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Capítulo 1 Argumentação: noções básicas Antes de discutir a argumentação jurídica, vale a pena expor algumas noções básicas de teoria da argumentação. O capítulo é breve, mas os conceitos que ele introduz são cruciais para a compreensão dos demais capítulos. O conceitos discutidos neste capítulo são os seguintes: argumentos padronização de argumentos argumentos simples argumentos complexos justificação externa de argumentos justificação interna de argumentos 1.1 O que é argumentar? Argumentar é o ato de produzir argumentos. Produzir um argumento é apresentar razões em defesa de uma conclusão. Essa não é a única definição possível do ato de argumentar. Por exemplo, há quem prefira entender argumentos como diálogos, isto é, como séries (mais ou menos longas) de afirmações, objeções e réplicas. Essa concepção que poderia ser descrita como dialógica” – não está errada. Ela é útil em certos contextos e para certos propósitos; mas ela não parece particularmente útil para explicar a interlocução jurídica. Devemos adotar uma noção de argumento que seja capaz de representar o aspecto competitivo e conflituoso da argumentação jurídica. Argumentar não é exatamente um ato privado ou monológico (afinal, argumentos jurídicos são produzidos caracteristicamente no contexto de debates públicos), mas cada argumentador é responsável por seus próprios argumentos. Cada argumentador, ao produzir um argumento, apresenta as suas razões em defesa

Argumentação: noções básicas ão+à... · PDF fileHolmes produz um argumento que explica as suas razões para crer que o dono do chapéu é um ... 2 Esta também é uma adaptação

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Capítulo 1

Argumentação: noções básicas

Antes de discutir a argumentação jurídica, vale a pena expor algumas noções básicas de teoria da

argumentação. O capítulo é breve, mas os conceitos que ele introduz são cruciais para a

compreensão dos demais capítulos. O conceitos discutidos neste capítulo são os seguintes:

argumentos

padronização de argumentos

argumentos simples

argumentos complexos

justificação externa de argumentos

justificação interna de argumentos

1.1 O que é argumentar?

Argumentar é o ato de produzir argumentos. Produzir um argumento é apresentar razões em

defesa de uma conclusão. Essa não é a única definição possível do ato de argumentar. Por

exemplo, há quem prefira entender argumentos como diálogos, isto é, como séries (mais ou

menos longas) de afirmações, objeções e réplicas. Essa concepção – que poderia ser descrita

como “dialógica” – não está errada. Ela é útil em certos contextos e para certos propósitos; mas

ela não parece particularmente útil para explicar a interlocução jurídica.

Devemos adotar uma noção de argumento que seja capaz de representar o aspecto

competitivo e conflituoso da argumentação jurídica. Argumentar não é exatamente um ato

privado ou monológico (afinal, argumentos jurídicos são produzidos caracteristicamente no

contexto de debates públicos), mas cada argumentador é responsável por seus próprios

argumentos. Cada argumentador, ao produzir um argumento, apresenta as suas razões em defesa

da sua conclusão. Isso não quer dizer que argumentação jurídica seja sempre competitiva ou

conflituosa. No ambiente acadêmico, por exemplo, há muito espaço para a colaboração

intelectual. Para que servem congressos, simpósios e conferências senão para que juristas possam

se reunir, dialogar e aprender uns com os outros? Seja como for, a colaboração não é o principal

motor do direito. Pelo menos não é isso que parece inspirar advogados, defensores e promotores

quando se enfrentam nos tribunais.

1.2 Padronização de argumentos

Alguns argumentadores argumentam de maneira transparente e organizada. Eles expõem

claramente seus objetivos – isto é, as conclusões a que querem chegar – e o caminho que

percorrem para atingir esses objetivos – isto é, as razões que levam às suas conclusões. Mas nem

todo argumentador argumenta claramente. Ao longo deste livro consideraremos alguns

argumentos formulados de maneira pouco clara no documento ou no discurso em que

originalmente foram veículados. Para tornar a estrutura desses argumentos mais clara e

compreensível, nós o submeteremos a um procedimento que pode ser chamado de padronização.

Considere um exemplo simples.1 Sherlock Holmes, o célebre detetive inglês, encontra um

velho chapéu de feltro. Embora não conheça o proprietário do chapéu, Holmes conta a Watson

muita coisa a seu respeito, afirmando, por exemplo, que se trata de um intelectual. Watson, como

de hábito, pede que Holmes o esclareça. À guisa de resposta, Holmes coloca o chapéu sobre a

cabeça. O chapéu resvala pela sua testa até apoiar-se no seu nariz. “É uma questão de volume”,

diz Holmes. “Um homem com uma cabeça tão grande deve ter algo dentro dela”.

Holmes produz um argumento que explica as suas razões para crer que o dono do chapéu

é um intelectual. O argumento de Holmes pode ser padronizado da seguinte forma:

(1) Há um chapéu grande que tem algum dono

(2) Donos de chapéus grandes têm cabeças grandes

(3) Pessoas que têm cabeças grandes têm cérebros grandes

1 Este exemplo é uma versão adaptada de um exemplo usado por Wesley Salmon em seu livro Lógica, 4ª edição. Rio

de Janeiro: Zahar, 1978.

(4) Pessoas com cérebros grandes são intelectuais

Logo,

(5) O proprietário do chapéu é um intelectual

Ao padronizar o argumento de Holmes nós o dividimos em duas partes. Uma parte, aquela que

precede o “logo”, é composta por frases chamadas de premissas. Um argumento deve ter, no

mínimo, uma premissa, mas o de Holmes (de acordo com a padronização sugerida) tem quatro.

A frase que vem depois do “logo” é a conclusão. O “logo” é o termo que marca a transição entre

as premissas e a conclusão. (Outros termos poderiam cumprir a mesma função: “então”,

“portanto”, “assim”, “dessa forma” etc.) Muitas vezes numeramos as frases para que possamos

fazer referência a elas de maneira rápida e simples. No caso do argumento de Holmes, a

padronização envolveu a formulação de premissas que o próprio Holmes não pronunciou mas

deixou implícitas (a exemplo da premissa 2). É comum que premissas implícitas sejam

explicitadas na padronização de argumentos e que, portanto, o argumento padronizado resulte

mais longo do que o argumento original. Mas esse nem sempre é o caso. Às vezes um

argumentador é redundante ou prolixo e nós acabamos suprimindo afirmações desnecessárias na

hora de padronizar seu argumento.

Considere um segundo exemplo.2 Diz um cientista imaginário: “Realizei um experimento

rigoroso com ratos no nosso laboratório para determinar os efeitos de uma nova substância que

promete combater a queda de cabelos. Verifiquei que a substância provoca nos ratos alguns

efeitos indesejáveis, como a significativa perda de peso. Homens e mulheres ainda não foram

tratados com essa subtância, mas temo que também sofram perda de peso. Afinal, o organismo

humano costuma reagir a substâncias dessa natureza da mesma maneira que o organismo dos

ratos. Os ratos não são mais suscetíveis do que nós a essas drogas. Sua aparente fragilidade é

enganosa.” O argumento do cientista pode ser padronizado da seguinte forma:

(1) Ratos perdem peso quando tratados com a substância X, contra a queda de cabelos

(2) Homens e mulheres têm reações fisiológicas similares à dos ratos quando usam

substâncias desse tipo

Logo,

2 Esta também é uma adaptação de um exemplo de Salmon.

(3) Há risco de que homens e mulheres percam peso se tratados com X

O argumento padronizado é mais sucinto do que o argumento original, mas seu contéudo é

essencialmente o mesmo. As três últimas frases do argumento original, por exemplo, são

repetitivas. Elas foram usadas pelo cientista para enfatizar aquilo que a premissa 2 do argumento

padronizado expressa de maneira mais sucinta.

É importante manter em mente que a padronização serve apenas para tornar a estrutura de

um argumento mais transparente. Ao padronizar um argumento não devemos aperfeiçoá-lo e

muito menos piorá-lo. Nosso objetivo é entender o argumento tal como ele foi produzido pelo

seu autor. Como intérpretes, devemos cuidar para não distorcer o argumento. Voltaremos a

discutir essa ideia mais adiante.

1.3 Argumentos complexos

Chamemos de argumento simples um conjunto de frases composto de uma ou mais premissas e

de uma única conclusão. Vimos há pouco dois exemplos de argumentos simples. Um deles foi

formulado por Holmes e o outro pelo nosso cientista imaginário. Argumentadores muitas vezes

justificam suas posições não com base em um único argumento simples, mas com base numa

série de argumentos simples relacionados.

Considere o seguinte argumento: “Há pelo menos duas razões para crer que estudar

direito é uma boa ideia: o bacharel em direito tem muitas oportunidades de emprego, e o

bacharel em direito goza de prestígio social.” Esse argumento não deve ser padronizado da

seguinte forma:

(1) O bacharel em direito tem muitas oportunidades de emprego

(2) O bacharel em direito goza de prestígio social

Logo,

(3) Estudar direito é uma boa ideia

Numa padronização, só posicionamos as premissas em sequência se acharmos que elas afirmam

razões interdependentes para crer na conclusão. Por exemplo, a premissa que diz que ratos

tratados com X perdem peso só leva à conclusão de que há risco de perda de peso para homens e

mulheres tratados com X se combinarmos aquela premissa com uma outra que diz que ratos,

homens e mulheres têm fisiologias semelhantes. As duas premissas só funcionam juntas. Falta

algo crucial ao seguinte argumento:

(1) Ratos perdem peso quando tratados com a substância X, contra a queda de cabelos

Logo,

(2) Há risco de que homens e mulheres percam peso se tratados com X

Quem acha que esse argumento é bom provavelmente pensa assim porque enxerga a premissa

sobre a semelhança fisiológica entre ratos, homens e mulheres como estando implícita. Sem essa

premissa, explícita ou implícita, o argumento não funciona: a premissa 1, sozinha, não fornece

razão alguma para crer na conclusão.

Por outro lado, as premissas do argumento que recomenda o estudo do direito não são

interdependentes. Eu posso muito bem dizer:

(1) O bacharel em direito goza de prestígio social

Logo,

(2) Estudar direito é uma boa ideia

O argumento acima não está incompleto. A premissa 1 expressa uma razão independente para

crer que a conclusão é verdadeira. O mesmo vale para o seguinte argumento:

(1) O bacharel em direito tem muitas oportunidades de emprego

Logo,

(2) Estudar direito é uma boa ideia

É claro que, juntos, os dois argumentos são capazes de defender melhor a conclusão; separados,

eles perdem força. Se esses dois argumentos simples são independentes, então um argumentador

que defenda a conclusão de que estudar direito é uma boa ideia com base nos dois tipos de

consideração (sobre oportunidade de emprego e prestígio social) emprega, em vez de um

argumento simples, um argumento complexo composto de dois argumentos simples

convergentes. Uma padronização adequada desse argumento complexo teria de encontrar algum

meio para mostrar o que há de peculiar na forma como se relacionam as premissas. Por exemplo:

Argumentos simples podem, portanto, combinar-se para formar argumentos complexos. Quando

argumentos simples convergem para uma mesma conclusão, eles formam o que eu chamo de

argumento complexo convergente. Um segundo tipo de argumento complexo que nos interessa é

o argumento complexo encadeado. Argumentos complexos encadeados são séries de argumentos

simples relacionados de tal forma que a conclusão de um argumento simples funciona como

premissa de um argumento simples subsequente. Por exemplo:

(1) Comidas gordurosas fazem mal à saude

Logo,

(2) Devemos evitar comidas gordurosas

(3) Feijoada é uma comida gordurosa

Logo,

(4) Devemos evitar feijoada.

A frase 2 é a conclusão de um argumento simples (que tem a frase 1 como premisa) e, ao mesmo

tempo, é premissa de um outro argumento simples, que tem a frase 3 como segunda premissa e a

frase 4 como conclusão. A frase 2 é uma conclusão intermediária do argumento complexo

encadeado, e a frase 4 é a conclusão final desse argumento.

Considere mais um exemplo de argumento complexo. Os comediantes ingleses que

formavam o famoso grupo Monthy Python criaram uma cena em que uma mulher, em tempos

medievais, é acusada de ser bruxa:

Multidão: Achamos uma bruxa. Podemos queimá-la?

Autoridade: Como sabem que ela é uma bruxa?

Homem #1: Parece uma bruxa.

Acusada: Não sou bruxa! Não sou!

Autoridade: Mas está vestida como uma bruxa.

Acusada: Eles me vestiram assim.

Autoridade: Vocês a vestiram?

Homem # 1: Não... sim... mais ou menos... mas ela tem uma verruga!

Autoridade: Por que acham que ela é uma bruxa?

Homem #2: Ela me transformou numa salamandra!

Autoridade: Numa salamandra?

Homem #2: Eu melhorei...

Multidão: Queimem mesmo assim!

Autoridade: Silêncio! Há meios para descobrir se ela é uma bruxa...

Multidão: É mesmo? Conte-nos! São dolorosos?

Autoridade: Digam-me: o que fazemos com bruxas?

Multidão: Queimamos.

Autoridade: E o que mais queimamos, além de bruxas?

Homem #1: Mais bruxas!

Homem #3: Madeira.

Autoridade: Então, por que as bruxas pegam fogo?

Homem #2: Porque são feitas de madeira?

Autoridade: Muito bem! Como sabemos, então, se ela é feita de madeira?

Homem #1: Vamos construir uma ponte com ela.

Autoridade: Mas também construimos pontes de pedra.

Multidão: É verdade...

Autoridade: Madeira afunda na água?

Homem #3: Não. Flutua.

Multidão: Joguem-na no lago!

Autoridade: O que mais flutua na água?

Multidão: Pão. Maçãs. Pedregulhos. Cerejas. Chumbo. Igrejas.

Homem #4: Um pato.

Autoridade: Exatamente. Assim, logicamente...

Homem #1: Se ela pesa o mesmo que um pato, então ela é feita de madeira.

Autoridade: Logo...

Multidão: É uma bruxa!

Autoridade: Vamos usar minha maior balança.

(A acusada é colocada numa balança e constata-se que ela pesa o mesmo que um pato.)

Acusada: Eu me rendo...

Multidão: Queimem-na!

A autoridade conduz a multidão através de um argumento complexo. Há, para começar, dois

argumentos simples independentes:

A.

(1) Bruxas pegam fogo

(2) Madeira pega fogo

Logo,

(3) Bruxas são feitas de madeira

B.

(4) Madeira flutua na água

(5) Patos flutuam na água

Logo,

(6) Se a acusada tiver o peso de um pato, ela é feita de madeira

As frases 3 e 6, conclusões dos argumentos simples A e B, respectivamente, reaparecem como

premissas de um terceiro argumento:

C.

(6) Se a acusada tiver o peso de um pato, ela é feita de madeira

(7) A acusada pesa o mesmo que um pato

Logo,

(8) A acusada é feita de madeira

(3) Bruxas são feitas de madeira

Logo,

(9) A acusada é uma bruxa

O argumento C, por si só, é complexo (visto que ele é composto de dois argumentos simples

encadeados). E ele forma com A e B um argumento complexo ainda maior (visto que ele usa as

frases 3 e 6, conclusões de A e B, como premissas).

O exemplo do Monthy Python serve não só para ilustrar o alto grau de complexidade que

um argumento pode atingir, mas também para reforçar a ideia de que a padronização não é feita

com o objetivo de aperfeiçoar argumentos. Tornar um argumento mais claro não é aperfeiçoá-lo.

O argumento usado para condenar a suposta bruxa permanece (comicamente) ruim mesmo

depois de padronizado. Todos os argumentos, A, B e C, têm problemas sérios. Tome o

argumento A, por exemplo. O que levaria alguém em sã consciência a pensar que bruxas são

feitas de madeira só porque bruxas e madeira pegam fogo? Padronizamos argumentos, sem

distorcê-los, para revelar a sua estrutura e (num segundo momento) submetê-los a avaliação.

A noção de argumento complexo será muito importante para o nosso estudo sobre a

argumentação jurídica. Tendem a ser complexos (convergentes e/ou encadeados) os argumentos

que aparecem em decisões judiciais, denúncias de promotores, petições de advogados etc.

1.4 Justificação externa e interna

A padronização não faz mais do que revelar a estrutura de um argumento. A avaliação do

argumento padronizado – a afirmação de que ele é bom ou ruim, forte ou fraco – depende de

outras considerações. Um bom argumento deve passar por dois testes: a saber, o teste da

justificação externa e o teste da justificação interna. Diz-se do argumento que passa pelo teste da

justificação externa que ele está externamente justificado; e diz-se do argumento que passa pelo

teste da justificação interna que ele está internamente justificado.

Os dois testes são independentes um do outro. Um argumento está externamente

justificado se tem premissas verdadeiras. Por outro lado, um argumento está internamente

justificado se suas premissas constituem uma defesa adequada da sua conclusão. Compare:

A.

O Lula é pernambucano

Logo,

O Lula é argentino

B.

O Lula é mineiro

Logo,

O Lula é brasileiro

Nenhum dos dois argumentos é bom. O primeiro tem uma premissa verdadeira (e portanto está

externamente justificado), mas a premissa não consitui uma defesa adequada da conclusão. O

fato de Lula ser pernambucano não nos permite concluir que ele é argentino. O argumento A não

está internamente justificado. B, por outro lado, está internamente justificado. Pois, se fosse

verdade que Lula é mineiro, então seria possível concluir que ele é brasileiro. Mas sucede que a

premissa do argumento B não é verdadeira e, portanto, o argumento não está externamente

justificado. Um bom argumento deve ter os dois atributos: premissas verdadeiras e capazes de

proporcionar uma boa defesa da conclusão. Por exemplo:

C.

O Lula é brasileiro

Logo,

O Lula é latino-americano

C tem os atributos de que deve gozar todo bom argumento: sua premissa é verdadeira e leva

efetivamente à sua conclusão. Note que não uso a expressão “bom argumento” como sinônima

de “argumento eficaz” ou “argumento persuasivo”. Há argumentos que têm premissas falsas ou

problemas lógicos e que, no entanto, acabam persuadindo as pessoas. (No caso da bruxa, a turba

irracional foi persuadida pelo argumento absurdo – mas eficaz – da autoridade.) Por outro lado,

há argumentos com premissas verdadeiras que estabelecem adequadamente as suas conclusões e,

no entanto, não persuadem ninguém. (Por melhores que fossem seus argumentos em defesa do

heliocentrismo, Galileu dificilmente convenceria os inquisidores.) Na prática jurídica, diz-se

comumente que os “bons” advogados são aqueles que persuadem juízes com muita frequência,

isto é, aqueles que costumam ganhar as suas causas. Mas esses “bons” advogados nem sempre

persuadem juízes usando bons argumentos (no sentido em que eu emprego a expressão). Pelo

contrário, um “bom” advogado é muitas vezes aquele sabe se valer de truques retóricos e outros

subterfúgios para confundir e enganar em vez de esclarecer e instruir.

A teoria da argumentação distingue entre argumentos dedutivos e indutivos.3 Argumentos

indutivos procuram estabelecer a sua conclusão como sendo provável. Argumento dedutivos

pretendem estabelecer a sua conclusão como sendo certa. Essa diferença é importante porque ela

tem influência sobre os critérios que devem ser usados para aferir a capacidade das premissas

para proporcionar uma defesa adequada da conclusão (justificação interna). Argumentos

dedutivos são julgados de acordo com um critério de avaliação mais rigoroso do que os

argumentos indutivos. Considere o seguinte argumento:

D.

O Lula é brasileiro

Logo,

O Lula gosta de arroz e feijão

3 Há quem creia em outras categorias além dessas duas: por exemplo, argumentos abdutivos e condutivos. Para os

nossos propositos, não há necessidade de ser tão sutil.

Entendido como um argumento dedutivo, D não está internamente justificado. Afinal, é possível

que um brasileiro não goste de arroz e feijão. A premissa, embora verdadeira, não garante como

certa a veracidade da conclusão. Por outro lado, tomado como um argumento indutivo, D passa

no teste de justificação interna. É tão comum que brasileiros gostem de arroz e feijão que o fato

de Lula ser brasileito torna pelo menos provável a conclusão de que ele gosta de arroz e feijão.

Como saber se um dado argumento é dedutivo ou indutivo? Essa é uma questão bastante

controvertida, mas eu sou da opinião de que tudo depende das intenções do argumentador. Se o

argumentador pretende formular um argumento dedutivo, então o argumento é dedutivo. Se ele

pretende produzir um argumento indutivo, então o argumento é indutivo. Acredito que

profissionais do direito comumente produzem argumentos dedutivos. Para ser mais preciso, esses

profissionais produzem argumentos complexos que desembocam em argumento dedutivos. Estou

falando do famoso silogismo jurídico. Um exemplo:

E.

Quem dirige sob a influência do álcool deve ser punido

João dirigiu sob a influência do alcool

Logo,

João deve ser punido

O silogismo E é dedutivo. Ele é formulado (na maioria dos contextos de discussão jurídica) com

a pretensão de que as premissas estabeleçam a conclusão como certa. Haverá muito tempo nos

próximos capítulos para discutir tanto o caráter complexo quanto o elemento silogístico da

argumentação jurídica. Por enquanto, é preciso ficar claro que eu não reduzo a argumentação

jurídica ao silogismo. Digo apenas que profissionais do direito costumam produzir argumentos

complexos que resultam em um silogismo. Não quero ser associado tão cedo à ideia infame de

que argumentação jurídica é estritamente silogística (e, portanto, mecânica, formalista etc.).

Voltaremos mais tarde a esses interessantes e complicados assuntos.

1.5 Resumo

Argumentar é apresentar razões em defesa de uma conclusão.

Argumentos podem ser padronizados para que fiquem mais claros. Padronizar envolve

distinguir entre frases que cumprem a função de premissas e uma frase que cumpre a

função de conclusão. Quem padroniza deve cuidar para não distorcer.

Argumentos simples são conjuntos de frases compostos de uma conclusão e uma ou mais

premissas. Argumentos complexos são conjuntos de argumentos simples que convergem

para uma mesma conclusão ou que se encadeam, passando por conclusões intermediárias

até chegar a uma conclusão final.

Um bom argumento deve estar tanto interna quanto externamente justificado.

Justificação interna diz respeito à correção lógica, à capacidade das premissas para

oferecer uma defesa adequada da conclusão. Justificação externa diz respeito à

veracidade das premissas.

Capítulo 2

Argumentação prática

Depois de algumas noções elementares de argumentação, concentremo-nos na argumentação

prática. Os conceitos discutidos neste capítulo são os seguintes:

argumentação teórica

argumentação prática

argumentação prática substantiva

argumentação prática institucional

regras

2.1 Argumentação teórica e argumentação prática

Há argumentos teóricos e há argumentos práticos. A diferença diz respeito ao tipo de conclusão

que cada argumento pretende estabelecer. Argumentos teóricos procuram estabelecer conclusões

teóricas, isto é, conclusões sobre como as coisas são, foram ou serão. Exemplos:

A.

O Lula é brasileiro.

Logo,

O Lula gosta de arroz e feijão

B.

O Lula é pernambucano

Logo,

O Lula nasceu no Brasil

C.

O Lula foi presidente

Logo,

O Lula será estudado pelas gerações futuras

A, B e C são argumentos teóricos porque pretendem estabelecer conclusões teóricas sobre como

as coisas são (A), foram (B) ou serão (C). São conclusões sobre fatos (presentes, passados e

futuros). Outras expressões usadas para falar de conclusões teóricas são “conclusões descritivas”

e “conclusões fáticas”. Uso todos esess termos como sinônimos: “teórico”, “fático” e

“descritivo”.

Argumentos práticos, por outro lado, são aqueles que procuram estabelecer conclusões

práticas, isto é, conclusões sobre como as coisas devem ser, deveriam ter sido ou deverão ser.

Exemplos:

D.

O Lula é brasileiro

Logo,

O Lula deve ter orgulho do seu país

E.

O Lula é pernambucano

Logo,

O Lula deveria ter atuado mais na política pernambucana antes de virar presidente

F.

O Lula foi presidente

Logo,

O Lula deverá ser tratado com respeito quando afastar-se da política

D, E e F são argumentos práticos. Chegam a conclusões sobre como as coisas devem ser (hoje,

ontem ou amanhã). Neste livro, também chamo conclusões práticas de conclusões “normativas”

ou “prescritivas”.

Nem sempre uma conclusão prática é explicitamente prática, normativa ou prescritiva.

Por exemplo, quando digo que o STF opera de maneira antidemocrática não digo,

explicitamente, que o STF deva fazer uma coisa ou outra. Mas se não digo, pelo menos sugiro

que o STF deve mudar ou rever a sua maneira de operar. De fato, em muitos contextos, termos

avaliativos são usados para indicar que a conduta avaliada (ou a instituição, no caso do STF)

deve ser mantida (quando o termo avaliativo tem carga positiva) ou evitada (quando o termo

avaliativo tem carga negativa). Normalmente, quem diz, por exemplo, que as cotas raciais para

ingresso no ensino superior são discriminatórias quer sugerir que elas, as cotas, não devem ser

implantadas. Como conclusões avaliativas implicam frequentemente conclusões práticas, dou

pouca atenção à diferença sutil que existe entre elas.

O silogismo jurídico mencionado no capítulo anterior é um tipo de argumento prático,

pois ele visa estabelecer uma conclusão sobre como as coisas devem ser. Os exemplos

paradigmáticos de silogismo jurídico têm como primeira premissa (às vezes chamada de

premissa maior) uma norma geral, isto é, uma afirmação sobre como uma série ampla de pessoas

deve agir ou ser tratada. Como segunda premissa (ou premissa menor) figura uma afirmação

fática. E como conclusão figura uma norma individual, uma afirmação sobre como algum

indivíduo específico deve agir ou ser tratado. Para lembrar:

G.

Quem dirige sob a influência do álcool deve ser punido (premissa maior)

João dirigiu sob a influência do alcool (premissa menor)

Logo,

João deve ser punido (conclusão)

A premissa maior do argumento G é uma norma geral, pois se aplica a todos os motoristas. A

premissa menor expressa um fato passado a respeito de João. A conclusão, uma norma

individual, diz algo sobre como João, em particular, deve ser tratado. É justamente porque o

silogismo jurídico tem uma conclusão normativa que se o considera um exemplo de argumento

prático.

Uma observação sobre as noções de norma geral e de norma individual. Norma geral é

aquela que se aplica a uma classe de indivíduos; norma individual é aquela que se aplica a algum

indivíduo específico. A palavra “indivíduo” deve ser entendida de maneira ampla, para incluir

não só pessoas como João, mas também atos oficiais, instituições, procedimentos etc. Por

exemplo:

H.

Deve ser considerada inconstitucional toda lei que limite a liberdade religiosa

Há uma lei no estado do Rio de Janeiro que impede a criação de centros de umbanda

Logo,

A lei do estado do Rio de Janeiro que impede a criação de centros de umbanda deve ser

considerada inconstitucional

A norma que figura como premissa maior do silogismo H se refere a uma classe ampla de leis

(isto é, a todas as leis que limitem a liberdade religiosa). A norma que figura como conclusão diz

respeito a uma lei (isto é a um “indivíduo” específico da classe de leis que limitam a liberdade

religiosa). Silogismos jurídicos não lidam necessariamente com pessoas; eles podem lidar com

coisas de outras naturezas. O fato de o STF, por exemplo, tomar decisões frequentes sobre a

constitucionalidade de leis e outros atos oficiais não significa que o STF não formule verdadeiros

silogismos jurídicos.

Para concluir o item 2.1, é preciso fazer duas ressalvas. Essas ressalvas são bastante

técnicas e se destinam mais aos iniciados do que aos iniciantes. O iniciante pode ler os três

parágrafos que seguem, se desejar, mas não deve sentir-se preocupado ou desmotivado se achá-

los complicados demais. É possível pular os próximos parágrafos, e retomar a leitura no item 2.2,

sem nenhum prejuízo.

Há quem rejeite hoje a distinção entre fato e norma (ou entre fato e valor – o que para

mim dá no mesmo). Eu, obviamente, não a rejeito. Reconheço, no entanto, que é possível pecar

pelo excesso de confiança no potencial analítico da distinção. Em primeiro lugar, deve-se manter

em mente que certos predicados (ditos “densos”) têm conteúdo avaliativo ou prescritivo ao

mesmo tempo em que carregam informação fática. Seria perda de tempo tentar encaixar todos os

predicados existentes na língua portuguesa em duas caixinhas rigorosamente separadas: a

caixinha dos predicados fáticos e a caixinha dos predicados prescritivos. Pois há predicados que

transitam entre as duas caixinhas. É melhor deixar claro, portanto, que, em vez de dois tipos de

predicados, na verdade há três: (i) predicados puramente fáticos (por exemplo, a pintura é cinza),

(ii) predicados puramente avaliativos/prescritivos (a pintura é feia) e (iii) predicados mistos ou

densos (a pintura é sombria). Para que um argumento seja teórico, sua conclusão deve conter

apenas predicados puramente fáticos. Argumentos com conclusões que contenham predicados

mistos e/ou puramente avaliativos/prescritivos são argumentos práticos.

Há também quem rejeite a distinção entre fato e norma dizendo que toda descrição de

fatos (até mesmo aquela realizada pelo cientista natural!) envolve certos compromissos

prescritivos ou avaliativos. Concordo com isso apenas se os compromissos em questão forem

entendidos como pressupostos metodológicos de natureza epistêmica. Afinal, não há estudioso

que faça pesquisa sem orientar-se por certos valores metateóricos – por exemplo, teorias simples

costumam ser consideradas superiores a teorias complexas ou ricas em compromissos

ontológicos. É duvidoso, no entanto, que compromissos normativos morais e políticos também

façam parte (como pressupostos metodológicos ou em qualquer outro sentido) de toda pesquisa

sobre fatos. Se são realmente inescapáveis, então esses compromissos são normalmente

suficientemente abstratos e tímidos para não gerarem controvérsia. Por exemplo, quando digo

(isto é, quando afirmo o fato de) que o STF foi autorizado pela Constituição Federal a realizar o

controle abstrato de constitucionalidade das leis, não digo nem pressuponho que isso seja bom ou

ruim, democrático ou antidemocrático, eficiente ou ineficiente. Por mais politicamente relevante

que seja a minha afirmação sobre o STF, ela consiste apenas numa descrição de uma instituição

política existente no Brasil. A descrição não me envolve diretamente em nenhuma controvérsia

de natureza política ou moral.

A segunda ressalva a ser feita não diz respeito à distinção entre fato e norma (ou fato e

valor), mas à definição de argumento prático. Defino-o apenas em função da natureza da sua

conclusão. Agora, alguém poderia objetar que um argumento que tem uma conclusão normativa

também precisa ter ao menos uma premissa normativa, como no caso do silogismo jurídico. É

logicamente proibido partir de premissas puramente fáticas para uma premissa normativa (do

“ser” para o “dever-ser”). Muitas pessoas emprestam de G.E. Moore o termo “falácia naturalista”

(que para Moore tinha outro sentido) e usam-no para criticar esse tipo de argumento. Como a

minha definição de argumento prático exige apenas a presença de conclusões práticas, eu

inevitavelmente incluo na categoria de argumentos práticos uma série de supostas falácias – por

exemplo: “O Lula é brasileiro. Logo, o Lula deve ter orgulho do seu país.” Argumentos como

esse são usados a todo momento e parecem perfeitamente razoáveis. Uma maneira natural de

evitar a caracterização do argumento como falacioso é imputar-lhe uma premissa normativa

implícita: por exemplo, “Todo brasileiro deve ter orgulho do seu país.” Mas isso é problemático,

pois quem usa o argumento pode não acreditar nessa afirmação universal. Afinal, nem todo

brasileiro – a exemplo daqueles que aqui nasceram mas logo emigraram – deve necessariamente

ter orgulho do país. Devemos tomar cuidado na hora de atribuir afirmações categóricas a

argumentadores que não as formularam claramente. Como podemos saber exatamente com que

tipo de generalização se compromete o argumentador? Talvez ele ache que apenas um certo tipo

de brasileiro deve sentir orgulho do país e que Lula se encaixa nessa categoria. Se o argumento

parece razoável e não é possível complementar-lhe (sem risco de distorção) através da inclusão

de uma premissa normativa geral, então por que não rejeitamos simplesmente a ideia de que esse

tipo de argumento incorre numa falácia? A propósito, hoje há uma ampla e sofisticada literatura

sobre a possibilidade de argumentos práticos baseados em premissas fáticas.4 O termo “falácia

naturalista” – quando usado sem maiores justificativas – é uma arma retórica que só serve para

assustar os desavisados.

2.2 Argumentação institucional e argumentação substantiva

A argumentação teórica também tem um papel importante no direito. Afinal, é de argumentos

teóricos que o profissional do direito se vale toda vez em que precisa defender a premissa menor

(fática) de um silogismo jurídico: por exemplo, “João admitiu beber uma garrafa de vinho logo

antes de pegar no volante. Além disso, quando detido, João apresentava dificuldade para falar e

andar em linha reta. Logo, João dirigiu sob a influência do álcool.” Argumentos teóricos como

esse surgem a todo momento nos tribunais. Isso mostra a importância que a argumentação

4 A começar por Carl Wellman, Challenge and Response: Justification in Ethics. Carbondale : Southern Illinois

University Press, 1971.

teórica tem para a argumentação jurídica; mas, por enquanto, vamos nos concentrar na

argumentação prática.

Divido a argumentação prática em dois tipos: argumentação prática substantiva e

argumentação prática institucional. Como espécies da argumentação prática, ambas visam

estabelecer conclusões sobre o que deve ser feito. Mas se elas compartilham um fim, não

compartilham os meios. A argumentação substantiva e a argumentação institucional visam

estabelecer suas conclusões práticas por meio de razões de tipos diferentes.

A argumentação substantiva apela livremente a razões de natureza moral, política,

econômica, social e até religiosa. O cientista político, o filósofo moral, o jornalista que escreve

um artigo crítico, o leitor que manda a sua opinião para o jornal, o motorista de táxi, o amigo que

bebe conosco uma cerveja no bar, todos argumentam caracteristicamente de maneira substantiva.

Se algo lhes desagrada – o imposto de renda, por exemplo – eles o criticam por ser injusto,

ineficiente, inibidor da iniciativa privada ou algo do tipo. Se algo lhes agrada – a condenação de

um político corrupto, por exemplo – eles comemoram dizendo que a impunidade é um grande

mal social, que o político lesou os cofres públicos e assim por diante.

A argumentação institucional, por outro lado, não apela livremente a considerações

morais, políticas, econômicas, sociais e religiosas. Ela é mais burocrática, engessada e – alguns

diriam – artificial. Quem argumenta institucionalmente não está preocupado em defender aquilo

que parece mais justo, mais democrático ou mais eficiente no caso em questão. Quem argumenta

institucionalmente ocupa uma posição social que exige uma certa deferência em relação a

diretrizes e procedimentos previamente estabelecidos e inflexíveis. Pense, por exemplo, em um

juiz de futebol. Antes de saber se a marcação de um pênalti na final do campeonato poderá gerar

uma briga violenta entre torcidas ou decepcionar toda uma geração de torcedores (resultados

ruins do ponto de vista substantivo), ele quer saber se a conduta do jogador que provocou o

suposto pênalti viola ou não alguma regra do jogo. E, mesmo que o juiz tome uma decisão com

base em considerações relativas ao bem estar da torcida, ele não admitirá publicamente que essas

considerações foram determinantes. A posição de juiz exige que suas decisões sejam justificadas

institucionalmente.

O juiz de direito é outro exemplo de indivíduo cuja posição social exige deferência em

relação a diretrizes e procedimentos previamente estabelecidos e inflexíveis. Advogados,

promotores e defensores, por trabalharem rotineiramente com o objetivo de convencer juízes,

acabam falando a mesma língua. E até os juristas, estudiosos que escrevem sobre o direito, de

maneira geral entram nesse jogo.5 Por exemplo, no que diz respeito ao imposto de renda, seja ele

justo ou não, economicamente eficiente ou não, profissionais do direito normalmente querem

mesmo é saber se ele é legal ou não, constitucional ou não (o que sugere a sua conformidade ou

falta de conformidade com alguma diretriz previamente estabelecida). Da mesma forma, para

profissionais do direito, o mais importante normalmente é saber se há provas e considerações

tecnicamente admissíveis que incriminem o político corrupto. Como disse um advogado amigo

meu: “Como cidadão, tenho simpatia pela forma como o STF lidou com o caso do mensalão.

Aqueles políticos detestáveis precisavam de uma lição. Mas, como advogado, vejo problemas

técnicos severos nas decisões do tribunal.” A cisão entre as perspectivas do cidadão e do

advogado corresponde à cisão entre os estilos substantivo e institucional de argumentação.

Uma das teses centrais deste livro – que pode ser chamada de “tese institucional” –

consiste justamente na afirmação de que os profissionais do direito argumentam de modo

predominantemente institucional. É preciso esclarecer cuidadosamente o que significa essa tese.

Para isso, permita-me usar mais um exemplo. O seguinte diálogo hipotético serve para ilustrar o

caráter institucional – e, portanto, burocrático, engessado, artificial – da argumentação jurídica:

– Autor: O réu me deve 500 reais. – Réu: Discordo do autor. – Autor: O réu me deve 500

reais porque realizamos um contrato válido de compra e venda, eu forneci o produto e o

réu nao pagou. – Réu: Reconheço que o autor forneceu o produto e que eu não paguei,

mas não reconheco que haja entre nós um contrato válido. – Juiz: Autor, prove que vocês

têm um contrato válido. – Autor: Eis um documento assinado por nós dois. – Reu: Não

reconheço a autenticidade deste documento. – Juiz (ao réu): Visto que o documento

parece autêntico, prove que ele nao é. – Réu: Esse laudo encomendado a um laboratório

atesta que a minha assinatura foi forjada. – Autor: O relatório não serve como prova, pois

eu tive conhecimento dele muito tarde no proceso. – Juiz: Concordo: a prova não é

admissível.6

5 Não é por acaso que os professores que compõem o corpo docente da faculdade de direito são, na sua maioria,

conhecidos como professores de disciplinas “dogmáticas”. Voltaremos a esse assunto mais tarde. 6 O diálogo foi emprestado, com algumas modificações, de Prakken & Sartor “The Three Faces of Defeasibility in

the Law” (2004) 17 Ratio Juris, pp.118-139.

Com esse diálogo em mente, considere alguns esclarecimentos a respeito da tese institucional.

Primeiro, deve ficar claro que a tese é descritiva. Ela não prescreve que profissionais do direito

usem argumentos institucionais e evitem argumentos substantivos. A tese institucional descreve

um fato sobre a prática do direito; ela não celebra, nem recomenda essa prática. Por um lado,

esse esclarecimento me livra da responsabilidade de enfrentar o imenso desafio que seria

defender os hábitos argumentativos dos profissionais do direito. Por outro lado, ele revela um

outro sentido em que a tese institucional é muito ambiciosa. Trata-se de uma tese empírica sobre

aquilo que fazem os juízes, advogados, promotores e defensores de maneira geral. Mas como

justificar uma tal tese? Como colher evidências, dados e estatísticas suficientes para fundamentá-

la? Como provar que estou certo a respeito daquilo que faz rotineiramente a maioria dos

inúmeros profissionais do direito?

É preciso admitir que disponho de evidências limitadas. Há, em primeiro lugar, estudos

empíricos internacionais (discutidos mais adiante) que indicam uma dose surpreendente de

“institucionalismo” em tribunais altos dos quais (por lidarem com questões politicamente

sensíveis e tecnicamente complexas) não se espera tanto institucionalismo assim. Há também o

fato, mencionado anteriormente, de que o ensino jurídico, dentro e fora do Brasil, é amplamente

“dogmático”. Isto é, estudantes de direito passam muito mais tempo aprendendo o conteúdo de

diretrizes e procedimentos estabelecidos por autoridades legais do que refletindo sobre o justo, o

bom, o economicamente eficiente etc. Há, por fim, o fato de que diálogos hipotéticos como

aquele usado há pouco normalmente são recebidos como exemplos realistas e representativos da

prática jurídica. Esses fatos não bastam, talvez, para estabeceler a tese institucional como

verdadeira; mas eles servem ao menos para estabelecê-la como uma tese plausível e merecedora

da nossa atenção.

Um segundo esclarecimento. A tese institucional diz que a argumentação de profissionais

do direito é predominantemente institucional. Ela não diz que a argumentação desses

profissionais é exclusivamente institucional. Juízes, por exemplo, frequentemente usam

argumentos substantivos. Mas é crucial notar que, quando juízes recorrem a argumentos

substantivos, eles normalmente o fazem com o objetivo de corroborar argumentos institucionais

já formulados. E, mesmo quando apelam a considerações explícitas sobre o que é justo ou bom,

por exemplo, normalmente econtram meios de passar sobre essas considerações um certo

“verniz” institucional (a explicação precisa dessa metáfora aparecerá mais tarde). Argumentos

institucionais predominam no direito: eles não reinam sozinhos, mas têm precedência sobre

argumentos substantivos.

A propósito, uma das lições gerais deste livro diz respeito ao fato de que muitas

distinções tratadas no mundo jurídico como dicotomias rigorosas são, na verdade, distinções de

grau, que admitem uma série de casos intermediários. Vale a pena entender a distinção entre

argumentação substantiva e argumentação institucional da mesma maneira. Podemos imaginar

pessoas que apelam de maneira totalmente livre a considerações substantivas de toda natureza.

Por outro lado, podemos imaginar pessoas que jamais apelam a tais considerações, e que só

fazem valer diretrizes e procedimentos determinados previamente por outras pessoas ou

instituições. Ambas são tipos ideais que provavelmente nunca existiram nem nunca existirão. No

mundo real, as pessas se posicionam entre esses dois extremos. Profissionais do direito se

aproximam mais do extremo institucional e filósofos morais, por exemplo, do extremo

substantivo. A seguinte representação pode ser útil:

A linha faz três coisas importantes: (i) ela identifica extremos hipotéticos; (ii) sugere onde se

posicionam casos reais como os casos da argumentação jurídica e da argumentação filosófica em

relação aos casos extremos; e (iii) indica que há casos intermediários inclassificáveis. Esse, por

sinal, é um problema que afeta toda distinção de grau: alguns casos caem numa zona nebulosa

intermediária. Deve ficar claro que uma distinção não deve ser rejeitada só por apresentar casos

intermediários: ela continua sendo útil desde que um número significativo de casos se aproxime

de cada um dos extremos. Note, por sinal, que não dispensamos a útil distinção entre careca e

cabeludo só por causa da existência de casos intermediários de pessoas que, por terem perdido

muito cabelo, não são exatamente cabeludas, mas que ainda têm cabelo suficiente para que

também não contem precisamente como carecas.

Em terceiro lugar, a tese institucional não diz nada a respeito da transparência e

sinceridade do discurso dos profissionais do direito. Argumentar institucionalmente é apelar para

diretrizes e procedimentos previamente estabelecidos com o objetivo de justificar conclusões

práticas publicamente. Quem argumenta assim pode apelar publicamente para diretrizes e

procedimentos consagrados com o objetivo íntimo de promover ideais substantivos ou até

mesmo interesses pessoais obscuros. Não haverá juízes que fazem referência às leis sem se

importarem intimamente com elas? Não haverá juízes que aplicam as leis apenas para garantir

algum benefício profisional ou promoção que seria ameaçada caso fossem menos obedientes?

Não haverá juízes que usam leis para promover objetivos ideológicos que não ousam divulgar? A

tese institucional não elimina nenhuma dessas possibilidades. Aliás, os mais “ativistas” dos

tribunais – aqueles que mais são movidos por considerações de natureza política, em vez de

considerações relativas ao conteúdo expresso do direito positivo – não deixam de argumentar

institucionalmente. Tribunais ativistas são assim taxados pelos seus observadores: os próprios

tribunais não se reconhecem como ativistas. Veja, por exemplo, o que se diz nos Estados Unidos

a respeito da argumentação jurídica em contextos constitucionais (contextos em que atua um dos

maiores símbolos do ativismo judicial, a Suprema Corte dos Estados Unidos):

E se você for um juiz ou Ministro – ou, o que é mais provável, um advogado atuando

diante de um tribunal – incumbido da tarefa de tomar uma decisão constitucional?

Certamente, como advogado você não pode dizer para a corte: “Aja de forma progressista

(ou conservadora), Vossa Excelência.” Em vez disso, você vai procurar mostrar que a

Constituição realmente requer o resultado que favorece seu cliente. Em outras palavras,

você vai precisar de um argumento sobre como a Constituição deve ser interpretada.

Mesmo que você desconfie profundamente das motivações reais dos juízes em casos

constitucionais, você não pode deixar sua desconfiança transparecer na sua petição.7

Quarto, logo no início dessa discussão surgiu a seguinte afirmação: “Quem argumenta

institucionalmente não está preocupado em defender aquilo que parece mais justo, mais

democrático ou mais eficiente no caso em questão.” A parte grifada é crucial. É preciso afastar

desde já a sugestão enganosa de que a argumentação institucional é neutra ou isenta. A

7 Michael Dorf, Constitutional Law. New York: Oxford University Press, 2010 (tradução livre).

argumentação institucional limita, de fato, o recurso a considerações substantivas no caso em

questão. Mas só no caso. É verdade que um juiz evita considerações substantivas no caso

quando considera válido um contrato com assinatura forjada só porque a prova da falsificação

não foi apresentada de acordo com o procedimento adequado. As exigências do procedimento

aparentemente afastaram as considerações sobre o que seria mais justo. Mas note que o juiz pode

ter decidido proceder assim por causa de outras considerações substantivas mais gerais e

remotas. O juiz pode pensar que a aplicacão constante do procedimento, mesmo que ele gere

injustiças eventuais, é uma boa forma de garantir certos valores globais fundamentais, a exemplo

da segurança jurídica. O mesmo tipo de ideal global pode motivar o juiz que absolve um político

corrupto só porque a prova cabal da sua culpa foi obtida por meio de uma escuta ilegal da

polícia. É uma pena que se deixe impune o político corrupto, mas, por outro lado, esse tipo de

procedimento foi instituído para limitar as tendências autoritárias de uma intituição – a polícia –

que noutros tempos já nos oprimiu. Ignorar o caráter ilícito da conduta da polícia seria uma

forma de incentivá-la a violar a lei outras vezes.

Não estou defendendo essa forma de pensar. Quero apenas deixar claro que aqueles que

argumentam institucionalmente escolhem fazê-lo, muitas vezes com base em razões substantivas.

Quem argumenta institucionalmente, portanto, não é inteiramente neutro. Quem argumenta

institucionalmente escolhe, por razões substantivas gerais, proceder de uma forma que limita a

possibilidade de recurso a novas considerações substantivas a cada momento, em cada caso.

Quinto, ao contrário do que pensam algumas pessoas, não é o elemento silogístico da

argumentação jurídica que lhe confere seu caráter institucional. Tudo depende, na verdade, dos

tipos de argumentos empregados pelo usuário do silogismo para garantir a justificação do

silogismo. Considere, por exemplo, duas maneiras diferentes de justificar a premissa maior do

silogismo que temos usado como exemplo até aqui:

A.

O Código Penal estabelece punição para o motorista que dirija sob a influência do álcool

Logo,

Quem dirige sob a influência do álcool deve ser punido

João dirigiu sob a influência do alcool

Logo,

João deve ser punido

B.

Acidentes provocados por embriaguez na estrada oneram seriamente o orçamento público

Logo,

Quem dirige sob a influência do álcool deve ser punido

João dirigiu sob a influência do alcool

Logo,

João deve ser punido

O argumento A (um argumento complexo encadeado) contém (no seu primeiro argumento

simples) uma defesa institucional da norma geral sobre embriaguez no trânsito – norma que, por

sua vez, funciona como premissa maior de um silogismo que serve para justificar a conclusão de

que João deve ser punido. O argumento B, por outro lado, contém uma defesa substantiva da

norma geral que leva à punição de João. O primeiro argumento apela a uma diretriz previamente

estabelecida, enquanto o segundo apela a considerações sobre o que seria melhor para a

economia pública. Ambos os argumentos resultam em silogismos, mas chegam lá por meios

significativamente diferentes. Para definir se o argumento de um profissional do direito é

realmente institucional, é necessário olhar, não só para o silogismo, mas para todo o argumento

complexo de que ele faz parte. Às vezes o profissional do direito explicita só o silogismo e não o

que vem antes. Nesses casos, talvez seja possível encontrar no contexto de discussão algum

indício do tipo de consideração que o profissional implicitamente usa para justificar o silogismo.

Na falta de tais indícios, é simplesmente impossível dizer com segurança se o profissional

argumenta institucional ou substantivamente.

[...]