirceu vai imprimir em seus versos caractersticas pr- romnticas. Como podemos observar a tristeza e a falta de esperana toma conta de Dirceu que j no consegue vislumbrar um futuro glorioso para seu romance com Marlia. H nestes versos de Gonzaga a forte presena de verbos no passado indicando o saudosismo de Dirceu.

Lira XX

No sei, Marlia, que tenho,Depois que vi o teu rosto,Pois quanto no MarliaJ no posso ver com gosto.Noutra idade me alegrava,At quando conversavaCom o mais rude vaqueiro:Hoje, bela, me aborreceInda o trato lisonjeiroDo mais discreto pastor.Que efeitos so os que sinto?Sero efeitos de Amor?

Saio da minha cabanaSem reparar no que fao;Busco o stio aonde moras,Suspendo defronte o passo.Fito os olhos na janelaAonde, Marlia bela,Tu chegas ao fim do dia;Se algum passa e te sada,Bem que seja cortesia,Se acende na face a cor.Que efeitos so os que sinto?

Sero os efeitos de Amor?

Esses versos so escritos quase que como uma confisso, ou desabafo de um homem que por muito tempo idealizou uma vida com a mulher amada e que hoje se depara com uma vida repleta de decepes. A solido, a saudade e a falta de perspectiva no futuro d um tom buclico que imprime certa individualidade a esta obra de Gonzaga.

Esta obra muito importante porque marca a passagem entre o arcadismo e o romantismo. Toms Antnio Gonzaga, assim como Claudio Manoel da Costa e Manoel Incio da Silva Alvarenga, entre outros, imprimiram em suas obras um romantismo que traa a Arcdia. Estes autores trouxeram para seus textos uma doura e um sentimentalismo que at ento no se via nos textos Arcadistas. Os autores do arcadismo por medo e obedincia a uma autocracia opressora no se permitiam imprimir em suas obras as suas impresses sobre o mundo que os cercavam e o sentir do poeta era substitudo pela apatia imposta por uma poltica absolutista. Sobre o romantismo na obra desses autores Oswald de Andrade em seu texto A Arcadia e a Inconfidncia afirmou:Um sopro romntico embala o sentimento de Gonzaga e de Alvarenga Peixoto e os funestos pressgios de Cludio Manuel da Costa, onde soa prematuro o mal do sculo.

Sobre Gonzaga, Oswald de Andrade afirma que se este deve ser condenado por alguma coisa que seja por sua inovao potica j que este crime, o de trair a velha poesia rcade ele cometeu, mas julg-lo por trao poltica injusto, uma vez que desta acusao Gonzaga inocente.Com Gonzaga estamos compromissados. romantismo. Ele e seus companheiros de inconfidncia tambm traem a f jurada aos acentos mortos da velha poesia. Mas no h como movimento poltico, traio alguma. H adivinhao e destino de um povo que se emancipa e cria sua vida prpria.

3. CECLIA MEIRELES E A INCONFIDNCIAEm Romanceiro da Inconfidncia, Ciclia Meireles retrata a sociedade de Minas Gerais, na segunda metade do sculo XVIII. Uma sociedade que, inspirada nos ideias iluministas, lutavam para se desprender da dependncia da coroa Portuguesa, que cobra altas cargas tributrias sobre o ouro extrado das Minas Gerais. Nesse contexto, os trabalhadores juntamente com a populao e alguns poetas rcades organizaram uma rebelio para proclamar a independncia e a proclamao de uma repblica na regio de Minas. Entre os inconfidentes estavam os padres Carlos Correia de Toledo, o coronel Joaquim Silvrio dos Reis e poetas como Claudio Manoel da Costa e Tomas Antonio Gonzaga. Nesta obra Ceclia Meireles consegue acoplar a literatura Histria de forma singular, em sua obra ela traz reflexo, narra, mostra, atravs de suas palavras, o lrico, o pico, o potico. A histria. Tem o cuidado de se manter fiel a sua inteno, que exposta logo no inicio de suas palavras.Todo o presente emudeceu, como platia humilde, e os antigos atores tomaram suas posies no palco. Vim com o modesto propsito jornalstico de descrever as comemoraes de uma Semana Santa; porm os homens de outrora misturaram-se s figuras eternas dos andores; (...) na procisso dos vivos caminhava uma procisso de fantasmas (...). Era, na verdade, a ltima Semana Santa dos inconfidentes: a do ano de 1789. Podemos dividir a obra em alguns perodos. Os Romances IV ao XIX retratam a descoberta do ouro, a chegada dos mineradores, as lendas, o sofrimento dos negros, o romance de contratador Joo Fernandes com Chica da Silva e a traio do Conde de Valadares. Os versos refletem o sentimento de um povo preso pela corte que suga suas energias e seus impostos, como almas que esto mortas e precisam reviver No Romance XXI. A partir do Romance XXI ao LXXI os primeiros ideais de liberdade comeam a surgir, a insatisfao, todo os desejos e revoltas comea a ser colocados, os ideias iluministas j se fazem presente. Mas tambm as mscaras comeam a cair. Todos os planos formulados pelos idealistas contra a coroa portuguesa so entregues por Joaquim Silvrio dos Reis. Comea ento a caa aos conspiradores. O sentimento de traio pode ser captado atravs dos versos que seguem:(...) Ai, que o traioeiro invejoso junta s ambies a astcia. Vede a pena como enrola arabescos de volpia, entre as palavras sinistras desta carta de denncia! (...)

Nos romances finais o sentimento de melancolia e nos remete a versos que retratam o lamento pela calamidade mineira e por toda a tragdia que a se tornou a inconfidncia. Veja-se:E aqui ficamos todos contritos, a ouvir na nvoa o desconforme, submerso curso dessa torrente do purgatrio... Quais os que tombam, em crimes exaustos, quais os que sobem, purificados?

4. MARLIA DE DIRCEU EM O ROMANCEIRO DA INCONFIDNCIARefletindo o contexto histrico-social do Arcadismo no Brasil, os versos que seguem, de Ceclia Meireles, na obra O Romanceiro da Inconfidncia, representam as lacunas de realidade e fantasia. Doces invenes da Arcdia! Delicada primavera: pastoras, sonetos, liras, -entre as ameaas austeras de mais impostos e taxas que uns protelam e outros negam. Casamentos impossveis. Calnias. Stiras. Essa paixo da mediocridade que na sombra se exaspera. E os versos de asas douradas, que amor trazem e amor levam... Anarda. Nise. Marlia... As verdades e as quimeras.(...)

Marlia sempre aparece como figura que une os sentimentos de puro amor e de piedade pela perda, pelo sacrifcio herico da permanecer na solido at a morte. de suma importncia, considerar que a obra de Ceclia Meireles, O romanceiro da Inconfidncia, dialoga em determinados trechos com a obra de Antnio Gonzaga, Marlia de Dirceu, trazendo em seus poemas a figura de Marlia como representante de uma mulher que, deixada pelo amado, ainda cultiva, em seu ntimo, a fidelidade. Marlia representada nos poemas de Ceclia Meireles como uma mulher que borda o leno do exlio, entoando cantos de tristeza, saudade, abandono e medo. J Gonzaga representado como o homem que exilado para de tecer o enxoval e o vestido de noiva da amada.No poema, Enxoval interrompido, Ceclia estabelece um dilogo com a lira XXXIV de Antnio Gonzaga. Nessa lira, possvel perceber Gonzaga bordando o vestido de noiva para a amada Marlia e o enxoval para o casamento dos dois, Gonzaga expressa a liberdade dos sonhos do amor entre Marlia e Dirceu Os sonhos, que rodeiam a tarimba,/Mil coisas vo pintar na minha idia;/No pintam cadafalsos, no, no pintam/Nenhuma imagem feia./Pintam que estou bordando um teu vestido;/Que um menino com asas, cego e louro,/Me enfia nas agulhas o delgado,/O brando fio de ouro. ( Antnio Gonzaga).Em contra partida h o poema enxoval interrompido de Ceclia no qual percebemos a expresso das consequncias do exlio de Gonzaga que interrompe a bordadura do vestido de noiva e do enxoval acabando com o sonho de amor entre as personagens Dirceu e Marlia. Estrela da aurora,/fonte matinal,/j vistes e ouvistes desventura igual?/A agulha partiu-se./Quebrou-se o dedal( Ceclia Meireles).

Do enxoval interrompido

Aqui esteve o noivo, de agulha e dedal, bordando o vestido do seu enxoval.

Em maio, era em maio, num maio fatal; feneciam rosas pelo seu quintal. Por estrada e monte, neblina total. No perfil da lua, um nimbo mortal. (Mas quem l na nvoa

o amargo sinal?) A noite na Vila densa e glacial. O sono, embuado em cada beiral. Quem no dorme, sonha com seu enxoval.

A agulha, de prata, e de ouro, o dedal. Em haste de cera, ergue o castial para a turva noite lrio de cristal.

Sabeis, pastora, daquele zagal

que andava num prado sobrenatural? Teria inimigo? Teria rival?

O sono conversa em cada poial.

Sabeis, pastora, quem seja o chacal que os passos arrasta de Longe arraial? Eu vi sua lngua: um negro punhal. Que mortes fareja

o imundo animal? De prata era a agulha, e de ouro, o dedal. Em sonho traava, com doce espiral de brilhantes flores, novo madrigal.

Sabeis, pastora, por que o maioral manda pr algemas no louro zagal que tranqilo borda lrico enxoval?

Estrela de aurora, fonte matinal, j vistes e ouvistes desventura igual? A agulha partiu-se. Quebrou-se o dedal. Romperam-se as flores

- a que vendaval?

Procurais os rastos do infame chacal? Sumiram-se embaixo do trono real!

Soluam as guas em seu manancial. E em sedas que foram de seda e coral, vai rolando um triste orvalho de sal.

Sabeis, pastora, daquele zagal, que agora no borda seu rico enxoval?

No poema Cenrio, que descreve a casa do poeta Gonzaga, H a representao do ambiente melanclico da casa do poeta onde j no existe mais o amado bordando o vestido para sua noiva e sim a expresso da dor e do sofrimento causadas pelo exlio pelo interromper dos sonhos de dois amantes. esses restos de uma histria/de sonho, amor, prises, sequestros,/degredos, morte, acabamento... Ningum v mo nenhuma erguida,/com fios de ouro sobre o mundo,/para um bordado sem destino,/improvvel e incompreensvel/remate de ftuo vestido... ( Ceclia Meireles)

Cenrio

Passei por essas plcidas colinas e vi das nuvens, silencioso, o gado pascer nas solides esmeraldinas.

Largos rios de corpo sossegado dormiam sobre a tarde, imensamente, - e eram sonhos sem fim, de cada lado.

Entre nuvens, colinas e torrente, uma angstia de amor estremecia a deserta amplido na minha frente.

Que vento, que cavalo, que bravia saudade me arrastava a esse deserto, me obrigava a adorar o que sofria?

Passei por entre as grotas negras, perto

dos arroios fanados, do cascalho

cujo ouro j foi todo descoberto.

As mesmas salas deram-me agasalho onde a face brilhou de homens antigos, iluminada por aflito orvalho.

De corao votado a iguais perigos vivendo as mesmas dores e esperanas, a voz ouvi de amigos e inimigos

Vencendo o tempo, frtil em mudanas, conversei com doura as mesmas fontes, e vi serem comuns nossas lembranas.

Da brenha tenebrosa aos curvos montes, do quebrado almocafre aos anjos de ouro que o cu sustm nos longos horizontes,

tudo me fala e entende do tesouro

arrancado a estas Minas enganosas, com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.

Tudo me fala e entendo: escuto as rosas e os girassis destes jardins, que um dia foram terras e areias dolorosas,

por onde o passo da ambio rugia; por onde se arrastava, esquartejado, o mrtir sem direito de agonia.

Escuto os alicerces que o passado tingiu de incndio: a voz dessas runas de muros de ouro em fogo evaporado.

Altas capelas cantam-me divinas fbulas. Torres, santos e cruzeiros apontam-me altitudes e neblinas.

pontes sobre os crregos! vasta desolao de ermas, estreis serras que o sol freqenta e a ventania gasta!

Armado p que finge eternidade, lavra imagens de santos e profetas cuja voz silenciosa nos persuade.

E recompunha as coisas incompletas: figuras inocentes, vis, atrozes, vigrios, coronis, ministros, poetas.

Retrocedem os tempos to velozes que ultramarinos rcades pastores falam de Ninfas e Metamorfoses.

E percebo os suspiros dos amores quando por esses prados florescentes se ergueram duros punhos agressores.

Aqui tiniram ferros de correntes; pisaram por ali tristes cavalos. E enamorados olhos refulgentes

-parado o corao por escut-los prantearam nesse pnico de auroras densas de brumas e gementes galos.

Isabis, Dorotias, Heliodoras, ao longo desses vales, desses rios, viram as suas mais douradas horas

em vasto furaco de desvarios vacilar como em caules de altas velas clida luz de trmulos pavios.

Minha sorte se inclina junto quelas vagas sombras da triste madrugada, fluidos perfis de donas e donzelas.

Tudo em redor tanta coisa e nada: Nise, Anarda, Marlia...- quem procuro? Quem responde a essa pstuma chamada?

Que mensageiro chega, humilde e obscuro? Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja? Quem foge? Entre que sombras me aventuro?

Quem soube cada santo em cada igreja? A memria tambm plida e morta sobre a qual nosso amor saudoso adeja.

O passado no abre a sua porta e no pode entender a nossa pena. Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,

vejo uma forma no ar subir serena: vaga forma, do tempo desprendida. a mo do Alferes, que de longe acena.

Eloquncia da simples despedida: Adeus! que trabalhar vou para todos! (Esse adeus estremece a minha vida).

A representao de Marlia na obra de Ceclia est, entre outros poemas, no Do leno do exlio, no qual Marlia borda o leno da saudade. possvel perceber nos versos do poema a dor e a solido que a personagem sente devido o exlio do amado. Um ponto interessante de se contrapor que na lira de Marlia de Dirceu h a esperana do reencontro entre os amantes mesmo que atravs de sonhos, j no poema do leno do exlio h um monlogo direcionado a Gonalves que representa a impossibilidade de um reencontro temos como imagem da gua a morte, na qual o corpo do amado se vai com as guas salgadas do mar e a amada fica sozinha chorando pela perda do amado.

Do leno do exlio

Hei de bordar-vos um leno em lembrana destas Minas; ramo de saudade, imenso... lgrimas bem pequeninas.

(Ai, se ouvsseis o que penso!)

Ai, se ouvsseis o que digo, entre estas quatro paredes... Mas o tempo vosso amigo, que no me ouvis nem me vedes.

(Minha dor s comigo.)

E esta casa grande e fria, com toda a sua nobreza. Ai, que outra coisa seria, se preso estais, ver-me presa.

(Porm tudo covardia.)

Sei que ireis por esses mares. Sonharei vosso degredo, sem sair destes lugares por fraqueza, pejo, medo

(e imposies familiares.)

Hei de bordar tristemente um leno, com o que recordo... A dor de vos ter ausente muda-se na flor que bordo.

(Flor de angustiosa semente.)

Muito longe, em terra estranha, se chorais por Vila Rica, neste leno de bretanha, pensai no pranto que fica

( sombra desta montanha!).

Em toda a obra de Ceclia possvel perceber a presena de Gonzaga, seja em poemas que refletem o romance entre ele e Marlia, ou mesmo em poemas que destacam o autor como um personagem importante da inconfidncia mineira. Gonzaga um dos poetas mirando versos/e hipotticas ideias tambm o inconfidente, que fora preso pelos soldados no fim de maio.

Fim de maio

Andam as quatro comarcasem grande desassossego:vo soldados, vm soldados;tremem os brancos e os negros.Se j levaram Gonzagae Alvarenga, mais Toledo!Se a Cludio mandam recadospara que se esconda a tempo!Sentam-se na cama, os doentes.Choram de susto, os meninos.Mil portadores galopam.H mil coraes aflitos.Por aqui brilhava a Arcdia,com flores, verso, idlios...(Que querem dizer amores,aos ouvidos dos meirinhos?)

interessante comentar que a imagem romntica do poeta vai sendo desconstruda nos poemas de Ceclia. O poeta exilado esquece a amada Marlia e se casa com Juliana de Mascarenhas algo que permite ao leitor realizar a construo da imagem de um poeta infiel.

De Juliana de Mascarenhas

Juliana de Mascarenhas que andas to longe, a cismar, levanta o rosto moreno, lana teus olhos ao mar, que j saiu barra afora, grande e poderosa nau, Senhora da Conceio, Princesa de Portugal. Vai para o degredo um homem que breve irs encontrar -claros olhos de turquesa, finos cabelos de luar. Vai para o degredo um poeta que se no pde livrar de Vice-Reis e Ministros e Capito-General. E era a flor do nosso tempo! E era a flor deste lugar!

L se vai por essas ondas, por essas ondas se vai. Seca-lhe o vento nos olhos perolazinhas de sal;

seca-lhe o tempo no peito sua fora de cantar; as controvrsias dos homens secam-lhe no lbio os ais; e as saudades e os amores no sabe o que os fez secar.

Juliana de Mascarenhas, distante rosa oriental, estende os teus negros olhos por essas praias do mar: v se j no vai baixando, v se j no vai baixar, dentre as velas, dentre as cordas, dentre as escadas da nau, aquele que vem de longe, aquele que a sorte traz -quem sabe, para teu bem, -quem sabe, para seu mal...

Ai, terras de Moambique, ilha do fino coral, prestai ateno s falas que vo correndo pelo ar:

Aquele o que vem de longe, que se mandou degredar? Por trs anos as masmorras o viram, triste, a pensar. Os amigos que tivera, amigos que no tem mais, foram para outros degredos; -Deus sabe quem voltar! A donzela que ele amava, entre lavras do ouro jaz; na grande arca do impossvel deixou dobrado o enxoval, uma parte, j bordada, outra parte, por bordar. Muito longe Moambique.. - Que saudade a alcanar?

Juliana de Mascarenhas, Deus sempre sabe o que faz: pe teu vestido de tisso, bracelete, anel, colar. Mais do que Marlia, a bela, poders aqui brilhar. Vem ver este homem tranqilo que mandaram degredar.

IMAGINRIA SERENATA

Vejo-te passando por aquela rua mais aquele amigo que encontraram morto. E pergunto quando poderei ser tua, se vens ter comigo, de to negro porto.

Ah, quem pe cadeias tambm nos meus braos? Quem minha alma assombra com tanto perigo? Em sonho rodeias meus ocultos passos. Ouve a tua sombra o que, longe, digo?

Vejo-te na igreja, vejo-te na ponte, vejo-te na sala... Todo o meu castigo que no me veja, tambm, no horizonte. Que oua a tua fala sem me ver contigo.

Na minha janela, pousa a luz da lua. l no mais consigo descanso em meu sono. Pela noite bela, o amor continua. Deita-me consigo aos ps do seu dono.No poema Imaginria Serenata, atravs da voz de Marlia, a imagem do poeta surge como um fantasma que aparece em todos os lugares atravs dos sonhos e sono de Marlia. Percebemos neste poema a imagem do mito do amor que dura para sempre, sendo destruda pelo casamento de Gonzaga com Juliana. E no poema de Ceclia Meireles que a imagem de poeta apaixonado comea entrar em decadncia. Conforme encontrada no Romance LXXII ou de maio no oriente, em que parece que a antigo ouvidor parece inocentada pelo eu lrico. Porm, h a existncia das vozes murmuradeiras, que vo reprovar as atitudes tomadas por ele.

4. A IMAGEM DE MARLIA BORDANDO UM LENO PARA O AMADO

Em contraste Marlia cantada e idealizada pelo poeta Gonzaga, em Marlia de Dirceu, Ceclia Meireles cria uma personagem representando a mulher que tem sentimentos de saudade, tristeza, medo e, abandonada, borda o leno do exlio, esperando seu amado. claramente perceptvel a grande diferena que se encontra entre a personagem celebrada e bonita e a figura esquecida e feia. No Romance LXX ou do leno do exlio, a letra que borda o leno do exlio expressa a imagem de uma mulher com forte sentimento de tristeza, revelando medo e saudade, conforme est explcito no verso que segue:

Sei que ireis por esses mares.Sonharei vosso degredo,sem sair destes lugares,por fraqueza, pejo, medo.(e imposies familiares.)

J no Romance LXXIII ou da inconformada Marlia, vemos que a personagem revela o seu carter contestador nos dilogos, afirmando que jamais o amado iria esquec-la, S se tivesse alienado! . Em passagens distintas encontramos, inclusive, a voz do corao, o que ressalta que a mulher se sente inconformada e se desespera e rejeita a realidade do seu destino. Conforme mostrado no trecho que segue:

(...) -corao desventurado -Talvez se tenha esquecido... Talvez se tenha casado... Seu lbio, porm, gemia: S se estivesse alienado!

5. CONCLUSOComo demonstrado no corpo de todo o trabalho, o Romanceiro da Inconfidncia, de autoria de Ceclia Meireles, retrata a Inconfidncia Mineira, mostrando os dramas de seus representantes, relatando o trabalho da minerao feito pelos desbravadores do serto. Mostrando-se bastante presente tambm o esprito liberal, o combate ao absolutismo portugus e as ideias de independncia; essas ltimas, inspiradas na independncia dos EUA e da Frana. Alm disso, no se pode deixar de mencionar que a obra de Ceclia tambm aborda a questo do amor e dos sentimentos das pessoas que se encontravam envolvidas no movimento revolucionrio da Inconfidncia. Ao se debruar sobre a revoluo inconfidente, o cenrio histrico em que se encontravam as Minas Gerais e o Brasil naquele perodo, alm do amor e dos sentimentos humanos de uma forma geral, a autora no tinha como no se remeter figura de Tmas Antnio Gonzaga e a sua Marlia, uma vez que, apesar de ser usualmente enquadrado como sendo um autor rcade, Gonzaga tratou, em sua famosa obra, de temas eminentemente romnticos. Em Marlia de Dirceu, Tmas Antnio Gonzaga expe toda a sua sensibilidade. O autor no se limita a descrever as paisagens e a natureza do Brasil, tratando ali das angstias e incertezas dos envolvidos no processo de inconfidncia. Alm disso, aborda o amor entre Dirceu e sua amada; no mais um amor pueril, mas um amor ardente e cheio de desejos. A poesia de Gonzaga, assim como de outros poetas mineiro do perodo, deixam um pouco de lado as posturas plidas e inspidas da Arcdia e se voltam para temas mais humanizados, voltados para o interior humano. Os poetas inconfidentes deixam ento de se preocupar tanto com a descrio das paisagens e do externo, para abordar temticas mais voltadas para o interno, aquilo que no se enxerga com os olhos.Portanto, no de se estranhar que possamos considerar Marlia de Dirceu uma obra romntica, j que a mesma aborda temas relacionados no s ao ambiente que circundam as personagens ali encontradas, mas aos sentimentos vivenciados por aqueles, ou seja, ao interior dos seres humanos e sua individualizao.Assim, com base no exposto, pode-se afirmar que Meirelesmantm um dilogo com a obra potica de Gonzaga, estabelecendo relaes importantes entre ambas, seja por se enquadrarem na temtica romntica, seja por tratarem de tema importantssimo ocorrido no cenrio histrico brasileiro.

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