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ARENAS ARENAS ARENAS ARENAS negros, mulheres, periferia, cultura e resistências Editora BALAIO ARENAS AMAZÔNICAS ARENAS Rogerio Almeida, Daniel Leite e Lilian Campelo

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negros, mulheres, periferia, cultura e resistências

EditoraBALAIO

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R o g e r i o A l m e i d a , D a n i e l L e i t ee L i l i a n C a m p e l o

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1ª Edição

Santarém-PA2017

EditoraBALAIO

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ARENASAMAZÔNICAS

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negros, mulheres, periferia, cultura e resistências

R o g e r i o A l m e i d a , D a n i e l L e i t ee L i l i a n C a m p e l o

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AutoresRogerio AlmeidaLilian Campelo

Daniel Leite

Design editorial e diagramaçãoRoger Almeida e Luciano Silva

www.rl2design.com.br

RevisãoMaria de Nazaré Barreto Trindade

FotosCaio Romano – Traumas Vídeos

Lilian CampeloRosa Rocha

Thiane NevesNega Suh

Anselmo Bentes de OliveiraLaís Tavares

Ficha Catalográfica

Copyrigth © 2017 by Rogerio Almeida

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) (Bibliotecária Miriam Alves de Oliveira CRB2/ 583)

A447a Almeida, Rogerio HenriqueArenas amazônicas: negros, mulheres, periferia, cultura e resistências

/ Rogerio Almeida, Lilian Campelo, Daniel Leite — 1. ed. — Santarém: Balaio, 2017.

93 p. (Arenas amazônicas, 1)

ISBN 978-85-913900-2-1

Inclui bibliografias.

1. Mulheres – História - Pará. 2. Mulheres na cultura popular. 3. Cultura afro-brasileira. 4. Periferias - Belém (PA) 5. Grupos sociais. 6. Cultura popular - Belém (PA). I. Campelo, Lilian. II. Leite, Daniel. III. Título.

CDD: 22. ed.: 305.4098115

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Uma longa caminhada começa com o primeiro passo

Lao-Tsé

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AGRADECI

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AGRADECIMENTOS

CIMENTOS AG

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SMalungos, malungas....um monte de gente. Um cata-tau de manos/manas embarcaram nesta viagem, dentre os quais terei dívida eterna no campo da cessão de fotos com: Caio Romano - Trau-mas Vídeos, Lilian Campelo, Nega Suh, Thiane Neves, Rosa Rocha, An-selmo Bentes de Oliveira e Laís Tavares.

Zelaram pela diagramação e capa Luciano Silva e Roger Almeida, cou-be à Maria de Nazaré Barreto Trindade a carpintaria do texto, ajudou na divulgação do delírio Lucas Filho, embarcaram na atividade de cam-po, os ex-alunos/as, hoje profissionais, Lilian Campelo e Daniel Leite.

E ainda à Marluze Pastor, pelo prefácio. Uma baita mulher. Raio de luz em minha deformação humana.

É gente pra burro neste caminhar....

Ninguém viaja sozinho. Por mais sombrios que os dias possam parecer.  

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DEDICATÓRIADEDICATÓRIA

DE

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DEDICAT

A Pedro (filho), Isabella e Jonatan (sobrinhos). Tudo povo preto!

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APRESEN

TACÃO

O primeiro volume da série Arenas Amazônicas, dividida em três, organizada pelo jornalista e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufo-pa), Rogerio Almeida enfoca negros, mulheres, periferia, cultura e resistências na capital do Pará, Belém.

As sete narrativas assinadas por Almeida em par-ceria com alunos e ex-alunos, quando o mesmo traba-lhou na Universidade da Amazônia (Unama) dão corpo ao livro. Daniel Leite e Lilian Campelo fazem parte da empreitada.

Os textos, maioria publicados no site paulista Agência Carta Maior, sublinham ações coletivas de jovens e pessoas mais experientes em diferentes flancos: cultura, política, di-reitos humanos e cidadania.

As periferias da insular Belém, a exemplo da Pedrei-ra, Icoaraci, Terra Firme e Guamá, e região metropolitana, caso do bairro da Guanabara são notados fora do esquadro comum dos meios de comunicação da cidade, que preferem o aspecto policialesco.

Grafiteiros, DJs, educadores, professores, estudantes, biscateiros, aposentados e desempregados são personagens dos textos, que a partir de inúmeros coletivos se impõem como protagonistas de sua própria História, onde afirmam suas identidades coletivas ou individuais como negros, ar-tistas, cidadãos das “quebradas”, que em Belém são conheci-das como baixadas.

AP

RE

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Rios serpenteiam a cidade cortada por canais. Num deles, o da Mundurukus, à Rua dos Pretos, migrantes maranhenses oriundos do município de Cururupu, Baixa-da Maranhense a partir do Tambor do Crioula e da Escolinha do Reggae delimitam seus territórios como migrantes negros do vizinho estado. Assim, tambores de crioula, danças, canções, manifestações religiosas e ocupação de espaços públicos e ações em mídias digitais são alguns dos recursos usados.

Na Pedreira, bairro do amor e do samba, à Rua Álvaro Adolfo, o Coletivo Rádio Cipó germinou. O mesmo aglutinou gerações diferentes. O grupo hoje extinto, ganhou o mundo nos anos 2000. A vedete Dona Onete segue carreira com boa aceitação no país e fora dele. Os diferentes artífices continuam a atuar, a exemplo do DJ Montalvão, que segue em sua carreira autoral.

As mulheres ocupam lugar de destaque do volume um da série. Thiane Neves e Nega Suh são jovens ativistas do movimento negro, que em certa medida seguem os exemplos das pioneiras Zélia Amador e Nilma Bentes. Diferentes gerações ocupam a mesma trincheira.

Outra experiente ativista incensada no livro é a professora Hecilda Veiga. Históri-ca militante pela defesa dos direitos humanos do estado encerra a obra. A professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e o seu companheiro, o advogado Paulo Fontelles, assassinado na década de 1980 por defender camponeses na luta pela reforma agrária foram fundadores da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH).

Nos anos de exceção, a professora foi presa e torturada nos porões dos quartéis das forças armadas nacionais. Veiga estava grávida. Mesmo assim não houve compla-cência. Em diferentes momentos econômicos, históricos e políticos, apesar do cenário, sempre ocorreram formas de resistências. É esta a angulação desta série que ora se apresenta. A série é inspirada em educadores e ativistas comprometidos com as causas e lutas coletivas dos considerados vencidos.

O segundo volume, sem data para ser apresentado, enfocará a peleja das populações locais e suas formas de enfrentamento aos grandes projetos, que cimentam a trilha da condição colonial da região. O terceiro e último buscará tratar dos meios de comunicação populares. Nele, jornais e rádios do campo democrático serão sublinhados.

Este demorará um pouco. A missão exige tempo a ser investido em leituras de documentos e busca de personagens que fizeram parte de importantes publicações al-ternativas no estado.

Colaboração e parceria conformam a iniciativa, onde o autor contou com o apoio de revisores, diagramadores, gente que fez cessão de fotos, e por aí vai. Antes de qual-quer coisa a série Arenas Amazônicas é uma iniciativa coletiva, que apesar dos ventos contrários segue em resistência.

Saravá!

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PREFÁ

CIO

As Amazônia(s) é um mundo à parte. “Distante” dos principais centros de poder, historicamente tem sido a condição colonial o papel a ela imposto. Desta forma, desde tempos imemoriais as suas populações – em particular as ancestrais - experimentam toda ordem de vio-lência: cultural, física e simbólica.

Apesar da condição colonial e das violências, ribei-rinhos, camponeses, caboclos, indígenas e negros sempre forjaram as suas formas de resistências, ainda que invisibili-zados, ou notados numa perspectiva deturpada, como cida-dãos de segunda categoria, quando não exóticos.

Ao afrontarem a ordem em ocupações rurais e urba-nas, insistirem em seus cultos, não silenciarem seus tam-bores e cantos, manterem vivas suas narrativas e criarem novas, como o fazem os jovens da periferia com seus grafi-tes e outras formas de organização, afirmam que um outro campo/cidade, Amazônia (s) é possível.

Celebrar. É assim que tem de ser. Apesar de tempos sombrios. Ao promoverem seus acampamentos rurais, in-tervenções urbanas sinalizam que a contramão é o cami-nho. Assim, o educador Rogerio Almeida, migrante mara-nhense há quase duas décadas radicado no Pará, soma com educandos e ex-educandos registros sobre resistências de parentes de sua terra natal e do local que o acolheu.

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Marluze Pastor*

* É agrônoma e educadora – São Luís – MA.

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Daniel Leite e Lilian Campelo fazem par com ele neste primeiro volume da série Arenas Amazônicas. Os textos tratam de resistências. A cultura, a mulher, o negro e os jovens das baixadas configuram o centro de gravidade da publicação.

O livro alumia sobre vida e história de negras e negros no Pará, do Pará, do Maranhão, do Mundo. São sete narrativas, onde as vidas em cada uma de-las se misturam e viram milhares.

Ao tratarem sobre a Rua dos Pretos, “quebrada” de Belém, deparam-se com a maranhense Ana, nascida em Cururupu. É ela quem conduz parentes familiares para Belém, e recria seu universo cultural. Nesta direção fomenta festas religiosas, trabalho, amizades, manifestações tradicionais onde sobres-sai o tambor de crioula e, na afirmação da identidade que Ana e seu grupo conseguem o reconhecimento na região, Rua dos Pretos.

A narrativa passeia pelo histórico da formação de Belém, pela ocupa-ção das várzeas até chegar à descrição do tambor de crioula. Ana e seu grupo também levam para Cururupu o que adotou das tradições paraenses, além do tecnobrega e outras atualidades. No texto a discussão sobre migração de maranhenses (em muitas ocasiões, animada por governantes) é colocada su-tilmente, bem como outros temas, para debate.

Mulheres são de luta. Sempre o foram. O texto Amazônia – mulheres negras protagonizam a luta, registra o encontro proposital de duas gerações. Logo no início, rememora mulheres que contribuíram com as artes, as religi-ões de matriz africana, as irmandades e seguem contando a história de duas mulheres que foram alicerce na construção do Cedenpa e reconhecimento do Movimento Negro Paraense.

Parcela da história de pelejas das ativistas Zélia Amador e Nilma Bentes é registrada. Na segunda parte do texto Lilian e Rogério apresentam Thiane Ne-ves e Negra Suh. Elas erguem outros espaços de militância, a exemplo da Casa Preta. As batalhas das mesmas diferem das que foram enfrentadas por Zélia e Nilma. Em comum, as gerações possuem a ancestralidade, uma fortaleza.

Grafite, hip hop, trançado afro são expressões de arte e de luta da peri-feria. No texto Amazônia – jovens da região Metropolitana de Belém usam a cultura como forma de ação política, Rogerio e Daniel mostram a importância dessas expressões para luta política da periferia e singularmente tratam do bairro Guanabara de Ananindeua.

O texto pinça sobre as dificuldades da comunidade, a formação de li-deranças e as estratégias criadas por elas, como no caso de Michel e do Do-

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mingos, no uso de espaços públicos como o CRAS. Cá, fico a imaginar que as escolas públicas e privadas poderiam utilizar o grafite no dia no ensino da matemática e demais disciplinas. Os bairros ficariam mais coloridos e boni-tos, e as escolas agradáveis. Tudo pode ser mais bonito

A mesma trilha seguem os textos que tratam do Espaço Cultural Coisas de Negro, no distrito de Icoaraci, em Belém e do bairro da Terra Firme, bem como a experiência do Coletivo Rádio Cipó, no bairro da Pedreira. Inúmeros grupos, de diferentes linguagens em ações de fortalecimento da identidade de matriz africana.

De todos os texto, Ditadura na Amazônia – memória de uma mulher do front é sem dúvida o mais difícil de apresentar, tende-se a pedir o julgamen-to e condenação dos torturadores e, é sobre isso que Rogerio e Lilian falam quando se referem as ditaduras da América Latina (menos a do Brasil). Em boa hora, a história de Hecilda Veiga nos conta os horrores da ditadura, para que não esqueçamos jamais.

Ao assaltar o verso do cancioneiro Gonzanguinha, parafraseio:

PS – Delza é o apelido de Nelba Almeida, mãe de Rogerio.

O Delza,Teu menino desceu São Luís Pegou um sonho e partiuPensava que era um guerreiroCom terras e gentes a conquistarHavia um fogo em seus olhosUm fogo de não se apagar

Delza, seu guri não fugiuSó quis saber como éQual éPerna no mundo sumiu

[...] É o mundo que é o seu lugar

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Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar. Já é madrugada, vem o sol, quero alegria, que é para esquecer o que eu sofria. Quem sofre fica acordado defendendo o coração. Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia

Thiago de Mello

Faz escuromas eu canto

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SUMÁRIORua dos Pretos

O Maranhão dentro de Belém

15Terra Firme

Um quilombo urbano em Belém

29Amazônia - Jovens da Região Metropolitana de Belém

usam a cultura como forma de ação política

39A Amazônia é “Coisas de Negro”:

rodas de carimbó contam uma parte da (re) existênciacultural no Distrito de Icoaraci

49Amazônia – Mulheres negrasprotagonizam a luta popular

61Coletivo Rádio Cipó – A inquietação cultural

na quebrada da Amazônia

75Ditadura na Amazônia – Hecilda Veiga e a memória

de uma mulher do front

83Sobre os autores

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ARENAS AMAZÔNICAS

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Rua dos Pretos - O Maranhão dentro de Belém

01Rua dos Pretos

O Maranhão dentro de Belém[1]

Rogerio Almeida e Lilian Campelo[2]

[1] Trabalho publicado no site da Agência Carta Maior, no dia 17 de março de 2013. [2] Lilian Campelo é jornalista freelance.

Canal dos Mundurukus – Belém – Lilian Campelo/2013

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ARENAS AMAZÔNICAS

Belém é uma cidade de cidades misturadas. A tragédia é que traz, às vezes, a face oculta à tona: incêndio das casas de madeira, alagamento por conta das intensas chuvas, execução de jovens ou o tráfico de drogas. À Rua dos Pretos, no bairro do Guamá (rio que chove), em Belém, emerge uma cida-de formada por migrantes, boa parte deles oriundos do Maranhão. Os mara-nhenses representam quase 5% da população do Pará. Destes, 92% se identifi-cam como negros ou mestiços, sinalizam dados do IBGE (2010).

A historiografia explica que no Brasil colônia, após a criação do estado do Grão Pará e Maranhão (1751) por Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), o tráfico de escravos para as lavouras de cana e arroz ga-nhou maior intensidade. Já o ciclo da economia da borracha (1879 -1912) é considerado um marco no processo migratório para a região, em particular de nordestinos, que ganhou maior proporção na segunda metade do século XX, com a integração subordinada da economia da Amazônia ao resto do país.

Neste contexto, a fusão entre os múltiplos brasis semeou uma série de manifestações culturais na região. Irmandades religiosas, bois-bumbá, qua-drinhas juninas, terreiros de umbanda e candomblé, carimbó, e as escolas de samba Arco-Íris (1982) e a Bole-Bole (1984) integram a realidade artística do Guamá e vizinhança, conformada pelos bairros de São Braz, Canudos, Terra Firme, Condor e Cremação.

Entre os bairros da cidade, o Guamá é o mais populoso. O rio homôni-mo o irriga. A região cortada por canais e banhada pela baía do Guajará nas-

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Rua dos Pretos - O Maranhão dentro de Belém

ceu a partir da ocupação irregular de áreas públicas, em particular de órgãos federais, como a Universidade Federal do Pará (UFPA), Museu Paraense Emí-lio Goeldi (MPEG), a antiga Faculdade de Ciências Agrárias do Pará (FCAP), atualmente Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O setor de Segurança Pública do estado considera o perímetro como zona vermelha. Localizado no extremo sul da cidade, o Guamá é resultado da ocupação desordenada, onde pobreza e violência integram o cotidiano.

Informação do projeto Pobreza e Meio Ambiente (Poema) da UFPA di-vulgada em 2012, atesta que 200 mil moradores do Guamá e Terra Firme so-brevivem com metade do salário mínimo por mês. A informalidade absorve a maior parte da mão de obra. A concentração de renda que estrutura a econo-mia do país, aqui também se replica. Pesquisa coordenada pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida constatou que 96,28% da população da região metropolitana de Belém absorvem 24,80% da renda, enquanto uma minoria, isto é, 3,72% da população abocanham 75,20% da renda gerada.

Baixo nível de escolaridade, desemprego, subemprego, violência, precário serviço de abastecimento de água e ausência de saneamento básico conformam a aquarela. O esgoto corre a céu aberto entre as ruas estreitas, onde predomina uma arquitetura de madeira. Não raro, depara-se com um templo evangélico. A água da chuva do dia anterior inunda algumas vias. Às vezes, em que a chuva é intensa é comum o transbordamento do canal dos Mundurucus. Ali perto, fica a Rua dos Pretos.

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ARENAS AMAZÔNICAS

O canal é uma referência para se encontrar a Rua dos Pretos, alcunha da Rua Bom Jesus I. Trata-se de uma via com no máximo duzentos metros. Padaria e botecos sem grandes atrativos integram a paisagem do lugar. Casas e comércios são protegidos por grades. Em qualquer dia da semana alguns habitués consomem cerveja, e peixes ardem em tachos. Nos finais de semana meninos jogam futebol nas ruas que apertam o canal, enquanto os mais velhos celebram o dia de folga ao som do brega, do samba ou do reggae. Os canais que serpenteiam a cidade compõem a realidade da várzea. Neles, o lixo é fi-gura frequente.

Relatos de moradores mais antigos narram que a ocupação da várzea iniciou na década de 1980. Ana Guedes, maranhense da cidade de Cururupu, é uma das pioneiras na ocupação do bairro. Ela afirma que tudo era mato. E que ali existiam pouco mais de cinco barracos. Muitos moradores assentaram residência em áreas de constantes alagamentos. A ocupação ajudou a sufocar igarapés e rios. Guedes rememora que um grupo de pessoas organizava uma ação de ocupação do lugar. Engrossou o coro dos ocupantes, e apanhou umas tábuas, enfrentou dificuldades, encarou a polícia e sentou praça.

◉ A Rua dos Pretos ◉

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Rua dos Pretos - O Maranhão dentro de Belém

Há três décadas, a animadora cultural mora na área. Veio para trata-mento de saúde. Operar para deixar de ter filhos. Um casal de médicos a apa-drinhou. E não voltou mais, a não ser para festas. Nessa época promover a realização de laqueaduras era moeda de troca de políticos. “Eu vim através dos meus patrões, eles que me trouxeram para cá. No prédio Manoel Pinto da Silva foi o único e primeiro edifício em que eu trabalhei pra gente rica aqui em Belém. O apartamento era o 1402, do casal Dr. Antônio Fernando e Dona Célia, uma família de médicos” conta Guedes.

A personagem analisa que tinha muitos filhos. Procurou Belém para tratamento. A migrante recorda que o médico em Cururupu ficava distante de onde morava, e que as condições eram precárias. Ela não lembra com quantos anos veio para Belém, mas pelas contas deveria ter uns 24 a 25 anos. Ana rea-lizou a cirurgia de laqueadura de trompas.

O relatório destacou que o movimento negro nacional foi o pioneiro a denunciar a esterilização de mulheres negras e pobres, como prática de racis-mo no Brasil. Contudo, os dados do IBGE não confirmaram a acusação. No entanto, o relatório apontou que o maior percentual de mulheres esterilizadas encontra-se em Estados de regiões do país com maior índice de miséria e po-breza, e onde há um contingente populacional de maioria negra.

Nos grotões a situação não foi extinta. Em 2011, o Supremo Tribunal Fe-deral (STF) condenou o deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB\PA) a três anos de reclusão e multa no valor de R$ 7.630,00. O deputado foi penalizado por promover laqueadura durante a eleição de 2004, no município de Marabá, sudeste do estado. O parlamentar cooptava as mulheres a partir da entidade PMDB Mulher. A esposa e uma enteada participavam da empreitada.

45% de mulheres em idade reprodutiva estavam esterilizadas no Brasil indicavam os dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domi-

ciliar (PNAD/1986) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por conta do quadro, na década de 90 foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para examinar a esterilização em massa. O Maranhão era o estado com maior incidência, alcançando a média de 79,8%. A CPMI concluiu que o método mais utilizado como

contracepção é esterilização realizada durante cirurgia de cesariana.

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ARENAS AMAZÔNICAS

◉ Ana Guedes – A animadora cultural ◉

Guedes é uma das muitas maranhenses que povoa o local. É uma se-nhora negra de 60 anos de idade. Como ela, a maioria dos moradores tem a mesma cor. Daí a designação pelos vizinhos de Rua dos Pretos ou Rua dos Maranhenses. Às 16 h de uma tarde ensolarada acordamos a franzina senho-ra, dona de raros cabelos grisalhos. Ela é mãe de 10 filhos e adotou mais qua-tro crianças, fruto de relações extraconjugais do falecido marido. Ao todo são 19 netos. Metade dos filhos é evangélica. Ana conta que eles pedem que ela abandone as manifestações católicas e de matriz africana. Ela resiste.

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Rua dos Pretos - O Maranhão dentro de Belém

José Ribamar, conhecido como “Fumaça”, o irmão de Ana foi o primeiro a ser chamado para morar em Belém. Alguns netos moram com ela. A casa é um híbrido de madeira e alvenaria, onde o abastecimento de água funciona somente durante a noite. Os pés descalços enfrentam um terreiro em desor-dem. Pedras aguardam cimento. A reforma prepara a casa para celebrações religiosas. Ela mora numa vila acanhada, que abriga outros parentes. É a sere-lepe senhora quem anima algumas celebrações religiosas, entre elas a de Nos-sa Senhora da Guia, festejada no mês de agosto, e São Benedito. O santo negro é o padroeiro do Tambor de Crioula, manifestação tipicamente maranhense, de matriz africana.  

O folguedo tem sido um canal de conformação da identidade dos ma-ranhenses, e elemento que aglutina os migrantes em torno do coletivo Filhos e Amigos do Tambor de Crioula de Cururupu. O grupo reúne perto de cin-quenta pessoas. Uma imagem de Nossa Senhora da Guia ocupa lugar de des-taque na casa de Guedes, que acomoda uns instrumentos nos cantos da casa. Os tambores foram grafitados por jovens do bairro e de outras localidades da cidade. Um coletivo tem animado mutirões culturais durante todo o ano na periferia de Belém. Cosp Tinta, Casa Preta, Traumas Vídeos e Literatura Mar-ginal fazem parte da trupe.

Em uma das apresentações do grupo Filhos e Amigos do Tambor de Crioula de Cururupu no terreiro Axé-Rundembo Di Jaci Luan-

go, no boêmio bairro da Pedreira, estava presente o artista-mestre Tião Carvalho. O cantor e compositor é conterrâneo de Ana Guedes. Há muito tempo radicado em São Paulo, reside no Morro do Querosene, no Butantã. O autor de Nós, canção gravada por Cássia Eller, esteve em Belém para participar do projeto Jamberesu – Interações Estéticas na Afro-Amazônia, em parceria com Mana-Maní ReCriando a Dança da Vida. Engrossou o coro dos cantadores do grupo. Ao mesmo tempo

Guedes rodopiava a saia de chitão colorido.

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ARENAS AMAZÔNICAS

◉ O Tambor de Crioula ◉

Roda de Tambor no terreiro Axé-Rundembo Di Jaci Luango, no boêmio bairro da Pedreira

Grafite do bar Escolinha do Reggae.Foto: Lilian Campelo

A percussão se impõe na manifestação de matriz africa-na, natural dos quilombos do Maranhão. Escravos arranca-dos da África, provenientes do Guiné, Costa da Mina, Congo e Angola ajudaram a compor as matrizes culturais do estado. Os três tambores feitos a partir da madeira do mangue, do pau d’arco, do soró ou do angelin são cobertos com couro de ani-mal. Quando das celebrações por promessa, festa ou entre amigos, o tambor é afinado a fogo e tocado com as mãos. O conjunto de tambores é conhe-cido como parelha.

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Rua dos Pretos - O Maranhão dentro de Belém

A dança é circular, e marcada pela punga ou umbigada. Uma es-pécie de saudação entre as mulheres, quando uma toca o ventre da

outra. Em alguns locais do interior do Maranhão é comum a punga ou a rasteira entre os homens. Assim como outras manifestações de matriz africana, a dança foi tratada como caso de polícia. Uma brincadeira de

negro e de pobre.

O tambor maior (rufador ou roncador) faz a marcação, enquanto os menores solam. É comum um brincante tocar duas matracas ou tábuas sobre o suporte de madeira do instrumento maior. O menor dos três é conhecido como crivador, e o do meio ou chamador, tratado como “meião”. O papel dos homens é tocar e entoar as canções, enquanto as mulheres dançam e acom-panham o canto. A tradição é que as mulheres mais velhas protagonizem a dança. Elas são tratadas como coreiras.

As roupas de chitão de flores coloridas vestem os participantes da ma-nifestação. A saia é indumentária fundamental do ornamento feminino. São Benedito é o santo homenageado. A brincadeira é comum em áreas rurais e nas periferias de São Luís, mesmo entre a classe média. Há na capital do Ma-ranhão perto de 80 agremiações. Leonardo Martins, Laurentino Araújo, Nivô e Felipe são os mestres mais conhecidos. Manifestações similares existem no país, a exemplo da congada, do carimbó e do jongo.

A folclorista e funcionária pública Terezinha Jansen, falecida em 2008, animou por 30 anos o bumba meu boi e o tambor de crioula da Fé em Deus. Os folguedos foram fundados pelo mestre Laurentino em 1930. O mestre fa-leceu em 1975. Por ironia, Terezinha era bisneta de uma senhora de escravos, Ana Jansen (1787-1869). Um personagem lendário, cantado em verso e prosa em São Luís.

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ARENAS AMAZÔNICAS

◉ Os Filhos e Amigos de Cururupu ◉

O cururupuense “Moita”, 38 anos, como é conhecido Raimundo Márcio Santos Rodrigues é o animador do Tambor de Crioula Filhos e Amigos de Cururupu, que existe há quatro anos no bairro do Guamá. A manutenção do grupo é garantida graças ao empenho dos integrantes, que ficam responsáveis pela aquisição da madeira e do couro.

Além das apresentações que fazem no bairro e em outros cantos da ci-dade, o coletivo repassa o conhecimento ancestral por meio da realização de oficinas para crianças e adolescentes.

José de Ribamar - o Homem Reggae. Foto: Lilian Campelo

Assim como no Pará é comum batizar as mulheres com o nome da padroeira do estado, Nazaré; no Maranhão é recorrente batizar os homens com o nome de José de Ribamar, o principal santo do estado mais empo-brecido da União. O principal exportador de tensão social do país, como explica o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida. Miséria e tensão na luta pela terra são os motivadores para a migração. A lógica da migra-ção reside no pioneiro puxar os demais entes da família. O poeta Ferreira Gullar, o cantor e compositor Zeca Baleiro e o ex- presidente Sarney são os mais ilustres ribamares do estado.

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Rua dos Pretos - O Maranhão dentro de Belém

Apesar de fincado na capital paraense, o maranhense mantém o vínculo com a terra natal. Quando ocorrem as festividades de São

Sebastião no início do ano, perto de cinquenta ônibus de migrantes se-guem para Cururupu. Ana Guedes conta que as aparelhagens invadem a cidade. “É mais fácil ouvir brega que uma “pedra”, explica Ana. “Pedra” é o termo usado para designar um reggae de raiz. Um clássico, onde figu-

ram Bob Marley, Jacob Guille Miller, a banda UB40 e Gregory Isaacs.

Ribamar ganha a vida como pedreiro e dono de bar. O maranhense negro de estatura mediana tem 54 anos. É pai de três filhos, fruto de dois casamentos sem papel passado. O bar fica na parte inferior de um sobrado de alvenaria, localizado perto da casa da irmã Ana. “Ele pensa somente em trabalho”, critica a irmã.

O pedreiro é considerado um dos pioneiros na discotecagem de reggae em Belém. A capital do Pará adotou a sonoridade do merengue, cúmbia, salsa e afins, difundida em ondas tropicais das emissoras de rádio, enquanto São Luís e outras localidades do Maranhão assimilaram o reggae.

◉ A Escolinha do Reggae ◉

Ribamar Guedes comanda o Bar Escolinha do Reggae há 24 anos. O local é um porto seguro para o encontro dos nativos de Cururupu, e para os adeptos do ritmo nascido na Jamaica. O operário e comerciante é simpático, e sempre sorri ao receber pesquisadores e jornalistas. “Cheguei aqui com 18 anos. Os irmãos mais velhos vieram na frente. Quando voltavam para a nossa cidade, falavam de Belém. Ficava curioso. Vim atrás de trabalho. Fiz a vida aqui, e só volto para visitar os parentes que ficaram lá” conta o regueiro.

Habitues da Escolinha do Reggae em tarde de domingo. Foto: Lilian Campelo

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ARENAS AMAZÔNICAS

A parte inferior do sobrado do Guamá acomoda o bar. O leptop toca clássicos do reggae. O pedreiro, louco pela música jamaicana, é conhecido no circuito de DJ´s do estilo da cidade. Entre eles Rás Margalho. Ribamar se des-fez dos vinis e aderiu à tecnologia do mundo digital. Vez em quando organiza um reggae em sua casa ou uma roda de tambor de crioula. “Não cobro a porta. Apenas vendo a minha cerveja. Às vezes as pessoas fazem festa aqui. Quando organizo uma festa de reggae, a casa lota e as ruas ficam cheias de carro”, narra o entusiasmado senhor.

Além do sobrado, Fumaça tem mais duas casas na região metropolitana de Belém, no município de Ananindeua. A mãe e os outros irmãos moram na Alça Viária, um local de saída para outras regiões do estado. Eles vêm para o Guamá somente no fim de semana. É cedo. A casa ainda não está cheia. A turma consome cerveja e joga dominó. Todos são negros. Assim como outras pessoas que conversam nas portas das casas. Algumas crianças adotam o ca-belo trançado, enquanto umas mulheres chapeiam a cabeleira.

◉ As raízes ◉

O mestre de obras é filho de Bacuri, município próximo a Cururupu. É uma das regiões mais empobrecidas, o Litoral Ocidental Maranhense, lo-calizado ao norte do estado, que faz fronteira com o Atlântico. O agrônomo Edmilson Pinheiro informa que a economia do lugar teve como base a cana, arroz, milho, engenhos e gado. Africanos de Douro e Daomé (Guiné) con-figuraram a origem do braço escravo. Ele conta que Cururupu fica próximo aos municípios de Mirinzal e Guimarães. Cidades marcadas pela presença de quilombos.

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Rua dos Pretos - O Maranhão dentro de Belém

O técnico interpreta que municípios como Bacuri, Cururupu, Caruta-pera e Godofredo Viana, às vezes possuem mais laços com Belém, do que com a capital maranhense, São Luís, tanto que existem linhas diárias de ônibus Cururupu\Belém. A origem do nome Cururupu possui duas explicações: a primeira resulta da junção do apelido do cacique Cabelo de Velha “Cururu” com o som da arma que ele usava “pu”. Conforme o dialeto tupinambá, o nome da cidade significa “sapo grande”.

Parcel de Manoel Luís, Reentrâncias Maranhenses e a ilha dos Lençóis são os principais atrativos turísticos do município. Manoel Luís é uma reserva marinha conhecida por abrigar um banco de corais, navios e galeões afunda-dos pelas fortes correntezas. Já os Lençóis ficaram celebrizados pelas dunas e lenda do rei de Portugal, D. Sebastião que encarnaria na figura de um touro negro encantado. Tambor de Crioula, Bumba Meu Boi, Pastores de Reis, Cai-xa do Divino Espírito Santo e Festa de São Benedito constam no caleidoscópio cultural de matriz africana. 

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ARENAS AMAZÔNICAS

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Terra Firme - Um quilombo urbano em Belém

◉ Terra Firme em dia de mutirão cultural ◉

02Terra Firme Um quilombo

urbano em Belém[1]

Daniel Leite e Rogerio Almeida[2]

[1] Trabalho publicado no site da Agência Carta Maior, no dia 03 de junho de 2012. [2] Na época Daniel Leite era estudante do 3º período de Jornalismo da Universidade da Amazônia (Unama) e bolsista da Agência Unama pelo Direito da Criança e do Adolescente (Agência Unama). Rogerio Almeida na época professor da Unama e coordenava o projeto de extensão Agência Unama.

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ARENAS AMAZÔNICAS

O Brasil é o país que concentra a maior parcela da principal floresta tropical do mundo, a Amazônia. Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela são os demais países onde inci-de a floresta. Do território nacional, cerca de 61% é constituído pela Amazô-nia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, oeste do Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins), com uma população estimada em 20 mi-lhões de pessoas.

Há cidades na Amazônia. A Amazônia é uma floresta urbana, en-fatizou a professora Bertha Becker na década de 1970, baseada em

dados censitários. Belém é uma delas. A principal capital da região é quase uma ilha. Dos 505.823 km2, 332.037 km2 é região insular (65,64%), formada por 43 ilhas. Sob um clima quen-te úmido, numa temperatura média de 30º C, é o comércio e a prestação de serviço que fazem a cidade se mover economicamente. A hidrografia é rica: furos, igarapés, rios e baías. Tanto em sua parte con-tinental quanto na insular. Baía do Guajará, baía do Marajó, baía de San-to Antônio, baía do Sol, rio Guamá, rio Murubira, rio Mari-Mari, igarapé

do Tucunduba são alguns dos recursos que compõem a península.

A floresta é um mundo de gentes, olhares, saberes, cores, cheiros, odores e histórias. A abundância de recursos florestais, minerais e hídricos a torna alvo dos mais diferentes interesses: econômicos, sociais, políticos e ambien-tais. E em escalas: local, regional, nacional e global, onde o direito à proprie-dade privada sobre a terra tem-se sobreposto à posse ancestral.

O olhar do colonizador a sintetizou sob uma perspectiva exótica: na-tureza exuberante, eldorado, paraíso perdido, vazio demográfico ou inferno verde. A população originária, quando citada nos relatos, sempre foi tratada sob o prisma da inferioridade. Uma forma de legitimar a instalação da “civili-zação” interpretam alguns observadores. Horizonte que os discursos midiáti-cos dos estados centrais atualizam.

Um mundo de águas integra a paisagem do vasto território amazônico. Água de igarapés, furos e rios. Muitos rios. Rios sem fim. Sem falar da água da chuva. As principais capitais, Manaus e Belém cresceram de costas para esse

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Terra Firme - Um quilombo urbano em Belém

mundo das águas. A sufocar tudo que foi possível em nome da especulação imobiliária. Um riomar de gentes inunda a região.

O Tucunduba corta vários bairros de Belém, entre eles, a Terra Firme. Nascido na década de 1950, o bairro ganhou corpo a partir da ocupação de terras públicas em áreas aqui tratadas de baixadas (favelas), onde predo-mina a arquitetura da palafita. O bairro que tem cerca de 60 mil habitantes acumulou áreas da Universidade Federal do Pará (UFPA), da antiga Facul-dade de Ciências Agrárias do Pará (FCAP), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e do Museu Paraense Emílio Goeldi. Boa parte da população da área é composta por migrantes internos ou do Nordeste, em particular do Maranhão.

No território estigmatizado pela violência, os serviços elementares inexistem ou são precários: saneamento (drenagem e tratamento dos esgo-tos domiciliares, industriais e comerciais), fornecimento de água, coleta e tratamento de lixo. O mesmo canal que aproxima os produtores de hortifru-tigranjeiros do arquipélago de Marajó, e outras regiões, possibilita também o tráfico de drogas.

Desde a década de 1990, o Tucunduba passa por um projeto de macro-drenagem. No começo da década de 2000 o projeto foi laureado com o prêmio “Caixa Melhores Práticas em Gestão Local”, e foi apresentado como exemplo de novas práticas de gestão da cidade na Conferência Habitat, da Organização das Nações Unidas (ONU). A política de saneamento básico integrou várias dimensões: geração de renda, sustentabilidade, empoderamento local, gênero e multiculturalismo. Além da Terra Firme, o Tucunduba atravessa os bairros do Marco, Guamá e Canudos, um perímetro da cidade considerado zona ver-melha pelos órgãos de segurança do estado.

Em 2009, a região integrou o Território do Fórum Social Mundial. A relação entre a coordenação do evento e a população do bairro foi tensa. Jaime Soares, na época mestrando em Ciências Sociais na Universidade de São Pau-lo (USP), refletiu sobre o assunto. Soares avalia que a coordenação do FSM de Belém tentou ocultar a situação delicada em que vive o entorno do território escolhido para a realização do Fórum.

Sobre a situação de conflito o autor alerta para a tentativa de ocultação da região, e a não participação das pessoas do entorno na agenda de ações do FSM. O artigo registra que nos mapas divulgados pela organização do evento e dos órgãos públicos, a periferia é apresentada como área verde. O

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ARENAS AMAZÔNICAS

pagamento de taxas e a solicitação de crachás pelos seguranças nos locais de acesso aos debates são indicados como pontos de contradição da organiza-ção local do FSM.

Soares sublinha que a não inclusão cultural, econômica e social da Terra Firme ao Fórum fere o principio de orientação da rede, que em

linhas gerais, visa o não colonialismo e o combate ao neoliberalismo. O autor enfatiza, ainda, a contradição da coordenação local do Fórum, que ao invés de promover a inclusão da população do bairro, usou de expediente conservador, que se traduz em mobilizar a Secretaria de Se-gurança para isolar a Terra Firme das áreas da UFRA e da UFPA, locais

da realização dos seminários e atos culturais durante o Fórum.

O controle social sobre a região incluía toque de recolher, e proibia fes-tas de aparelhagem, equipamentos sonoros que embalam as festas de brega. Apesar do estigmatizado signo da violência que pesa sobre o bairro, há na Terra Firme inúmeras manifestações que buscam a amplificação da cidadania, a exemplo do Coletivo Casa Preta, Polo São Pedro e Boi Marronzinho.

◉ O Coletivo Casa Preta ◉

Terra Firme ou Montese? O nome exato do bairro é uma dúvida des-necessária, pois basta circular pelos arredores do bairro que rápido o corpo percebe a rigidez da terra, ao lado do rio que contorna o ambiente, e incorpora o nome popular da área. Atualmente a região passa por um processo de com-bate e prevenção à violência. A ação da PM privilegia lugares considerados de risco, aos moldes das UPP´s do Rio de Janeiro. No mesmo cenário há algum tempo, ações culturais protagonizam a ampliação da cidadania.

No mesmo local pode-se encontrar, experimentos de instituições de pesquisa e ensino, a exemplo do projeto Território da Memória, do Museu Paraense Emilio Goeldi. No entanto, as pautas dos jornais insistem em con-templar o aspecto negativo do lugar. Os principais jornais de Belém, Diário do Pará e O Liberal lideram pesquisa em andamento da Agência Nacional dos Direitos da Infância (Andi), em matérias sobre adolescentes em situações de conflito com a Lei.

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Terra Firme - Um quilombo urbano em Belém

Observador um pouco mais cuidadoso encontrará dimensões interes-santes para além da superfície das pautas factuais. Exemplo disso é a realiza-ção de oficinas de construção de instrumentos musicais e percussão da Casa Preta. A iniciativa tem como um dos ponta de lança o ativista cultural An-derson de Souza Ferreira, mais conhecido como “Don Perna”. O migrante da periferia de Campinas, estado de São Paulo, aprendeu o que é cultura nas ruas. Ferreira além de percussionista é ciberativista e dj. Fala com entusiasmo dos mestres de percussão e capoeira com quem teve contato no processo de apren-dizado sobre o universo da cultura de matriz africana.

É esta a opção do Coletivo “Casa Preta”: cultura de matriz africa-na. A ONG integra a Rede Mocambos, que atua nos estados do Pará,

Maranhão, Amapá, Acre, Porto Velho e Manaus. Um dos objetivos da rede é incentivar e reafirmar a identidade da cultura negra. É este seg-mento que configura boa parte da população do bairro. O horizonte das ações possui como pano de fundo motivar a reflexão sobre a cidadania,

cultura, paz, negritude, literatura, cinema e música.

D. Perna - Coletivo Casa Preta

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ARENAS AMAZÔNICAS

O Projeto Bloco Firme, selecionado pelo Programa Territórios de Paz do Ministério da Cultura no ano de 2011, por via do Programa Mais Cultura é uma das âncoras do coletivo. A inciativa do ministério colabora para a gera-ção de recursos econômicos para os projetos, dando estabilidade às pequenas iniciativas de incentivo a grupos artísticos independentes, grupos étnicos de tradição cultural e pequenos produtores culturais. O projeto resulta de uma parceria com a Justiça Federal através do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (Pronasci), que visa oportunizar o acesso à produção, ao consumo e ao reconhecimento de bens culturais.

Casa Preta-Bloco Firme acontece no espaço “Polo São Pedro” que é vin-culado à Igreja São Domingos de Gusmão, liderado pelo Padre Bruno, his-tórico ativista pela garantia dos direitos da criança e do adolescente. Cinco eixos orientam a atuação do coletivo, são eles: a) Cultura Ancestral – realiza oficinas de dança afro, construção de tambores, formação do Bloco Firme; b) Cultura Afro Contemporânea - contempla a cultura hip hop e eventos cul-turais; c) Cultura Digital - incentiva a apropriação tecnológica a partir do conhecimento de softwares livres; d) Formação Política - atua com diferentes metodologias em comunidades urbanas e rurais para difusão, construção e desenvolvimento pautado em modelos de colaboração comunitária, com con-tornos de filosofia afro quilombola; e) Empreendimentos Solidários - busca a criação da microempresa “NEGOOCIO” que oferecerá serviços de desenvol-vimento na web (sites, e-comerce, blogs e outros), e a articulação da Rota de Escambo Baobá.

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Terra Firme - Um quilombo urbano em Belém

Terra Firme em detalhes

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ARENAS AMAZÔNICAS

Don Perna que é o oficineiro para a construção de instrumentos de per-cussão. “Acredito que a partir das oficinas, exibição de filmes e debates, troca de experiências com parceiros locais e de outros estados é possível provocar a reflexão sobre a identidade cultural dos jovens” enfatiza o músico. Ele acre-dita que a prática experimental pode levar a uma compreensão e valorização dos ritmos e danças que fazem parte da alma antropofágica da diversidade cultural do país. E a partir daí estimular uma nova abordagem crítica sobre a história e a consciência do indivíduo dentro da comunidade.

Rap, grafite, trançado de cabelo afro são algumas expressões que dão vida aos mutirões culturais

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Terra Firme - Um quilombo urbano em Belém

As oficinas ocorrem por cerca de duas horas, duas vezes por semana. Sempre no início das noites de terça e quinta, e aglutinam uns 15 jovens, en-tre 12 a 22 anos. Yasmin Minami soma 18 anos, faz o curso médio na escola pública Mário Barbosa. Tem feição indígena. É uma das meninas que tocam a alfaia, um instrumento típico do maracatu de Pernambuco. A adolescente lembra que reconheceu em si outras culturas, outras pessoas que não ima-ginaria. “O projeto ajuda a estimular os valores culturais da pessoa que sou. Passei a reconhecer o espaço em que nasci e vivo de outra maneira,” avalia a jovem. No mês de abril ela e mais duas adolescentes participaram de um encontro cultural em Minas Gerais. Foi a primeira vez que viajaram de avião.

O Polo São Pedro cede espaço para as oficinas do Casa Preta. Nele ocorrem desde 2006, um cipoal de atividades culturais que visam incrementar a autoestima da juventude do bairro. Tem o status de ponto de cultura onde são realizadas agendas culturais no campo do teatro, canto coral, violão, flau-ta, percussão e dança. Um dos grupos surgidos foi o Sementes da Terra.

O casal Odiléia e Edson Lima é responsável pelos projetos do polo, que demoraram cerca de seis meses para serem formatados. Ele buscava, via cul-tura, uma forma diferente de evangelizar e debater a cidadania num território marcado pela violência e o tráfico de drogas. Os oito oficineiros são volun-tários. No ano de 2011 as experiências chegaram a mobilizar perto de 300 pessoas.

Mas, no ano de 2012 as atividades ainda não foram iniciadas. Odiléia Lima informa que o Ponto de Cultura deveria ter recursos para três anos. No entanto, o polo recebeu somente durante um ano. A coordenação ainda aguarda recursos do governo federal e pleiteia, via projetos, colaboração de outras fontes.

Boi Marronzinho - Na lavoura cultural da terra firme existem terreiros de umbanda, blocos de carnaval, reggae, quadrilha de São João, boi bumbá e institutos de cultura. Um dos mais antigos é o Boi Marronzinho. Soma perto de 20 anos.

Como outras iniciativas, surgiu como ferramenta para enfrentar a vio-lência e ampliar a cidadania. Emergiu na passagem Brasília, da inquietação de um senhor conhecido como Cici e da dona Nazaré. Casal radicado no lugar há mais de 50 anos. Ao cabo da viagem, parece que um rio de gente que busca dignidade corre no bairro da Terra Firme.

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ARENAS AMAZÔNICAS

Tela Firme - Faz três anos que sete jovens contraporam-se à mídia hegemônica e produziram seus próprios conteúdos sobre a “quebrada” onde moram. Assim nasceu, com a mediação do Instituto Universidade Popular (Unipop), o canal da web Tela Firme.

Matéria do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário do Pará e Amapá (Sindjuf), de setembro de 2014, conta que o carnaval no bairro foi o primeiro episódio. A mesma matéria narra que o jornal Canal do Tucunduba e a Rádio Cidadania precederam a iniciativa na grande rede.

Os jovens envolvidos no projeto são Mailson Sousa (direção); Thalisson Assis e Fraan Silva (reportagens); Vanessa Alves; Harisson Lopes e Adriano Carneiro (roteiro e produção) e Francisco Batista (apresentação).

A iniciativa do coletivo de jovens já ganhou notoriedade para além de suas paragens e socializa as experiências em escolas, faculdades, e projetos sociais da cidade. Conforme a mesma matéria do Sindjuf, o Tela Firme conta com correspondentes em outros bairros da cidade.

No melhor espírito colaborativo, os equipamentos foram adquiridos por meio de colaborações e coletas. Sem fins lucrativos, o projeto visibiliza uma agenda positiva da Terra Firme.

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Amazônia - Jovens da Região Metropolitana de Belém usam a cultura como formade ação política

03Amazônia - Jovens da Região Metropolitana de Belém usam a cultura como forma de ação

política[1]

Rogerio Almeida[2] e Daniel Leite[3]

[1] Material publicado no site Agência Carta Maior, no dia 06 de abril de 2012.[2] Na época era professor da Universidade da Amazônia (Unama) e coordenava o projeto de exten-são Agência Unama pelo Direito da Criança e do Adolescente [3] Na época era estudante de do 3º período de jornalismo da Unama e extensionista da Agência Unama pelo Direito da Criança

Crianças ocuparam a quadra esportiva do bairro da Guanabara no dia do mutirão.

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ARENAS AMAZÔNICASARENAS AMAZÔNICAS

31 de marco, sábado. Tempo de chuva no Pará. As águas deram uma trégua. Ainda não fechou o verão. O sol ilumina a Praça Lauro Leite, a única do bairro da Guanabara, no município de Ananindeua, região Metropolitana de Belém. Trata-se de um território marcado pela violência. O município integra o quadro de cidades mais violentas para a juventude no país. Nela são mortos 199 jovens em cada 100 mil, indica relatório sobre o assunto organizado pelo Ministério da Justiça e Instituto Sangari em 2011. 

Apesar de contribuir de forma decisiva para a saúde do superávit primário do país, por conta do extrativismo mineral, o Pará é um colecionador de índices sociais negativos. No assunto violência ocupa o topo da pirâmide. No caso de homicídios, o estado é o terceiro lugar no ranking nacional. O crescimento foi de 273% em 10 anos (1998 a 2008). Na região Metropolitana de Belém, esse índice atingiu 189,3% em 10 anos. Ficando atrás apenas de Salvador e Curitiba.

Algumas ruas separam a Praça da Guanabara da BR 316. A rodovia ser-penteia as cidades do entorno de Belém. Os indicadores de acidentes com morte são alarmantes, o que alçou a rodovia a local de destaque nacional como uma das mais críticas. Parte do Parque do Utinga, responsável pelo abastecimento de água de Belém fica próximo à praça. O local tem sido usado para desova de cadáveres, informa dona Mercês Bernaldo, 58, moradora do bairro. Ela reclama que a violência tem crescido muito. E que o poder público não confere a devida atenção ao lugar, que tem se transformado em um lixão.

A unidade de conservação do Utinga, criada em 1993, abriga os lagos Bolonha e Água Preta. Eles respondem pelo abastecimento de 70% da água da capital e das região metropolitana. Área de 1.393 hectares oferece oportu-nidade de acesso a trilhas ecológicas e lazer, e vive sob constante ameaça pela ausência de tratamento do esgoto e por conta da especulação imobiliária.

O nome Ananindeua, de matriz tupi, faz referência a uma ár-vore, Anani, que produz uma resina usada para lacrar fendas de

embarcações. O filho do cacique Jader Barbalho, Helder, a gover-nou por dois mandados consecutivos. O município é o segundo do Estado em população. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 indicam que a população é de 471.980 mil habitantes. O comércio e a prestação de serviços dinamizam a eco-nomia. Assim como Belém, a cidade experimenta uma verticalização

e padece de um trânsito caótico.

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Amazônia - Jovens da Região Metropolitana de Belém usam a cultura como formade ação política

◉ Cultura para a cidadania ◉

No último dia do mês de março, data do golpe militar que estabeleceu a ditadura no país, a praça foi ocupada por vários coletivos que militam na área da cultura, para a realização do 3º Mutirão Cultural. O objetivo do evento é afirmar uma identidade de matriz africana, e provocar a reflexão sobre cida-dania.  Cospe Tinta, Casa Preta, Traumas Vídeos estão entre os animadores. Oficinas de grafite, cultura hip hop, literatura marginal, trançado de cabelo afro e comunicação são alguns eixos do trabalho. No item comunicação a tur-ma colabora com programas em rádios comunitárias e ciberativismo com a produção de blogs e outros conteúdos.

Praça ocupada pelo mutirão - trançado de cabelo, grafite e hiphop

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O universo marginalizado é o mais recorrente quando a pauta dos jor-nais lança luzes sobre as realidades que conformam as periferias da metrópole Belém. É diferente em outro canto do país? No entanto, de forma silenciosa, jovens organizados em vários coletivos do campo da cultura pop mobilizam esforços em realizar ações nas baixadas da capital do estado e região Metropo-litana. Baixada é como é nomeada a periferia aqui. Nestes tempos de intensa chuva parte fica submersa.

Djs e suas pick-ups animam o mutirão

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Amazônia - Jovens da Região Metropolitana de Belém usam a cultura como formade ação política

O bairro da Guanabara é o terceiro a realizar o evento, que alcança pes-soas de todas as faixas etárias, mas prioriza crianças e adolescentes. Antes re-ceberam a manifestação o bairro Tapanã e o bairro da Terra Firme, em Belém. Esses bairros são considerados como “zona vermelha” pelas autoridades res-ponsáveis pela segurança no estado.

“O Mutirão é organizado a partir de uma ação coletiva das pessoas en-volvidas. Não há recurso oficial”, informa Preto Michel, um dos ativistas que ministra oficinas de grafite e literatura marginal. “A gente faz contato com o pessoal da quebrada, acerta horário, local, o material necessário, e cotiza”, esclarece o artista.

Conforme o educador social, o projeto dos coletivos vai se estender por todo ano de 2012. “Tudo tem sido registrado em foto e vídeo,” conta Michel, que espera apresentar o resultado no fim do ano com a realização de um grande even-to. No Guanabara, a sede do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) serviu como quartel general para a realização das oficinas de hip hop e grafite. A casa é arrumada. Possui umas seis salas. Funciona durante toda a semana. Tem uma piscina no quintal. O Cras integra a Secretaria de Ação Social da Prefeitura.

Turma que mobiliza o mutirão trocando uma idéia sobre a experiência

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Eram umas 10h da manhã quando aportamos na casa. Manoel Domin-gos, um negro de 31 anos, segundo grau completo, evangélico, ministrava au-las de hip hop. “Já fiz muita besteira. Fui pichador e perdi muitos amigos para a droga ou o crime”, explica o educador que é segurança da Igreja Universal, mas frequenta a Igreja Quadrangular. 

O som era baixo. Os\as meninos\as de 11 a 16 anos exercitavam na va-randa. Todos devidamente arrumados. Uns 20. Samuel Dantas tem 13 anos. É estudante da Escola Municipal Heronildes Frota de Aguiar pela manhã e à tarde pratica capoeira, natação e hio hop. Tem preferência pelo último item.

Domingos tem desenvolvido oficinas de forma sistemática des-de o ano passado nas sedes de vários Cras em bairros considerados

de risco. “Tudo começou na rua mesmo. Depois que surgiu o convite da prefeitura de realizar a ação nas sedes dos Cras” narra Domingos. Ele trabalha com um universo aproximado de 140 crianças e ado-lescentes na faixa etária de 7 a 18 anos em três locais considerados de risco: Icuí, Maguari e o Conjunto Júlia Seffer. Todos localizados em Ananindeua. O professor explica que a motivação do trabalho é

poder ajudar outros jovens.

◉ Parede para a liberdade de expressão ◉

Faz 10 anos que Preto Michel milita como educador social. O nome de batismo é Michel Sarmento, tem 35 anos, é pai de um adolescente de 17. O nome foi uma homenagem ao ídolo pop Michael Jackson. Traja bermuda, tê-nis e camisa larga, como indica a etiqueta da cultura hip hop. Na noite anterior havia recebido uma homenagem de uma ONG de Belém pela primeira década dedicada à ação popular. Parecia cansado.

Na mochila os sprays. Na outra mão o balde com tinta branca. Ajudo a carregar o balde. Ele divide o grupo em equipes de cinco. A gurizada parece ansiosa para iniciar os trabalhos. “Tio, quando a gente começa a pichar, inter-roga um mais afoito”? Michel esclarece: primeira lição - grafite não é pichação. O sol era forte. Mas, a meninada não arredou o pé. Tudo é muito rápido. O educador indica os passos iniciais, como retirar o gás do spray. Demonstra a técnica. Depois pede para que cada um pegue um suporte e faça o mesmo. 

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Amazônia - Jovens da Região Metropolitana de Belém usam a cultura como formade ação política

Coletivo Cosp Tinta em ação na Guanabara

Antes de iniciar os trabalhos as crianças e adolescentes usam a tinta branca para pintar a parede. Em seguida o instrutor abre o desenho, e vai dando dicas de como manusear o recurso do grafite. Os\as meninos\as alternam no protagonis-mo para a produção do desenho, que aos poucos vai ganhando forma. Isso sugere a participação de todos no processo de produção. Cada um com a sua colabora-ção. Um dos garotos parece mais habilidoso. É alvo de brincadeira dos colegas e adultos que acompanham a oficina: “nunca pichou uma parede”. Todos riem.

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Nas baixadas da região Metropolitana a arquitetura de madeira domina a paisagem. É recorrente situações de incêndios por conta

da instalação elétrica improvisada e acidentes domésticos. Por conta da ausência de creches, é comum o filho mais velho “cuidar” dos menores. A obra coletiva se encerra. É um livro. Ao centro a mensagem: “Educa-

ção é família”.

O mais novo tem 11 anos. É negro. Tem quatro irmãos. O irmão  mais velho de Bruno de Oliveira tem 18 anos e desistiu de estudar. O caçula tem seis anos. Ele mora numa ocupação chamada Mariguela, referência ao ativista comunista nascido na Bahia. O pai é pedreiro e a mãe é diarista. A região é considerada barra pesada. O educador Domingos conta que o local onde o garoto mora é de risco, marcada pela presença do tráfico. E que a situação da moradia é precária.

◉ Cabana FM – 10 anos de luta pela comunicação comunitária ◉

Dos pick-ups na praça ecoam canções que buscam provocar a reflexão do povo da baixada. O evento coincidiu com uma ação da prefeitura para a pres-tação de alguns serviços. A banca da literatura marginal está montada. Quem quiser pode apanhar qualquer livro e ler. Entre as obras um clássico da pesquisa na Amazônia de autoria do professor Vicente Salles, O Negro na Amazônia. 

Lacrada e fechada em várias ocasiões, coincidiu de ser o aniversário de 10 anos da Cabana FM, no dia 31. A emissora é comunitária. Ela fica perto da praça. Funciona na parte superior de um sobradinho. Há um ano conseguiu ser reconhecida pelo Ministério das Comunicações. Uma escadinha em espi-ral leva até o estúdio. O espaço é apertado.

O nome da emissora é uma referência ao movimento da Cabanagem (1835-1840). Insurreição popular que conseguiu tomar o poder no século XIX no Pará. Chapéus de palha estão sobre uma mesa. O chapéu de palha é ícone de representação do movimento. É perto de meio dia. O casal Margalho e Laélia Brito apresentam o Raízes Radicais, programa de reggae. No dial Erick Donaldson, uma referência do gênero, que vira e mexe baixa em São Luís para apresentações, e faz escala em Belém.

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Amazônia - Jovens da Região Metropolitana de Belém usam a cultura como formade ação política

A emissora comunitária funciona na frequência 87,9. E pode ser aces-sada via net. http://cabanafm.com.br/. Uma trupe de crianças e adolescentes toma de assalto o estúdio. Gilvan Souza, que apresenta o programa Revoluson, ministrou uma oficina. São umas 15 pessoas. Antes da explicação de como funciona a emissora e as entrevistas, uma radionovela sobre violência contra as crianças faz as boas vindas da casa. A radionovela é uma produção da ONG Rádio Margarida, especializada em produção de conteúdo voltado para os di-reitos das crianças e adolescentes.

◉ Praça ocupada e a calda longa ◉

As meninas que realizam a oficina de trançado afro chegaram atrasa-das. As 18 pessoas que esperavam foram embora. Elas usam os espaços da própria praça e começam a trançar o cabelo de quem se interessa. Na tenda das pick ups camisetas são comercializadas. Assim como os muros grafitados, elas exaltam a cultura de matriz africana ou signos do movimento hip hop. Na cidade existem várias grifes das baixadas.

A produção é do coletivo Cosptinta. O pessoal da Traumas Vídeos faz o registro audiovisual. São jovens da classe média que acompanham o universo do movimento. O blog (http://traumasvideo.blogspot.com.br/) da produtora independente informa as pessoas que integram o coletivo. Caio Romano cui-da da fotografia publicitária, enquanto Júlio Sodré zela pela produção executi-va e Michel Nôvo trata da edição.

Um primeiro olhar sobre os subterrâneos do que vem acontecendo em inúmeros momentos e locais da cidade, faz-nos lembrar das reflexões do geó-grafo Milton Santos, numa obra que trata sobre globalização.

O “negão” laureado com o título de doutor honoris em vários países aler-tava que, “uma nova civilização pode emergir a partir das formas de solida-riedade do universo periférico do capitalismo”. Parece que a marcha já deu os primeiros passos.

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A Amazônia é “Coisas de Negro”: rodas de carimbó contam uma parte da (re) existência cultural no Distrito de Icoaraci

04A Amazônia é “Coisas de Negro”[1]:

rodas de carimbó contam uma parte da (re) existência

cultural no Distrito de Icoaraci

Lilian Campelo & Rogerio Almeida

[1] Trabalho publicado no site da Agência Carta Maior, no dia 03 de fevereiro de 2013.

Espaço Cultura Coisas de Negro, no bairro de Icoaraci. Foto: Lilian Campelo

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A arte milenar da cerâmica marajoara produzida no bairro do Paracuri proporcionou uma visibilidade além rio-mar ao distrito de Icoaraci. Em tupi-guarani o nome significa “Mãe de todas as águas”. Assim como outras regiões da cidade de Belém, a baía do Guajará circunda o lugar, ainda repleto de furos, igarapés e rios. O rio Paracuri é um deles, assim como o Maguari, o igarapé Livramento, e tantos outros, de onde é retirada a argila, - cada vez mais rara-, para a produção da cerâmica.

É tempo de chuva na Amazônia. A ausência de saneamento básico im-pede o acesso dos consumidores do artesanato até o centro produtor. Limite que é sanado por quiosques de venda na orla central do bairro.

Além da arte marajoara e tapajônica, músicos de samba, rock, pop e ca-rimbó ajudam a compor a cena cultural do lugar, marcado pelo incremento da violência. Em novembro de 2011 a chacina de seis adolescentes sem passagem pela polícia comoveu o distrito. Alguns suspeitos estão presos. Mas, o caso continua uma incógnita.

20 quilômetros separam o centro da capital do Pará do lugar. A esbu-racada e mal sinalizada rodovia Augusto Montenegro é a principal via que leva ao bucólico logradouro apelidado de “Vila Sorriso”. Edificações ligadas à Igreja Católica marcam o espaço da orla, repleta de restaurantes e vendedores de coco.

Já a abandonada Biblioteca Municipal Avertano Rocha é um resquício dos festejados anos do ciclo da borracha, por uma parcela da sociedade. O chalé integra o portfólio da arquitetura do século XIX do município.

O cais que recebe a produção de hortifrutigranjeiros e o pesca-do é o mesmo de onde é possível embarcar para o arquipélago do

Marajó, e ilhas mais próximas, como a de Cotijuba, que durante muito tempo abrigou o presídio do estado. Uma viagem de menos de sessenta minutos de barco separa o distrito da ilha. A energia recentemente im-plantada trouxe mais conforto às pousadas, e incentivou a especulação imobiliária. No mesmo cais no mês de outubro ocorre a romaria fluvial

que celebra Nossa Senhora de Nazaré.

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A Amazônia é “Coisas de Negro”: rodas de carimbó contam uma parte da (re) existência cultural no Distrito de Icoaraci

Cais de Icoaraci. Foto: Maria Trindade

Após vários processos, desde os tempos das sesmarias, o distrito de Ico-araci foi instituído juridicamente na década de 1940. Vez em quando alguns setores do comércio e da política local ensaiam um movimento separatista de Belém. Enquanto isso não ocorre, na Av. Dr. Lopo de Castro, nº 1081, a cada domingo, há 13 anos, o Espaço Cultural Coisas de Negro celebra a cultura de matriz africana com inebriantes rodas de carimbó.

A percussão é a coluna dorsal da manifestação de matriz afro-in-dígena. Assim como o tambor de crioula do Maranhão, três tambores

(curimbós) compõem o naipe percussivo auxiliado por maracas. Cabe ao curimbó maior a marcação, enquanto os dois menores solam. Ao contrário da manifestação maranhense no carimbó existem instrumen-tos de harmonia, como a flauta transversal e o banjo. Os grupos mais

pop’s agrupam violão ou guitarra e baixo.

Homens e mulheres dançam em movimento circular. Cabe ao homem o galanteio. Na manifestação maranhense cabe às mulheres a dança, e aos ho-mens a música e o canto. As vestes são similares. As mulheres sempre dançam de saia. A camisa de chitão florido é comum na indumentária dos homens nas duas manifestações.

A matriz rural é o elemento comum das atrações culturais nos dois es-

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A percussão é a espinha dorsal do carimbó - Espaço Cultura Coisas de Negro, no bairro de Icoaraci.Foto: Lilian Campelo

tados. A região do Marajó e do Salgado (município de Marapanim) são as principais referências dos grupos de carimbó no Pará. Já no Maranhão, a ma-nifestação é encontrada nos bairros da periferia, e em inúmeras áreas em vá-rias regiões do estado marcadas por remanescentes de quilombo. Na periferia de Belém, no bairro da Terra Firme, migrantes maranhenses à Rua dos Pretos mobilizam-se em torno do tambor de crioula.

O nome Carimbó é de origem indígena. Em tupi korimbó significa pau que produz som, resulta da união de curi (pau oco) e m’bó (furado, escavado). As canções compostas por pescadores, extratores e lavradores fazem alusão a elementos da fauna e da flora, e ao dia a dia do trabalho e às práticas cotidia-nas. Versos do pescador e mestre Lucindo (Lucindo Rebelo da Costa) sinali-zam sobre o ambiente do Salgado:

Dona Maria chegouchegou de Moro-oca,para fazer a farinha, farinha de tapiocaÉ prá rebolir, é prá rebolirÉ prá rebolir, bolir, bolir, bolir, bolir.

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A Amazônia é “Coisas de Negro”: rodas de carimbó contam uma parte da (re) existência cultural no Distrito de Icoaraci

Esta é considerada a versão original. Em outra canção o mestre romantiza:

A lua sai de madrugadaSai no romper do solEla sai acompanhandoOs namorados que andam só...Ô, lua! Ô, lua! Ô, luar!Me leva contigo pra passear”

◉ Espaço Cultural Coisas de Negro – espaço de (re) existência ◉

Os apêndices da história deixam claro o preconceito e a criminalização das manifestações culturais de matrizes africana e indígena. Códigos de pos-turas de algumas cidades proibiam as rodas de capoeira e samba. Era coisa de malandro. Para (re) existir o samba ganhou o abrigo em terreiros de umbanda e candomblé, como no caso da Tia Ciata e apelou para o sincretismo. A visão obtusa de antes tem sido oxigenada nos dias atuais por alguns segmentos ne-opentecostais.

Assim como os ancestrais, homens e mulheres negras ou não celebram a cada noite de domingo o carimbó. A casa do Coisas de Negro é modesta. O sobrado recentemente passou por uma reforma. A ornamentação faz referên-cia às culturas africana e amazônica.

A seleção em prêmio do edital de Culturas Populares Mestre Humber-to de Maracanã (cantos de bumba-meu-boi do Maranhão), promovido pelo Ministério da Cultura realizado em 2008 possibilitou a reforma. O projeto foi contemplado na categoria Grupos Tradicionais Informais. A iniciativa contou com a ajuda da jornalista e produtora cultural Luciane Bessa, lembra o pro-prietário do espaço, Raimundo Piedade da Silva, mais conhecido como Nego Ray. Um senhor de meia idade e estatura mediana.

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◉ O espaço “Coisas de Negro” – entre o rústico e o haiteck ◉

O ambiente do espaço cultural é rústico. Peças de cerâmica, raízes de plantas secas, sementes e fotografias dos grupos de carimbó impressas e aco-modadas em lona de caminhão adornam as paredes de textura de argila.

Nos rituais de domingo, na parede acima do palco são exibidos filmes sobre cultura popular e curtas-metragens produzidos no Pará. O documen-tário Salve Verequete, falecido mestre do carimbó, não deixa de ser exibido. O cineasta Luiz Arnaldo assina o registro sobre a trajetória de um dos prota-gonistas da arte popular no estado. O negro esguio morreu doente e pobre. Somente no fim da vida contou com uma ajuda pecuniária da prefeitura de Belém. Para sobreviver vendia churrasquinho. A sina de Verequete é comum entre os artífices do gênero. A mesma trilha teve o mestre Bento.

◉ Internet, carimbó e cidadania ◉

As rodas de carimbó são transmitidas via internet - Espaço Coisas de Negro. Foto: Lilian Campelo

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É possível que nenhum mestre tenha imaginado que as rodas de ca-rimbó ganhariam o mundo. Hoje elas são transmitidas ao vivo via internet. O Carimbó.Net também contou com a participação de Luciane Bessa. O em-preendimento que começou no espaço cultural, hoje é projeto de extensão da Universidade Federal do Pará (UFPA). Ele conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará (Fapespa), através do Edital Ações Colaborativas para a Cidadania Digital, lançado em 2009.

A iniciativa proporcionou ao Espaço Coisas de Negro a oportunidade de ministrar oficinas de confecção e percussão de instrumentos para jovens, além de trabalhar com software livre e gravação de CD. Os frutos desse proje-to podem ser acessados nas redes sociais.

Ray sublinha que o Mestre Jorge ao ouvir a sua música sendo tocada pela primeira vez parecia criança dançando. “A equipe ficou maravilhada com aquilo. Acompanhando o mestre vendo todo o processo e se ouvindo, foi mui-to bacana”, arremata.

◉ Coisas de Negro – os primeiros passos ◉

No início o espaço cultural era um bar. O proprietário explica que o local existe há 21 anos. E que desde o início das rodas de carimbó passou a ser denominado de espaço cultural. O repertório musical era composto de voz e violão ao vivo sempre as sextas-feiras e a execução de vinis.

Ray relata que as rodas de carimbó começaram com a apresentação do gru-po ‘Curuperê’. Ele recorda que um grupo de pessoas ligadas à música o procurou. Isso tudo bem antes do bar passar a ser chamado ‘Coisas de Negro’. Eles tinham interesse em apresentar o trabalho que era voltado ao carimbó. Fui convidado a participar. E assim começamos a trabalhar em cima de um repertório autoral.

Nego Ray relembra a experiência que o projeto possibilitou ao vi-sitar uma comunidade quilombola Laranjituba, localizada no muni-

cípio de Moju, norte do estado. “Tivemos a felicidade de gravar a voz de um cidadão de 87 anos de idade, Mestre Jorge, que canta carimbó. Nós levamos todo nosso equipamento de som. Conseguimos captar o som dele e reproduzimos na hora o CD. Já tínhamos feito a capa e entrega-

mos para ele”, conta emocionado.

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A partir daí outros grupos parafolclóricos começaram a se apresentar no espaço. A iniciativa trouxe resultados. Outros locais também começaram a promover as rodas de carimbó. Até então a divulgação do carimbó era restrita a períodos festivos. “Antes as apresentações do carimbó ficavam confinadas às festividades da quadra junina. Com essa nossa atitude de fazer as rodas aos domingos, as pessoas começaram a aceitar mais o ritmo regional. Hoje a dan-ça aparece até no horário nobre da televisão, mas foi necessário que alguém, não só a gente, mas as pessoas que nunca deixaram de acreditar que um dia essa música iria chegar onde está começando a chegar. Bem como a teimosia dos grandes mestres que não estão mais aqui” afirma Nego Ray.

◉ Hibridismo cultural é Coisas de Negro ◉

Não há conflito entre o regional e o ‘de fora’, pelo contrário, há um encontro que proporciona uma nova expressão cul-tural. O hibridismo, longe de ser visto como uma deturpa-ção da cultura popular é considerado enriquecedor das prá-ticas culturais por esse segmento que conheceu o carimbó por meio do Mundé.

Esta frase, estampada em lona, ornamenta uma das paredes do Espaço Coisas de Negro. Quem entra rapidamente percebe que a energia do local congrega diversos campos culturais. Nego Ray explica, “Uma coisa que a gente percebe aqui é a mudança de comportamento das pessoas. As que são volta-das para outras tendências musicais, quando adentram no “Coisas de Negro” começam a se integrar. Têm as meninas do rock que já vêm aqui e vestem a sua saia”.

O animador cultural pontua que Icoaraci sempre foi vanguarda na cena independente do Rock. Ele cita o grupo Novos Camaleões como exemplo, e hoje a banda continua atuando no cenário. Novamente os integrantes o pro-curaram para que o espaço cultural fosse palco de experimentações musicais.

O jornalista Ismael Machado sugeriu ao Nego Ray o projeto Coisas do Rock. Na época estiveram no palco as bandas, Arcano 19, Cravo Car-bono e Norman Bates. “Retornamos agora, tem um ou dois anos com apre-sentações de grupos de rock. No dia 2 de fevereiro teremos The Smiths Co-

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O espaço cultural sempre esteve aberto a outros ritmos e estilos, mas não é só o local que congrega outras influências musicais. O gru-

po de carimbó Mundé Qultural é prova dessa efervescência contempo-rânea. Utilizando instrumentos como a guitarra, o baixo e percuteria, este último criado pelo próprio grupo, é um conjunto de instrumentos

como: prato, banjo, alfaia, pandeiro e caixa de bateria.

O grupo mescla experimentações sonoras envolvendo o popular e o contemporâneo. Nego Ray fala que eles deram uma nova roupagem à música ‘Moleque do Paracuri’ da banda Novos Camaleões, “Fizemos um arranjo bem legal, uma pitada regional com uma linguagem rock ‘n roll”. A mesma linha segue o grupo Lauvaite Penoso. Algo que lembra a turma que envenenou a cena musical (cultural) do Recife na década de 1990, isto para não falar de Raul Seixas, Mutantes e da Tropicália.

Hoje o Espaço Coisas de Negro abriga as mais diversas tendências e experimentações sonoras. Para Nego Ray a procura das pessoas pelo espaço denota uma carência de locais para a música autoral. “O que eu vejo hoje no ‘Coisas de Negro’ era o que um tempo atrás acontecia no teatro Waldemar Henrique. O teatro abria as portas para que as pessoas pudessem fazer as suas experiências musicais”.

O ensaio começou umas 7 h da noite. A batida leve na baqueta e o con-tar do “1, 2, 3, e...” marca mais um recomeço da música que está sendo ensaia-da. O local é no Espaço Cultural Coisas de Negro e o celular grava o áudio do ensaio. O ritmo é o lundu. Também de matriz africana. Ao contrário do ca-rimbó, a sonoridade é marcada pela suavidade e a cadência em pausas leves e fortes marcadas pelo batuque. No caso é tocado no bumbo da bateria. A dança é um ritual de sedução.

O ambiente do espaço “Coisas de Negro” inspira musicalidade e também contribui para o surgimento de novas parcerias, a partir de encontros e vivências com pessoas e grupos musicais plurais, como a diversidade do Trio Chamote.

ver e Los Hermanos Cover. Além dessa apresentação, antes teremos no dia primeiro de fevereiro o Buscapé Blues, com uma apresentação de música autoral” explica Ray.

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Composto por Silvio Barbosa (sopro), Luizinho Lins (banjo) e Char-les Matos (bateria), eles utilizam o espaço para ensaiar as cinco músicas já criadas. O trio se apresentará oficialmente no Teatro Waldemar Henrique na abertura do show do guitarrista Pio Lobato.

O Trio ainda é novo. Os músicos é que são velhos conhecidos do am-biente, desde os tempos do nascimento das rodas de carimbó. Todos moram em Icoaraci. O nome do Trio é originário de um dos processos de produção artesanal da cerâmica. Chamote é o nome dado aos restos de cacos de peças antigas da cerâmica marajoara, que são aproveitadas e misturadas ao barro natural para a criação de novas peças.

É desta realidade cotidiana e de vivências que os músicos criaram o es-tilo do trio. Charles, autodidata com 22 anos entre baquetas e pratos explica o som que produzem: “O Chamote surgiu de um sonho antigo de trabalhar a música regional folclórica inserindo uma roupagem contemporânea, com efeitos sonoros e linguagem jazzística, que consiste na improvisação musical”.

Luizinho explica que o Espaço Coisas de Negro também ajudou a cons-truir o Chamote “Aqui a gente busca conceito, tem as rodas de carimbó, todo esse ambiente ajuda a compor”.

Panorâmica do Espaço Coisas de Negro. Foto: Lilian Campelo

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A Amazônia é “Coisas de Negro”: rodas de carimbó contam uma parte da (re) existência cultural no Distrito de Icoaraci

A construção do conceito musical do Chamote partiu de algumas coin-cidências. Todos os integrantes possuem pesquisas distintas sobre os instru-mentos que tocam e ritmos amazônicos, contempladas com bolsa de estudo no Instituto de Artes do Pará (IAP). O horizonte de trabalhar com ritmos re-gionais, que mesclam com uma pegada mais contemporânea foi o que os uniu.

O espaço Coisas de Negro foi determinante para o encontro e a reali-zação do projeto, como afirma Silvio, “Talvez se não fosse o ‘Coisas de Negro’ o Chamote não iria se formar. Os ensaios no espaço, a convivência nas rodas de carimbó, e a troca de impressões com o Ray ajudaram a cimentar a ideia” pondera o músico.

Luizinho confirma, “Se eu estivesse em outro espaço, talvez eu estaria tocando com outro grupo, e só tocando, não estaria fazendo experimenta-ção sonora”.

Para o artista a relação que se dá no espaço é de solidariedade, “Quando o Ray cede o espaço para gente ensaiar, não é necessário uma assinatura em papel, e toda essa formalidade, as relações são baseadas no aperto de mão”.

◉ Cultura popular como patrimônio imaterial do Brasil ◉

O Tambor de Crioula, o primo do Maranhão, já foi reconhecido pelo Ministério da Cultura como patrimônio imaterial do Brasil. No Pará, um cole-tivo realiza uma campanha para a concessão da mesma chancela ao carimbó. Autores e intelectuais atuam em diferentes frentes.

Uns tratam da burocracia, enquanto outros organizam memorial sobre os grupos e nomes relevantes de mestres do ritmo, onde flutuam Verequete, Lucindo, Dico, Cizico e Bento, entre outros. E organizam eventos dentro e fora do estado.

A cada domingo além do Coisas de Negro, os ancestrais são festejados por percussionistas nas manhãs da Praça da República, no Centro de Belém. Ali entre mangueiras, e próximo ao cheio de pompa e circunstância Teatro da Paz, não raro os músicos entoam a canção mais popular do gênero: “Chama Verequete! Velejar. Velejar”.

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Amazônia – Mulheres negras protagonizam a luta popular

05Amazônia – Mulheres negras protagonizam a

luta popular[1]

Lilian Campelo[2] & Rogerio Almeida

[1] Publicado no site da Agência Carta Maior, em 12 de julho de 2013.[2] Lilian Campelo é jornalista freelance.

Hilária Batista de Almeida - “Tia Ciata”. Imagem da internet

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O seio da Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida) o samba alimentou, exclamava a canção de Aluísio Machado, de 1983, defendida pela Escola de Samba Império Serrano. A baiana de Santo Amaro da Purificação é personagem histórico da afirmação da cultura de ma-triz africana no Rio de Janeiro. A cozinheira e também mãe de santo é reco-nhecida por abrigar sambistas em sua casa. Relatos jornalísticos e acadêmicos a imortalizam como fundamental na consolidação do gênero no bairro da Saúde, Praça Onze e na Pedra do Sal.

Mãe Andresa teve importância similar nas terras do Maranhão. Ela diri-giu a Casa das Minas em São Luís. O espaço é uma referência do culto afro no estado. Ela foi a última princesa da linhagem direta Fon, originária do Benin e Togo. Ambas viveram no fim do século XIX e começo do século XX.

Trilha similar teve a escritora mineira de Sacramento, Carolina Maria de Jesus, nascida no ano do começo da I Grande Guerra, 1914. O livro mais conhecido, Quarto de Despejo, escrito na década de 1950, denuncia as mazelas do processo de exclusão social. Ao longo dos anos a obra foi traduzida para 13 idiomas. A mãe solteira Jesus morou na favela de Canindé, às margens do rio Tietê em São Paulo, no momento de modernização da metrópole. Ela defen-deu os dias como catadora de sucata. O livro é um diário de bordo de quem sobreviveu no olho do furacão da miséria.

Em Belém, as taieiras, grupo de mulheres lavadeiras que cantavam, con-figurou uma espécie de sociedade informal, contam relatos do historiador pa-raense Vicente Salles na obra O Negro na Formação da Sociedade Paraense. O pesquisador, falecido em março deste ano, é uma fonte reconhecida sobre a te-mática no estado. Salles explica que além das taieiras existiam as irmandades, que gravitavam em torno da igreja do N. S. do Rosário dos Pretos, localizada no bairro da Campina, entre os séculos XVII a XIX.

Negros e negras livres e escravizados\as compunham a musculatura das irmandades. Os Irmãos do Rosário e a Confraria do Glorioso São Benedito são sublinhadas pelo investigador, que lembra que elas concluíram a obra da igreja iniciada pelo arquiteto italiano Antônio Landi. Salles destaca que no fim do século XIX uma das associações, a Estrela do Oriente, tinha na direção as mulheres Maria Emília Torres e como vice Francisca Maria da Conceição. No conjunto de 11 assinaturas da fundação da organização, havia somente um nome masculino.

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Patriarcal e machista, o capitalismo é um dos indicativos da invisibilida-de da mulher na historiografia oficial. Negra ou não. No entanto, elas sempre existiram. Na Amazônia do século XX, o Centro de Estudos e Defesa do Ne-gro no Pará (Cedenpa), fundado no início dos anos 1980, serviu de catalisador das iniciativas contra o racismo num país em reconstrução democrática. No conjunto de ativistas são reconhecidas pelo engajamento e seriedade as mili-tantes Nilma Bentes e a professora Zélia Amador de Deus.

◉ Dra. Zélia - Filha de Nanã não foge a luta ◉

Professora Zélia Amador. Foto: Anselmo Bentes de Oliveira

Ela não é bijagó como afirmava a avó, é jita, corpo franzino. Os bijagós – grupo étnico que habitava o arquipélago da costa da Guiné Bissau – possuem corpo forte. A rebeldia a acompanha desde menina, também sendo filha de Nanã, como poderia deixar de ser. Orixá da chuva e da lama, na religião de matriz africana, e mãe de todos os orixás determina a personalidade forte. Uma das características de Zélia Amador de Deus.

Talvez seja por isso que a professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), e uma das fundadoras do Centro de Estudos de Defesa do Negro no Pará (Cedenpa) tenha dado um puxão de orelha no aluno estrangeiro com quem conversava. “Deixa dessas brasilidades! A tua namorada não tem nome? Então, que negócio é esse de chamá-la de ‘minha morena’. Eu sei o que há por

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trás desses argumentos e você também”. Ele rebate, “Mas no meu país todos são negros, aqui não professora”. E a conversa prolonga-se ainda mais, e envol-ve as questões de identidade do negro no Brasil.

De acordo com antropólogo Kabengele Munanga, professor-titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), no Brasil desenvolveu-se o desejo de branqueamento por algumas pessoas negras, assim não é fácil definir quem é negro ou não, o que torna a questão da identidade do negro um processo doloroso. Para o pesquisador, os conceitos de negro e branco têm por base fundamentos etnossemânticos, políticos e ideológicos, mas não biológicos. Nos EUA não existe pardo, mulato, ou mestiço. Pessoas descendentes de negros se declaram negras, por mais que tenham uma aparência de branco, o que não ocorre no Brasil.

Entre um argumento e outro, o resumo do debate é que o estudante originário da República Democrática do Congo veio ao Brasil para estudar, e assim galgar melhores oportunidades. Ao conhecer a Universidade de Cam-pinas (Unicamp) tenta convencer a professora para que seja transferido, e ar-gumenta: “A universidade de lá professora tem outra estrutura, comparada com as faculdades de primeiro mundo. Acredito que lá posso ter melhores oportunidades do que aqui”. Ela, com ar paciente e sereno, mas com voz firme mostra mais uma vez de quem é filha: “Falando assim você agora nos coloca como uma universidade de terceiro mundo! É isso mesmo? Não pode. Veja no que você está falando”, diz com rispidez.

Nos dias atuais as oportunidades são outras. No entanto, os percal-ços ainda existem. E eram bem maiores quando a professora Zélia Ama-dor, ainda nos tempos do Marajó do romancista Dalcídio Jurandir (1909-1979) rememora a história dos avós, Manuel Faustino de Deus e Francisca Amador de Deus, “Meus avós saíram do Marajó depois que a minha mãe engravidou. Quando eu nasci ela tinha acabado de festejar 16 anos. Eles fi-caram muito desgostosos porque não era isso que eles desejavam para ela. Assim, partiram para Belém, para que eu pudesse ter outra sorte, diferente do destino da minha mãe”.

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Amazônia – Mulheres negras protagonizam a luta popular

Zélia foi educada pelos avós que, na medida do possível, ten-taram proporcionar à neta condições para que tivesse melhores

oportunidades. A presença deles foi essencial em sua educação, e principalmente na construção e reconhecimento de sua identidade enquanto mulher negra. Foi dona Francisca que transmitiu através da oralidade os mitos africanos da cultura Fanthi-Ashanti, e propor-cionou à neta a descoberta de sua ancestralidade. “Não! Não se deve matar uma aranha! Essa aranha pode ter mãe. A mãe dela pode ser uma deusa. Ela pode ser filha de Anansia: Cresci ouvindo minha avó contar essa história. E eu pensava com meus botões: minha avó e

essas histórias do Marajó...”.

◉ O Marajó dos avós ◉

As lembranças que Zélia tem do arquipélago foram herdadas dos avós. “Negro no Marajó sabia onde era o seu lugar”, diziam eles à neta. Eles traba-lhavam em uma fazenda. O avô era vaqueiro e a avó fazia a comida para os empregados. A família morava no rancho, enquanto os proprietários brancos na casa grande. O arquipélago é terra de sesmarias. O escambo era a forma de pagamento pelo trabalho prestado. Dona Francisca, a avó de Zélia, nunca tinha visto dinheiro até chegar a Belém. Não sabia contar. Menos ainda co-nhecia o valor da moeda.

◉ Fantasia – Não na infância ◉

Após enfrentar um pedregoso caminho, Zélia Amador ocupa hoje lugar de destaque na cena dos ativistas negros e negras no país e no campo acadêmi-co. A doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA), coordena o Grupo de Trabalhos Afro-Amazônicos e integra a Comissão Téc-nica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros (Cadara), esta vinculada ao Ministério da Educação.

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No período da infância não existia espaço para fantasia nos dias de Amador de Deus. O ensino fundamental foi realizado no Instituto Catarina Labouré. Um colégio de freiras, onde foi monitora quando cursava a 5ª série. Era a melhor da turma. Ajudava os demais alunos em matemática, e por isso não sofreu tantos problemas com os colegas de sala de aula. “Eu tinha uma vantagem em relação aos outros alunos, era craque em matemática, por isso ninguém mexia comigo. Oh, não mexe com ela não, porque ela pode passar cola pra gente, sussurravam os pares de série”, recorda.

Poupada pelos colegas de classe, o mesmo não ocorreu com as freiras. Para muitas crianças o primeiro contato com as artes cênicas é feito ainda na escola. Não com Zélia. Ela conta que adorava dançar a música ‘La Bamba’, e foi por meio das artes que a menina jita aprendeu o que significa a palavra discriminação.

Ela narra que as freiras foram de sala em sala convidar os alunos que queriam dançar a música. Apaixonada pela dança prontamente levantou a mão. A freira escolheu os alunos, e apontou os selecionados. Passou por ela e não a selecionou. Zélia pediu explicação. “Fiquei triste e com raiva. A religiosa explicou que foram selecionadas as meninas mais bonitinhas. Eu questionei porque a menina com cara de cavalo – era esse o apelido dela – tinha sido, e eu era mais bonita que ela”, diz com ar de rebeldia.

A professora argumenta que naquele momento não tinha noção do real motivo de não ter sido escolhida. Descobriu em um segundo episódio o peso da discriminação. No colégio houve a apresentação de uma peça de teatro, as pastorinhas. Ela relata a lembrança: “Eu pensei que nesse evento eu poderia participar, pois havia um personagem da minha cor. Mas elas não me chama-ram. Eles escolheram outra menina, e para ela ficar preta, igual a do persona-gem, pintaram o corpo dela utilizando cortiça. Na minha infância não teve espaço para fantasia”.

◉ Orgulho de ser Amador ◉

Em 1974 a menina jita que não participou da peça da escola fez o curso de formação de ator, se fez atriz e diretora de teatro. Escreveu as próprias pe-ças depois de adulta. As memórias que encenam a vida de Zélia se concentram

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Amazônia – Mulheres negras protagonizam a luta popular

na identidade e no orgulho de ser mulher negra. A origem está na própria história dos Amador.

A história da família é recheada de episódios de aventuras e lutas. Em sua tese de doutorado Os herdeiros de Ananse: movimento negro, ações afirma-tivas, cotas para negros nas universidades, defendida em 2008, no curso de Pós Graduação de Ciências Sociais da UFPA, relata: “Cresci ouvindo a história de Bento Amador. Os Amador, conforme as histórias que eu ouvia, eram donos de terras, muitas terras. Os brancos não se conformaram, queriam as terras dos pretos. Os Amador lutaram e mataram branco. Quem matou? Ninguém sabe. O preto fugiu. Quem terá sido como terá acontecido? Lá estava a faca. E lá estava escrito gravado e cravado: “Bento Amador”. Cadê o preto Bento? Pre-to Bento fugiu. Nunca mais ninguém viu. “Preto Danado”! Deve ter ido para as bandas do Xingu. Bento Amador ficou na lembrança. E Bento Amador foi sempre minha inspiração para a luta cotidiana. Eu era Amador e Amador não nega a raça, dizia minha avó”.

◉ Políticas de ações afirmativas ◉

A inquietação da filha de Nanã a levou à rua para lutar pelos direi-tos dos negros. Em 1995 participou da primeira Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, que reuniu perto de 300 mil pessoas em Brasília. Elas buscavam o fim do racismo, a ação urgente do Estado brasileiro contra as desigualdades raciais e a melhoria das condições de vida da população negra.

Um ano após a marcha, o presidente à época Fernando Henrique Car-doso, cria o Grupo Interministerial de Valorização da População Negra (GTI), cujo objetivo era debater e criar políticas públicas que proporcionassem con-quistas sociais ao negro. Zélia foi uma das quatros mulheres que integraram o GTI como representante da Região Norte e do Cedenpa, assim como Vera Triunfo do Rio Grande do Sul, Abigail Páscoa do Rio de Janeiro e Dulce Perei-ra de São Paulo, além de quatro homens. O grupo cria o primeiro conceito de políticas de ações afirmativas, que tem por objetivo combater a discriminação e os efeitos negativos acumulados ao longo da história contra a população negra. Para a professora Zélia Amador, o desafio atual é a implementação das

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A inscrição do vestibular da UFPA é feito somente pela internet. Contudo, algumas comunidades quilombolas no Pará não possuem

energia elétrica. A dificuldade de acesso à universidade para os alunos que vivem em quilombos começou pela inscrição. A professora Zélia denomina tal fato de prática de racismo institucional, e explica que sendo a sociedade racista, a universidade não foge à regra, e explana: “Quando você tem uma política pública, e essa política pública é para alcançar determinado sujeito, ela deve ser dotada de mecanismos que permitam o alcance daqueles sujeitos específicos. Se ela não vem com esses mecanismos, ela não vai conseguir alcançar 100% do público a

quem se destinam as ações afirmativas”.

Nilma Bentes - milita há mais de 30 anos junto ao Cedenpa. Foto: Laís Tavares

políticas de ações afirmativas dentro das universidades, de modo a atender a todos os sujeitos de direitos.

O vestibular deste ano na UFPA cumpriu com as determinações das cotas raciais, e destinou parte das vagas de graduação para negros de comu-nidades quilombolas, indígenas e pessoas com deficiência física. O Grupo de Estudos Afro-amazônicos, que coordena, lutou pela reserva de vaga para ne-gros de comunidades quilombolas desde 2003. As cotas raciais e o processo seletivo especial para quilombolas são propostas elaboradas pelo grupo.

◉ Nilma Bentes – A guerreira da linha de frente ◉

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Amazônia – Mulheres negras protagonizam a luta popular

Avessa a entrevistas Bentes milita há mais de 30 anos no Cedenpa. É par de Amador e outros pioneiros e pioneiras pela ampliação de direitos da população negra no estado do Pará. Ela nasceu nos fundos da sede do Clube de Futebol Santa Cruz, no bairro da Pedreira, numa família de oito irmãos. Tem fama de ativista raivosa. No entanto, na manhã do dia 25 de maio, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Belém, durante o quarto dia de um encontro com mulheres do Maranhão, Pará e Amapá sobre Formação Política, parecia a mais bem humorada.

Ela ironiza o símbolo do feminino. Aquele com o círculo com a cruz para baixo. “Tem de ser assim, a cruz para baixo. Carregado de culpa e simbo-logia de inferioridade”? Ela se esquiva das perguntas a todo tempo. Pondera que ocorreram avanços como a agenda positiva e algumas garantias no campo jurídico. Em 1993 a agrônoma publicou o livro Negritando, onde ela mesma fez as perguntas e as respondeu. A obra tem perto de 300 páginas.

A luta parece ser o caminho natural para a efetivação de um horizon-te melhor para as gerações futuras, analisa em um momento do livro sobre a atuação das mulheres na linha de frente. Bentes advoga no livro que os mais velhos deveriam contar histórias sobre as referências do movimento negro, entre elas, Bob Marley, Negro Cosme, Luiza Mahin e Agostinho Neto, com vistas a reforçar o ego da criança negra. Preparar os jovens para enfrentar os desafios.

Sobre o processo de enfrentamento ao longo dos anos, ela lembra que o mais delicado foi um em que era acusada de racismo por um policial, após tomar partido em uma situação de conflito na rua de Belém. “Bentes é uma filha de Ogum. É uma guerreira da linha de frente. Ao mesmo tempo uma pessoa dócil, capaz de gestos generosos“ enfatiza a professora Zélia Amador no prefácio de Negritando. A trajetória de Nilma Bentes e de Zélia Amador, e outros atores, instituições e redes faz germinar outras organizações e modos de luta entre as novas gerações.

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◉ Thiane Neves, militante do Coletivo Casa Preta – uma nova geração ◉

Foto de rede social

Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA) Thiane Neves é uma negra paraense de Belém, com parentes no interior do Maranhão. Morou por um tempo em São Paulo, onde cursou especialização na Escola de Comunicação e Arte (ECA\ USP), e frequentava espaços relaciona-dos com a cultura de matriz africana. A publicitária é filha de Jane Neves, pro-fessora do Curso de Enfermagem na Universidade Estadual do Pará (UEPA).

Na década 1980 a mãe trabalhou em Guiné Bissau, no pós-guerra. As fotos sobre a realidade do país arrasado pelo conflito, enviadas pela mãe cho-cavam a ainda criança, que não compreendia porque a meninada tinha aula sob árvores, espaços desprovidos de qualquer material escolar e sem carteiras.

A mãe é uma referência lembrada quando Thiane reflete sobre a iden-tidade negra. “A mãe chega chegando. Ela se impõe, choca com cabelo black que adota, e os turbantes e adereços que usa”, festeja uma orgulhosa filha. Atu-almente a novata na fronteira da militância enfrenta o desafio de encerrar uma dissertação em Comunicação Social na UFPA.

Neves promove os primeiros passos junto ao movimento. Outro dia descobriu que Oxóssi é o seu guia. Num festejo dedicado ao orixá no terreiro da mãe Yacira, localizado na região metropolitana de Belém, por mais de uma vez lacrimejou com a celebração. Ela integra o coletivo Casa Preta, uma as-

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Amazônia – Mulheres negras protagonizam a luta popular

sociação de jovens ativistas. O grupo combina a transferência de informação sobre a cultura negra e a militância em torno do software livre.

A Casa Preta, que fica na Rua Roso Danim, no bairro de Canudos, aglu-tina migrantes da capital e interior do estado, um paulista (Don Perna) e um maranhense (Lamar). Perna discoteca em festa black e ministra oficina para a construção de instrumentos de percussão. Lamar é rapper. Eles são os articu-ladores do projeto.

O coletivo mobiliza esforços a partir da cultura para sensibilizar os jo-vens dos bairros periféricos. Na agenda de atividades consta a promoção de debates, produção de projetos, oficinas para a construção de instrumentos e percussão. “Encontrei-me aqui. A turma consegue fazer um trabalho interes-sante que combina o aspecto combativo e generoso” enfatiza Neves. A direção da casa é equilibrada, 10 pessoas. Metade masculina e a outra feminina.

◉ Nega Suh – A artesã da luta ◉

Nega Suh e sua arte foram para além das fronteiras de Belém. Fotos: arquivo de Suh

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“Se eu quero pixaim, deixa / se eu quero enrolar, deixa / se eu quero assanhar, deixa / se eu quero cobrir, deixa / Deixa, deixa a madeixa balançar” – Chico Cesar falou e disse.

Assumir a cabeleira é o primeiro passo para o reconhecimento do ser negra ou negro. Suhellen Sena (Nega Suh), 29 anos, expõe com orgulho a beleza da mulher negra. Camaleoa, ela circula na cidade em alguns momen-tos com o cabelo Black Power, noutros com Trança Nagô ou com turbantes coloridos.

Assim como Thiane Neves, Nega Suh é militante da Casa Preta. Faz par-te da nova geração de mulheres negras envolvidas em coletivos e movimentos sociais. Artesã, ela produz colares e pulseiras pautadas na estética afro. De-senvolve uma linha de pesquisa sobre a simbologia africana, e faz questão que seja identificada como tal. Desta forma, acredita contribuir para a valorização de uma estética da mulher negra nas oficinas em que realiza em comunidades quilombolas em áreas urbanas ou rurais no Pará.

Sena tem mais duas irmãs. Em família grande de condição monetária limitada, a labuta inicia cedo. Aos 15 anos começou a trabalhar. Segundo ela, momento de lazer era algo esporádico. Curtir a adolescência não foi tão pro-veitoso, “pirar aos 18 anos” como ela mesma diz foi algo que não aconteceu. Por trabalhar muito cedo os estudos ficaram em segundo plano, mas ela ainda pensa em fazer vestibular para o curso de Ciências Sociais.

A identidade do ser negra dessa mulher com sorriso de menina percor-reu caminho inverso ao da companheira de luta no Coletivo Casa Preta. A família não foi o molde da construção da personalidade de se ver como negra. Seja no aspecto cultural, social ou político. Quando se assumiu e passou a ex-por-se através do pensamento, atitude e estética, a mãe custou a aceitar. “Mi-nha mãe demorou muito para me aceitar dessa forma. Até então não foi fácil, demorou muito pra sair da porta da minha casa com o turbante na cabeça, e a minha mãe não achar aquilo horripilante” conta.

Suh explica que a razão do preconceito por parte dos familiares está na falta de conhecimento sobre a cultura e luta do negro no Brasil, e destaca

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que o principal motivo reside na questão religiosa. A família é de tradição evangelista e avalia, “Quando tu te deparas como um ser humano negro, como uma pessoa negra, tu carrega toda uma história do que é ser negro: da tua religião, da cultura, da tua condição, do teu pensamento, e eu vim de uma família que tem uma cultura evangelista, que são pessoas que vieram da religião cristã. Eu sou cristã também, não sou da umbanda ou do can-domblé, mas nada me impede de participar dessa realidade. Isso faz parte da minha história também”.

Suh trabalhou como vendedora em um shopping durante cincos anos. Ela lembra que alguns clientes queriam ser atendidas por outras vendedoras de pele parda. “Teve momento que muitas mulheres brancas não queriam ser atendidas por mim, pelo fato de eu ser negra. Eu usava Black, usava trança. Aquilo, na cabeça delas eu era algo inferior e eu não poderia ajudá-las. Mas, enfim, tu precisas do bagulho, ai tu vai engolindo, vai aturando”.

Este ano Nega Suh sofreu injúria racial por parte do vizinho que mora ao lado de sua casa. Ele é líder evangélico e a difamava a chamando de ‘ma-cumbeirazinha’ por ela usar turbantes e tranças. O termo além de ser pejorati-vo, tem como objetivo demonizar a religião de matriz africana.

Sena reflete que o primeiro comentário você releva, como eu fiz. Fiz em consideração a minha família. Para não envolver ninguém. Na segunda vez a porrada foi maior, dele bater no peito e dizer “tu é macumbeirinha sim!”. Por conta da injúria entrou com uma ação judicial contra o religioso. Em agosto será realizada a segunda audiência do processo.

Em todo o estado em diferentes campos o movimento se espraia e finca suas bandeiras, delimita território, busca ocupar espaços e mobiliza esforços para a efetivação da democracia. Passados quase três anos da produção deste trabalho, muitas águas rolaram sob e sobre as pontes dos mundos amazônicos relacionados com os movimentos aqui narrados.

As meninas não integram mais o Coletivo Casa Preta. Suh aprofundou a sua produção artística no grafite e a sua arte atravessou as fronteiras do esta-do, ocupa os muros de outras praças. Neves é a ciberativista e educadora. E o Bloco Casa Preta ocupa novas ruas.

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Coletivo Rádio Cipó – A inquietação cultural na quebrada da Amazônia

06Coletivo Rádio Cipó –A inquietação culturalna quebrada da Amazônia[1]

Há cidades na Amazônia. Ao contrário da perspectiva exu-berante dos que percebem a região. Uma delas, Belém, soma mais de um mi-lhão e meio de habitantes, cresce de costas para o rio. A cidade que é quase uma ilha coleciona favelas. Os espigões proliferam por toda parte, como o mercado informal. O cimento sufoca furos, igarapés e rios em Santa Maria do Grão do Pará, nome de batismo da capital paraense.

Não há emprego para todos. A cidade é para todos? Os condomínios verticais ou não despontam como signos da tragédia

social que conforma o país. A cidade se avoluma descoberta de saneamento básico, desprovida de transporte coletivo digno, sob um calor escaldante, su-focada em engarrafamentos.

Ela é negra, índia, branca e mestiça. Inóspita para a maioria dos filhos seus. Nela os canais proliferam, assim como as gangues e a venda de balas e picolés e a mendicância nos coletivos. É a mais barulhenta da nação.

A informalidade integra a paisagem. Há vendedores de inúmeros pro-dutos: picolé, água, água de coco e o que for possível comercializar. À noite a

[1] Trabalho publicado originalmente na edição comemorativa de 30 anos do Jornal Resistência, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH), em outubro de 2008 e posterior-mente no site Overmundo.

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fumaça dos churrasquinhos nubla alguns pontos da cidade. Em várias vicinais o corpo é comercializado. Tudo parece banal.

A polícia é a presença mais constante do Estado nas baixadas, numa dessas, à Rua Álvaro Adolfo, no bairro da Pedreira, renomado pela sua boe-mia, abrigo de inúmeras manifestações populares germinou Coletivo Rádio Cipó.O balaio de animação cultural agrupa gente jovem e outros não tão jo-vens assim. A rua que é considerada celeiro de artistas, abriga uma série de grupos de carimbó.

Lá, Ruy Montalvão e Carlinhos Vas encontraram D. Onete. A professora aposentada é compositora e cantora, venceu vários festivais de carimbó no estado. Mestre Bereco é outro carimbozeiro do grupo, que ainda tem o mais veterano roqueiro do Brasil, mestre Laurentino, 82 anos de praia.

O Coletivo se auto-define como um núcleo de produção de mídia so-nora aliado à tecnologia de áudio digital caseira na produção de pesquisas sonoras experimentais com o objetivo de divulgar essa produção para o Brasil e no exterior. Dão seiva ao grupo MC RatoBoy (vocal), MC Jamant (vocal), Renato Chalu (guitarra), Jarede das Arabias (baixo e guitarra) e Luís Bolla (percussões), Carlinhos Vas, Mestre Laurentino e Dona Onete.

◉ Primeiros passos ◉

O vocalista Ruy Montalvão, “RatoBoy”, explica que a gênese de tudo se encontra no fim da década de 1990, quando o mesmo militava na banda auto-ral Manga Beso, ao lado de outros músicos como Carlinhos Vas, Vlad Cunha, Bernardo e Márcio Maués.

“Fervilhava o festival “Rock das 6h” na cidade e a banda iria se apre-sentar pela primeira vez num palco com estrutura. Ná Figueredo, conhecido animador cultural em Belém nos chamou e pediu para que um senhor, mestre Laurentino, abrisse o show da banda. Apelou que o coroa fazia um som ba-cana na gaita harmônica. O grupo topou e seu Laurentino caiu na graça de todos”, recorda Montalvão.

Se é necessário sorte na vida e estar num lugar certo e na hora certa, seu Laurentino foi laureado por ela. Hermano Vianna, doutor em antropo-logia, pesquisador na área de música e coordenador do site Overmundo, se

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encontrava no espetáculo. O irmão do Herbert Vianna, vocalista da banda Paralamas do Sucesso, observava o show. O intento do pesquisador era ga-rimpar artistas locais para integrar a iniciativa Música do Brasil, e convidou Laurentino para o projeto. Foi a janela para o mestre ser conhecido em terri-tório nacional.

Após a experiência cada membro da banda tomou um rumo, voltando a se encontrar tempos depois motivados pela aprovação de um projeto com in-centivo de lei municipal, Tó Teixeira. “Foi aí que fui morar com o Vas na Álva-ro Adolfo, após uma temporada em São Paulo. Fizemos a experiência de uma rádio popular de poste. A gente tocava além da música do grupo a do pessoal local. A experiência durou até o chefe de uma gangue solicitar o fim da rádio, que estava prejudicando os interesses da emissora dele”, lembra Montalvão.

Coletivo Rádio Cipó. Foto: divulgação

O som do Coletivo mescla a musicalidade regional com batidas eletrô-nicas. Soa hip hop desprovido de chatice e repetição. A sonoridade que nasceu na quebrada amazônica com ensaios realizados nas ruas do próprio bairro já ganhou o país. A via foi a divulgação através da rede mundial de computado-res tanto das faixas do primeiro CD, Formigando na calçada do Brasil, lança-do este ano pelo selo Ná Records, como através de videoclipes.

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Capa do primeiro CD do Coletivo Rádio Cipó. Arquivo da banda

Uma outra possibilidade de visibilidade do trabalho do grupo é a par-ticipação em festivais considerados alternativos que pipocam em todo o país. Tais festivais soam como uma afirmação que se pode produzir sem a mediação de grandes corporações do mercado fonográfico, a cada dia mais esquálido. Assim o grupo já foi aclamado em São Paulo, Rio de Janeiro Goiás, Pernam-buco e Brasília.

As músicas da Rádio Cipó impregnadas da influência do rock, dubby e ragga muffy estão postadas no site da gravadora Trama e mantém o pró-prio site, www.coletivoradiocipo.org. O projeto mais ambicioso do Coletivo é a produção do registro da obra do mestre Laurentino em várias mídias: DVD, CD e livro.

◉ Mestre Laurentino – o neto de escravos que virou pop depois dos 70 anos ◉

Encontramos João Laurentino da Silva, mais conhecido no mundo pop como mestre Laurentino, numa manhã ensolarada de setembro na Pra-ça da República. O neto de escravos veio ao mundo no dia primeiro de ja-neiro de 1926, no município de Ponta de Pedras, arquipélago do Marajó. Aos quatro anos foi adotado pelo juiz de direito Francisco das Costa Palmeira. Não tem mais irmãos vivos e depois de adotado não manteve mais contato com os pais biológicos.

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Estudou até a quinta série. Trabalhou como técnico de manutenção de aviões na extinta empresa Real Aerovias, que existiu entre 1946 a 1961. O autor do hit Lourinha Americana, que tira um sarro do pedantismo estadu-nidense, também passou pela roça e pela exploração da madeira. “A música é sucesso internacional. Já recebi comentários da Itália, Portugal, França, Ale-manha e até do próprio Estados Unidos”, fala com orgulho o serelepe senhor de 82 anos.

A música foi gravada pela banda pernambucana Mundo Livre S/A, no CD Por pouco. Num trecho a canção dispara: Essa lourinha americana (louri-nha americana)/Está querendo me escolachar/Foi dizendo que eu sou negui-nho (bem neguinho)/E que na América eu não posso entrar.

O aposentado que recebe um salário mínimo por mês reflete que o mundo se encontra cheio de bandalheira e que não gosta de lari-lari. Humil-de, apesar da popularidade, considera-se pequeno, menor que um grão de mostarda. Laurentino tem memória prodigiosa. Lembra de fatos históricos e políticos antigos. Como uma eleição do tempo do interventor Magalhães Barata, quando era comum se emprenhar urnas.

Neto de escravizados vindos para o Marajó alcançou o sucesso somente após os 70 anos de vida, quando passa a integrar o Coletivo Rádio Cipó.

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Lourinha Americana - é o grande hit do mestre, gravado pela banda Mundo Livre S/A. Foto: Rosa Rocha/2012

Morador da ilha do Outeiro, raramente o mestre fica seu chapéu. Foto: Rosa Rocha/2012

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◉ O mestre em detalhes ◉

O mestre mora na ilha do Outeiro, região metropolitana de Belém com Elza Freire da Silva, com quem teve 10 filhos. Mas, somando com outros re-lacionamentos Laurentino contabiliza o total de 16 rebentos. Além da com-panheira Elza o compositor que guarda as canções que faz na cachola, tem como xodós dona Maria Josefina, acreana descendente de europeus e a dona Leonice dos Santos. Segundo o mestre, ele ainda confere o placar em noites chuvosas.

Por cinco mil réis comprou a primeira gaita aos 18 anos. Desde menino manifestou interesse por música. Passou por incontáveis programas de au-ditórios nas emissoras de rádio e TV´s locais. Narra aventuras do tempo da PRC-5, atual Rádio Clube. O hoje celebrizado mestre já foi homenageado pela câmara municipal de Ponta de Pedras e em Belém.

Anéis enfeitam o figurino do Mestre Laurentino. Foto: Rosa Rocha/2012

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Recentemente recebeu um incentivo da governadora Ana Júlia para a construção de uma escolinha e aquisição de instrumentos para a sua banda de rock. “Não esquece de colocar isso” exige o artista que no CD que deve ser lançado ainda este ano versa sobre a disputa eleitoral estadunidense.

Mestre Laurentino só toma vinho e há oito anos abandonou o cigarro. Adora andar e contar causos. Diz ele que chega a percorrer até 14 km quando visita o município de São Caetano de Odivelas, onde tem uma terrinha. Sem modéstia afirma que aonde chega esbandalha tudo.

“Tomo conta”, afirma o roqueiro mais antigo do Brasil. Entre as aventu-ras das múltiplas viagens, ele conta que no festival de Goiânia os “malucos” o apanharam do palco e o jogaram para o alto. Caiu em cima da caixa de som e quebrou os óculos.

Na manhã que comungamos nota-se a preocupação e amor do mestre pela natureza. Em certo momento da conversa ele interrompe e aponta a brin-cadeira de um par de passarinhos. “Coisa linda,” exclama. Além da coleção de chapéus, relógios e anéis, – as mãos sempre estão repletas deles –, o mestre coleciona cães, são mais de 14, afirma. Tirando o som com a batida das mãos ele cantarola várias canções do primeiro CD solo, em fase de produção. Numa delas filosofa: “No galho de nossas fantasias cada um tem a sua aranha”.

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Ditadura na Amazônia – Hecilda Veiga e a memória de uma mulher do front

O staff político-ideológico estadunidense exer-ceu papel decisivo, no século passado, no processo de instalação de estados de exceção em países da América Latina. No continente, a Argentina passa a limpo o período ditatorial, e tem punido e continua a julgar os responsáveis pela violação dos direitos humanos.

No dia 12 de março deste ano condenou à prisão perpétua Reynaldo Bignone, o último presidente da ditadura militar (1976-1983). O ex-presiden-te foi condenado por crimes contra a humanidade cometidos no centro clan-destino Campo de Mayo. Junto com Bignone irão cumprir a mesma pena os ex-militares Omar Riveros, Luis Sadi, Eduardo Oscar Corrado e Carlos Tomás Macedra.

O Chile tenta fazer o mesmo caminho, mas, tem enfrentado resistência. O Brasil instalou em maio de 2012 a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com vistas a apurar, no prazo de dois anos, as violações dos direitos humanos no período da ditadura civil militar (1964-1985). E, como no Chile, há situa-ções de tensão, a exemplo do atentado à bomba, ocorrido na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do estado do Rio de Janeiro.

07Ditadura na Amazônia –

Hecilda Veiga e a memória de uma mulher do front[1]

Lilian Campelo e Rogerio Almeida

[1] Trabalho publicado no site da Agência Carta Maior, no dia 17 de março de 2013. Lilian Campelo é jornalista. Entrevista – Lilian Campelo e Luena Barros (jornalistas) Dilermano Gadelha (estu-dante de jornalismo da UFPA).

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A Guerrilha do Araguaia, ocorrida no fim dos anos 1960 e nos anos iniciais de 1970, no sudeste do Pará e norte do Tocantins (antigo território de Goiás), com abrangência até o oeste do Maranhão é o caso mais significa-tivo na Amazônia. O episódio foi protagonizado por militantes do PC do B. Um Grupo de Trabalho (GT) foi constituído dentro da CNV para investigar o caso. Cláudio Fonteles, José Carlos Dias e a psicanalista Maria Rita Khel são os responsáveis pelas investigações, enquanto Pedro Pontual e Vivien Ishaq, os encarregados pela pesquisa.

Entre os militares, o major Curió (Sebastião Rodrigues de Moura) des-ponta como o de maior visibilidade na repressão aos guerrilheiros e simpati-zantes locais ao movimento e religiosos alinhados à Teologia da Libertação da região, entre eles o padre Roberto de Valicourt. Helenira Rezende de Souza Nazareth, Luisa Augusta Garlippe, Maria Lucia Petit da Silva e Suely Yuniko Kanayama, Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha foram algumas das mulheres do PC do B que tombaram em combate com o Exército.

◉ Amazônia Integrada ◉

O contexto político, econômico e social é conhecido como o de integra-ção da Amazônia ao resto do país. Naquele momento, em 1971, o decreto de nº 1.164 federalizou 100 km das terras consideradas devolutas das rodovias federais em construção e as projetadas. A militarização da Amazônia engen-drou um mundo de quartéis na região.

Polos de produção baseados em madeira, pecuária e mineração regiam o cenário econômico, que buscou incrementar a instalação de empresas do Centro Sul do país a partir de uma política de incentivos fiscais. Tratava-se do braço civil do regime, sem falar na grande mídia e setores da Igreja Católica. Neste segmento Dom Alberto Ramos, arcebispo de Belém da época, foi um ponta de lança.

Ele era responsável por artigos contra os comunistas no jornal católico Voz de Nazaré. O acreano tenente coronel Jarbas Passarinho, ex-governador do estado e ex- ministro é considerado um personagem central na condução da ditadura no estado do Pará. Coube a Passarinho a deposição do governa-dor Aurélio do Carmo, que será homenageado numa cerimônia na Assem-bleia Legislativa no dia 18. Ironia? Passarinho é conterrâneo do ambientalista Chico Mendes. Ambos nasceram na mesma cidade, Xapuri.

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Ditadura na Amazônia – Hecilda Veiga e a memória de uma mulher do front

◉ A Ação da CNV NO PARÁ ◉

No Pará as atividades da CNV iniciaram em agosto do ano passado com a realização de uma audiência pública em Belém, e outra na região do Araguaia. Em novembro do ano passado e no começo deste ocorreram visitas de campo à região no sudeste do Pará para ouvir camponeses e indígenas Suruí. Na ocasião foi criada a Associação de Torturados na Guerrilha do Araguaia (ATGA).

Paulo Fontelles Junior, ex-vereador pelo PC do B em Belém é um dos membros da CNV no estado. O ativista é filho do ex-deputado estadual e ad-vogado Paulo Fontelles e da professora Hecilda Veiga. Ambos militaram em defesa dos direitos humanos. Por defender posseiros, o pai foi assassinado no dia 11 de junho de 1987, na BR 316, com três tiros na cabeça desferidos por pistoleiros a mando da União Democrática Ruralista (UDR). Paulo, nessa época, advogava as causas camponesas e estava à disposição da Comissão Pas-toral da Terra (CPT) no sul do Pará. A década de 1980 é considerada como a mais sangrenta na história da luta pela terra no Pará.

Jornal Resistência - Veículo de comunicação da Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos

◉ Hecilda Veiga – uma mulher no front contra a ditadura ◉

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Ela tem pouco mais de um metro e meio. Corpo franzino e cabelos ra-los. O físico frágil não a impediu de integrar um grupo de ativistas em defesa dos direitos humanos em Belém, capital do Pará, no período conhecido como de exceção na história política brasileira (1964-1985). O raciocínio articulado que recompõe com entusiasmo fatos históricos, ganha forma a partir de uma voz suave.

Ao lado de outras mulheres como Marga Rothe, Eneida Guimarães, Ro-saly Brito, Regina Lima, Ana Célia Pinheiro, Isabel Cunha, a professora do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Hecilda Mary Ferreira Veiga ajudou a fundar a Sociedade de Defesa de Direitos Humanos (SDDH), e militou no PC do B e na Ação Popular (AP). Num instante em que o PC do B e a AP rivalizavam a hegemonia da esquerda com o PCB.

Além de Hecilda e seus pares mais próximos, é conhecida na história do Pará a atuação do ex-deputado e escritor Benedito Monteiro, do professor e escritor João de Jesus Paes Loureiro, Cláudio Barradas, Ronaldo e Ruy Barata e Raimundo Jinkings contra o regime. A pessoa que se depara com a educado-ra nos corredores da UFPA não imagina as agruras que a mesma passou nos cárceres durante a ditadura militar.

◉ Uma mulher no front ◉

“Eu acho que meu coração ainda é de estudante, como diz a música de Milton Nascimento”. Assim a professora começa a narrar a experiência que vivenciou durante o período de exceção. Antes, tira da bolsa um lenço branco decorado nas bordas com pequenas flores coloridas. Põe em seu colo, lugar mais acessível às mãos, que livres poderá usá-lo caso precise.

O narrar da história se faz a partir da reconstrução de fatos. É um de-senrolar de lembranças de homens, mulheres e crianças que fazem parte desse enredo, mas o que se observa é que o protagonista da memória oficial, ao lon-go de muito tempo, teve um narrador, a figura masculina.

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Ditadura na Amazônia – Hecilda Veiga e a memória de uma mulher do front

Capa do Jornal Resistência pela passagem dos 10 anos da execução do companheiro de Hecilda Veiga, o advogado Paulo

Fontelles

◉ Elas não são de Atenas ◉

“Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos / Orgulho e raça de Atenas”. A música de Chico Buarque, em tom irônico, demonstra como a sociedade define o papel da mulher. Ao longo dos tempos, elas foram relegadas ao anonimato e ao esquecimento, o que se observa em um dos episódios mais recentes e brutais da história brasileira.

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Naquele momento havia um interesse e curiosidade em tudo que acontecia. Havia uma atmosfera contra as condições coloniais em vá-

rios cantos do mundo, e pela ampliação dos direitos civis. Havia subs-tância. Preocupava-se com um caminho para uma revolução brasileira. Em Brasília causava estranheza para o pessoal que a gente da Amazônia conhecesse a última canção do Chico Buarque. Os debates eram canden-tes e acalorados. Tive dificuldades em voltar para a universidade após

a experiência do cárcere. As coisas que sofri e vi foram terríveis.

Mulheres que transgrediram a ordem e o progresso ditado pelo gover-no foram torturadas. Por serem mulheres, as torturas tinham o objetivo de degradar a alma feminina. O corpo nu ficou à mercê do torturador, as humi-lhações, a violência psicológica e sexual não pouparam mães, freiras, jovens, nem mesmo grávidas.

Sim, grávidas. Foi o caso da paraense Hecilda Veiga. “Quando fui pre-sa, minha barriguinha de cinco meses de gravidez já estava bem visível. Fui levada à Delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer.”

O testemunho está no livro “Luta, substantivo feminino”. A obra faz par-te do relatório “Direito à memória e à verdade”, realizado pela Secretaria Espe-cial dos Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres. Nele, há histórias de vida e morte de 45 mulheres brasileiras que lutaram contra a ditatura militar e o testemunho de 27 sobreviventes que narram com coragem os horrores que sofreram nos porões da ditatura.

Hecilda Veiga lutou contra o regime juntamente com seu esposo Paulo Fontelles. Marido e mulher eram militantes na Ação Popular Marxista-Leni-nista (APML). O casal foi para Brasília, onde ficaria mais próximo dos aconte-cimentos políticos. Ela estudava Ciências Sociais, ele Direito na Universidade de Brasília (Unb). Mas, em outubro de 1971, foram presos. Neste ano, come-çou a história de coragem e luta pela dignidade humana não só de Hecilda, mas de muitas Marias, Anas, Lúcias e Teresas...

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Ditadura na Amazônia – Hecilda Veiga e a memória de uma mulher do front

◉ A prisão em Brasília- era 1971 ◉

“Fomos convidados pela direção do partido para ajudar a oxigenar a luta. Morávamos na própria universidade, num alojamento destinado a casais. Não tardou, eu e o Paulo assumimos a condição de lideranças para reavivar os centros acadêmicos livres. As medidas encaminhadas pelo professor Darci Ribeiro haviam sido refreadas, e parte do quadro de professores demitida, e outra seguiu para o exílio no exterior”, rememora Veiga.

A professora pondera que em Belém ocorria uma gravitação de pessoas em torno da Faculdade de Ciências e Letras da UFPA, e que havia uma série de representações estudantis em Belém que agitavam a mobilização em oposi-ção ao regime. “A Escola Paes de Carvalho tinha tradição de pessoas articula-das, entre elas recordo da Zélia Amador, Cristóvão, Pipira (Medicina), Mauro Brasil, Ubiratan Barbosa. Promoveram ocupações de alguns prédios públicos aqui em Belém em protesto contra a violência da ditadura. Neste momento recuperamos o Centro Popular de Cultura (CPC)”, recorda.

Sobre a prisão e tortura, em relato publicizado na internet, a professora narra que: “Fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos “refletores”.

Hecilda Veiga, professora da UFPA foi torturada no pau de arara, na sede do Pelotão de Investigação Criminal

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Em outro momento ilustra que “Eles nos mantinham acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto. Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à ‘tortura cientifica’, numa sala profusamente iluminada. A pessoa que interrogava fica-va num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentá-vamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios.”

“As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia. De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de

volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, co-meçaram a me roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irri-tadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experi-

ência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei, encerra Hecilda.”

◉ O Lenço branco ◉

Contar o que foi 1968 faz parte da memória coletiva. Enfrentar o pas-sado é o primeiro passo para que a sociedade entenda os fatos ocorridos e, assim, não permita que crimes contra a humanidade voltem a acontecer, ar-gumenta Hecilda.

“Eu tinha certa dificuldade de falar sobre isso, mas já passou aquela fase mais difícil dos primeiros tempos. Mas eu acho que é preciso que a gente conte tudo isso para que não se repita mais. Poxa, quantas vidas interrompidas! A vida de uma geração. Até hoje fico muito comovida quando ouço a música ‘Coração de estudante’: ‘Podaram seus momentos, desfiaram seus destinos’. A sensação que eu tenho até hoje é essa, de que eu estou correndo contra o tempo, por que eu tive a minha vida acadêmica interrompida. Eu concluí meu curso depois de 15 anos. E, apesar disso, eu ainda posso dizer ‘ah, eu sobrevivi’, mas quantos outros não sobreviveram?”

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Hecilda Veiga hoje é professora de Ciência Política na UFPA, local em que, por coincidência ou não, iniciou a carreira de militante antes de ir a Bra-sília, em 1968. Como ela, muitas mulheres lutaram e buscaram um país mais justo para todos os brasileiros, especialmente para as mulheres.

Hoje, ela conta sua história. Outras tiveram destinos parecidos, como Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da “Casa da Morte”, em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. E, ainda, outras tiveram suas vidas interrompidas durante um dos momentos mais obscuros da história brasileira, como a sindi-calista rural Margarida Maria Alves, morta em 1983, na Paraíba por pistolei-ros, a mando de fazendeiros da região.

Quais lições tiramos de tudo isso? Que os direitos das mulheres no Bra-sil foram conquistados em meio à luta, à dor e à resistência e, em muitos casos, sob julgo e morte. O que moveu essas mulheres? O espírito de transformação, da indignação ante a barbárie e a injustiça.

E de todas essas histórias ficará o ensinamento da professora Hecilda: é preciso contar sempre, para que episódios como esses nunca mais se repitam.

Ao final da entrevista, a professora devolveu o lenço branco à bolsa. Não precisou usá-lo.

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◉ Sobre os autores ◉

Daniel Leite - formado em Comunicação Social – Jornalismo, com pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos La-tino-Americanos em Comunicação e Cultura da Universidade de São Paulo (USP), mas também é escritor e compositor quando o silêncio permite uma travessia escrita. No ano de 2015, fundou a Lêstrada, por onde lançou seu pri-meiro livro de poesia chamado “Alguém para quem”, junto com o CD “Quem para alguém” com canções dos poemas do livro, os dois projetos participaram do “Panorama Internacional de Zines e Publicações Independentes 2015” rea-lizado pela Ugra Press para o Ugra Zine Fest no Centro Cultural de São Paulo. No ano de 2016 realizou o Festival de Arte Livre Lêstrada na cidade de Be-lém-Pará por meio do edital de “Intercâmbio cultural” do Ministério da Cul-tura aprovado com a Lêstrada. Também, faz pesquisas com performances por meio do projeto “A luz semi-aberta do Stradentrus” construída para conclusão do curso “Interfaces Contemporâneas: processos híbridos de criação” na Es-cola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro e a ação performáti-co-literário “Poeme-se” realizada desde 2014 quando participou da Ocupação Solar das Artes e da Virada Cultural Belém, assim como, também, por meio da sua pesquisa em criação literária realizou nos anos de 2016 e 2017 a oficina de “Escrita Criativa” na Fundação Cultural do Pará – Casa da Linguagem. Email: [email protected]

Lilian Campelo - paraense de Belém. Graduada em Comunicação So-cial pela Universidade da Amazônia - Unama/PA. É Especialista em Gestão de Conteúdo em Comunicação pela Metodista/SP e trabalha como corres-pondente na região Norte para o site Brasil de Fato. E-mail: [email protected]

Rogerio Almeida - maranhense de São Luís/MA. Graduado em Co-municação Social pela UFMA. É especialista e mestre em Planejamento do Desenvolvimento pelo NAEA/UFPA. É doutorando em Geografia Humana, DINTER USP/UNIFESSPA/UFOPA e IFPA. É professor do Curso de Gestão Pública e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). E-mail: [email protected]

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“ Toda vez que eu dou umpasso o mundo sai do lugar”

Siba-PE

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