98
1

Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

1

Page 2: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

2

© Adriana Baier Krepsky Editora Letra Viva Rua Herman Hering, 732 Blumenau (SC) 89010-600 Fone: (047) 322-9430 Fax: (047) 326-1803

Conselho Editorial:Braulio Maria Schloegel

Enéias AthanásioSueli Petry

Valquíria Rafel

ARIANA: A Luta Pelo Reino de Acácia - 1a edição – 500 exemplares – 1996Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto No 1507 de 1907ADBR - Associação Brasileira de Direitos ReprográficosNão é permitida a reprodução sem a prévia autorização do autor ou editor.

Editoração Eletrônica da 2a edição revisada: Adriana Baier KrepskyCapa: Adriana Baier Krepsky

Page 3: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

3

1

O sol nascia alegremente por detrás das verdejantes colinas, pre-parando-se para o novo dia e espalhando sua radiante e imponente luminosidade, enchendo de fulgor aquele lindo reino. As montanhas animavam-se com a chegada do poderoso astro, que resplandecia ma-jestoso. O bosque desperto sorria com a orquestra dos pássaros que acordavam e com os animaizinhos que saltitavam felizes, impulsiona-dos pela alegria de viver. No pântano funesto e putrefato, os sombrios bichos e inquietos insetos zuniam de um lado a outro, enquanto que, longe dali, o riacho cintilava em seu sereno trajeto, partindo livremen-te do traiçoeiro Lago das Sereias, rainhas da magia e do prazer...

Do precipício sem fim, viam-se as pérfidas montanhas da morte, com suas entranhas altíssimas repletas de mistérios e perigos. Além do Vale das Sombras, ladeadas pelo vil pântano, erguia-se o tenebroso Castelo da Escuridão, cercado das mais terríveis ameaças. Às margens do pânta-no e do vale, a Torre das Ilusões era um convite à perdição e ao esqueci-mento fatal. Diziam as lendas que quem lá entrasse, esqueceria comple-tamente de toda sua vida, jamais retornando...

Ao lado das montanhas, via-se o Pico da Neblina, cercado de lendas e habitado pelo silêncio; sua escalada era praticamente impossível, exceto com o uso de feitiços e encantamentos...

Muitos pensam ser o Reino de Acácia o mais perigoso e traiçoeiro, mas é exatamente este perigo e a sua magia que o fazem um dos mais procurados por caçadores de aventuras. Inúmeros cavaleiros e guerrei-ros chegam a esse lugar em busca de façanhas e donzelas para salvarem e, quem sabe, um título de honra de algum rei. Por esse motivo, formam--se diversas aldeias e povoados nas fronteiras do reino, dando algum lucro a hospedeiros e estalajadeiros. Lendas e histórias acerca de fadas e obscuros castelos, aparecendo nos mais estranhos lugares, enriquecem a fama desse lugar, tão curioso e místico, onde tudo pode acontecer...

Em meio às maravilhas ali existentes, reinava o bom e justo rei Absa-lão, no castelo Cisne de Marfim, no verde vale antes do grande bosque.

Page 4: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

4

Vivia feliz com sua rainha, a bela e querida Agatha, e suas três filhas - lindas como ninfas.

A mais velha, Arabela, tinha as qualidades da mãe, bondosa e quieta. A moça fora presenteada por uma fada estrangeira, ganhando a pureza e beleza espirituais. Tinha os cabelos finos e dourados como a luz do sol e a face rosada, iluminada por um inocente sorriso.

A segunda recebera de sua fada-madrinha, Allure, a coragem e robus-tez de uma guerreira, com o espírito inquieto e sedento de aventuras. Chamava-se Ariana e possuía os cabelos castanhos, com o rosto orna-mentado por um lindo par de sonhadores olhos azuis.

Ariel era a mais nova. Tinha os cabelos cor-de-fogo e muito cachea-dos, presente de uma fada de um reino muito distante. Com a face sape-ca coberta de sardas, seus olhos verdes e vivos não cansavam de sorrir, enquanto vivia aprontando pelo castelo.

Vez ou outra, ambas as irmãs brincavam pelos jardins, seja correndo espavoridas em busca de algum tesouro, seja salvando umas às outras de perigos em seu mundo de faz-de-conta. Arabela, entretanto, recolhia-se em seus sonhos apaixonados e românticos, ao contrário das duas irmãs, inquietas e incorrigíveis. Aqueles três tesouros enriqueciam ainda mais a vida dos dois soberanos, que não podiam desejar algo mais...

Infelizmente, essa felicidade não era constante, uma vez que exis-tiam no reino também fadas más. Entre elas, estava o gosto pelo in-cômodo à vida alheia; invejavam a felicidade dos outros, pratican-do sempre que podiam suas maldades e diabruras. A jovem Ariana escondia sua quase aprovação a tal comportamento, pois é ele que lhe proporcionava suas aventuras e salvamentos. Sua ânsia por ter alguém a quem ajudar ia além de seus sonhos de heroína...

Page 5: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

5

2

Certa noite, em que Arabela encontrava-se a sós no terraço, todos pareciam recolhidos num egoísta conforto, apenas pensando em paz e quietude... A moça fitava sonhadoramente o céu claro e estrelado quando, de repente, veio-lhe aos ouvidos uma doce melodia, tão bela quanto a voz de uma fada... Ecoava pela noite silenciosa, e a princesa não resistiu à tentação de ir ver de quem era tal arte. Desceu até o pe-queno vale em frente ao castelo. E 1á estava ela, serenamente sentada sobre o carvalho caído. Uma simples camponesa parou assim que viu a princesa, que lhe sorriu gentilmente, pedindo com amabilidade:

- Por favor, continue.Perto dali, Ariana afiava seu punhal pacientemente. Numa olhadela

para o riacho, viu as duas atravessando a ponte, noite adentro. Descon-fiada, seguiu-as cautelosamente.

Caminharam até o outro lado do rio, contornando o pântano e che-gando até a Torre das Ilusões. Ariana assombrou-se com revolta e, diri-gindo-se até a falsa camponesa, disse-lhe ferozmente:

- Quem é você e o que quer com minha irmã?- Nada, Alteza! Estamos apenas passeando.- Mentira, por que a trouxe aqui?- Por que acha que a trouxe aqui, Alteza? - disse ela, ao mesmo tempo

em que se transformava em uma malévola bruxa. Seu olhar ingênuo e inocente tornou-se frio e cínico, acompanhado de uma gélida gargalhada.

- Tola princesa! Desconhece meu poder!E de repente, sem que Ariana pudesse fazer algo, uma densa nuvem

negra cobriu tudo ao redor, cegando-lhe a visão. Quando por fim con-seguiu voltar a ver, Arabela sumira, junto com a bruxa.

Apenas o leve sussurro do vento cercava aquele sinistro lugar, soprando no alto das árvores. A jovem rodeou a torre várias vezes, procurando por

Page 6: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

6

qualquer passagem ou abertura; mas nada encontrou. Pensou rapidamen-te e, por fim, tomou seu punhal e com ele deslocou uma enorme pedra. Esta tombou pesadamente ao chão. E por ali entrou, penetrando no inte-rior da torre. Lembrou-se da lenda, e temeu esquecer-se de sua vida e sua família, mas tudo faria pela irmã. Tinha que arriscar. Jamais perdoar-se-ia se algo acontecesse a ela.

Quando seus olhos acostumaram-se à escuridão desoladora, distin-guiu fracas tochas que ardiam junto à parede de pedra suja e descuida-da. Encostada a ela, subia uma escada em caracol, e a garota não hesitou em utilizá-la, apressadamente. O silêncio era inquietante, fazendo-a an-siar por algum perigo, para acabar com o suspense de uma vez. Sobres-saltou-se ao ouvir um rugido selvagem, que a fez hesitar de arma à mão. Não demorou muito para ver a origem do rugido. Um urso cinzento enorme saltou à sua frente, de garras e dentes à mostra. Ariana recuou com o coração aos pulos, mas disposta a tudo para se defender. A fera avançou ameaçadoramente, enquanto a moça lutava como conseguia. Tentava a todo custo desviar-se dos golpes, esquivando-se sempre com o punhal à frente, separando-a da fera. Finalmente, atingiu o seu peito peludo, o que a fez desaparecer como que por encanto...

Sem perder tempo, a jovem prosseguiu com vigor e firmeza em sua busca. Aos poucos, foi ouvindo agudos guinchos, muito próximos. Foi quando olhou para baixo, e, para seu espanto, viu milhares de ratos aos seus pés. Eram tantos que tampavam completamente os degraus por onde andava. Sobre sua cabeça, morcegos, vindos não sabia de onde, as-sustaram-se com sua presença. Alarmados, voaram subitamente, arra-nhando a garota, que ligeiramente procurou sair dali, gritando furiosa:

- Hei, bruxa perversa! Acha que pode me afugentar? Venha e lute co-migo até a morte!

Sua resposta foi uma zombeteira risada, acompanhada de uma cínica voz:- O que quer, princesinha? Sua valiosa irmã? Pois venha buscá-la!E à sua frente, apareceu uma porta que de repente se abriu.Ariana penetrou na pequena sala escura e fracamente iluminada por

tochas que ardiam bruxuleantemente. Viam-se a um canto algumas al-mofadas, junto de uma vasilha com água, que parecia fresca e cristali-na. Ariana deliciou-se só em pensar num momento para descansar um pouco para pôr os nervos no lugar; mas logo afastou de si tal pensamen-

Page 7: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

7

to, que só lhe traria a perdição...Subitamente, apareceram três belos rapazes que, tomando-lhe a mão,

sorriram sedutoramente.- Venha e descanse um pouco, Alteza. Deve estar exausta...- Deixem-me, são apenas ilusões!Eles então se uniram num só, originando um assustador e feroz guer-

reiro, que avançou para a princesa de espada em punho.Ambos puseram-se a lutar bravamente, desferindo golpes mortais

que faiscavam ameaçadoramente. Ariana desviava agilmente de sua lâmina, tentando a todo custo matá-lo. Ele, porém, não tardou a ferí--la no braço direito. O corte serviu para despertar o ódio em Ariana, o que lhe deu forças para, com um decisivo golpe, perfurar impiedo-samente o peito do inimigo com seu punhal. O guerreiro, porém, não morreu, transformando-se em um belo e rico príncipe, de olhos amo-rosos e calmo sorriso.

- Por que luta, bela jovem?- Você queria me matar... - respondeu, sentindo-se tonta com a magia

e surpresa diante de tal pergunta.- Então por que veio até aqui?- Para salvar a quem precise de ajuda; há sempre alguém em perigo...

- ironizou Ariana, sem abaixar a sua arma.- Não há quem possa salvar aqui. Ninguém está em perigo.- Claro que há! - retrucou, furiosa e disposta a matá-lo; ele contudo,

recuou, fingindo temê-la.- Acalme-se, valente princesa. Sua irmã está bem. E está à sua espera.Surgiu uma nova porta que, ao se abrir, revelou uma cena que petri-

ficou a garota. Arabela encontrava-se confortavelmente deitada sobre confortáveis almofadas, com várias criadas a servir-lhe frutas e abanan-do-a com plumas. A moça sorriu ao ver a irmã, que a fitava estupefata. Belos rapazes tocavam liras de ouro e cantavam doces canções. Arabela sorria prazerosamente, esquecida de tudo e de todos... Estava seminua, deixando transparecer suas curvas, enquanto desfrutava de seu cativeiro vazio de memórias.

Ariana imediatamente aproximou-se da irmã, dizendo, tomada de te-mor e ansiosa por sair dali:

- Arabela, vista-se e vamos para casa!

Page 8: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

8

- Oh, Ary. Por quê? Aqui é tão bom... Fique comigo e descanse um pouco.

- Você não entende; se ficarmos aqui, nunca mais voltaremos!- Voltar para onde? Aqui é o nosso lugar.- A princesa tem razão, Alteza. Fique e descanse um pouco. Depois

poderá continuar. - disse o rapaz.- Não quero ficar. - retrucou Ariana, torturada.- Oh, Ary. Claro que quer... Vamos, deite-se e relaxe.Ariana, apesar de achar a situação ridícula, sentou-se e comeu até

se saciar. Procurando sondar a quantas andava a memória da irmã, conversaram muito, falando de aventuras e sonhos. O tempo parecia não existir. Arabela falava-lhe de prazeres que ali desfrutava, de visões e príncipes que vinham de muito longe só para vê-la. Ariana contava--lhe suas aventuras passadas, seus feitos e salvamentos, procurando ativar-lhe lembranças, como se arremessasse âncoras capazes de pren-dê-la à realidade.

- E quem salvou, Ary? - perguntou a irmã, brincando com as pétalas de uma flor.

- Bem, eu salvei um criado de se afogar no pântano, outra vez salvei um camponês, até minha irmã eu já... - súbito, uma luz veio-lhe à mente e ela ergueu-se de ímpeto, dizendo com raiva:

- Maldita bruxa! Não vai me fazer esquecer! Precisamos sair daqui!E puxou a irmã para si e disse:- Vamos embora daqui agora! - e se afastaram do luxo que as cercava.Quando, porém, aproximaram-se da porta, uma chama explodiu à

frente das duas e uma voz furiosa disse:- Venceu meus desafios, jovem guerreira! Agora terá que enfrentar a mim!Instantaneamente, a chama se transformou num feroz dragão, de gar-

ras e presas pontiagudas. Ariana deixou a irmã a um canto e empunhou sua arma, pronta para a luta. O monstro avançou raivosamente, dando início ao combate mortal. Punhal e garras se enfrentavam chocando-se fortemente, enquanto o sangue escorria de ferimentos em ambos os ad-versários. Finalmente, Ariana cravou fundo a sua singela arma no coração da bruxa, que desapareceu com um rugido assustador. A garota, muito ferida, tomou sua irmã nos braços e saiu rapidamente dali, chegando de volta à escada em caracol.

Page 9: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

9

Desceu apressadamente, carregando a irmã desmaiada. Estranhou não estarem chegando a lugar algum. Amaldiçoou a magia da bruxa e, com seu punhal ensanguentado, deslocou uma das pedras, que tombou na relva lá embaixo. Olhou através da passagem e viu que uns bons me-tros as separavam do chão. Mas não hesitou - nem podia, queria sair dali o mais rápido possível. Respirou fundo e pulou com Arabela sobre si.

De volta ao Castelo, exausta e ferida, foi recebida às pressas pelo capi-tão da guarda e o rei, preocupadíssimo. A moça nada falou sobre o esta-do em que encontrara Arabela e nem a própria lembrava o que aconte-cera. Ariel abraçou calorosamente as irmãs e a rainha não podia conter as lágrimas.

Durante alguns dias depois de libertar a irmã, Ariana tinha pesadelos terríveis à noite, mal conseguia dormir. Sabia muito bem quem estava por trás daquilo, chegando à conclusão de que não a matara definitiva-mente. A perversa fada vingava-se de sua vencedora, através das mal-ditas visões. Entretanto, sua boa fada-madrinha, Allure, logo correu ao seu socorro, afastando a maligna fada do castelo, em amor e admiração à afilhada. Certa noite, contudo, Ariana teve um estranho sonho; não era um pesadelo vindo da fada má. Era um aviso de Allure.

A princesa via-se só na escuridão, cercada de guerras e mortes, perdi-da e assustada. De repente, alguém lhe tirou a coroa de ouro que usava. Era um homem estranho e de roupas toscas e escuras, com um pesado par de botas; em sua cabeça não havia um fio de cabelo e um fino e grisalho bigode pendia sobre os lábios pálidos e frios; trazia o olho es-querdo tapado. Ele ria de sua solidão e ruína, afastando-se nas trevas, que por fim o esconderam. Ariana acordou sobressaltada, suando frio. No dia seguinte, Ariana e Ariel voltaram a brincar juntas pelos jardins do castelo. Corriam e passearam por todos os cantos, entre flores e árvo-res, alegrando a todos que as vissem. Ariana escondia sua preocupação quanto ao sonho que tivera, temendo assustar sua família. Por mais que tentasse afastá-lo de suas lembranças, procurava imaginar quem seria aquele estranho homem e por que tirara sua coroa...

Seus pensamentos foram interrompidos por um súbito trotar, que imediatamente atraiu a atenção de ambas e dos guardas, que correram a ver quem era. Surpreenderam-se ao constatar que um cavaleiro che-gara de viagem. Ariana excitou-se ao pensar que talvez fosse aquele o

Page 10: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

10

homem de seus sonhos; mas decepcionou-se ao ver seu rosto. Ele era lindo e garboso, com cabelos cor-de-cobre e um par de verdes olhos na face sorridente; não se parecia em nada com o homem feroz e so-turno que tivera em visão. Sua armadura reluzia ao sol da manhã e seu corcel branco trazia belos arreios dourados. As duas se aproximaram e Ariana perguntou:

- Olá, cavaleiro. Está perdido?- Sim, Alteza. Sou estranho por essas paragens. - abaixou-se mais para

confidenciar-lhe, com um simpático sorriso: - Procuro por aventuras.- Em Acácia, encontrará inúmeras. Qual seu nome?- Sou D’Albert, cavaleiro errante. Com quem tenho a honra de falar?- Sou a princesa Ariana, filha do rei Absalão e da rainha Agatha. Esta

é minha irmã Ariel e aquela que vem ali é Arabela. - A moça se aproxi-mou dos três e perguntou delicadamente:

- Quem é o gentil cavaleiro?- Sou D’Albert, preciosa dama; cavaleiro errante sedento de aventuras.

- disse ele, apeando do cavalo para beijar-lhe a mão, em reverência.Ariana e Ariel logo perceberam que ambos se encantaram um pelo

outro; Arabela sorria-lhe docemente e o cavaleiro não desgrudava os olhos da jovem soberana.

- Deve estar cansado da viagem. Entre um pouco e descanse.- De modo algum, donzela; não quero incomodar.- Não será incômodo algum. Mostrarei nossos jardins.E seguiram juntos, deixando as duas pasmas. Mas ninguém percebera

que outras pessoas também observavam a cena, comovidos e encanta-dos, trocando sorrisos de satisfação.

Page 11: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

11

3

D’Albert permaneceu em companhia da família real durante alguns dias, aprofundando suas relações com Arabela. O Rei e a Rainha muito se admiraram com o jovem casal; Ariel vivia a cantarolar pelos corredo-res e Arabela mirava-se sonhadoramente em frente ao espelho. Ariana se alegrava junto com as irmãs, escondendo, porém, seus receios acerca da lembrança do estranho homem.

Ariel ficou ainda algum tempo a espiar o casal, que namorava à luz das estrelas. Ria-se consigo mesma, imaginando-se como seria bom se já tivesse o seu príncipe também... Na certa, seria bastante engraçado ficar grudado a ele o dia inteiro... Por fim, resolveu ir se deitar. Já boceja-va de sono. Recolheu-se ao seu gracioso aposento, apinhado de bonecas que seu pai trazia de suas viagens. Depois de feitos os seus afazeres pes-soais infantis, mergulhou em sua macia cama rosada, deixando-se aos poucos imergir no seu mundo de sonhos, onde ninguém ousava pene-trar. Entretanto, alguém espreitava a inocente criança; cautelosamente chegando mais perto, rindo baixinho e trazendo consigo suas malicio-sas intenções. E, numa explosão mágica, desapareceu levando consigo a princesinha adormecida.

Na manhã seguinte, o sol encontrou Arabela se despedindo de D’Albert. O jovem cavaleiro partia para novas aventuras exóticas, prometendo, porém, à namorada:

- Jamais a esquecerei, Alteza.- Nem eu, meu bom D’Albert. Quando voltará?- Não hei de demorar, Alteza. Nos encontraremos novamente.- Esperarei ansiosamente. - disse a princesa, com os olhos mareja-

dos de lágrimas.O cavaleiro deu um suave beijo inocente na face alva da moça, par-

tindo bravamente e desaparecendo no cálido horizonte. Arabela entrou nos jardins, com os olhos baixos e pensativos...

Enquanto isso, Ariana dirigia-se apressadamente ao quarto de Ariel, a fim de acordá-la. Era estranho vê-la ainda a dormir, quando usualmente

Page 12: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

12

ela já estaria de pé àquela hora. Entrou sorrateiramente, pensando em lhe dar um susto... Mas o susto foi dela, ao ver vazia e em desordem a cama da irmã. Surpresa, procurou por todo o aposento. Em vão. Percor-reu salas e torres onde ela poderia estar, mas sem sucesso. Perguntou a guardas e criados e, nada encontrando, começou então a se preocupar. Tomou suas armas e foi à floresta, decidida a não voltar sem ela.

Vagou por todo canto, sem o mínimo vestígio da irmã. Chamou-a por muito tempo, até que, de repente, uma voz doce e meiga lhe falou, vinda não sabia de onde:

- Acalme-se, valente princesa. Sou a Fada Allure e sei por que veio aqui.- Sabe onde ela está? Diga-me, por favor...- Ariel foi raptada pelos irmãos Artux, que vivem no castelo sobre a

colina no vale das sombras.- Mas por quê?- Os Artux são perigosos e malévolos. Querem algo em troca de sua irmã.- E o que é?- Isso eu não posso lhe dizer.- Tenho que salvá-la. - disse ela, decidida.- Vá, Ariana. Salve sua irmã.- Obrigada, boa fada. - agradeceu, mas a voz já tinha desaparecido no

ar coberto de aromas cintilantes, que se foram com a fada...Ariana partiu dali fortalecida com esperanças para vencer quem quer

que fosse. Faria qualquer coisa pela irmãzinha e nada a forçaria a desis-tir ou recuar; ainda porque, sabia agora que alguém estava ao seu lado, dando-lhe apoio e energias. Alguém que estaria ao seu lado em toda e qualquer situação, nas horas de prazer e alegria e nos momentos de ru-ína e solidão...

Com essa determinação, atravessou a acolhedora floresta e o vale verdejante em direção à pontezinha que a levaria até o Vale das Som-bras. As criaturas da escuridão a cercavam, trazendo consigo as visões do medo e das trevas e arrastando-a ao abismo da renúncia. Ela, po-rém, negava-se a recuar, seguindo em frente, ainda que com dificulda-des. As feras da escuridão em vão tentavam contê-la, o medo tentava à toa dominá-la. Uma luz intensa e poderosa brilhava no interior da jovem guerreira, guiando-a em meio aos obstáculos; uma luz de cora-gem e nobreza, que não diminuiu ao chegar ao temido castelo, erguido

Page 13: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

13

sobre os pilares da tristeza e da maldade. Ariana contemplou-o com um calafrio de ânsia e temor, pensando nos seres que ali viviam...

O castelo era todo construído com enormes pedras maciças, cober-tas de musgos e parecia estar em ruínas. Por todos os lados, pendiam teias de aranhas; morcegos vampiros guinchavam, voando assustados por sua presença. O pó e o mofo estavam em todos os cantos, deixando o ar ainda mais irrespirável, com um acre cheiro de morte e podridão... Vez ou outra, ouviam-se risadas escondidas, rugidos e gemidos horrí-veis, vindos do interior daquela macabra edificação. Ariana estremeceu temerosa e repugnada, mas prosseguiu, disposta a ir até o fim para rever a pequena Ariel.

Atravessou cautelosamente o pátio interno, vazio e silencioso. Uma fina névoa encobria o sinistro lugar, obscurecendo os arredores. Pelos corredores frios e quietos, as baratas e demais insetos roçavam pelos cantos imundos, junto com o odor nauseante que exalava por ali. A tê-nue luz das tochas gastas parecia pedir por socorro, implorando-lhe com gestos suplicantes...

Finalmente, Ariana chegou a um amplo salão, cujas janelas imensas mostravam uma secular sujeira. Igualmente vazio, apenas ratos e insetos desfrutavam do que antes era um magnífico salão de bailes onde, talvez um dia, as valsas soaram graciosamente. A princesa admirou tudo aquilo com certo pesar, tentando imaginar quem viveria num lugar tão bonito e tão descuidado...

Em um lado do salão, a jovem avistou três tronos, cobertos de pó e de teias. Ariana aproximou-se espantada, não sabendo se era por ver sinais recentes de que alguém ali estivera, ou porque eram três tronos... Sentiu-se confusa e até mesmo curiosa; quem afinal morava ali?

Sua pergunta logo foi respondida ao ouvir uma zombeteira risada fria, seguida por duas outras, de tons diferentes. Ariana procurou pela ori-gem dos sons, que se tornavam cada vez mais provocadores. De repente, ao voltar os olhos para os tronos de pedra polida, assombrou-se ao ver três bizarros seres ali sentados. A primeira era uma moça de rosto muito pálido, como se nunca tivesse visto a luz do sol. Tinha os olhos perscru-tadores e um sorriso desdenhoso. Duas tranças negras pendiam pelos lados do fino e branco pescoço; vestia um longo e sedoso macacão, cujas cores contrastavam com a escuridão do castelo.

Page 14: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

14

A outra moça ao seu lado era mais baixa, trazia um sorriso semelhante, porém um pouco mais aberto e radiante. Tinha a face igualmente branca, contrastando com os olhos pequeninos e brilhantes. Trazia, escondendo o cabelo, um extravagante chapéu de três pontas, de onde pendiam guizos de prata. Seu traje esvoaçante era levemente azul, como uma calma tarde de verão...

Um rapaz estava entre elas, fitando-a com um brilho de contentamen-to nos olhos negros, mostrando astúcia e malícia. Tinha a face igual-mente pálida e o mesmo sorriso de zombaria e sarcasmo. Os cabelos negros e crespos insistiam em manterem-se rebeldes na frente; vestia a mesma roupa leve como plumas, esvoaçando em cores suaves e místi-cas. Ariana fitava-os pasma e hesitante, interrogando-se como um trio tão gracioso e encantador podia ser tão malévolo...

- Veio salvar sua irmãzinha, princesa? - perguntou o rapaz, sorrin-do sarcasticamente.

- Vim e não vou voltar sem ela. - determinou ela, enquanto que o trio ria-se desdenhosamente. - Quem são vocês? - perguntou, sem es-conder a surpresa.

- Sou Pauler, e estas são Agnes e Paulie. - disse ele, indicando a moça de tranças e a de chapéu, respectivamente. - E você é Ariana, filha de Absalão.

- Perde seu tempo, princesa... - disse Agnes. - Ariel jamais sairá da-qui com vida.

- Sairá, sim! Eu vou levá-la comigo, nem que tenha que dar minha própria vida! - retrucou a jovem, resoluta. De repente, contudo, surgiu ao redor de si uma sólida cela de aço, prendendo-a sem saída.

A garota forçou-a, em vão tentando sair. Os três irmãos aproximaram--se rindo diabolicamente. O rapaz disse, com sarcasmo:

- Como é, valente princesa? Não vai destruir nossa cela a fim de liber-tar sua irmã? Ela tanto chora...

Ariana cuspiu em seu rosto, com os olhos faiscando de ódio; ele dimi-nuiu o sorriso e, soltando uma praga, afastou-se da jaula.

Sem que a garota percebera, encontravam-se agora em um pequeno laboratório, cercado de prateleiras e estantes repletas de frascos com diversas substâncias e líquidos. Armários e mesas sustentavam inú-meras anotações, aparelhos e instrumentos estranhos. Em um canto, estava uma grande cápsula de vidro, ligada por vários cabos a uma

Page 15: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

15

máquina que zumbia sinistramente. A garota olhou tudo aquilo te-merosa e surpresa, sobressaltando-se ao ver as duas moças trazendo Ariel, pálida e assustada.

- Ariel! - afligiu-se ela. - Devolvam minha irmã!- Ary! - gritou a menina, tomada de temor.Os três a levaram para uma mesa de metal, prendendo-a pelos mem-

bros. E puseram-se a torturá-la com choques elétricos, em meio a risotas divertidas. Ariana tentava a todo custo sair da cela, tomada pela raiva de ver o sofrimento da irmã, que estremecia gritando de dor e medo.

Agnes por fim a soltou, levando-a aos braços de Pauler, fraca e trêmula. Enquanto as duas tocavam desafinadamente seus violinos, o rapaz dan-çava junto da princesinha sobre lesmas e baratas, algumas mortas, outras sendo esmagadas sob os pés de ambos. Ariel chorava desesperada, até que Ariana gritou:

- Parem! Chega, por favor! Soltem-na, faço o que quiserem!Pauler estacou interessado e entreolhou-se com suas companheiras

com ar vitorioso. E propôs à prisioneira:- Trocaria de lugar com ela?- Faria qualquer coisa, mas quem garante que ela chegará segura em casa?- Paulie a levará.- Acha que irei acreditar em vocês, depois de tudo o que presenciei?- É a sua única saída.Ariana hesitou por um momento, mas logo concordou ao ver sua

irmã, pálida de medo; precisava tirá-la dali, daquele sofrimento louco e desumano. Se não o fizesse agora, jamais o faria de novo...

- Está bem. - disse ela. - Fico, mas Ariel agora está livre!As duas moças riram satisfeitas e soltaram Ariana da cela. Porém, as-

sim que se viu livre, ela desembainhou seu punhal ferozmente. Não es-tava disposta a ceder aos três maníacos. Empurrou Paulie e Agnes e, tomando a irmã nos braços, afastou-se com ela.

- Traidora! - rugiu Pauler, fitando-a com raiva e revolta.- Desculpe, mas esta é a única maneira de garantir a liberdade de mi-

nha irmã! Não consigo confiar em vocês.- Nós nos vingaremos, princesa! Com toda a nossa ira!Ariana tratou de sair dali rapidamente com Ariel, deixando os três

seguindo-a com olhares furiosos...

Page 16: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

16

4

Ao chegarem ao castelo, a noite já havia caído com toda a sua mag-nificência e mistério. Mais uma vez, o Rei veio ao encontro de ambas, preocupadíssimo e cobrindo-as de perguntas e censuras. Ariana, entre-tanto, limitou-se a abraçá-lo carinhosamente, garantindo-lhe que agora tudo estava bem. A jovem salvadora levou Ariel ao seu quarto e a deitou na cama limpa e macia. Mas naquela noite, dormiu ali também, mon-tando guarda em proteção à princesinha. Agora ela estava segura em casa, porém, não sabia o que a ira e maldade dos Artux poderiam fazer... As criadas trouxeram um leito provisório e ela ali se deitou, exausta de tantas emoções em um só dia... Não demorou muito para adormecer e imergir no curioso mundo dos sombrios e misteriosos sonhos... E foi o que aconteceu.

Naquela noite, teve uma nova e igualmente inquietante visão. Via-se a passear sozinha pela verde floresta, numa noite clara e limpa; os astros e estrelas reluziam lá em cima, iluminando o caminho cercado de sons escurecidos pela aflição... Subitamente, um gigantesco e ofuscante cla-rão surgiu à sua frente, sobressaltando-a em meio à quietude da floresta. E dele saiu o mesmo homem, com as mesmas escuras e estranhas rou-pas. Ele se aproximou sorrindo levemente, abraçando-a com calor e de-terminação; Ariana enlaçou-o com seus braços vigorosos; porém, com certo temor e desconfiança. Mais uma vez a garota acordou assustada, suando frio e com o coração aos pulos.

Na manhã seguinte, resolveu tomar uma atitude para solucionar o enigma que a envolvia e desvendar o significado daqueles sonhos tão estranhos que - e disto estava certa - eram um aviso sobre o futuro.

Entrando na luxuosa sala do trono, encontrou seu pai a pensar com preocupação, ao lado da rainha que, assim que viu a filha, alertou-o. Ariana aproximou-se interrogativa e o rei lhe disse, calmamente, tra-zendo, contudo, ares de preocupado:

- Ariana, tenho algo a lhe falar.- O que, papai?

Page 17: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

17

- Eu me preocupo com seu futuro, você sabe. Viu como sua irmã, Arabela, já está se engajando com o nobre cavaleiro. São de fato um par perfeito e, como todo bom rei, eu não os censuro.

- Creio que meu pai não me chamou aqui para falarmos de minha irmã... - atalhou Ariana.

- Claro que não, minha filha. - disse ele, bondosamente. - Mas já é hora de você também desposar um nobre fidalgo. Não quero vê-la sozi-nha o resto de sua vida, apenas salvando e correndo riscos que podem tirar-lhe a vida...

- Eu sei, mas preciso fazê-lo, papai. É meu dever...- Seu dever é ser uma soberana fina e educada.- Assim o sou, mas tenho que vencer os perigos que estão por aí, a

ameaçar-nos o tempo todo; alguém tem que fazê-lo.- Não tem que ser exatamente você...- Tem, sim, papai. É este o meu destino! É minha missão! - disse ela,

firmemente, antes de sair aborrecida. O rei viu sua indignação com des-gosto, mas a boa rainha tomou-lhe as mãos buscando confortá-lo.

- Não a culpe, querido. Ela ainda é jovem e ativa, com tanto vigor. Só quer fazer o bem...

- Ela é uma princesa, não uma guerreira!- Sim, mas assim como um rei pode guerrear em defesa de seu reino,

Ariana guerreia pelo nosso. Ela será uma perfeita rainha quando chegar a hora...

- Será mesmo? - perguntou o rei, temeroso e incerto. Agatha, porém, acalmou-o, confiante nas qualidades de sua filha: - Ela é valente e esper-ta, e sabe o que faz...

Page 18: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

18

5

Vestida com suas melhores roupas de caça, Ariana preparava tudo para a viagem que faria agora, rumo ao conhecimento de seus sonhos. Depois de afiar seu punhal e embainhá-lo na cinta de couro curtido, juntou al-gumas provisões em um alforje e partiu, a fim de resolver de uma vez por todas o enigma que a atormentava. Não havia dia ou noite em que não pensasse no estranho homem que invadia seus sonhos e suas noites de sono calmo e tranquilo...

Dirigiu-se à floresta sem demora, alcançando o coração da verde e densa mata. Lá chegando, olhou ansiosa ao redor, por onde fugiam os raios de sol, alvos e cintilantes.

- Fada Allure, preciso lhe falar. - disse ela, revelando sua aflição.- Sei por que veio, Ariana. Conheço aquilo que tanto a preocupa e sei

quem pode ajudá-la.- Quem?- O ermitão que vive nas Montanhas da Morte. Conte-lhe seus sonhos

e ele a ajudará. Mas tome muito cuidado, princesa. O caminho é perigoso e longo...

- Eu entendi, boa fada. Obrigada...A névoa mágica e cintilante novamente desapareceu e a jovem partiu,

com coragem e esperança; aquela mesma luz interior ainda brilhava em seu íntimo e nem mesmo ela poderia explicá-la...

Atravessou sem problemas o Vale das Sombras, munida de um peque-nino espelho, no qual refletia a poderosa luz do sol, com a qual afastava assim as horrendas criaturas. Logo alcançou as Montanhas da Morte, secas e silenciosas em sua quietude obscura... Pôs-se a escalá-las, usando pés e mãos para galgar as pedras desgastadas pelo vento ou pontiagudas devido à ação de bicos de aves, que ali os afiavam. Ariana atemorizou-se com a altura dos penhascos, que só aumentava...

As florestas lá embaixo ficavam cada vez mais pequeninas, enquanto a brisa gelada soprava-lhe na face suada. As rochas entulhavam-se em de-graus que a ajudavam na subida, seja formando uma verdadeira escada

Page 19: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

19

perpendicular ou grandes e largas fendas onde a garota podia descansar um pouco.

A escalada continuava, cansativa e sem trégua. De repente, Ariana ou-viu um estrondo grave e muito próximo, logo seguido por outros mais. Quando se deu conta, viu enormes pedras rolarem veloz e furiosamen-te em sua direção. Com agilidade, desviou-se como pôde, fugindo das rochas que podiam rachar sua cabeça. Passado o susto, prosseguiu na jornada, exausta, mas decidida a alcançar seu destino.

Chegava a noite, fria e quieta, com somente as estrelas a lhe proteger. Suas provisões já chegavam ao fim, não havendo fonte alguma ali. O dia voltava, com o sol a torturar-lhe a pele e os olhos. As rochas secas e sem vida pareciam rir-se da princesa em meio àquele lugar perdido entre o nada, sofrendo as consequências de sonhos impossíveis e distantes. Aria-na perguntava-se se aquela atitude realmente a levaria a alguma coisa; co-meçava a duvidar de seus sonhos e a se lamentar de um dia ter se preocu-pado com tal asneira... Estranhamente, não via razão para retornar, uma vez que chegara tão longe. Decidiu, então, prosseguir e fazer uma visita ao ermitão. O bom velho devia se sentir muito sozinho morando tão longe de tudo e de todos... Ariana alcançou o cume das montanhas passando por privações e completamente dolorida após a exaustiva jornada; suas reservas de água e comida já não existiam mais, deixando-a à mercê do tempo e das energias que ainda lhe sobravam. A pesarosa viagem deixara suas roupas em estado lastimável e os brilhantes cabelos, um dia limpos e sedosos, agora cobriam-se de poeira e suor. Ariana ansiava por um gole de água, sentindo a garganta seca e suplicante.

Apesar de tudo o que sofria, não se arrependia de ter ido até ali. Aqui-lo era como que um marco em sua vida; uma façanha a mais para satis-fazer sua sede por aventuras. Ariana, com orgulho e satisfação, avistou finalmente seu objetivo tão desejado: a cabana do ermitão.

A forma como fora feita pareceu-lhe um tanto primitiva, mas, por outro lado, trouxe-lhe uma confortadora visão de repouso e alimento. A singela cabana era feita toda de palha e madeira, apresentando, entre-tanto, uma convidativa e aconchegante segurança e hospedagem. A sua-ve brisa que ali soprava cantava-lhe maciamente aos ouvidos, que antes só ouviam os próprios passos.

Ariana se aproximou ofegante e vagarosa, observando tudo com cau-

Page 20: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

20

tela. E lá, sentado à frente da porta, calmamente imóvel, um velho ma-gro, em andrajos, com a pele castigada pelo sol. Tinha os olhos trans-bordantes de saúde e inteligência.

- Eu a esperava, Alteza.- Sabia que eu viria? - surpreendeu-se a jovem.- Há alguns dias, recebi uma mensagem espiritual que me avisou de

sua vinda.- Sou a princesa Ariana...- ...filha do rei Absalão. - completou ele - Sente-se, minha jovem, e

coma algo enquanto descansa.Ariana não hesitou em se acomodar sobre o pobre tapete de palha. Ao

redor do velho, alguns potes guardavam ervas e líquidos enriquecidos por propriedades conhecidas apenas por ele. Ambos beberam água pura e fresca e comeram uma saborosa mistura de ervas, à sombra da agradá-vel habitação. A moça contou ao ermitão os seus sonhos e ele os ouviu com atenção. E disse-lhe, serenamente:

- Meditarei durante a noite, a fim de brotarem à minha mente as res-postas de seus problemas. Durma em meu leito, Alteza; descanse após a longa jornada.

Ariana agradeceu gentilmente e se deitou de bom gosto no humilde catre de folha e palha, caindo instantaneamente no sono acolhedor e profundo. A noite veio abraçá-la protetoramente, ao tempo em que o bom velho contemplava o céu salpicado de diamantes que pareciam lhe dizer algo. A mesma brisa que cantarolava distraidamente, embalando a valente princesa em seu sono reparador, inspirava a mente sábia do tran-quilo ermitão. A solidão pacífica que ali havia tornava aquele isolado, e quase inalcançável lugar, um delicioso convite ao repouso da alma... Mal algum poderia penetrar ali, onde a meditação e busca da paz invadiam a quem quer que chegasse.

Page 21: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

21

6

A manhã seguinte acordou a jovem guerreira com suaves raios de luz que penetraram sorrateiramente pela cabana, juntamente com um vento fresco e musical. Ariana levantou-se disposta e com as energias de vol-ta. O ermitão esperava-a do lado de fora pacientemente, com a simples e natural refeição matinal, feita de água cristalina e a mesma deliciosa mistura de ervas.

- Gostaria de poder lhe oferecer algo melhor, mas é tudo que te-nho para refeição... - disse o velho homem, com vergonha. A moça, porém, retrucou:

- Nunca comi algo tão delicioso em toda a minha vida. Só tenho que lhe agradecer pela cordial hospedagem.

- É um prazer tê-la aqui, Alteza.Depois de comerem, ambos se sentaram numa sólida rocha sob o sol

fraco da manhã, deixando o vento se divertir com os cabelos e trapos das roupas.

- Refleti muito durante a noite, recebendo mensagens espirituais que me explicaram seus sonhos.

A princesa ouvia tudo atentamente e ele continuou:- Em seu primeiro sonho, a escuridão que a cerca são os perigos e a

solidão longe de casa, num lugar estranho e distante. O homem tirando--lhe a coroa significa que ele tirar-lhe-á a sua realeza, levando-a como sua prisioneira.

Ariana atemorizou-se e perguntou, ansiosa:- E o segundo sonho?- Este foi para mim mais difícil de interpretar... Mas cheguei a uma res-

posta. A floresta onde vossa Alteza caminhava à noite é a própria localiza-da além do vale verde. O clarão de onde ele surgiu é o meio pelo qual veio a esse mundo.

- Então... ele não é daqui? - perguntou ela, tomada de espanto.- Não, Alteza. O estranho homem vem de outro mundo, distante. Um

lugar onde cavaleiro nenhum esteve antes...

Page 22: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

22

- E que mundo é este?- Isso é algo que não posso lhe dizer...- Como então posso encontrá-lo?- De acordo com as mensagens, algo acontecerá no deserto de Voidy.- E acha que lá poderei encontrá-lo? - supôs uma ansiosa Ariana, pas-

ma com tudo o que ouvia.- Assim creio eu, Alteza. Mas tome muito cuidado, o perigo virá

com esse estranho.- Obrigada, bom ermitão; ajudou-me muito. - E ia lhe dar duas moe-

das de ouro, as quais ele recusou, dizendo:- Não é preciso, Alteza. Elas de nada me servirão.Ariana concordou educadamente, sem querer ofendê-lo. E depois de

novamente se despedir, preparou-se para retornar ao seu castelo, seu lar que a aguardava ansiosamente. Entretanto, tomou outro caminho na volta, descendo a encosta pelo outro lado. O sol ia ao auge quando já não via mais a cabana do ermitão.

A descida era ainda mais arriscada; as rochas poeirentas eram lisas e escorregadias e Ariana tinha que ter o máximo de cuidado para não cair e rolar abismo abaixo. O vento brincava com a moça, que parecia igno-rar a altura que a cercava; o precipício bem ao seu lado contemplava sua cautelosa descida, concentrada e silenciosa... Durante a noite, Ariana fi-cava a observar as estrelas no céu claro e distante, como que procurando nele as respostas para suas perguntas confusas e aflitas. A responsabili-dade solitária pesava em demasia sobre seus ombros.

Ao final do dia seguinte, a destemida jovem alcançou o desfiladeiro entre as Montanhas da Morte e o Pico da Neblina. A estiagem das mon-tanhas ficara para trás, juntamente com o silêncio inquietante e a inér-cia das rochas solitárias. Ariana podia ouvir o sibilar de aves e criaturas da noite, perto do desfiladeiro. Vinha-lhe aos ouvidos um sussurrar de água, mas ela estava tão cansada que nem teve forças para ir procurá--la, deixando-se cair exausta sobre a relva verde e macia. O sono logo chegou, trazendo consigo sonhos e visões a quem ninguém podia pôr as mãos - num mundo só de quem sonha. Ariana descansou prazerosa-mente naquele mundo só seu, sem se dar conta das estranhas criaturas que ali perto viviam.

Page 23: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

23

7

O agradável calor do sol veio acordar a jovem na manhã seguinte, jun-to com a fresca e harmoniosa orquestra das folhas das árvores próximas, que farfalhavam alegremente dando bom dia à princesa. Um súbito ron-co fê-la levantar-se sobressaltada e de punhal à mão, pronta para um ataque repentino; a moça, porém, constrangeu-se ao perceber seu pró-prio estômago, implorando por algo para comer. Ariana já ia questionar a situação quando, de repente, ouviu uma melodia belíssima, vinda de algum lugar ali perto. Parecia vozes de anjos ou fadas, tão suave e en-cantadora que era. Intrigada, Ariana seguiu-a lenta e cuidadosamente; seria mais alguma armadilha de alguma fada má? Sendo ou não, era por demais bela, e Ariana estava decidida a descobrir a origem de tal arte.

A melodia celestial a levou até o fundo do desfiladeiro, onde um límpi-do lago era alimentado por uma grande cachoeira. A água transparente e cintilante instantaneamente seduziu a garota, sedenta e faminta. Con-tudo, ao ver quem ali vivia, pasmou-se, de pés grudados ao chão e olhos arregalados. Deitadas confortavelmente ou escovando sedutoramente os longos cabelos sedosos e encoracolados, ornadas com as mais belas flores, elas cantavam e riam. Contemplando-se em seus espelhos de ma-drepérola, deixavam o vento levar para bem longe suas doces canções. Eram lindíssimas e suas vozes soavam como o cintilar de ninfas ou fadas em noites de festa; no lugar das pernas, uma colorida cauda de peixe, cujas escamas pareciam ser de cristal, com as cores de um arco-íris. Ali viviam aquelas místicas criaturas, cuja beleza inquestionável iluminava as faces hipnotizadas dos humanos que por ventura ali apareciam. Aria-na se sentiu completamente atraída pelas sereias que, assim que a viram, sorriram ainda mais sedutoramente enquanto a fitavam com olhos de safira. A princesa se aproximou maravilhada, desconhecendo seus peri-gos; uma delas até disse, com voz amistosa e cativante:

- Bem-vinda, princesa. Não quer mergulhar conosco e descansar um pouco? Deve estar exausta e faminta. Coma dos nossos frutos e beba nossa água; aqui temos as mais saborosas iguarias...

Page 24: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

24

- Não posso... - disse Ariana, temerosa diante do irresistível convite.- Oh, venha, princesa; veja como é pura a água do nosso lago. Mergu-

lhe um pouco antes de partir... Vamos nos divertir muito, juntas; esteja conosco e seremos sempre amigas. O perigo aqui não entra e nunca sentirá fome ou sede novamente...

Ariana se espantou e contemplou aquilo deliciada e não resistiu; sua fome a torturava, sua sede secava-a por dentro e não aguentava mais em pé. Pulou no lago, mergulhando bem fundo na água fria e refres-cante. Maravilhosa foi a sensação de frescor e limpidez por todo o cor-po, esvaindo-se como por encanto o calor e exaustão que antes a ator-mentavam. Suas energias foram como que restauradas e multiplicadas, suas dores e tensões se foram; seu cabelo antes sujo e empoeirado agora gozava da maciez das águas e seu corpo se deleitava em contato com a alvura e magia que a cercavam.

Ao voltar à tona, Ariana viu-se ornada com flores e conchas, cercada pelas sereias que riam alegres. De repente, sentiu suas pernas unidas em uma só, numa magnífica cauda cor de ouro, cujas escamas reluziam como diamantes à luz da manhã. Sedosas barbatanas moviam-se sere-namente em contato com a água...

- O que aconteceu? - perguntou Ariana, terrificada.- Você se tornou uma de nós - disse uma das sereias, fingindo inocên-

cia. - Agora podemos nos divertir para sempre juntas.- Mas... eu não posso! Tenho muito o que fazer! Precisam de mim

em meu mundo!- Quem um dia vira sereia, nunca mais volta a ser o que era antes.- Vocês me enganaram! Não posso ser sereia! Não posso! - grossas lá-

grimas brotaram de seus entristecidos olhos azuis. - Agora nunca mais poderei encontrá-lo... Nunca mais...

Page 25: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

25

8

O sol iluminava as lindas sereias do lago com todo o seu esplendor, mas sempre encontrava a jovem Ariana inerte e silenciosa, perdida em seus pensamentos e derramando lágrimas de amargura nas águas pro-fundas... À noite, a lua e as estrelas presenciavam a mesma cena: enquan-to as outras riam, conversavam ou cantavam para a escuridão, Ariana fitava o céu com tristeza, procurando algo que alimentasse suas espe-ranças novamente. Perguntava-se se correria novamente pelos campos, se enfrentaria novas aventuras, se veria sua família outra vez... Seu pesar parecia não ter fim; seu arrependimento corroía-lhe internamente. A esperança de um dia voltar a ter pernas fazia-a acabar-se em suspiros...

Numa tarde em que as beldades brincavam alegremente no lago, al-guém se aproximou tomado de espanto, fitando a nova sereia, que se recolhia a um canto.

Os três Artux chegaram mais perto, vendo aquilo sem querer acredi-tar; mas logo começaram a rir, zombando com vontade da princesa que os olhava com uma ponta de inveja.

- A valente princesa reduzida a uma sereia. - riu Agnes, acompanhada pelos outros.

- Agora poderemos raptar sua irmãzinha. - disse Paulie, com um bri-lho vitorioso no olhar ansioso por travessuras malignas.

Ariana ficou apavorada, os olhos enchendo de lágrimas, vendo-se in-capaz de defender sua família; limitou-se a abaixar a cabeça, que pesava com a consciência. Pauler o percebeu e retrucou:

- É ela que nos interessa, não sua irmã.- Mas não podemos levá-la. - disse Paulie, vacilante.- É verdade. - disse uma das sereias. - Sereias não podem sair do lago,

senão morrem.Ariana sentiu uma ponta de vitória, mas seu temor quanto à sua fa-

mília ainda vigorava. Pauler fitou-a interessado e disse, tentando dar-se ares de temível:

- Temos contas a acertar. E vamos levá-la com vida, de algum modo.

Page 26: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

26

- Mas como? - indagou Agnes.- A única maneira de fazer com que volte a ser o que era antes é a má-

gica da Rainha-fada das Sereias, Aparta. Só ela pode trazê-la de volta à forma humana.

- Como podemos encontrá-la? - perguntou Ariana, tomada de esperança.- Ela nos visita a cada lua cheia, à noite.- Quando será a próxima? - perguntou Ariana, ansiosa e com o cora-

ção aos pulos.- Daqui a uma semana. - disse a sereia. A jovem soberana respirou

pesadamente e gemeu:- Uma semana...- Então... - disse Pauler, fitando-a maliciosa e ameaçadoramente, en-

quanto se afastava com as duas irmãs. - ...até daqui a uma semana.Foram muitas as vezes em que as lindas sereias convidaram Ariana

para se juntar às brincadeiras e conversas. Entretanto, sempre recebiam a mesma recusa; a princesa-sereia só queria saber de fitar o céu em si-lêncio, pensativa e concentrada em seus problemas... Porém, a esperan-ça voltou a iluminar sua face marcada pelas dúvidas e seu coração de guerreira protetora. Voltaria a ter suas pernas rijas e longas, transbor-dantes de energias para gastar; e o melhor de tudo: sua busca continu-aria. Encontraria o estranho homem, custasse o que custasse. A vida e liberdade de Acácia estavam em jogo com a vinda dele... E somente ela poderia dar um jeito naquela situação.

Esses ideais reanimaram-na e ela até concordou em se banhar nas cristalinas águas do lago, junto de suas companheiras. Mergulhava fun-do, embalada pelas alvas barbatanas, sentindo com prazer o frescor e a pureza da água. Assim passava as horas; sem perceber que alguém a observava dali de perto, mansa e quietamente; seu crescente e confuso interesse o imobilizavam, mantendo fixos os olhos negros e brilhantes...

Sua discrição ia muito bem, estando invisível à jovem beldade; até que, por um instante, deixou-se revelar. Estranhamente, seus olhos não des-grudavam da cena, enquanto que sua crescente confusão de sentimentos o fez descobrir-se de seu esconderijo. Ariana como que sentiu a presença invasora, e numa tentativa de o flagrar, descobriu o encabulado rapaz, que deu-se ares de perverso e disse, com o olhar frio e zombeteiro:

- Não terá como escapar desta vez, garota. - e apressou-se em ir em-

Page 27: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

27

bora, deixando para trás a moça surpresa e sem reação em meio à sua frágil desconfiança.

A tão esperada noite chegou, por fim, trazendo consigo toda a beleza dos astros noturnos. Um luar muito forte resplandecia sobre o lago que cintilava majestosamente e a eterna canção da cachoeira de vidro não cessava nem por um instante seu poema musical. As sereias emitiam com incrível prazer suas mais belas melodias, fazendo ecoar os mágicos e encantadores tons por toda Acácia adormecida... A lua lá no alto as-sistia ao espetáculo sentada em seu trono de cristal, com o mar piscante de diamantes ao seu redor. Ariana sentara-se a um canto, quieta e atenta ao menor movimento das árvores ou da escuridão que a cercava, aguar-dando ansiosamente pelo momento de poder sentir de novo as suas per-nas... Chegara o dia, o qual tanto a afligira antes; porém, ela sabia qual era o preço da sua forma real... Sua liberdade seria restringida dentro em pouco; tortura e dor dominar-lhe-iam até que implorasse por pieda-de... Ariana não podia negar ou esconder o temor que sentia, diante de seu futuro e da certeza de que sofreria.

Subitamente, uma rajada de constelação fez esvoaçarem os cabelos anelados e coloridos, ao tempo em que as vozes se calaram e os olhares respeitosos e ansiosos elevavam-se ao céu e ao redor, buscando qualquer sinal de sua rainha adorada... A misteriosa constelação pairou sobre as águas do lago, trazendo do seu interior a mais divina forma já existente em Acácia. Sua beleza e fascinação paralisaram todas as criaturas ali pre-sentes; nenhuma palavra foi proferida, tamanha a expectativa e medo de que aquela deslumbrante visão fosse embora...

Os cabelos cor de ouro e encaracolados, repletos de pó mágico e pétalas de fada, dançaram harmoniosamente quando a rainha-sereia aproximou-se de Ariana e falou, com a mais doce vez, que encantaria a todas as ninfas do mundo:

- Estou a par de sua situação, princesa. E como sendo filha do bom rei Absalão e afilhada de Allure, eu lhe concedo de volta sua forma original.

Assim dizendo, esticou sua mão de seda, de onde fugiram inúmeros vapores enfeitiçados e pó de fada, enriquecidos com sua magia de rai-nha. A nebulosidade encantada envolveu por completo a jovem, que se sentiu como que a flutuar dentro da cauda que se dissolvia revelan-do suas rijas pernas. Conchinhas e escamas desapareceram, dando lu-

Page 28: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

28

gar ao corpo humano robusto e feminino da princesa guerreira. Apar-ta afastou-se satisfeita e, após se despedir cordialmente, foi-se embora, revelando as escamas de ouro e prata e as barbatanas de seda e arco--íris, que logo desapareceram debaixo das águas profundas... As sereias contemplaram-na até o último instante, relaxando apenas quando ela já tinha-se ido; pularam então para o fundo do lago, sumindo logo em seguida. Ariana paralisara-se de espanto e respeito, maravilhada com o que vira. Imediatamente, contudo, exaltou-se de prazer e felicidade ao ver de volta o seu corpo. De repente, avistou ali perto os três Artux, que ainda mantinham os últimos vestígios do assombro que há pouco senti-ram. Passado, porém, o momento de admiração e maravilha, fitaram-na vitoriosos e altivos, dizendo:

- E o nosso acordo?- Ainda está de pé... - respondeu ela, com certa amargura.

Page 29: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

29

9

Ariana logo se viu encarcerada em uma grande cápsula de vidro, com seus pulsos presos a grilhões ligados a cabos de energia, que por sua vez ligavam-se a um gerador. A jovem prisioneira assistia aos preparativos passivamente, sem proferir palavra; e enquanto as duas moças manti-nham tudo pronto para a execução, Pauler aproximou-se e disse, sor-rindo maliciosamente:

- Força para mim; beleza para você.- Você pode tirar minha força, - disse a moça, com o olhar firme e

decidido - mas nunca poderá tirar minha coragem, nem minha honra.Ele diminuiu o sorriso, como que sentindo seus ideais serem limi-

tados por algo que ele jamais tocaria; tinha que admitir que ela estava certa neste ponto. Entretanto, riu gostosamente, dizendo:

- É o que vamos ver... Liguem a máquina!Subitamente, descargas elétricas atingiram-na poderosamente; mas,

ao contrário do que se esperava, não causaram dor ou tortura. Foi pior. Ariana sentiu como se sua força estivesse esvaindo-se como fumaça em meio a um vendaval... Sentiu-se murcha por dentro, sentiu-se fraca e impotente... Deixou-se desfalecer no fundo da cápsula, sem energia nem para se levantar.

Os três riram, vitoriosos e satisfeitos. E enquanto as duas desligavam tudo, Pauler aproximou-se sorrindo orgulhosamente e dizendo:

- Agora, sim. É assim que gosto de vê-la.Ariana desviou o rosto tristemente, escondendo uma fria lágrima que

insistira em cair... Ele a ergueu nos braços e a carregou até o porão, di-zendo com sarcasmo:

- Agora, vou levá-la para os seus aposentos, princesa.E abandonou-a em uma fria e úmida masmorra, com apenas uma

janelinha gradeada, ao alto. Ariana deixou-se ficar no chão barrento e molhado, apenas com sua mágoa e impotência a lhe fazer companhia. Pauler se afastou após olhá-la vitoriosamente. A moça limitou-se a fe-char os olhos privados de qualquer sinal de esperança; não havia ali

Page 30: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

30

algo que lhe desse razão para viver. Sua vida estava acabada; sem forças, como poderia viver? Sem alguém para salvar, sem liberdade para viver, sem alguém que pudesse lhe ajudar... Só e enfraquecida, que valor tinha agora a vida?

Por mais vezes que lhe oferecessem comida, Ariana sempre a recusa-va. Era sempre Agnes ou Paulie quem trazia a insípida massa disforme; era raro vê-las chegarem sem uma provocação ou zombaria.

A jovem prisioneira ignorava toda e qualquer conversa delas, perma-necendo imóvel e calada no fundo da masmorra. Inicialmente, nem se importaram; entretanto, como a recusa da princesa se repetia, acharam melhor relatar o fato ao rapaz. E na próxima vez, ele próprio veio trazer a comida. Quando o viu, Ariana não mostrou maiores reações. Conti-nuou a fitar o infinito, como que perdida em outro mundo.

- Por que não come? Fazer greve de fome não vai adiantar em nada... - disse ele, colocando o prato em frente a ela.

- Uma vez perdido o meu maior dom, a minha vida não tem mais sentido...- Seu maior e principal dom é ser uma princesa. - retrucou ele, abai-

xando-se e sorrindo levemente. Ariana, porém, fitou-o firmemente e disse, com aquele brilho nobre e valente no olhar:

- Isso eu sempre serei; mas minha missão de vida é ser guerreira. E uma guerreira sem forças não é uma guerreira.

- Então, não seja mais uma guerreira.Ariana desviou os olhos com um suspiro descontente, deixando claro

o seu desprezo pela solução do rapaz. Não disse mais nada, dando por encerrado o assunto. Pauler suspirou conformado e saiu, dizendo:

- Vou deixar o prato aí, caso mude de ideia...Ariana fitou a mesma massa de sempre, repugnada. Súbito, um raio

veloz atingiu-lhe a mente, trazendo uma esperança, ao ver o talher so-bre a louça de metal. Uma colher. A ideia de cavar o chão de terra da masmorra pareceu-lhe insana, quando se lembrou que não tinha forças nem para se mover direito... Contudo, aquela era uma luz que poderia lhe tirar da escura tumba em que fora colocada... Imediatamente, pegou a colher de metal, que já sofria as consequências do tempo, pondo-se a cavar um buraco rente à parede. Suas mãos e braços doíam com o traba-lho, mas ela se recusava a parar. Sua salvação dependia daquilo...

Vez ou outra, parava para descansar; mas logo reiniciava a tarefa, com

Page 31: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

31

pressa de acabar. Toda a terra que retirava, colocava em outros cantos mais distantes; suas mãos enlameavam-se completamente e ela sabia que não havia como esconder aquele detalhe. Apressava-se cada vez mais, até doerem insuportavelmente seus braços desnutridos, tomando muito cuidado para prestar atenção à vinda de alguém.

O buraco aumentara muito, quando Ariana ouviu passos se aproxi-mando. Aflita, tentou esconder os braços sujos, em vão. Espalhou en-tão por toda a cela a terra que escavara e se deitou como pode sobre o buraco, fingindo ser mais um estado de melancolia. Agnes penetrou no sombrio ambiente e, pegando o prato sem a colher, perguntou:

- Onde está a colher?Ariana fitou-a temerosa, enquanto que a desconfiança da moça veio

completamente à tona quando perguntou, com um leve sorriso malévolo:- Está tentando fugir, princesa?Instantaneamente, Ariana avançou sobre ela, sem saber de onde viera

tal energia. E, golpeando-a na cabeça, nocauteou-a. Rapidamente, vol-tou ao trabalho, escavando com maior velocidade ainda. Finalmente, sentiu uma fria brisa infiltrar-se por sua pele, o que a reanimou e incen-tivou-a a cavar mais rapidamente. Foi com imensa alegria que avistou os primeiros sinais da noite lá fora. Com o coração recheado de fé, atingiu tamanho suficiente para passar o corpo pelo buraco que fizera.

- O que acha que está fazendo? - disse de repente uma voz surpresa, que sobressaltou a moça. Pauler socorreu Agnes, que aos poucos vol-tava à consciência, e já ia agarrar Ariana, mas a princesa foi mais rá-pida e se jogou monte abaixo, rolando até a base do Vale das Sombras. Ali chegando, recolheu-se a um canto bem escondido e adormeceu, exausta e dolorida...

Page 32: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

32

10

O sol forte e radiante já encontrara a valente princesa a caminhar na manhã que nascera timidamente. Ofegava a valente aventureira, sentin-do seus membros latejarem de dor; mas seu instinto ordenava-lhe que prosseguisse sempre, a fim de chegar ao seu ponto de descanso, onde reporia todas as energias e retomaria suas forças. Sua vida de aventuras apenas começara, suas salvações e façanhas continuariam; e sua busca também... Precisava encontrar e descobrir quem era aquele homem de seus sonhos, aquele que um dia tiraria sua coroa... Tinha que achá-lo antes que ele o fizesse. Com esse objetivo, atravessou o pântano, lutando contra a fraqueza. A lama fétida encobria-a da cabeça aos pés, a fome a atormentava dia e noite e o cansaço torturava seus membros. Foi com incrível alívio que chegou à floresta verde e viva, onde a fauna e a flora a saudavam com orgulho. Ariana correu a devorar os frutos e a beber com voracidade a água do regato. Não cabia em si de satisfação por ter chegado até ali, mas sabia muito bem quem a ajudara o tempo todo. E, caindo de joelhos sobre o chão forrado de folhas que para ela era sagra-do, clamou:

- Obrigada, fada querida, por toda a ajuda que tem me dado.Um clarão surgiu dentre as copas das árvores, junto com uma súbita

chuva de pólens cintilantes, trazendo a meiga voz de Allure:- Eu lhe restaurarei sua força e energia, próprias de sua natureza. Com

meu poder e meus frutos, descansará até que esteja pronta para sua via-gem. Faça aquilo que sua consciência lhe ordena, e fará o que é certo...

Ariana permaneceu poucos dias em sua reabilitação, recompondo-se completamente. Durante todo o dia, ouvia belas canções que a fauna lhe entoava, conversava com Allure e, aos poucos, sentia-se novamente a bra-va e robusta Ariana. Contudo, os dias de folga terminaram com sua von-tade de partir. Ela ansiava por descobrir logo o paradeiro do estranho ho-mem. E depois de juntar alguns suprimentos, bebeu muita água, decidida a recomeçar sua busca. Agradeceu com carinho à fada-madrinha e pros-seguiu sua jornada, decidida a não descansar enquanto não o encontrasse.

Page 33: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

33

Atravessou a floresta com a alma cheia de paz e a mente transbordante em fé. A firmeza de seus atos sustentava-a por todo o trajeto e a chama que queimava em seu interior aquecia seu coração. Com certo pesar e temor, avistou o desolado mar de areia, o deserto de Voidy. Antes de partir para o nada, alimentou-se de frutos e bebeu água. E, repostas suas provisões, seguiu na direção do deserto, certa de que aquilo era real-mente o que tinha que fazer...

Por alguns dias, Ariana teve como companhia apenas o sussurro in-certo do vento quente e a sinuosidade das areias que queimavam sob seus pés. Por todos os lados, só se via a imensidão amarelada do deserto e o céu sempre azul e sereno, sem o mínimo sinal de vida... Vinha a noite, trazendo o frio e o mesmo silêncio angustiante, onde Ariana encontra-va tempo para conversar com as estrelas e pensar em suas esperanças e expectativas... A caminhada continuava mesmo à noite, sempre movida pela força da alma. O vento que apagava com sagacidade suas pegadas, fazendo-as desaparecerem por completo, era tão cruel quanto a tempes-tade de espírito que se encerrava na moça. Ariana sabia que qualquer rastro do homem seria apagado pela ação do vento, o que a fez decidir ficar por ali mesmo e esperar por algum sinal... De sua trouxinha tirou um pedaço de pano velho e rústico e, com uns paus que por ali encon-trou, fez uma pequena tenda. Ali se abrigou fitando ansiosa o horizonte que insistia em esconder-lhe seu futuro...

Page 34: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

34

11

A preocupação e tristeza pareciam tomar conta de todos no Castelo Cisne de Marfim. Ariana não dava sinal de vida há muito tempo, sumi-da pelas imensidões do reino... Parecia ter se esquecido de sua condição de princesa e ter se tornado uma completa errante; partira há algumas semanas para então desaparecer em seu mundo de eternas aventuras... Arabela chorava pelos cantos, escondida, sem demonstrar a menor ale-gria. Toda a sua beleza e delicadeza continuavam intactas, mas sua ple-nitude do amor pela vida esvaíra-se com a aflição pela irmã...

Ariel como que perdera toda a vontade de brincar e correr pelos jardins e corredores, limitando-se a suspirar pelas janelas, fitando tristemente o horizonte incerto, à espera de qualquer sinal de Ariana... A alegria e a vida do castelo eram agora só lenda... Cada um tentava ajudar o máxi-mo possível, inventando alguma distração ou brincadeira que animasse um pouco a todos; em vão... Esse clima estendeu-se por vários dias; dias de pesar e angústia para todos no castelo, que amavam e admiravam a princesa Ariana. Boatos corriam entre os criados como formigas en-tre o açúcar, contando as façanhas da jovem aventureira, que tocava os pontos mais remotos e perigosos do reino... Era quase que como uma heroína lendária, uma figura mística da cultura de Acácia...

Entretanto, alguém acabou por tomar uma atitude certa a fim de pôr um ponto final naquele drama que assolava a todos. Ao voltar para o cas-telo, após a caça a aventuras, D’Albert ficou a par dos acontecimentos ali sucedidos, do desaparecimento de Ariana... E decidiu então ir pessoal-mente procurá-la, prometendo não retornar sem ela. Arabela encheu-se de orgulho pelo namorado, rogando-lhe que encontrasse sua irmã queri-da, mas que tivesse muito cuidado.

- Voltarei com a princesa, Alteza. E eu a entregarei como prova de meu amor. - disse ele, com esperança e valentia no olhar apaixonado.

E depois de se despedir de todos, partiu com uma vigorosa coragem no peito, certo de que encontraria a cunhada tão valente e audaz...

D’Albert cruzou o vale sempre verde e a pontezinha que o ligava aos

Page 35: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

35

lugares malditos, chegando até o Lago das Sereias. Lá, algo o fez esta-car surpreso e vacilante. Um homem nunca visto por aquelas bandas, de roupagem escura e grosseira, ornada com estranhos objetos de me-tal. Era careca, de bigodes finos, compridos e grisalhos e que acompa-nhavam um misterioso e malicioso sorriso encoberto pelas névoas de curiosidade forasteira. Tinha um dos olhos tapado, trazendo a frieza perscrutadora no azul do outro olho.

Ao ver o cavaleiro, ele sorriu levemente após olhá-lo de cima a baixo. D’Albert, por sua vez, desmontou, aproximou-se cortesmente e perguntou:

- Nunca o vi por estas paragens, cavaleiro; está perdido?- Creio que sim... - disse ele, com sua voz grave e provocadora - Quem

é você?- Sou D’Albert, cavaleiro errante.- Cavaleiro errante? Puxa, onde estou?... - ironizou ele, olhando ao

redor com curiosidade.- Em Acácia; posso saber com quem tenho a honra de falar? - surpre-

endeu-se o cavaleiro.- Sou um viajante em busca de novas conquistas; procura por algo?- Sim, estou à procura de uma jovem aventureira, a princesa Ariana.

Viu-a por aí?- Não, não vi. Mas procurarei avisá-lo caso eu a veja.- Obrigado, amigo; boa sorte em suas viagens.E já ia se afastando em seu corcel, quando uma das preciosas criaturas

da lagoa lhe falou:- Vi os irmãos Artux levarem a princesa.- Então ela está em sérios apuros... Mais uma vez, obrigado. - disse,

partindo em seguida, às pressas, enquanto o forasteiro continuava a ou-vir as belas histórias sobre Acácia que as sereias lhe contavam.

Com temor e aflição, o cavaleiro avistou o terrível Castelo da Escuri-dão, cercado de histórias e boatos assustadores. Estremeceu só de pen-sar que Ariana ali estivesse, sofrendo nas mãos de três desumanos... Ob-servou com repulsa e receio os arredores cobertos de pavor e maldade, bradando, porém, decidido a cumprir sua missão:

- Ó, do castelo! Alguém aí?Não demorou muito para que três figuras extravagantes aparecessem,

surpresas pela inesperada visita. Ao verem o cavaleiro, sorriram com des-

Page 36: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

36

dém e malignidade. D’Albert fitou-as espantado e temeroso, mas por fim perguntou:

- Procuro pela princesa Ariana!- E acha que ela está aqui? - ironizaram eles, sorrindo com sarcasmo

no olhar.- Assim me disseram; vim salvá-la, e se me impedirem, sentirão o fio

de minha espada.Os três riram, e Pauler respondeu:- Perderá seu tempo, cavaleiro. Ela não está aqui. Tínhamos a prin-

cesa como prisioneira, mas ela fugiu; não está mais aqui, nem sabemos onde está.

O cavaleiro sentiu uma ponta de alívio por não encontrá-la entre esses seres estranhos e malévolos, mas sua preocupação não diminuiu, conti-nuando sem saber o paradeiro da princesa.

- Como posso encontrá-la? - perguntou aflito. Os três afastaram-se desdenhosamente e Pauler retrucou:

- Isso é problema seu...D’Albert olhou ao redor angustiado, interrogando-se onde poderia es-

tar a desaparecida aventureira. Resolveu então ir até a floresta além do verde vale; talvez a encontrasse lá... Tinha que estar lá.

Com muita dificuldade, D’Albert atravessou o Vale das Sombras e o pântano, procurando ansiosamente por qualquer vestígio da moça. Per-guntou a feiticeiras que lá viviam se não a tinham visto; sem sucesso... Seu crescente temor corroía-o por dentro, sentia-se impotente diante do inescrupuloso desafio que lhe fora imposto; sua alma doía com seu insucesso... Parecia-lhe que fadas e bruxas brincavam com sua missão, um triste pôr do sol ao dia em que vivia...

Chegando à floresta, comeu dos frutos suculentos e bebeu da água fresca do regato cantarolante. E exausto, adormeceu em meio aos ruí-dos noturnos e à serenata da fauna inquieta da floresta. Em seus sonhos atormentados pelo malogro, ouviu uma voz belíssima e amável, que lhe falou com simpatia:

- Não se aflija, bravo cavaleiro; Ariana está viva e no deserto de Voidy, à espera de alguém que já chegou. Vá lá e salve-a, pois sua vida de aventureira apenas começou; o reino precisa dela. Salve-a e traga-a de volta!

Page 37: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

37

A calma orquestra da manhã o despertou, com a firme resolução de ir ao deserto e salvar Ariana. Prometera para Arabela e cumpriria, custas-se o que custasse... Antes, porém, de enfrentar a estiagem e o desalento do deserto, comeu muitos frutos, guardando alguns consigo e levando junto muita água. Refeito e cheio de confiança, partiu para a perdição de Voidy, o longínquo mar seco e vazio...

O oceano ardente saudou-o maliciosamente, onde o sol queimava im-piedoso durante todo o dia; à noite, o frio soprava sem compaixão. D’Albert estremeceu ao imaginar a pobre princesa torrando debaixo daquele sol; chegou a se perguntar atemorizado se ela ainda estaria viva... Preferiu não considerar essa possibilidade, limitando-se a caminhar até encontrar al-gum sinal dela.

Andava apressadamente procurando por algum ponto preto no hori-zonte sem vida; sentia-se derreter por dentro, sua cabeça doía e sua boca já não tinha o menor vestígio de umidade. A areia dourada ofuscava-lhe a visão enquanto bebia um pouco da água que trouxera. À noite, o ca-valeiro aproveitava a ausência do causticante calor para caminhar ainda mais depressa, perguntando às estrelas pela princesa perdida. Apressava o passo ansioso, diminuindo a distância que o separava de onde Ariana poderia estar... Com o coração apertado, pensou em Arabela, em como sofria com sua ausência e com a preocupação de sua família, imersa no clima fúnebre do castelo, que perdera sua vida e alegria com a partida de Ariana.

Com inestimável alívio e animação, avistou um ponto preto, minús-culo no horizonte pardo. Contudo, por mais que andasse, o ponto pa-recia não aumentar, zombando de seus esforços. Durante o repouso do sol, corria com o coração aos pulos, ansioso por chegar logo. Parava muito raramente para descansar, guardando provisões para a princesa que, ao certo, já devia estar sofrendo privações... Com este pensamento aterrador, correu ainda mais, podendo ver uma frágil tenda de farrapos armada em meio à desolação. Enterneceu-se por completo, sentindo a alma doer, com medo do que poderia ver. Imediatamente, porém, apro-ximou-se com a alegria de tê-la encontrado e o alívio de poder levá-la de volta para casa... Ao vê-la, entretanto, estacou atemorizado, correndo a socorrê-la. Ariana encontrava-se magra e pálida, jazendo inconsciente sobre a areia...

Page 38: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

38

- Oh, Alteza!... - exclamou ele, estarrecido ao vê-la em tal estado. Ra-pidamente deu-lhe o que comer e o que beber, segurando-a ternamente. Ariana aos poucos voltou a si, com os olhos vazios e desanimados.

- Ele não veio... - murmurou ela, com um fio de voz.- Quem, Alteza? - perguntou ele, sem conter a satisfação de enfim

achá-la.- O homem...- Venha, Alteza; vamos voltar para o castelo. Todos estão preocupa-

díssimos com sua ausência.E depois de comer e beber da água que o cavaleiro trouxera, prepara-

ram-se para a viagem de volta para casa e para fora daquele lugar...

Page 39: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

39

12

De volta à abundância da floresta, recompuseram-se com as nutriti-vas frutas, que os saudavam generosamente; as doces canções da vida tocaram-lhes a alma novamente e os fizeram mergulhar na frescura e limpidez do regato. Sentiram com prazer e merecimento as sombras das frondosas árvores que os abraçaram acolhedoramente enquanto dor-miam, tranquilos aos embalos da brisa uivante.

Quando por fim D’Albert resolveu falar-lhe do homem que encontra-ra às margens do Lago das Sereias, a princesa sobressaltou-se interessa-da, pedindo com expectativa:

- Descreva-o, por favor!Assim fez o cavaleiro, e a cada detalhe relembrado, Ariana estremecia

de exaltação. Seus sonhos pareciam tornar-se reais e assustadores, mas ao mesmo tempo traziam a excitação de uma nova aventura...

- Qual é o nome dele? - perguntou ela, com o coração no pescoço.- Ele não me disse, Alteza.- Preciso encontrá-lo! Mas onde ele está agora?- Não faço ideia, Alteza. Talvez fosse melhor esquecer isso tudo e vol-

tar para casa...- Não, D’Albert. Eu tenho que encontrá-lo! É muito importante para mim!- Muito bem, Alteza; como quiser...Certa noite, quando a fauna noturna embalava-os em seu sono repou-

sante, Ariana ouviu uma conhecida e amistosa voz, que lhe dizia, vinda do interior de uma ofuscante luz, em meio à quietude da floresta:

- Audaciosa princesa, cuidado com o estranho homem que chegou ao nosso mundo! Ele não é confiável, não se entregue a ele! O perigo está próximo e ele lhe trará muitas desgraças... Cuidado, Ariana! Proteja-nos!

Ariana não revelou seu sonho a D’Albert, nem a mais ninguém. Sabia que Allure lhe avisara do perigo que ainda viria, mas guardou sua pre-ocupação para si. Não queria alarmar sua família, já tão aflita por sua causa... Mas algo em seu interior lutava por poder sair, por revelar-se a todos, contando o perigo a caminho. Ariana, entretanto, insistia em

Page 40: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

40

escondê-lo, temerosa e incerta. Aquele estranho homem, sua chegada, tudo aquilo a intrigava e fazia-a questionar-se acerca do futuro desco-nhecido, uma nova terra onde ainda não pisara. O que ele queria, por que viera, não o sabia; mas estava certa de que tinha que descobrir, para o bem de todos e a segurança de sua família, a quem mais amava neste mundo... Jamais teria descanso enquanto não desvendasse as surpresas que o futuro lhe trazia.

Mais uma vez, recebeu broncas do pai, que já se acostumara com as preocupações que a filha lhe causava... Apesar de sua zanga, não conse-guia esconder o orgulho que sentia pela robustez da moça, suportando com bravura as fadigas do deserto. A fidelidade e o carinho que de-notava para com a família, preocupando-se frequentemente com a sua segurança e bem-estar. Aqueles sentimentos de bravura e nobre afeição tocariam o coração de qualquer pai, ainda que por um só instante. Mes-mo não sendo próprio para uma princesa tal comportamento, o bom rei via-a quase como que seu braço direito, onde poderia encontrar forças para ir adiante, onde veria alguém que estaria sempre ao seu lado, lu-tando por sua causa e praticando constantemente o bem em favor dos que necessitavam de auxílio ou salvação. Alma nobre e valente Ariana possuía, dom que jamais se repetiria igualmente em pessoa alguma.

O que importava é que todos estavam juntos novamente, num clima de festa e alegria. Enquanto a rainha a abraçava com felicidade, Ariel dançava e cantarolava freneticamente pelos corredores e Arabela não parava de sorrir e suspirar, imersa em completa pacificação e orgulho da irmã. A nobreza, criados e soldados e toda a guarda se preparavam para festejar a volta da princesa destemida, organizando um grande banquete para aquela noite. Bandeirolas e tiras de seda pendiam por todo o caste-lo, na festa que nascia entre todos.

Entretanto, ninguém ali imaginava que um dia aquela felicidade se-ria ameaçada por algo que nunca antes fora visto, sentido ou ouvido. Algo que destruiria a união e a dignidade daquela família tão amada e harmônica. Naquela calma noite em que até Arabela se juntara às brin-cadeiras das irmãs, alguém observava o místico e extraordinário lugar num misto de desprezo e pena, do alto de um monte. Contemplava tudo com curiosidade e uma disfarçada ambição, vendo toda aquela bela e rica paisagem, tantos mistérios e riquezas que mereciam ser exploradas.

Page 41: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

41

Um lugar tão pacífico, tão primitivo... Um povo tão natural, simples, incapaz de imaginar o que seria do futuro, a grande porta no final do sombrio corredor cheio de aventuras e descobertas.

Page 42: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

42

13

Dias alegres e despreocupados passou Ariana no Castelo, brincando com Ariel pelos jardins floridos e passeando com Arabela pelos corre-dores e salões. Cantavam à noite em suas aulas de música e dançavam as mais belas valsas que as faziam deslizar graciosamente pelos bailes de faz-de-conta... O Rei talvez não percebesse, mas a Rainha via muito bem a constante preocupação das filhas em manter Ariana ocupada, como que com medo de que ela desejasse partir novamente. Entretinham-na com brincadeiras, danças ou até mesmo conversas jogadas fora numa calma tarde, à sombra das trepadeiras do jardim; não a deixavam um momento a sós sequer.

Contudo, nem todo o cuidado foi suficiente para segurá-la em casa. Ariana sabia muito bem quais eram suas obrigações; e uma delas era considerar o perigoso futuro que poderia vir à frente, por razões que talvez nunca viesse a entender... Estava certa, porém, que mais do que nunca, era seu dever proteger sua família do mal misterioso... E numa manhã, bem cedo, antes que as irmãs a acordassem para “importuná--la”, vestiu-se com suas roupas de viagem e, armando-se com seu pu-nhal, saiu às escondidas, em busca de mais respostas para suas ansio-sas perguntas. Caminhou até o Lago das Sereias, decidida a tirar tudo aquilo a limpo.

Lá chegando, as belas e traiçoeiras criaturas logo a saudaram gentil-mente. Mas Ariana desprezou seus convites para ir logo perguntando:

- Há alguns dias, esteve aqui um homem estranho, de roupas escuras e olho tapado?

- Sim, Ariana. Ele esteve aqui. É muito simpático e nos contou incríveis histórias.

- Onde ele está agora?- Ontem à noite, ele subiu o monte, não é verdade? - disse uma delas à

companheira, que assentiu, para então completar:- Sim, mas desceu no dia seguinte e foi em direção a... onde mesmo?- Ao Vale das Sombras. - completou ainda a outra, deixando claro que

Page 43: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

43

não tinham a menor pressa de passar as informações, ao contrário de Ariana, que estava ficando já impaciente. - É, ele foi naquela direção...

- Ótimo. - concluiu Ariana, já indo embora, quando uma delas cha-mou-a para dizer, com indisfarçável cinismo:

- Vai embora assim, sem nos dar algo?Ariana respirou impaciente e, dando-lhes algumas moedas de ouro,

apressou-se em seguir caminho. Sentia o coração pulsar excitado e, ao mesmo tempo, ansioso para chegar logo. Em sua caminhada acelera-da, tentava alargar os passos mais do que poderia conseguir, resultando numa corrida bizarra e sem ritmo. As criaturas no meio do caminho, em vão tentavam pará-la ou atemorizá-la; Ariana as ignorava, atropelando umas e tropeçando noutras, só pensando em chegar a vê-lo, esquecen-do-se de ter medo ou gozo, como sempre o fazia, a fim de dar mais graça às suas aventuras. Mas aquilo não era uma aventura, e sim, um desafio, uma luta pelo Reino de Acácia.

Não o via em parte alguma, ali ou nos arredores. Temeu tê-lo per-dido... Entretanto, uma estremecedora conclusão veio-lhe à mente ao alcançar por fim o Castelo da Escuridão.

Diante da tenebrosa edificação, Ariana hesitava entre ir adiante na-quilo ou sair correndo dali... Não. Sua valentia não seria derrotada por um medo fútil, uma vez que tinha que prosseguir. Cedo ou tarde, volta-ria para resolver de vez o assunto. Tinha que ficar e acabar de uma vez o que viera fazer.

Não demorou muito para os três Artux aparecerem na varanda, com toda sua pose. Ao verem-na, sorriram desdenhosamente. Pauler ironizou:

- Temos visita...Logo, porém, desapareceu de vista, seguido pelas duas moças. Ariana

estremeceu com a onda de lembranças que aquele lugar lhe trazia; de-sejou ardentemente sair correndo, fugir para bem longe e nunca mais voltar... Entretanto, seus pés não lhe obedeciam, recusando-se a des-grudarem do chão. A ideia de que aquele homem estivesse ali a afligia, trazendo à sua mente vacilante um medo inevitável do porvir...

Os três, de repente, apareceram à entrada do castelo, aproximando-se. Pauler dizia, com um malicioso sorriso sem escrúpulos:

- Ainda está aqui? Por que não fugiu enquanto podia?- Vocês têm algo que eu quero. - disse a princesa, firmemente.

Page 44: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

44

- O quê?- Uma informação.- Uma informação? Sobre o quê? - perguntou ele, visivelmente interessado.- Um homem. - e descreveu-o detalhadamente. O trio entreolhou-

-se, oportunista. Agnes, disse, com o eterno sorriso enigmático re-cheado de desdém:

- Sim, nós o vimos. E daí?- Onde ele está? - perguntou Ariana, impaciente.- Por que quer saber?- É importante. Por favor, me digam! Dou o que quiserem!- Mesmo? - ironizou ele, sorrindo prazerosamente. - Não sabe o que

está oferecendo...- Ouro? Jóias? Até a coroa que estou usando!Pauler balançou negativamente a cabeça, dizendo com um brilho in-

teressado no olhar:- Quero sua força.- Você tem a sua própria força!- É um acordo, não é? Quer mesmo sua informação?Ariana considerou por algum tempo, suspirando apreensiva. Por fim,

decidiu, com certo temor e pesar:- Eu fico por alguns dias...- Um mês! - propôs ele, com o vivo brilho no olhar.- Uma semana. - disse ela, inflexível.Os três trocaram olhares, pensativos. Pauler por fim concordou, sor-

rindo satisfeito e vitorioso. Ariana avançou ansiosa e exigiu:- Minha informação!Os três riram audaciosamente e Agnes disse:- Siga-nos.Penetraram sem pressa pelos corredores sombrios, habitados por ra-

tos, baratas e aranhas, que os fitavam com audácia e curiosidade. Pare-ciam esperar por alguma migalha de seus vizinhos devotados. Chegan-do à sala do trono, mais fria do que nunca, o trio arteiro tomou seus lugares nos tronos e Ariana se aproximou na expectativa, sentindo o coração acelerar. O breve espaço de tempo que se passou deu-lhe um desconfortável frio na barriga, quando viu a sinistra figura aproximan-do-se com surpresa e interrogação. Era, em carne e osso, o homem que

Page 45: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

45

lhe aparecera em sonhos, trazendo a sinistra mensagem. Ariana sentiu--se paralisada de assombro e petrificação, com o sangue gelado e a face empalidecida. O homem chegou mais perto dela e perguntou, depois de olhá-la de alto a baixo:

- Por que me procura?Ariana quis dizer algo, mas o som não saía. A voz, estupefata, recusa-

va-se a sair.- Você me conhece? - surpreendeu-se ainda mais.- Sim... - conseguiu dizer, por fim - Quero dizer, mais ou menos...- Como? Nunca estive aqui antes. De onde me conhece?- Vi você... Em meus sonhos. Quem é você?- Meu nome é Komhak. E, pela coroa que está usando, presumo que

seja uma princesa!- Sou a princesa Ariana, filha do Rei Absalão.- Interessante. Estes três seres falaram-me de você, sua força e robus-

tez... Isso não é próprio de uma dama!- Não sou uma dama, nem o quero ser. De onde você é?- De muito longe daqui. Pouco importa.Pauler divertia-se com a cena, sorrindo levemente por trás dos olhos

misteriosos. Até que resolveu lembrar à garota, sem esconder a satisfação que sentia:

- E o nosso acordo?

Page 46: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

46

14

Com imenso prazer, os Artux a prenderam novamente na cápsula de vidro, contando seu acordo ao visitante, que riu surpreso, dizendo:

- Não sabia que eu era tão importante!Aprisionada na cápsula sugadora de sua mais importante essência,

Ariana fitava-o com crescente preocupação, lembrando-se com pesar do aviso da boa fada: “... o homem que você procura não é confiável; não se entregue a ele...” Talvez ela tivesse razão; Allure jamais se enganava, e agora estaria mais certa do que nunca... Uma fraca desconfiança come-çava a se infiltrar em sua alma confusa.

Seus pensamentos foram interrompidos pela fria risada malévola das moças, ligando a desumana máquina, enquanto Pauler a fitava com or-gulho e contentamento, apesar do estranho brilho que trazia no olhar cintilante. Gozando de sua presa, ouviam o generoso ruído das cargas infiltrarem-se na cápsula, sugando sem piedade toda força e energia da valente prisioneira que, desfalecida, sentia esvair-se seu sopro de vida. Komhak observava tudo perplexo e com um leve sorriso de gozo... Aria-na nem ousava fitá-lo mais, os olhos marejados com a leviana perda de seu maior valor... Com muita tristeza e desalento, viu Pauler guardar cuidadosamente, numa pequena esfera de cristal, seu bem mais precio-so, seu maior tesouro: sua força e vigor... O rapaz se aproximou sorrindo com o doce sabor da vitória, dizendo com sarcasmo:

- E agora, princesa? Espera se safar dessa?- O que faremos com ela agora? - perguntou Paulie, radiante com o

seu maior prazer, o de fazer mal aos outros por diversão. Seus irmãos bem o sabiam, usando-o com gosto.

- Vamos aprisioná-la no poste. - disse Agnes.- E lançar insetos sobre ela! - empolgou-se Paulie, sem se conter de

entusiasmo. - Fazê-la sofrer!Ariana talvez não o percebesse, mas Pauler conhecia muito bem o ci-

úme pernicioso que Agnes tinha contra a jovem princesa. A moça bem sabia da afeição de Pauler pela princesa, embora ele o escondesse per-

Page 47: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

47

feitamente; mas era um afeto cego e orgulhoso; entretanto, não deixava de existir. E isso fazia Agnes odiá-la ainda mais... Ariana foi desuma-namente presa num alto poste de madeira ali especialmente colocado. Apesar das cruéis diversões dos autênticos carrascos, Ariana recusava--se a emitir o menor clamor, limitando-se a fracos gemidos. Komhak contemplava a cena com incrível prazer, surpresa e interesse...

Com as mãos atadas ao alto, Ariana mal podia se mover. Os pés esta-vam igualmente presos junto ao poste inflexível... Imóvel, a jovem pas-sava por desconfortos e, às vezes, por privações, suportadas graças à própria resistência física, há muito treinada. Ariana era uma das poucas pessoas em Acácia que desafiavam os limites do corpo humano; deixan-do-se ficar horas a fio sem comer, sujeitara-se ao desalento do deserto e agora, orgulhava-se de poder resistir bem à fome, sede e frio impostos pelos Artux. Tal resistência era como uma vitória sobre o sofrimento, representando o pouco de sua força que ainda conservava... Não a leva-ram para a cápsula mais uma vez, preferindo deixá-la à mercê das priva-ções propositais. Graças a tal dádiva indireta, Ariana pôde novamente armazenar as energias que seu corpo ia produzindo.

Entretanto, não se contentaram em apenas negá-la às necessidades da vida. Agnes queria, mais que tudo, vê-la realmente sofrer, até clamar por piedade, o que a princesa recusava-se a fazer. Em sua malévola diversão, Paulie colocava sobre sua pele nua insetos recolhidos pelos cantos mais imundos do fúnebre castelo, deixando-os rastejarem, depositando nela suas impurezas. Ariana esforçava-se por esconder sua repugnância. O máximo incontido que se permitia e que não conseguia esconder era demonstrar a dor latejante de uma fria picada de uma infame aranha, que por artes de Paulie lhe fora colocada. Lágrimas quentes e amargura-das eram secretamente despejadas dos olhos tristes da garota, que con-tava como um mérito cada dia que passava... A raiva e revolta que se remexiam dentro de si saltitavam como fagulhas quentes de seus olhos ao ver o prazer das moças ao vê-la sofrer, exaltando em suas crueldades. O que mais a revoltava, porém, era ver a graça sentida por Komhak em todo aquele vil tratamento; uma fria onda de ódio encharcava-a ao ver o leve sorriso desfigurado sob os bigodes finos e acinzentados. Seu úni-co e frágil consolo era ver Pauler cada vez menos participante de suas torturas, limitando-se a fitá-la passivamente de longe, com um brilho

Page 48: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

48

estranho no olhar entristecido... Ariana não compreendia tal olhar, não entendia tal mudança operada no rapaz. Não via mais aquele sarcasmo frio e maldoso em seu olhar, nem o cruel prazer de seu sorriso ao vê-la sofrer. Algo acontecera, mas não conseguia saber o quê...

Certa noite, em que o mórbido silêncio tomava conta do laboratório cercado pelas trevas, Ariana viu uma sombra quieta e sorrateira aproxi-mar-se. Ao colocar-se sob a luz tênue do exterior, viu a gélida presença de Komhak, que a fitava sombriamente. Ele se aproximou mais e per-guntou, maliciosamente:

- Quer sair daqui?- Tenho um acordo a cumprir com eles. - respondeu ela, surpresa por tal

convite. Ele, por sua vez, também se surpreendeu, novamente perguntando:- Quer cumpri-lo?- Sempre cumpro o que prometo. - disse ela, secamente, terminan-

do o assunto.Os dias se passavam, lentos e dolorosos para a prisioneira, nas mãos

dos tiranos que se divertiam com sua dor e tormento... Seus membros pulsavam de dor, ansiosos por trocar de posição... Por diversas vezes, Ariana acordava sobressaltada por pesadelos ou visões aterradoras, do-lorida até a alma. Não dizia uma palavra, limitando-se à impassibilidade e a um vazio de olhar. Evitava toda e qualquer reação que os esperanças-se, ou qualquer som que chamasse suas atenções...

Quando, por fim, o prazo do acordo venceu, um enorme peso desceu de si, trazendo esperança de finalmente tornar a ver a luz do sol. Contudo, seus carcereiros ignoraram a chegada do precioso dia, esquecendo-a no torpe poste... Ariana lutou para não proferir pragas ou protestos com toda a sua raiva e revolta, o que causaria nada mais que um agradável prazer aos infames.

Até que novamente Komhak veio lhe trazer a tentadora proposta, per-guntando, com seu leve sorriso de ironia:

- Quer ir embora daqui?- Claro, nosso acordo já terminou.- Posso soltá-la?- Por que você faria isso? - desconfiou-se ela.- Você me será útil...- Por quê?

Page 49: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

49

- Mais tarde saberá... - e desamarrou os pés e mãos da moça. Ariana tombou pesadamente ao chão, incapaz de poder mover seus membros doloridos, mantidos à força na mesma posição por tanto tempo. Komhak ainda esperou um momento para que ela se erguesse, mas como a moça ainda arfava fraca e quase não conseguia se mover, ele a tomou nos bra-ços, carregando-a para fora dali. Saíram sorrateiramente do funesto cas-telo, deixando para trás as frias ruínas e a imundície de sua escuridão... Ariana mantinha a cabeça recostada ao peito do estranho homem, ali-viada e grata por ele tê-la soltado.

Page 50: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

50

15

Ariana nem abriu ainda os olhos e já sentia o agradável aroma de flores e de grama verde, sentindo a brisa fresca e o som de folhas farfalhando. Quando finalmente abriu os olhos lentamente, percebeu com gosto e alívio que se encontrava deitada na relva da floresta além do vale verde, iluminada pelos raios dourados de um sol se pondo no final da tarde. Ela se ergueu lentamente, procurando ao redor por Komhak. Lembrava que ele a tinha carregado para fora do Castelo da Escuridão, para longe dos Artux e da agonia da sua captura. Mas ele não estava ali. Só o som das árvores e pássaros ao longe, e do riacho que fluía gentilmente ali perto. Só pensando em tomar um bom banho, dirigiu-se à margem do riacho, para a parte mais funda, despindo-se enquanto ainda olhava ao redor para ver se Komhak não aparecia. Não vendo qualquer sinal dele, não esperou mais e se jogou na água fria e límpida.

Com enorme prazer esfregou bem a pele suja de dias de desconforto e desleixo forçado, lavando bem também os longos cabelos embaraçados.

Quando por fim saiu da água, prendendo os cabelos finalmente lim-pos em uma longa trança, sobressaltou-se ao ver Komhak sentado perto de uma fogueira que acabara de acender. As sombras da noite já se espa-lhavam pela floresta que começava a se aquietar, e ele lhe ergueu o olhar abrindo um leve sorriso de aprovação, perscrutando-a de cima abaixo com gosto.

- Assim é melhor.Ariana se aproximou constrangida, baixando o olhar timidamen-

te e não querendo nem saber há quanto tempo ele estava ali. Sen-tou-se do outro lado da fogueira cujas labaredas já se multiplica-vam livremente, dizendo:

- Obrigada por ter me tirado de lá.Ele ainda a olhava insistentemente, com o misterioso sorriso:- Incrível ter resistido tanto tempo àquilo.- Eu estou meio acostumada, já com os... desafios do meu reino.

Page 51: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

51

- Sim, é um belo reino... - disse ele, com um brilho de cobiça no olhar sempre perscrutador.

- Por que veio para cá?- Vim por acaso, garota; foi um acidente... E agora que estamos aqui,

vamos tirar proveito disso.- Não deveria destruir nosso mundo, uma vez que pode usá-lo sem es-

tragar sua forma natural. - disse a princesa, apreensiva. - De onde vem?- Quer mesmo saber? - perguntou ele. Ao ver o aceno afirmativo e

ansioso da moça, continuou - Sou de um planeta muito longe daqui, de um povo muito mais evoluído e complexo.

- Mas... você é humano? - assombrou-se ela, intrigada.Ele sorriu divertido por sua curiosidade e respondeu, ressaltando sua

posição de forasteiro:- Não, Alteza. Sou um corleciano.- Corleciano? Mas você não é tão diferente de nós; apenas vem de

outro lugar.- Nossa estrutura é diferente; nossa evolução é outra e os costumes

também. Somos um outro povo, de outra galáxia e de outro mundo.E contou-lhe muitas histórias de seu mundo, suas conquistas e confli-

tos, coisas que Ariana nunca imaginara... Ela o ouvia interessadíssima e muda de espanto, sem entender, contudo, alguns termos.

À noite, ao redor do calor da fogueira, Ariana lhe contava suas aven-turas e sua vida, deixando o estranho visitante perplexo e iluminado por súbitas ideias. Dormiam ao relento e, vez por outra, Komhak fitava com curiosidade e interesse a jovem adormecida ao seu lado, indagando-se como poderia usar de sua força e valentia... E olhava ao redor, surpreso, um mundinho tão primitivo e repleto de misticismos, lendas, aventu-ras... Tudo aquilo realmente intrigava-o, ansiando-o para comunicar o fato aos seus superiores. A descoberta certamente o elevaria de cargo, teria o que quisesse e, quem sabe, poderia ficar com a garota. Ariana fascinava-o, não sabendo o porquê, entretanto... O desejo de tê-la como um ideal a ser alcançado, após sua missão conquistadora, encorajou-o a prosseguir no seu macabro intento.

Quando, por fim, chegaram ao deserto de Voidy, Ariana pergun-tou, sem entender:

- Por que viemos aqui?

Page 52: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

52

- Já vai saber... - disse ele, tirando do interior de sua grosseira roupa um instrumento, onde apertou um botão para então dizer palavras des-conhecidas. Deveria ser um equipamento de comunicação. Não demo-rou muito para surgir, do nada, uma explosão luminosa e ofuscante que sobressaltou a garota, que recuou temerosa, perguntando:

- O que é isso?- É uma passagem para a minha nave, que me trouxe até aqui. Venha

comigo, garota, e conhecerá muitos outros lugares e povos.- O quê? - surpreendeu-se ela - Não posso ir agora, não posso deixar

meu lar e minha família, eles precisam de mim!- Se quiser vir comigo, tem que ser agora.- Não posso! Não quero ir!- Tudo bem, garota. Mas um dia eu voltarei e vou levar você comigo.

- disse ele, firme e decidido, antes de penetrar na forte luz, desaparecen-do ante os olhos temerosos e pasmos da princesa, sozinha em meio ao deserto pardo, quente e seco...

Page 53: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

53

16

Ariana contemplava o horizonte límpido e desabitado, tentando en-contrar uma razão para voltar para casa; Komhak voltaria, disto tinha certeza. Mas não seria por bons motivos; sua desconfiança em relação ao corleciano só lhe trazia temores e preocupações. Sua evolução, como bem sabia, significava superioridade em armas e exércitos, o que traria a destruição de Acácia, senão seu domínio por eles. Seu temor a invadia torrencialmente, não sabendo o que fazer. Toda a segurança de seu rei-no estava ameaçada pela vinda daquele homem. Aflita, tentava buscar uma solução para aquele desafio inevitável, colocando em jogo o que mais amava em sua vida. Ele viria; contudo, disse que a levaria consigo. Se com isso, logo partisse, nunca mais voltando, teria o maior prazer em ir com ele. Tudo o que almejava era a vida e a liberdade de Acácia, pelos quais estava disposta a lutar até que não lhe restassem mais forças. Morreria, daria seu próprio sangue, mas jamais entregaria seu reino a um povo estranho e ambicioso, cujo coração forasteiro só se contentava com a fútil posse de riquezas alheias.

Com a alma assim atormentada, mas com esse ideal flamejando no coração, voltou ao Castelo de seu pai, iluminado pelas francas auras da justiça e nobreza. Não foi novidade ouvir as bravas repreensões do Rei, mergulhado em angústia durante a ausência da filha irrequieta. Entre-tanto, a Rainha e as irmãs mais uma vez saudaram-na com festas e ale-grias, cercando-a de mimos e broncas por ter partido sem se despedir e, ainda por cima, às escondidas.

Ariana ouvia tudo de forma passiva, esforçando-se por parecer alegre e despreocupada. Contudo, nem a animada festa que se armou naquela noite tirou-a de seu estado aflito e temeroso, onde o futuro a atormenta-va mais do que qualquer coisa. Não contou ao pai nem a ninguém sobre Komhak, não querendo alarmá-lo ou provocar pânico em sua família. Mas ao mesmo tempo, achava que o devia fazer, colocando-o já a par e preparado para o que viesse. Dúvidas sobre tudo assaltavam seu espírito tempestuoso, interrogando-se o que afinal fazer.

Page 54: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

54

Naquela noite, as estrelas pareciam festejar sua volta, saltitando entu-siasmadas, iluminando a jovem soberana no terraço, sozinha e imersa em macabros pensamentos. Ariana admirava com paixão o belo cená-rio à sua volta, onde nascera, crescera e aprendera tudo o que hoje era. Um novo mundo tão bonito e fascinante, objeto de cobiça e exploração de um povo estranho... Sentia-se só e única, contra uma legião de es-trangeiros; sua vitória era tão incerta quanto a de uma formiga contra um elefante... Só que a esperteza e força em relação ao seu tamanho são muito maiores que na formiga... Tinha apenas que saber usá-las.

Enquanto questionava suas aflições, todo o castelo se divertia despre-ocupadamente, mal sabendo o que poderia vir à frente. Todas as pessoas a quem mais amava corriam sério risco de nunca mais tornar a vê-la, nem ela a eles... Sem que pudesse impedir, lágrimas quentes voltavam a umedecer sua face empalidecida pelo medo de perder seus entes, de nunca mais voltar para Acácia... Um amargo sentimento de arrependi-mento por ter ansiado tanto por encontrá-lo penetrava sorrateiramente em si, reconhecendo com tristeza as verdades duras ditas por Allure...

Na manhã seguinte, a surpresa foi ainda maior, quando D’Albert de novo partia para novas façanhas. Arabela temia pela vida do gentil na-morado, mas seu orgulho pela sua valentia e sede de fazer o bem falavam mais alto. Ariana estremeceu, preocupada e ainda mais temerosa; justo agora que o maior perigo se aproximava, o cavaleiro partia com destino incerto, para voltar não sabia quando. Devia ter contado a ele. Devia ter pedido para ficar e dar socorro quando o pior chegasse. Agora era tarde, estava completamente só e com toda a culpa sobre si... Teria que fazer o que pudesse, a responsabilidade estava em suas mãos.

O dia amanhecera sorrindo com o generoso calor e brilho do sol, que espalhava pelo reino tranquilo seu mais puro fulgor. Mais uma vez, a intrépida princesa partiu para o que parecia ser a interminável busca pela paz, a gruta de tesouros que ainda não fora aberta... Nem os choros das irmãs ou as súplicas da rainha fizeram-na mudar de ideia. Depois de vestida com suas melhores roupas de viagem e armada com novo pu-nhal, abandonou os abraços e carinhos da família para ir se juntar aos perigos e desafios de Acácia.

Atravessou com prazer a campina em frente ao Castelo, aspirando com gosto o ar fresco da manhã, salpicado de doces odores provindos

Page 55: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

55

da natureza. A verdejante floresta parecia dançar com a revoada da brisa suave que trazia consigo os esporos cintilantes da vida que se prolifera-va a cada dia. Réstias de luz escapavam por dentre as copas turbulentas das árvores, exalando um odor perfumado pelos primores das fadas... E delas fugiu a mesma meiga voz, encantada com a magia de suas origens:

- Sei pelo que procura, jovem Ariana. O pior ainda está por vir e só você pode apaziguá-lo. Sua valentia e força ajudar-lhe-ão a enfrentar a ameaça contra nosso reino.

- E Kohmak? Ele disse que voltaria...- E ele voltará, Ariana. Partiu para junto de seus semelhantes, mas re-

tornará trazendo muitos danos e tristezas para Acácia.- Preciso saber quando. Tenho que ver a sua chegada, para avisar a to-

dos. - alarmada, mas decidida a tomar uma atitude. - Poderia vigiar do Pico da Neblina, veria quando ele chegasse.

- O Pico é um lugar vazio e isolado, ninguém vive lá. É o ponto mais alto de Acácia. Será um ótimo ponto de vigília; mas ninguém subiu lá nos últimos anos.

- Preciso ir até lá. - suplicou a princesa, com o olhar aflito.- Há um meio. Só uma criatura poderá ajudá-la: o grande pássaro que

ronda o lugar. E apenas isto poderá chamá-lo a fim de levá-la até lá em cima. - e entregou-lhe um medalhão de ouro puro, com a figura de uma bela ave, cujas asas abriam-se majestosamente. Ao seu redor, estavam escritas palavras desconhecidas pela garota.

- Use-o para levá-la ao Pico. Encoste-a no sopé da montanha a fim de chamar a grande ave que a levará até o alto. Só a ave conhece esses sinais e só ela poderá ajudá-la.

- Eu entendi. Obrigada, fada Allure.- Vá, Ariana. Mas tome cuidado; o perigo aproxima-se cada vez mais...

Guarde nosso reino, princesa, mas esteja pronta para o que vier.

Page 56: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

56

17

Ao pé do altíssimo pico, Ariana elevou os olhos espantados para o céu, buscando ver o cume, encoberto pelas densas nuvens escuras... A encosta do pico era muito lisa e sem a menor possibilidade de uma escalada a mãos livres. O enigma que cercava aquele lugar justificava a ausência de qualquer ser vivente lá em cima, onde a paz e a solidão eram constantes...

Como a boa fada lhe indicara, tomou nas mãos o dourado medalhão que resplandecia imponente, ressaltando ainda mais a notável ave ali forjada. Ergueu-o à altura dos olhos, hipnotizados por tal tesouro mági-co, encostando-o à parede de rocha com cuidado respeitoso. Instantane-amente, um brilho muito forte ofuscou sua visão, obrigando-a a desviar os olhos de tal fulgor. Ao voltá-los pasmos para o medalhão, assombrou--se com o esplêndido animal que surgira, gigantesco e de penas reluzin-do à luz do sol, com os olhos cintilando. Maravilhada, Ariana acariciou suas penas cor de cobre, macias e brilhantes... Cautelosamente, saltou às costas da imensa ave, segurando-se ao seu pescoço sedoso, ao tempo em que suas asas abriam-se com um poderoso movimento, para logo então alçar vôo. Com velocidade e graça, elevava-se cada vez mais; Aria-na olhou petrificada para baixo, onde as grandes florestas se tornavam pequenas manchas esverdeadas e os castelos, minúsculos pontos muito distantes. Finalmente, viu-se cercada apenas por nuvens fofas e alvas, escondendo o mundo lá embaixo, insignificante perto de seu tamanho. Tudo ali ao redor tornava-se esbranquiçado e nebuloso, deixando esca-par apenas alguns pontos distantes no horizonte.

Quando por fim chegaram ao cume cercado pelo denso mar gasoso, o silêncio inquebrável dali a surpreendeu. Estava no vazio, isolado e pacífico Pico, sem viva alma para lhe fazer companhia... Ariana saltou no chão seco e rochoso, fazendo ecoar seus passos firmes. A ave pro-vocou sua costumeira ventania com o bater de suas asas, partindo logo em seguida.

- Para onde ela vai?... - pensou alto a princesa.

Page 57: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

57

Ariana logo tratou de se acomodar, estendendo no chão duro a manta rústica que por fim resolvera trazer.

Passado algum tempo, as nuvens ao seu redor atingiram tons cálidos de rosa, violeta, amarelado... O mágico espetáculo do pôr do sol tinha início, até que a escuridão veio saudá-la com os astros noturnos e as fo-gueiras piscantes no veludo negro do céu... Ariana deixou-se adormecer depois de fitar por um longo tempo o espetáculo cintilante, acompa-nhado pela brisa, que trazia consigo lembranças tocando em seu íntimo silencioso com perguntas jamais respondidas e respostas para questões nunca antes perguntadas. Um mundo tão amado e intrigante, onde nada era impossível, onde a realidade não tinha limites... Tudo era fruto da imaginação que alguém um dia resolvera expelir, como que fugindo de limites impostos pelo seu próprio mundo...

O dia seguinte levou embora as densas nuvens que encobriam todo o reino, dando à moça a mais bela visão que já tivera. Comia algumas frutas que trouxera consigo, enquanto contemplava a maravilhosa pai-sagem à sua frente, durante a vigília a que se submetera. Para além das manchas verdes e vivas, um longo mar amarelo e seco, onde vira pela última vez o estranho homem que um dia desejara tanto encontrar. Não havia nada lá, a não ser as estáveis areias queimadas pelo sol e geladas pela noite. O pequenino ponto branco sobre o relevo verde da planície revelava o lindo Castelo, onde sua família recolhia-se, unida por laços inseparáveis de amor e dedicação. Um aperto no peito a fez se lembrar com carinho de seus pais e irmãs, reforçando ainda mais seus ideais de luta e proteção, até que a morte a recompensasse com o sono da vitória.

Durante sua costumeira exercitação física, aspirava o ar puro e in-tocável das alturas, como se fosse a última vez que o fazia. Admirava o reino ao seu redor, com especial atenção ao temido deserto, sempre esperando ver o que não queria... Muitas vezes, suplicava por estar er-rada, tentando encontrar uma esperança de nunca mais tornar a ver o corleciano. Contudo, lamentava estar certa ao se lembrar das palavras de Allure e perceber que eles realmente viriam. E não demoraria mui-to para tal acontecer... Mais do que nunca, requeria toda força possí-vel, alimentando-a com perseverança e coragem, preparando-se para o momento certo de agir e pôr-se definitivamente à prova. Não era mais uma mera aventura ou façanha o que estava por vir; era o maior dever

Page 58: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

58

já prestado ao seu reino, o confronto diante de todo o mal já sonhado. Ariana sabia perfeitamente o que significaria vencer aquela batalha que viria; sua posição como guerreira seria definitiva, sua missão de vida solidificada. Era a tradução de tudo aquilo que sonhara; e mais do que tudo, um amadurecimento de suas fantasias de aventureira.

Mais uma vez, presenciou o show de luzes propagando-se maciamente por entre as massas de algodão, formando imagens fantasmagóricas, até que a escuridão a surpreendeu com os esparsos clarões do luar ensom-breado. O silêncio sobrenatural era rompido apenas pelo ameno soprar do vento, que a ninava em seus sonhos atribulados. O reino inteiro se aquietava em seu sono reparador, numa paz sem limites que, entretanto, não duraria muito...

Subitamente, um tenebroso ruído destacou-se na imensidão, gros-so, pesado e ensurdecedor, como se algo muito grande pairasse sobre os ares. Ariana acordou sobressaltada, tentando em vão achar a origem de tal som. Mas nada via, cercada pela imensa massa de nuvens. Por algum tempo, permaneceu desperta, na inútil tentativa de vislumbrar qualquer coisa, certa de que aquele era o sinal do perigo que chegava. Contudo, vencida pelo sono, acabou por adormecer, mas prometendo-se averiguar o barulho na manhã seguinte.

O suave calor do dia a trouxe de volta à promessa que fizera para si mesma, despertando-a com o coração aos pulos. Boa parte da maciça cordilheira de nuvens tinha-se dissipado, de modo que pôde ver ao longe a verde floresta e, mais distante, o pardo deserto. De repente, sobressal-tou-se ao ver inúmeros pontos pretos movendo-se pelas areias, ao redor de uma gigantesca forma de duas asas escuras, com uns poucos pontos luminosos a piscarem insistentemente. Ariana imediatamente concluiu ser a tão esperada volta de Komhak, com seus semelhantes. Estremeceu com tal lembrança, mas decidiu cumprir aquilo que planejara, sua defe-sa vital e a batalha final por Acácia.

Rapidamente, recolheu todos os seus pertences, pronta para voltar para casa. Olhou ao redor, procurando por algum sinal que indicasse a pre-sença da grande ave. Só o vazio e a assustadora altura acompanharam-na por todo aquele tempo; a grande ave desaparecera após tê-la deixado ali. Erguendo os olhos temerosos ao céu claro, bradou em voz alta:

- Grande ave, por favor, venha!

Page 59: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

59

Não demorou muito para que o enorme pássaro chegasse com as im-ponentes asas criando redemoinhos de vento, pousando majestosamen-te em frente à garota, cujos olhos resplandeciam de encanto. Ela ligeira-mente saltou às costas da ave que, no mesmo instante, levantou vôo com a estável e poderosa ventania. Agarrada ternamente ao pescoço dela, Ariana contemplava com prazer o seu reino, que ficava cada vez maior, mais perto e mais bonito, sentindo com gosto o frescor do vento em sua face e os aromas da fauna e flora que se revelavam alegremente quanto mais perto chegava. De volta ao chão firme, quis se despedir com cari-nho da bondosa ave que a ajudara tanto, mas assim que desmontou, sua visão novamente se ofuscou com o clarão envolvendo o magnífico ani-mal, desaparecendo magicamente. O dourado medalhão caiu ao chão, desgrudado do Pico, refletindo com energia o poder do astro Sol, para então sumir dentre uma súbita constelação cintilante.

Ariana olhou aquilo com surpresa e fascinação, mas sabia que não tinha tempo a perder. Precisava chegar logo em casa, avisar todos e se preparar para o que iria se suceder. Correu a atravessar a ponte de ma-deira. Ansiosa, alcançou o vale. Mas antes que pudesse atravessá-lo, sen-tiu subitamente alguém segurar seu braço com muita força. Ariana viu--se frente a Komhak. O corleciano fitou-a friamente, dizendo com leve sorriso maligno:

- Vai avisar seus amigos? Muito esperta; pena que agora seja tarde, não é? Eu disse que voltaria, não disse? Inacreditável! Estava todo esse tempo lá em cima à nossa espera?

- Como sabe? - perguntou Ariana, atemorizada.- Nossa nave rondou aquela montanha antes de pousar no deserto.

Incrível! Como conseguiu chegar lá?- Tenho os meus truques...- E eu, os meus.- O que quer conosco? - perguntou a jovem, sem saber definir o que

estava sentindo; se era medo ou revolta.- O que acha que eu quero? - ironizou ele.- Pois seja o que for, só o conseguirá depois de me matar! - e já ia fugir

correndo, quando algo, repentinamente, atingiu-a na cabeça, fazendo-a tombar desnorteada, enquanto murmurava, com os olhos marejados:

- Deixe minha família...

Page 60: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

60

18

A tensão despertou-a numa cela escura e fria, acorrentada nas mãos e pés. Possuía pouco espaço para se mover. Tentou em vão se soltar; os duros grilhões prendiam-na fortemente. Olhou ao redor angustia-da, interrogando-se que lugar seria aquele. Logo assustou-se ao ver do outro lado das grades que a separavam do exterior dois homens semelhantes a Komhak; eram igualmente carecas e de roupas escuras e rudes, só que aparentando ser mais jovens. Os dois guardas entreti-nham-se em um jogo lento e sonoro, baseado em imagens coloridas numa pequena caixa colocada sobre uma mesa, detrás de uma série de botões. Ariana observou-os curiosa e espantada, estremecendo com suas feições grotescas. Numa tentativa de obter algum esclarecimento sobre sua situação, perguntou:

- Que lugar é esse?Eles fitaram-na surpresos, logo trocando palavras estranhas entre si,

para então voltarem à sua distração. Ariana nada compreendeu, limi-tando-se a suspirar com tristeza e inconformidade. Não podia fugir, estabelecer contato com as criaturas, nem saber o que se passava em seu reino. Nem ao menos sabia onde estava... De repente, a lembrança de Komhak veio-lhe à mente, trazendo-lhe aflição e interrogações com uma pontada de temores. O que estaria ele fazendo agora? Onde esta-ria? Perguntas angustiadas enchiam-na de tormentos, logo imaginando o pior. Imediatamente pensou em sua família, em seu reino. Contorceu--se de medo ao pensar se Komhak estaria com eles agora. A ideia de não saber o que se passava fora dali apavorava-a, temendo por seu mundo. Não havia janelas ou quaisquer frestas ali; seus olhos encheram-se de lágrimas, diante de sua incapacidade de fazer algo.

O tempo parecia não passar dentro daquelas paredes. Seu desespero aumentava a cada minuto; não conseguia parar quieta, perambulando pela cela e torcendo as mãos sem parar. Os guardas vez ou outra fita-vam-na com curiosidade e estranheza, em meio aos ataques de crise e desespero da garota. Ariana insistia em cobri-los de perguntas, com o

Page 61: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

61

coração disparado, até que eles tiveram que nocauteá-la para que se ca-lasse e ficasse quieta.

Ao voltar à consciência, porém, o desespero recomeçava, acompanha-do pelas perguntas insistentes. Perdida a noção do tempo, inquietava--se ainda mais, lamentando-se por sua família, seu reino, seu mundo... Ariana chorava e chamava por Komhak, clamando aos guardas sem pa-rar, mas eles nada entendiam. A jovem cativa caía em profunda mágoa...

De repente, como que por encanto, Komhak apareceu à cela, com a frieza no olhar impassível. Ariana ergueu-se veloz como uma flecha.

- O que fez? Que lugar é esse? Onde está minha família? O que fez com eles?

Ele nada respondeu, limitando-se a abrir a cela. A garota não pensou duas vezes antes de aproveitar a oportunidade. Empurrando-o para trás, saiu como um raio, correndo alucinadamente pelos corredores repletos de luzes piscantes, até que por fim encontrou a saída, desabalando-se deserto afora, através da floresta, só pensando em achar sua família, ig-norando os soldados corlecianos que a fitavam surpresos. Um estranho sentimento de perda tomava conta de si, como que prevendo o que iria ver... Atravessou rapidamente a verde e sombria floresta, alcançando sem demora a planície verde-amarelada, para então estacar horrorizada.

Caiu de joelhos com os olhos inundados de lágrimas. O Castelo, antes tão belo e resplandecente, agora reduzira-se a ruínas e cinzas, sem vida ou sinal da nobre alma que possuía... Arruinado, destruído, nada mais lhe sobrara.

- Papai! Mamãe! - gritou aterrorizada, enquanto corria cambaleante rumo às ruínas, de onde alguma fumaça exalava-se em meio aos escom-bros. Penetrou em meio à destruição, à procura de corpos ou sobrevi-ventes. Havia ali inúmeros cadáveres, carbonizados e soterrados entre o que sobrou do lindo castelo. Não conseguia conter as lágrimas amargas, que viam tudo aquilo sem conformação. Deixou-se cair de joelhos, es-condendo o rosto nunca antes tão molhado. Odiou-se do fundo de sua alma, culpando-se por tudo aquilo. Súbito, uma mão pesada e fria pou-sou no seu ombro, ao tempo em que uma voz conhecida e odiada lhe dizia, com cínico conforto:

- Sua família não está morta, ainda.Ariana voltou-se com surpresa e uma ponta de esperança, descobrin-

Page 62: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

62

do em si um frágil sorriso ao ver um grupo de soldados trazendo seus pais, com os olhos desolados e inundados pela amargura. Imediatamen-te, correu a abraçá-los, em lágrimas inexprimíveis e exclamações des-controladas. A rainha logo correu a envolver a filha com seus braços trêmulos, com o rei a imitá-la, tenso e espantado.

- Oh, mãe, pai! Nunca me perdoarei! Foi tudo minha culpa! Odeio-me!- Claro que não é sua culpa, querida. Como poderia adivinhar? -

disse o rei.- Vocês não entendem! Eu já sabia que isso iria acontecer. Era o que eu

temia!... Onde estão Ariel e Arabela?- Fugiram com D’Albert; ficamos como reféns.- Oh, por que não foram junto com eles?- Ora, querida. Não caberíamos todos num só cavalo. Onde você es-

teve todo esse tempo?- Eles me prenderam. Oh, pai! Nunca me perdoarei!- Daremos um jeito, querida, tudo tem solução. - tranquilizou o rei,

embora não acreditasse no que dizia.- O que vamos fazer agora? - perguntou a rainha, aflita.Ariana abraçou-a carinhosamente, para então aproximar-se de

Komhak, que os observava a distância, curioso e sádico.- Então, o que vai fazer agora? Já destruiu o meu castelo, separou

a minha família...- Não estou satisfeito ainda. - disse ele, com um brilho maligno

no olhar.- Pois vou lutar por minha família até o fim, mesmo tendo que morrer!

- afirmou ela, com determinação. Ele riu desdenhosamente e atalhou:- Então sua morte já está garantida, pois são apenas três contra

todos nós.- Três? - surpreendeu-se, olhando ao redor. E notou com profundo

desgosto que os Artux uniram-se a ele. Ambas as moças sorriam leve-mente, com um brilho satisfeito nos olhares, perdidos entre o exército corleciano. Pauler, porém, limitava-se a fitá-la com pena e incerteza, por trás dos olhos escurecidos por uma nova visão. Uma dolorida pontada de mágoa e perplexidade a atingiu em meio ao turbilhão de acontecimen-tos. Sentimentos que ela nunca entendera vinham à tona, ao ver aquele estranho rapaz inacessível, que lhe negava o menor apoio, voltando-lhe

Page 63: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

63

as costas como nunca o fizera antes. Ariana via-se num mundo à beira da ruína e perdição, onde tudo parecia querer desmoronar, dependendo unicamente de si.

- Por que não vai embora de uma vez e nos deixa em paz? - disse a princesa, desviando os olhos abatidos e úmidos. - Daria qualquer coisa para que fossem embora.

Ele se aproximou interessado e perguntou, com um leve sorriso oportunista:

- Mesmo?- Qualquer coisa! - repetiu ela, iluminada pela súbita solução.- Quero levar você conosco. - determinou ele, com a cobiça escondida

por trás dos olhos perspicazes. Ariana sentiu um longo calafrio percor-rer sua espinha, quando instantaneamente o rei bradou, avançando para perto deles:

- Não, Ariana! Não a permitirei!A princesa aproximou-se afavelmente, dizendo com melancolia:- Eu tenho que fazê-lo, pai! Eles não nos deixarão em paz enquanto

nada fizermos. Se eu for, deixarão vocês em paz!- Então que eu vá, não você, minha filha!- Eles querem a mim, pai! Deixe-me ir, para que nada façam a vocês.

- implorou ela, decidida. Incrédulo, o bom e aflito soberano abraçou-a com lágrimas nos olhos, seguido pela Rainha, que soluçava inconfor-madamente. Ariana voltou para o corleciano.

- Aceito.- Feito. - disse ele. - Só que não precisará mais disto. - concluiu, tirando

sua coroa de ouro e jogando-a indiferentemente ao chão. Ariana nada falou, mas sentiu uma pontada de mágoa e dor, com o baque do metal caindo no chão ressecado pela morte. E afastou-se resoluta, escondendo uma fina lágrima que escapara dos olhos esvaziados pela ambição da-queles que penetravam em seu reino feliz e isolado, sem pedir permis-são. Uma golfada de desespero atingiu-a em cheio, com a violência e a força destrutiva do orgulho e sede de lucro daqueles seres.

O sol já ia a pino, acompanhado pelo calor e o vento fraco e quente, arrastando consigo os restos de destruição do que antes era o tão lindo Castelo Cisne de Marfim, erguido com as auras da união e aniquilado pela força do desdém. Os corlecianos todos embarcavam indiferente-

Page 64: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

64

mente ao que os cercava, preparando-se para a viagem de volta ao seu próprio mundo, onde a rivalidade e a ambição se faziam constantes. Junto com eles, iam os três Artux, indisfarçavelmente impressionados com toda a tecnologia que os cercava, vendo a oportunidade de se supe-riorizarem à princesa, num inesgotável prazer em comandá-la.

Agnes era a que mais exultava ao ver a inevitável prisão da ex-prin-cesa, agora sem meios de fugir ou lutar. Era com imenso prazer que a via sendo trancafiada na mesma cela, sombria e repelente, diante de um futuro desconhecido e imprevisível. Sem comunicação, sem meios de ver o que a cercava lá fora, estava praticamente isolada do exterior, ig-norando qualquer intenção de seu raptor. A cúmplice deleitava-se só de pensar em se divertir com ela, submetendo-a aos sofrimentos que tinha prazer em lhe dar.

Entre suas quatro paredes, Ariana via-se partindo para um outro mun-do, completamente diferente do seu, onde a tecnologia corria apressada como o vento durante uma tempestade de inventos, com a chuva de descobertas cada vez mais forte. Interrogava-se estupefata se algum dia seu reino seria assim avançado, se o futuro traria novos padrões de vida, se teriam outro povo para dividir o território, se deixariam a ambição tomar conta de suas vidas, se desejariam mais do que tudo o maior co-nhecimento técnico possível, o maior número de territórios. Era um mundo adubado com males e competições fúteis e vis, almejava nunca ser assim Acácia, tão primitiva e pacífica, onde tudo que se possuía era o maior tesouro, onde as traquinices do dia a dia não passavam de meras diversões. E, numa silenciosa prece, agradeceu pelos atrasos tecnológi-cos que o tempo tão sabiamente lhes havia cedido.

Ao lado de Komhak, o jovem Artux não deixava de, vez ou outra, observar com interesse e admiração a valente prisioneira, que em seu coração confuso, nunca deixaria de ser princesa. No seu íntimo, ain-da sentia aquele respeito reverente à jovem soberana, apesar das frágeis sementes de malícia e sarcasmo que vigoravam com os oferecimentos de Komhak. Na alma acaciana, dois mundos com diferentes propósitos batalhavam entre si, na busca desesperada pela razão. Com certa triste-za, que procurava esconder, contemplava o lindo reino que ia ficando aos poucos escondido entre as nuvens; onde tinha passado momentos marcantes, travessuras inesquecíveis e aventuras que jamais voltariam.

Page 65: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

65

Antes, porém, que a maravilhosa terra sumisse de vez, pôde distinguir duas jovens e um cavaleiro, que olhavam para o céu nublado à procura da origem do som, que se esvaía como as espumas borbulhantes ao lon-go do rio. Sorriu levemente ao identificá-los, não apenas por suas situa-ções cômicas, mas por de repente se lembrar dos bons tempos, que não voltariam mais, em que muito se divertia às custas da pequena Ariel, com suas brincadeiras macabras. Mas uma pontada de compaixão fê-lo diminuir o sorriso, recordando do sofrimento e amargura das lágrimas da guerreira, diante da vil tortura à irmãzinha, a quem ninguém inte-ressava de fato. O que eles queriam era Ariana; a vigorosa moça que, de um jeito ou de outro, sempre conseguia sua inextinguível força de volta, a força que ele sempre quis e nunca teve...

Observando a pequena e distante Ariel, perdido em pensamentos vacilantes, Pauler não percebeu que Komhak se aproximou sorrateira-mente e, ao ver a menina frágil e indefesa e, o melhor de tudo, irmã de Ariana, sorriu inspirado por uma ideia que lhe surgiu de repente.

- Boa ideia, meu rapaz! - e deu algumas ordens em uma língua des-conhecida aos homens que o seguiam, para depois voltar-se ao rapaz que o fitava interrogativo e oscilante - Isso dará uma boa garantia à nossa prisioneira.

Pauler acenou com um falso sorriso, mas estremeceu temeroso diante do possível destino da princesinha. Antes era apenas brincadeira, não tinha que ser tão bárbaro; mas com Komhak, as coisas poderiam não ser só mera brincadeira, seria muito pior... Talvez pudesse até matá-la. Com um calafrio atemorizado, correu até a cela de Ariana, encontrando-a com a face pálida e úmida, os olhos vazios e silenciosos.

- Alteza... - disse ele, aproximando-se lentamente.Ela o olhou melancolicamente, limitando-se a dizer:- Não sou mais uma princesa... - disse ela, surpresa por ele tê-la cha-

mado de tal forma, como nunca fizera.- Claro que é, sempre será.- Que importa? Talvez nunca mais volte ao meu reino...- Não importa, sempre levará consigo sua realeza.- Por que diz isso? E por que se juntou a ele?- Se não o fizéssemos, ele nos mataria... Mas você, ele vai obrigá-la

de qualquer jeito a se unir também. - e aproximou-se mais, lívido e di-

Page 66: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

66

minuindo o sorriso com hesitação - Ele viu Ariel pela janela e decidiu capturá-la para garantir que você se juntará a ele!

- O que está me dizendo?- Está dizendo a verdade. - disse, de repente, uma voz forte e sádica -

Só que não adiantará muito...- Onde está Ariel? - afligiu-se Ariana.- Escapou, para sua própria sorte. Mas não pense que se sairá bem. -

falou, aproximando-se ameaçadoramente. - Ou se junta a mim, ou terei que obrigá-la.

- O que acontecerá se nos unirmos a você? - perguntou Ariana, com o rosto colado às grades sólidas.

- Vagarão comigo pelo infinito, conquistando mundos e povos... Mas se me traírem, a morte é certa, mas lenta e dolorida...

O rapaz não pode conter o temor que sentiu, porém, a garota logo atalhou com firmeza e audácia:

- Não temos medo de suas ameaças!- Não mesmo? - ironizou ele, aproximando-se de Pauler com seus pas-

sos lentos e malevolentes. E revelando um poderoso punhal, agarrou-o, forçando-o a abaixar a cabeça para trás, com o pescoço nu pronto para o corte fatal. Ariana sobressaltou-se atemorizada e suplicou:

- Não! Não o mate! Faço o que quiser!Komhak sorriu, vitorioso, ordenando algo em sua língua aos

guardas. Ariana logo viu-se fora de sua cela, mas dentro dos crimes que cometeria...

Page 67: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

67

19

A princípio, o manejo de armas não foi fácil de aprender. O quarteto já se familiarizava com táticas militares de guerra e combate, mas deram de cara com a dificuldade de segurar corretamente objetos tão pequenos que libertavam subitamente raios luminosos destrutivos. Com o tem-po e os treinos, contudo, tomaram jeito, entendendo-se perfeitamente com as tais armas e seus belos raios. Komhak fê-los jurarem fidelida-de, sob pena de morte antecedida por tortura, nada adiantando, porém. Todos os quatro sabiam que não tinham para onde ir, uma vez longe de seu reino, num lugar completamente desconhecido e fora de seus padrões normais de vida. Ainda que arranjassem um lugar para viver, não conseguiriam se adaptar à tecnologia e ao modo de vida daquelas criaturas, tão diferentes... Entretanto, apesar das constantes ameaças e desafios a que se via submetida, Ariana sabia que alguém a ajudaria; em algum canto daquele mundo sombrio, conseguiriam ajuda para voltar para casa. Nada era impossível, muito menos a possibilidade de algum socorro em meio a inúmeros povos, com os quais iria ter algum contato. Era só aguardar o momento certo para agir.

Assim transcorria a viagem, entre treinos e novas adaptações. Depois do fato ocorrido em frente à sua antiga cela, Ariana pouco olhava ou falava com Pauler. Nem mesmo o rapaz se animava em fazê-lo, ambos aturdidos demais com os acontecimentos. Experiências antes nunca sen-tidas agora atacavam de um só lado e com todo o vigor, atordoando-os e nocauteando seus antigos sentimentos. O ódio e desprezo que antes sentiam um pelo outro foi como que apaziguando, porém, sem saberem agora como agir. Algo diferente acontecia com eles. Uma inexplicável vacilação e timidez barravam-se entre os dois, que se evitavam sempre que podiam.

A travessa Paulie já não tinha mais seus amigos insetos para torturar e brincar, perdendo toda a vontade de zombar ou atazanar suas vítimas. Não desgrudava de Pauler ou Agnes, mantendo distância de Ariana. Uma melancolia tirara toda graça de seu riso maroto, levando embora a

Page 68: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

68

vivacidade e astúcia que divertiam seus companheiros.Somente Agnes parecia continuar a mesma, desdenhando e odiando a

moça a quem chamavam Ariana. A vontade de fazer o mal ainda persis-tia, ao lado do olhar maléfico e do fraco sorriso, recheado de zombaria. Seria realmente a temida Agnes Artux, não fosse por um profundo sen-timento de perda e tristeza, que parecia ter ficado em Acácia.

Ariana bem percebia o que ocorria com os três graciosos seres, antes tão bonitos e bizarros. Lamentava amargamente um dia ter desejado conhecer aquele que só lhe trazia desgraças, que destruía seus amigos e até seus tão queridos inimigos. Não fosse por eles, não teria tido suas desventuras no Castelo da Escuridão. No íntimo, gozara daqueles dias fúnebres de cativeiro e sofrimento. Muito a entristecia vê-los tão muda-dos e deprimidos.

Foi com imenso espanto e esperança que avistaram certo dia, outra nave, diferente da dos corlecianos. Era clara, cujas asas arredondadas as-semelhavam-se às de uma águia, erguendo-se na parte traseira superior da nave. Ao vê-la, Ariana pensou nunca ter visto algo tão lindo, certa de que agora não demoraria muito para a salvação chegar. Komhak logo percebeu o encanto da moça e disse, dirigindo-se com os quatro para a sala de comando:

- Veja só o que se faz com invasores. - e ordenou algo aos seus comandados.

- Quem são eles? - perguntou ela, pasma.- São uns imbecis que adoram estragar a diversão dos outros. - e deu

uma ordem final e definitiva. Um raio luminoso gigantesco cruzou o vácuo rumo à linda nave, atingindo-a em cheio; em questão de segun-dos, uma explosão ofuscante cegou-os, arrancando um grito abafado de terror da moça. Os restos da nave flutuavam pelo espaço sideral, bus-cando qualquer apoio em meio ao nada. Os três Artux fitaram aquilo petrificados, entreolhando-se pasmos e temerosos. Ariana via indo por água abaixo suas esperanças de salvação; cada nave que avistariam, cer-tamente Komhak destruiria...

- Agora, continuemos nossos treinos, não é? - disse Komhak, com uma maldade faiscando nos olhos contentes.

Page 69: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

69

20

Rondavam agora as imediações de um planeta verde e encoberto de poucas nuvens rosadas, e Komhak parecia não querer que o vissem. En-tretanto, Ariana foi mais rápida que suas ordens, espiando por cima dos ombros do corleciano e descobrindo o segredo.

- O que é aquilo? - perguntou, extasiada.- Um planeta, outro mundo onde jamais pisarão; portanto, não fique

tão esperançosa.- Não ficarei, mas outros deles virão para vingar a nave que você destruiu.- Eu sei; já nos detectaram em seu sistema de defesa. Mas isto não é

apenas mera questão de vingança, garota, e sim uma perseguição políti-ca. Tudo que esses caras mais querem é me prender.

- Acredito... - murmurou a moça para si mesma, desviando o olhar apreensivo.

- Sua decisão ainda está firme? - perguntou ele, ameaçadoramente.- Claro... - respondeu Ariana, embora quisesse dizer o contrário. Sua

situação de cúmplice não lhe agradava nem um pouco, além de temer pela vida dos seus agora companheiros. Era difícil admitir, mas seu ódio por eles apaziguara-se consideravelmente com o correr dos aconteci-mentos que enfrentavam juntos, ao lado de Komhak. Juntos sob a mes-ma ameaça e o mesmo destino, não via razão para insistir na aversão que havia entre eles. Tudo o que mais precisavam agora era de união e algum companheirismo para superarem a escravidão a que estavam submeti-dos. Por mais que se evitassem, calassem ou obedecessem cegamente, traziam no íntimo o mesmo sentimento de ânsia à paz e liberdade, à volta ao seu mundo de onde nunca queriam ter saído. No triste silêncio de seus momentos de solidão e reflexão, perguntavam-se se algum dia voltariam a se divertir com suas travessuras, maldades e aventuras, se tornariam a ouvir as sereias, cheirar o doce aroma das fadas e dançar com as ninfas.

A sirene tocou excitada, enquanto oficiais corlecianos corriam a aquietá--la em meio a um turbilhão de luzes e imagens que piscavam e se alarma-

Page 70: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

70

vam, sobressaltando toda a ponte de comando. Tripulantes consultavam apressadamente seus instrumentos e monitores, ao mesmo tempo em que Kohmak era informado sem hesitação. O corleciano sorriu levemente e voltou-se ao quarteto que o fitava interrogativo e disse, sem se conter de satisfação e ansiedade:

- É chegada a hora. Sigam-me!Seguiram-no ao longo dos corredores agora repletos de tripulantes

atarefados e com pressa de fazer o mal. Com o coração aos pulos, ten-tavam imaginar o que viria, o que teriam que fazer. Após a destruição da última esperança de ajuda e salvamento, Ariana certificou-se de que nada de bom viria com o corleciano, tomado pela ira e ambição. In-terrogava-se quais seriam suas cegas tarefas agora, sem entender o que acontecia; algo de anormal rondava por ali, com o alarme a gritar insis-tentemente enquanto os corlecianos apressados corriam de um lado a outro. Uma chama interior alertou-a, trazendo um aviso positivo, como uma silenciosa onda de perseverança. Curiosa e discretamente, trocou um rápido olhar com Pauler, que não deixava de esconder a crescente dúvida e interesse, com um brilho temeroso e excitado no par de olhos obscuros e amaciados pelo presente incerto.

Entraram numa sala pequena e mal iluminada, onde um tripulante veio ao encontro deles, trazendo quatro armas laser. Komhak tomou-as dele e disse, em tom imperativo:

- Ouçam! A nave deles está lá, do outro lado do planeta. Quero que vocês vão lá e façam o que eu lhes ordenar. Encontrem o setor de defe-sa da nave e destruam o sistema; escudos eletrônicos, munições, tudo. Quero-os indefesos. Não pensem em me trair, ou vão se arrepender pelo resto de suas vidas! Façam o serviço e retornem imediatamente!

- Como quer que cheguemos lá? - perguntou Agnes, incrédula.- Com isto. - explicou o tirano, dando a cada um deles um pequeno

instrumento. - Prendam em suas cinturas bem firme, digitem as coorde-nadas para o lugar aonde querem ir e depois apertem o botão vermelho. Não se movam durante o processo. As coordenadas, eu as darei para vocês. Agora digitem o número que eu direi.

Depois de tudo pronto, com certa dificuldade oferecida pelas diferen-ças de evolução, os quatro novos tripulantes tomaram suas posições e aguardaram o sinal de Komhak; o corleciano checou tudo e, após um

Page 71: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

71

leve aceno de aprovação, ordenou:- Agora!Os quatro imediatamente apertaram seus botões obedientemente,

aguardando poucos segundos, que custaram a passar. De repente, uma densa névoa cósmica envolveu-os, ao tempo em que todo o corpo dos jovens parecia dissolver-se em uma sopa viva. Tudo desapareceu com uma explosão silenciosa e ofuscante, onde minúsculas esferas cintilan-tes circundavam-nos sem parar. Numa fração de minuto, tudo voltou ao normal. Mas não estavam mais na sala pequena e escura, e sim, num corredor vazio e bem iluminado, limpo e ventilado por não sabiam onde... Aquilo não era a nave de Komhak. Assombrados, entreolharam--se mudos de espanto e interrogação.

- Onde estamos? - indagou Paulie, com o fraco sorriso atemorizado pelo ocorrido.

- Na outra nave que Komhak nos falou. - respondeu Ariana, embora ela também tivesse suas dúvidas. - Temos que cumprir o que ele nos or-denou, ou as coisas poderão piorar.

- Mas como vamos encontrar aquilo que ele mandou destruir?- Não sei, mas vamos procurar.- É melhor nos separarmos. - sugeriu Agnes, olhando ao redor

com precaução.- Sim, teremos mais chances assim. - concordou Pauler, com o

sorriso apagado.- Muito bem; boa sorte, então. - disse Ariana.Pauler e Agnes seguiram juntos por uma das portas, saindo por outra

Ariana e Paulie. Cada uma levava escondida consigo uma arma, mesmo que, após todo o treino, ainda tivessem dificuldades para manuseá-las. Todos viam-se diante de uma tarefa assassina de destruir rivais e escra-vizar sem piedade, induzidos pela cobiça de conseguir algo que nem sa-biam o que era. Ariana não conseguia se imaginar matando alguém que pudesse respirar ou pensar como ela; a ideia de estar ali já era suficiente para atormentá-la de que estava fazendo algo errado. O sentimento de culpa e a consciência que a alarmava de suas ações disparavam em seu coração nobre, acostumados demais em fazer apenas o bem.

Assim que se separaram de Pauler e Agnes, Ariana também se se-parou da companheira, tomando rumo diferente naquele labirinto de

Page 72: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

72

corredores claros. À medida que avançava em passos rápidos e nervo-sos, Ariana via vários tripulantes estranhos, diferentes dos corlecianos. Eram igualmente carecas, porém, com a pele clara, como se fosse de seda. Uma pequena crista cartilaginosa subia desde a nuca até o alto da testa, com suaves irregularidades. A orelha, pouco pontuda, completava o rosto sereno, com olhos claríssimos sob as sobrancelhas finas e pra-teadas e lábios de igual espessura, rosados e prontos para oferecer um sincero sorriso ou uma palavra amistosa. Ariana contemplava-os pasma e encantada, certa de que suas esperanças não a decepcionariam. A cha-ma que trazia dentro de si tornou-se um fogaréu incontrolável, enquan-to observava-os com seu uniforme azul celeste, um macacão de punhos dourados com um emblema de uma estrela em órbita. Uma faixa branca engomada vinha do pescoço, envolto em gola alta, até a beirada dos om-bros, terminando com o mesmo emblema. Todo o uniforme reluzia em seu estranho tecido, com um brilho suntuoso. Caminhando pelos corre-dores, alguns fitavam-na com surpresa, apesar de nada lhe dizer. Ariana engolia em seco, temendo ter que responder algo a alguém.

Subitamente, uma daquelas belas criaturas barrou-lhe o caminho, per-guntando-lhe algo em uma língua desconhecida, mas com uma dócil e suave voz, que entretanto não conseguia esconder os sentimentos de desgosto e reprovação. Ariana nada compreendeu, limitando-se a fitá--la sem saber o que fazer. A tripulante segurou-a fortemente, decidida a levá-la consigo. A moça, entretanto, desvencilhou-se, ao tempo em que fugia correndo, deixando para trás a tripulante pasma que já soava o alarme. Uma doce voz soou pelos interfones, dizendo desconhecidas palavras, mas que Ariana fazia ideia do que significariam. Tentou pen-sar em algo enquanto fugia sem rumo, mas não chegava a conclusão al-guma em seu nervosismo. Só conseguiu pensar em Pauler e suas irmãs; estariam eles bem?

Um longo calafrio percorreu sua espinha ao identificar, ao fundo do corredor, vários oficiais igualmente trajados que, ao verem-na, aponta-ram-na gritando algo e disparando em seu encalço. Ariana apavorou-se, continuando a corrida em busca de alguma salvação. Repentinamente, e sem querer, a garota esbarrou em outro deles, só que fardado. Instintiva-mente, Ariana lhe disse:

- Desculpe-me...

Page 73: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

73

- Não foi nad... - ia dizendo ele, mas ao fitar a garota estranha, petri-ficou-se tentando alcançar sua arma. Ariana, contudo, foi mais rápida e logo apontou-lhe a sua, pasma por ele ter falado a sua língua.

- Quem é você? - perguntou ele, sem dificuldades na linguagem.- Ninguém...Ainda espantada, Ariana interrogou-se por que fazia aquilo, abaixan-

do a arma sem razão para estar ameaçando alguém. Súbito, outros ofi-ciais surgiram, gritando freneticamente. Ariana rapidamente escapuliu, abandonando o homem atordoado a fitá-la estupefato. Ao se aproxima-rem dele, seus companheiros perguntaram em sua própria língua:

- Você está bem?- Sim; mas não entendo por que ela não me feriu.- Ela? É uma garota?- Sim, e bem jovem. Não me pareceu ser uma corleciana.- Vamos pegá-la viva e sem ferimentos para então interrogá-la.Ariana correu até não poder mais. O coração batia acelerado pela cor-

reria, mas ainda guardava seu inexplicável assombro pelo encontro com um deles, que sabia falar seu idioma. Não conseguia respostas para as inúmeras perguntas que agora a assolavam, perfurando sua mente con-fusa e abalada. De repente, viu-se em um beco sem saída, sem volta. Gritos às suas costas alarmaram-na, fazendo-a imediatamente tomar sua arma; porém, eles logo apontaram as suas, excedendo em número e experiência. A jovem deixou-se apoiar na fria parede, vencida.

Do fascinante e ameaçador grupo que cercava a jovem, um com apa-rência mais velha aproximou-se resoluto. Era baixo, ao contrário dos que o ladeavam, e Ariana imaginou ser o chefe deles. Seus olhos muito claros examinaram-na de cima a baixo curiosamente, para então per-guntar-lhe, com fluência, em sua língua:

- Quem é você?- Meu nome é Ariana. Como sabe minha língua?- Aprendemos muitos idiomas, sem saber que este era o seu. Por que

está aqui? Você não é corleciana.- Eu mesma optei por isso. Sou prisioneira deles. Caso não fizesse o

que me mandassem, matariam meus amigos.- Seus amigos estão aqui?- Sim, embora não saiba onde...

Page 74: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

74

- De onde vem?- Do reino de meu pai, Acácia.Eles entreolharam-se interrogativos e ela indagou, com um fio de tristeza:- Não conhecem?- Não sabemos onde fica. Por que não nos conta? Talvez possamos

levá-la de volta, junto com seus amigos.Ariana sentiu os olhos marejarem-se, respondendo com esforço:- Porque não sei como voltar. Nunca antes saí de meu reino...Eles fitaram-na espantados, tentando buscar uma solução. Ariana via

irem por água abaixo suas esperanças de voltar para casa. Subitamente, um grito conhecido fugiu do outro lado dali, sobressaltando a garota, que imediatamente o reconheceu. Instantaneamente, ergueu-se e saiu correndo, rumo à origem do grito. Ao dobrar o corredor, porém, esta-cou diante da cena que viu. Numa confusão de lasers e lutas corporais, homens de ambas as raças brigavam furiosamente, umedecendo o chão antes limpo, com líquidos azuis e amarelados. Corlecianos lutavam com seus inimigos pálidos e, entre eles, Ariana avistou Pauler, que se defen-dia como podia enquanto lutava com um homem da nave. Rapidamen-te, correu em seu socorro, mas sem ferir o adversário, limitando-se a separá-los, dizendo:

- Não lute com ele! São nossa última esperança!- O quê? Komhak vai nos matar!- Não estamos mais ao lado dele! Temos uma saída!O rapaz ainda fitou-a incrédulo e surpreso; seu olhar profundamente

modificado revelava uma tímida e orgulhosa gratidão. Ariana sentiu-se presa àquele olhar, hesitando nos sentimentos confusos. Não havia pa-lavras para explicar aquilo...

Quando por fim resolveram voltar à luta por seus ideais, não obede-ceram mais às ordens que antes lhe foram dadas. Avançaram contra os corlecianos com a fúria e a honra no sangue acaciano. Ao ver aquilo, Komhak postou-se em frente à garota, perguntando furioso:

- O que pensa que está fazendo?- Estou lutando contra os meus inimigos. - disse ela, decididamente.

Ele fitou-a enraivecido, avançando no mesmo instante sobre a garota, que se desviou agilmente, pronta para a luta. Chutava e socava-o como podia, rolando enfurecidos pelo chão ensaguentado, até que por fim,

Page 75: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

75

Komha a imobilizou.- Não acha que é frágil demais para lutar, princesa?Ela nada disse, com a atenção voltada para outro canto, onde avis-

tou o oficial que se esbarrara nela momentos atrás; um corleciano preparava-se para atacá-lo de surpresa. Ariana tentou em vão soltar--se, sentindo um nó aflito na garganta. Komhak o percebeu e disse, sorrindo prazerosamente:

- Não vai conseguir salvá-lo. E ele vai morrer...- Não!...De repente, algo acertou-o fortemente na cabeça, fazendo-o soltá-la

no ato. Ariana voou como uma flecha, armando-se de seu laser e rapi-damente matou o corleciano que acabava de saltar sobre o oficial. Este fitou-a espantado, para então voltar os olhos claros na direção da garota, que desaparecia dentro da multidão irada, rumo a Pauler, que fitou-a com o sorriso branco.

- Conseguiu salvá-lo?Ariana limitou-se a afirmar com a cabeça, atordoada pelas emoções.

Sem se conterem mais, correram a unir-se num caloroso abraço, alme-jado há tanto tempo... A troca fortalecedora de calor energizou-os a prosseguirem. Mas, de repente, Ariana soltou um grito latejante de dor, sentindo o afiado punhal de Komhak dilacerar sua carne.

- Cedo demais para comemorar! - disse o corleciano. - Ainda não terminamos!

Agarrou-a fortemente pelas costas, disposto a perfurá-la até a morte, não fosse por um tiro anônimo que o acertou de raspão no braço direi-to, fazendo-o largar a arma. Logo, porém, levantou-se de novo, avan-çando na direção da fugitiva e disparando. Ariana teve apenas o tempo de se desviar o mínimo, sendo atingida no lado do pescoço. Tombou pesadamente ao chão, segurando ao máximo o sangue que insistia em sair. O número de corlecianos decaiu repentinamente. Não viu mais Komhak. Um grupo de homens lívidos e manchados de sangue azul--amarelado correu ao seu socorro, acompanhados das duas Artux, que a fitavam atemorizadas. Uma névoa escura cobriu seus olhos cansa-dos, que se fecharam desolados.

Page 76: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

76

21

Ariana acordou preguiçosamente, relaxada sobre um leito macio e limpo. Um leve odor medicinal penetrou em seus pulmões, aliviando-a. Olhou ao redor e surpreendeu-se em se ver entre várias outras camas, todas ocupadas por feridos da batalha. A moça penalizou-se frente a tal cenário, contemplando os mártires que tão bravamente resistiam à dor. Uns com certeza levariam consigo cicatrizes inevitáveis, porém, nem a mais hedionda deformação esconderia a beleza daqueles seres, cujos olhos cor anil espelhavam a alma nobre.

Lembrou-se então de Pauler, Agnes e Paulie, perguntando-se se esta-riam bem. Tentou levantar-se a fim de ir procurá-los, mas logo alguém a deteve delicadamente. Ariana viu o que parecia ser o médico. Ele sen-tou-se à beira de sua cama e disse, com um amistoso sorriso:

- Fique deitada, precisa descansar. Escapou por muito pouco, jovem; mais um pouco e não estaria aqui.

Ariana estremeceu e, quando quis dizer algo, a voz não saiu. Sentiu uma forte dor no pescoço e percebeu estar envolto em macias faixas medicinais.

- O laser atingiu suas cordas vocais, desviando por pouco da veia principal. Perdeu muito sangue, mas agora está tudo bem. Mas não vai poder falar durante algum tempo.

Ariana desviou os olhos tristemente, ao tempo em que um outro ho-mem, mais baixo, aproximou-se indagando algo ao médico. Ariana sur-preendeu-se ao ver que o homem do esbarro viera junto. Trocaram algu-mas palavras e o mais baixo sorriu satisfeito, aproximando-se da moça.

- Devo agradecer-lhe pelo que nos tem feito e gostaria de saber por que ficou ao nosso lado na batalha.

O médico disse-lhe algo e ele de repente diminuiu o sorriso, decep-cionado. E falou, sem perder todo o otimismo e simpatia:

- Gostaríamos de saber mais sobre você. Poderia escrever suas respostas?Ariana afirmou com a cabeça, recebendo uma tábua polida com uma

folha em branco presa, junto de um fino e comprido cilindro com tinta na ponta sempre úmida. À medida que eles iam lhe fazendo as pergun-

Page 77: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

77

tas, iam desvendando a fantástica história da princesa Ariana, desde que sonhara com o corleciano até a abordagem à nave deles. Ao findarem, entreolharam-se assombrados, exclamando:

- Uma princesa!- É provável. - disse o acompanhante. - Já ouvi falar do reino de

Acácia; é famoso por seus mitos e lendas. O povo lá, porém, ainda é muito primitivo.

- Poderíamos levá-la de volta ao seu reino. - sugeriu o médico. Ariana não pode conter sua alegria diante de tal oferecimento, logo percebida pelo trio.

- Antes, porém, tenho que dar um jeito em Komhak. Depois, então, iremos para Acácia.

Ariana sorriu extasiada, mas escreveu no papel:“Ainda não sei seus nomes.”- Oh! Mas claro! - disse o mais baixo. - Sou o capitão Levik, este é o

doutor Melok e meu companheiro é o tenente Alek.Ariana sorriu, acenando reverentemente a cabeça, com atenção espe-

cial e discreta ao elegante tenente, firme em sua postura.- Muito bem. - disse, por fim, o capitão. - Voltemos agora para a ponte.

Descanse, princesa, e boas melhoras. - e já iam saindo, quando Ariana saltou do leito sem que o médico pudesse impedir, caindo ajoelhada frente a Alek, tomando-lhe as mãos com a cabeça baixa. O tenente com-preendeu a mensagem e disse amavelmente, fazendo-a levantar-se:

- Está tudo bem, Alteza, não tem que se desculpar.

Page 78: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

78

22

Depois de refeita, com seus ferimentos devidamente cuidados, foi per-mitido à jovem sua permanência na ponte de comando. Ariana sentou--se a um canto, observando com inesgotável interesse todo o trabalho de pilotagem e navegação dos oficiais. O próprio capitão fazia questão de explicar à nobre visitante todos os seus equipamentos e monitores, sem esquecer por um instante sequer a imensa janela de controle, que trazia aos olhos abismados da moça a bela visão do vácuo pontilhado de seres celestes. Ariana não cabia em si de fascinação, afundando o capitão em seu curioso mar de perguntas. Alek se divertia com a curiosidade da jo-vem, contendo-se para não rir ao vê-la maravilhada com o vagalhão de novidades que aquele mundo tão evoluído lhe apresentava.

Em seu canto, sentada de encosto à parede, deixava a mente voar até Acácia, onde seus pais ficaram, sem saberem o que se sucedeu com ela. Só de pensar em sua família tão querida, um gostoso calor embalou-a ao mundo intocável dos sonhos, adormecendo ao doce som mágico das sereias, de Allure. Seus olhos cerrados umedeceram-se com o aperto de saudade de seu coração acaciano. Logo em breve os veria, era isso que importava; eles e todo o seu belo e místico reino.

Entretanto, Komhak ainda vivia, portanto, não poderia ficar em paz enquanto ele ainda representasse uma ameaça ao seu reino. Precisava encontrá-lo, agora não por curiosidade, mas por uma necessidade es-sencial de sobrevivência. Enquanto ele soubesse a localização de seu mundo, este estaria em perigo real e iminente, sujeito às inconveniên-cias de sua tardia evolução. Mais do que nunca, era preciso pô-lo fora de ameaça e perigo.

E em seu sono leve e embalado pelas canções de Acácia, uma voz co-nhecida e meiga como a luz da aurora lhe falou:

- Não desanime, princesa. Seu reino pacífico a aguarda, a luta está no fim. Resta-lhe um último desafio vital; dele dependerá sua paz e sucesso em sua missão. Eu sempre estarei com você!

A calorosa voz aos poucos se dissipou, deixando ainda o suave aroma

Page 79: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

79

mágico das fadas, trazendo à jovem as energias primordiais à luta que estava por vir.

- Alteza! Alteza...Ariana acordou surpresa, piscando os olhos perplexos e encantados

com o inesperado ocorrido. Olhou vacilante para o tripulante que a cha-mara, envolta na névoa mística que ficara de seu sonho.

- Temos três prisioneiros conosco que dizem conhecê-la. Quer ir vê-los?A moça logo afirmou ansiosa, culpando-se por ter se esquecido de

seus novos amigos. Rapidamente se levantou, seguindo o homem que a conduziu até o setor de celas. No caminho, o tripulante não se conteve de entusiasmo, perguntando sem parar:

- Você é mesmo uma princesa? Daquelas que moram num gigantesco castelo cheio de ouro? Você comanda seu exército? Já ouvi muitas len-das e histórias sobre seu reino, cheio de perigos, fadas e dragões... Ainda existem esses espécimes em seu reino? Poderei vê-los?

Ariana sorria-lhe divertida, afirmando constantemente. Quando por fim chegaram à cela onde estavam os três Artux impacientes, Pauler aproximou-se com um sádico sorriso, dizendo com o legítimo brilho nos olhos negros:

- Agora sei como se sentia em nosso castelo.Ariana sorriu fracamente pensando: “Pauler está de volta.”- Espere só até chegarmos em casa... - disse Agnes, fitando-a indife-

rente e com um desdenhoso sorriso. E como a princesa nada dizia, o rapaz diminuiu o sorriso, perguntando:

- Como é? Não vai falar algo?Ariana logo apontou a garganta enfaixada e ele adivinhou:- Não pode falar? Feriu-se?Ela fez que sim com a cabeça. Os três entreolharam-se, indagando:- Foi Komhak?Ela novamente afirmou e o rapaz perguntou, sem conseguir esconder

o temor:- Ele ainda está vivo?Ariana afirmou, mas disse por meio de gestos, como que para tran-

quilizá-lo ou deixar claras as suas intenções: “Eu vou matá-lo”.- Ah, é? Como? - perguntou Agnes, sem acreditar.Ariana não soube responder, limitando-se a desviar os olhos ain-

Page 80: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

80

da decididos. O tripulante assistia à cena impressionado, quieto ao fundo do corredor muito limpo. Até que Pauler resolver quebrar o pesado silêncio:

- E você disse que esses caras nos ajudariam. O que eles estão fazendo?Ariana sorriu iluminada e seu sorriso contagiou-os, trazendo uma

só resposta:- Acácia. Eles vão nos levar de volta?Ariana não pode conter-se de alegria ao vê-lo sorrindo de novo, com a

mesma graça de sempre. Porém, o rapaz novamente diminuiu o sorriso, perguntando com temor:

- E Komhak?Ariana indicou novamente a promessa em forma de gestos, com a

certeza firme no olhar.- Quem lhe deu essa ideia?“Allure”, disse Ariana, com esforço através dos lábios. O nome como

que os iluminou de esperança, contagiados pelo forte brilho no olhar da moça.

- Ela falou com você? Ela está aqui?“Ela está conosco”, disse Ariana, por meio dos seus gestos improvisa-

dos. O tripulante não se continha em seu pasmo, observando tudo com interesse. Entretanto, decidiu interromper, alertando que já era tempo de voltarem à ponte. E, depois de soltar o trio, seguiram todos juntos. O tripulante novamente teve seus momentos de empolgação, ouvindo boquiaberto as histórias que os Artux lhe contavam.

Page 81: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

81

23

Sem o mínimo sinal de Komhak, a viagem prosseguia sem interrup-ção, rumo ao tão esperado Reino de Acácia. Alguém sempre vigiava os monitores, pronto para dar o menor alerta. O silêncio entre todos jus-tificava a total atenção à janela e aos vigias, exceto pelos irmãos Artux, incapacitados de permanecerem quietos. Trocavam piadas ou planos durante toda a viagem, rindo e conversando sem parar, sentados a um canto da ponte. Ariana permanecera junto à enorme janela, fitando o nada e contemplando o infinito com os sonhos e dúvidas no olhar ques-tionador. Seus pensamentos voavam longe, interrogando-se acerca de sua família, de Allure, das sereias, do ermitão... Indagava-se se a paz vol-taria a resplandecer nos corações acacianos, se tudo voltaria a ser como antes, se suas aventuras continuariam... Se os Artux voltariam a raptar sua irmã, torturando-a com suas diabruras... Sem obter uma resposta sa-tisfatória, a jovem guerreira volveu suas duas safiras em direção ao trio, que se ria em suas travessuras. Uma luz de contentamento acendeu-se em seu coração reconfortado ao vê-los de volta à sua graça e zombaria, depois de tanto tempo na melancolia e desolação.

Seus olhos acabaram por encontrar os de Agnes, que a fitou fria e orgulhosamente, com seu sorriso enigmático. Ariana logo os desviou, pensando com lástima: “Ela ainda me odeia... Quisera saber por quê...”

De repente, o piloto anunciou, sobressaltando a todos:- Planeta Alantra à frente.Ariana ergueu-se num impulso só, como que atingida por um

raio, correndo até o capitão, que lhe disse, sem poder esconder sua própria surpresa:

- Aí está seu planeta, minha jovem.- Chegaremos em Acácia dentro de dois centilhanos. - informou

o piloto. Ariana fez gestos que queria escrever e, após atendido o seu pedido, escreveu em uma folha branca, logo lida pelo capitão: “O que são centilhanos?”

- Um centilhano equivale a meia hora em seu mundo. - explicou ele -

Page 82: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

82

Mais uma hora e estaremos lá.“Onde está Komhak?” tornou a perguntar ela, deixando transparecer

sua tensão.- Não vemos a nave corleciana. - mais uma vez informou o piloto,

após ser indagado pelo capitão. - Deve estar do outro lado do planeta.- Será perigoso descermos com a nave ao planeta. - decidiu o capitão.

- É melhor ficarmos com ela aqui.- Capitão, mensagem corleciana. - alertou um oficial de súbito.- Transmita.Pelos fones da ponte, a voz forte e sádica de Komhak soou, desafiado-

ra como nunca:- Pronta para a nova luta, princesa? - Ariana sentiu seu sangue gelar,

embora permanecesse impassível. - Não pense que acabou, ainda não estou satisfeito. Se ainda tem sua valentia correndo por suas veias, venha me encontrar em seu reino, no castelo dos Artux. Se não aparecer, direi adeus aos seus pais por você.

Ariana estremeceu atemorizada, pondo-se a escrever freneticamente. O capitão Levik logo tomou-lhe o papel, lendo a escrita feita às pressas:

“Por favor, deixe-me no Vale das Sombras e eu me encontrarei com ele. Não se preocupe, darei um jeito nele; tenho que fazer isso ou ele vai matar minha família”. Levik fitou-a surpreso e vacilante em seus pensa-mentos temerosos, perguntando:

- Quer mesmo fazer isso? Nós mesmos podemos fazê-lo.Ariana negou decidida, com o olhar resoluto que impressionou o oficial.- Está bem; nós a transportaremos para lá.

Page 83: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

83

24

Com a alma cheia de gratidão e contentamento, tomada de temor e ansiedade, sentiu-se novamente ser dissolvida, envolta em uma densa constelação inquieta, como se sua desintegração fizesse parte das ne-bulosidades cósmicas que a cercavam. Seu coração acaciano pulava de alegria ao sentir seus pés tocarem de novo o chão sólido de sua terra, vibrando com a fantástica energia que a mantinha viva. Prometeu a si mesma que jamais voltaria a deixar seu reino novamente, certa mais do que nunca de que era sua missão de vida protegê-lo e cuidar dele até o fim, quando então sua obrigação já não seria mais necessária.

Nuvens pesadas cobriam o sol atemorizado com o estranho invasor que ameaçava sua existência. Apressadamente, Ariana dirigiu-se até o sinistro castelo, cujas ruínas nunca pareceram tão desoladoras... O si-lêncio atormentador escondia o desafio mortífero, oculto atrás das pa-redes imundas que se recusavam a lhe dar o menor sinal de Komhak. Estranhamente, insetos e aranhas aterradoras escondiam-se nas fen-das ao longo do sombrio corredor, como que presumindo o perigo imprevisível... Os passos da jovem soberana ecoavam surdamente, en-quanto seus olhos buscavam nervosamente por qualquer vestígio do corleciano. O coração batia descompassado, ansioso por acabar tudo aquilo de uma vez.

Do amplo salão fracamente iluminado, a quietude não era menor. Uma gelada brisa vinda de não se sabe onde fazia esvoaçar os trapos sujos que um dia foram lindas cortinas. Ao fundo, os três tronos em-poeirados jaziam sem vida em seu canto, esperando melancolicamente pela volta de seus donos. Ariana ainda podia se lembrar do dia em que os conhecera, tão bizarros e risonhos; a primeira vez em que viu Pauler... Um aperto no peito sobreveio com os pensamentos distantes, fazendo--a sorrir fracamente, consciente de que ainda poderia contemplar suas faces, apesar das constantes traquinices...

- Estou aqui, Ariana! - disse de repente a zombeteira voz de Komhak, vinda do fundo do salão, sobressaltando-a. - É muito corajosa em ter

Page 84: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

84

vindo enfrentar sua morte.Ariana dirigiu-se à origem da voz, sem medo e firme em sua resolu-

ção. Sabia que não conseguiria evitar uma luta repleta de ira e sangue, mas, se não o fizesse, não duvidaria de sua brutalidade contra seus pais. Estremeceu diante de tal pensamento, chegando decididamente ao la-boratório dos Artux, encontrando lá o corleciano a sorrir perversamen-te, revelando a pressa em feri-la até a morte. Com o singelo punhal que trazia, Ariana aproximou-se sem vacilar; Komhak fitou a insignificante arma e riu, dizendo:

- Vai tentar me matar com isso? Não vai dar nem para o começo...Ela nada disse, permanecendo firme em sua posição, a fuzilá-lo com

o olhar inflexível. Komhak logo o percebeu, dizendo:- Bem vejo o estrago que fiz em sua garganta, não pode falar. Mas a

certeza de sua decisão está bem clara em seu olhar. Como quiser, Alte-za. - colocou lentamente a pistola laser em seu coldre. Com um sorriso nos lábios, retirou da bainha o imponente facão corleciano, que reluziu diante dos olhos de Ariana. - Não quero que seja rápido... Quero ter o prazer de fazer isso com minhas próprias mãos.

Avançou ferozmente em sua direção. Ariana rapidamente se prepa-rou para o confronto, brandindo agilmente o primitivo punhal. Faíscas aterrorizadoras fugiam das armas que se chocavam incessantemente, enquanto percorriam o pequeno vestíbulo em busca de maior espaço.

- Está com medo, princesa? Mostre-me sua força, se é que ainda a tem...Em resposta furiosa, Ariana socou-o fortemente na face, agora con-

torcida pela raiva. Kohmak rangeu os dentes, enfurecido, saltando so-bre ela e derrubando-a ao chão ao tempo em que elevava o facão ao ar, pronto para golpeá-la. A moça segurava seu pulso com toda a força que conseguiu juntar, vendo a pontiaguda lâmina reluzir frente ao seu pescoço. Deu, por fim, um poderoso chute entre as pernas grosseiras do corleciano, conseguindo desvencilhar-se. Ele, porém, logo a agarrou pelas suas pernas, fazendo-a voltar ao chão; Ariana lutava e esperneava como selvagem, com o corleciano sobre si. Até que, com a reles arma que trouxera, rasgou-lhe a carne que encobria as costelas, para então se soltar, afastando-se às pressas. Vindo ligeiramente ao seu encalço, Komhak puxou-a desumanamente pelos cabelos soltos, segurando com vigor suas mãos.

Page 85: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

85

- Não adianta resistir, Ariana! Se eu não puder tê-la, então ninguém mais a terá!

Largou longe o facão, segurando-a junto de si enquanto que a empur-rava na direção da cápsula de vidro, coberta de pó após tanto tempo fora de uso. Chegando até a máquina de controle, subiu a rústica alavanca até o ponto máximo, denominado “morte”, ante os olhos apavorados da moça, que resistia inutilmente nos braços de aço. Komhak conduziu-a à força até a entrada da cápsula, mas ela recusava-se a entrar, segurando--se como bem conseguia através das pernas e pés livres. Komhak soltou uma das mãos a fim de ligar a máquina; Ariana aproveitou a oportuni-dade para arrancar da cintura do corleciano a sua arma laser. Perceben-do o que ela acabara de fazer, Komhak voltou-se dando-lhe um murro final, que a fez tombar dentro da cápsula. Mas antes que caísse, ainda no ar, Ariana conseguiu apontar a arma e apertar seu gatilho. A distância curta não permitiu que ela errasse o disparo. O feixe de laser atingiu o corleciano exatamente no peito. O cruel ser desapareceu desintegrado com um berro ensurdecedor, enquanto que Ariana sentia serem dissol-vidas todas as suas forças e energias, levadas como pó ao vento. Como que esvaziada de sua vida, Ariana caiu sem sentidos no fundo da cápsu-la fria, quando Pauler precipitava-se sala adentro, paralisando-se ater-rorizado diante de tal quadro. Uma fina e tímida lágrima escorreu pela face lívida, cujos olhos pretos e profundos se arregalavam sem querer acreditar no que viam.

Page 86: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

86

25

Sem o seu comandante a bordo, a nave corleciana, que se mantivera todo o tempo às escondidas, agora representava uma presa frágil aos lavronianos, o pálido povo careca, de olhos cor do céu e com os finos lábios prontos a sorrirem amavelmente. Rapidamente, a nave maligna foi capturada e aprisionada, para ser levada a julgamento quando che-gassem de volta ao Distrito Interplanetário. Komhak e seus cúmplices tinham uma longa carreira criminal, incluindo diversos assassinatos, além de tráficos ilegais e escravidão de povos primitivos, desconhecidos ainda pelo Distrito. Esses não incomodariam mais por pelo menos 50 Anos-estelares...

Criada pela união de vários povos de diferentes lugares, a Aliança Interplanetária era um pacto de paz e solidariedade entre todos os participantes em um juramento de ajuda mútua e toda descoberta de-via ser devidamente divulgada. Os lavronianos eram um dos diver-sos povos que compartilhavam da Aliança, propagando a paz e justiça entre o pouco do universo que conheciam. Por ser em Lavron a base do Distrito, suas responsabilidades diplomáticas eram ainda maiores, com a licença de posse de sua própria frota estelar, incumbida de fis-calizar a ordem no limite de seus poderes. E enquanto o bom senso e justiça fossem respeitados e mantidos, o pior estaria longe de invadir a serenidade de nações, uma vez controlado o perigo e colocada em ação as boas intenções e planos positivos.

Jazendo sobre uma fria mesa de metal, no pequeno laboratório, Ariana mal encontrava forças para se manter viva. Respirava com dificuldades, sem muitas energias para se autossustentar. Depois de ser brevemente examinada pelo doutor Melok, a brava princesa perguntava-se se ainda correria pelos campos novamente, se voltaria a subir no Pico da Neblina para lá sentar-se e contemplar todo o seu reino, respirar o puro ar de Acá-cia, sentir a brisa tocar seu rosto suado, ouvir o canto hipnotizador das sereias, espiar as danças das ninfas em meio à floresta... Lágrimas quentes transbordavam dos olhos muito azuis, sedentos de vida, espelhando toda

Page 87: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

87

sua alma destemida, seu coração amante...- Não há o que fazer. - disse o doutor Melok, deixando transparecer

sua tristeza e angústia. - Seu corpo está sem energia para se nutrir, ela está definhando cada vez mais...

- Não há uma maneira de lhe conceder energia? - perguntou o capitão, inquieto.

- A máquina não funciona em sentido inverso... - lamentou Pauler, aflito. Sua palidez natural tornou-se excessivamente acentuada, com os olhos vazios, sem brilho ou vitalidade. Culpava-se mais do que nunca por ter criado a maldita máquina, fútil e agora odiada como nunca. Lamentava-se como jamais o fez, prometendo se castigar caso Aria-na não vivesse. Pela primeira vez após muitos anos, ele vertera uma lágrima sincera e inevitável, revelando sem embaraço seu lado sensí-vel. Agnes e Paulie não puderam esconder sua surpresa com a atitude do irmão, mas elas próprias também derramavam seus fios de cristal, esperando ansiosamente por uma resposta positiva do médico lavro-niano. Um imenso peso decaíra sobre si, condenando-se por tantas maldades feitas àquela que lhe salvou a vida e a liberdade, trazendo-os de volta à terra amada. Agora, em seu laboratório repleto de artigos malévolos, questionavam-se acerca de sua inexplicável saga de diabru-ras, antes tão divertidas e emocionantes...

- Quisera poder fazer qualquer magia para fazê-la voltar... - murmu-rou Paulie, sem ousar fitar alguém, com os olhinhos negros inundados. Pauler sobressaltou-se iluminado, assaltado por faíscas perseverantes nos olhos que subitamente se encheram de vida.

- Há um meio! - disse para todos, despertando um sorriso há muito desaparecido - Há alguém que pode trazê-la de volta, dar-lhe toda ener-gia do mundo e recheá-la de força!

- Quem? - perguntaram, a uma só voz, tomados de espanto e interrogação.- Allure! Só ela pode ajudar Ariana agora! - falou ele, de volta com

sua graça e alegria, sorrindo sem parar - Vamos levá-la à floresta, lá onde ela vive.

- Sim, Allure! - lembraram-se as duas, contagiadas pela esperança do rapaz.- Quem é Allure? - perguntaram os lavronianos, sem compreender o

motivo da empolgação que os reacendera.- Venham e verão!

Page 88: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

88

Mais do que nunca, a floresta estava cheia de alegria e satisfação ao ver seus queridos habitantes de volta, saudando-os com a mais bela orques-tra que já tocara. O sol resolveu por fim se mostrar, aliviado e pronto para novamente brilhar e aquecer. Seus cálidos raios penetravam timi-damente por entre as frondosas árvores, iluminando as fagulhas mági-cas deixadas pelas fadas que por ali antes passaram. Um doce aroma da fauna e da flora encantava ainda mais o lugar, exaltando o verde vivo da vegetação, sempre ativa, resplandecendo contente como nunca...

Com inexprimível felicidade, os Artux pisaram no fértil solo da flo-resta, forrado pelo veludo verde, admirando extasiados cada detalhe do belo cenário que os cercava, como se nunca antes tivessem estado ali. Pauler levava nos braços o corpo fraco de Ariana, respirando com vontade o ar divino que inundava seus pulmões, embriagando-o com o amor àquela terra, ao seu mundo. Os três lavronianos não se cansavam de contemplar maravilhados o paraíso que os cercava, deleitando-se com cada planta, cada flor ou animalzinho... Tudo ali merecia especial atenção, cheio de enlevos prazerosos.

Na clareira da floresta, onde o sol despejava sua luz sem parar, uma cintilante constelação dançava graciosamente no ar, embalada por fadas invisíveis. Pauler bem sabia quem estava por trás da cintilação e se apro-ximou da área banhada pelo sol, depositando cuidadosamente a jovem sobre a relva macia.

- Por favor!... - murmurou, de joelhos, ao jogar fora seu orgulho - Só você pode salvá-la; eu sei que pode!... Por favor, traga-a de volta. Dê-lhe toda a força que ela merece. Precisamos dela!...

A insistente lágrima teimou em escorrer, deslizando suavemente pela face do rapaz até atingir a grama viçosa, desaparecendo nas en-tranhas da terra. Pauler levantou-se reverentemente, recuando deva-gar enquanto buscava com os olhos ansiosos qualquer sinal da rai-nha-fada. Enquanto contemplava o corpo da garota inerte no chão, sentia uma tímida chama de gratidão por sua valentia, nobre e per-severante, que o salvara do pior contra Komhak. Com uma revoada, inúmeras lembranças invadiram-no, fazendo-o sentir-se ingrato e mais culpado que nunca. Chegou a lamentar o dia em que a conhe-cera. Talvez tivesse sido melhor se ele nunca a tivesse visto, assim não a teria torturado e maltratado tantas vezes. Antes jamais tivesse

Page 89: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

89

criado aquela vil máquina. Um dolorido aperto surgiu em seu peito, sufocado por tantas lamentações.

Sentado sob uma acolhedora sombra, questionava-se o que faria da vida, sem alguém para lhe trazer novas aventuras, sem alguém para compartilhar traquinices... Pauler sempre via a vida como sendo um longo período de travessuras malévolas; fazer os outros sofrerem era a sua diversão predileta. Para Agnes, nada era mais divertido e emocio-nante do que torturar suas vítimas, arrancar-lhes dolorosos gemidos, mas nunca matar. Não haveria a menor graça se sua diversão morresse. Podia fazê-la sofrer até pedir clemência, mas matar alguém nunca fizera parte de seus planos. Principalmente Ariana, sua vítima favorita. Paulie apenas ajudava no necessário. Nunca recusava participar das diversões dos irmãos, mas seu principal entretenimento estava entre os insetos do castelo putrefato. Não foram poucas as vezes em que os irmãos a viram brincar ou conversar com seus amiguinhos repugnantes, acariciando--lhes ou dando-lhes de comer. A moça não tinha outros amigos senão os irmãos e seus bichos, estes os preferidos, com os quais passara os melhores momentos de sua vida... Agora, entretanto, tudo parecia ter perdido a graça, não havia mais diversão em fazer alguém sofrer. Talvez fosse porque já tivessem sofrido demais com Komhak, não sabiam. Só sabiam é que não tinham mais interesse em tais distrações, maldades ou repugnâncias. Tudo o que queriam agora era paz e liberdade, vivendo em seu canto, com suas próprias vidas, divertindo-se com quem quises-se se divertir com eles...

Sentados sob a imensa árvore que os embalava rumo a um sono re-compensador, começavam a ter um ângulo novo de visão, uma nova perspectiva de vida. Contudo, desnorteados com a súbita mudança que se operava neles, sentiam-se confusos e incertos, sem saber ao certo o que seria deles, depois que Ariana voltasse ao seu castelo. Provavelmen-te, nunca mais iria querer saber deles, talvez nunca mais voltasse a lhes olhar nos olhos. Passariam a não existir mais um para o outro...

Levado por seus sonhos longínquos, Pauler deixava a imaginação fluir livremente, vendo-se em seu castelo forte e resistente, erguido com a esperança e mantido com o amor. Não era mais um lugar imundo e repudiado, mas um lindo local por onde todos gostariam de passar, onde parariam para contemplar o belo castelo, limpo e reformado. E,

Page 90: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

90

em meio à organização e asseio, faria Ariana feliz, passeando pelos cor-redores bem iluminados e cantarolando, ou então pelos jardins floridos que faria para ela, onde poderia aprender o manejo de armas e lutas. De-fenderiam juntos seu lar e seus amigos, lutando pela justiça e bem-estar de Acácia. Agnes e Paulie poderiam morar com eles, afinal, o castelo era delas também. Viveriam todos juntos, expulsando para sempre de suas vidas toda a melancolia e tédio... A felicidade já não era um sonho tão distante e difícil.

Deitada maciamente sobre o tapete verde da flora, Ariana sentia-se tocada suave e insistentemente, embora não sentisse nenhum contato físico. Sabia quem era, deixando-se ser tocada, como que abençoada, aprovada em sua missão. Em seu corpo rígido, uma inesgotável energia pareceu voltar a rolar em suas veias, pronta para ser gasta para então se renovar mais uma vez. Uma força sem limites voltou a rechear seu corpo saudável, vigoroso e preparado para novas aventuras. Sua alma como que reciclou, após passada a limpo e restaurada por sua melhor e eterna amiga invisível. Abrindo os olhos de safiras para o mundo que a cercava, não conseguiu reter um sorriso iluminado de ternura e gra-tidão, revelando toda a felicidade que lhe ia na alma finalmente livre.

Erguendo-se facilmente, olhou ao redor sem se conter de satisfação, quando de repente veio-lhe aos ouvidos aquela mesma voz, mais doce e meiga que nunca:

- Sua coragem e perseverança nos salvaram, Ariana. Obrigada por ter nos livrado do perigo; Komhak poderia ter destruído para sempre nosso reino. Você não se esqueceu de nós. Agora, estamos novamente juntos e felizes, livres para vivermos nossas vidas. Acácia render-lhe-á sempre homenagens pela sua valentia e honra.

- Sem você eu jamais teria conseguido, Allure. Se fui bem sucedida, foi por sua causa; serei sempre grata por sua proteção e força. Obrigada por estarmos de volta ao nosso lar, por todos estarmos bem... Sem você não teríamos chegado onde agora estamos. Chame-me sempre que precisar, pois minha missão é a de ajudar e proteger outros mortais.

- Sempre precisaremos de você, Ariana. O reino inteiro sempre precisará!...A bela voz desapareceu, levando junto as cintilações inquietas que

sempre a acompanhavam. Ariana ainda fitava o pedaço de céu visível que a espreitava por entre as copas das árvores, certa de que foi para lá

Page 91: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

91

que Allure se dirigiu... Imensamente feliz e aliviada, a princesa voltou--se à floresta que se condensava às suas costas. Qual não foi sua surpresa ao ver os três Artux a fitarem-na espantados e interrogativos. Ariana inicialmente ficara feliz ao vê-los sãos e salvos, mas diante de tal pasmo, surpreendeu-se e quis perguntar o que acontecera, mas a voz ainda não lhe saía; sua garganta doía com o esforço.

- Já pode falar?! - disseram eles, ao que a garota negou, apontando o pescoço enfaixado.

- Vamos lá! Ouvimos você conversar com alguém! Era Allure, não era? - adivinhou Pauler, sem se conter de empolgação.

Ariana afirmou, mas continuou a salientar que não podia falar ainda. Os três entreolharam-se confusos, logo se lembrando de que ela estava de volta, com toda a sua força e energia. Nenhum deles pode conter o sorriso de alívio, apressando-se em se abraçarem calorosamente, entre risos e agradecimentos. Nunca antes estiveram tão unidos como agora...

Page 92: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

92

26

Como que perseguida pelo pior dos dragões, Ariana disparou cor-rendo para o Vale Verde, em frente ao lugar onde antes estivera o Cas-telo Cisne de Marfim. Não esperava ver algo além de seus pais e irmãs, abraçá-los fortemente e dizer que nunca mais alguém iria ameaçá-los. Que tudo estaria muito bem daqui por diante. Suas vidas estariam bem guardadas, enquanto ela vivesse...

Logo, porém, estacou paralisada de assombro e encanto. Em lugar das fúnebres ruínas cercadas de cinzas e tristeza, via-se um gigantesco caste-lo, branco como as nuvens, refletindo majestosamente a luz do sol. Cheio de torres, terraços e vitrais, deixou a princesa guerreira boquiaberta de espanto, fascinada por sua beleza e interrogando-se como tinham-no construído. Sua felicidade foi ao auge quando, saindo às pressas do cas-telo, duas moças belíssimas gritavam sorridentes como nunca:

- Ary! Ary está de volta! Oh, Ary!Ariana não pode conter-se de emoção ao rever suas queridas irmãs,

correndo a abraçá-las vigorosamente, cobrindo-as de lágrimas. Ambas vestiam seus mais belos trajes, com as coroas resplandecendo em seu ouro bem polido. Logo, aproximou-se também um belo casal, ricamen-te vestido que, ao ver sua valente filha de volta, sorriu felicíssimo, unin-do-se num fervoroso abraço cercado de lágrimas quentes e aliviadas. A família toda reuniu-se no afago, realizada com a volta de sua protetora fiel e tão querida. Estranharam, porém, ao vê-la quieta, sem dizer pala-vra, perguntando:

- O que há, Ary? Por que não diz nada?Ariana logo apontou seu ferimento no pescoço, e Ariel adivinhou:- Não pode falar?A irmã concordou com a dedução, fazendo as duas princesas se en-

tristecerem com a revelação. Sem demora, souberam que algo terrível fê-la perder a voz com o ferimento, mas o bom rei logo afastou o clima de pesar, dizendo enquanto devolvia os sorrisos às faces juvenis:

- Ela está de volta, não está? Então, vamos comemorar!

Page 93: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

93

Ariana logo concordou animada, mas fez menção dos seus amigos, os lavronianos e os Artux, que se mantinham respeitosa e hesitantemente a distância, admirando maravilhados o belo cenário que os cercava. A fa-mília instantaneamente, assim que viu os Artux, recuou temerosa e com antipatia, porém, ela fez questão de levá-los consigo, assegurando que agora eram amigos, que não havia mais rancor ou maldade entre eles. Ainda incertos, concordaram, entrando juntos para a comemoração. Essa seria uma longa e festiva noite, repleta de intermináveis conversas e alegrias.

Durante o jantar, Ariana pedia freneticamente que Pauler contasse suas aventuras aos pais, ao que o rapaz imediatamente atendia. Havia muito o que falar e pareciam não ter tempo suficiente para tudo. Os ouvintes petrificavam-se com a narração dos perigos enfrentados pelos jovens e os tripulantes, estremecendo com cada detalhe engrandecido, com cada minuto de tensão passado. Ao fim da narração dos heróicos acontecimentos, o rei concluiu calmamente:

- É impossível traduzir em palavras a minha gratidão pelo que fize-ram, todos vocês, que salvaram nosso reino da cobiça e destruição des-ses corlecianos. Vejo, também, que os irmãos Artux contribuíram para o sucesso do salvamento, e muito me felicita saber que nossa amizade permanecerá daqui para frente. Agora, poderemos terminar nossas vi-das com paz e liberdade, unidos como uma grande família.

Todos concordaram felizes, erguendo um brinde à alegria e sucesso de sua volta. Subitamente, porém, Ariana se lembrou do castelo e gesti-culou apressadamente às irmãs, que sem dificuldade entenderam:

- Ariana quer saber como construímos o castelo. - disse Arabela ao pai, sem conter o riso de satisfação.

- Oh, é claro. Essa foi a parte mais difícil, mas tivemos muita ajuda de aldeias vizinhas. Recebemos muitos presentes e apoio de amigos de outros reinos, além de aldeões que ajudaram a construir o castelo e hoje trabalham aqui, com lar e comida. Demorou muito, mas todos ajudaram a terminar o serviço com capricho e perfeição. A boa fada Allure também deu sua contribuição, nunca deixando faltar força de vontade e energias.

Para completar a noite, fizeram um grande baile, onde até os criados e demais nobres tomaram parte. Ariana e as irmãs não se cansaram de

Page 94: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

94

valsar com Pauler e os lavronianos que, sem dificuldade, aprenderam a dança. As mais belas melodias encheram os salões enfeitados, pro-longando a festa até o amanhecer, quando então os primeiros raios de sol vieram convidá-los para o merecido repouso. Todos os visitantes receberam luxuosos aposentos para descansarem, inclusive os irmãos Artux. Deitada em sua cama, Ariana agradeceu profundamente por po-der sentir as macias colchas novamente, afundada nos lençóis que há muito tempo não foram tocados. Estava em casa novamente, junto de suas irmãs; isso, mais do que qualquer coisa, era o que a fazia se sentir mais feliz que nunca!

Na tarde fresca e ensolarada do dia seguinte, Ariana levou os visitan-tes a conhecerem o reino, o lar sempre amado. Passearam pela vicejante floresta, sempre verde e cheia de vida, admirando cada detalhe da rica flora. Cruzaram o vale em frente ao castelo, atravessaram o rio que lhes cantou doces canções e chegaram ao Lago das Sereias, onde o encanto dos lavronianos chegou ao auge.

Fizeram questão de ouvir as belas e intrigantes histórias que as mag-níficas criaturas lhe contaram, sobre a transformação de Ariana em uma delas, sobre a vinda de Komhak, a conversa que tiveram com ele, a procura ansiosa da princesa. O trio alienígena ouviu tudo petrificado, estendendo seu passeio até a noite, quando então voltaram ao castelo para jantar. Tão excitados estavam, que mal conseguiam parar de falar, trocando constantemente ideias e comentários de espanto.

Ariana, porém, separou-se deles para isolar-se um pouco, arejar os pensamentos agitados pela emoção... Subiu ao cume do monte próximo ao castelo, para lá de cima contemplar a noite mansa e seu reino, agora em segurança. Sentou-se cansada, mas contente, satisfeita por tudo o que aconteceu, refletindo e chegando à conclusão de que tudo valera a pena.

Quase arruinara seu reino, buscando encontrar aquele que lhe apare-cera em sonhos, trazendo os avisos de um perigo próximo. Aquele que ela tanto quisera encontrar e que quase destruíra sua família. Tivera que matar o que tanto buscara, perguntando-se se não tinha sido em vão tudo aquilo... Mas pela primeira vez na vida, sentira uma imensa paz de espíri-to, sem culpas ou medos, sem maiores preocupações, agora que o pior já passara... Era um mundo tão perfeito aquele, implorando-lhe frequente-mente amor e proteção.

Page 95: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

95

De repente, alguém lhe tocou os ombros. Ariana viu com surpresa Pauler se sentar ao seu lado, suspirando alegremente ao dizer:

- Estamos em casa, novamente...Ariana concordou com um dócil sorriso, fitando-o sem medo. Em

seus olhos sempre negros e brilhantes, não viu mais zombaria ou ma-lícia, mas um carinho sincero... O mesmo mistério persistia, mas com uma afabilidade que cativou a garota. Sempre gostara daquele sorriso. Sempre gostara daquele rosto, que não cansava de olhar.

Súbito, entendeu a razão da vinda do rapaz. Pauler revelou a coroa de ouro que trouxera escondida durante todo aquele tempo, ainda com seu brilho e polidez. A princesa olhou aquilo assombrada, não poden-do conter o riso de satisfação ao tocá-la novamente. Tomou-a delicada-mente, como se fosse de cristal. Pauler fitou-a profundamente, dizendo com a voz nunca antes tão amável:

- Eu a amo, princesa!... Sempre amei.Ariana sorriu timidamente e sussurrou, como não o fazia após

tanto tempo:- Eu... também!...Ele fitou-a surpreso, não sabendo se era porque ela finalmente podia

voltar a falar ou se por causa da súbita e inesperada revelação. Nem se preocupou em tentar obter as respostas. O longo e tão almejado beijo não deixou mais nenhuma sombra de dúvida.

No dia seguinte, o capitão Levik, doutor Melok e o tenente Alek pre-paravam-se para partir, de volta à sua nave e ao seu mundo. Ariana mui-to entristeceu-se com a obrigação de seus amigos, mas sabia que tinha que ser assim - não havia outro jeito. Jamais os esqueceria, depois de tanta coisa que passaram juntos. Sem poder segurar as lágrimas, Ariana abraçou cada um deles, desejando bons votos de sucesso e felicidade. Ao despedir-se de Alek, esse lhe falou serenamente, com a mesma voz que tanto a cativava:

- Não fique triste, princesa. Voltaremos a nos ver algum dia.- Por favor, visitem-nos de novo. Sentiremos muito a sua falta. -

disse o rei.- Foi ótimo termos conhecido você, princesa. Nunca mais a esquece-

remos. - disse o capitão, depois de ter se despedido de todos.Ariana aproximou-se uma última vez deles, dizendo ainda que

Page 96: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

96

com dificuldade:- Muito obrigada... por tudo!...Eles fitaram-na surpresos, sorrindo satisfeitos com seu progresso. E

antes de desaparecerem no ar, a moça bem pode ver o carinho infinito nos lindos olhos de Alek, que por fim, dirigiu-se a Pauler, dizendo:

- Cuide bem dela!...

FIM

Page 97: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

97

Page 98: Ariana - A luta pelo Reino de Acácia

98

Ela era mais do que uma princesa da dinastia real de Acácia. Era a constante protetora de sua família que, apesar de cercada pelos místicos perigos de seu reino, mantinha-se unida e feliz. Porém, esses fortes laços de união e resguardo foram de repente ameaçados pela ganância e inescrupulosidade de uma civilização muito mais avançada, cuja ânsia em conquistar e explorar ultrapassava as fronteiras do longínquo mundo tecnológico. Nem toda a força e valentia da jovam guerreira seriam suficientes para salvar seu reino e sua família, seus bens mais preciosos, daquilo que parecia ser a boa nova para o reino, disfarçada na figura de um mero viajante de outro mundo.