ARFUCH Texto o Espaco Autobiografico

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Meados dos anos 1980, fim da modernidade, fracasso do iluminismo, da razo, da universalidade, emergncia de uma nova ordem, ps -moderna, fragmentada, a perda das certezas, da veracidade dos grandes relatos e o descentramento dos sujeitos, deixando espao para uma profuso de microrelatos.Na trama da sociedade contempornea, no s os relatos clssicos marcam e expe a marca da singularidade dos sujeitos, alm das j cannicas biografias, autobiografias, dirios ntimos, correspondncias, surgem outros modelos como as entrevistas, conversas, perfis, retratos, anedotrioos, histrias de vida, relatos de auto-ajuda, bem como variantes do show- talk show, reality show, o horizonte da mdia promoveu uma maior ateno sobre a experincia vivida. De sua maneira as Cincias Sociais tambm se voltam para os sujeitos, tratando-os como ator social, procurando traar uma cartografia social a partir de entrevistas em profundidade e relatos de vida.Delineou-se um retorno ao sujeito, os pequenos relatos passaram a ser valorizados pois no apresentavam apenas identidades e histrias locais, mas mundo de vida, de privacidade e afeio. Ao mesmo tempo em que na perspectiva miditica, os contornos entre pblico e privado se flexibilizaram, tornando pblico nuances do social ligadas a esfera do ntimo, como a sexualidade, o amor, o corpo e o afeto.As tendncias de subjetivao modificavam no s hbitos, costumes e consumos como tambm a produo artstica, literria e miditica. Com a consolidao da democracia tambm se firmava a democratizao das narrativas, abrindo o palco cultural para uma pluralidade de vozes, identidades e sujeitos que pareciam condensar algumas das inquietaes de uma poca, como a ideia de coletividade e emergncia da importncia da individualidade.Lejeune trata o espao biogrfico como um lugar que comporta uma pluralidade de registros engajados na narrao das vidas notveis ou obscuras, para a autora esse espao toma outros significados, relacionados uma espacializao onde conflussem formas dissimilares, consideradas a partir de uma interdiscursividade sintomtica em busca de heranas e genealogias, postulando relaes de presena e ausncia. O espao biogrfico pode ser entendido como espacialidade que compreende as mltiplas formas, gneros e horizontes de expectativas. permitindo assim a considerao de especificidades de cada tipo de narrativa sem perder sua dimenso relacional, seus usos nos vrios mbitos de comunicao e ao.O valor biogrfico extensivo ao conjuto de formas significantes em que a vida, como cronotopo, tem importncia- o romance em primeiro lugar, mas tambm os peridicos, as revistas, os tratados morais. Etc. O conceito tem [...] uma dupla valncia: a de envolver uma ordem narrativa que , ao mesmo tempo, uma orientao tica. Efetivamente haver diferentes tipos de valor biogrfico: um valor heroico, transcendente, que alimenta desejos de glria, de posteridade; outro cotidiano, baseado no amor, na compreenso, na imediaticidade; e ainda perceptvel um terceiro, como aceitao positiva do fabulismo da vida, ou sea, do carter aberto, inacabado, cambiante, do processo vivencial que resiste a ser fixado, determinado, por um argumento (Bakhtin, 1982, p. 140) (ARFUCH, 2010, p 69-70)Se o valor biogrfico adquire sua maior intensidade nos gneros classificveis como tais, possvel inferir seu efeito de sentido quanto ao ordenamento das vidas no plano de recepo. So laos identificatrios, cartases, cumplicidades modelos de heri, vidas exemplares, a dinmica mesma da interioridade e sua necessria expresso pblica que esto em jogo nesse espao peculiar onde o texto autobiogrfico estabelece com seus destinatrios/leitores uma relao de diferena: a vida como uma ordem, como um devir da experincia, apoiando na garantia de uma existncia real (grifo da autora). (ARFUCH, 2010, p 71) a partir do sculo XVIII, com as Confisses de Rousseau que comea a se delinear um eu enunciador. Pode-se citar contudo, outros dois exemplos da expresso de um eu que narra/confessa sua prpria histria. As Confisses de Santo Agostinho (397), mostrava a existncia desse eu, mesmo que sua preocupao estivesse mais relacionada a virtude da comunidade do que com a marca da singularidade. No lado profano, tambm se pode falar de Samuel Peppys (1660-1690), um homem de 30 anos, empregado middle class do Almirantado de Londres registra em um dirio ntimo gostos, usos, costumes, viagens, amores, vida sexual, infidelidade, criando um artefato que nos possibilita testemunhar as modificaes do afeto e da subjetividade.Esses diversos tipos de narrativas ntimas construiriam um espao de autorreflexo que contribuiriam de forma decisiva para a consolidao do individualismo como trao do mundo Ocidental. O eu opera em um mundo dual, pblico/privado, sentimento/razo, homem/mulher, que a partir desse sistema de compreenso do mundo reelaboraram as formas de afetividade, decncia, proibies e papeis sexuais. Essa redefinio dos espaos, a partir de uma perspectiva histrica, pode ser observada a partir dos estudos de Elias, quando este situa o Antigo Regime como momento decisivo de um forte controle das pulses, condenando as condutas violentas e estabelecendo cdigos de conduta coercitivos com vistas a pacificar o espao social So essas imposies que fundam a esfera do privado como uma nova maneira de estar em sociedade.

A partir de Arendt, Habbermas e Elias, a autora discute os limites e articulao entre pblico e privado, e indivduo e sociedade. A primeira constri a partir da filosofia poltica os traos distintivos entre pblico e privado. O pblico estaria relacionado a plis grega, ou seja, ao poltico, espao de liberdade, ao, discurso, em oposio ao domstico, espao da necessidade, reproduo da vida, j na concepo moderna o pblico significaria tanto o social, quanto o poltico. Para Arendt, com a emergncia da ordem burguesa como uma grande administrao domstica que as esferas do pblico e privado se tocam, apagando a fronteira clssica entre eles. O privado acaba por se afastar da esfera da produo e vai se constituindo como espao da intimidade, [...] o privado, enquanto espao de conteno do ntimo, no ser observado mais em contraposio ao poltico, mas ao social, esfera com a qual se encontra autenticamente aparentado (ARFUCH, 2010, p. 86), ao mesmo tempo que a esfera da intimidade s consegue se concretizar atravs de seu desdobramento pblico, nota-se assim o carter devorador do pblico moderno.Habermas defende que o surgimento dessa esfera privada de onde emerge uma nova subjetividade (o ntimo) tem um papel decisivo para se pensar a esfera publica burguesa. No sculo XVIII, os pblicos raciocinantes que se agrupavam em lugares de conversa (cafs, clubs, pubs, sales)colocavam em prtica no apenas o raciocnio poltico com vistas a por limites ao poder absolutista, mas tambm elaboravam um raciocnio literrio, alimentado pelas vrias formas de narrativas de si (romance em primeira pessoa, epstolas, autobiografias), [...] a paixo pela relao entre as pessoas, a descoberta intersubjetiva de uma nova afetividade, unia-se assim ao hbito da polmica e da discusso poltica, prenunciando os espaos futuros de representao (ARFUCH, 2010, p.88). Esse estado de equilbrio ente o privado (pessoas, narrativas) configurando o pblico, numa perspectiva de coexistncia ilustrada de individualidades em torno de um bem comum foi alterado com o avano da sociedade dos meios de comunicao em massa, pois esta acarretaria em um perda da densidade crtica e da fiscalizao racional do poder.Em ambos notamos tanto uma valorao positiva, a afirmao da individualidade e como outra face do raciocnio poltico, respectivamente, porm, tambm oferecem uma perspectiva pessimista: o enfraquecimento do contedo ideolgico/pragmtico da ao poltica. Dessa forma, o que aparece de modo negativo a ascenso das vidas privadas no espao pblico, como razo necessria e suficiente para sustentar responsabilidades do Estado e trajetrias polticas.Numa outra perspectiva, a extrapolao do privado sobre o pblico deixa em evidncia a articulao entre individual e social, [...] na medida em que as vidas privadas, como advertiria Arendt, excedem o pertencimento dos sujeitos para aparecer como terrenos de manifestao de modelos e valores, coletivos, condutas, que solicitam estruturas de personalidades comuns (ARFUCH, 2010, p. 91). nessa perspectiva que vai trabalhar Elias.Para Elias, indivduo e sociedade so estncias interdependentes, o que confinado esfera privada o por meio de um autocontrole pulsional, um dispositivo de autocensura diante da sociedade. Seria impossvel pensar o indivduo desconectado da engrenagem social, o indivduo elisiano se constitui por meio de redes de interao, num movimento dialgico entre indivduo e malha social. Nessa perspectiva histrica, a linguagem dos outros faz nascer no sujeito algo que lhe pertence, a prpria lngua, que contudo produto das relaes com outros sujeitos. Tal concepo se assemelha a de M. Bakhtin, visto que ambos partem de um fundamento comum: a invalidao da razo clssica como primado de um sujeito pensante a partir de sua prpria unicidade [...] e sua substituio pelo que poderamos chamar de uma razo dialgica, [...] um processo histrico e compartilhado de conhecimento e reconhecimento [...] (ARFUCH, 2010, p.92).Da temos que o antagonismo entre a esfera pblica/social e privada/ntima decorre de um efeito de discursos (regras, dispositivos de poder, controle de reaes, pulses, emoes) que desde a Idade Mdia vem se inscrevendo nos sujeitos. Na contemporaneidade, com as transformaes polticas das ltimas dcadas e os avanos das tecnologias transformaram o sentido clssico do pblico e privado, hoje se tornando quase indecifrvel, abrindo espao para constantes experimentaes. Ambos os espaos passam a se cruzar, numa e noutra direo. ntimo e privado invadiriam a esfera pblica como o pblico extrapolaria o limite do privado.Assim, a autora assume um enfoque no dissociativo, que se aproxima de M.Bakhtin, com seu projeto de interdiscursividade, onde que ocorre em um registro est dialogicamente articulado a outro, sem que se possa definir um princpio. Est em jogo nesse espao a lgica compensatria, da falta, o vazio, que o que constitui o sujeito, convocando nele a necessidade de identificao que por meio das narrativas buscam uma completude, chances de criar caminhos e sentidos de um eu e um nos, visto que no h possibilidade de afirmao da subjetividade sem intersubjetividade, [...] toda biografia ou relato de experincia , de uma gerao, de uma classe, de uma narrativa comum de identidade. essa qualidade coletiva [...] que torna relevantes as histrias de vida, tanto nas formas literrias tradicionais quanto nas miditicas e nas cincias sociais [...].(ARFUCH, 2010, p. 100).