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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ARIANNE RAYIS LOVO
“Lá, sendo o lugar deles é também o meu lugar”:
pessoa, memória e mobilidade entre os Pankararu
Campinas
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação, composta pelos Professores e
Professoras a seguir descritos, em sessão pública realizada no dia 27 de Março de 2017,
considerou a candidata Arianne Rayis Lovo aprovada.
Prof. Dr. José Maurício Paiva Andion Arruti
Profa. Dra. Verena Sevá Nogueira
Profa. Dra. Joana Cabral de Oliveira
A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de
vida acadêmica da aluna.
Dedico aos meus pais,
Jaqueline e Ari,
e aos Pankararu.
Agradecimentos
Um trabalho acadêmico nunca é feito apenas por duas mãos. Com este não seria
diferente. Desde o início, contei com o apoio e o incentivo de várias pessoas e entidades, e
tentarei me lembrar de todos e todas que contribuíram, de algum modo, na feitura dessas
páginas e ideias.
Agradeço ao meu orientador, José Maurício Arruti, pela sua orientação sempre atenta
e cuidadosa, por suas sugestões e críticas, e por der me dado a liberdade necessária para que
meu projeto seguisse seu próprio rumo.
Agradeço a minha co-orientadora, Artionka Capiberibe, que desde a Unifesp vem me
incentivando em minhas pesquisas, com leituras atentas, críticas e conversas sempre
generosas.
Agradeço aos professores Geraldo Andrello, Ronaldo de Almeida, Heloísa Pontes,
Cesar Gordon, Uirá Garcia, Juracilda Veiga, Joana Cabral de Oliveira e Verena Sevá
Nogueira que, em algum momento, leram e deram sugestões valiosas a esse presente trabalho.
Agradeço aos meus amigos e professores do Centro de Etnologia de Pesquisa
Indígenas (Cpei), Marta, Ju, Gabi, Rodolpho, Thiago, Thais, Jefferson, pelas conversas,
risadas e também pelos comentários ao meu trabalho.
Agradeço também ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), que me concedeu uma bolsa de seis meses, e da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pela bolsa de um ano e três meses (número de
processo 2014/19329-5), que possibilitou o meu trabalho de campo na aldeia em Brejo dos
Padres, Pernambuco, e no Real Parque, em São Paulo.
Aos Pankararu, agradeço primeiramente à Roziani, com quem estabeleci meu primeiro
contato em São Paulo. Obrigada pelas nossas conversas e pelas acolhidas em sua casa, pelo
suco de murici, pela paciência e generosidade em sempre me acolher e me ajudar. Seu terceiro
filho, Jeffrey, nasceu enquanto essa dissertação terminava. Agradeço também a seu marido,
Peterson, e aos outros dois filhos, Thales e Pietro.
Agradeço à Diana, pelas acolhidas em sua casa sempre que precisei e pelas conversas
animadas com sua filha Tainá.
Em Pernambuco, agradeço a família de Bino e Ninha, por terem me acolhido tão
generosamente em sua casa. Ninha, com suas poucas palavras, me adotou como sua “filha
branca”, ou como ela mesmo chamava, “minha galeguinha”. À Bino, pela disposição e
paciência em me ajudar no que precisei. À Dora, por ter me ajudado no meu percurso em
campo, facilitando meu contato com o grupo na aldeia e também na cidade. Agradeço pela
sua generosidade e paciência na pesquisa. Agradeço também aos seus três filhos, Ítalo, Íngrid
e Mathaws.
Na aldeia, ainda agradeço à David da Luz, Antônio Moreno, mãe Bia, Josivete,
Moisés, Cida, Paulo, Yan, Ryan e Marcela.
Em São Paulo, agradeço ainda à Tia Lídia, que propiciou minha entrada na equipe
médica, estreitando meus laços com o grupo. À Leidi, pelas conversas sempre bem-
humoradas e pelas acolhidas em sua casa e na casa de sua filha. Agradeço ainda à Deise e
Clarice.
Aos amigos que ganhei “do tempo da Unifesp” Jenny, Nat, Sarah, Leandro, Rafa,
Flávia, Ivan, Paulo, e, em especial, Ju e Pri, agradeço pela amizade, conversas e alegrias.
À minha amiga Carla, com que pude conviver em campo e com quem aprendi muito,
agradeço por ter sido uma interlocutora importante a esse trabalho, com críticas e sugestões
sempre bem-vindas. Nossas conversas e desabafos durante essa etapa da escrita me ajudaram
muito.
À Ana Cláudia, agradeço pela confiança e disposição em sempre me ajudar a ser uma
pessoa melhor.
Agradeço à minha família que sempre me apoiou em minhas decisões e trabalhos, me
dando todo o incentivo em continuar naquilo que acredito.
Ao meu irmão, Paulo, que mesmo longe está perto, agradeço pelas brincadeiras.
À minha irmã Aline, que além de tudo é companheira e amiga, agradeço pelas
conversas, risadas e por compartilhar sua vida comigo.
Ao meu pai Ari, agradeço pela companhia, conversas e generosidade em me ajudar em
tudo o que preciso. Obrigada pelos cafés sempre pontuais e pelas nossas corridas.
À minha mãe, Jaqueline. Obrigada pela delicadeza e força. Tudo o que realizo possui
um traço do que me ensina. Você será sempre uma inspiração em tudo o que faço.
“A vida é um movimento de abertura e não de fechamento”.
Tim Ingold
RESUMO
Busco analisar nesta dissertação a noção de pessoa, memória e mobilidade entre os Pankararu,
população indígena localizada na TI Pankararu, na aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco,
e na favela do Real Parque, em São Paulo. Privilegiando a trajetória de uma história de
família que vivenciou durante trinta anos esse “trânsito” entre aldeia e cidade, esse trabalho
busca compreender os sentidos que a mobilidade adquire para o grupo. A mobilidade é aqui
compreendida como um modo de produção de vida, ou seja, uma maneira específica de
habitar o mundo. Ela põe em relação diferentes agentes (Estado, indígenas, não indígenas) e
agências (memória, cura, encantados, saberes, sofrimento) produzindo novas territorialidades.
Ao mesmo tempo, busco compreender aspectos relevantes da cosmologia e organização social
do grupo. Para isso, alguns elementos como a casa, a memória, o asseio e o sofrimento são
importantes pois se encontram intimamente interligados, nos dando subsídios para alargar
nossa compreensão sobre a noção de pessoa Pankararu.
Palavras-chave: pessoa, memória, casa, mobilidade, Índios Pankararu.
ABSTRACT
I seek to analyze in this dissertation the notion of person, memory and mobility among the
Pankararu, an indigenous group located in the village Brejo dos Padres in Pernambuco, and in
the slum of Real Parque, in São Paulo. Emphasizing the trajectory of a family history that
lived during thirty years in the "back and forth" among village and city, this dissertation seeks
to demonstrate the senses that mobility acquires for the group. Mobility is apprehended in this
work as a way of producing life, that is, a specific way of inhabiting the world. It connects
different agents (state, indigenous, non-indigenous) and agencies (memory, healing,
encantados, knowledge, suffering) that produce new territorialities. At the same time, I seek
to understand relevant aspects of the cosmology and social organization of the group. For this,
some elements such as house, memory, purity and suffering are important because they are
conected, giving us means to widen our understanding of the notion of person among the
Pankararu.
Keywords: person, memory, house, mobility, city, Pankararu Indians.
LISTA DE MAPAS
Mapa 1. Localização dos estados e municípios com presença Pankararu no Brasil.. 26
Mapa 2. Localização da TI Pankararu e TI Entre Serras .......................................... 27
Mapa 3. Vista aérea do Real Parque .......................................................................... 73
LISTA DE CROQUIS
Croqui 1. Croqui da organização espacial da família Pereira .................................. 34
Croqui 2. Croqui da genealogia da família Pereira ................................................... 41
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Desmontando a feira de domingo, em frente à Igreja Santo Antônio ...... 45
Figura 2. Terreiro do Poente .. .................................................................................. 49
Figura 3. Imagem da Igreja de São José, Santo Antônio e praiá em São Paulo ........ 49
Figura 4. Bino em sua roça ...................................................................................... 52
Figura 5. Bino colhendo mandioca .......................................................................... 52
Figura 6. Mulher carregando alimento ..................................................................... 53
Figura 7. Ervas medicinais e de uso ritual no quintal de Dona Ninha ..................... 54
Figura 8. Ervas medicinais e de uso ritual no quintal de Dona Ninha ..................... 54
Figura 9. Ervas medicinais e de uso ritual no quintal de Dona Ninha ...................... 54
Figura 10. Polo Base Pankararu ............................................................................... 61
Figura 11. Dora, Ingrid e Mathäws na varanda ........................................................ 62
Figura 12. A “dança dos praiás” no Real Parque....................................................... 77
Figura 13. Praiá de artesanato ................................................................................... 81
Figura 14. Praiá de artesanato ................................................................................... 81
Figura 15. Camiseta “Ser Pankararu” ........................................................................ 94
Figura 16. Praiá segurando uma maracá e um penacho na Corrida do Imbu ............ 98
Figura 17. As “botadoras de cesto” chegando para a Queima do Cansanção ......... 100
Figura 18. Pintura ritual no corpo feminino e masculino ........................................ 101
Figura 19. Pintura ritual no corpo feminino e masculino ........................................ 101
Abreviaturas
AS Agente de Saúde
AIS Agente Indígena de Saúde
AMIP Associação Movimento Indígena Pankararu
CASAI Casa do Índio
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CIP Comunidade Indígena Pankararu
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNASA Fundação Nacional de Saúde
SPI Serviço de Proteção aos Índios
PSFI Programa de Saúde da Família Indígena
UBS Unidade Básica de Saúde
UNIFESP Universidade Federal de São Paulo
UFSCAR Universidade Federal de São Carlos
TI Terra Indígena
SUMÁRIO
Introdução
O “caminho” da pesquisa de campo ..................................................................................... 15
Os Pankararu ......................................................................................................................... 25
Apresentação dos capítulos ................................................................................................... 32
Capítulo I
Modos de ser e habitar
1.1 A família Pereira: troncos, ramas e “caminhos” ............................................................. 33
1.2 A casa: produção de afeto, pessoa e memória ................................................................ 43
1.2.1 Cozinha, varanda e “salão de trabalho”: relação, afeto e cura ................................. 46
1.2.2 O quintal: o lugar do fogo e do sagrado .................................................................. 53
1.3 Nascer e crescer sendo pankararu ................................................................................... 58
1.3.1 Aprendendo pelo sentir: sendo parteira “por acaso” ................................................ 63
1.4 Algumas considerações ................................................................................................... 65
Capítulo II
Modos de caminhar
2.1 “Caminha!”: mobilidade e produção de conhecimento .................................................. 67
2.1.1 O movimento até a cidade ........................................................................................ 71
2.2 Paisagens e “passagens” no Real Parque ........................................................................ 72
2.3 Narrativas e memórias em “trânsito” .............................................................................. 78
2.3.1 Bino Pankararu ......................................................................................................... 78
2.3.2 Dora Pankararu ......................................................................................................... 82
2.3.3 Dona Ninha .............................................................................................................. 86
2.3.4 Roziani Pankararu .................................................................................................... 88
2.4 Sentidos do ir e vir: a trajetória de uma família em movimento ..................................... 90
Capítulo III
Modos de curar
3.1 O sagrado Pankararu ...................................................................................................... 92
3.1.1 A Queima do cansanção ........................................................................................... 95
3.1.2 A Penitência ........................................................................................................... 102
3.1.3 Rezas e “mesas” de cura......................................................................................... 106
3.2 Entre corpos e cruzes: o corpo se “fechando” .............................................................. 112
3.3 O santuário: casa, corpo e memória .............................................................................. 121
Considerações Finais ............................................................................................................ 124
Referências Bibliográficas ................................................................................................... 128
15
Introdução
O “caminho” da pesquisa de campo
Os caminhos que conduziram este presente trabalho fazem parte das questões e
indagações que foram surgindo durante o seu percurso no período em que cursei o Mestrado
em Antropologia Social na Unicamp, e, sobretudo, depois da minha estadia em campo, na
aldeia Brejo dos Padres1, em Pernambuco, e no Real Parque2, em São Paulo3.
Logo no início, quando o projeto ainda estava se desenhando, buscava-se compreender
as mudanças de organização social e cosmológica no percurso da mobilidade pankararu entre
aldeia e cidade, dando especial destaque à memória do grupo e a sua noção de pessoa,
analisando de que forma os mais velhos atualizam a história e a memória pankararu aos mais
jovens. Considerando que os avós são os responsáveis por uma primeira fase educacional dos
mais jovens, como será explicado no capítulo 1, me questionava como essa interação poderia
ser afetada entre aqueles que estão vivendo e morando na cidade de São Paulo, muitas vezes
longe dos seus familiares da aldeia. Outros questionamentos eram acerca das implicações e
tensões cosmológicas e sociais que o casamento com os não indígenas, na cidade, poderia
trazer. Embora não haja prescrições e restrições matrimoniais entre os Pankararu, o acesso às
esferas políticas e rituais é proibido entre os não indígenas que se casam com o grupo.
Buscava também analisar as transformações formais a que os principais rituais do grupo,
como o Toré, estavam submetidos em contexto urbano, assim como suas consequências sobre
as concepções de caráter cosmológico, em especial as noções de doença e cura.
No entanto, depois da minha estadia na aldeia4, deparei-me com novos problemas que
o próprio campo colocava à pesquisa. Noções sobre a saúde e a corporalidade pankararu
1 A aldeia Brejo dos Padres está localizada na Terra Indígena Pankararu (TI Pankararu), entre os municípios de
Tacaratu, Jatobá e Petrolândia, no estado de Pernambuco. Nela se encontram 25 aldeias, entre as quais a aldeia
Brejo dos Padres, onde o centro político e administrativo é mais organizado. 2 O Real Parque é um bairro localizado na zona sul da cidade de São Paulo, onde residem, aproximadamente,
160 famílias Pankararu, totalizando cerca de 600 pessoas. Além do Real Parque, os Pankararu vivem nos bairros
de Panorama, Paraisópolis, Capão Redondo, Parque Santo Antônio, Jardim Ângela, Jardim Elba e Mogi Mirim,
todos da região metropolitana de São Paulo. 3 Será utilizada, neste trabalho, a palavra “aldeia” toda vez que me referir à aldeia Brejo dos Padres, e a palavra
“cidade” toda vez que me referir à cidade de São Paulo, especificamente ao Real Parque, local onde realizei meu
trabalho de campo. Faço essa especificação apenas para melhorar a fluidez do texto, não precisando recorrer ao
nome destas duas localidades quando quiser me referir a elas. 4 Realizei trabalho de campo na aldeia Brejo dos Padres entre os meses de fevereiro a março de 2015, totalizando
trinta dias, momento no qual ocorria os rituais Corrida do Imbu, Noite dos Passos e a Penitência. Nesse período
há a presença de muitos pesquisadores na TI Pankararu, como antropólogos, historiadores, bem como a presença
de familiares do grupo Pankararu que vem a aldeia para acompanhar e/ou participar desses rituais.
16
foram ganhando destaque em meu trabalho depois das entrevistas, convivências e
experiências pessoais que tive com algumas interlocutoras importantes, como as rezadeiras e
parteiras tradicionais que moram na aldeia e no Real Parque.
Numa dessas entrevistas, a rezadeira Josivete5 contou sua trajetória de vida e como ela
foi marcada por embates de forças espirituais até se tornar xamã. Um de seus filhos, Moécio,
hoje também um líder espiritual na aldeia, teve a mesma trajetória. Aos 14 anos foi
diagnosticado pelos médicos como “louco” e, depois de algum tempo, foi enviado a um xamã
para que ele desfizesse o mal que lhe haviam feito. Segundo Josivete, seu corpo “exalava um
mau cheiro terrível”. Essa loucura relatada por Josivete, está associada à trajetória pessoal
daqueles que são escolhidos para serem xamãs. O mau cheiro que exalava do corpo de seu
filho pode indicar também uma fase do processo do desenvolvimento da trajetória do xamã,
estando associado a algum estado de liminariedade que a pessoa passa até se curar totalmente
e se tornar um rezador. Como o asseio do corpo é algo extremamente importante aos
Pankararu, tanto em banhos domésticos como rituais, o caso sugeria a hipótese de que a
oposição “mau cheiro”/“asseio corporal” estaria relacionada a um dispositivo de proteção
contra espíritos ameaçadores, cuja ruptura revela ou provoca consequências sobre a vida e o
corpo da pessoa. Assim, elementos como nascimento, limpeza do corpo, alimentação, doença
e cura foram ganhando destaque ao longo do desenvolvimento da pesquisa.
Josivete também contou sobre uma de suas filhas, que foi “flechada no imbigo”6 e
morreu aos oito meses de idade. Ela me disse que estava numa “mesa” de cura7, cantando,
quando teve “uma visão”. Fechou seus olhos e viu uma pessoa lhe dizer “você acha que sua
filha vai crescer para vestir esse vestido de noiva?”8. Assim que abriu os olhos, Josivete me
disse “que já sabia, que tinha tido a visão”. Quando ela chegou em casa, viu sua filha deitada
no chão, passando muito mal e quando foi levá-la para dar-lhe um banho viu “uma rodela
preta em volta do imbigo, ela tinha levado a flechada”. Ela conta que enterrou a filha com
“um vestido branco, lindo, de tiara e tudo”. Segundo Josivete, essas visões que lhe acometem
podem se dar em estado de vigília ou mesmo em sonhos, “sinto na hora, às vezes de aviso.
5 Josivete é uma rezadeira Pankararu que mora na aldeia Brejo dos Padres e realiza práticas de cura, como rezas
e benzimentos, como será apresentado no capítulo 3. 6 O flechamento é um feitiço lançado a pessoa e que pode ser fatal caso ela não seja socorrida a tempo.
Geralmente a pessoa é flechada no umbigo, causando uma mancha preta ao redor do local atingido; falaremos
mais sobre isso no capítulo 3. 7 “Mesa” de cura é um ritual de cura realizado na casa do xamã ou da pessoa enferma. 8 Faço uso, nessa dissertação, das seguintes classificações gráficas: i) as aspas se referem a frases de entrevistas
no corpo do texto, conceitos e categorias e ii) termos nativos ou em língua estrangeira serão apresentados em
itálicos, sem aspas.
17
Sento no sofá, com os olhos fechados e vejo, com o corpo dominado. Aí faço o rosário, com o
corpo sustentado na oração”.
Aos poucos, o sofrimento, a “loucura” e o asseio ao corpo foram surgindo como
elementos importantes, pois estavam presentes tanto na cosmologia do grupo quanto na sua
vida cotidiana. Ao mesmo tempo, a pesquisa se voltou a uma observação da vida cotidiana,
focada nos aspectos domésticos da vida social, como os cuidados com a roça e a cozinha, o
modo de preparação dos alimentos, os cuidados com o corpo etc. Percebi que existia uma
diferenciação sexual nos espaços da casa, pois na cozinha e no quintal, por exemplo, havia
uma circulação maior entre as mulheres, enquanto na varanda e no interior da casa homens
circulavam com mais frequência. Assim, a casa foi surgindo como um local significativo da
cosmologia Pankararu, pois evidenciava modos de organização social e modos de habitar e
viver do grupo. A distribuição espacial das casas das famílias extensas, na aldeia, ora em linha
reta, ora em forma circular ao redor da casa do patriarca, também encontrava semelhança com
a maneira como o grupo habita na cidade. Em ambos os casos indicam que os laços parentais
são mantidos e reavaliados pela proximidade, bem como com o afeto e a comida, como
veremos no capítulo 1.
Tanto na aldeia quanto na cidade, nota-se um protagonismo de mulheres xamãs que é
fundamental para a manutenção da saúde da pessoa. Líderes espirituais importantes, como
Josivete e Lídia, são chamadas diariamente para desfazer algum feitiço ou curar um mal do
corpo e espírito do indivíduo. Como ressalta Mura (2012), a dicotomia entre corpo
aberto/corpo fechado, nos mostra que a saúde Pankararu encontra-se constantemente
ameaçada, e o desvio ou não de condutas moralmente estabelecidas, bem como a realização
dos resguardos alimentares e sexuais durante as práticas rituais do grupo, é fundamental para
o corpo do indivíduo não ser alvo dessas ameaças.
Noções sobre nascimento, amamentação, pré-natal, parto e pós-parto também me
foram dados pela parteira Maria das Dores. Durante as visitas que fiz ao Polo Base pude
acompanhar a realização da campanha de vacinação de HPV às meninas de 9 a 12 anos, feita
pelo Ministério da Saúde. Ela me relatou que antigamente, muitas crianças morriam de “mal
dos setes dias” (conhecida também como tétano, uma infecção grave causada por uma toxina
do bacilo tetânico), mas como a incorporação do saber médico ao saber Pankararu, eles
passaram a utilizar novos cuidados específicos com o corpo para que tal mal não acontecesse.
As práticas de cura, assim como relatado por Lopes (2011), conferem uma espécie de
complementariedade ao sistema médico do grupo. Algumas doenças como flechamento, corpo
18
entaboado, quebranto, sereno, vento-caído9, entre outras, me foram relatadas como algumas
das doenças que acometem os Pankararu. Dessa forma, penso que, apesar da biomedicina se
configurar como um complemento na busca da cura dos sintomas acometidos no corpo do
indivíduo, a causa da doença está atrelada ao seu sistema cosmológico, pois a explicação que
me foi dada era que tal corpo fora flechado, entaboado etc. O uso de medicamentos é
importante para a cura do corpo, mas quem realiza a cura do espírito são os encantados10,
sendo que a causa da doença pode ser um feitiço lançado por pessoas, espíritos ou outras
entidades que habitam o cosmos Pankararu.
Nesse sentido, as rezadeiras se constituem como figuras centrais, pois são elas que
mantêm uma maior intercomunicabilidade com o mundo humano e sobre-humano, apontando
noções sobre doença e cura, que são fundamentais para a compreensão da noção de pessoa
pankararu.
Quando voltei do trabalho de campo realizado na aldeia, depois de um período de um
mês, minha pesquisa passou por um período de longa reflexão. Reli partes do caderno de
campo e das entrevistas que me foram concedidas. Sistematizei os dados etnográficos obtidos
entre aldeia e cidade e fomos percebendo que um estudo mais aprofundado sobre isso
ofereceria subsídios para compreender melhor as práticas xamânicas do grupo. Por conta
disso, continuei, entre março a abril de 2016, a realizar visitas monitoradas por uma equipe
médica na UBS (Unidade Básica de Saúde) do Real Parque, em São Paulo, nas quais pude
estabelecer vínculos importantes com os Pankararu.11 A equipe é composta por uma médica,
uma enfermeira, uma AS (Agente de Saúde) e uma AIS (Agente Indígena de Saúde), que
também é Pankararu e rezadeira.
9 Corpo entaboado indica que o corpo está aberto, e pode, portanto, sofrer ameaças de entidades malignas.
Vento-caído ou vento é um feitiço geralmente trazido pelo vento. Quebranto é quando uma pessoa tem sintomas
de moleza, vômito, cansaço, causado pelo olhar de uma pessoa. Sereno é um mal-estar que pode acometer a
pessoa se ela ficar no sereno, principalmente se ela estiver menstruada, com o corpo aberto, causando dor de
cabeça e mal-estar. 10 Segundo Arruti (1996), os encantados são os índios que se encantaram porque descobriram o segredo de se
encantar e alcançar sua imortalidade, vivendo em locais sagrados, como as nascentes, cachoeiras, serras e
serrotes. Eles se manifestam no mundo terrestre por meio dos praiás, que são os dançadores vestidos com as
indumentárias rituais, denominada de “roupões” ou “terno”, que são feitas de caroá, uma semente endêmica da
região nordeste. Cabe ressaltar, porém, que embora a produção dos encantados esteja associada a um ambiente
natural, há relatos de que eles “voam” e se manifestam em outras localidades, como em São Paulo. Assim, é
necessária uma investigação mais aprofundada para averiguar se eles também “nascem” em ambientes
considerados não naturais. 11 Agradeço a Lídia, AIS, rezadeira Pankararu, por ter aceito meu pedido para poder acompanhar as visitas da
equipe médica, facilitando a minha inserção em campo no Real Parque.
19
No entanto, depois de realizar a segunda etapa do trabalho de campo na cidade12, me
recolhi, focando nas minhas anotações e na minha escrita, e, durante esse processo, alguns
elementos foram emergindo e se relacionando, dando uma substância maior ao meu objeto
teórico. Percebemos que havia uma relação significativa entre casa, sacrifício, memória,
pessoa e asseio no modo de vida pankararu.
Neste trabalho, como será melhor desenvolvido nos próximos capítulos, a noção de
casa é também compreendida como um local de afeto e memória. Nesse sentido, tal noção se
assemelha a ideia de casa utilizada por Viegas (2007), no qual alguns lugares, como a roça e o
quintal, por exemplo, se interconectam pela memória afetiva e pelas práticas alimentares. A
territorialidade do grupo é também pensada como um “território fluído”, que se interconecta
com outras localidades e é formada por seres humanos e não-humanos, como linhas que se
entrelaçam e se emaranham num campo relacional.
A casa também se configura como um santuário, tal qual o corpo, abrigando objetos
materiais e imateriais que dão subsídios para se pensar sobre o cosmos Pankararu, mas
também sobre corporalidade. O sofrimento e o sacrifício são elementos presentes na vida
social do grupo, nos principais rituais Pankararu, como a Queima do Cansanção, -uma das
fases do ritual da Corrida do Embu-, e o ritual da Penitência13. Nestes rituais, o sofrimento
aparece como um elemento importante que compõe a pessoa Pankararu, pois é através dele
que se estabelece o sistema de prestação e contraprestação.
* * *
Meu primeiro contato com os Pankararu foi em 2013, através da Maria Roziani
Aureliano, conhecida como Roziani Pankararu, filha do Manoel Alexandre Sobrinho, o Bino,
e ex-presidente da Associação Indígena Comunidade Indígena Pankararu – SOS-CIP. Por
meio da literatura pankararu, eu já sabia da existência dessa Associação, que atuava no Real
Parque para auxiliar social e juridicamente o grupo na cidade de São Paulo14. Quando cheguei
12 Fiz um trabalho de campo mais intensivo no Real Parque por quinze dias, no mês de Julho de 2015, e por mais
quinze dias, entre Abril e Maio de 2016, com visitas constantes ao bairro, pernoitando algumas vezes na casa dos
Pankararu. Cabe ressaltar que, embora eu não tenha me fixado no local, minhas visitas sempre foram frequentes
e tiveram início em 2013, se estendendo até os dias atuais. 13 A Penitência é um ritual pankararu que tem início na Quarta-feira de Cinzas, no período da Quaresma e
termina na Semana Santa. Nesse período, homens e mulheres penitentes visitam as cruzes dos mortos e as casas
de pessoas importantes na aldeia, homenageando-as. Assim, penitentes pankararu são aqueles que acreditam na
Santa Cruz e rezam para os santos e para os encantados. Falaremos mais sobre esse ritual no capítulo 3. 14 Entre alguns dos principais objetivos da Associação está auxiliar a mediação e participar da negociação
política dos interesses do grupo Pankararu, além de ter sido uma das entidades responsáveis pela implantação do
Programa de Saúde da Família Indígena (PSFI) na UBS Real Parque, facilitar o aceso às “carteirinhas” de
20
ao bairro, perguntei a alguns moradores se eles conheciam essa Associação, mas não obtive
sucesso. Como uma “bola de pingue-pongue” fui “pingando” entre as casas, subindo e
descendo morros, becos e vielas (naquela época o processo de “urbanização” realizado pela
prefeitura ainda não estava totalmente finalizado), procurando por alguém que pudesse me dar
alguma informação importante. Logo me foi dada a notícia de que Bino havia retornado à
aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco, mas que uma de suas filhas, Roziani, trabalhava
como AIS na UBS local. Cheguei no posto de saúde, mas ela estava fazendo “visita” e esperei
até ela retornar. No encontro, ela se mostrou bastante receptiva em me ajudar na pesquisa e
sugeriu que eu também conversasse com sua irmã, Dora Pankararu, que, na época, era a
presidenta da Associação.
A partir de então, comecei a fazer visitas quinzenais ao bairro, tentando estreitar e
criar vínculos com o grupo. Numa dessas visitas, em julho de 2014, Roziani me apresentou a
seu pai, Bino, que se encontrava de “passagem” pelo Real Parque para fazer exames médicos.
Na ocasião, conversamos sobre meu projeto e a possibilidade de fazer um trabalho de campo
na aldeia, e se haveria possibilidade de ficar um período de um mês em sua casa. Bino se
mostrou receptivo e foi generoso, dizendo que seria um prazer me contar sobre a “história do
seu povo”. Depois desse contato, comecei a planejar a viagem até o Brejo dos Padres, ao
mesmo tempo em que cursava as disciplinas obrigatórias do Mestrado na Unicamp. No mês
de janeiro, depois de uma intensa comunicação e negociação com o período da vigência do
trabalho de campo na aldeia, resolvi viajar em fevereiro, momento de intensa festividade ao
grupo e no qual estaria acontecendo o ritual Corrida do Imbu.
Portanto, minha entrada na aldeia Brejo dos Padres, diferentemente do que, num
primeiro momento, estava disposta a fazer no Real Parque, não se deu via Posto Indígena,
mas foi facilitada pela relação que estabeleci com Roziani em São Paulo. Na aldeia, percebi
que o fato da pesquisa estar focalizada na trajetória de uma família marcada por
deslocamentos entre aldeia e cidade, provocou algumas situações de tensão entre alguns
atores sociais. Alguns dos questionamentos apresentados por eles estava no fato da família de
Bino ter morado durante trinta anos “fora da aldeia”. Este fato mostra que, se existe uma
aprovação e incentivo para que as famílias busquem conhecimento “fora da aldeia”, também
existe certa resistência entre aqueles que acreditam que a “cultura” pankararu não pode ser
identificação de indígenas emitidas pela FUNAI (Fundação Nacional Indígena) e identificar e atestar àqueles que
queiram participar do processo de seleção ao Programa Pindorama – PUC/SP, que concede bolsas de estudos
para alunos indígenas.
21
disseminada fora da TI Pankararu. Isso pode estar associado à disputa simbólica do saber
local, defendida por alguns líderes espirituais e lideranças políticas da aldeia.
Durante todo o meu período na aldeia fiquei hospedada na casa de Bino. Pude
presenciar o ritual Corrida do Imbu, que é considerado um dos mais importantes para o grupo
e acontece no mesmo período da Quaresma, tendo início na mesma semana que começa o
carnaval, estendendo-se pelas quatro semanas seguintes, sempre aos sábados e domingos. Em
2015, as danças tiveram início no dia 14/02 e como cheguei na aldeia dia 26/02, pude
acompanhar a terceira e a quarta fase da Corrida, que aconteceram entre os dias 28/02 e 1º/03
e nos dias 7/03 e 8/03.
* * *
Essa dissertação tem como objetivo analisar a noção de pessoa, memória e mobilidade
entre os Pankararu que estão localizados na aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco e na
favela Real Parque, em São Paulo. Buscarei demonstrar que esse deslocamento entre aldeia e
cidade pode ser compreendido como “um modo de produção de vida” (Ingold, 2010), ou seja,
um modo específico de viver e habitar. Nesse sentido, os termos dicotômicos aldeia/cidade
perdem ênfase e compreensão analítica, uma vez que os espaços por onde os Pankararu
circulam e habitam correspondem a diferentes localidades, e entre eles há os “caminhos” que
interconectam estes lugares, que não estão fragmentados ou isolados, mas fazem parte de uma
territorialidade que é reproduzida diariamente pelo grupo.
Para isso, privilegio a história de uma família em movimento, que morou durante
trinta anos na cidade de São Paulo, buscando analisar, através de suas narrativas e memórias,
os sentidos entre esse “ir e vir”. A mobilidade da família aciona diferentes agentes (Estado,
indígenas, não indígenas) e “agências”15 (encantados, espíritos, alimento, bens, memória,
sofrimento, saberes, relação). Ao mesmo tempo, apresento como a casa, o corpo, o sacrifício,
o asseio e a memória são elementos que se encontram interligados e nos ajudam a
compreender a noção de pessoa pankararu. Para isso, analiso os rituais A queima do
Cansanção, a Penitência e os rituais de cura realizados pelas rezadeiras, onde o corpo aparece
15 O conceito de “agência” é aqui compreendido nos termos proposto por Ingold (2012), no qual o autor defende
a ideia de que o mundo é habitado por “coisas”. Se contrapondo a “teoria do ator-rede” (actor-network theory)
de Bruno Latour, Ingold afirma que, para ele, não há distinção metafísica entre objeto e sujeito. Logo, a agência
não está nos objetos. Aquilo que Latour chama de agência, para Ingold, é vida. Humanos e não-humanos são
“coisas”, ou seja, são organismos que estão num campo relacional com o ambiente, como num emaranhado de
linhas, o qual o autor chama de “malha” (meshwork). Assim, a agência pode ser compreendida como o fluxo de
vida que movimenta as “coisas” no mundo.
22
como um sacrifício a ser ofertado aos encantados. O sacrifício oferece a purificação e o
“fechamento” do corpo, livrando-o das ameaças de entidades malignas que queiram se
apossar dele. A casa surge como um santuário da pessoa, como uma extensão corporal que é
formada por humanos e não humanos, como espíritos, mortos, encantados etc. Todos os
espaços que ela conecta, como a roça, os “caminhos” da aldeia e os espaços coextensivos a
ela, como o Real Parque, estão ligados por afeto e memória.
* * *
A abordagem teórica escolhida neste trabalho apresenta alguns autores que foram
surgindo no decorrer do meu processo de formação e analítico, conforme o campo ia me
revelando suas particularidades. Um desses autores foi Tim Ingold, que apareceu como um fio
condutor das minhas análises. A teoria ingoldiana propõe uma ruptura entre as fronteiras da
Ciências Humanas e Ciências Naturais, estabelecendo uma abordagem alternativa, “mais
devedora às perspectivas fenomenológicas, ecológicas e “prático-teóricas” sobre percepção e
cognição” (Ingold, 2010: 7). Seus pressupostos epistemológicos, juntos com autores como
Viveiros de Castro, Latour e Descola, fazem parte daquilo que se convencionou chamar
“virada ontológica”, momento no qual se começa a repensar, dentro do pensamento ocidental
contemporâneo, o dualismo existente entre natureza e cultura e outros conceitos dicotômicos.
Partindo de uma análise próxima à ecologia, fenomenologia e biologia, Ingold
concebe a cognoscibilidade humana através de uma noção das habilidades (skill), onde o
conhecimento consiste em habilidades específicas, e não na transmissão de representações,
onde o processo de aprendizado do indivíduo se dá pela imitação e internalização do
conhecimento. É o que ele chama de “educação pela atenção” (Ingold, 2010), onde a pessoa
aprende ao “olhar, ouvir e sentir”. Ele nega o entendimento de que o conhecimento ou a
habilidade estejam “impressos” num gene, com informações “repassadas” de geração a
geração. Diferentemente, o conhecimento é adquirido por um “redescobrimento dirigido” pela
noção de mostrar. Mostrar algo a alguém é tornar presente essa coisa para a pessoa, fazendo
com que ela aprenda no campo da prática, ouvindo, olhando ou sentindo. Dessa forma, o ato
de mostrar e, consequentemente, de copiar, está também associado à memória, pois copiar
algo é recordar daquilo que ficou “lembrado” ou “registrado” na pessoa:
O conhecer, então, não reside nas relações entre estruturas no mundo e estruturas na
mente, mas é imanente à vida e consciência do conhecedor, pois desabrocha dentro
23
do campo de prática – a taskscape – estabelecido através de sua presença enquanto
ser-no-mundo. A cognição, neste sentido, é um processo em tempo real (Ingold,
2010: 21).
Nesse sentido, o mundo social é apreendido a partir das relações e das experiências
vividas, uma vez que o indivíduo é concebido como uma “potência” capaz de conhecer seu
meio através da sua própria relação intersubjetiva com ele. Nessa visão, o sujeito não é
compreendido como expressão de unidade que lhe é anterior e que lhe ultrapassa, como se
fosse epifenômeno das leis sociais. Ele já possui dentro de si uma agência que lhe permite
conhecer e apreender seu meio social.
Seus conceitos sobre linhas e meshwork também me ajudam a pensar na mobilidade
pankararu como “um modo de produção de vida” (Ingold, 2011), ou seja, uma forma
específica de habitar no mundo. A sua crítica ao termo espaço, enquanto um conceito
analítico que define um lugar delimitado geograficamente no ambiente, nos ajuda a ampliar
nossa concepção de migração, por exemplo. Para ele, as pessoas estão constantemente se
movimentando de um local a outro. Nesse deslocamento, elas não habitam em localidades
específicas, mas também nos “caminhos”. “O caminho, e não o lugar, é a condição primordial
do ser, ou melhor, do tornar-se”, sendo o caminhar um modo fundamental como os seres
habitam o mundo, devendo ser imaginado “como a linha do seu próprio movimento ou -mais
realisticamente- como um feixe de linhas” (Ingold, 2011: 12-13). É neste sentindo que
acredito que sua teoria ilumina a dinâmica da mobilidade entre os Pankararu, uma vez que o
grupo possui um histórico de deslocamento entre a TI Pankararu a outras localidades como os
estados de Minas Gerais e São Paulo. Nesse “trânsito” entre aldeia e cidade, muitas famílias
se movem, fazendo circular saberes, cura, não-humanos, memória, afetos etc.
Em abordagens etnológicas mais recentes a criança é concebida como um agente
autônomo que constrói suas habilidades e conhecimento a partir da sua ligação intersubjetiva
com o mundo. Autores como Cristina Toren (2010) e Marilyn Strathern (2006) privilegiam a
agência do indivíduo como sujeito ativo de sua história, que não está no mundo apenas para
receber conhecimento, mas para produzir cultura e construir relações sociais. Nesse sentido,
tanto o aspecto socializador, como família ou grupo, quanto o indivíduo, são compreendidos
como agentes ativos da sua história.
Para Cristina Toren (2010), os indivíduos são seres autopoiéticos, ou seja,
autocriadores e autoprodutores, possuindo uma autonomia que se relaciona com o ambiente e
as pessoas ao seu redor. A autora busca romper com as dicotomias natureza/cultura e
indivíduo/sociedade porque elas prejudicam uma teoria antropológica da mente. Assim como
24
a pessoa, a mente está em constante transformação. Portanto, o conhecimento é adquirido
através da atuação intersubjetiva do homem nesse tempo/espaço. Valendo-se dessas mesmas
preocupações, Strathern (2006) também busca romper com tais pressupostos. Em seus estudos
entre os Hagen, a autora afirma que as pessoas são entendidas como “divíduos”, ou seja,
divisíveis, pois contém dentro de si uma socialidade generalizada, uma vez que “a pessoa
singular pode ser imaginada como um microcosmo social” (Strathern, 2006: 40). Para a
autora, as crianças são o resultado das interações dos outros. Elas também são compósitas,
pois recebem, no ato do seu nascimento, substâncias maternas e paternas que serão
fundamentais tanto na sua formação corporal quanto na sua construção de pessoa. Dessa
forma, a filiação não é compreendida na chave da reprodução biológica, mas por uma relação
de substâncias, que é fornecida tanto por homens quanto mulheres. No entanto, seu
crescimento não depende apenas do incremento dessa massa material, mas, principalmente,
pela interação das pessoas. Sendo assim, “o corpo aparece como o resultado das ações das
pessoas”, sendo habitado “pela ativação de relações sociais” (Strathern, 2006: 311).
Esse trabalho também se insere num debate antropológico sobre casa, noção de pessoa
e memória. Entre os Pankararu, há uma relação significativa entre esses três elementos. Na
etnologia, os estudos sobre o tema casa tiveram suas primeiras investigações com os trabalhos
de Lévi-Strauss (1979), no qual o autor define casa como uma “pessoa moral”, que centraliza
e organiza as relações familiares. Posteriormente, Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones (1995),
na coletânea About the house: Lévi-Strauss and Beyond, apresentaram outros questionamentos
sobre casa e organização social, propondo novas visões sobre o tema e indo além do conceito
lévistraussiano. A casa e o corpo se encontram intimamente relacionados, sendo a casa uma
extensão da pessoa, como nos sugere Vanessa Lea, com seus estudos entre os Mebengokre.
Nesse sentido, podemos tomar os conceitos “casa” e “corpo” como partes de um mesmo polo
de significado, não apenas relacionando-os, mas interligando suas semelhanças e possíveis
variações. A casa, entre os Pankararu, também é percebida como o lugar da memória, um
santuário onde rezas, cura, encantados, espíritos e outros seres habitam, sendo também um
local onde lembranças são reativadas.
O tema território é também importante neste trabalho. Apesar de não se estabelecer um
diálogo intenso em relação a isso, ele intersecta noções pertinentes à pesquisa, como
mobilidade e territorialidade. No debate antropológico, diferentes abordagens teóricas têm
dado destaque a noções como território e territorialidade. O trabalho de Gallois (2004) nos
chama atenção ao tensionamento que surge desses diferentes termos. Enquanto a Terra
25
Indígena é compreendida como uma categoria estatal e jurídica, a noção de territorialidade,
por sua vez, é utilizada na Antropologia para definir processos de ocupação dos espaços pelas
populações indígenas. A autora também afirma que nem todo grupo compreende o território
como uma categoria político-administrativa, uma vez que a mobilidade espacial é uma forma
de viver para muitos povos.
Oliveira Filho (1999) compreende a “territorialização” como um processo político-
administrativo de reorganização social, onde o Estado, com seu aparato jurídico e tutelar,
possibilita, entre outras coisas, a criação de uma nova unidade territorial e a reelaboração da
cultura (Oliveira Filho, 1999: 56). Outros estudos sinalizam para o entendimento do território
como um campo relacional no qual diferentes elementos circulam, como a memória, a família
e os saberes, como os trabalhos de Arruti (1996), Nogueira (2010), Testa (2012), Estanislau
(2014). Estes autores assinalados, nos quais nos deteremos nos capítulos a seguir, são
importantes pois nos ajudam a pensar a dinâmica da mobilidade Pankararu e os diferentes
sentidos que o deslocamento pode adquirir.
Os Pankararu
Os Pankararu habitam diferentes localidades do território brasileiro. Em Pernambuco,
eles estão localizados entre as cidades circunvizinhas de Jatobá, Tacaratu e Petrolândia, na TI
Pankararu e TI Entre Serras (cf. Mapa 2). Geograficamente, neste local, estão situados na
depressão sertaneja que acompanha o planalto da Borborema, próximos às margens do rio São
Francisco, numa região cujas terras são úmidas e férteis, apesar do clima seco e árido
característico da região do sertão pernambucano. Segundo dados da FUNASA de 2010,
nessas duas TI’s eles somam uma população de 8.477. Em Minas Gerais, eles habitam na TI
Dominial Indígena Pankararu de Araçuaí, na região de Coronel Murta, com cerca de 258
pessoas16 (cf. Mapa 1). Há relatos de que na Bahia eles habitem na Reserva Indígena
Pankararu, no município de Muquém de São Francisco17. Em São Paulo, o grupo está
localizado na região metropolitana, concentrados, em sua maior parte, na favela Real Parque
(cf. Mapa 1). Eles também se encontram em outros bairros, como já mencionado, Panorama,
Paraisópolis, Capão Redondo, Jardim Elba, Parque Santo Antônio, Jardim Ângela, Jardim
Elba e Mogi Mirim.
16 Ver: Albuquerque (2011). 17 Notícia encontrada nesse sítio de internet: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/5424. Último
acesso 18/04/2017, às 21hs.
26
Mapa 1 – Localização dos estados e municípios com presença Pankararu no Brasil.
27
Mapa 2 – Localização da TI Pankararu e TI Entre Serras. Fonte: FUNAI/DAF
28
Pela história que os Pankararu contam, uma légua de 14.290 ha foi doada pela coroa
imperial no século XVIII ao grupo (Arruti, 1996). No entanto, a primeira homologação dessas
terras só ocorreu em 1987, com a TI Pankararu, com 8.100 ha. Em 2007, se deu a
homologação da TI Entre Serras, depois de um longo processo jurídico, somando a
quantidade territorial restante. Nessas duas TI’s, há 25 aldeias: Lagoinha, Mundo Novo, Pau
Branco, Pedra Muda, Baixo do Lero, Folha Branca, Olho D’Água do Julião e Salgadinho (TI
Entre Serras); Barricuda, Logradouro, Brejinho dos Correias, Barracão, Espinheiro, Macaco,
Serrinha, Agreste, Jitó, Tapera, Saco dos Barros, Bem Querer de Cima, Bem Querer de Baixo,
Caxiado, Caldeirão, Carrapateira e Brejo dos Padres (TI Pankararu).
A primeira vez que os Pankararu apareceram na literatura etnográfica foi através dos
registros de Curt Nimuendajú, datados já no início do século XX, quando o autor faz menção
aos oitenta diferentes etnônimos concentrados no vale do submédio São Francisco
(Nimuendaju, 1981). Localizados numa região caracterizada pela caatinga e pelo clima
semiárido, os diversos povos que habitaram e habitam essa região do Nordeste brasileiro são
marcados, étnica e historicamente, pelos aldeamentos missionários e pelas frentes pastoris dos
séculos XVII e XVIII (Dantas; Sampaio; Carvalho, 1992, p. 433). Os aldeamentos são
mecanismos de controle político e cultural do Estado e que tem como objetivo controlar e
pacificar diferentes grupos num mesmo espaço territorial.
Outras contribuições se deram com os trabalhos de Estevão Pinto (1938) e Carlos
Estevão Oliveira (1942), que, à luz das teorias raciais, apresentam os Pankararu numa ideia de
“degeneração”, voltados a uma noção de cultura baseada na “etnologia das perdas” (Oliveira
Filho, 1999). Dessa forma, acreditava-se que os “índios do Nordeste” se encontravam em
crescente “deterioração” cultural, uma vez que não apresentavam mais os traços culturais de
outrora. Na década de 1970, os trabalhos de Amorim (1970) e Silva (1978) mostram o grupo
numa outra perspectiva, influenciados pelas ideias de “assimilação” e “aculturação”. Naquele
momento, acreditava-se que as populações indígenas estariam em vias de desaparecer, devido
ao intenso contato sofrido com a sociedade envolvente.
Todos esses trabalhos apresentam os Pankararu pelo viés culturalista ou
assimilacionista. Cabe ressaltar que eles são fruto do pensamento corrente na época, mas
deixaram de perceber as particularidades que o grupo possui. O trabalho de Arruti (1996) se
destaca dos estudos entre os Pankararu por apresentar uma pesquisa centrada nas
“emergências étnicas” a partir dos “rearranjos territoriais” pelos quais o grupo foi submetido
durante todo o processo histórico. Valendo-se de uma abordagem teórica da antropologia e da
29
história, o autor analisa como os processos de “territorialização” e “reterritorialização”
marcaram a organização social e simbólica do grupo, evidenciando as disputas entre
diferentes atores sociais, sobretudo aqueles ligados aos órgãos indigenistas. O território é por
ele compreendido como um campo relacional que conjuga diferentes agentes e agências, em
especial, a memória, e que está em constante produção de etnicidade. Ele também evidencia
como o grupo está em constante redescoberta do seu “segredo”.18
Outros trabalhos são os de Mura (2012) e de Matta (2005), com quem estabeleço um
diálogo importante nesta pesquisa. No primeiro, a autora analisa a tradição de conhecimento,
os processos rituais e os aspectos políticos associados a eles entre os Pankararu. Mura possui
uma abordagem processual que oferece uma dimensão histórica aos eventos sociais. Segundo
a autora, os Pankararu compreendem o mundo a partir dessa elaboração cultural que se
configurou a partir de uma adaptação de um contexto específico, onde diferentes esferas
sociais (políticas, jurídicas, culturais) estavam atuando. Um dos argumentos centrais da autora
é a de que antes desse “processo de territorialização”, ou seja, antes da implementação do SPI
(Sistema de Proteção aos Índios), em 1930, as famílias possuíam também uma autoridade
significativa na resolução e mediação de conflitos.
Dando especial atenção às famílias, ela analisa os circuitos e as performances rituais,
destacando a presença de diferentes atores sociais envolvidos (especialistas rituais, lideranças
mágico-religiosas, conselheiros etc.). Mura privilegia uma análise da vida cotidiana familiar
(famílias e troncos), destacando a importância que estas possuem enquanto unidades sociais e
políticas, e também como protagonistas da tradição do conhecimento. A família é
compreendida pela autora como uma unidade social política fundamental, mediadora de
conflitos com outras entidades, como, por exemplo, o conflito entre posseiros, Funai, não
indígenas etc. A autora também analisa os diferentes “fluxos culturais” (penitentes e praiás)
existentes entre o grupo, verificando de que forma os atores sociais envolvidos nesses fluxos
orientam moral, espiritual e religiosamente o grupo.
18 O “segredo” expressa as particularidades culturais que um grupo possui ou que está em vias de descobrir.
Segundo Arruti (1999), o “segredo” está associado a “fragmentação identitária” que o grupo Pankararu vem
sofrendo desde a década de 1940. No período das emergências étnicas do Nordeste, grupos indígenas ensinavam
o Toré a outros grupos emergentes, para que estes descobrissem o seu próprio “segredo”. Segundo o autor, “a
transmissão do Toré não implica no simples ensino de uma coreografia, nem se trata do "resgate" de uma
tradição, por motivos de preservação cultural, mas fundamentalmente na transmissão de uma força de natureza
mágica. "Ensinar Toré", implica na transmissão da "semente", "ensinar o caminho até os Encantados", que o
grupo emergente, do seu lugar de ponta de rama, perdeu ao longo das sucessivas misturas a que foi submetido.
Depois de recebida a semente, de transmitir o Toré e os toantes, cabe ao grupo emergente descobrir o segredo de
sua relação com os Encantados, segredo que ao final passa a ser o fulcro da identidade do grupo” (Arruti, 1996:
65).
30
Ao mesmo tempo, a autora nos dá alguns subsídios para se pensar a noção de pessoa
entre o grupo. Mesmo esse tema não sendo o objetivo de sua pesquisa, ela chama a atenção
para o quadro de moralidade que orienta o grupo, como os resguardos alimentares e sexuais.
Ela também aponta uma diferenciação de comportamento entre os gêneros, cabendo aos
homens a “valentia, a brabeza e a coragem”, e às mulheres, “o sacrifício, o sofrimento e a
paciência”. Concordo com a autora nesse aspecto, mas acredito que o sofrimento seja um
sentimento presente na vida social do grupo sem distinção de sexo ou gênero, uma vez que ele
é um dos elementos centrais que compõe a pessoa Pankararu. Tanto nos rituais da Penitência
quanto na Corrida do Imbu ele está presente, evidenciando aspectos cosmológicos do grupo.
Já o trabalho de Matta (2005) faz uma etnografia dos rituais Penitência e Corrida do
Imbu entre os Pankararu, analisando os processos de promessas e cura atrelados a eles. Sua
análise apresenta uma descrição detalhada de como cada ritual ocorre, os atores sociais
envolvidos e a importância que eles possuem para o sistema mágico-religioso do grupo.
Segundo a autora, em ambos rituais há uma relação de cooperação e aliança entre humanos e
não-humanos, onde os homens e mulheres oferecem sacrifícios em troca de proteção e cura,
garantindo, assim, o elo de comunicação entre esses dois mundos. A autora parte de uma
abordagem durkheimiana, ou seja, uma análise na qual o sistema de representação do mundo
tem origem na religião, operando dentro de um mundo sagrado e um mundo profano. Nesse
sentido, para ela, as manifestações dos rituais são representações coletivas que exprimem a
vida social pankararu.
Segundo a autora, a penitência entre os Pankararu é diferente daquela feita pelos
católicos cristãos, uma vez que neste dogma o espírito da pessoa que morre vai para o céu ou
para o inferno. Para os penitentes indígenas, aqueles que morrem continuam vivendo entre os
vivos, cumprindo penitência nos cruzeiros das serras, nos quintais de casa ou em beiras de
estrada, sempre ao redor de uma cruz. A Penitência pankararu é diferente também porque eles
realizam, junto aos encantados, homenagens a pessoas que já faleceram ou pessoas que
possuem uma importância para o grupo. Matta enfatiza que o grupo possui um sistema
mágico-religioso complexo, composto por diferentes entidades, entre elas os encantados (que
podem ser bons ou ruins), os espíritos, os mortos, os exus, entre outros. Ao final de sua tese,
ela conclui que esses rituais são como “duas correntes”, pois estão vinculados à corrente dos
encantados e a corrente da Santa Cruz, sendo as pessoas e os saberes envolvidos nessas
correntes que garantem a perpetuação da comunidade pankararu.19
19 A corrente pode ser compreendida como um feixe de conhecimento.
31
Entre os trabalhos que analisam os Pankararu em contexto urbano, destacam-se os
trabalhos de Albuquerque (2011), Nakashima (2009) e Lopes (2011). No primeiro, o autor
centraliza sua análise na “dança dos praiás”20 realizadas na cidade de São Paulo, rituais que
são por ele compreendidos como uma “tradução intercultural contra hegemônica” a qual dota
os Pankararu de “capital simbólico” frente ao preconceito que sofrem na capital paulista. Já o
segundo trabalho, analisa a inserção de alunos Pankararu numa escola pública do bairro do
Real Parque. Segundo o autor, a escola possui um processo de marginalização e exclusão da
cultura Pankararu dentro “da ordem hegemônica da cultura escolar”. Nesse processo, há um
nível de negação de identidade étnica por parte desses alunos por eles não se sentirem parte da
população indígena ou por medo de sofreram discriminação pela comunidade escolar. Ambos
autores concebem a “dança dos praiás” na cidade de São Paulo como uma performance, ou
seja, um ato político e ritual que promove a visibilidade social do grupo na capital paulista.
Em relação à saúde Pankararu, destacam-se os trabalhos de Athias (2006) e Lopes
(2011). No primeiro, o autor analisa aspectos da sexualidade do grupo. Sua atenção está
voltada às formas de reprodução sexual e das doenças associadas às reproduções biológicas,
considerando a interação entre população e ecossistema como fatores importantes na
reprodução social. Ele também evidencia a participação das rezadeiras no processo de cura
dos indivíduos, mostrando como a biomedicina atua como uma complementação dos saberes
tradicionais.
Já o trabalho de Lopes (2011) busca compreender a integração das formas tradicionais
de cura com a biomedicina, enfatizando as tensões e os processos de “tradução” e
ressignificação que os elementos rituais passam no contexto urbano. O autor nos apresenta um
momento bastante importante do grupo, que foi a criação do PSFI (Programa de Saúde da
Família Indígena) na UBS do Real Parque, evidenciando os processos políticos envolvidos e a
demanda reivindicatória do próprio grupo. Ao mesmo tempo, ele apresenta como o trabalho
das rezadeiras, na cidade de São Paulo, assumo um papel fundamental como manutenção da
sua identidade étnica.
20 A “dança dos praiás” ou Toré é o ritual no qual se manifestam os encantados pelos dançadores, os praiás. Esse
ritual pode ter um caráter doméstico ou público, sendo realizado em eventos, escolas, celebrações etc. podendo
ter a participação de não indígenas.
32
Apresentação dos capítulos
Esse presente trabalho encontra-se dividido em três capítulos. No primeiro, “Modos de
ser e habitar”, apresento a família Pereira, e como a casa, no desenvolvimento dessa pesquisa,
apareceu como um elemento importante para compreendermos a organização social
Pankararu, se constituindo como um lugar de produção de afetos, relação e memória do
grupo. Nos espaços domésticos como cozinha, quintal e “salão de trabalho”, procuro
demonstrar como a noção de pessoa e a produção da memória encontra-se relacionada com a
casa, sendo ativada ou mantida a partir dos eventos cotidianos estabelecidos. Em seguida,
apresento aspectos da corporalidade Pankararu, como a relação entre mãe e filho, mostrando
como o afeto e a proximidade constroem os laços de parentalidade entre o grupo.
No segundo capítulo, “Modos de caminhar”, apresento a mobilidade pankararu como
um modo de produção de vida, demonstrando como o deslocamento entre um lugar a outro
surge como modos diferentes de habitar e construir relações. Apresento também a
particularidade da trajetória da família de Bino, marcada pela tensão entre aldeia e cidade. A
partir da história de vida de quatro membros de sua família, Bino, Ninha, Dora e Roziani,
estabeleço conexões que nos ajudam a pensar essa família como uma personagem social
dotada de significados importantes, uma vez que nos revelam aspectos importantes da vida
social do grupo.
No último capítulo, “Modos de curar”, mostro as várias formas de cura entre os
Pankararu. Apresento o ritual a Queima do cansanção, que compõe o ritual a Corrida do
Embu, a Penitência e os rituais de cura realizados pelas rezadeiras, mostrando como eles nos
revelam aspectos da cosmologia e que estão presentes também na vida cotidiana do grupo. O
sacrifício corporal, o sofrimento e o asseio são aspectos fundamentais para o processo de cura
do indivíduo. Analisado como uma purificação e consagração, esses rituais são importantes
pois ajudam na manutenção da saúde da pessoa, evidenciando o protagonismo das rezadeiras
nesse processo.
33
Capítulo I
Modos de ser e habitar
Neste capítulo serão analisados os modos de ser e habitar da família Pereira, cuja
trajetória é marcada pela experiência da mobilidade entre a aldeia Brejo dos Padres (TI
Pankararu, PE) e a cidade de São Paulo. Apresentaremos como a proximidade e a
comensalidade, bem como afetos e memória, constroem e mantem, em meio a mobilidade
geográfica, os laços de parentesco e, por meio deles, a condição indígena e a pertença étnica
pankararu. A casa aparecerá como um elemento importante na constituição da pessoa
Pankararu, sendo compreendida como um lócus de memória e de afetos, possuindo uma
analogia com o corpo. Em seguida, abordaremos também como a mobilidade aldeia-cidade se
associa a aspectos do ciclo de vida da pessoa pankararu, como o nascimento, formas de
aprendizagem entre as crianças e a passagem para a vida adulta.
1.1 A família Pereira: caminhos, troncos e ramas
Considerando que uma história de família é um método de análise sócio-antropológica
que objetiva dar conta da trajetória de vida de um sujeito social (Lins de Barros, 1989),
pretendemos apresentar alguns aspectos da vida cotidiana da família Pereira, elucidando,
porém, fatores importantes da vida social Pankararu. A escolha desta família é significativa
pois carrega particularidades importantes, uma vez que ela esteve, durante trinta anos, no
trânsito entre aldeia e cidade. Nesse deslocamento, muito da aldeia foi trazido à cidade e
muito da cidade à aldeia. Há um fluxo constante de mercadorias, bens, comida, memória,
cura, pessoas etc. que circulam entre esses lugares, movimentando e produzindo cultura e
vida. A experiência Pankararu na mobilidade, em especial dessa família, revela as tensões
entre esse ir e vir, pois sair da aldeia implica tanto numa reorganização social do grupo como
num modo de produção de conhecimento.
A família Pereira21 é composta pelo núcleo familiar formado pelo casal Bino e Ninha e
seu neto Ítalo, e pelos demais que compõem a rede de relações formada pelos familiares
ascendentes (pais, tios, avós) e laterais (família dos irmãos de Ninha e Bino, podendo incluir
21 Por conta da descendência agnática, adotaremos o sobrenome da família de Bino, Pereira, para nos referirmos
a sua família nuclear e família ampliada/extensa, assim como é feito entre as famílias Pankararu. Considero a
família como uma rede de relações que se expande para além da sua unidade residencial e que mantem vínculos
afetivos e de ajuda mútua entre si, como já ressaltado por Arruti (1996).
34
também agregados). Eles vivem atualmente na aldeia Brejo dos Padres, com exceção de duas
filhas e um filho de Bino, que moram no Real Parque. Na aldeia, a organização espacial da
família Pereira se dá em linha reta (cf. Croqui 1). Bino mora em frente à Igreja de Santo
Antônio. Na mesma rua dele, a alguns metros, no sentido da aldeia Tapera, moram seu irmão
Moisés, sua irmã Maria do Carmo e sua filha Dora. Sua outra filha, Cida, mora em outra rua,
perpendicular à sua.
Croqui 1 – Croqui da organização espacial da família Pereira.
Segundo Mura (2012), o núcleo familiar do grupo geralmente é composto por pais,
filhos e avós. Para ela, as famílias (aquilo que chamaremos de famílias ampliadas) se
constituem como importantes unidades sociais para os Pankararu, sendo reguladoras da
moralidade entre os indivíduos. A família constitui-se na unidade política e social mais
reconhecida, e, por conta disso, é alvo de avaliações constantes entre as demais. Para
assegurar que ninguém desvie sua conduta moral, nem mesmo transgrida as regras sociais
estabelecidas, há uma divisão de atividades empreendidas por determinados indivíduos.
Dentro desse sistema de condutas, a relação entre jovens e avós é extremamente importante,
pois são eles quem estabelecem a primeira educação dos netos, sendo responsáveis por um
quadro de moralidade.
Para Mura (2012), a criança Pankararu é estimulada desde cedo a conhecer a rede de
relações da família, reconhecendo quem são aqueles a quem ela deve respeito e confiança,
bem como os limites de interação entre os membros do grupo. Esse reconhecimento da
35
autoridade dos mais velhos é ensinado desde cedo, como o pedido da “bênção” dirigido
principalmente “a avós [...] e a quem se deve o devido “respeito”, tanto pela posição ocupada
na genealogia quanto pelas relações íntimas estabelecidas na própria rede de parentesco”
(Mura, 2012: 64). Muitas vezes, Bino era parado por crianças e jovens que pediam sua benção
enquanto caminhávamos até a casa de seus familiares. Essa prática se constitui em o indivíduo
pegar na mão da pessoa a quem se pede a benção, como se fosse cumprimentá-lo. Essas
práticas cotidianas também são recorrentes entre outras populações indígenas, como os
Tupinambá de Olivença (Viegas, 2007) e indicam valorização e respeito em relação aos mais
velhos. Muitas vezes também, quando caminhava junto de Dora, filha de Bino, éramos
interpeladas por crianças que, num tom jocoso, lhe pediam a benção dando gargalhadas,
revelando o humor como uma quebra de regra frente aquela situação (Seeger, 1980). Em São
Paulo, essa prática é também mantida, principalmente entre as rezadeiras.
Essa noção de família descrita por Mura se assemelha a ideia de casa como “pessoa
moral” definida por Lévi-Strauss (1979), ou seja, a casa se constitui como um local onde as
obrigações e os deveres estão centralizados dentro das organizações familiares. Segundo ela:
Cada família extensa é formada geralmente por três (ou quatro) gerações e se
configura como a unidade mínima para a reprodução de um grupo doméstico a partir
de um ponto de vista educacional. Por grupo doméstico se entende aqui o que Wilk
(1984, p. 224-227) denominou “household cluster loose”, isto é, uma unidade
residencial de famílias nucleares com vínculos econômicos livres, na medida em que
seus membros desenvolvem não apenas atividades econômicas em conjunto, mas
também diversificadas, embora todas elas tenham o mesmo objetivo: beneficiar a
família extensa como um todo (Mura, 2012: 52-53).
Assim como a autora, concordamos que a família extensa se beneficie mutuamente e
que seus familiares tenham direitos e obrigações entre si, no qual a relação entre avós e
crianças são importantes nesse processo de interação. No entanto, sugerimos que a criança
também possui uma habilidade em apreender o mundo. Entre os Pankararu, há também uma
relação significativa entre casa≈corpo≈memória, onde a casa é compreendida também como
um santuário.22 Ao mesmo tempo, percebemos que o conhecimento não é dado apenas pela
tradição familiar, e que a família, embora seja uma unidade social importante, é apenas uma
das partes que compõe o socius.
22 Essa relação será retomada e aprofundada no item 1.2, mas adiantamos que a relação entre
casa≈corpo≈memória é pensada através da percepção obtida em relação ao modo como os Pankararu percebem a
casa e corpo de forma análoga. Os mesmos cuidados de limpeza e “fechamento” do corpo para que este não seja
invadido por entidades malignas é feito em relação a casa. Esta também é um local sagrado, onde se
homenageiam mortos e lideranças importantes.
36
Na aldeia, as casas estão localizadas em ruas que são, geralmente, denominadas pelos
sobrenomes de determinada família ou grupo social. Há um processo de identificação
territorial que passa pela casa e pela família, como quando indicam a “Rua dos Nêgo” ou a
“Rua dos Oliveira”. Essa associação que fazem, ligando o nome e o espaço territorial, é
também sugerida por Claudia Mura:
Se alguns sobrenomes e apelidos sobressaem ao se falar das famílias envolvidas na
promoção dos rituais da tradição indígena, há também aquelas que se destacam por
outras características: qualidades morais, consistência numérica e/ou união dos
componentes, riqueza econômica e controle político são algumas delas, que fazem
com que certas famílias se diferenciem de outras e adquiram especial destaque.
Algumas são associadas a específicas localidades dentro da área indígena, ocupando
espaços que tomaram o próprio sobrenome. É o caso da aldeia Saco dos Barros,
onde residem, em sua maioria, os membros da família Barros, renomada por ser
muito numerosa, pela capacidade de se valer de vínculos com influentes políticos do
município de Petrolândia (município de referência desta aldeia) e pela antiguidade
da sua residência no lugar. Embora hoje participem dos rituais da tradição indígena,
os Barros não são considerados parte dos troncos velhos por não terem tido
participação ativa nas reivindicações fundiárias e apenas recentemente terem se
aproximado do circuito experiencial ligado aos rituais. Em outros casos, a posição
alinhada das casas de um mesmo grupo doméstico faz com que a estrada que as
costeia tome seu nome, por exemplo, Rua dos Oliveira, cujos membros pertencem
ao tronco Binga (Mura, 2012: 40 – itálicos do original).
No Real Parque, as famílias extensas reproduzem essa mesma identificação territorial.
Muitas vezes, ao pedir informação sobre a localização de determinada pessoa, ouvi que fulano
morava próximo da família de alguém. Como será apresentado no capítulo 2, o local de
habitação do grupo no Real Parque está concentrada em prédios que foram construídos pelo
Projeto Cingapura e nos conjuntos habitacionais. Nesses blocos, classificados em A, B, C, D e
E, muitas vezes ouvi dizer que os blocos C e D são “o bloco dos índios”, ou que ali “só tem
índio”. Há também uma similaridade em relação a configuração espacial que as famílias
possuem na aldeia, residindo próximas umas das outras. Embora isso necessite de uma
investigação mais aprofundada, algumas famílias com as quais convivi, como a de Roziani,
filha de Bino, e das rezadeiras Lídia e Leidi, residem próxima de seus familiares.23
Essa proximidade física é importante, pois cria mecanismos que facilitam a
administração política e ritual do grupo. Segundo Roziani, uma das principais críticas feitas
23 Em Sapopemba, região da zona leste de São Paulo, há um grupo de Pankararu que iniciaram, desde 2002, uma
luta por moradia através da Associação Movimento Indígena Pankararu – AMIP, em conjunto com o CIMI, a
Pastoral Indigenista e a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo (Sehab-
SP). Entre uma das reivindicações feitas, está a edificação das casas nesses espaços em formato circular e com
um terreiro ao centro para que se realize os rituais do grupo.
37
pelos Pankararu à verticalização das casas na construção dos conjuntos habitacionais24 foi o
fato da prefeitura não ter tido o cuidado de realocar membros de uma mesma família extensa
num mesmo bloco, como feito no Projeto Cingapura, dificultando, assim, dinâmicas políticas
do grupo, o que o leva, atualmente, a disputar e negociar um espaço nas quadras
poliesportivas, onde crianças indígenas e não indígenas brincam e praticam esporte, como
bicicleta e futebol.
Como já ressaltado por Arruti (1996), na aldeia as famílias extensas se distribuem num
mesmo espaço, construindo suas casas uma ao lado da outra. No entanto, num mesmo núcleo
familiar pode também acontecer de os filhos construírem suas casas em círculo, ao redor da
casa central dos pais. As famílias também se organizam por classificações como a dicotomia
“troncos velhos” e “pontas de ramas”. Essa taxonomia não nos revela uma linhagem, como
afirma o autor, mas nos mostra como os Pankararu percebem e compreendem o mundo,
classificando como “troncos velhos” e “pontas de ramas”, respectivamente, os grupos mais
antigos e que detém uma memória ancestral do grupo, e grupos mais jovens, e que podem
estar em vias de encontrar um novo “segredo” e que formam a “grande árvore pankararu”
(Arruti, 1999). Conversando com a rezadeira Leidi, ela contou: “Parente, eu vejo, todos são
parentes, é a nação indígena, todos somos uma família. Até a quarta geração, nós Pankararu
somos O+, que é o sangue grosso. Eu me sinto ponta de rama, que são o povo mais novo”.
Todas essas denominações, troncos velhos, pontas de ramas, família, povo, parente,
nação, sinalizam para um sistema de relações baseadas nos laços de parentesco entendidos de
forma bastante alargada, e que distancia ou aproxima as pessoas conforme o contexto social
estabelecido. Pode-se considerar parente todos aqueles que moram na TI Pankararu, como
certa vez me disse Dora: “Aqui todo mundo é parente, todos aqueles que moram aqui na Terra
Indígena”. Ao mesmo tempo, parente também é aquele que participa das tarefas cotidianas, a
quem se pede ajuda e perto de quem se mora, aproximando-se à ideia de família, que, segundo
Arruti, é:
[...] a classificação social que funciona cotidianamente, definindo aqueles a quem se
pede ajuda, a quem se acompanha nas definições políticas, com quem se planta,
perto de quem se mora, e com quem se compartilha a comida e o trabalho da
"farinhada". Sua organização está diretamente ligada à disposição espacial das casas,
que distribuem-se segundo dois tipos de disposição: ou agrupadas lado a lado, em
linha reta ao longo das principais vias de acesso internas à área, ou em grupos de
casas de uma mesma família, cuja disposição tende à forma circular, com o foco
gravitacional na casa do patriarca (Arruti, 1996: 130).
24 O bairro do Real Parque faz parte de um projeto de “verticalização de favelas” que teve início na década de
1990 em bairros com construções consideradas “irregulares” pela prefeitura de São Paulo. O primeiro projeto,
chamado “Projeto Cingapura”, corresponde as primeiras construções e o segundo, denominado Conjuntos
Habitacionais, faz parte da sua continuação.
38
Assim, percebemos que existe uma noção ampliada de casa entre os Pankararu, com a
circulação de consanguíneos entre elas. Outro aspecto importante da organização social é a
questão da diferenciação espacial e sexual na casa. A família Pereira encontra-se organizada
espacialmente próxima a seus familiares. É comum os parentes fazerem visitas cotidianas
entre as casas, seja para dar uma notícia, levar ou trazer alimento, ou mesmo passear.
Circulando junto com os parentes, entre uma casa a outra, tanto em visitas diárias quanto nos
“pratos”25, notei que em alguns espaços domésticos como a cozinha e o quintal, por exemplo,
há uma circulação maior de mulheres. No dia-a-dia, é Ninha quem prepara a comida e cuida
do quintal. Dora também, em sua casa, cuida do quintal, no qual planta milho e feijão, e
possui uma pequena criação de galinhas. Nos “pratos”, as mulheres cozinham o pirão no
quintal, e depois finalizam o preparo da comida na cozinha, enquanto os homens se
concentram na sala, se “preparando” para o ritual.
A roça é um lugar que recebe cuidados tanto de Bino quanto de Ninha. Ela fica
localizada há mais ou menos um quilômetro da sua residência. Certa vez, fomos colher
mandioca, andu e pinha ali, e parte desses alimentos foram enviados a seus filhos que moram
na capital paulista. Em outros momentos, Ninha colheu cana-de-açúcar, e no processo final,
depois de preparado o caldo de cana, conhecido como “garapa”, ela colocou-o em garrafas de
plástico e distribui a alguns vizinhos e familiares. No dia-a-dia, é comum eles consumirem a
“garapa” azeda, sem refrigerá-la; em algumas casas que visitei, foi-me oferecido a “garapa”
azeda também. Nos rituais, essa bebida é feita através da rapadura, processo no qual a
dissolvem e a consome na sua forma adocicada.
No Real Parque, é comum, nas casas das famílias Pankararu, receber uma visita com
café ou uma fruta, como murici, pinha, banana e imbu. Esses alimentos são trazidos da aldeia
por familiares que viajam até São Paulo para realizar atendimento médico ou visitar seus
parentes. Eles se deslocam em ônibus de turismo, que dura, em média, três dias de viagem.
Em relação a família Pereira, essa troca de mercadorias com os familiares da cidade é
facilitada porque Bino trabalha numa agência de transporte vendendo passagens de ônibus à
capital paulista, como forma de complementar a renda familiar, uma vez que é aposentado.
Na aldeia e na cidade, o casamento entre o grupo é feito tanto entre indígenas quanto
não indígenas. No entanto, como já ressaltado por Matta (2005), o matrimônio com os não
indígenas é realizado sem muita resistência, embora existam reservas quanto à participação
25 “Prato” é o nome dado a um pagamento de promessa feito pelos Pankararu, que consiste num ritual no qual é
oferecido carne de carneiro, arroz e pirão de peixe para os encantados e convidados, servidos num prato de
cerâmica.
39
destes nas organizações políticas e religiosas do grupo. É comum também o casamento entre
primos, sendo este altamente desejável (Arruti, 1996; Mura, 2012) como Bino e Rozi me
relataram:
Eu: Você me falou que Ninha é sua prima, sua prima legítima. Tem bastante caso
assim por aqui?
Bino: Tem, aqui tem bastante caso, muitas pessoas assim ó. Meu pai era primo
legítimo de minha mãe. O pai da minha mãe é irmão do pai do meu pai. Quer dizer
que eles são primos legítimos, filho de dois irmãos, né? Então desses aí tem muitos
aqui... aqui tem muitos que é casado até as vezes com a tia! (risos) Essa que eu tenho
aqui [se referindo a Ninha], ela é prima legítima de meu pai, ela tá em lugar de
minha tia. É tanto que a irmã dela eu chamo é de tia Maria (Entrevista com Bino,
março de 2015).
Aqui no Real Parque tem bastante casamento entre primos. A Elisângela, minha
prima, é casada com primo de sangue, sangue, não é primo de terceiro, quarto grau,
não. É filho da tia dela, que é minha prima, sobrinha do meu pai. Ela é casada com o
primo dela, mas que é a da parte da mãe dela. A Edilene também era casada com o
irmão da Elisangela, que também é primo mesmo, que era da família da mãe dela.
Então, assim, tem várias famílias casada dessa forma (Entrevista com Roziani,
outubro de 2016).
Bino se casou com sua prima, Ninha, que, segundo ele, “são primos legítimos”, ou
seja, possuem um grau elevado de parentesco. Este fato nos sugere pensar que pode haver
uma preferência entre casamento com a parentela dos cônjuges. Como já ressaltado por
Radcliffe-Brown ([1941] 1973) e Lévi-Strauss ([1967]1982) a formação de alianças com o
casamento entre primos cruzados e paralelos é uma estratégia difundida em muitas
sociedades. Talvez possamos pensar esses casamentos pankararu com parentes como uma
estratégia de aliança. No entanto, seria necessário um estudo mais detalhado sobre isso para se
compreender qual a extensão dessa aliança e quais parentes são proibidos/não desejados por
ela.
Depois do casamento, é comum o recente casal ir morar na casa da família do marido,
como ocorreu com Yan, de 18 anos, um dos netos de Bino. Ele estava próximo de se casar
com uma moça chamada Vitória e que já morava na casa da família dele, auxiliando nas
tarefas domésticas com a mãe de Yan. Entretanto, embora a tendência de residência pós-
marital seja virilocal, há casos de matrilocalidade e neolocalidade entre o grupo (MURA,
2012, p. 56). Segunda Mura (2012), embora a descendência agnática seja a mais difundida
entre o grupo, a descendência bilateral é também aplicada. Para ela,
[...] a descendência agnática ganhou particular importância a partir de uma
progressiva valoração da paternidade, num contexto que requer a afirmação
masculina segundo uma lógica cristã imposta. Nesse caso, os capuchinhos franceses
tiveram papel fundamental na disseminação dessa mudança cultural, uma vez que
40
não permitiam que as mulheres dominassem os homens ou tivessem poderes sobre
eles (Mura, 2012: 56-57).
Na família Pereira, o casamento com não indígena é comum. Ninha e Bino tiveram
seis filhos, dos quais três nasceram e vivem no Real Parque: Roziani, Diana e Eloi, e três,
Dora, Aparecida e Cícero, nasceram e moram na aldeia, com exceção do último, que mora em
Taboão da Serra (SP).
Roziani é casada com um não indígena e possui três filhos homens: um, do primeiro
casamento; e dois do segundo. Seu filho mais velho, Thales, tem hoje 15 anos e participou de
inúmeras apresentações da “dança dos praiás” realizada na cidade. Ela é formada em
Pedagogia pela PUC-SP pelo Programa Pindorama26 (assim como suas irmãs Dora e Diana) e
atualmente trabalha como cabelereira.
Dora foi casada duas vezes com homens não indígenas, dos quais teve dois filhos do
primeiro casamento: Ítalo, de 18 anos e Íngrid, de 16; e um filho do segundo casamento,
Mathäus, de 4 anos. Atualmente ela é Professora de Educação Básica na TI Pankararu.
Cida também é casada com um não indígena e teve dois filhos, Yan, de 18 anos e
Ryan, de 16 anos. Atualmente mora na aldeia e trabalha como autônoma.
Diana foi casada com um não indígena e tem uma filha de 13 anos chamada Thainá.
Ela iniciou seus estudos em Pedagogia na PUC-SP, mas não finalizou o curso. Atualmente,
trabalha numa biblioteca municipal como recepcionista de portaria.
Eloi foi casado com uma não indígena e tem uma filha, Vitória, de 5 anos. Ele iniciou
seus estudos em Fisioterapia na PUC-SP, mas não o finalizou e atualmente trabalha como
autônomo.
Cícero é casado com uma Pankararu e tem dois filhos: uma do primeiro casamento,
Quiara, com 18 anos; e um do segundo, chamado Quian, com 12 anos.
26 O Programa Pindorama foi criado em 2008 e recebe apoio de diferentes instituições, entre elas a FUNAI, a
Pastoral Indigenista da Arquidiocese de São Paulo, Colégio Santa Cruz e o Museu da Cultura PUC-SP. O
Programa já formou 150 alunos indígenas, de 14 etnias, Atikum, Funil-ô, Guarani Mbyá, Guarani Nhadeva,
Kaxinawá, Kaimbé, Krenak, Pankararu, Pankararé, Pataxó, Potiguara, Xavante, Xucuru do Ororubá e Xucuru-
Kariri. Como pré-requisito à vaga, o aluno deve ser indígena e morador de São Paulo ou da Grande São Paulo,
possuir uma declaração da comunidade indígena de origem, passar no vestibular e comparecer nas reuniões
mensais oferecidas pelos coordenadores do Programa, que “são formativas e de convivência. Fonte:
http://www.pucsp.br/pindorama/#project-descricao. Último acesso no dia 25/07/16, às 19h14.
41
Croqui 2 – Croqui da genealogia da família Pereira.
Analisando o deslocamento da população Tukano, localizada próximo ao rio Uaupés,
para a cidade de São Gabriel da Cachoeira, cidade amazônica localizada no Alto Rio Negro,
Lasmar (2005) verifica que o casamento das mulheres indígenas com o homem branco é
altamente desejável porque oferece benefícios de ordem econômica à família da mulher,
ampliando sua rede familiar e a circulação de parentes, assim como obtém maior acesso ao
universo de bens materiais. Sendo assim, a mulher casada com o branco, na cidade, consegue
oferecer auxílio financeiro e infraestrutura aos seus parentes que vem do interior, sendo “uma
forma de incrementar o seu prestígio no interior da família extensa” (Lasmar, 2005: 168). No
entanto, o casamento com o homem branco também trouxe problemas significativos à noção
de pessoa, pois, sendo a filiação agnática, as crianças nascidas dessa união teriam que receber
o nome da família do pai.
Entre os Pankararu, percebo que o casamento das mulheres com o homem branco, na
cidade, não promove um incremento de prestígio ou econômico à família extensa da mulher,
como é percebido entre os Tukano. Tal afirmação se baseia pelas conquistas do grupo na
capital paulista. Os Pankararu possuem acesso ao atendimento de saúde na capital paulista,
sobretudo pelo Ambulatório do Índio27, e muitos se deslocam da aldeia até a capital paulista
27 O Ambulatório do Índio, criado em 1992 pelo Hospital São Paulo é ligado ao Departamento de Medicina
Preventiva da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), vinculado ao Projeto Xingu, projeto de extensão
da mesma universidade. Ele tem como objetivo atender os indígenas de todo o país, sobretudo aqueles que
viajam à São Paulo para realizar tratamento considerados “de alta complexidade”. No entanto, o ambulatório
acabou sendo um local de resistência para alguns grupos, como os Guarani e os Pankararu, que passaram a
42
para esse fim. Da mesma forma, criaram, em parceria com a FUNAI, a Pastoral Indigenista da
Arquidiocese de São Paulo e a PUC-SP (Pontífice Universidade Católica de São Paulo), o
Programa Pindorama, que promoveu o acesso de muitos Pankararu à universidade. Assim, o
acesso aos bens, como saúde e educação, se deu através de reivindicações feitas pelo grupo
por políticas públicas que o beneficiassem.
A educação é um elemento importante e de prestígio às famílias Pankararu. A
educação superior, nesse sentido, é altamente recomendada e valorizada, pois possibilita
maiores benefícios às famílias, sendo considerada como um incremento ao valor moral do
indivíduo, pois é ela quem poderá ofertar, futuramente, maiores auxílios ao tronco familiar,
seja em recursos pessoais aos familiares, até postos importantes dentro de cargos
administrativos do Estado. A trajetória de vida da família Pereira é interessante porque nos
mostra a importância em se obter algum tipo de capital simbólico “fora” da aldeia, ao mesmo
tempo em que nos revela as tensões entre moralidade e mobilidade enfrentadas por ela
durante seu processo de reinserção no grupo depois de tantos anos morando no Real Parque.
Como mencionado, há um conjunto de condutas que orientam e organizam os
indivíduos em sua vida social e familiar. Mura (2012) chama a atenção para esse quadro de
moralidade, apresentando uma diferenciação sexual entre esses comportamentos. Para ela, o
“sacrifício, o sofrimento e a paciência” figuram como os principais qualificativos entre as
mulheres, enquanto a “valentia, a brabeza e a coragem” são atributos frequentemente dados
aos homens. Para ela, o sofrimento se encontra presente nas falas e narrativas das mulheres
mais velhas, enaltecendo o tempo gasto com o cuidado dos filhos, enquanto os maridos
trabalhavam em outros locais.28
Esse quadro moral relativo aos homens encontra semelhanças com algumas situações
que presenciei na aldeia, onde a violência com a mulher aparece dentro de uma lógica moral
justificada pelas suas condutas “desviantes”. Duas mulheres Pankararu haviam sido
assassinadas pelos seus companheiros. Uma teve seu corpo encontrado no rio São Francisco e
a outra teve seu corpo queimado. Em ambos os casos, o motivo dessa violência, segundo me
contaram, fora provocado pelos ciúmes dos seus companheiros em não aceitar que elas
transgredissem as condutas a elas imposta, como o fato de não frequentar espaços para
homens, em casas onde prevalece a circulação masculina. Quando as mortes aconteceram,
reivindicar atendimento médico também às populações indígenas que vivem em contexto urbano (Assumpção,
2014: 147-151). 28 No entanto, percebo que o sofrimento é um elemento que merece destaque, pois é um sentimento presente na
trajetória de xamãs, participando também da vida cotidiana tanto de homens quanto de mulheres, pois ele é
fundamental para o processo de cura.
43
ouvi muitos dizerem, tanto homens quanto mulheres, que a violência contra elas seria
inevitável, uma vez que elas não cumpriam com a sua “moralidade”, como se elas tivessem
provocado sua própria violência. Nesse sentido, percebe-se uma moralidade mais rígida às
mulheres que aos homens, exigindo delas bons modos de comportamento e uma maior
vigilância de suas atitudes e desejos.29
Como vimos, a família Pereira mora próxima aos seus familiares, e essa configuração
espacial se dá tanto na aldeia quanto na cidade. O casamento entre não indígenas é permitido,
havendo resistência para adentrar nas esferas políticas e xamânicas do grupo, e a educação é
um elemento de prestígio ao tronco familiar. A seguir, abordaremos aspectos da casa que a
configura com uma analogia à pessoa, sendo um local de afeto e memória. É nela onde se
realizam os rituais de curas e muitos dos espaços que a compõe, como o quintal, a cozinha e a
varanda, nos revelam aspectos importantes da cosmologia do grupo.
1.2 A casa: produção de afeto, pessoa e memória
A casa, entre os Pankararu, pode apresentar uma analogia com o corpo da pessoa.
Assim como o corpo, ela precisa estar “fechada” para não ser alvo de ameaças de entidades
malignas. Para que isso não ocorra, os Pankararu costumam colocar uma cruz de proteção nas
janelas e portas, zelando pelo recinto. Quando ela é atingida por algum mal, uma rezadeira é
chamada para “limpá-la” e remover essa ameaça ou feitiço. Os rituais de cura são realizados
no “salão de trabalho”, lugar sagrado30 que funciona como uma edícula da casa e na qual
apenas pessoas autorizadas podem entrar. Tanto na aldeia quanto na cidade, é comum as
famílias colocarem pequenos praiás nas estantes da sala, ao lado da imagem de outras figuras
importantes para o grupo, como o Padre Cícero. No Real Parque, como os espaços são
menores, o “salão de trabalho” funciona no mesmo local da sala, sendo realizados os rituais
de cura na casa do enfermo.
Como nos sugere Halbwachs (2006), a memória se encontra sedimentada em um
contexto espacial, como uma “comunidade afetiva”. Essa comunidade é um espaço onde os
29 Segundo Fonseca (2015), ainda são incipientes os estudos sobre violência contra a mulher indígena e deve-se
investigar as particularidades de cada etnia, uma vez que a violência pode estar atrelada a conflitos interétnicos,
entre indígenas e não indígenas, ou conflitos intraétnicos, entre mulheres e homens indígenas (Fonseca, 2015:
92). Assim, a violência contra as mulheres Pankararu pode tanto estar associada a um conflito interno ao grupo,
no qual os qualificativos masculinos valentia e brabeza poderiam auxiliar na compreensão em relação a violência
de gênero, quanto externo, necessitando de dados e de estudos mais aprofundados para que isso seja averiguado. 30 O sagrado é compreendido aqui como uma categoria nativa que designa lugares, objetos e pessoas que se
intercomunicam com o mundo sobrenatural do cosmos Pankararu. Isso será abordado no capítulo 3.
44
atores sociais presentes se recordam de uma lembrança, pois compartilham um domínio
comum. Para que ela exista é necessário um laço de afeto interligando o grupo. Embora o
autor afirme ser possível que o indivíduo possua lembranças pessoais, ele enfatiza que essas
recordações são produzidas através das nossas relações sociais inseridas num meio coletivo.
Se lembramos, fazemos isso porque os outros estão presentes para nos fazer ouvir e lembrar:
Os fatos e as noções que temos mais facilidade em lembrar são do domínio comum,
pelo menos para uns ou alguns meios. Essas lembranças estão para “todo o mundo”
dentro desta medida, e é por podermos nos apoiar na memória dos outros que somos
capazes, a qualquer momento e quando quisermos, de lembrá-los (Halbwachs, 2006:
49).
A noção de casa compreendida neste trabalho também se assemelha ao termo utilizado
por Viegas (2007), entre os Tupinambá de Olivença, que privilegia a relação entre casa e
pessoa enfatizando como os lugares influenciam na produção de socialidade, criando novos
sentidos de habitar, fugindo da ligação entre casa e pessoa como sujeito e objeto, mediada
pela posse alienável (Viegas, 2007: 100). Para Viegas, a casa não é compreendida como uma
propriedade ou mercadoria, expressa apenas em seu âmbito jurídico, nem como uma unidade
domiciliar isolada sem ligação com os demais locais, como o quintal ou a roça, mas como um
lugar que se interconecta com os demais espaços domésticos pela memória afetiva e pelas
práticas alimentares.
É num sentido correlato a este que pretendo enfatizar que a casa, entre os Pankararu,
possui uma analogia com o corpo e é um lugar da memória, ao mesmo tempo em que seus
diferentes lugares (cozinha, quintal, “salão de trabalho”) revelam uma diferenciação de
produção de afetos e relação.
* * *
Quando o ônibus parou no Trevo de Itaparica, município localizado a 500 km da
cidade de Recife, por volta das dez e meia da noite, o posto de gasolina “João Gomes” situado
à frente do trevo e que Bino havia me dado como referência, encontrava-se fechado. Não
havia nenhuma iluminação no local, apenas os faróis do ônibus, que logo partiria. Bino estava
acompanhado de um sobrinho que cedeu seu carro para nos conduzir até a aldeia Brejo dos
Padres. Naquele horário, não havia mais moto táxi31 prestando serviços na região. Levamos
31 Os veículos motorizados são raros na aldeia, mas nos últimos dez anos a presença de motocicletas vem
aumentando gradualmente.
45
mais vinte minutos até chegarmos em sua casa. No caminho, Bino contou que os buracos na
estrada estavam piores por conta das chuvas recentes. Segundo ele, o prefeito de Jatobá
manda pavimentar a estrada com pedras uma vez ao ano para assentar a terra, mas ainda não
havia mandado até aquele período.32
Como visto, a casa de Bino está localizada em frente à Igreja de Santo Antônio. A
igreja é considerada o local de “origem” da aldeia, abarcando um pequeno comércio local e
uma praça circunscrita a ela, na qual se realizam as feiras de domingo e onde alimentos e
utensílios diversos são trazidos das cidades vizinhas. Este lugar é também o ponto de saída
das caminhonetes D20, que realizam o trajeto até Petrolândia, Tacaratu e Paulo Afonso, e
onde as crianças aguardam, pela manhã, a saída do ônibus escolar. Portanto, há um fluxo
constante e intenso de pessoas e mercadorias que passam pelo local, o que facilitou o meu
contato com outras pessoas e, com isso, a possibilidade de ter uma visão mais ampla da vida
do grupo nesta aldeia.
Figura 1 - Desmontando a feira de domingo, em frente à Igreja Santo Antônio (Arquivo Pessoal).
Assim que cheguei na casa fui apresentada à esposa de Bino, Maria Senhorinha da
Conceição, conhecida como Ninha. Naquela ocasião, ela disse “que eu fosse cozinhar o que
quisesse pra comer”. Fui até a cozinha e fritei um ovo, ouvindo ela dizer “torre mais seu ovo,
deixe ele torrado”, o que para eles significa “fritar” mais, não o comendo cru. Aos poucos, fui
percebendo que minha “entrada” na cozinha, preparando os alimentos e ajudando-a nas
tarefas domésticas, também dava acesso a uma relação com ela. A cozinha, assim como o 32 Como já mencionado, a aldeia Brejo dos Padres está localizada na TI Pankararu, em Pernambuco, entre as
cidades circunvizinhas de Tacaratu, Jatobá e Petrolândia. Por conta disso, há um processo de negociação entre
essas três prefeituras em assuntos sobre a distribuição de políticas públicas na aldeia, como a coleta de lixo, por
exemplo. Como o território da aldeia “atravessa” essas três regiões, há uma dificuldade em atribuir responsáveis
por tais atividades.
46
quintal, são espaços de circulação predominantemente feminina, sendo um lugar de intensa
comunicação onde se criam e se estabelecem vínculos sociais e afetivos.
As tarefas domésticas são feitas por Dona Ninha, como o preparo da comida,
arrumação da casa, lavar e passar as roupas, bem como cuidar da roça (cf. explicação abaixo).
O cuidado com o quintal também é feito por ela, e este constitui um espaço doméstico
importante pois nos revela aspectos cosmológicos da vida social do grupo. Nele são plantadas
ervas medicinais e sagradas, que são utilizadas em rituais, algumas plantas e frutas, e a
placenta da mulher, que é enterrada logo após o parto. A distância espacial dos espaços
domésticos reflete a distância social entre as pessoas, revelando também a diferenciação entre
sociabilidades femininas e masculinas, como veremos a seguir.
1.2.1 Cozinha, varanda, “salão de trabalho”: relação, afeto e cura
A casa, enquanto espaço vital onde se mantêm e se atualizam memórias, relações,
afetos e onde se constituem e circulam pessoas, configura-se como um lócus privilegiado para
se compreender a organização social pankararu, sendo o local de manutenção da memória e
de produção de pertencimento familiar, étnico e religioso. Abaixo, descreveremos alguns
desses lugares que compõem a casa entre os Pankararu.
No Brejo dos Padres, uma casa geralmente é composta por: a unidade residencial33, o
quintal, a roça e os “caminhos” que interconectam esses locais e que pode também possuir
uma coextensividade com outras localidades.34 É comum também a presença de cisternas nas
casas, por conta da escassez de água. As rezadeiras e os donos de praiás, por possuírem uma
maior comunicabilidade com os encantados, possuem uma casa com uma configuração
diferente, composta por: unidade residencial, quintal, terreiro, poró, a casa do zelador de praiá
e o “salão de trabalho”.
No Real Parque, como há uma outra configuração espacial e temporal, os lugares
adquirem outras formas de organização social. Como já mencionado, a sala, por exemplo,
muitas vezes assume a função do “salão de trabalho”. Os “pratos” também são realizados na
33 A unidade residencial ou residência é compreendida como um espaço onde as pessoas comem e dormem. 34 Embora não tenhamos tempo para aprofundar essa questão da coextensividade, sinalizamos que esse tema
merece ser melhor investigado, pois parece existir uma noção de casa ampliada, que corresponde tanto a sua
edificação (“casa”) quanto a uma dimensão espacial maior (“Casa”) que pode nos remeter a um território
Pankararu. Agradeço a professora Verena Sevá Nogueira por ter chamado a atenção a esse fato.
47
casa de quem paga a promessa. Há também um jardim que fora utilizado, num primeiro
momento, como uma horta comunitária, abrigando animais como galinha e cabra.
Na aldeia, os terreiros são espaços sagrados, considerados como um “santuário”, de
“muito respeito”, (Matta, 2005: 70), e possuem, em média, de 30 a 40 m². Cabe ressaltar,
porém, que há casas onde os terreiros não são usados para fins rituais, não tendo essa
característica de sagrado, sendo apenas um espaço adjunto da casa. Assim, quando me referir
ao terreiro, estarei indicando especificamente aqueles onde os rituais acontecem.
No Brejo dos Padres, o terreiro do Poente - conhecido como terreiro dos Calu - e do
Nascente são os mais conhecidos. É neles onde rituais como Corrida do Imbu, Noite dos
Passos, Três Rodas e Menino do Rancho são realizados. O ritual Queima do cansanção, é
realizado nos terreiros do Araticum e Muricizeiro. A fase final do ritual acontece na aldeia
Serrinha, no terreiro do Mestre Guia, onde a participação de não indígenas é mais restrita.
Nesses espaços, não é permitida a circulação de pessoas que não estejam autorizadas, sendo
necessário um pedido de autorização prévia para visitá-lo e/ou registrar os eventos em áudios
visuais. Esse local possui uma força simbólica grande, pois é nele onde os encantados se
manifestam e realizam um embate com os homens.
O poró é um espaço sagrado que compõem o terreiro, reservado aos homens e aos
“praiás”. São feitos de palhas de ouricuri35, sem janelas e possuem apenas uma entrada, sendo
vedada a circulação de mulheres no seu interior. Segundo Bino, esse local é destinado aos
“praiás” para descanso e concentração durante os rituais. Neste lugar eles fumam o campiô36,
tocam gaita, alimentam-se e bebem a “garapa”. Para Matta, “quando os praiás entram no poró
a impressão é de que estão penetrando em outro mundo, envolvidos em segredos e mistérios”
(Matta, 2005: 74).
A casa de “zelador de praiás” encontra-se localizada junto aos terreiros e é o local
onde se guardam as vestimentas sagradas do grupo, denominadas “roupões” 37. São lugares
também sagrados, onde a circulação é proibida àqueles que não zelam os praiás. Em horários
específicos, os zeladores “alimentam” os roupões com ervas e pau de cheiro38 que são
misturadas junto ao fumo para defumar os praiás, oferecendo a eles garapa e fumo. O “zelador
35 Ouricuri (Syagrus coronata) é uma espécie de palmeira nativa da região da caatinga e bastante utilizada na
fabricação de utensílios domésticos como esteiras e cestos (feita a partir das fibras da folha), e de uso pessoal,
como brincos e colares (feitos a partir das sementes). 36 O campiô é um cachimbo feito de madeira, onde se colocam ervas e pau de cheiro. Ele é utilizado na
“preparação”, momento que antecede os rituais, para abrir o canal de comunicação com os encantados. 37 O roupão é formado pela máscara que cobre a cabeça, uma parte que cobre o tronco e o saiote, todos feitos de
caroá. No topo da máscara fica um penacho feito com penas de peru, que é entregue pelo praiá a algum visitante
durante os rituais, para que este lhe dê um “agrado” para se comprar fumo aos encantados e garapa. 38 O pau de cheiro é uma planta utilizada em rituais, banhos e chás.
48
de praiá” é aquele que escolhe os “folguedos” (outro nome para os dançadores de praiás),
detendo também uma comunicação com os encantados. Essa relação de prestação e
contraprestação entre humanos e não-humanos encontra-se também entre os Wauja, que
estabelecem uma relação de troca com os apapaatai, seres ancestrais que habitam entre eles
desde tempos remotos. Esses seres precisam ser alimentados por quem detém o poder de
controle e transformação do grupo, pessoas conhecidas por terem um prestígio político e uma
noção de ascendência amunaw (aristocrata) (Barcelos Neto, 2012: 72).
Aproveito o momento da descrição desse espaço para relatar a ocasião em que tive a
oportunidade de entrar numa dessas casas. Aconteceu quando fui entrevistar João Gouveia,
uma importante liderança política e espiritual na aldeia. Na ocasião, estava com uma amiga,
Carla Camargo, que também fazia pesquisa entre os Pankararu. Assim que chegamos, nos
apresentamos e ficamos do lado de fora da casa. João pegou algumas cadeiras para sentarmos
na varanda, mas começou a chover forte e, então, ele nos convidou para entrarmos na casa de
zelar “praiás”. Quando entramos, avistamos dois saiotes estendidos que são usados nos rituais
e um que não se usava mais. Segundo ele, o roupão tem uma vida “útil” de uns dois anos39,
aguentando, assim, cerca de três a quatro rituais, dependendo da realização dos pagamentos
de promessas, que diferem por ano.
A nossa entrada naquele espaço sagrado pode ter orientado a entrevista de João40, que
começou a nos relatar aspectos cosmológicos, como os problemas para a aquisição das fibras
de caroás41 para a feitura dos “roupões”, que se encontram cada vez mais escassas na aldeia
dificultando sua aquisição, e algumas noções sobre corporalidade e pessoa.42 Segundo ele, “tá
ficando cada vez mais difícil de montar o praiá. A gente tem que buscar o caroá longe, que
aqui tá acabando. Cada um sai por 300, 400 reais”. Ele busca as sementes em uma cidade
próxima, evidenciando que o ritual também mobiliza um processo de circulação de bens,
proteção e cura em localidades circunvizinhas. Isso mostra que a manutenção dos rituais está
associada também a disponibilidade ou não de recursos financeiros, uma vez que sua ausência
implica na não feitura dos praiás.
39 Certa vez, andando pelos “caminhos” da aldeia, avistei, num pé de fruta, duas vestimentas colocadas nos
troncos das árvores. Perguntei a Bino sobre isso e ele me disse que, depois de usado, o roupão é devolvida à
natureza, “lugar da onde veio”. 40 Agradeço a Carla Camargo por ter me chamado à atenção a esse fato. 41 O caroá ou croá (Neoglasiovia variegata) é um tipo de bromélia com poucas folhas, bastante resistente e típico
da região da caatinga. Suas folhas são utilizadas para a confecção dos roupões, bolsas, chapéus, esteiras etc. 42 Abordaremos isso no Capítulo 3.
49
Figura 2 - Terreiro do Poente. Há uma cisterna na frente da segunda casa, da esquerda para a direita. – Corrida
do Embu (Arquivo pessoal/2015)
Figura 3 - Imagem da Igreja de São José, Santo Antônio e praiá em São Paulo (Arquivo Pessoal).
Depois da nossa visita a João Gouveia, seguimos viagem e retornamos a casa de Bino.
No caminho, passamos em frente a algumas roças, separadas por uma cerca de madeira. A
roça é um local afastado da casa onde se plantam alimentos de forma mais intensiva. Algumas
famílias possuem roça e pequena criação de bodes e cabras, sendo a criação de gado mais
escassa. Bino chama a sua roça de “vazante”43 e nela há plantação de vários alimentos como
mandioca, abóbora, andu, caju, cana de açúcar, capim (que eles vendem para consumo do
gado) e pinha. Há também uma “horta comunitária” na aldeia, na qual, a princípio, qualquer
um poderia plantar e colher o que quisesse. Na prática, pelo que percebi e pelas conversas
com Dora, essa horta é pouco utilizada, possuindo mais plantação de capim.
Como mencionado, o “salão de trabalho” é um espaço sagrado, onde se realiza rituais
de cura. Nele, há uma mesa onde se coloca velas, incensos e estátuas de santos e praiás. A
43 Esse nome é dado porque na mesma região corria um rio que irrigava o local, mas que não existe mais.
50
circulação de pessoas é também mais restrita, sendo possível apenas com uma prévia
autorização. Durante o benzimento que recebi da rezadeira Josivete, ninguém adentrou
naquele lugar, a não ser a sua ajudante que permaneceu ali para anotar o “diagnóstico” que as
entidades lhe falavam.
Observando esses espaços que se inter-relacionam e que indicam níveis de interação
social entre as pessoas, ou seja, uma circulação maior de mulheres e homens em determinados
espaços, o termo casa foi surgindo como uma unidade social na qual as pessoas ativam suas
memórias, seus afetos, suas relações, em maior ou menor medida, dependendo da sua
constituição como pessoa, se são homens, se são mulheres e da sua interação social com os
demais.44 Compreender essas particularidades é importante para entender que a pessoa é
construída num aspecto relacional, dentro de uma temporalidade específica, e que sofre
mudanças ao longo do tempo (Mauss [1950] 2003). Entre os Pankararu, ela é pensada em
conjunto com outros elementos, como a casa e a memória.
Na aldeia, a varanda é um lugar de intensa circulação de pessoas, sendo um local onde
os homens jogam baralho e dominó, e também o lugar “do lembrar”, onde, sobretudo os mais
velhos sentam com suas cadeiras no final da tarde para olhar o “movimento” ou rememorar
situações vividas do seu passado. Muitas vezes, Ninha sentava na varanda em frente a porta
de sua casa para descansar e “tomar um vento no rosto”, relembrando dos tempos de São
Paulo. Ao lado dessa lembrança, vinha junto um sentimento que a despertava para “a saudade
dos filhos que estão longe em São Paulo”, para um tempo “onde as frutas vingavam mais”, ou
“quando as pessoas trocavam uma caixa de fruta por outra de feijão”.
Apresentaremos, a seguir, algumas situações em que se evidencia a sociabilidade
feminina em lugares como a cozinha, quintal, rio e os “caminhos”45, compreendidos como
espaços domésticos do grupo.
44 No entanto, não pretendemos evocar uma ideia dicotômica de público/privado que aloca homens no centro
(vida pública) e mulheres na periferia (vida privada), como se estas fossem subentendidas como apolíticas ou
sem agência. Como já ressaltado por Lea (1993), entre os Mebengokre, por exemplo, existe uma
complementariedade sexual e social que não permite conceber o gênero feminino como subalterno. Lea nos
chama a atenção, citando Strathern, de que tais conceitos dicotômicos exprimem uma lógica ocidental de
conceber a desigualdade através de uma diferença sexual. Em relação as mulheres Pankararu, a participação na
vida política é notável, uma vez que temos a cacique Ilda como liderança na TI Entre Serras, Dora Pankararu
(gestão antiga) e Maria Lindinalva (gestão atual) como presidentas da Associação SOS-CIP, e as rezadeiras
como importantes figuras na vida ritual do grupo. Nesse sentido, os espaços domésticos pankararu não são
predomínio feminino, assim como os espaços da vida pública não são restritos apenas aos homens. Agradeço a
professora Joana Cabral de Oliveira por ter me chamado a atenção a esse fato. 45 Em muitas ocasiões ouvi os Pankararu dizerem que a casa de fulano ficava naquele “caminho”, que tal pé-de-
fruta estava localizada “por aí nos caminhos”, que as encruzilhadas ficam nos “caminhos”. Adoto esse termo
para designar esses espaços que estão “fora” da casa, mas interconectam lugares, sendo também um lugar de
sentido. Considero também como “caminho” o espaço que interconecta aldeia e cidade, pois nos ajuda a pensar
essas duas localidades como lugares coextensivos, e não isolados.
51
A cozinha é o local de circulação predominante das mulheres, sendo elas as
responsáveis por cozinhar e preparar os alimentos. Em muitos momentos, quando Ninha não
estava em casa, eu ocupava seu “posto” na cozinha. Ela não impunha regras a minha técnica
de cozinhar. Como eles não possuem máquina de lavar, as roupas são lavadas manualmente.
Na casa de sua filha Dora, onde o encanamento de água não chegou, o acesso se dá por meio
de sua vizinha, que tem disponível um reservatório de água que chega das “bicas” através de
canos. As mulheres também têm costume de lavar suas roupas na beira do rio.
A gestão da água é um assunto que preocupa a família de Bino, pois durante muito
tempo sua presença foi escassa na região. Junto a obra da transposição de água do rio São
Francisco46, existem projetos secundários de adução de água e uma adutora estava sendo
construída no momento da minha pesquisa, visando exclusivamente o abastecimento das TI
Pankararu e TI Entre Serras. Na ocasião, estavam sendo instalados hidrômetros individuais
nas unidades residenciais, mas a obra ainda não havia sido finalizada. As famílias podem
comprar água trazida pelo caminhão pipa ou se cadastrar para recebê-la pelo município de
Tacaratu. Sendo assim, grande parte da água que eles utilizam é proveniente de um
reservatório de abastecimento, mas há casos de repartição de água entre aqueles que não
possuem acesso a ela. A unidade residencial da família de Bino possui uma cisterna,
localizada num cômodo entre a cozinha e o quintal, e seus netos se banham diariamente em
sua casa.
Em outro momento, Ninha foi moer cana na casa de um vizinho. Nesse dia, já
cedinho, ela tinha colhido toda a cana-de-açúcar que havia “vingado” na roça e trazido para
casa. Enquanto o homem moía a cana, esperávamos no quintal da casa do rapaz, onde duas
mulheres lavavam roupa num balde grande, aproveitando a água da mangueira que enchia
uma cisterna. Aí começaram a conversar sobre família, filhos, casamento. Uma delas disse “se
meus filhos já fossem grandes, eu me separava e ia viver só na folia”. A outra também
concordou que dançar era uma coisa divertida e que aquela labuta diária, entre os afazeres
domésticos, só valiam a pena para manter uma boa educação aos filhos. Esses momentos de
descontração são comuns durante a realização das atividades domésticas.
Colher frutas nos pés de frutas também é uma atividade realizada pelas mulheres. Essa
atividade levava algumas horas, já que as árvores “carregadas” se encontravam longe da casa, 46A transposição do rio São Francisco faz parte de um plano do governo federal intitulado de "Projeto de
Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional" e tem como objetivo
principal levar água para a região nordeste e semiárida do Brasil. Fonte: http://www.brasil.gov.br. No entanto,
essa transposição tem gerado conflitos entre diferentes atores sociais, como associações, grupos locais, indígenas
e governo. Esse tema está sendo problematizado na Tese de Doutorado ainda não finalizada de Carla Camargo,
aluna e integrante do CPEI (Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena) da UNICAMP.
52
nos “caminhos” entre uma roça e outra, e o processo até pegá-las exige certo esforço e
preparo físico. Acompanhei Dora e Ninha numa dessas idas. Dora subia na árvore e a
balançava até que todas as mangas maduras caíssem, para, então, colocarmos as frutas nos
cestos. Os pés de frutas que ficam nos “caminhos” da aldeia, como me contou Dora, não são
propriedade de ninguém, podendo ser consumido por qualquer Pankararu. Na volta, quase
depois de duas horas entre chegar e apanhar as mangas, fomos embora, ela carregando na
cabeça, assim como fazem muitas mulheres na região do Nordeste.
Assim que chegamos na casa, Bino colocou as frutas num caixote. As mangas, junto
com as pinhas que pegamos, mais o beiju47 foram enviados à São Paulo para serem divididas
entre seus quatro filhos. Aos poucos, fui percebendo a importância desses fluxos de
alimentos, mercadorias e bens tão frequentes entre aldeia e cidade. Esses fluxos contribuem
para a manutenção da memória do grupo, com as práticas alimentares sendo ativadas
constantemente, bem como a manutenção do parentesco.48
Figura 4 - Bino em sua roça. Figura 5 - Bino colhendo mandioca.
47 O beiju não é produzido na casa de Ninha e não vi sua produção em nenhuma outra localidade onde estive
presente na aldeia Brejo dos Padres, mas ela domina a técnica de engomá-lo e deixá-lo secando até a goma se
juntar. No entanto, sei que há produção de farinha de mandioca em outras casas de farinha próximas à aldeia. 48 Agradeço ao professor Geraldo Andrello por ter me chamado a atenção a esse fato.
53
Figura 6 – Mulher carregando alimento. (Arquivo Pessoal)
É nestes momentos – ao lavar roupa no quintal ou no rio, preparar a comida na
cozinha ou apanhar frutas –, parece-me, que as mulheres manifestam afetos, criam memórias
e também se divertem. Como vimos, nos espaços domésticos como a cozinha, a varanda e
também nos “caminhos” que se produz e atualiza memória. Na cozinha, a circulação da
mulher é predominante, enquanto no poró e na casa de zelar “praiás” sua entrada é restrita.
Esses espaços domésticos se interligam e produzem diferentes formas de interação entre as
pessoas. A seguir, veremos como o quintal se constitui como um espaço sagrado do grupo, ao
mesmo tempo em que nos apresenta uma diferenciação espacial e sexual na preparação de um
“prato”.
1.2.2 O quintal: o lugar do fogo e o do sagrado
O quintal da casa é um espaço importante de significado, pois é nele onde se plantam
ervas sagradas e de uso medicinal, como manjericão, alecrim de caboclo, pião-roxo, pião-
brabo, pião-manco, arruda, espada de São Jorge; frutas como banana, mamão, caju, coco
verde, murici, imbu, pinha; e leguminosas como andu e feijão; há também criação de
galinhas, porcos, ovelha, carneiro, bode, cabra e pavão.
54
Figura 7, 8 e 9 - Ervas medicinais e de uso ritual no quintal de Ninha (Arquivo Pessoal/2015)
Em algumas casas, o quintal também é o local da preparação da comida para a
realização dos “pratos”, assemelhando-se ao “fogo”, descrito por Viegas, entre os Tupinambá
de Olivença. Em certa ocasião, fui convidada por Josivete a acompanhar um “prato” na casa
de seu filho Moécio, que mora na aldeia Saco dos Barros. Ingrid, neta de Bino, e o filho de
Moisés também foram juntos. Assim que chegamos, avistamos algumas mulheres mais velhas
sentadas na frente da casa, onde as janelas estavam fechadas. Entramos pela porta da frente,
passamos pela sala, onde os homens (jovens e velhos) estavam todos reunidos, fumando o
campiô e se concentrando. Eu e Íngrid fomos levadas aos fundos da casa, em direção ao
quintal, aonde as mulheres preparavam o alimento. Havia um cadeirão num fogo, debaixo de
um pé de manga, e enquanto uma mulher mexia o caldo na panela, outra acrescentava farinha
de mandioca ralada para o pirão. Em seguida, quando o pirão já estava pronto, voltamos à
cozinha, localizada também na parte de trás da casa, onde me indagaram se eu estava
“preparada”, já que cozinhar exige resguardo às mulheres. Na ocasião, Ingrid chegou a dizer,
em tom jocoso, “que eu não estava preparada”, insinuando que eu havia “namorado” dias
antes. Essas brincadeiras eram constantes por parte dos familiares de Bino e Ninha, e em
muitos momentos, tentava-se validar meu comportamento em relação aos demais.
Na cozinha, as mulheres colocaram o pirão primeiro em várias tigelas de cerâmicas,
depois o arroz e a carne de carneiro por cima. Havia uma tigela maior que seria dada a “dona
do prato”, ou seja, aquela que estava pagando a promessa. A comida era farta, pois se
colocam vários pedaços de carne por cima. As mulheres serviram primeiro os homens.
Aguardamos ao lado de fora da casa. Enquanto isso, os homens se preparavam para se
comunicar com as entidades sobrenaturais, como os encantados. Um tempo depois, abriram a
casa e um homem veio nos servir. As mulheres mais velhas receberam primeiro, depois as
mais novas. O prato é servido individualmente e é comido com as mãos. Uma menina, de
55
cerca de uns sete anos, chamada Maria, perguntou se poderia comer comigo, e no que
respondi positivamente, começamos a comer juntas. Em seguida, todos foram convidados a
entrar na casa para fazer a reza.
Nos ajeitamos na sala, onde todos se sentaram. Num canto oposto ao nosso, estava
sentada numa cadeira, a tia-avó de criação de Moécio, Dona Ermínia, uma senhora de 84 anos
que não estava bem de saúde. Ela era a “dona” do “prato”. A reza teve início quando Moécio
começou a tocar o maracá49 e a cantar os toantes, evocando os encantados. Ele a benzeu três
vezes, sequencialmente, enquanto todos permaneciam sentados. Algumas mulheres mais
velhas fumavam o campiô. Depois de um tempo, a irmã de Moécio assumiu seu lugar e
começou a cantar. O ritual demorou cerca de uma hora e meia. A ida ao “prato” também exige
às mulheres que se use saias compridas, blusas que escondam o dorso, não sendo permitido o
uso de perfume. Lembro que Ninha me perguntou se eu havia tomado banho, e no que assenti
com a cabeça, foi insistente em dizer “você vai no prato, você tem que se banhar antes”. Da
mesma forma, quando alguém é benzido, precisa banhar-se três vezes ao dia com as ervas
prescritas pela rezadeira, sem poder sair de casa. Podemos perceber que o asseio do corpo,
deixando-o “limpo” está atrelado não apenas a uma limpeza corporal, mas, sobretudo,
espiritual.
O quintal também é um espaço que pode estar ligado diretamente com a pessoa, como
nos mostrou Viegas (2007), entre os Tupinambá de Olivença. Analisando os lugares de
habitação que compõem a territorialidade do grupo, como o “fogo”, o quintal e a roça, a casa
também é pensada como um local da reprodução, pois relações sociais são mantidas ou
desfeitas a partir da proximidade e da comensalidade entre os indivíduos. A casa, segundo ela,
é uma “unidade social primária”, o lugar onde as experiências vividas se constroem (Viegas,
2007: 179). Para ela, há uma relação direta entre habitar e comer, já que o indivíduo mantém
seus laços sociais a partir da frequência com que se alimenta num determinado lugar.
A autora classifica, para fins analíticos, três tipos de habitação: as fazendas, as casas
separadas e as “Unidades Compósitas de Residência”. Esta última se configura como o modo
de organização do espaço habitacional mais frequente entre os Tupinambá. É nele onde o
lugar de habitação é criado, sendo formado pelo quintal, “fogo”, casa, roça, córrego,
caminhos, pés de frutas, mato e mata. O “fogo” é o lugar da parte dos “fundos” da casa e um
local de sociabilidade dos seus habitantes. São as mulheres quem lidam com ele e “a
49 O maracá é um tipo de chocalho feito de cabaça na qual se colocam sementes, preso por um cabo de madeira,
para segurar e cujo topo é enfeitado com penas de peru, ave comum encontrada na aldeia.
56
preparação da comida com as atividades femininas é tão forte que, quando um homem
cozinha, diz-se que faz “comida macho”, ou se faz café, diz-se “café de mão de homem”
(Viegas, 2007: 83-111).
Habitar uma casa, segundo Viegas, passa pelas práticas alimentares. Ela explica que
entre os Tupinambá, as pessoas não comem num mesmo espaço, rodeados numa mesa. Ao
contrário, eles se alimentam em locais separados da casa, em horários diferentes. No entanto,
esse fato não invalida a relação social que produzem, pois “aquilo que une aqueles que
habitam a mesma casa é o fato de consumirem alimentos cozidos no mesmo fogo, e não o fato
de se juntarem para consumi-los” (Viegas, 2007: 84). O fogo, sendo o local onde se prepara a
comida para uma mesma família, representa a parentalidade, pois pessoas possuem vínculos
parentais na medida em que comem juntas num ciclo diário contínuo, como já ressaltado por
Viveiros de Castro, Seeger e da Matta (Seeger et al., 1979). Isso também é percebido na
família de Bino e Ninha, onde não há um horário fixo para comer durante o dia, apesar de a
comida estar preparada num determinado horário. Da mesma forma, a família não se senta ao
redor de uma mesa para fazer uma refeição. Ninha, muitas vezes, se servia e ia comer sentada
no degrau da escada que dá para os “fundos” de sua casa, em direção ao quintal, onde tomava
também seu café.
Segundo Viegas, entre os Tupinambá, o quintal também possui uma relação com a
pessoa, pois é dela que recebe seus cuidados. Ela quem o personaliza, ou seja, cuida, planta e
tem a responsabilidade de mantê-lo “vivo”. Por isso, quando esta morre, o quintal morre
também. Como as posses são identificadas com seus possuidores, elas devem ser destruídas
assim que o corpo delas também morre. Sendo o quintal um lugar de sentidos associado à
pessoa, não pode receber cuidados de outros, nem mesmo ser transmitido como herança às
futuras gerações. O quintal também é o local onde os Tupinambá enterram a placenta da
mulher, considerada como uma parte tanto da mãe quanto da criança, sendo denominada
como “o resto da mulher com o menino”.
Essa prática é comum entre as populações indígenas, estando associada com o
desenvolvimento da criança durante seu ciclo de vida. Entre as mulheres do Alto Rio Negro, a
placenta tem um valor simbólico importante, pois ela indica o desenvolvimento da criança,
sendo considerada “o banco cerimonial do feto”. No ritual de iniciação, o menino ou a menina
recebem um banco que os acompanhará para o resto da vida, e que tem relação com o mito de
criação e transformação. O feto já possui esse banco, indicando uma identidade social. Depois
que a criança nasce, a placenta pode ser utilizada para passar no rosto das mulheres que
57
adquiriram manchas durante a gravidez, e depois é enterrada (Andrello, 2006; Azevedo,
2009). Entre os Mebengokre e os Terena, essa prática é também usual (Lea, 1993; Franco,
2011).
Logo quando a criança pankararu nasce, ela é colocada sobre o corpo da mãe para
sentir seu calor e seu toque, ficando “corpo a corpo com ela”. Mãe e filho ficam assim até que
o cordão umbilical para de pulsar e é finalmente cortado, como me contou a parteira e AIS
Maria das Dores:
Quando elas entram em trabalho de parto a gente ensina a fazer exercício, os chás
com as ervas. A gente já leva o material esterilizado, o plástico pra botar a criança.
A gestante que escolhe a melhor posição pra ela, se quer deitada, de cócoras... Aí a
gente vai fazendo as posições pra ver qual ela vai ficar, pra ela fazer e ficar. A
melhor é de cócoras. As mulheres aqui na aldeia não gostam de cesariana, não, só se
for urgente. É raro aqui, principalmente no Brejo. Aí a gente bota o plástico, o lençol
e a fralda. Quando o bebê nasce, o cordão fica pulsando, pulsando. A gente só corta
quando ele para de pulsar, pra criança ficar corpo a corpo com a mãe. A gente corta
com uns três dedos do umbigo. Limpa com álcool 70º e azeite, que é cicatrizante. Aí
a gente limpa pra não ficar com mau cheiro. Depois a gente vai limpando pra tirar os
coágulos, pro útero não ficar solto. Bota as ervas no pano, bota de banda pra ela não
sentir dores. Antes, a gente põe ela no peito da mãe pra sentir o calor da mãe. Aí
fazemos a massagem pra sair a placenta, quando ela não sai. A gente vai pegando
dela, ganhando, olhando pra ver se não fica com a membrana. Aí a gente planta. Ela
não pari em casa? Então! A gente manda fazer um buraco e planta no quintal dela
(Entrevista com Maria das Dores, março de 2015).
A casa aparece como uma analogia do corpo, uma vez que a placenta não é descartada
como um “resto”, sendo enterrada num dos seus espaços. O quintal parece surgir como uma
extensão corporal, recebendo essa parte do corpo da mãe, e tornando-se seu recipiente. A casa
parece oferecer proteção aos ataques de espíritos malignos, como me relatou Ninha. No
período do pós-parto, a mulher fica de resguardo e proibida de sair de casa por alguns dias,
sob a ameaça de que seu corpo seja atacado por entidades ruins, já que ele se encontra
“aberto”. Segundo ela, uma de suas filhas, depois de ter dado à luz, precisou sair de casa.
Quando retornou, depois de algumas horas, seus pés e pernas encontravam-se inchados, e a
causa desse fato, para Ninha, teria sido por ela estar ainda com o corpo aberto. Há outras
condições que determinam que o corpo da mulher está aberto, como o período menstrual,
sendo aconselhado a elas não participarem dos rituais e não comerem alimentos considerados
“pesados”, como feijão de corda e manga.
A noção de corpo “aberto” durante o período menstrual é uma característica comum às
populações indígenas. Entre as mulheres do Alto Rio Negro, por exemplo, isso ocorre quando
elas têm a primeira menstruação, indicando fertilidade, uma vez que seu corpo foi “aberto”
para o sangue descer. Ao mesmo tempo, o corpo da mulher nessas condições indica um estado
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fronteiriço, já que ela pode entrar em contato com o mundo supra-humano. Os resguardos
entre pais e filhos também são necessários, e depois de dar luz a um filho, a mulher fica
isolada em média três dias em casa (Azevedo, 2009: 469-471).
Como vimos, os espaços domésticos como a varanda, quintal, “salão de trabalho”,
bem como os jardins no Real Parque, também se configuram como locais de sociabilidade e
de atualização da memória. Os fluxos de alimento e mercadoria entre aldeia e cidade se
constituem como o elo fundamental na manutenção do parentesco do grupo, uma vez que
partilhar de um mesmo alimento é uma forma de afirmação e reafirmação desses laços
parentais. A seguir, apresentaremos algumas noções sobre nascimento, aprendizado e a vida
adulta entre o grupo.
1.3 Nascer e crescer sendo Pankararu
As relações entre mãe e filho são importantes para compreendermos aspectos da
corporalidade e noção de pessoa entre os Pankararu. Quando uma criança nasce, ela é
colocada no peito de sua mãe, ainda com o cordão umbilical “pulsando”, para que ela sinta
seu calor e sua presença. A criança é compreendida como uma extensão corporal de seus pais,
havendo uma identificação física entre eles. As fronteiras corporais do indivíduo são
maleáveis, pois ele pode ser alvo de diferentes entidades, sobretudo malignas, colocando em
risco sua saúde. Para manter seu corpo fechado, ou seja, livre da ameaça dessas entidades, que
podem também levá-lo a morte, a pessoa necessita fazer os resguardos necessários, bem como
ter condutas consideradas moralmente aceitas.
A partir da década de 1960 há um momento de inflexão no debate etnológico
americanista, onde o entendimento da fabricação da pessoa e do parentesco passam a ser lidos
não apenas a partir da noção de grupos e organização social, mas tendo como elemento
central a corporalidade. Assim, abordagens teóricas que consideravam que os grupos sociais
são formados ou pelas regras de descendência, como na escola anglo-saxônica, ou pelas
regras de aliança, como na versão levistraussiana, passaram a ser problematizadas. A partir do
material empírico sul-americano, percebeu-se que os laços parentais são formados pela
comensalidade, proximidade física e pelas trocas de substâncias, não se enquadrando em
nenhuma dessas vertentes.
É o que acontece entre os Wari’, por exemplo, população indígena que vive em
Rondônia. Segundo Vilaça (2006), a identidade de uma pessoa, entre o grupo, é construída a
59
partir das relações que ela constrói ao longo da vida, não sendo preestabelecida pelo local em
que nasceu. Assim, a identidade wari’ encontra-se associada ao fato de comer junto com o
grupo, viver e falar como eles. Dessa forma, há uma gradação do parentesco que é
determinada pela proximidade física e pela partilha de substâncias, seja o alimento ou fluídos
corporais. Um estrangeiro é assim considerado como um consanguíneo em potencial, porque
ele pode, na medida em que as relações se estreitam no convívio diário entre os wari’, tornar-
se um dos seus pares. A filiação é compreendida nessa lógica, uma vez que “mãe e filho são
consubstanciais pela intimidade física que partilham mesmo antes do nascimento”, e aqueles
“que vivem juntos partilham suas experiências diárias e memórias” (Vilaça, 2006: 96), sendo
estas também constitutivas do corpo. Na teoria wari’ de concepção, os homens fazem os
bebês com injeções constantes de sêmen, e mãe e filho são considerados consubstanciais
mesmo antes do nascimento. O parentesco também está relacionado com a proximidade, bem
como as substâncias corporais, afetos e memórias que os indivíduos partilham (Vilaça, 2006:
95-96).
Entre os Tupinambá de Olivença, o parentesco está associado ao compartilhamento de
comida e a proximidade e regularidade com que essa prática é feita. Viegas (2007) afirma que
nascer, para o grupo, significa misturar os corpos entre mãe e filho tornando-se quase uma só
pessoa. A criança também é vista como um agente ativo capaz de modificar seu mundo e sua
história, capaz de construir suas próprias relações sociais. A filiação entre eles não pode ser
compreendida na chave da reprodução biológica, física ou moral, pois o parentesco é feito
pela comensalidade. Assim, é a memória afetiva que constitui os laços parentais, pela
repetição e intensidade com que pessoas compartilham a comida. Partilhar um mesmo
alimento significa “agradar” o outro, criando um afeto e um laço social que pode ser desfeito,
na medida em que essa intensidade diminui. Nesse sentido, os primeiros laços intersubjetivos
no mundo são, para a autora, os de seus pais, que frequentam a casa e, principalmente, o fogo,
lugar onde se prepara o alimento. No entanto, as avós também assumem papel importante
nesse campo de relações, sendo figura “central nas dinâmicas de relacionamento que
constituem o parentesco” (Viegas, 2007: 113) e que podem substituir temporariamente ou
definitivamente a figura materna.
A filiação também pode ser compreendida como uma forma de consideração, ou seja,
uma maneira de validar um afeto em relação ao outro, como acontece entre pessoas que
habitam o manguezal costeiro ao sul da baía de Todos-os-Santos, no Baixo Sul da Bahia.
Segundo Pina-Cabral, a parentalidade é formada pela intensidade e periodicidade com que os
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pais consideram seus filhos, ou seja, dão a atenção e alimento necessário ao seu crescimento.
A filiação pode ser formada pela (i) filiação de concepção acompanhada pela filiação de
criação, (ii) filiação de concepção sem filiação de criação, e (iii) filiação de criação, que não
corresponde à filiação de concepção (Pina-Cabral, 2013: 36). Como o autor nos mostra, a
filiação de criação não compete com a filiação de concepção, mas são formas complementares
de fabricar relações de parentesco.
Entre os Pankararu, a relação entre mãe e filho é vital para o nascimento e crescimento
da criança. Há uma ligação corporal significativa entre os dois, a qual mobiliza afeto e
memória. Entretanto, essa ligação também se estende ao pai, pois, se ambos (pai ou mãe)
ficam doentes, a criança também fica. Esse fato pode estar relacionado aos “laços de
identidade corporal” que mãe e filho compartilham, já que quando algo acontece com o corpo
de alguém, como o bebê, é como se o mesmo evento acometesse alguém de sua família
(Seeger, 1979). Podem estar associado também aos resguardos alimentares e sexuais, ou ao
período da couvade (Rivierè, 1974: 428), no qual o pai e a mãe da criança estão sujeitos no
período pré e pós-natal, sob risco de ameaçar o espírito e o corpo da criança.
Quando a criança nasce é colocada junto ao peito da mãe para verificar se tem força no
maxilar. Há casos em que a mãe está doente e “passa” a doença para a criança. Segundo a
rezadeira Josivete, isso ocorre porque a mãe está “entaboada”, ou seja, com o corpo aberto.
Para fechá-lo, é necessário colocar um pano virgem sobre o peito da criança e fazer uma reza.
Em outras situações, se a mulher tem gêmeos e os filhos nascem numa mesma placenta, as
crianças não podem ficar separadas, correndo risco de vida, pois a doença de uma pessoa é
passada à outra. Como veremos adiante, o compartilhamento da comida e da memória
constroem os laços parentais, uma vez que as histórias dos mais velhos são passadas aos mais
jovens.
Na aldeia, quando há casos mais graves de saúde eles são encaminhados para hospitais
das cidades vizinhas, como Petrolândia e Tacaratu. Na TI Pankararu, grande parte dos partos
são realizados na casa da parturiente. Em muitas aldeias a presença das parteiras tradicionais é
fundamental para auxiliar a mulher durante as diferentes fases da gestação: o pré-natal, o
parto e o pós-parto. São elas quem ensinam às mulheres massagens e técnicas corporais para
aliviar as dores e tensões do corpo durante a gravidez. Por exemplo, se a mãe não está tendo
leite, ela toma garapa com gergelim para o leite sair; se o bebê nasce com a pele amarela, é
recomendado ele tomar sol. Nos últimos meses de gestação, a parteira apalpa “na altura do
fundo do útero” da mulher para saber se a criança já está no momento de nascer. Durante o
61
trabalho de parto, ela quem ensina e auxilia na escolha da melhor posição para a mulher, -
acompanhada de uma aprendiz-, sendo a posição de cócoras a mais escolhida. Todos esses
ensinamentos são passados pela tradição familiar, de mães, tias e avós que foram parteiras e
transmitem seus conhecimentos às mulheres de sua família, mas há casos em que uma mulher
Pankararu torna-se parteira “por acaso”.
Figura 10 – Polo Base Pankararu (Arquivo Pessoal).
No Real Parque, o atendimento médico ao grupo é feito pela equipe médica da UBS
local, composta por uma médica, uma enfermeira, uma AS e AIS. Essa equipe realiza visitas
semanais às famílias Pankararu que moram o bairro. O número de parteiras no Real Parque é
reduzido, e o número de partos realizados nos apartamentos é quase inexistente. No entanto,
segundo a rezadeira Pankararu Leidi, moradora do bairro, “às vezes acontece e você tem que
pegar”. Quando as gestantes precisam ir a um médico de urgência, vão para o Hospital e
Maternidade Sarah, que fica localizado no bairro Rio Pequeno, em São Paulo. Durante o
período pré e pós-parto, o acompanhamento à parturiente é feito pela equipe médica.
As crianças também são estimuladas a adquirir habilidades específicas desde cedo,
como dançar e cantar nos rituais, bem como auxiliar em atividades domésticas, como lavar
roupa ou ir para a roça. A dança do Toré é ensinada a elas tanto em ambiente familiar, por
alguma figura mais velha, ou em ambiente público, como nos rituais, momento em que elas
observam e aprendem passos, cantos e movimentos. No Real Parque, a presença das crianças
nos rituais também é bastante expressiva. Bino conta que seus netos Ítalo e Thales
participavam e dançavam em todos os rituais apresentados. Essas apresentações se dão em
62
escolas, eventos culturais ou no próprio Real Parque, nos blocos de grande concentração dos
Pankararu. As crianças também aprendem nas escolas de Educação Básica e infantil da TI
Pankararu sobre a sua cultura, através das apostilas didáticas, onde se ensina sobre os rituais,
os instrumentos e suas personagens.
Muitas vezes Dora, que trabalha como professora na aldeia Tapera, deixava seu filho
mais novo, Mathaws, de três anos de idade, com Ninha, para ela cuidar. Ninha dava banho,
comida e atenção a ele, para que ele não sentisse falta de sua mãe, e nas horas em que
precisava, o repreendia, mostrando o modo correto de agir em determinada situação. Uma
outra filha de Ninha, Diana, que mora no Real Parque, tem uma filha que precisou passar por
uma cirurgia no mês de agosto de 2015. Ninha viajou até São Paulo para poder ficar com a
neta, numa estadia que durou três meses. Nesse período, ela cuidou da neta, dando comida,
ajudando a tomar banho, lavando sua roupa, ao mesmo tempo em que aproveitou para rever
os parentes e familiares.
Figura 11 - Dora, Ingrid e Mathäws na varanda (Arquivo Pessoal).
A passagem para a vida adulta começa quando a pessoa passa a assumir suas próprias
responsabilidades, não dependendo economicamente de seus pais. Isso ocorre, geralmente,
quando a pessoa arruma um emprego e/ou se casa. É comum nesse período de vida, sobretudo
em relação aos homens, a mudança para outras localidades, como a cidade de São Paulo, em
busca de emprego e melhores condições de vida, embora essa prática esteja diminuindo
comparada a gerações passadas, uma vez que já podemos verificar um aumento dos
“retornados” à aldeia (Estanislau, 2014). Essa mesma relação entre fase adulta e mobilidade é
63
estabelecida por Pina-Cabral (2013), entre a população que vive no manguezal costeiro ao sul
da baía de Todos-os-Santos (BA). O autor afirma que na fase adulta os homens vivem
momento de intensa “instabilidade residencial”, associado às mudanças de local que também
estão atreladas à formação de novas alianças.
Como vimos, as relações entre mãe, pai e filhos/filhas são importantes porque
estabelecem uma troca de afeto e memória entre eles/elas. Quando nasce, a criança precisa
que seu corpo esteja sempre “fechado”, sendo necessário também, para isso, que seus pais
cumpram com os resguardos exigidos. Durante seu crescimento, a presença dos avós cria um
vínculo de afeto e respeito, estabelecendo os deveres e obrigações entre eles. As parteiras
também cumprem com um papel importante, pois elas ensinam técnicas que aliviam as dores
do pré-parto, parto e pós-parto, com prescrições de ervas e massagens corporais. No entanto,
apesar desses ensinamentos serem passados por tradição familiar, há situações em que isso
não ocorre, como analisaremos a seguir.
1.3.1 Aprendendo pelo sentir: sendo parteira “por acaso”
Maria das Dores Silva Nascimento, conhecida como Dora, 46 anos, é de uma família
tradicional de parteiras, tendo iniciado essa prática aos vinte anos. Ela brinca dizendo que “já
pegou mais de mil crianças” numa alusão a quantidade dos partos que realizou na aldeia. Sua
figura carismática e sempre disposta a ajudar faz com que seja recebida sempre com carinho
por parte dos adultos e, principalmente, das crianças. Andando pela aldeia é comum ver as
crianças pedirem sua benção, como fazem com os avós ou pessoas mais velhas. Atualmente,
ela trabalha como parteira e AIS no Polo Base da aldeia Brejo dos Padres. No dia-a-dia, as
parteiras e rezadeiras são chamadas constantemente para ajudar na saúde do indivíduo quando
estão enfermos, com algum mal, feitiço etc. Sua trajetória é marcada pelos ensinamentos de
sua mãe e de sua tia:
Comecei a fazer parto sozinha, com vinte anos. Seguia os ensinamentos de Mãe
Chiquinha, Tia Quitéria, e de minha mãe, que também eram parteiras. Em 1990, fui
fazer um estágio em Petrolândia, num hospital. Minha tia era uma liderança aqui e
se preocupava com o futuro das parteiras na aldeia. Ela viajava e queria resgatar as
coisas para a aldeia. Ela quem conseguia os remédios no Saco [dos Barros]. Ela
quem fez a Maternidade, com a doação de telhas de construção. Pessoal do Saco que
ajudou. Cheguei até a fazer parto lá, depois foi destruído. Lá tinha atendente,
parteira. Aí ela conseguiu com o diretor do hospital para fazer um estágio na sala de
parto. João Vicente que me deu o curso de atendente de enfermagem. Em 1995 fui
AIS em Tacaratu. Atendia no Brejo, no Saco, no Jitó. Os mais doentes a gente
levava pra Paulo Afonso, tinha uma “pampa” [um tipo de carro pequeno, mas com
64
carroceria] que fazia o serviço. Eu já era atendente voluntária nessa época. Fui
parteira voluntária por 10 anos. Depois, em 1999, comecei a entrar numa equipe da
FUNASA, antes a FUNAI que cuidava da parte da saúde. Antes só tinha vacina aqui
uma vez ao ano, médico e dentista, então, só vinha duas vezes ao ano, de Recife. Eu
entrei em 2000 na FUNASA. Aí entrei de auxiliar de enfermagem. Aí depois fui
fazer o curso de técnico, em Maceió. Hoje sou técnica na FUNASA e parteira
(Entrevista com Maria das Dores, março de 2015).
Maria das Dores é sobrinha de Quitéria Binga e neta de Antônio Binga, lideranças
importantes do grupo e pertencente ao tronco familiar Binga. Segundo Mura, o fato de
pertencer a esse tronco lhe concedeu oportunidades para terminar seus estudos primários e
ginasiais, e realizar seu trabalho como técnica em enfermagem fora da aldeia (Mura, 2010:
192). Através de seus estudos, Maria das Dores pode levar à aldeia seus saberes tradicionais
associados a biomedicina, tornando-se uma pessoa a quem se pede ajuda tanto para fazer um
parto, uma reza, ou outro atendimento médico.
No entanto, embora os ensinamentos sobre os saberes das parteiras sejam transmitidos
entre seus consanguíneos, segundo Maria das Dores, essa prática não está relacionada
diretamente à tradição familiar. Ela me contou que pode ocorrer de uma pessoa vir a ser
parteira “por acaso”, como já ocorreu algumas vezes. Como exemplo, me relatou um parto
que realizou na aldeia Serrinha. Utilizo essa situação para demonstrar que o indivíduo, sendo
um agente ativo na história, ressignifica sua própria trajetória a partir da sua inserção no
mundo, naquilo que Ingold (2010) chama de “educação pela atenção”, onde a pessoa adquire
seu aprendizado ao “olhar, ouvir e sentir”.50 Como já mencionado, para o autor, o processo de
aprendizado da pessoa acontece na medida em que ela “olha, sente ou ouve”, moldando seus
movimentos à semelhança daqueles aos quais sua atenção se dirige. Dessa forma, mostrar
algo a alguém é fazer com que a pessoa aprenda por esse “redescobrimento dirigido”. Retomo
essa ideia da “educação pela atenção” para enfatizar que o conhecimento é também adquirido
fora da esfera familiar. Tomo agora o relato de Maria das Dores como exemplo.
Naquela ocasião, uma mulher estava prestes a dar à luz e Maria das Dores foi chamada
“às pressas”, e, por conta disso, não pode levar nenhuma ajudante. Quando chegou na casa da
parturiente, na aldeia Serrinha (que fica distante do Brejo cerca de 20 minutos, fazendo o
trajeto com carro), percebeu que precisaria de uma pessoa para ajudá-la e, como não havia,
50 Tuan (1983), já nos chama a atenção para a relação entre espaço e memória, numa perspectiva fenomenológica
entre corpo e experiência. Em seu capítulo “Espaço, Lugar e Criança”, o autor nos mostra como a criança
adquire experiência e aprendizado sobre seu mundo objetivo com a ajuda dos pais. No entanto, embora o autor
estabeleça uma relação importante entre pessoa, memória e ambiente, utilizo a noção de “educação pela atenção”
de Ingold pois ela privilegia uma ideia de autonomia do indivíduo, na qual as habilidades são adquiridas no
campo da prática, aproximando-se de abordagens que rompem com dualismos como corpo/mente,
natureza/cultura e indivíduo/sociedade.
65
pediu para que a filha da mulher, de doze anos de idade, a auxiliasse nesse ofício. A menina,
atenta, ficou ao seu lado observando o modo como Dora massageava o corpo da mulher, bem
como a maneira como colocava o pano embaixo de suas pernas, para receber o bebê. Ficou
atenta também aos seus dizeres, acalmando a parturiente para que ela não se sentisse sozinha.
Depois que o bebê nasceu, Dora colocou a criança no colo de sua mãe e explicou a menina
que só cortaria o cordão umbilical quando este parasse de pulsar. A menina, vendo, ouvindo e
sentindo tudo, agia conforme Dora explicava, atuando, ao seu modo, com aquela prática e
habilidade que ela acabara de aprender. De acordo com o relato de Dora, a partir desse evento,
a menina começou a auxiliar em outros partos da aldeia, como uma “aprendiz”.
Esta narrativa evidencia como a pessoa se movimenta no mundo, construindo suas
relações e produzindo conhecimento como um agente ativo. A habilidade adquirida pela
menina foi obtida numa situação que não estava planejada, e, por um momento ao acaso, foi
desenvolvida e ressignificada por ela no processo de interação com a parteira. Sua visão de
mundo ganhou novos sentidos e sua inserção com o meio modificou a forma como ela
também interage com ele, uma vez que passou a utilizar práticas e conhecimento que antes
não sabia. Apesar do conhecimento ser transmitido por tradição familiar, a pessoa também
possui uma capacidade autoprodutora. Segundo Toren, “nossa autonomia como seres
humanos reside na socialidade: sermos e tornarmo-nos nós mesmos implica nosso
engajamento com outros seres humanos no contínuo processo de nossa autocriação” (Toren,
2010: 20). Sendo assim, tanto a pessoa quanto a família ou grupo são compreendidos como
seres autoprodutores e autocriadores de relações, sendo que um não se subsume ao outro.
1.4 Algumas considerações
Pretendemos, neste capítulo 1, apresentar como os Pankararu se organizam
espacialmente, evidenciando alguns aspectos da casa que se relacionam diretamente com a
pessoa. As famílias, como vimos, possuem uma rede de ajuda mútua, na qual a relação
jovens/velhos exige um conjunto de condutas de deveres e obrigações, onde o “respeito” e a
“benção” operam como símbolos que organizam tais comportamentos. Portanto, a casa não é
apenas o local onde se organizam as relações familiares e o parentesco. Tanto a
comensalidade, a proximidade, bem como a relação de afeto e memória entre mãe e filho
constroem laços parentais. A comida confere um aspecto importante em relação a isso, onde o
66
fluxo de bens, mercadorias, alimentos, encantados etc. entre aldeia e cidade garante ao grupo
a manutenção desses laços.
A casa é também o lugar da memória e das rezas, onde se realizam os trabalhos de
cura e possui uma diferenciação de gênero que delimita alguns espaços a uma maior
circulação feminina, como a cozinha e o quintal, e outros onde predomina a circulação
masculina, como no poró e nos “pratos”. Essa diferenciação sexual e espacial nos oferece
subsídios para pensar a composição da pessoa Pankararu. A criança, por sua vez, apesar de
estabelecer vínculos afetivos com seus pais e avós em seu núcleo familiar, também possui
uma autonomia na construção da sua própria percepção do mundo.
Como veremos no capítulo a seguir, a família Pereira adquire particularidades
específicas que a distingue das demais, pois ela possui a experiência da mobilidade em sua
trajetória de vida. Nesse sentido, essa família em específico produz uma variável que se
distancia do modelo de família apresentado por Mura (2012), onde a autora enfatiza a unidade
familiar como unidades sociais e políticas fundamentais, sendo também protagonistas da
tradição do conhecimento. Percebemos um fenômeno inverso em relação a família Pereira. A
partir da experiência da mobilidade, na qual a família viveu trinta anos “fora da aldeia” que
ela ganhou certa autonomia, se destacando do seu tronco familiar. Ou seja, a mobilidade que
produziu um incremento de prestígio e valor moral, sendo agregados, sobretudo, depois do
seu “retorno” à aldeia. Isso ficará mais claro no capítulo a seguir, onde apresentaremos como
a mobilidade possui uma ligação com a pessoa, sendo um modo de habitar o mundo.
67
Capítulo II
Modos de caminhar
Neste capítulo, abordaremos como a mobilidade pankararu pode ser compreendida
como um modo de produção de vida. Nesse sentido, caminhar assume um significado
importante, uma vez que representa o modo como os Pankararu vivem e habitam tanto a
cidade quanto a aldeia, e também os caminhos que interconectam essas localidades. Busco,
também, dialogar e apresentar abordagens teóricas que se aproximam ou não da mobilidade
Pankararu, a fim de alargar o debate sobre mobilidade e produções de territorialidades,
mostrando as particularidades entre o grupo. Em seguida, identifico os espaços do Real
Parque, locais por onde eles circulam e onde as redes de relações se expandem, mostrando
como o grupo se organiza socialmente nesses lugares. Por último, apresento a trajetória de
uma família em trânsito, tendo como interlocutores e interlocutoras Bino, Ninha e suas duas
filhas Dora e Roziani. Através das suas memórias e narrativas, busco compreender os sentidos
que eles e elas dão a esse “ir e vir” entre aldeia e cidade.
2.1 Caminha!: mobilidade e produção de conhecimento
O deslocamento entre os Pankararu é compreendido aqui como um “modo de
produção de vida” (Ingold, 2011). Nesse sentido, a mobilidade é pensada como uma forma de
habitar o mundo, produzindo conhecimento e colocando em relação diferentes agentes
(Estado, indígena, não indígena) e agências (saberes, cura, sofrimento, memória, encantados
etc.). Como já ressaltado por Arruti (1996), o grupo passou por diversas situações de
deslocamento da TI Pankararu a outras localidades, buscando melhores condições de vida,
escolarização ou por migração forçada. Segundo o autor, a TI Pankararu pode ser pensada
como uma “aldeia aberta”, expressão que nos remete às disputas de categorias como
identidade, território e “tradição” entre aqueles que estão “dentro” e aqueles “de fora” da
aldeia (Arruti, 1996: 159-168). Essa disputa é significativa porque nos mostra como o grupo
se organiza socialmente e como algumas famílias, sobretudo aquelas marcadas por trajetórias
de deslocamento, precisam negociar essas mesmas categorias quando retornam à aldeia.
A família Pereira possui um histórico de mobilidade à capital paulista desde 1960.
Bino morou no Real Parque, junto com sua esposa, filhos e filhas, durante trinta e três anos,
68
tendo voltado à aldeia em 2013. Esse “retorno” da família também evidenciou as disputas
entre o grupo em relação a identidade, “tradição” e território. A partir das narrativas de
diferentes atores sociais, percebemos que “sair” da aldeia pode significar colocar em risco a
identidade cultural do grupo, uma vez que a aldeia é compreendida, para alguns, como o lugar
onde se produz e conserva o seu “segredo”. Nesse sentido, sair implica mais que uma ação
mecânica para fora, para sua “exterioridade”, significa ameaçar a “tradição” do grupo e sua
organização social. No entanto, para outros, sair da aldeia é “cair no mundo”, é “caminhar”
para habitar lugares, ampliando rede de relações e produzindo conhecimento.
A expressão “cair no mundo” pode encontrar semelhanças com a expressão oguatá,
entre os Guarani, que acreditam na importância do caminhar como uma forma de estar no
mundo, em busca de sua Terra Sem Mal, bem como uma forma de circulação de saberes
(Nimuendajú, 1954; Testa, 2014). “Caminhar” pode se assemelhar também a expressão andar
e sair utilizada por Nogueira (2010), que identifica como as comunidades camponesas
compreendem suas práticas migratórias, evidenciando o deslocamento como uma
possibilidade de retorno. O que pretendemos enfatizar é que o termo “caminhar” aqui
empregado indica um modo de habitar entre o grupo. Mais que um simples verbo que sinaliza
um deslocamento no espaço, é um ato em expansão e transformação, no qual as pessoas
caminham para habitar o mundo, para transformá-lo e ser transformado. “Caminhar” também
propõe uma ruptura com abordagens que produzem uma dicotomia entre aldeia e cidade,
evidenciando uma coextensividade entre diferentes espaços e a circulação de humanos e não-
humanos nesses lugares.
Como já mencionado, minha relação com Ninha foi se estreitando aos poucos, e,
depois da primeira semana da minha estadia em sua casa, pude perceber que além dela manter
comportamentos jocosos comigo, mantinha também um tom imperativo toda vez que eu saía
de casa, me dizendo Caminha! Essa expressão também era dita para seus familiares. A
repetição da expressão me fez pensar que o ato de “caminhar”, como modo de sair de casa ou
“cair no mundo”, poderia evidenciar o modo como a família ou o grupo habita o espaço.
O território do grupo é compreendido aqui como uma territorialidade material e
imaterial, um fenômeno simbólico dotado de significados, onde agentes e agências negociam
e disputam, como proposto por Arruti. O autor nos chama a atenção para os diferentes
elementos sociais e culturais que compõem o espaço no qual eles habitam, ao qual ele
denomina de “arranjos territoriais”, e que foi se configurando durante o processo histórico,
imagético e memorial do grupo:
69
Este arranjo, na sua natureza de fato social, faz do território um fenômeno imaterial
e simbólico, ainda que tramado sobre um suporte e sob constrangimentos materiais,
uma relação entre agentes, agências, expectativas, memória e natureza. Todo
elemento, físico ou histórico, que entra na sua composição passa pelo crivo de um
processo de simbolização que os desmaterializa, ao mesmo tempo que, por outro
lado, a entrada de novos elementos provoca rearranjos no conjunto. Nem fato
imposto, nem criação aleatória, o território é uma recriação do real, uma
reapropriação do espaço de acordo com obstáculos e mananciais que não são mais
apenas montanhas, rios, nichos ecológicos, mas também cercas, fronteiras, relações
de afinidade e parentesco, domínios sagrados, áreas de atrito, regiões consagradas a
trocas e festividades e aqueles próprios rios, nichos e montanhas nomeados e, por
isso, sobrecarregados de sentido (Arruti, 1996: 115).
Segundo o autor, historicamente o território do grupo na TI Pankararu passou por
inúmeros processos de repartições e de agrupamentos de diferentes grupos indígenas, negros,
ex-escravos etc. Esses aldeamentos, ora extintos, ora reconstruídos, são compreendidos
“como fruto da estratégia de “desterritorialização” e “reterritorialização” que levou ora à
repartição, ora à concentração de diferentes grupos étnicos num mesmo espaço restrito”
(Arruti, 1996: 25). Para Arruti, o deslocamento do grupo para outras localidades, entre elas o
Real Parque, é também parte desse processo de “reterritorialização”. No entanto, neste
trabalho, não me aproprio dessas noções de “desterritorialização” ou “reterritorialização” para
pensar práticas migratórias e/ou a habitação de pessoas num determinado espaço geográfico
porque meu objetivo principal é enfatizar que o grupo está produzindo território
continuamente, pensando este como um produto dos processos sociais territoriais, ou seja, de
novas territorialidades, e que estas não se encontram fragmentadas ou isoladas, mas se
interconectam e se mantém por fluxos constantes de mercadorias, memória, cura, saberes,
encantados etc.51
Essa ideia de rede de relações também foi pensada por Estanislau (2014), na qual a
autora afirma que há um “espaço de vida” na própria migração que mantem e fortalece a rede
de relações entre aldeia e cidade entre os Pankararu. Esse conceito “espaço de vida” foi criado
por Courgeau (1974) e designa como espaço de vida todos os lugares e deslocamentos
realizados pelo indivíduo ao longo de sua vida. No entanto, sugerimos que a mobilidade
Pankararu seja pensada como um “modo de produção de vida num espaço fluido” (Ingold,
2011), uma vez que o conhecimento e as experiências são produzidas e ressignificadas
também no deslocamento, ou seja, nos “caminhos” e movimento de ir e vir entre aldeia e
51 Há uma produção de territorialidades sendo construída na capital paulista, num percurso que conecta Real
Parque, Sapopemba e Jardim Panorama. Nesses “caminhos” da cidade, as rezadeiras circulam promovendo a
cura e mantendo práticas culturais do grupo. Nos “caminhos” da aldeia, essa mobilidade também é acionada
pelos rituais do calendário anual do grupo, como a Corrida do Imbu e a Penitência. Embora não tenha tempo de
me aprofundar nesses questionamentos neste trabalho, pretendo sinalizá-los aqui para uma investigação futura.
70
cidade, por humanos e não-humanos. O conceito de Courgeau, apesar de nos dar uma ideia de
formação de redes e espaços nos quais o indivíduo constrói durante a trajetória da sua vida
não supõem a ideia de continuidade e transformação desses espaços, a qual a mobilidade
pankararu parece estar sujeita.
O território é compreendido aqui como um espaço fluído habitado por humanos e não-
humanos, produto e produtor das disputas de agentes e agências que nele circulam e que não
se encontra fragmentado em relação a outros lugares onde o grupo habita, possuindo, dessa
forma, uma coextensividade com outros territórios. Nesse sentido, os trabalhos de Nogueira
(2010) e Testa (2014) nos ajudam a pensar sobre isso. Nogueira (2010) analisa o modo como
famílias camponesas, localizadas no município de Aracatú, no sul da Bahia, constroem
territorialidades conectadas entre si. Essas famílias se deslocam por diferentes lugares -
municípios do sul de São Paulo, como Campinas e Arthur Nogueira e cafezais de Minas
Gerais- ampliando sua rede de relacionamento e de trocas, delineando uma configuração
territorial que é construída nesse processo de deslocamento. O território, nesse sentido, é
pensado como um “território móbil”, pois as pessoas não se encontram fixadas num local,
mas estão em trânsito permanente. Assim, andar, significa mais que um ato de se deslocar no
espaço, configura-se como “uma espécie de continuidade ao ato, no sentido de que o andar é
um ato contínuo, um processo que engloba saídas, retornos, novas saídas e assim por diante”
(Nogueira, 2010: 37).
Em seus estudos entre os Guarani Mbya, Testa (2014) analisa como os caminhos pelos
quais o grupo percorre são vias de acesso por onde se relacionam pessoas, lugares e
experiências, e, principalmente, espaços onde os saberes circulam e são produzidos. A
mobilidade Guarani está relacionada ao desenvolvimento da pessoa e das relações, sendo
também um modo específico de viver do grupo. O deslocamento entre eles também está
orientado pelas revelações em sonhos que uma liderança religiosa ou política recebe das
divindades. Através dos cantos, os rezadores comunicam e apontam caminhos a ser
percorridos, sendo o canto uma experiência de movimento. Esses diferentes locais por onde
eles habitam e se movem, ora entrecortando fronteiras nacionais (Argentina, Paraguai), ora
adentrado em espaços que competem a diferentes esferas do Poder Público, como
hidrelétricas, fazendas, estradas etc, são compreendidos pelo grupo como um território
contínuo o qual eles denominam de yvy rupa e que é traduzido por leito terrestre. Nesse leito
terrestre habitam e circulam sujeitos humanos e não-humanos, sendo um elo de comunicação
entre o mundo celeste e seus habitantes (Testa, 2014: 33).
71
Esses trabalhos nos ajudam a compreender algumas dinâmicas da mobilidade
Pankararu, pois analisam o território como um espaço móbil, não fragmentado, mas
conectados entre si, no caso do primeiro; e como um espaço de circulação e produção de
saberes e experiências, no caso do segundo. Dessa forma, o Real Parque é compreendido
como um território que possui uma coextensividade com a TI Pankararu, sendo mantido por
fluxos de alimentos, cura, saberes, memória etc. A ideia de “aldeia aberta” é importante
porque evidencia as dinâmicas entre as “fronteiras” jurídicas e simbólicas da TI Pankararu,
revelando como as interações sociais entre aqueles que “saem” e “retornam” à aldeia são
formadas e reorganizadas, colocando em disputa saberes, identidade, “tradição” e noção de
novas territorialidades.
2.1.1 O movimento até a cidade
O deslocamento do grupo da TI Pankararu à capital paulista acontece desde a década
de 1940. A cidade de São Paulo foi uma das cidades que, a partir dessa época, passou a
receber essa leva específica de migrantes, motivados, num primeiro momento, pela oferta de
mão-de-obra para trabalharem no setor de construção civil (Arruti, 1996) e, nas décadas
seguintes, para trabalhar na construção do estádio de futebol Cícero Pompeu de Toledo, o
Estádio do Morumbi. Com o tempo, membros do grupo foram se fixando às margens do rio
Pinheiros, no espaço que se configurou, posteriormente, no bairro do Real Parque, tornando-
se ali não apenas um “ponto de chegada” daqueles que vinham em busca de trabalho, mas
também um polo político-administrativo do grupo.
Assim, o Real Parque foi se configurando como um local onde as relações sociais se
encontravam já estabelecidas, criando condições que facilitavam a permanência de outras
pessoas, como familiares, amigos e parentes, que eram acolhidos por aqueles que já moravam
ali. Isso nos mostra como os vínculos parentais e afins foram importantes nesse processo de
deslocamento entre aldeia e cidade, criando condições de moradia para os indivíduos que se
“instalavam” na cidade (Durham, 2004). Em 1994, algumas lideranças Pankararu, entre elas
Bino, Dimas e Frederico, criaram a Associação SOS-CIP, que passou a ser um local de
referência para muitos que chegavam da aldeia buscar informações sobre direitos, educação e
moradia na cidade. A Associação também teve uma importância significativa no processo de
criação do Projeto Pindorama e na reivindicação à FUNAI pelo território indígena na capital
72
paulista52, o que lhe que foi negado, embora tenha sido o primeiro grupo étnico a ser
reconhecido em contexto urbano pela mesma instituição, em 2005.
No deslocamento entre aldeia e cidade circulam seres humanos e não-humanos, num
fluxo constante e contínuo, não se tratando de processos migratórios, com pontos fixos de
partidas e chegadas. Esse mesmo fluxo fortalece o vínculo entre essas duas localidades. Dessa
forma, penso que compreender a mobilidade indígena e seu deslocamento entre um lugar a
outro enfatizando também outros aspectos além do econômico, pode nos dar uma dimensão
maior em relação a própria dinâmica social, além de oferecer mecanismos para se pensar a
coextensividade desses espaços territoriais que estão interconectados por memória, cura,
festividades, parentesco e afetos. É sobre isso que trataremos no capítulo a seguir.
2.2 Paisagens e “passagens” no Real Parque: habitando a cidade
A primeira vez que subi a rua principal que dá acesso ao bairro do Real Parque, em
2013, fui interpelada por dois rapazes que estranharam a minha presença no local. Eles me
indagaram “se eu estava perdida” e quando respondi que estava à procura de uma instituição
chamada Associação Indígena Comunidade Indígena Pankararu SOS-CIP, eles negaram,
dizendo “que não havia índio naquele lugar”. Conversando depois com meus interlocutores e
interlocutoras, e partindo de uma análise reflexiva sobre minha presença enquanto
pesquisadora no local, fui percebendo, aos poucos, que eu estava sendo classificada como “de
fora” daquele pedaço (Magnani, 1998), pois poderia estar colocando em risco as regras e
disputas locais. Na época, a única forma de obter conhecimento sobre o grupo na cidade era a
literatura etnográfica Pankararu, que, embora escassa no seu enfoque sobre contexto urbano,
me indicava a presença da Associação e do seu presidente, o Bino. Assim, a ideia era fazer
minha entrada em campo por via institucional, o que acabou não ocorrendo, pois logo
descobri que a Associação não existia mais enquanto espaço físico e que Bino havia retornado
à aldeia naquele mesmo ano.
Naquela época, estava em processo a construção dos conjuntos habitacionais, que
ainda hoje continua em andamento. No Real Parque, os Pankararu moram em dois tipos de
habitação que foram realizados, num primeiro momento, pelo Projeto Cingapura e,
52 Em 2000, foi criado um Grupo de Trabalho na FUNAI formado pela antropóloga Juracilda Veiga, pelo técnico
indigenista Moacir Santos e pelo agrônomo Paulo Spyer, tendo como objetivo analisar e discutir, junto aos
Pankararu, a reivindicação de uma terra Pankararu na capital paulista. Embora o GT tenha chegado a conclusão
de que o grupo formava uma comunidade indígena em São Paulo, considerando justa a reivindicação proposta, a
FUNAI não reconheceu o pedido.
73
posteriormente, pelos conjuntos habitacionais. Esse processo de “verticalização de favelas”
teve início na década de 1990 na gestão da então prefeita Luiza Erundina (1988-1993), e teve
continuidade nos governos seguintes de Paulo Maluf (1994-1998), Gilberto Kassab (2006-
2012) e Fernando Haddad (2012-2016). A construção de prédios estilo “cohab” provocou
incômodo nos moradores do bairro Morumbi, que fica ao lado do Real Parque, fazendo com
que eles realizassem um abaixo-assinado para que tal construção não tivesse continuidade53.
Embora o abaixo-assinado não tenha alcançado seus fins, podemos perceber que o que estava
em jogo, naquele momento, era a preservação não apenas de uma área nobre, mas também de
uma paisagem que atestasse que ali moravam pessoas de maior posse de bens.
Com o Projeto Cingapura, os Pankararu foram, em sua grande parte, realocados em
dois blocos principais, que são os blocos C e D. Nestes, podemos perceber a circulação
constante dos indígenas. Como já mencionado, essa proximidade foi importante ao grupo,
sendo uma reivindicação feita à Prefeitura pelos próprios familiares à época, pois além de
mantê-los num mesmo espaço doméstico, favorecia os encontros e reuniões da Associação.
Mapa 3 - Vista área de parte do bairro Real Parque.
A configuração espacial dos lugares onde eles circulam e moram nos revela aspectos
da sua vida social e do modo como eles habitam a cidade. Sendo assim, se a memória se
encontra sedimentada num contexto espacial, como nos sugere Halbwachs (2006), podemos
dizer que o Real Parque é uma “comunidade afetiva”, sendo um local onde o grupo imprime
53 Notícia encontrada nesse sítio de internet: http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/918801-associacoes-de-
bairros-nobres-lutam-para-proteger-territorios.shtml; último acesso em 18/08/2016, às 18:44hs.
74
seu modo de vida. Para Weiztman, “o processo de deslocamento envolve tanto um processo
de recriação da imagem do seu lugar de origem quanto uma fabricação sobre o lugar onde se
desloca - um espaço de existência que vai além de uma simples inscrição espacial”
(Weitzman, 2013: 206). Essa recriação da imagem também pode ser percebida entre os
Pankararu do Real Parque em locais como os corredores que dão acesso aos apartamentos e
alguns comércios. Entre aqueles que realizam práticas de cura, por exemplo, é comum se
plantar ervas medicinais ou sagradas em vasos que ficam do lado de fora do apartamento, nos
corredores. Na parte térrea dos novos prédios há pequenas “vendinhas” como a “Quitanda de
Pernambuco” ou o “Mercadinho do Índio”, e também alguns barracos antigos onde se
comercializam utensílios variados, comida e bebidas. Lugares como a casa, os corredores e os
jardins, podem ser considerados como uma “comunidade afetiva”, pois são espaços onde a
memória está sendo lembrada e/ou atualizada diariamente.
No Real Parque, o jardim é um elemento que compõe a paisagem urbanística de todos
os blocos, até dos mais recentes, como nos espaços de lazer dos conjuntos habitacionais. Certa
vez, caminhando pelo bairro, entre os blocos C e D, me deparei com um jardim que me trouxe
à lembrança, logo de início, a imagem da aldeia Brejo dos Padres. O jardim fora cercado com
pequenas hastes de madeira e arame, junto com uma “portinha” no local. Haviam árvores
dentro e até uma “casinha” para abrigar animais, como galinhas. Em muitas vezes que estive
por lá, vi um carneiro amarrado com uma corda num tronco de árvore, que, segundo Roziani,
é de um morador Pankararu. Como já mencionado, esse local servia como uma espécie de
“horta comunitária” pelo grupo, mas atualmente é pouco utilizado pelos moradores.54
O Real Parque também é marcado por uma paisagem sonora diferente em relação a
aldeia. Há, além de ruídos de carros, ônibus, buzina e vozes de pessoas que passam
diariamente pelas ruas, vendedores ambulantes que circulam entre um bloco a outro,
vendendo produtos e alimentos, como ovos, frutas etc., que se misturam com os gritos e
risadas das crianças que brincam nos pátios e escadarias. Em fins de semana, o som de
música, como o funk e o sertanejo, predomina em muitos blocos, e muitos moradores,
indígenas e não indígenas sentam-se em cadeiras ou muretas de frente para a rua, em espaços
de intensa sociabilidade.
Na aldeia, há uma intensidade menor dos ruídos de veículos motorizados. O barulho
das motos, que foram muito recentemente adotadas como um meio de transporte na aldeia, é
ouvido em períodos regulares e se acentuam ao entardecer, quando muitos retornam do
54 Nesse mesmo espaço do jardim, nos blocos C e D, também são realizadas algumas atividades físicas indicadas
pela equipe médica que atende os Pankararu, como caminhadas.
75
trabalho vindos de cidades ou aldeias vizinhas. O barulho do ônibus escolar também se faz
presente no período matutino e vespertino, sempre em horários fixos. Embora ele passe em
alguns lugares pré-estabelecidos, é na frente da Igreja Santo Antônio que se concentra um
maior número de alunos. O som do canto e do apito dos praiás está presente nos períodos de
rituais ou mesmo fora deles, como os pagamentos de promessa individual, e podemos ouvi-lo
quando eles passam pelos caminhos da aldeia, no trajeto em que fazem às visitas de lideranças
na aldeia. Há também o som silencioso que anuncia a chegada da noite e quando os ruídos
maiores cessam, fica apenas o barulho do vento esbarrando nas portas e janelas. Nesse
período noturno, como me relatou Bino, é o momento onde muitos espíritos saem a noite
“para assombrar” as pessoas, não sendo indicado perambular sozinho na aldeia.
Os caminhos que compõem o Real Parque são formados por ruas íngremes, becos,
vielas, escadarias e “passagens”, locais de intensa sociabilidade entre o grupo.55 Entre esses
espaços figuram várias barracas feitas de madeira que vendem comida, como pães, doces,
frutas, bebidas etc., bem como utensílios domésticos e eletrônicos. Embora as ruas possuam
nomes oficiais é comum ouvir um Pankararu dizer que tal lugar fica “na rua do fulano”, como
fazem na aldeia, num processo de identificação territorial que passa pela casa e pela família,
como quando indicam a “Rua dos Nêgo” ou a “Rua dos Oliveira”, como me relatou Roziani:
Esses primeiros blocos [do Projeto Cingapura] acho que foi em 1992 que saiu aqui.
Ali atrás na Leroy era um lago, um rio, que eles tiravam água lá do rio Pinheiros e
jogava pra cá. Aquela água suja ... Mas aqui era favela, não tinha asfalto, não tinha
nada. Antigamente aqui era só mata e mandioca que tinha aqui nessa favela. Por isso
que era “favela da mandioca” que eles falam. Falavam, né? Era reconhecido assim.
Se perguntavam “Ah, você mora aonde?”, “No Real Parque”, “Ah, mas no Real
Parque, aonde?”, “Ali, na favela da mandioca”. Mas aqui era tudo barraco, tudo! De
lá de baixo até aqui em cima era tudo barraco. Aqui onde acho que tá o meio [aponta
para a janela do apartamento, dando para o jardim do bloco D], que não é o meio...
acho que era mais pra cá a rua... aí era a rua pra descer e lá em cima também. Só era
essas duas ruas, o resto era tudo barraco, viela, igual o povo coloca, “viela do
Severino”, “viela da Inaura”, que era o nome de alguns moradores mais velhos que
tinha aqui (Entrevista Roziani, outubro de 2016).
55 As “passagens” correspondem a locais onde as barreiras entre o espaço público e privado se encontram de
forma mais diluída, um espaço de produção de sociabilidade, onde são trocados saberes e experiências entre
diferentes atores sociais, como médicos, AIS, AS etc. Também utilizo esse termo para dar sentido a mobilidade
do grupo, que experienciam a “passagem” pela cidade, nos dando uma ideia de movimento. Nesse sentido, esse
termo se aproxima a noção de “mancha” de Magnani, que, segundo ele “são áreas contíguas do espaço urbano
dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo
ou complementando – uma atividade ou prática predominante. Mais ancorada na paisagem, acolhe um número
maior e mais diversificado de usuários viabilizando possibilidades de encontro e não relações de pertencimento,
como no pedaço: em vez da certeza, a mancha acena com o imprevisto, pois ainda que sejam conhecidos o
padrão de gosto ou pauta de consumo aí imperantes, não se sabe ao certo o que ou quem vai se encontrar
(Magnani, 2014: 10).
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Na entrada que dá acesso aos blocos C e D, há duas “vendinhas” de comércio de
bebidas e salgados, que, segundo a rezadeira e AIS Lídia, serve como um ponto de encontro
entre o grupo, sendo também um ponto de referência da equipe médica. No dia-a-dia, as AIS e
AS fazem visitas monitoradas às casas dos Pankararu. Essas visitas são feitas a pé e elas
dependem também das interações futuras e imprevistas que podem ou não ocorrer nas
“passagens”. Ou seja, se a equipe é interpelada durante seu percurso por um Pankararu e o
atendimento acontece ali, naquela “passagem” - que pode ser uma calçada, uma escadaria, ou
mesmo uma pequena mureta que serve de apoio -, isso modifica o seu percurso, pois a equipe
não precisará passar na casa daquela pessoa que acabou de atender. Nesses atendimentos são
verificadas a pressão arterial, a glicose do sangue, agendamentos de consultas etc. Pelo que
pude perceber, o atendimento nas “passagens” gera certos questionamentos, pois alguns não
indígenas afirmam “que os Pankararu recebem atendimento prioritário” pelo fato de algumas
consultas serem realizadas fora do ambiente doméstico. Esse questionamento dá visibilidade a
interação entre “índios e brancos”, onde os primeiros são questionados sobre seus direitos.
Como dito anteriormente, alguns rituais também são realizados no Real Parque, como
a “dança dos praiás”, o Toré e os rituais de cura. Estes rituais podem ser realizados na escola
municipal de educação infantil “Pero Neto”, na escola estadual de ensino fundamental e no
Casulo (organização não-governamental), que ficam no próprio bairro.56 O Toré é realizado,
sobretudo, em comemorações festivas, como no Dia do Índio, em 19 de Abril. Nessas
situações é comum a equipe médica do PSFI realizar campanhas de vacinação pelo grande
número de pessoas no evento (Lopes, 2011: 87). Há também outras apresentações feitas em
eventos culturais, como a que ocorreu no momento da Mostra de Cinema Indígena “Aldeia
SP”, na qual os Pankararu fizeram a abertura com a “dança dos praiás”.57
Quando o Toré é realizado nas escolas, os praiás e dançadores são colocados numa
sala reservada, na qual apenas pessoas autorizadas possuem acesso. Neste local, os homens
“alimentam” os praiás fumando o campiô. Quando a dança começa, os cantadores evocam os
toantes e tocam o maracá. Enquanto a dança acontece, as mulheres ficam na cozinha,
56 Em 2010, um grupo de mulheres Pankararu, com a ajuda da iniciativa privada, resolveram comprar um espaço
no Real Parque para servir de local para a realização dos rituais de cura, como o “salão de trabalho” e os
“pratos”. Tal empreendimento não deu certo porque a liberação dessa verba exigia um recibo comprobatório que
não pôde ser emitido uma vez que a área comercializada era considerada, pela prefeitura, de ocupação irregular
(Lopes, 2011: 90-91). 57 O evento “Aldeia SP” foi realizado entre os dias 15 e 22 de agosto de 2014 em diferentes locais da cidade de
São Paulo, no qual indígenas Pankararu dançaram o Toré na parte superior do pátio do Centro Cultural São
Paulo (CCSP). O evento é importante porque dá visibilidade as populações indígenas que vivem em contexto
urbano, fornecendo uma maior compreensão de suas demandas frente ao Estado e a sociedade civil. Entre os
convidados, estavam presentes figuras políticas importantes como Juca Ferreira, Secretário Municipal de Cultura
e Ailton Krenak, Articulador da Rede Povos da Floresta.
77
preparando a comida que será ofertada aos encantados, composta de arroz, carne e farofa
servida em prato de barro. Quando os dançadores recebem os pratos, eles retornam para a sala
reservada para se alimentar. Em seguida, todos aqueles presentes são servidos também com
essa comida e com garapa. No final, dança-se o Toré, onde todos podem participar (Lopes,
2011: 85-90).
Figura 12 - A “dança dos praiás” realizada no Real Parque (Foto: Roziani Pankararu)
Os rituais de cura, como as rezas e “mesas de cura”, são realizados, geralmente, na
casa da pessoa enferma. No Real Parque, há um circuito de rezadeiras Pankararu58 que se
revezam para esse fim. Acontece, também, das rezadeiras viajarem até a aldeia para cuidar de
alguém muito doente e vice-versa. Elas também circulam entre os bairros onde os Pankararu
moram, como Sapopemba, Guarulhos e Mogi Mirim, evidenciando uma circulação de cura,
encantados e saberes na capital paulista. As rezadeiras também são acompanhadas de
“aprendizes”, meninas que geralmente são parentes e a quem se transmite os saberes de cura.
Como vimos, o Real Parque é uma territorialidade que possui uma coextensividade
com a aldeia, mantida pela rede de relações e circulação de agentes e agências entre esses
lugares. Se o bairro serviu, num primeiro momento, como “ponto de chegada” aos primeiros
Pankararu que vinham da aldeia, foi se tornando, com o passar dos anos, num local onde as
relações estão mais consolidadas. O bairro é também uma “comunidade afetiva” onde o grupo
inscreve sua memória espacial.
58Apesar de haver homens que realizam rezas e “mesas de cura”, no Real Parque é notável o protagonismo das
mulheres para esse ofício.
78
2.3 Narrativas e memórias em “trânsito”
Apresentaremos, agora, a história de vida de quatro principais colaboradores e
colaboradoras dessa pesquisa, Bino, Ninha, Dora e Roziani. A escolha dessas quatro pessoas
se deu por serem, sobretudo, personagens analíticas que iluminam o tensionamento
evidenciado na experiência sobre a mobilidade entre aldeia e cidade. Pretendemos, a partir das
conversas, relatos e de suas narrativas, apresentar o que significa, para ele e para elas, o
trânsito entre essas duas localidades, os sentidos do “ir e vir” e a forma como cada um se
relaciona com a identidade e a mobilidade. Nosso objetivo é também mostrar como a
memória do grupo aparece nas falas dessa família que caminham da TI Pankararu para
cidades como São Paulo.
2.3.1 Bino Pankararu59
Manoel Alexandre Sobrinho, conhecido como Bino Pankararu, nasceu em 1951 na
aldeia Brejo dos Padres, mesmo lugar que seus pais e seus sete irmãos. Começou a trabalhar
aos dez anos na roça, com seu pai, nas aldeias Carrapateira e Tapera, trabalho que durou
quinze anos. Seu pai veio primeiro para São Paulo para trabalhar na construção do Estádio do
Morumbi. Depois, já mais velho, Bino trabalhou em Paulo Afonso, na Bahia, na empresa
CHESF (Companhia Hidro- Elétrica do São Francisco) e depois na Cetenco60, até o ano de
1976. Foi aí que decidiu “sair pro mundo” e viajar até São Paulo, buscando novas
oportunidades de trabalho. Ele chegou na cidade em 1977, ficando na casa de parentes, no
Real Parque. Nesse intervalo de tempo, voltava para a aldeia de tempos em tempos, e quando
não retornava, sempre mandava dinheiro e mercadoria para sua esposa e seus filhos. Nos
primeiros anos morando na capital paulista, veio acompanhado apenas de seu irmão. Nesses
trinta e três anos vivendo na capital paulista, Bino trabalhou de pedreiro, marteleteiro61 e
frentista operador de jumbo nas empresas citadas. Mas também foi cantador, função que
descobriu enquanto estava no Real Parque, através das apresentações e rituais que os
Pankararu começaram a fazer em diferentes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e
59 As entrevistas de Bino nesse capítulo foram todas realizadas na aldeia Brejo dos Padres, em março de 2015.
Para não ficar repetitivo e facilitar a leitura do texto, optei por não indicá-la com nome e data toda vez que
utilizar a fala dele. Farei uso desse recurso nos itens 2.3.2 e 2.3.4 ao me referir às entrevistas de Dora Pankararu
e Roziani Pankararu, indicando apenas em nota de rodapé sua data e ano. 60 A Cetenco é uma empresa que trabalha com diversas áreas da engenharia e que atua no Brasil desde 1930. 61 Marteleteiro é o profissional que opera o martelete, instrumento conhecido também como “britadeira”.
79
Brasília, sobretudo no final dos anos 1990 e início de 2000. Hoje, Bino mora na aldeia com
sua esposa, Ninha e seu neto Ítalo. Sobre esse ir e vir entre aldeia e cidade, ele conta:
Não, não voltava todo ano, não. Quando papai e mamãe era vivo, eu vinha de dois
em dois anos [pra aldeia]. Um ano eu tirava as férias e vinha, e outro ano eu
comprava algumas coisinha pros meninos, porque eram seis filhos, né, então não
dava para vim todo ano. Aí meu pai foi, adoeceu, ficou um ano e pouco, quase seis,
doente. Quando ele veio a falecer, ficou minha mãe. Aí minha mãe ficou doente
também, aí levei ela para São Paulo, para cuidar dela lá. Ela foi operada na USP
[Universidade de São Paulo], mas ficou... veio andando, mas só ficou um ano e
quase seis, parece, um ano e seis meses viva. Ela operou lá. Veio pra aqui quando
inteirou um ano de operada, ela foi lá fazer a revisão. Aí depois que minha mãe
morreu comecei a vim! Todo ano eu vinha! Dona Maria [Ninha] já tava com a
família em peso em São Paulo. Foi onde eu lutei, fiz o barraquinho na favela. E foi
onde nóis ficamos lá, depois fiz um de bloco, e depois nóis passemos prum
apartamento. Mas digo sem medo de errar, pela nossa cultura, pela nossa tradição
que nóis tem aqui, eu não me arrependi de vim embora, não! Tô feliz e contente!
Agora, tô triste por parte da saúde, que é uma negação aqui. Mas se eu tivesse uma
casa própria em São Paulo, eu aqui voltava. Na época que não tivesse festa aqui, eu
ficava lá. Na época que tivesse as nossas, Menino do rancho, tivesse a Corrida do
Imbu, tivesse Três rodas, tivesse a saída do general o Mestre guia, lá, que é bonito
pra deus e pro mundo, eu tava! Mas eu não ficava definitivo... De São Paulo tem
hora que eu choro escondido.... Quando eu olho, eu lembro das minhas amizade que
eu deixei. Trinta e três anos no mundo, não deixei um inimigo! Então, acho que por
aí eu soube andar no mundo, né!?.
As vindas para São Paulo por motivos de saúde são um dos principais motivos que
levam familiares a se deslocar sazonalmente à capital paulista. Tanto Bino quanto Dora
viajam para a cidade duas vezes ao ano a fim de realizar exames de saúde de rotina no
Ambulatório do Índio. Nessas visitas, eles também aproveitam para encontrar familiares e
amigos. Bino enfatiza que se tivesse “uma casa própria em São Paulo” ficaria parte do seu
tempo na cidade e a outra parte na aldeia, nos períodos rituais e de festividades. A casa, para
ele, parece não ser apenas uma unidade residencial fixa, mas o local onde suas relações são
construídas e mantidas, tendo uma coextensividade entre essas duas localidades. Atualmente,
há famílias que “fecham” suas casas na capital paulista e vão para a aldeia, ficando lá durante
meses nas casas de familiares. Esse fato pode nos indicar algumas pistas sobre a noção de
casa entre o grupo, uma vez que eles moram onde habitam, considerando o habitar como um
modo de ser e viver.
Podemos perceber que a mobilidade da aldeia para a cidade produziu novas
experiências na percepção que a família Pereira possui do mundo. Como veremos, na cidade,
Bino e sua filha Roziani se “descobrem” indígenas, sendo questionados sobre seus “valores” e
conhecimento da sua “tradição”. Essa situação nos remete a ideia de “cultura” com aspas de
Carneiro da Cunha (2009), na qual a autora afirma que, em períodos de diáspora, um grupo
80
contrasta e dá visibilidade a seus sinais diacríticos, -que o grupo carrega de forma reduzida
mas não arbitrária-, tornando-se, assim, mais “cultura” com aspas. Essa experiência de habitar
a cidade levou Bino a se “descobrir” como cantador, pois começou a cantar nas apresentações
de Toré do grupo, na capital paulista, uma vez que seus amigos “tinham vergonha de cantar” e
ele não:
Antes de ir pra São Paulo eu era moço, de cinta azul, daquele azulzinho que você
tem [Bino faz alusão a um boneco de praiá que ele me presenteou, cf. figura abaixo].
Eu era moço dele. Aí foi tempo que eu casei, arrumei família, tive que andar pelo
mundo pra dar sustento pra minha família, aí eu deixei de ser o moço dele e viajei.
Aí foi onde fui, parei de dançar e fui pro mundo. E cantar foi quando montou,
fundou a Associação, né, que tinha os praiás pra dançar, os outros camarada sabia,
né, mas eles tinham vergonha de cantar e eu não! Não vou ter vergonha de fazer
aquilo, o dom que deus me deu de cantar pros meus superiores dançar! Primeiro
superior é Deus, depois de deus vem meu pai, depois do meu pai, quem sabe eles
represente que meu pai. Aí então foi quando comecei a cantar por São Paulo. Aqui
na aldeia eu nunca tinha cantado que meu negócio era dançar. Aí um dia eu cheguei
na Fonte Grande. Aí de noite, eu digo, vou testar de noite, que lá só cantava pouco
tempo. Aí minha cunhada, eu tava na casa dela, não sei se você já foi lá nas ruas dos
nêgos... aí cantei pros homens dançar. Aí Dimas tava junto comigo... ele chamava eu
de Luiz Gonzava, que meu tom de voz toda vida foi meio forte. Aí minha cunhada
escutou. No outro dia viu Maria, minha irmã... “Maria, tinha uma pessoa cantando
lá, quem era aquela pessoa?”, disse. “Por que?”, mode o tom de voz era alto... “Não
conhecia, não”, ela disse. “Era Bino!”. “Que Bino? Nunca vi Bino cantando!”, “Pois
se não tá acreditando, não, pois no terreiro você vai ver!”. Aí quando chegou lá eu
peguei de novo. Aí ela disse, “Ana, -que é minha cunhada, né-, tá ouvindo agora o
que você ouviu ontem?” Ela disse “Tô!”. Todo mundo ficou assim de queixo caído
que nunca tinha visto eu cantá no terreiro aqui. Aqui é tudo cobra criada, como diz a
história. Cada um sabe cantar mais que o outro. Aí um dia eu peguei assim do nada,
que nem diz a história... Aí foi o dom que deus me deus e só quem tira é ele, quando
eu me acabá, né?
Figura 13 e 14 - Praiá de artesanato (Arquivo Pessoal).
81
A cidade, enquanto um conceito que exprime ideias e nos remete a uma imagética
particular, nos oferece mecanismos para se pensar processos de criação de identidades, além
de ser uma categoria de uso reivindicatório importante à implementação de políticas públicas
entre indígenas em contexto urbano. Como veremos no relato de Roziani mais a frente, foi a
partir da sua inserção na PUC-SP que ela se “descobriu” pankararu. Da mesma forma, foi a
partir da participação do grupo em eventos culturais na capital paulista para dançar o Toré que
Bino se “descobriu” cantador. Se antes, na época em que vivia na aldeia, apenas dançava nos
rituais, foi na cidade que ele começou a cantar. Cabe ressaltar que o canto possui um sentido
mágico e sagrado, pois algumas pessoas nascem com esse “dom”. O canto é o prenúncio para
atingir essa esfera do sagrado, pois é o momento de comunicação com determinadas entidades
sobrenaturais, como os encantados.
Em outro momento de sua fala, Bino apresenta as dificuldades que a Associação teve
ao tentar realizar o traslado do corpo dos Pankararu que morrem em São Paulo até à aldeia.
Muitos desejam ter seu corpo enterrado na aldeia, para ficar junto aos seus familiares:
Quando foi o nosso começo lá [se referindo a criação da Associação], nóis sentou
com o pessoal da Funai, conversamos com eles. Digo “Óia, nóis tamo fora da nossa
aldeia, mas tamo no nosso país e essas áreas aqui tudo é área indígena”. Os
primeiros habitantes do Brasil foi os índios, então as terra é nossa! Mas quer queira
ou não, eu tô na terra dos outros, porque o que eu considero minha é a minha aldeia.
Mas a gente não vai ficar esperando ajuda de Funai ou de outro. Então nóis faz o
seguinte. Na hora que morreu um índio, nóis qué mandá ele prá enterrar na nossa
aldeia! Então ficou combinado assim. Morria um, se a família queria que viesse,
nóis corria atrás e conseguia lutá e vinha o corpo pra aldeia. Se a família não
quisesse que viesse pra cá é porque queria que ficasse lá, então eles também faziam
o aprontamento e enterrava lá. (...) O desejo de muitas famílias é manda prá aqui.
Por que manda prá aqui? Porque as vezes tem o pai enterrado ali no cemitério, as
vezes tem um irmão, tem o tio, tem a avó, tá todo mundo junto.
Segundo Bino, muitos Pankararu que moram na cidade possuem o desejo de enterrar o
corpo dos seus familiares na aldeia, embora a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena)
tenha diminuído os recursos para o translado do corpo, dificultando essa prática do grupo.
Nesta fala, percebemos como a Associação auxiliou em demandas específicas do grupo na
cidade, negociando com os órgãos estatais, revelando as tensões existentes para o grupo em se
reconhecer como detentor de um direito constitucional. Mesmo sabendo que “os primeiros
habitantes do Brasil foi os índios” e, como direito originário, “a terra é nossa”, Bino sabe que
estar “fora da aldeia” traz uma série de implicações jurídicas que passa pelo reconhecimento e
autoafirmação de “ser pankararu”.
82
Muitos pankararu que moram na capital paulista são chamados de índios “aculturados”
e “desaldeados” numa alusão de que “índio é terra”, ou seja, de que só é índio quem mora em
aldeia e possui características fenotípicas específicas, ideia comumente difundida no
imaginário nacional. Nesse sentido, podemos perceber que a cidade, assim como a aldeia,
também participa do processo de criação identitária entre os indígenas, seja contrapondo a
imagem de índio genérico àqueles que vivem em contexto urbano, seja dialogando e
negociando saberes, como na inserção universitária e na visibilidade do grupo por meio de
suas práticas culturais. Em períodos de diásporas que as culturas minoritárias ganham
visibilidade, contrastando seus sinais diacríticos com o grupo ao qual se opõe, como assinala
Cunha (2009). No entanto, na cidade, os Pankararu não apenas contrapõem esses traços
diacríticos como marcador de sua etnicidade, como negociam e disputam valores, sentidos,
saberes, identidades. A cidade participa da experiência vivida do grupo, sendo também
propulsora da construção da identidade Pankararu. A educação possui um valor de prestígio
entre as famílias Pankararu, e a circulação de saberes entre aldeia e cidade, apesar de ser
desejável, produz também resistências e disputa, como veremos a seguir.
2.3.2 Dora Pankararu
Maria das Dores da Conceição Pereira do Prado, mais conhecida como Dora
Pankararu, nasceu em 1975, na aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco. Filha de Bino e
Dona Ninha, ela visitou pela primeira vez a cidade de São Paulo aos cinco anos de idade. Aos
dez, voltou à capital paulista junto com a família para morar no Real Parque. Morou durante
vinte e nove anos no bairro e só retornou recentemente à aldeia em 2014, onde reside
atualmente com seus três filhos. Durante o período em que viveu na capital paulista, trabalhou
seis anos na Casai (Casa do Índio), de 2006 a 2011, e atuou dando consultoria e assessoria à
UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos), entre 2007 a 2011, onde participou
ativamente auxiliando no processo da implementação de políticas de ações afirmativas à
população indígena universitária. Atualmente, Dora trabalha como Professora de Educação
Indígena na TI Pankararu.
83
Em 2001, Dora ingressou no Cursinho da Poli62, fazendo parte dessa primeira turma
de ingressantes, tendo iniciado seus estudos em 2002 no curso de Pedagogia na PUC-SP.
Sobre a implementação do Programa Pindorama e a parceria da Associação, Dora contou63:
A Associação vem com uma série de propostas do seu Estatuto, e uma delas é a
educação. Eu lembro que eu sempre cobrava do meu pai que a gente não tinha
dinheiro, mas a gente tinha condição de estudar, como qualquer outra pessoa
humana, né, dentro da cidade, e dar continuidade do processo educacional. Aí o
cursinho da Poli em 2000 fecha um contrato com um número determinado de alunos
pra pré-vestibular e em 2001 começa a primeira turma do pré-vestibular, pensando
no processo de entrada na universidade. E, aí, em 2002, entra a primeira turma,
sendo que em 2001 fizeram o contato na PUC. Nesse meio tempo, a única pessoa
que a gente encontrou que era os Pankararu, a Associação SOS Pankararu, junto
com os Guarani e sua liderança e um xavante Riparidi. Riparidi conhecia uma
pessoa, no caso seu Benedito [Prezia] que é do CIMI [Conselho Indigenista
Missionário] também. Tem a questão da Pastoral inserido com o CIMI, ele buscou
essa pessoa para nos apoiar dentro do processo acadêmico, né. Até então não tinha
nenhuma proposta da universidade para os alunos indígenas até onde eu conheci. Aí
a gente faz o vestibular em 2002 e entram 24 alunos indígenas, a maioria pankararu.
Cabe ressaltar que o número de ingressos de indígenas no ensino superior, no Brasil,
teve um aumento significativo a partir de 2000 (Macedo Barroso & Luciano, 2010), com o
advento de implementações de ações afirmativas como as “cotas”, por exemplo, que se
constituem na reserva de uma porcentagem específica de vagas de cursos regulares a
estudantes que pertencem a grupos historicamente excluídos, como os negros, indígenas,
portadores de deficiência, pessoas de baixa renda etc. Segundo Dora, alguns órgãos federais,
como a FUNAI, também auxiliam na permanência de estudantes indígenas nas universidades,
concedendo apoio financeiro, tanto nas universidades públicas como nas privadas, como
acontece no Programa Pindorama, da PUC-SP.
Dora conta que, quando morava em São Paulo, seus filhos sempre viajam à aldeia para
participar do calendário ritual do grupo. No entanto, suas viagens foram motivadas, muitas
vezes, para acompanhar trabalhos e pesquisas de pessoas interessadas na “cultura” do grupo:
Eu retornei aqui [à aldeia] quando tinha 15 anos. Depois quando estava com 18 pra
19 anos. Depois em 2005, em 2009, 2011 e agora, em 2014. Aí em 2014 foi pra ficar
mesmo. Eu vim aqui fazer algumas pesquisas com os amigos, a universidade,
projeto pra gente mesmo, para os Pankararu de São Paulo com os Pankararu da
aldeia. Eu vim aqui sempre atrás de conhecimento e de manutenção, né. Nunca vim
62 O Cursinho da Poli é um projeto de educação sem fins lucrativos, criado em 1987 por um grupo de alunos de
Engenharia da Escola Politécnica da USP, com objetivo de oferecer oportunidades a pessoas sem recursos
financeiros e que desejam fazer um curso preparatório pré-vestibular. Com a criação do Programa Pindorama, a
Associação também criou uma parceria com o Cursinho da Poli, em 2000, para conceber um número
determinado de vagas destinados a indígenas em contexto urbano. 63 As entrevistas de Dora nesse capítulo foram todas realizadas na aldeia Brejo dos Padres, em março de 2015.
84
aqui prá festa. Quem sempre veio prá ficar foi meu filho mais velho que tá com 17
anos, o Ítalo, e Ingrid, com 15. Ítalo vem prá terra indígena Pankararu desde um ano
e nove meses. Ingrid vem desde os quatro. Anualmente eles vinham e ficavam três
meses mais os meus pais. Passavam o período de férias toda aqui. Chegou um
período que eles resolveram não voltar mais. Aí foi a hora que eu me senti na
obrigação de ficar com meus filhos onde eles quisessem ficar. Se eles escolheram
ficar aqui, mesmo nascido de São Paulo, mas vivendo dentro das origens, isso
independente, acho que o que vale é o que eles têm como origem, né, como
reconhecer o povo que ele faz parte, independente da condição precária que a gente
tenha, né!?.
A fala de Dora é significativa pois nos revela a circulação de saberes e conhecimento
entre diferentes localidades. Apesar de muitos Pankararu viajarem à aldeia nos períodos
rituais e de festividades, segundo Dora, suas viagens eram “sempre atrás de conhecimento e
de manutenção” de sua cultura. A busca por conhecimento é um dos motivos que levam
muitos jovens Pankararu a sair de suas aldeias. Marcela é uma universitária que cursou
Pedagogia na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em Paulo Afonso (BA), cidade
vizinha da aldeia. Outra pankararu me informou que seus filhos estudavam Engenharia Civil
na UFSCAR e voltavam à aldeia apenas em períodos de férias. A aquisição de conhecimento
está também associada com a mobilidade do grupo e a circulação de saberes, criando
situações de disputa:
A educação indígena vai ter uma qualidade melhor ou maior quando quebrar esse
preconceito de que quem sai [da aldeia] já não mais faz parte do contexto de
população de referência. Pelo contrário, a gente só sai porque a gente tem um
objetivo de dizer que nosso povo é povo indígena, sofreu massacre, principalmente
aqui no Nordeste. Porém, temos a mesma base de qualquer outro cidadão brasileiro.
Não sei quem coloca essas ideias na cabeça no povo indígena, principalmente na
área de educação e saúde indígena que só é indígena quem mora no território. E
quem nunca saiu do território para buscar qualidade de vida ou de aprendizado?
Enriquecer a sua questão cultural com seu conhecimento cientifico, não somente
tradicional? Quem disse que o conhecimento cientifico vem para degradar o
conhecimento tradicional? Pelo contrário, ele só vem para enriquecer, quando você
sabe o que você quer lá fora. (...) No meu caso, eu vivi muito tempo fora daqui da
aldeia, mas ninguém nunca me tirou essa minha origem do meu peito nem da minha
cabeça. Toda vida que eu disse, eu não vou prometer nem dia nem hora nem lugar.
Quando eu tiver condição, eu volto pra aldeia. Eu vou voltar pra dar o retorno a
minha comunidade. Porque se eu estudei numa universidade, falando de vaga para
indígena, então eu tenho que dar o retorno a minha comunidade. Apesar que eu sofri
preconceito porque eu sou recém-chegada aqui. Mas também tenho direito assim
como qualquer outro dentro dessa terra.
Essa fala de Dora revela a tensão existente entre prestígio/moralidade e mobilidade,
evidenciando também a ideia de “retorno” do grupo.64 Apesar da busca por acesso à educação
superior ser desejada por algumas famílias, aqueles que “saem” da aldeia sofrem também
resistência quando retornam, pois há um questionamento em relação a sua identidade e o que
64 Esse tema do “retorno” nos remete a ideia que os Pankararu possuem de voltar para sua aldeia (Arruti, 1999).
85
é ser Pankararu. É presente em muitas narrativas, principalmente dos mais velhos, que sair da
aldeia “enfraquece o grupo”, como pensa João Gouveia, liderança espiritual e antigo
Conselheiro tribal do grupo. Para ele, a cultura Pankararu tem que permanecer na aldeia, “pois
há que se preservar seu segredo”. Tal ideia em conceber como perigoso aquilo que se
encontra fora da esfera doméstica encontra ressonância com a “teoria das agressões
sobrenaturais” entre os Yanomami, que atribuem aos “outros” poderes patogênicos que
causam doenças e mortes, “pois a medida em que se atenua e se distancia o domínio do
parentesco, aumenta o reino da violência – efetiva ou simbólica” (Albert, 1992: 156). Nesse
sentido, quanto mais distante da aldeia, mais perigo há para o grupo. No entanto, muitas
famílias incentivam seus filhos a buscarem conhecimento fora, e, atualmente, há um número
expressivo de jovens Pankararu que são estudantes universitários e outros que, já formados,
retornam à aldeia, como Dora, “para dar um retorno a sua comunidade”:
Se você não souber quem é você, e o que você veio fazer aqui [se referindo a
universidade], se não tiver um objetivo claro, na sua pessoa, no seu povo, e o que
você quer levar daqui pro seu povo, eles lavam teu cérebro. Agora, se você já sabe o
que você quer, tem uma noção exata do que você foi fazer e o que que você quer
levar pro seu povo, além do que você já trouxe, aí você vai ter um rendimento bem
maior e a sua comunidade vai sair mais fortalecida. Porque você vai se auto afirmar
a cada minuto, pensando naquilo que você deixou em casa, que você deixou prá trás.
Isso foi alguns casos que tive que repetir por uma série de vezes, essa questão da
identidade, do fortalecimento, da exposição pela comunidade, mais o conhecimento
pelo conhecimento, né, que as vezes a gente deixa a questão... Conhecimento e
sabedoria tem que andar juntos.
Portanto, a universidade pode também ser vista como um espaço de afirmação da
identidade, sendo lida como mais um desenvolvimento de uma história marcada por lutas e
pela necessidade constante de se impor frente ao Estado e a sociedade nacional:
Ser pankararu hoje, é ser muito forte, viu!? Meu povo mesmo, como outro povo
indígena, aprendeu a ter, entre nós mesmos, as injustiças que acontece entre nós
mesmos e a questão judiciária, que também as vezes faz com que a gente se perca na
questão da identidade. Se a gente não tiver uma forte concepção e a ideologia do que
é ser indígena, de ser um povo sofrido, você não quer ser mais indígena dentro desse
processo. Mas ser pankararu, pra mim, é ter orgulho de ser quem eu sou, de onde
vim, da vida que a gente tem, e das conquistas que a gente têm, mesmo em cima
desse monte de tristeza que a gente continua passando até hoje. Isso é ser pankararu,
pra mim. É continuar mantendo a questão que a gente tem, que é a nossa questão
cultural, as nossas origens, a nossa vivência dia a dia, independente de onde você
esteja. Porque Brasil é grande, território brasileiro é imenso. Eu acho que você tem
que ser pankararu onde quer que você esteja! É ser orgulhoso daquilo que você é e
da bagagem que você trouxe, enquanto vindo de um povo sofrido.
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Dora faz, em média, duas viagens anuais para São Paulo, para realizar exames de
saúde de rotina e visitar parentes. Nessas visitas, ela fica na casa de seus irmãos que moram
no Real Parque. Suas idas e vindas entre aldeia e cidade estão marcadas também pela busca de
“conhecimento e manutenção”. A mobilidade, nesse sentido, pode ser compreendida como
uma produção de conhecimento, fazendo circular saberes entre essas localidades, mantendo
viva a cultura e a prática social do grupo. Podemos também perceber os diferentes sentidos da
mobilidade para Dora e seus filhos. Enquanto ela retornou várias vezes à aldeia para buscar
conhecimento, tendo se formado Pedagoga na cidade de São Paulo, seus filhos fazem o
caminho inverso. Nascidos no Real Parque, eles moram na aldeia e não almejam retornar à
cidade, participando dos rituais e festividades que acontecem no Brejo.65
2.3.3 Dona Ninha
Maria Senhorinha da Conceição66, mais conhecida como Ninha ou Dona Ninha,
nasceu na aldeia Brejo dos Padres, mesmo lugar que seus pais e irmãos. Ela é casada com
Bino e têm seis filhos. A vinda para o Real Parque aconteceu na década de 1980, com seus
filhos Dora, Cícero e Cida. Os demais, Roziani, Diana e Eloi nasceram posteriormente, na
capital paulista. Nesse período, ela trabalhou em alguns ofícios, entre eles, como empregada
doméstica num clube de tênis no Morumbi, para ajudar nas despesas familiares. Ao mesmo
tempo, fazia as tarefas domésticas da sua casa, com a ajuda de sua filha Dora.
As minhas conversas com Ninha, na aldeia, aconteciam frequentemente em alguns
ambientes específicos da casa, como a cozinha, a varanda e o quintal. Ninha voltou em 2013 à
aldeia, e nas nossas conversas o tema cidade é bastante presente. Recentemente, em 2015, ela
viajou ao Real Parque, como mencionado, e ficou quase três meses para ajudar sua neta Tainá
a se recuperar de uma cirurgia. Ela ficou hospedada na casa de sua filha Diana, mãe de Tainá.
Sua fala é marcada pela experiência da mobilidade, assim como a construção de sua
identidade como pessoa. Apresentaremos a seguir duas situações como exemplo para elucidar
essa afirmação.
65 Embora não seja possível explorar essa diferença geracional na família Pereira, ela é uma questão importante
que será estudada com mais profundidade em pesquisas futuras. 66 Dona Ninha não gosta de dar entrevistas nem de tirar fotos. Respeitando sua vontade, não insisti em fazer uma
entrevista formal com ela. No entanto, ela nunca se opôs a me dar informações ou explicar algo quando eu a
questionava. Em muitos momentos, quando eu brincava com ela sobre esse fato, ela dizia “pra que entrevista se
você tem tudo anotado no seu caderno?”. Sendo assim, as falas que serão apresentadas são parte de conversas
mais informais e de anotações do meu caderno de campo.
87
Numa certa manhã de domingo, dia de feira na aldeia em frente à Igreja de Santo
Antônio, Ninha disse que era “para eu ir lá, porque tinha artesanato de índio”. Muitos
vendedores de Petrolândia vêm à feira para vender pão, peixes, leite e frutas. Havia algumas
barracas de roupas e de eletrônicos também. Entre essas barracas, havia um homem vendendo
artesanato indígena. Na ocasião, o vendedor disse que o material dos objetos artesanais era
feito do ouricuri. Comprei um colar e voltamos.
Depois desse evento, no qual Ninha ficou contente em me ver com um colar feito
pelos indígenas, lembrei que na noite anterior, ao indagá-la se iria ver a Corrida do Imbu, ela
afirmou que não iria, pois “não participa dos rituais”, “dessas coisas de índio”. Porém, em
certa altura da noite, quando começou o ritual, a vi sentada ao lado de sua filha, Cida, que
estava lá vendendo cachorro-quente. Ficamos todos até o término da Corrida, que foi
finalizada por volta das quatro e meia da manhã.
Nesses dois exemplos podemos perceber uma certa tensão na fala de Dona Ninha, que
ora se aproxima, ora se distancia da “cultura” pankararu. Isso pode estar atrelado ao fato de
ela participar da “passagem” entre aldeia e cidade, e pelo fato de ter vivido muitos anos em
São Paulo. No entanto, isso não significa afirmar que ela nega sua identidade indígena, mas
que a experiência vivida na cidade lhe trouxe novos elementos que são renegociados em sua
própria percepção de mundo. Os elementos que compõem a identidade indígena são múltiplos
e se encontram constantemente em negociação. O mais importante, com esse fato, é notar as
particularidades dessa família, considerando que ela - a família - esteve sempre nesse contexto
de deslocamento, e que a experiência vivida nessa “passagem” reverbera na construção de
suas narrativas, quando, por exemplo, Ninha se diz “dividida entre lá e cá”, ou quando Bino
afirma que se pudesse, ficava um tempo na aldeia e um tempo no Real Parque. A fala de
Ninha se aproxima também a de sua filha Roziani. Em ambas, o tema da cidade é
compreendido como um local de aprendizado e de construção de identidade, como veremos a
seguir.
2.3.4. Rozi Pankararu67
Maria Roziani Pereira Aureliano, conhecida como Roziani Pankararu, nasceu no Real
Parque, em São Paulo, em 1982. Em 2004, ela começou a trabalhar como AIS no Projeto
67 As falas de Roziani organizadas neste capítulo fazem parte das anotações, conversas e entrevistas que fui
compilando no meu caderno de campo, no período de 2014 a 2016.
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Rondon68, atendendo no PSFI na UBS do Real Parque até 2006, momento no qual houve
troca de parceria e o PSFI passou a ser gerido pela Fundação Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo69. Roziani trabalhou por dez anos como AIS nesse PSFI. Em
janeiro de 2016, houve nova mudança na instituição gestora da UBS local, passando a ser
gerida pela Escola Paulista de Medicina-UNIFESP.
Como já mencionado, Roziani ingressou em 2005 no curso de Pedagogia pelo
Programa Pindorama tendo se formado em 2009. Esse fato é significativo e motivo de
orgulho a sua família, pois entre seus seis irmãos, quatro ingressaram na universidade:
Falando um pouco do meu pai também, eu lembro muito pouco! Assim, eu sou uma
indígena meio desgarrada... Mas eu lembro que ele fala que ele veio pra cá pra São
Paulo porque lá não tinha condições de criar os filhos dele. Porque lá não é a terra
que você planta prá colher. Não tem essas coisas. Lá é muito seco! Por ser uma terra
muito seca, ele falou que vinha pra cá pra trabalhar pra sustentar os filhos. Na época
ele tinha a Dora, o Cícero e a Cida. Aí ele fala que veio prá cá pra procurar melhora
pros filhos dele. Tanto que ele fala que o orgulho dele é ter duas universitárias. Que
é eu e a Dora. A Diana entrou, mas saiu faltando acho seis meses ou um ano. O Eloi
entrou, também saiu... Ele perdeu a bolsa porque tinha que trabalhar, a renda dele
caiu e ele não tava conseguindo se virar. Mas ele fala que o grande orgulho dele é ter
as filhas dele formada.
Sobre as idas e vindas entre aldeia e cidade, Roziani lembra de seus pais viajando à
aldeia para visitar seus avós paternos e maternos, que se encontravam doentes, ou em
períodos de calendário ritual. Ela chegou a ir para à aldeia algumas vezes, mas não participava
dos rituais:
Olha, eu acho que já fui prá lá umas cinco vezes. Eu ia mesmo prá passear, no final
de ano, dezembro, porque, minha mãe trabalhava. Teve uma vez que eu fui porque a
mãe da minha mãe tava bem doente e chegou a notícia que ela não ia aguentar muito
tempo. Ela ficava chamando minha mãe e como eu tinha sete, minha mãe chegou a
me levar. Mas a minha mãe foi prá lá, acho que menos de dez dia depois a minha
avó faleceu. Eu lembro que eu até cantava prá ela! Minha mãe falava “Cante Rozi,
cante prá ela na janela”. Aí tinha uma janelinha... minha avó morava ali no alto do
Posto, não sei se você se lembra quando você foi pra Cida... Ali tinha a casinha
dela... Aí minha mãe falava “Cante Rozi, sua vó quer escutá”. Aí eu cantava lá,
“borboletinha” não sei o quê... Minha avó morreu muito rápido lá, minha mãe ficou
mais uns dias... Mas eu lembro dela... os olhos dela não era verde, mas sabe aquele
mel? Cabelo fininho... branquinha... da cor da minha mãe, assim, mas branquinha...
68 O Projeto Rondon foi criado em 1967 pelo Ministério da Defesa e tinha como objetivo, em seu início, de
promover o desenvolvimento social e econômico do país. Atualmente, ele possui uma ação interministerial com
os Ministérios da Educação, Saúde, Desenvolvimento Social e Agrário, Meio Ambiente, Integração Nacional e
do Esporte, além de contar com a parceria dos governos estaduais, municípios e universidades, visando
contribuir no desenvolvimento sustentável e promoção da cidadania em populações mais necessitadas. Fonte:
http://www.projetorondon.defesa.gov.br/portal/index, acessado pela última vez em 19/10/16, às 16h22. 69 Para informações mais aprofundadas sobre a implementação do PSFI no Real Parque em parceria com a
Associação SOS-CIP ver Lopes (2011).
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Um olhar sereno... Minha avó tinha um olhar gostoso... Mas eu não tive contato com
ela viva, porque eu já cheguei lá e ela tava morrendo...
O filho de Roziani, Thales, é secundarista, estuda no Cursinho da Poli e pretende
prestar para Economia na PUC-SP. Mesmo se sentindo como uma “indígena meia
desgarrada”, Roziani conta que foi através da universidade que ela se “descobriu” pankararu:
Eu fui me identificar como indígena quando eu entrei na faculdade. Como eu ganhei
a bolsa, você começa a conversar, né? Aí perguntam “você paga, você não paga”,
“você é bolsista, você não é bolsista”. Aí foi na hora eu me identifiquei falando que
era indígena. Mas só que eu não sabia nada de indígena! Se você me perguntasse
alguma coisa... Aí meu amigo falou “Mas como pode?”. Aí eu lembro de uma frase
que meu pai sempre fala “O indígena sem cultura é uma árvore seca, uma árvore
oca”. Que adianta falar que era indígena se você não sabe nada? Era o meu caso em
2005. Aí eu comecei a ir mais atrás, perguntar mais. Tanto é que eu falava assim “os
indígenas...”, a professora me corrigia, “Roziani, você também é indígena”, “Ah, o
povo do meu pai”, “Roziani, é o seu povo!”. Então, as professoras começaram a me
cobrar, os amigos da sala de aula começaram a me cobrar. Aí eu comecei a me
posicionar e dizer “O meu povo”.
Roziani também teve uma participação importante na Associação, pois foi a primeira
Pankararu a trabalhar como ASI para atender o grupo do Real Parque. Assim que formaram a
equipe, eles foram treinados por Dora Pankararu, que já tinha uma base formal sobre
atendimento médico por conta da sua experiência no Ambulatório do Índio. Esse fato é
importante pois mostra como os Pankararu participaram de todo o processo do atendimento
médico do grupo na cidade, desde a implementação de um posto de saúde aos indígenas, até a
realização das visitas monitoradas da equipe médica, estando diariamente em contato com as
notícias sobre doenças, enfermidades e outros problemas relacionado à saúde entre eles:
A gente foi fazendo conforme a Dora foi ensinando. A primeira pessoa a dar o que
era pra ser feito, como que o AS atendia, foi a Dora que passou. Ninguém ensinou
nada! Assim, ninguém trouxe alguém e falou “vocês vão fazer o primeiro
levantamento”, como o Censo dos indígenas, quantos indígenas têm... Não, ninguém
fez isso. A Dora que ensinou, a Dora que falou, “ó. vocês vão nas casas, vê quem é
hipertenso, quem não é, quem é acamado, quem não é”. As prioridades, né? As
crianças, o nome das crianças, aí vocês falam que tá montando o PSFI, que vai
montar, que vai chegar os médicos, enfermeiros, e é bom já ter esses dados.
Atualmente, Roziani não tem planos de retornar a TI Pankararu. Desde pequena, suas
viagens à aldeia estiveram atreladas a períodos rituais, como a Corrida do Embu e em
momentos em que alguém de sua família ficou doente, como no período em que sua avó
materna esteve enferma. Sua atuação como ASI no Real Parque e seu ingresso na
90
universidade são marcos significativos e motivos de orgulho a sua família. Analisaremos
agora, os sentidos que essa família dá a esse movimento entra aldeia e cidade.
2.4 Sentidos do ir e vir: a trajetória de uma família em movimento
A trajetória de Bino, Ninha, Dora e Roziani está marcada, sobretudo, pela busca de
maior conhecimento e acesso de bens tanto à sua família quanto ao grupo. Por ser uma família
que vive em “trânsito”, ela carrega particularidades que revelam a dinâmica que o grupo
impõe em relação a manutenção da sua cultura e do seu “segredo”. A mobilidade, aqui, é uma
forma de produção de vida, uma vez que contribui na produção e circulação de bens, saberes,
cura, conhecimento, pessoas, encantados. Ao mesmo tempo, podemos perceber que esse
movimento que a família faz -e que também é o movimento de centenas de famílias que se
deslocam entre essas localidades-, exprime a maneira como o grupo habita e vive nesses
lugares.
“Caminhar”, nesse sentido, não significa apenas se mover geograficamente entre
localidades específicas, mas implica na produção de uma territorialidade que se conecta por
territórios (aldeia/cidade) e “caminhos”, e que fazem circular seres humanos e não-humanos.
O território aqui, não é um espaço fixo ou fragmentado, mas está interligado por esses
diferentes locais pelos quais eles caminham. Os “caminhos” são espaços de marcos
mnemônicos, significativos pois nos revelam aspectos cosmológicos do grupo. Nesse sentido,
a trajetória da família Pereira possui um aspecto peculiar porque ela revela diferentes fatores
envolvidos nesse processo da “passagem” entre aldeia e cidade. Ter ficado “trinta e três anos
no mundo” contribuiu para que essa família adquirisse maior prestígio e conhecimento em seu
tronco familiar, ao mesmo tempo em que evidenciou os sentidos que alguns atores sociais dão
ao “sair da aldeia”.
Podemos estabelecer algumas relações entre esses quatro interlocutores e
interlocutoras, apontando diferenças e semelhanças que colocam em evidência os sentidos da
mobilidade e da identidade pankararu. A trajetória de Bino e Dora possui características em
comum, como as constantes “saídas” da aldeia em busca por conhecimento e direitos. Ambos
trabalharam como presidente(a) da Associação lutando por políticas públicas de
reconhecimento dos direitos indígenas em contexto urbano, bem como ações afirmativas que
deram visibilidade aos problemas enfrentados na educação indígena. Como vimos, o sentido
91
do “retorno”, para Dora, está associado em “devolver” a sua comunidade o conhecimento que
ela adquiriu “fora da aldeia”. Foi na cidade também que Bino se “descobriu” cantador,
“devolvendo” ao seu grupo o dom recebido, assim como Roziani se “descobriu” pankararu na
universidade. Podemos perceber que a cidade é produto e produtora de saberes e experiências
que são negociadas constantemente com a aldeia.
A trajetória de Roziani é marcada pela sua experiência de vida na cidade de São Paulo
e pela sua atuação política na Associação. Ela trabalhou por dez anos como ASI, realizando
atendimento aos Pankararu e contribuiu na construção de uma maior visibilidade do grupo ao
enfatizar a importância da medicina pankararu e de suas práticas culturais. Nesse sentido, as
narrativas de Ninha e Roziani se assemelham na medida em que o tema cidade aparece como
um local de produção de conhecimento e identidades. A tensão na fala de Ninha expressa a
complexidade de sentidos e elementos que compõem a identidade, ao mesmo tempo em que
evidencia como os termos “cidade”, “aldeia” e “índio” circulam e são negociados por ela.
Pretendemos, nesse capítulo, apresentar o tema da mobilidade e como ele é
compreendido pelos Pankararu. A cidade de São Paulo é compreendida como um lugar onde
se produz conhecimento, onde se busca atendimento médico, onde os encantados também
circulam. O Real Parque corresponde a um espaço coextensivo da aldeia, numa
territorialidade que está sendo construída cotidianamente. A mobilidade coloca em disputa
saberes, “tradição”, identidades, evidenciando novas formas de produção de territorialidades.
Assim, “caminhar” ou “cair no mundo” é uma maneira do grupo habitar essas localidades. A
seguir, apresentaremos essa relação entre o mundo visível e invisível, e como a casa se
constitui num elemento central para a compreensão da noção de pessoa.
92
Capítulo III
Corpo, cosmos e sacrifício
Neste capítulo iremos apresentar como o corpo, a casa, o sacrifício, o asseio e a
memória são elementos que se encontram interligados e nos ajudam a compreender a noção
de pessoa Pankararu. Para isso, iremos analisar alguns aspectos de três rituais do grupo, a
Queima do Cansanção, a Penitência e os rituais de cura feitos em ambiente doméstico. Esses
rituais são importantes porque evidenciam noções de corporalidade, doença e cura, onde o
corpo aparece como um sacrifício a ser ofertado aos encantados, entidades vivas que
compõem o complexo cosmos Pankararu. Em seguida, analisaremos a casa enquanto um
santuário da pessoa, como uma extensão corporal composta por humanos e não-humanos,
compreendida como um local não apenas de reprodução e parentesco, mas também de afeto e
memória.
3.1 O sagrado Pankararu
Antes de iniciarmos, é importante definirmos a noção de “sagrado” empregada neste
trabalho, pois este é um termo corrente nas falas dos Pankararu. Considerando que este é
também um conceito presente na literatura antropológica, é necessário delimitá-lo. A ideia de
sagrado para os Pankararu está associada tanto à esfera doméstica, cotidiana, quanto à esfera
pública. Essa noção não se limita apenas aos objetos e seres visíveis, mas também aos seres
invisíveis. Apresento abaixo, lugares, objetos e seres não-humanos (como as plantas,
encantados etc) que possuem característica de sagrado, para em seguida mostrar como esses
elementos se relacionam com o corpo e o sentido dessa noção para o grupo.
A cruz é um elemento muito presente na vida cotidiana e ritual do grupo. Ela “institui
a sacralização das coisas” (Matta, 2005), orientando as coreografias dos rituais, bem como a
proteção das casas. A cruz é também feita gestualmente quando as rezadeiras benzem
comidas e bebidas que serão servidas nos rituais, ou no término de uma reza, quando ela
sinaliza com as mãos “cobrindo” o peito e as costas para indicar que o corpo está “fechado” e,
portanto, livre de ameaças. Assim, a cruz é um elemento que simboliza proteção, mas que
também institui o caráter de sacralização de seres e objetos.
93
Os terreiros são espaços considerados por alguns como um “santuário” e um local de
“respeito”, pois é onde se manifestam os encantados. O poró, localizado próximo ao terreiro,
é uma pequena casa de palha, como mencionado, e que pode ser compreendido como um
lugar de acesso ao mundo sobrenatural. Em momentos de celebração ritual, é proibido
“cruzar” um terreiro, ou seja, atravessá-lo no sentido transversal, “por este ser um espaço
sagrado”.
As “mesas” de cura são feitas no “salão dos homens”, que fica dentro da casa de zelar
praiás ou no “salão de trabalho”. Nesses rituais são manifestados os encantados, para que
auxiliem no tratamento de algum mal que foi lançado ou de alguma doença. Assim, há uma
circulação de humanos e não-humanos nesses espaços, onde apenas pessoas autorizadas
podem entrar.
Os locais de morada dos encantados, como os serrotes, as serras, os cruzeiros e as
nascentes são também lugares sagrados. Antigamente, os homens que participavam dos rituais
ficavam reclusos durante um mês nesses serrotes, se “preparando” e mantendo os resguardos.
Atualmente, os resguardos podem ser feitos num período mais curto. O período de isolamento
num local mais afastado indica uma forma de manter o corpo mais “limpo” e, portanto, mais
próximo do sagrado.
Os instrumentos utilizados em rituais pelos cantadores, rezadeiras e praiás, são
armazenados em locais isolados, onde apenas o dono ou a dona podem manuseá-lo, como o
maracá, o campiô, a toalha usada para as “mesas” de cura, a “disciplina” (navalha cortante
usada pelos penitentes) e os roupões.
A música oferece também um elo de ligação com o mundo sobrenatural. Entre os
Pankararu, ela é classificada como “toante” ou “Toré”. O toante possui “um caráter sagrado e
serve como invocação ou chamado para que a presença de um Encantado ou de vários
Encantados aconteça nos rituais”, enquanto os Torés, no caso específico da música, “são
executados para que todos possam dançar e cantar, em dia qualquer ou quando do fim de um
ritual, num momento que também é chamado de toré” (Carneiro da Cunha, 1999: 53).
Ervas de uso ritual não podem ser apanhadas por aqueles que não detém o
conhecimento do procedimento ritual “por serem sagradas”, e apenas pessoas em resguardo
podem “apanhá-las” do pé. Algumas plantas, como o caroá, também possuem um caráter
sagrado. A partir dessa planta se extrai uma fibra altamente resistente, da qual se produz os
94
“roupões” dos praiás. O cansanção70 é uma urtiga utilizada no ritual a Queima do cansanção,
e detém características ambíguas, uma vez que possui poderes de cura, sendo também uma
erva “perigosa”, pois provoca queimaduras e pode até cegar.
Figura 15 – Camiseta “Ser Pankararu”. (Arquivo Pessoal)
Todos esses lugares, objetos e plantas são considerados sagrados. Essa noção de seres,
lugares e coisas sacralizadas encontra-se associada com a ideia de resguardo, momento em
que o corpo da pessoa precisa estar “limpo” e distante de coisas que podem “poluí-lo”. Assim,
quanto mais “limpo/puro” o corpo, mais próximo do estatuto daquilo que o grupo elege como
sagrado. Quanto mais “limpa” a casa, mais livre de ameaças de espíritos ruins. A ideia de
“limpeza” e asseio aqui empregada não é higiênica ou médica, mas uma maneira de afastar
espíritos malignos. Nesse sentido, essa noção se assemelha ao sistema simbólico de pureza e
perigo na qual a ideia de sujeira seria “um subproduto de uma ordenação e classificação
sistemática das coisas” (Douglas, 1966: 50). Sujeira seria tudo aquilo que é “impuro” e
“imoral”, uma vez que o “asseio” e o “respeito” figuram como elementos que ordenam as
relações para o grupo. O corpo é também purificado e precisa estar “limpo”. Essa consagração
acontece em ritos sacrificiais como a Queima do cansanção, a Penitência e nos rituais de
cura. Esses rituais evidenciam a maneira como essas noções simbólicas “asseio”, “benção”,
“respeito” classificam e organizam o mundo, e nos mostram como a dicotomia corpo aberto e
corpo fechado também se encontra relacionada com a ideia de sacrifício.
Para Mauss e Hubert ([1968] 2013), o sacrifício é um contrato entre humanos e o
mundo sobrenatural, no qual o corpo da vítima opera como um elo de ligação. As noções de
sagrado e profano para esses autores fazem parte de um mesmo processo simbólico, não
70 O cansanção (Cnidosculus pubescens), planta de origem da família da urtiga, provoca queimação ao contato
da pele, porém de uma forma mais intensa que a urtiga. É uma planta com poderes mágicos utilizada em
diferentes locais do Nordeste.
95
possuindo um caráter dualista e de oposição, como proposto pela teoria durkheimiana, cuja
ação simbólica e o mundo social aparecem como duas esferas distintas e separadas. Dessa
forma, o sacrifício opera como uma mediação entre os Pankararu e os encantados. Aos
encantados são oferecidos comida e o corpo do animal e do indivíduo, como forma de
retribuição pelos pedidos atendidos. O corpo do indivíduo é ofertado mediante o autoflagelo
corporal, no qual eles se cortam com a “disciplina” e pelo cansanção, urtiga com a qual eles se
“queimam”. Em troca, os encantados oferecem proteção e a “benção”, sacralizando o corpo e
o “fechando”, para que ele não sofra ameaça de espíritos malignos. Analisaremos agora esses
rituais.
3.1.1 A Queima do cansanção
O ritual pankararu se divide entre aqueles que são feitos em ambiente doméstico,
como as “mesas” de cura e os realizados no “salão de trabalho”, e os rituais públicos, como o
Toré, a Corrida do Imbu, Menino do Rancho, Três Rodas, Capitão da Meia Noite, a
Penitência, entre outros. Alguns rituais, como o Menino do Rancho e as Três Rodas, são
feitos em escala familiar, uma vez que são pagamento de promessa geralmente relacionado a
crianças, não havendo o envolvimento de toda a coletividade. A Corrida do Imbu71 e a
Penitência acontecem de forma alternada e têm início na primeira semana de carnaval (aos
sábados e domingos) e na Quarta-feira de Cinzas (quartas e sextas-feiras), respectivamente.
Durante a Corrida há a participação de todo o grupo das 25 aldeias da TI Pankararu, inclusive
aqueles que moram em outras localidades, como Recife e São Paulo, e que visitam a aldeia
nessa época por conta desse evento.72
O ritual da Corrida do Imbu está associado ao mito de origem do grupo. Entre os
diferentes relatos sobre o mito (Ribeiro, 1992; Arruti, 1996; Matta, 2005), há menção à
Cachoeira de Itaparica, localizada no rio São Francisco, no qual alguns homens se lançaram
sendo transportados por uma peneira à profundeza de suas águas. Lá, descobriram um mundo
de fartura, onde todos comiam, bebiam e fumavam o campiô. Esses homens, depois de três
dias se banhando em suas águas, tornaram-se “entidades vivas”, e são hoje os responsáveis
pela proteção da aldeia e do grupo. Há uma hierarquia do cosmos Pankararu, no qual os 71 Como já ressaltado na “Introdução”, uma descrição densa da Corrida do Imbu e da Penitência pode ser
encontrada nos trabalhos de Matta (2005) e Mura (2012). Dessa forma, faremos referência a esses dois trabalhos
para complementar os dados que obtive em campo. 72 A Corrida do Imbu é realizada na aldeia Brejo dos Padres e na aldeia Serrinha, onde acontece a “saída” do
Mestre Guia. Segundo Matta (2005) e Mura (2012), antigamente esse ritual acontecia apenas em uma localidade,
mas, devido as disputas familiares, ele foi dividido em dois lugares.
96
encantados se localizam abaixo de Deus. Eles estão classificados como capitães e soldados,
sendo o comandante de todos o Mestre Guia, conhecido como o grande chefe do “batalhão”
dos encantados.
Segundo Matta (2005), a Corrida está associada aos pagamentos de promessas feitos
pelo grupo, sendo um momento de penitência no qual “os homens estabelecem comunicação
com o mundo sobrenatural cujas revelações e orientações estão vinculadas à vida prática”
(Matta, 205: 68). Os resguardos exigidos aos homens que estão na “atividade” do ritual
também se estendem às mulheres, entre os quais são: estar vestida com saia comprida e blusa
sem ser regata e decotada, estar sem perfume, descalça e “preparada”. Esses resguardos
apontam para o entendimento da dicotomia corpo aberto/corpo fechado, pela qual o corpo
deve estar “limpo” e “puro”. Quanto mais “limpo”, mais “fechado” e mais perto do sagrado.
A Corrida do Imbu acontece em duas fases. A primeira é a fase preliminar que
antecede o ritual, o momento do “flechamento” do imbu73 nos meses de outubro e dezembro.
Nos meses de fevereiro a março, acontece a segunda fase do ritual com a Noite dos Passos, a
Queima do Cansanção e a “saída” do Mestre Guia.
Segundo Matta (2005), o “flechamento” do imbu marca a abertura da Corrida do
Imbu. Nesse momento, algum Pankararu encontra esse fruto maduro e o entrega ao dono do
terreiro do Poente para depois ser “flechado” no terreiro do Muricizeiro. Nesse ritual, os
praiás dançam no terreiro do Poente e fazem sua refeição no “poró”. Depois de se
alimentarem, é servida a mesma comida aos participantes. Em seguida, todos seguem para o
terreiro do Muricizeiro, onde o imbu é coberto por uma folha e colocado no chão para os
praiás tentarem flechá-lo. Após o “flechamento”, acontece o “puxamento do cipó”, momento
no qual um cipó é colocado no meio do terreiro e dois grupos se formam em cada ponta dele.
Do lado leste do cipó (nascente), seguram aqueles que moram para cima do terreiro; do lado
oeste (poente), quem reside abaixo do terreiro. Cada lado tenta puxar o cipó. Se o grupo do
oeste vencer, significa que a safra agrícola será boa; caso contrário, será insuficiente.74 Na
aldeia Serrinha, também acontece esse “flechamento”, mas do lado leste ficam os praiás e do
lado oeste, os homens, numa disputa entre humanos e não-humanos, sendo indicado que os
homens vençam para que haja uma colheita farta (Matta, 205: 91-92). O desfecho dessa fase
preliminar do ritual anuncia se haverá um ano de boa colheita ou não.
73 O imbu é uma fruta abundante na região da caatinga no sertão pernambucano. 74 Quando estive em campo, me disseram que o puxamento havia pendido para o lado do Poente, indicando um
ano de fartura.
97
A segunda fase do ritual da Corrida do Imbu acontece nos meses de fevereiro a março,
momento no qual o fruto do imbu começa a amadurecer na região. A fase que inaugura esse
momento de amadurecimento é a Noite dos Passos, a qual acontece em todas as noites dos
sábados, no terreiro do Poente, e se estende até o amanhecer.75 Neste ritual, alguns
encantados adquirem a forma de animais, como sapo, abelha, porco, cobra etc. Nesse terreiro
é permitida a entrada de qualquer pessoa, indígena ou não indígena. As pessoas ficam
sentadas em volta do terreiro, num grande círculo, equipadas com mochilas, cobertas e
comidas, pois a temperatura cai à noite e o ritual se estende até às 5h da manhã.
A Noite dos Passos, também conhecida como a “dança dos bichos”, tem início com a
“dança dos Praiás”, os quais dançam até por volta das 1h30. A dança é conduzida ao som do
maracá e dos toantes dos cantadores. Em seguida, os praiás voltam ao “poró” e só saem de lá
quando o terreiro é tomado por um profundo silêncio, em sinal de “respeito”. No momento em
que presenciei o ritual, ouvia-se apenas um “burburinho” com pessoas dizendo “a dança dos
bichos vai começar”. Uma menina de uns oito anos de idade, sentada ao meu lado, disse que
“queria ver a abelha”, enquanto outra dizia “que queria ver o sapo”. Assim como as meninas,
fiquei ansiosa “pela demora” e percebi que se exige que todos estejam em silêncio.76
No início desse ritual, duas cantadeiras chegaram e se sentaram na mesma direção da
entrada da porta da casa de Dona Bia (dona do terreiro). Assim que elas começaram a cantar,
os praiás - cerca de 40 - chegaram do poró e formaram um círculo. Algumas mulheres, que
estavam paradas em fileira aguardando os praiás, foram entrando na roda, em “pareia”, ou
seja, quando se dança do lado direito segurando nos braços dos praiás, alternando-se na dança
com eles. Eles dançavam em círculo, em sentido anti-horário. O som dos toantes e dos
maracás perfazem o ritmo das sequências da dança, favorecendo o contato com os encantados
(Matta, 2005: 95).
Ao mesmo tempo, o movimento e o som de vários bichos eram reproduzidos.
Enquanto o ritual acontecia, algumas pessoas passavam distribuindo garapa para os
participantes. No final desse ritual, um homem imita um cachorro, chamado de “nó seco”, e
corre atrás de preás (representados pelos praiás, como se fosse caça). O homem faz
75 No dia 28 de fevereiro de 2015 assisti a Noite dos Passos, que aconteceu por volta das 22h, no terreiro de
Dona Bia. Foi neste dia que conheci Dora Pankararu. Ela quem me disse que esse ritual fazia parte de uma outra
fase da Corrida do Imbu e que só acontecia à noite, “com a participação das mulheres” que dançavam com os
praiás. 76 Esse “respeito” é também exigido na “saída” do “Mestre Guia”, na qual é exigido um silêncio quase absoluto
do local, sob ameaça do Mestre não aparecer caso haja muito barulho. Seu Bino já havia me alertado que tanto
neste ritual quanto a Noite dos Passos não se pode fotografar nem filmar nada, em sinal de respeito ao local e ao
sagrado, com risco de expulsão do local.
98
movimentos e sons imitando um cachorro, como se estivesse “mordendo” e urinando no
público, à procura dos praiás que se esconderam. Esse foi um momento lúdico, de grande
descontração e interação entre todos os presentes, provocando risos e entusiasmo nas pessoas.
Quando ele consegue capturar todos os praiás, estes se juntam e tentam capturar o cachorro;
assim que o pegam, o ritual chega ao fim. Em seguida, todos dançam três rodas de Toré. O
ritual acabou por volta das 4h30. Alguns foram embora de moto, mas a grande maioria voltou
a pé, pela estrada sentido Itaparica.
Figura 16 - Praiá segurando o maracá e um penacho na Corrida do Imbu, 2015. (Arquivo Pessoal)
Depois da Noite dos Passos, que acontece no período noturno, aos sábados, é realizada
a Queima do cansanção, no período diurno, durante três domingos seguidos. Esse ritual
acontece nos terreiros do Poente, Aratikum e Muricizeiro, sequencialmente. Nessa fase do
ritual, participam as “botadoras de cestos”, homens, mulheres e os praiás. O cansanção, entre
os Pankararu, adquire poderes de cura, sendo usada como forma de purificação do corpo e do
espírito.
No início do ritual a Queima do cansanção, pela manhã, os homens chegam ao terreiro
trazendo o cansanção e o levando até o poró. Ao mesmo tempo, as “botadoras de cestos”
também vão chegando e depositando os cestos com comida na frente da casa da zeladora do
terreiro. O ritual começa quando o cantador inicia o toante, seguido do pife77, da gaita e do
maracá. Os praiás saem do “poró” e formam um círculo grande no terreiro. Em seguida,
77 O pife é uma flauta feita com a madeira do bambu e utilizado em rituais.
99
homens e mulheres dançam se juntando aos praiás, de modo intercalado e carregando um
galho de urtiga na mão. Eles dançam formando uma cruz no terreiro que, segundo Matta,
serve para “fortalecer a proteção dos dançadores, cantadores e tocadores” (Matta, 2005: 109).
Depois, eles se formam em fila junto as “botadoras de cesto”, que vão na frente para conduzi-
los até o terreiro do Araticum, local onde o ritual continua. Os tocadores e cantadores vão
atrás, seguidos pelos homens e mulheres que carregam o cansanção, e, por último, os praiás e
os participantes.
Chegando no terreiro do Araticum, as “botadoras de cesto” se posicionam no lado
nascente e os tocadores e cantores permanecem ao seu lado. Chegam os praiás, que dançam
três rodas junto com os homens e mulheres com o cansanção. Todos seguem para o terreiro do
Muricizeiro, que fica ao lado do Araticum. As pessoas que assistem vão primeiro e formam
uma roda. Em seguida, os participantes que carregam o cansanção entram no terreiro guiados
pelas cantadoras e cantadores. Eles dançam três rodas novamente. Na última roda acontece a
“queima”, momento no qual as pessoas “queimam” umas às outras com o cansanção. É um
momento ambíguo, pois ao mesmo tempo em que parece uma brincadeira, também evoca um
perigo, já que a urtiga contém muitos espinhos e se tocar em partes sensíveis do corpo, como
nos olhos, pode cegar. Esse momento de dor e sofrimento é também encontrado nos ritos de
iniciação de meninas e meninos entre os Ndembu, analisados por V. Turner (1967), no qual o
autor relata que o local onde os meninos são circuncisados é chamado de “o lugar da morte”
ou “o lugar do sofrimento”, assim como acontece com as meninas, que também devem
permanecer imóveis, sem mexer seus corpos durante um dia inteiro de intenso sol (Turner,
1967: 23).
Como já ressaltado por Matta, os praiás não participam desse momento da queima
com o cansanção, o que demarca as posições distintas hierarquicamente entre humanos e não-
humanos, homens e praiás, “cabendo aos homens oferecer o sacrifício e a penitência aos
encantados”, enquanto estes ficam “encarregados de protegê-los dos seres sobrenaturais que
provocam a doença e o sofrimento e de garantir um mundo de fartura e saúde” (Matta, 2005:
122). Segundo a autora, esse ritual é também um ritual de sacrifício e se assemelha aos rituais
de rebelião de Max Gluckman, pois expõem as tensões sociais do grupo. Aqui, analisaremos o
ritual como um sacrifício, nos termos propostos de Mauss & Hubert, no qual a sacralização
dos corpos institui a sacralização das coisas. Mas essa sacralização só se confirma com a
“saída” do Mestre Guia, momento em que essa entidade concede a “benção” aos Pankararu,
transformando o corpo aberto em corpo fechado, finalizando, assim, o ritual.
100
Figura 17 - As “botadoras de cesto” chegando para a Queima do Cansanção. (Arquivo Pessoal)
A “saída” do Mestre Guia é a fase final da Corrida do Imbu e acontece na aldeia
Serrinha. Nesse momento, o Mestre Guia se manifesta no corpo de um praiá e vem ao mundo
dos humanos para dar-lhe a “benção”. O ritual se inicia com três rodas de dança dos praiás.
Percebi que o passo da dança que os praiás davam eram diferentes, mais compassados e com
mais força. Depois da dança, serviram arroz, carne de boi, carneiro e pirão de peixe, num
prato de cerâmica. Assim que comemos, o terreiro foi tomado por um silêncio quase absoluto.
Logo em seguida, um homem veio anunciar que o Mestre Guia ia chegar, exigindo “respeito”
e silêncio no terreiro. Depois, chegaram os cantadores, vestidos de calça branca e sem
camiseta, tocando o maracá. Anunciaram o toante cantando “jaboru”, que é um dos nomes do
Mestre Guia. Demorou cerca de meia hora para ele chegar. Por ser cego, vem guiado por
outro homem, acompanhado dos praiás vindo atrás. Ele estava sem camisa e vestia uma calça
branca, usando uma máscara. Dora Pankararu disse que o Mestre Guia é “velho, cego, mas
sua mão é bonita, jovem, lisa e quente”.78 Ele deu várias voltas no terreiro, sendo parado pelas
pessoas que pediam a “benção” a ele. Nesse momento, colocou uma mão sobre a cabeça da
pessoa e com a outra benzia o corpo dela com ervas. O rito durou até as quatro horas da
manhã.
Algo que chamou a atenção na Queima do cansanção foi a pintura corporal entre os
participantes. Ela é feita com o toá (barro branco) e é utilizada de maneira diferente entre os
gêneros masculino e feminino. Nas mulheres, três cruzes pequenas são desenhadas na testa e
nos dois lados do rosto. Nos braços, pequenas cruzes e três traços como se fossem
78 Como veremos no item 3.2 o fato da mão do Mestre Guia ser “quente, lisa e jovem”, se opondo a ele, que é
“velho”, nos indica uma noção de sagrado, pois é o toque da sua mão que abençoa a pessoa.
101
“braceletes” são feitos nos punhos, antebraços e braços; nas pernas, dois “braceletes” no
tornozelo. Já nos homens, como dançam sem camisa, um traço branco em “X” é pintado no
tronco superior, entre um ombro e outro; quatro cruzes pequenas são feitas entre o “X”,
sinalizando o desenho de uma cruz maior; o rosto e os braços são pintados da mesma maneira
que no corpo feminino. Todos dançam descalços.
Figura 18 e 19 - Pintura ritual no corpo feminino e masculino. (Arquivo Pessoal)
O número três, como afirmou certa vez o cacique Zé Auto, é um número místico para
o grupo, pois “três são os Torés que antecedem qualquer ritual do grupo, três são as “rodas”
que as mulheres dançam no ritual “Menino do Rancho” e três é o número da Trindade: Pai,
filho e Espírito Santo”. O “X” e as cruzes pintadas no corpo sinalizam o processo de
“fechamento do corpo”. Segundo Matta (2005),
A cruz é um elemento muito recorrente que tanto orienta a composição das
coreografias, a ordenação dos terreiros, a abertura e fechamento dos rituais,
instituindo a sacralização das coisas - como das comidas e bebidas - como colabora
para a eficácia dos processos de cura (Matta, 2005: 121).
Quando recebi o benzimento de Josivete, num certo momento da fala da entidade que
a guiava, ela desenhou uma cruz no meu peito e em minhas costas, dizendo “que aquilo me
protegeria de qualquer mal”. Nos rituais, a comida e a bebida também são “cruzadas” antes de
servi-las, tornando-as sagradas. Os principais terreiros também formam uma cruz, pois
estabelecem uma relação com as orientações cardeais, como o terreiro Nascente (leste),
102
Poente (oeste), Mestre Guia (norte) e Capitão Dandaruré (sul) (Matta, 2005: 72). A cruz está
presente nas “mesas de cura”, onde dois panos alongados, ou cintas, são colocados em forma
de cruz sobre a mesa, sendo também o sinal que indica o fechamento de um corpo aberto no
momento em que é benzido. Portanto, a cruz é um elemento de proteção, orientação e cura
entre os Pankararu, e institui a sacralização das coisas e dos corpos. Entre os penitentes, a cruz
é igualmente importante. Ela está presente na Santa Cruz que carregam durante o cortejo nos
caminhos da penitência; nos cruzeiros dos mortos Pankararu, onde uma cruz fincada no chão
localiza o morto; na frente das igrejas, como a Igreja de Santo Antônio e de Santa Luzia, onde
eles a rodeiam quando fazem suas paradas no local, como analisaremos a seguir.
3.1.2 A Penitência
A Penitência é um ritual de grande importância aos Pankararu e, como já mencionado,
tem início na Quarta-feira de Cinzas, durante a Quaresma, e termina na Sexta-feira da Paixão,
na Semana Santa. Ela acontece no mesmo período da Corrida do Imbu, mas em dias
alternados. Existem dois grupos de penitentes, um masculino e outro feminino. Segundo
Matta (2005), a penitência masculina entre o grupo recebeu influência de padres católicos do
início do século XX e a penitência feminina, da beata madrinha Dodô e do messiânico
Padrinho Pedro Batista79, tendo sido introduzida entre os Pankararu pela Bárbara Oliveira,
membra do “tronco velho” da família dos Binga. Os penitentes e as penitentes Pankararu são
aqueles que acreditam na força da Santa Cruz e rezam para os santos, para os mortos e para a
Santa Cruz.80
Durante esse ritual, os penitentes e as penitentes se encontram às quartas e sextas-
feiras na Igreja Santo Antônio, santo padroeiro dos Pankararu, e caminham em direção às
cruzes dos mortos, as quais se encontram no cemitério, nos quintais ou próximos às casas de
seus familiares. No caminho da penitência, eles passam por vários locais e no momento da
finalização dessa procissão, retornam à Igreja, ponto de chegada e local onde o “corpo de
Jesus Cristo” se encontra. Algumas vezes expiei pela janela o cortejo deles na rua, mas fui
repreendida por Ninha, ao me ensinar “que não se podia olhar para eles, pois eram sagrados”. 79 Segundo Matta (2005), Madrinha Dodô foi uma beata e penitente que era devota do Padre Cícero. Ela quem
influenciou e passou seus conhecimentos à Bárbara Oliveira. Já Padrinho Pedro Batista não era penitente. Era
considerado um “beato, messiânico e visionário”, conhecido pelas “suas curas, de doenças a sofrimento, rezas e
conselhos” (Matta, 2005: 133). 80 Segundo Matta,“as rezas e as condutas morais exigidas o orientam para um caminho de Deus” e “as cruzes e
os mortos são os elementos de “obrigação” e da devoção dos penitentes” (Matta, 2005: 127-131).
103
Em outro momento, já tarde da noite, Ítalo estava na varanda de sua casa, jogando dominó, e
entrou às pressas, fechando as portas, janelas e apagando a luz. Perguntei o por que de não
poderem ficar na varanda e ele me disse “que os homens iam sair”. Contou-me que “sempre
quando os homens saem, todos entram, apagam a luz e fecham a cortina porque é proibido
assistir ou ver eles saírem, principalmente as mulheres81. Eles saem se batendo com navalha,
se flagelando”. Logo depois, ouvi o canto dos homens, que, provavelmente haviam saído da
Igreja e seguido em direção aos cruzeiros.
O caminho da penitência começa por volta das 20h da noite, quando o sino da igreja
toca, indicando o seu início. A penitência feminina e masculina acontece em momentos
diferentes. Depois da entrada das mulheres na igreja, os homens aguardam do lado de fora e
só entram após a saída delas. Segundo Matta, há duas cruzes que ficam na Igreja de Santo
Antônio, uma para os penitentes e outra para as penitentes. Essas cruzes carregam inúmeras
fitas coloridas que simbolizam as promessas que foram atendidas pelos Pankararu. Eles rezam
o Pai-nosso, Ave-Maria e o Credo, oferecendo as rezas aos santos, à Santa Cruz, ao Mestre
Guia e aos mortos, depois saem e circundam a cruz fincada na frente da Igreja. Segundo
Ninha, eles partem em seguida em peregrinação às cruzes dos mortos em cemitérios ou em
outros pontos localizados na aldeia Brejo dos Padres, como quintais, beiras de estradas etc.
Percebe-se uma técnica corporal distinta entre os penitentes homens e mulheres. As
vestimentas das mulheres são da cor branca e são compostas por camiseta, saia, lenço
cobrindo o cabelo e um terço de contas brancas e azuis no pescoço. Segundo Mura, apesar do
branco ser a cor que simboliza a morte para eles, a cor não significa apenas luto, mas opera
também como um marco de diferença do grupo entre os demais. Essas roupas são usadas
diariamente e não apenas nos momentos dos rituais. Exige-se delas que tenham uma vida sem
vaidade, sem se preocupar com roupas “bonitas” e maquiagens, devendo seguir os resguardos
alimentares (não ingerir bebida alcóolica) e sexuais. O não cumprimento dessas regras pode
colocar em risco não apenas a sua exclusão no grupo, mas a ira dos mortos e de outros
espíritos, que se sentem desrespeitados e podem se apossar da pessoa (Mura, 2012: 256).
Segundo Matta (2005), os penitentes se organizam em três frentes, havendo uma
diferenciação da roupa de cada segmento, que acompanha a posição que ele possui no
81 Mauss relata que a exclusão das mulheres é bastante comum em ritos de sacrifício, embora não se justifique o
por quê. Tomando como exemplo os ritos ocidentais, hindus, da Roma e Grécia antiga, os autores afirmam que
“os casos de expulsão das mulheres por ocasião das cerimônias são bastante numerosos” (MAUSS, [1968] 2013:
124). Também M. Douglas (1966) nos chama a atenção para a ideia de perigo destinada às mulheres em muitas
sociedades, sendo alocadas como figuras que desviam e “poluem” a ordem social, associadas à bruxaria e a
estados de liminariedade (Douglas, 1966: 119-127).
104
momento do cortejo. Há aqueles que se vestem de branco e que andam na frente do cortejo, os
que ficam no meio e que se vestem de azul escuro e os que vão atrás, vestidos com calção
azul escuro pintados com cruzes brancas e com a “disciplina” na mão. Eles guardam a
“disciplina” num saquinho fechado e, segundo a autora, “elas são transmitidas de preferência
para parentes consanguíneos”, mas caso o penitente seja enterrado com seu traje, “a
“disciplina pode ser sepultada com o corpo” (Matta, 2005: 138). Para Mura (2012), os
penitentes homens se configuram como uma sociedade secreta e estão organizados em duas
frentes: os rezadores que tiram a reza e os “benditos”, e aqueles que se autoflagelam com a
“disciplina”. A este grupo é acrescido alto valor na hierarquia, “por desempenhar um serviço
considerado o mais importante, o “mais fino” da irmandade” (Mura, 2012: 229).
Durante o cortejo que fazem, os penitentes carregam a Santa Cruz, feita de madeira e
medindo 1,50 de comprimento. Ela é levada pelos penitentes homens. No caminho até os
cruzeiros, eles e elas cantam e rezam “benditos”, rezas transmitidas pela Madrinha Dodô.
Chegando nos cruzeiros, colocam a Santa Cruz sobre um pano branco e sobre a imagem dessa
entidade. Nos cruzeiros, as mulheres acendem velas, rezam ajoelhadas e cantam os
“benditos”, num momento de redenção de seus pecados e culpas. Os homens pedem perdão
com a “disciplina”, se autoflagelando, pedindo a Deus que os defenda de doenças e dos males.
Segundo Mura (2012), o cumprimento de tais condutas gera elogios aos homens, enfatizando
a “valentia” e a “coragem” por tais comportamentos. Nas mulheres, a falta de “vaidade” é
igualmente importante porque aumenta a capacidade delas se comunicarem com entidades
sobrenaturais.
Como ressaltado por Matta (2005) e Mura (2012), muitas vezes os e as penitentes são
convidados a prestar homenagem a lideranças importantes do grupo que já morreram ou a
alguém que acabou de falecer. No primeiro caso, eles são chamados também para prestar
homenagem a pessoas que morreram há mais tempo, reforçando laços e aliança entre os
membros familiares do grupo. Nesses casos, elege-se um cômodo da casa e colocam a foto do
morto em cima de uma cama, ao lado da imagem de Padre Cícero e Madrinha Dodô. No local,
penitentes e praiás se revezam entre rezas e oferendas, dançando três rodas de Toré. Quando
alguém acaba de falecer, eles também são chamados para ajudar a afastar espíritos malignos
que possam provocar ainda algum tipo de doença no corpo do morto. Esse tipo de ritual visa
purificar tanto o corpo quanto o espírito dele, protegendo-o de ameaças que podem impedi-lo
de fazer a “travessia” tranquilamente.
105
Essa visita que fazem à casa do morto é significativa, pois nos revela como a casa se
configura em uma espécie de santuário da pessoa. Como vimos, o corpo do morto encontra-se
enterrado no cemitério da aldeia, mas também nas cruzes dos “caminhos” e em quintais da
casa dos familiares. Sendo assim, podemos sugerir que a casa Pankararu pode ser
compreendida como uma extensão corporal da pessoa, bem como seus objetos pessoais -
fotografias, quarto, cama – como parte dos seus corpos, invocando uma memória que se
relaciona diretamente com esse espaço geográfico imantado de lembranças.
O período de finalização da Penitência acontece na Semana Santa, momento no qual
os homens e mulheres penitentes realizam visitas nas casas de figuras importantes ao grupo.
No Brejo dos Padres, eles visitam a casa de alguns “pais de praiás”, como a casa de Maria
José Binga, pertencente ao “tronco velho”, cujo irmão, Miguel Binga, foi pajé e zelador de
praiás. Lá, eles cantam e rezam para os santos e pedem “benção” aos praiás. Eles também
visitam a casa onde morou o Padrinho Pedro Batista e Madrinha Dodô, na cidade de Santa
Brígida, que fica a 40km de distância da aldeia. Nessa casa, há um santuário com a imagem
deles e de Padre Cícero, e é um local de adoração tanto para romeiros quanto os Pankararu.
Eles “entregam” a penitência na casa deles e seguem para visitar a igreja da cidade e o
cemitério, fazendo o mesmo cortejo com cantos e rezas. Esse momento da entrega da
Penitência “representa o cumprimento da “obrigação” pelas mulheres penitentes e a
finalização do “trabalho” que irá se repetir no ano seguinte (Matta, 2005: 134).
O caminho da penitência é importante porque durante esse trajeto, eles passam por
locais sagrados e pelas casas onde importantes referências religiosas moravam. O que
pretendemos enfatizar é que a casa é um elemento importante na construção da noção de
pessoa e coletividade do grupo, uma vez que surge como um santuário da pessoa, um espaço
de memória e sacrifício. O autoflagelo corporal que os homens e mulheres penitentes fazem
são compreendidos aqui como um sacrifício que fazem aos mortos, santos e encantados, e que
servem como purificação e consagração dos seus corpos. A casa é também o espaço onde as
rezas e as “mesas” de cura acontecem, como trataremos a seguir e, assim como o corpo, deve
ser limpa e purificada.
3.1.3 As rezadeiras
As rezadeiras são pessoas que, assim como os “pais de praiás” e homens e mulheres
penitentes, possuem uma maior comunicação com os encantados. Elas atuam em “mesas” de
106
cura e fazem benzimentos. Na aldeia, obtive conhecimento sobre noções de cura e doença
através da rezadeira Josivete; na cidade, através de Leidi e Lídia. Josivete é casada com
Moisés, um dos irmãos de Bino. Foi durante nossas conversas, entremeadas por visitas de
pessoas que vinham ao seu encontro, muitas vezes de aldeias vizinhas, para pedir um
tratamento de cura, que percebi o quanto Josivete era respeitada e requisitada diariamente
pelo grupo. Durante esse período de convivência com ela, tive curiosidade em saber mais
sobre as suas práticas de cura e indaguei se seria possível que ela me benzesse, a fim de que
eu pudesse experimentar um pouco daquilo que eu estava percebendo ser algo tão cotidiano
na vida do grupo.
Reproduzo abaixo as etapas desse ritual de cura, apresentando as personagens, o
espaço, a duração e os instrumentos utilizados no rito. O benzimento foi feito no “salão de
trabalho”. Lá, havia várias imagens de santos, irmandades religiosas, como Madrinha Dodô,
Padre Batista, Padre Cícero, Jesus Cristo, Iemanjá etc. Numa parte desse recinto havia uma
mesa com várias estátuas de santos, do lado esquerdo, e os praiás, do lado direito, algumas
velas e cálices com água. Antes de começar o rito, a rezadeira chamou uma ajudante para
auxiliá-la a anotar as ervas que ia prescrevendo no momento em que me benzia.
A reza teve início quando ela invocou o nome de Padre Cícero, Jerônimo, Santa
Brígida, entre outros, e começou a rezar o Pai-nosso. Nesse momento, sua voz mudou e ela,
de olhos fechados, perguntou meu nome e começou a me benzer. Ela passava a mão sobre a
minha cabeça, depois descia para os braços e pernas, pedindo “que os guias me protegessem
de qualquer mal, inveja e mau-olhado”. Com suas mãos, desenhou uma cruz em cima do meu
peito e das minhas costas, dizendo “que aquela cruz era protetora, que ela me protegeria”. Ela
fez a cruz três vezes seguidas. Depois, falou para a sua ajudante os nomes das ervas indicadas.
Quando terminou, me orientou a tomar os banhos com as ervas que as entidades haviam
solicitado. Antes de ir embora, ela apanhou algumas dessas plantas em seu quintal e me deu,
dizendo que eram mais difíceis de achar; as demais ela me disse que muito provavelmente
Bino as teria em casa.
O ritual de cura não termina no momento em que a rezadeira realiza os benzimentos
ou as “mesas” de cura. Dependendo do caso e da gravidade pode levar dias, semanas ou até
meses. Em relação aos banhos, perguntei a Bino se ele tinha as ervas indicadas. Ele disse que
o preparo do banho exige alguns resguardos àqueles que apanham as ervas, uma vez que o
corpo de quem as toca não pode estar “impuro”. No quintal, buscamos três folhas de cada
107
erva82, conforme exigido. Em seguida, coloquei-as em infusão na panela. Bino ensinou que no
banho se deve lavar o corpo e cabelo com um sabonete “virgem”, ou seja, sem perfume,
durante os três dias seguidos, três vezes ao dia. A água com as ervas seriam jogadas em
seguida do banho com o sabonete, despejando-a sobre a cabeça. Ninha disse que eu também
não poderia sair da casa por três dias, mantendo os resguardos alimentares (não ingerir bebida
alcóolica) e sexuais. Indaguei sobre isso e ela me informou que, durante esse tempo o corpo
estaria se “fechando”, mas ainda estaria aberto, correndo o risco de algum espírito se apossar
dele, como nas encruzilhadas.
As benzedeiras e rezadeiras são figuras importantes dentro da organização social do
grupo, mas só as últimas conseguem obter uma intercomunicabilidade com o mundo
sobrenatural. Elas são chamadas sempre que alguém está com algum mal ou doença, para que
se faça um diagnóstico e ateste os procedimentos de cura ao enfermo. As rezas e os
benzimentos não podem ser cobrados e a pessoa curada deve retribuir esse serviço às
entidades que realizaram a cura, ou seja, os encantados e à Santa Cruz. Segundo Josivete,
recorre-se a uma benzedeira quando algum indivíduo está com mau-olhado, inveja ou
“vento”. Quando a doença é mais grave ou de ordem “espiritual”, como o “flechamento”, aí
só a ajuda de uma rezadeira para desfazer o feitiço. Caso a pessoa não receba os devidos
cuidados a tempo, o flechamento pode levá-la a morte em poucas horas, como ela me relatou,
a respeito de sua filha:
Eu tava numa mesa de croá, cantando, quando tive uma visão. Fechei os olhos e vi
“Você acha que sua filha vai crescer pra vestir vestido de noiva?” Quando abri os
olhos, já sabia. Tinha tido a visão. Quando cheguei em casa, ela tava na sala,
deitadinha no chão, tinha vomitado. Pedi pra me ajudarem a lavar o corpinho dela e
vi uma rodela preta em volta do imbigo. Tinha levado a flechada. Aí quando foram
comprar o caixão, comprei um vestido de noiva com uma tiarinha na cabeça. Ela
enterrou assim, de noiva. (Entrevista com Josivete, março/2015).
O flechamento, é atribuído a “bichos ruins”, entidades malignas, como a caipora e o
exú, e que desejam se apossar do espírito da pessoa querendo levá-la com ela.83 Esse embate
travado com o mundo sobrenatural, no qual diferentes entidades buscam se apossar do espírito
do indivíduo, causando-lhe dor, sofrimento e morte, pode nos dar alguma pista sobre a noção
82 Para preservar a medicina tradicional pankararu, optei por salvaguardar os nomes dessas ervas. 83 O termo “flechar” um corpo se encontra também presente em alguns trabalhos como de Marina Vanzolini
(2010), onde a autora nos mostra como os Aweti, povo do Alto Xingu, podem ser alvo de “flechinhas” invisíveis
ao olho nu que provocam doenças nas pessoas e que somente um xamã pode retirá-la; e no de Uirá Garcia
(2010), onde o autor, analisando os Awá-Guajá, povo do Maranhão, nos mostra como o corpo do caçador pode
ser atacado por macacos e outros animais por “vingança”, sendo alvo de doenças que causam desde mal-estar até
a perda do seu “princípio vital”.
108
de pessoa pankararu. Se o corpo permanece constantemente ameaçado por forças malignas, a
necessidade de curá-lo ou extirpar o mal que o acomete possibilita compreendermos esse
processo de formação de sua subjetividade e identidade. Nesse sentido, o sacrifício possui
uma relação direta com o processo de cura, pois é através do autoflagelo corporal, -com a
“disciplina”, o cansanção e os resguardos exigidos pós reza- que o indivíduo se purifica,
tornando seu corpo fechado e livre de qualquer mal.
Entre as doenças que podem acometer os Pankararu, estão: flechamento, mau-olhado,
inveja, sereno, quebrante e feitiço, cujos sintomas podem ser dor de cabeça, febre, vômitos,
dor de barriga, desmaio, moleza no corpo, falta de apetite, entre outros (Mura, 2012: 207). O
corpo Pankararu se encontra constantemente ameaçado por forças malignas, feitiços, espíritos
ruins etc. Se alguém foi “flechado” ou está com “vento caído”, diz-se que tal pessoa está com
o corpo aberto.
O sacrifício e o sofrimento são elementos que compõem o campo subjetivo da pessoa.
Assim como em muitas populações indígenas, é comum nas narrativas de lideranças
espirituais, atribuir a trajetória pessoal do xamã a uma “loucura” e sofrimento. Essa “loucura”
está associada à trajetória pessoal daqueles que são “escolhidos” para serem xamãs e que
podem acontecer por “visões” oníricas ou em estado de vigília. O processo de cura da pessoa
é como se fosse um ritual de passagem para se tornar um xamã. Segundo Lévi-Strauss,
[...] o indígena que se torna xamã após uma crise espiritual, concebe
gramaticalmente o seu estado como uma consequência que ele deve inferir do fato,
formulado como uma experiência imediata, que obteve a tutela de um Espírito, o
qual conduz à conclusão dedutiva que ele teve que fazer uma viagem ao além, no
fim da qual -experiência imediata- reencontrou-se entre os seus (Lévi-Strauss,
[1958] 2003: 207-208).
As rezadeiras Pankararu me relataram esse processo associado ao sofrimento e loucura
na experiência de suas trajetórias xamânicas. Segundo Leidi, que mora no Real Parque, sua
trajetória foi marcada por um intenso sofrimento:
A primeira vez que aconteceu comigo, eu não sei o que aconteceu, eu caí. Sei que
aconteceu e eu tive que obedecer a mesa e pronto. Eu tava numa mesa de cura, me
arrepiei toda. Eu sentia como quem tinha uma voz que falava comigo, me
mandaram, e eu escutei “Cante e vá obedecer a mesa!”. Eu tinha 22 anos. Mas fiquei
com medo. Eu tava sofrendo, minha irmã quem me disse, que dava pra ver no meu
rosto o sofrimento. Parecia que eu tava num cansaço! Você sai fora de si. É porque
algum encantado que tá no seu corpo, que te comanda, ele incorpora na gente
(Entrevista com Leidi, Abril/2016).
109
A partir desse “chamado”, Leidi começou a participar de “mesas” de cura e a fazer
rezas, atendendo aos encantados. No entanto, há casos em que a pessoa escolhida não está
preparada para atender ao “chamado”, fato que prolonga sua angústia e sofrimento. Como já
mencionado, isso que aconteceu com um dos filhos de Josivete, Moécio, cuja trajetória foi
“sustentada no sofrimento”. Ao ser diagnosticado como “louco”, ele foi levado ao hospital
diversas vezes, sempre sem sucesso de cura. Depois de um tempo, descobriu-se que o mal
dele não era caso de “saber médico”, mas de “saber indígena”, e então foi levado a um xamã
para que fosse possível arrancar o feitiço que lhe haviam “jogado”, como relatou Josivete:
Teve um filho meu que enlouqueceu, levaram pra Recife e internaram lá. Tinha um
mal cheiro terrível! Você podia dar banho com o sabonete mais cheiroso, passar
perfume e tudo, o cheiro não passava. Ele não dormia por noites e dias. Mas quando
foi um dia, oito e meia da manhã o médico chegou e falou assim: “A dosagem do
seu filho já foi aumentada, se aumentar mais não vai ter resultado, a senhora vai
levar ele no caixão”. E o que é que eu vou fazer? Ele me olhou assim, bem fundo
nos meus olhos e disse: “Ele tem que fincar os pés na terra, na aldeia. A senhora não
é da aldeia? Ele tem que fincar com pau de terra forte. A senhora sabe o que fazer, é
a pessoa mais indicada para isso”. Pois eu passei quatro meses e quinze dias na reza,
com o pau forte. Tive uma visão, num sonho, e vi o que tinham feito. Vi o número
7.777 que mandaram pra mim, mas pegou nele. Em mim não pegou, porque eu tinha
corrente. E ele fazia a parte dele e eu fazia a minha. Levei o anjo da guarda dele,
num pote de toalha, quando abri, a toalha tava preta, vermelha e branca. Depois
joguei no rio. Trabalhamos três dias até ele curar. Hoje ele tá começando a rezar
também (Entrevista Josivete, março, 2015).
Esse relato é elucidativo porque, a partir dele, podemos identificar, além dos polos que
compõe o “complexo xamânico”, a ideia de saúde e doença entre os Pankararu. O feitiço que
foi “mandado” para Josivete não alcançou seu fim porque ela tinha “corrente” e acabou
pegando em seu filho. Segundo Leidi, “todos nós temos corrente, mas em uns se desenvolve e
outros têm o dom”. A “corrente”, nesse caso, pode ser compreendida como um canal de
comunicação que algumas pessoas possuem com as entidades sobrenaturais, protegendo-as,
enquanto o dom seria algo que a pessoa adquire desde muito cedo. A “corrente” é também
empregada para se contrapor ao “saber médico”, indicando que, para determinadas doenças,
se procura os “homens da caneta”, e para outras, como o flechamento e a “loucura”, se
procura quem tem “corrente”, ou seja, as rezadeiras.
Podemos também perceber que a revelação do feitiço foi dada à Josivete numa visão
onírica, na qual ela sonhou que o mal que lhe fora enviado era na verdade para ela, e não para
seu filho. Esse fato é importante porque nos revela o modo como a corporalidade Pankararu
se apresenta, com a dicotomia corpo aberto e corpo fechado. Essa oposição identifica aquele
que se encontra com o corpo “protegido”, livre de ameaças e daquele que se encontra com o
110
corpo aberto. O fato do feitiço ter “pegado” no seu filho também pode ser compreendido pela
ideia de contiguidade parental sugerida por Seeger (1979), relacionada aos “laços de
identidade corporal” que mãe e filho compartilham. Sendo o filho uma extensão do corpo dos
pais, a doença de um pode passar ao corpo do outro, e vice-versa, sobretudo se eles se
encontram fracos ou doentes (Seeger, 1979: 129).
A eficácia simbólica do procedimento de cura feito em seu filho Moécio também
encontra semelhança com a ideia de feitiço e magia empregada por Lévi-Strauss ([1958]
2003). A expurgação do feitiço, personalizada na toalha com as cores “preta, vermelha e
branca”, se assemelha à “técnica da plumagem ensanguentada”, empregada por Quesalid e
representa o “corpo patológico” que foi expulso da pessoa, reestabelecendo uma ordem física
e espiritual ao enfermo. Já o mal cheiro do seu corpo pode estar associado a esse estado
“liminar” da saúde do indivíduo, de uma “desordem patológica”, significando um momento
de travessia do indivíduo até tornar-se xamã. Segundo Lévis-Strauss, a eficácia da magia
implica em três aspectos importantes: i) a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas, ii)
a crença do doente no processo terapêutico de cura do xamã e iii) a confiança da opinião
coletiva, que credita ao feiticeiro uma aliança fundamental para seu modus operandi. Esses
três elementos, denominados de “complexo xamanístico”, encontram-se interligados e
formam “uma espécie de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o
feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça” (Lévi-Strauss, [1958] 2003: 194-195). Esses elementos
se organizam em dois polos, um individual, que representa a experiência imediata do xamã, e
outro coletivo, que representa o consensus do público.
O diagnóstico de doenças, às vezes, também é feito pelos encantados, que se
manifestam em sonhos, por visões oníricas, e prescrevem o tipo de tratamento que o indivíduo
deve fazer. No entanto, essa manifestação acontece apenas entre xamãs, como relatou João
Gouveia. Ele conta que ficou doente e começou a frequentar, rotineiramente, um hospital de
Recife para fazer uma série de exames. Na ocasião, lhe foi sugerido fazer uma cirurgia, a qual
seria marcada brevemente. No entanto, ao voltar para sua casa, na mesma noite, ele teve um
sonho. Neste, um médico havia receitado a ele algumas ervas, que deveriam ser tomadas
durante cinco dias, por conta de sua doença. Assim que acordou, anotou as ervas prescritas
num papel e foi em busca delas. Fez o tratamento pelo tempo indicado e quando retornou ao
hospital para refazer os exames, sua doença havia desaparecido. Gouveia contou esse fato
dizendo que sua cura havia sido feita pelos encantados, pois eles que apareceram em sonho
indicando o tratamento a ser seguido. Como já ressaltado por Chaumeil (1998), na literatura
111
antropológica sobre xamanismo o sonho é considerado um atributo xamanístico e um canal de
comunicação com o mundo sobrenatural, sendo a experiência onírica uma característica da
trajetória entre os xamãs.
No Real Parque, a presença de rezadeiras é significativa, e são elas quem são
interpeladas quando um indivíduo adoece ou é enfeitiçado. Há um circuito de rezadeiras que
se revezam e se articulam nas práticas de cura, que são as rezas e as “mesas” de cura. Essas
“mesas” são compostas por quatro pessoas, formadas pela rezadeira e outras três, que são
ajudantes. Segundo Leidi, os encantados não se encontram restritos apenas na aldeia, mas
acompanham aqueles que o chamam, em qualquer localidade:
O que são os encantados? Pra mim o encantamento é o invisível! E se é invisível ele
pode estar em qualquer lugar. Se é encantado, se você chama por Deus, que é o
nosso pai poderoso, eu vejo ele também. Eu vejo nossos encantados, eu me
concentro e eu vejo eles. Eles estão aonde você acredita, aonde você chama
(Entrevista com Leidi, abril/2016).
Durante a realização do ritual, estendem-se dois panos em cima de uma mesa, sempre
cruzados, que podem ser cintas84 de praiás ou panos pintados com cruz. Os artefatos
utilizados durante o ritual são o maracá, o fumo, o campiô e velas. Como relatou Leidi:
Na mesa de cura você tem a cabeça, os braços e os pés, no formato de uma cruz [ela
se levanta e faz a imagem de uma cruz]. A cabeça é quem lidera, quem comanda,
como um médico numa operação cirúrgica, ou num parto. Os enfermeiros e os
ajudantes estão lá fazendo o trabalho deles, mas quem diz o que tem que ser feito é
ele [o médico]. E é ela quem recebe os encantados. Mas tem que ter quatro pessoas,
pra tampar os quatro canto da mesa, que é pra não dá brecha pro inimigo (Entrevista
Leidi, março/2016).
Algumas autoras, entre elas Gallois (1988), Buchillet (1991) e Langdon (2012),
ressaltam que não há um sistema de hierarquia nas populações indígenas das terras baixas da
América do Sul em relação a medicina tradicional e a biomedicina, sendo comum que “o
itinerário terapêutico de uma doença inclua uma variedade de práticas durante a busca pela
cura, incluindo recursos da biomedicina” (Langdon, 2012: 67). No entanto, isso não significa
que não exista negociação de saberes, práticas e símbolos entre os diferentes atores sociais
envolvidos, como AIS, AS, médicos, enfermeiros, rezadeiras. Segundo Lopes (2011), que
possui um estudo sobre a integração da biomedicina nas formas tradicionais de cura entre os
Pankararu, a busca pela cura, entre o grupo, é feita sem prescindir da importância das
84 Cada praiá possui uma cinta colorida, que fica nas costas como uma capa e que indica a qual batalhão de
encantados ele pertence.
112
concepções biomédicas de cura, porém, a intervenção do saber médico só é acionada com a
permissão dos encantados, quando estes percebem que a cura do espírito já foi feita,
necessitando, porém, da cura do corpo físico.
As rezas e os benzimentos são práticas de cura presentes na vida cotidiana do grupo. O
sofrimento e o sacrifício, além de ser uma característica presente na trajetória dos xamãs, é
também frequente entre aqueles que participam dos rituais descritos acima, como a Corrida
do Imbu, a Penitência e dos rituais de cura. É através do autoflagelo corporal e dos resguardos
que a pessoa se purifica, “fechando” seu corpo. Analisaremos agora, como se dá esse
“fechamento” e consagração do corpo entre o grupo.
3.2 Entre corpos e cruzes: o corpo se “fechando”
Os rituais da Queima do Cansanção, dos Penitentes e os rituais de cura têm como
elemento comum o sacrifício corporal do indivíduo e do animal. No primeiro ritual, a carne de
carneiro servida é tida como uma oferenda aos encantados. Já o autoflagelo do corpo do
indivíduo, presente tanto durante a Queima do cansanção quanto na Penitência, aparece como
uma demonstração de suplício e de purificação. Nos benzimentos, os procedimentos exigidos
depois do ritual, com os banhos e os resguardos alimentares e sexuais, também indicam o
sacrifício o qual o indivíduo deve seguir. Considerando a pena religiosa85 e o sacrifício
igualmente como uma consagração, ou seja, um estado de purificação do corpo ou do objeto
que se quer sacralizar, pretendemos demonstrar que os rituais Pankararu a Queima do
cansanção, a Penitência e os benzimentos possuem fases e elementos que se enquadram
como um sacrifício. O sacrifício se constitui como um elemento importante no quadro de
moralidade do grupo, bem como o asseio e o sofrimento. Esses afetos indicam tipos de
comportamento que orientam a visão cosmológica do grupo, presentes também em sua vida
cotidiana.
Segundo Mauss e Hubert ([1968] 2013), o sacrifício é um contrato entre aquele que
sacrifica, ou seja, a vítima, -que pode ser um objeto, um animal ou mesmo o próprio corpo
85 Sobre a analogia e as diferenças entre a pena religiosa e o sacrifício, se diz: “A pena religiosa implica
igualmente uma consagração (consecratio bonorum et capitis) e também é uma destruição que resulta dessa
consagração. Os ritos são bastante semelhantes aos do sacrifício para que R. Smith tenha visto neles um dos
modelos do sacrifício expiatório. Só que no caso da pena a manifestação violenta da consagração se aplica
diretamente ao sujeito que cometeu o crime e que o expia ele próprio; no caso do sacrifício expiatório, ao
contrário, há substituição e é sobre a vítima que incide a expiação, não sobre o culpado” (Mauss, [1968] 2013:
118).
113
físico do indivíduo, denominado de vítima-sacrificante-, com o mundo sagrado. Ou seja, o
sacrifício se constitui num contrato entre homens e mulheres e o mundo sobrenatural. Neste
contrato, o sacrificante, que tem seu corpo impuro por pertencer ao mundo profano, dá um
sacrifício a um deus, e, em troca, como retribuição, recebe a consagração do seu corpo, ou
seja, sua sacralização e purificação. Nesse sentindo, a presença da vítima-sacrificante ou do
animal que se irá sacrificar é fundamental para que exista uma comunicação entre o mundo
profano e o mundo sagrado. É a vítima quem intercepta, isto é, que faz o elo de comunicação
entre esses dois mundos.
O rito sacrificial descrito por Hubert e Mauss exige a presença de alguns personagens
e elementos para que ocorra: o sacrificante, o sacrificador, a vítima, os instrumentos utilizados
e o local no qual o rito será realizado. Em relação ao sacrificador, os autores chamam a
atenção para a figura do sacerdote, mas podemos trazer essa denominação para a figura da
rezadeira, por exemplo. Para os autores, esta figura é identificada como um intermediário, um
“guia”, aquele que age tanto a mando do sacrificante como a mando de um deus. Ela
encontra-se no “limiar do mundo sagrado e do mundo profano, e os representa
simultaneamente: os dois se reúnem nel[a]” (Mauss, [1968] 2013: 31). A rezadeira pankararu,
sendo a intermediária entre os dois mundos, assume esse papel de sacrificador ao possibilitar
que as impurezas e os espíritos malignos não tomem conta do espírito e do corpo da pessoa.
Através do toque de suas ervas sobre a cabeça do indivíduo, ela quem propicia a intercepção
entre os dois mundos, sacralizando o corpo e transformando-o de um corpo aberto para um
corpo fechado.
Para exemplificar o esquema do sacrifício, os autores apresentam o sacrifício do
soma86 e alguns sacrifícios animais da antiguidade grega e romana, onde as fases do ritual
aparecem bem demarcadas. Nestes, o rito sacrificial apresenta dois momentos, i) o rito de
entrada, momento no qual as coisas profanas serão consagradas, isto é, irão mudar do estado
de impuras para sagradas, e o ii) rito de saída, onde a vítima, tendo recebido as impurezas do
sacrificante, terá de ser destruída para que a consagração se efetue. A finalização do ato
sacrificial consiste em aniquilar, de forma própria ou figurada, a vítima sacrificada. O local
onde o rito é realizado deve ser isolado e sagrado, pois, como afirmam os autores, “fora de um
local santo a imolação não é mais que um assassinato” (Mauss, [1968] 2013: 33).
No sacrifício do soma, a pessoa era isolada numa cabana, estritamente fechada, que
indicava a separação do mundo dos deuses e do mundo dos humanos. Os pelos do seu corpo
86 Espécie de rito sacrificial presente na literatura védica.
114
eram raspados, cortavam-se suas unhas, e davam-lhe um banho “purificatório”, vestindo-o
com uma roupa nova. Em seguida, sua pele era coberta com a pele de um antílope negro,
momento no qual se transformava num feto. Cobriam-lhe a cabeça com um véu e faziam-no
fechar o punho (tal qual um feto), circulando seu corpo em volta de um fogo, permanecendo
assim até o momento da introdução do soma. A semelhança desse ritual hindu também
aparece em rituais gregos e romanos. Segundo os autores, num ritual romano, o uso do véu
também era comum, sinalizando a separação entre os dois mundos, e a cabeça do sacrificante
era igualmente raspada, numa alusão a purificação do corpo. Em outro ritual, na festa do Yom
Kipur, o sacrificador também é isolado durante sete dias, e, na véspera do rito, conduzido a
uma câmara especial. Como assinalam os autores, “por ocasião do Kipur reforçava-se a
pureza sacerdotal e chegava-se ao isolamento absoluto” (Mauss, [1968] 2013: 127). Assim, o
objetivo do rito é proporcionar ao sacerdote uma “santificação extraordinária”, nessa expiação
quase absoluta de seu corpo e alma.
Podemos observar que, nesses rituais, a descaracterização do corpo humano é exigida
para que a pessoa seja introduzida ao mundo sobrenatural. A purificação do corpo, com água,
unções, jejum, isolamento, ajuda a eliminar as impurezas do mundo profano. É interessante
notar que no momento de finalização desses rituais o sacerdote e o sacrificante giram em volta
da vítima, em sentido horário, ou seja, da esquerda para a direita, “no sentido dos deuses, que
possui uma virtude mágica por si mesmo” (Mauss, [1968] 2013: 138).
Durante o rito sacrificial, não é apenas o sacrificante que se torna sagrado, mas todas
as coisas e objetos que fazem parte do ritual. No momento da sacralização, a “irradiação da
consagração sacrificial” não é sentida apenas pelo sacrificante, mas pode incidir também nas
coisas ou objetos ligados a ele, pois “tudo o que entra em contato muito íntimo com as coisas
sagradas adquire sua natureza e se torna sagrada como elas” (Mauss, [1968] 2013: 107). Nos
rituais Pankararu, podemos citar, como exemplo, alguns elementos importantes que compõem
o ritual, como o cansanção e a “disciplina”, utilizada pelos penitentes masculinos, que são
guardadas em lugares fechados e também podem ser enterradas com o indivíduo no momento
da sua morte. Elas possuem um caráter divino, pois adentram na fronteira do mundo profano e
sagrado, ao cortar o corpo do indivíduo, ao mesmo tempo em que o purifica.
Comecemos com a análise do sacrifício que ocorre na Queima do cansanção. Nesse
ritual, há um momento de purificação e penitência, onde as pessoas retribuem aos encantados
pelas promessas atendidas, purificando seus corpos com o cansanção, ao mesmo tempo em
que oferecem a eles comida e o sacrifício animal -o carneiro- que será degustado
115
posteriormente, e o sacrifício do próprio corpo do indivíduo. Participam da “queima” aqueles
que estão pagando promessas aos encantados, seja porque tiveram seus pedidos atendidos ou
porque ainda estão no processo de cura.
No processo do sacrifício animal, o carneiro é abatido e, em seguida, sacrificado para
ser ofertado aos encantados e, depois, consumido pelos praiás e participantes do ritual. As
vísceras do animal também são consumidas, como as tripas, que são fritas e servidas como
alimento no dia-a-dia. Segunda Matta (2005: 112), antigamente os rituais eram feitos com o
sacrifício do mocó (kerodon rupestres), espécie de mamífero roedor bastante presente na
região do Nordeste. Assim, no último dia da Corrida do Imbu, as pessoas não se queimavam
com o cansanção, e o sacrifício não estava vinculado aos homens, mas aos animais abatidos,
que eram ofertados aos encantados pelas “botadoras de cestos”. Os animais são abatidos por
alguém próximo a cantadora que participará do ritual, que tiram a pele do animal e os
destroçam. São as mulheres que cuidam da parte interna do animal e a carne já limpa é
colocada em uma casa de pau a pique atrás da casa da zeladora do terreiro, onde será
preparada a comida (Matta, 2005: 106). Como a autora mesmo ressalta, cada encantado
possui uma comida de sua preferência, que pode ser carne de gado, carne de peru, carne de
carneiro, carne de porco, peixe etc., mas nos rituais, como há a participação de toda a
“irmandade” dos praiás, convencionou-se oferecer apenas carne de gado.
Na Queima do cansanção, o sacrificante, -aquele que está pagando a promessa no
ritual-, toca o corpo do outro e tem seu corpo tocado pelo cansanção, num momento de
purificação e sacrifício corporal. O cansanção assume, no ritual, a mesma posição de um
instrumento sagrado, como a “disciplina”, que possibilitará que o corpo da pessoa seja
sacralizado. Esse autoflagelo põe em risco a saúde do próprio corpo daquele que se sacrifica,
uma vez que os espinhos do cansanção são venenosos. Durante a “queima” o indivíduo
assume a mesma função de sacrificante e vítima, uma vez que a pena impingida a ele será
aplicada em seu próprio corpo por ele próprio e no corpo do outro. O local onde o ritual é
realizado é no terreiro, lugar sagrado onde esses rituais acontecem. Os instrumentos usados
para o sacrifício são as urtigas, que depois de utilizadas, são colocadas no centro do terreiro.
A Queima do cansanção é um sacrifício que dá visibilidade a esse momento de
ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que há um perigo, onde o espinho pode adentrar no
corpo da pessoa causando algum mal, há também a purificação, momento da consagração do
corpo da pessoa. A primeira fase do sacrifício é transformar corpos e coisas profanas em
corpos e coisas sagradas. É fundamental que haja essa transformação de estado para que o
116
sacrifício se efetive. O corpo em seu estado profano e impuro é ofertado aos encantados como
forma de redenção e suplício. Como afirmam os autores, “em todo o sacrifício há um ato de
abnegação, já que o sacrificante se priva e dá” (Mauss, [1968] 2013: 107). O sacrificante se
priva da sua “não-dor”, do seu “não-sofrer”, para que seu corpo, flagelado e em sofrimento,
seja ofertado aos encantados. O corpo da pessoa, nesse momento, é o elo entre o mundo
sagrado e o mundo profano. Mas para alcançar essa esfera divina é necessário que ele seja
purificado. Assim, ao receber a oferenda, os encantados o consagram, tornando o corpo
sacralizado.
Cabe ressaltar que o sacrifício, sendo um contrato entre humanos e deuses, exige que
ambas as partes cumpram com seus serviços e obrigações. O sacrifício, nesse sentido, é a
troca que os deuses exigem para que a benção seja dada. Nessa lógica, podemos afirmar que o
sacrifício está para os deuses assim como a benção está para os homens. Não há sacrifício sem
benção, não há benção sem sacrifício. Dessa forma, o rito sacrificial assume o sistema da
reciprocidade, onde dar, receber e retribuir, se constitui como uma função social importante
entre humanos e não-humanos.
No entanto, a consumação da dádiva só é completamente alcançada no momento final
do ritual, quando há a “saída” do Mestre Guia. É nesse momento que a entidade máxima dos
encantados se manifesta no mundo dos humanos para retribuí-los com sua benção. O Mestre
Guia é uma entidade considerada velha, por isso usa uma máscara que lhe cobre a cabeça.
Essa máscara não possui os dois orifícios na parte da frente para que possa enxergar, uma vez
que ele é cego. Com sua mão “jovem, quente e lisa”, ele encosta no topo da cabeça da pessoa,
transmitindo sua benção. Aqui, há uma oposição que pode nos dizer algo significativo sobre a
cosmologia Pankararu. O Mestre Guia se manifesta num corpo velho e cego, mas, em
contrapartida, sua mão, é “bonita, jovem, lisa e quente”. Sua mão opera como um instrumento
sagrado que lhe confere o toque mágico. É jovem e lisa porque não é velha, ou seja, não
envelhece porque pertence ao campo das coisas sagradas, purificadas. É quente porque os
encantados não morreram, se encantaram, e, por conta disso, não possuem o corpo frio, como
o corpo dos mortos. É nesse momento que a entidade máxima dos Pankararu retribui ao grupo
e aos participantes-sacrificantes a sua benção. A Queima do cansanção é o período da oferta
do corpo sacrificado aos encantados, que é consagrado no momento da sua purificação. A
retribuição é dada no momento em que o Mestre Guia dá a benção ao grupo e a todos aqueles
que pedem sua cura. O momento da benção é o momento final da dádiva, onde o sacrificante
recebe sua graça, sua pureza, seu serviço.
117
Encontramos semelhanças entre o sacrifício e sofrimento que acompanha esse ritual da
Queima do cansanção em relação aos penitentes, no período da Penitência. Neste rito, o
sacrifício corporal é feito tanto por homens como mulheres, mas possui particularidades
específicas que o diferencia sexualmente. O sacrifício é feito com o autoflagelo da
“disciplina” e com os resguardos sexuais e alimentares que são exigidos nesse período. Esses
resguardos têm a função de deixar o corpo purificado, mais próximo do mundo sagrado, e são
feitos um mês antes e durante o ritual. As mulheres também passam a usar vestimentas de cor
branca, camisetas e saias longas, e a cabeça coberta com um lenço. Tal descuido em não
seguir esses resguardos, como mencionado, pode suscitar a irritação dos mortos e de outros
espíritos.
Há todo um sacrifício corporal que os penitentes fazem, em cada gesto, canto, passo e
parada nos locais sagrados. Os passos que acompanham o caminho da penitência são guiados
pelos cantos daqueles que conduzem o cortejo. Os penitentes masculinos seguem na frente,
carregando a Santa cruz. As rezas na igreja também exigem um comportamento específico às
mulheres, pois elas rezam em pé e permanecem assim do momento em que chegam, por volta
da 1h da manhã, até o amanhecer. Durante o cortejo até as cruzes, eles param e cobrem a
Santa cruz com um pano branco, ajoelham e rezam para os mortos. O sacrifício pode ser
compreendido pela autoflagelação corporal, os resguardos e o cortejo da própria penitência.
Assim, podemos verificar que o sacrifício e o sofrimento são dois elementos centrais no ritual
da Penitência.
Como já mencionado, na primeira fase do sacrifício se objetiva transformar corpos e
coisas profanas em corpos e coisas sagradas. O corpo do sacrificante, durante a penitência,
precisa ser consagrado e purificado. Entre os homens, é a “disciplina” quem contribui com o
cumprimento dessa função. Ela quem possibilita, assim como o corpo da vítima, a mediação
entre o mundo dos humanos e não-humanos. Durante o autoflagelo, o penitente assume a
mesma função da vítima-sacrificante, uma vez que a pena a ele aplicada será efetuada em seu
próprio corpo, o qual é extremamente importante para fazer a mediação e a comunicação entre
os dois mundos.
Neste contrato, estabelecido entre o penitente e seu deus, almeja-se alcançar o
sacrifício da vítima, e, em troca, como retribuição, a consagração do seu corpo. Cabe ressaltar
que o auge da consagração não é determinado apenas no momento em que os penitentes se
cortam com a navalha. A consagração pode ser compreendida como o conjunto dessas
118
práticas, sobretudo dos resguardos exigidos, durante o período desse rito sacrificial, que se
inicia na Quarta-feira de Cinzas e finaliza no Sábado de Aleluia, com duração de sete dias.
No entanto, é importante assinalarmos algumas diferenças encontradas entre a
penitência feita pelos católicos cristãos e a penitência realizada pelos Pankararu. Como já
analisado por Matta (2005), diferentemente dos preceitos postulados pela Igreja Católica, os
mortos, para os Pankararu, não vão para o inferno ou para o céu, mas continuam vivendo
entre os vivos, nos cruzeiros das serras, nos quintais de casa ou em beiras de estrada, sempre
ao redor de uma cruz. A homenagem que fazem ao morto em ambiente privado, geralmente
na casa do falecido, também é um marcador de diferença, uma vez que outras entidades, como
os encantados, são chamadas para participar desse evento. Sendo assim, parece haver, na
Penitência Pankararu, um protagonismo dos mortos que não existe na Penitência católica. Os
mortos não se encontram nem no céu nem no inferno, locais predestinados segundo o dogma
cristão, mas vivem entre os vivos e podem também ameaçá-los.
O autoflagelo dos penitentes é feito, sobretudo, para os mortos, aqueles para quem eles
rezam e cumprem a penitência. As rezas são para os mortos, enquanto suas promessas, para os
santos e a Santa Cruz. No entanto, assim como os vivos, os mortos também cumprem com a
penitência, sendo sua existência “uma extensão da sociedade dos vivos, mas calcada em
outras instâncias e parâmetros” (Matta, 2005: 147). Se há uma extensão da sociedade dos
mortos, como sugere a autora, podemos pensar que, assim como os vivos, aos mortos também
se exigem resguardos e privações, e que, se estão em penitência, eles também sofrem e fazem
sacrifício. Sendo assim, podemos afirmar que o sacrifício e o sofrimento são elementos que
compõe a noção de pessoa não apenas das pessoas humanas, mas também de seres não-
humanos.
Assim como todo rito sacrificial, a penitência também precisa acontecer em locais
sagrados. Entre os penitentes, isso ocorre no momento em que os “homens saem” à rua.
Longe do olhar de qualquer pessoa, aquele espaço se transforma num espaço de consagração.
Como relatado (ver supra, p. 106), no momento em que estive na casa de Bino, Ítalo entrou
certa noite às pressas na casa para fechar as portas e janelas e apagar a luz, indicando que “os
homens iam sair”. Aqui, podemos verificar o caráter sagrado do local do sacrifício, que fica
isolado dos olhares mundanos. O contrato do sacrifício entre homens e deuses só se finaliza
quando ambas as partes recebem pelos serviços prestados. Depois de ofertar seu corpo
flagelado a seu deus, ele recebe, como retribuição, a sua consagração e purificação.
119
Falaremos agora dos benzimentos e das “mesas de cura”, que também parecem ser
tipos de sacrifício. Como já analisamos a atuação da benzedeira e a situação da pessoa
benzida, nos deteremos aqui na análise da reza enquanto um rito sacrificial. Nesse rito, é a
rezadeira quem assume o papel do sacrificador, aquele que participa do ritual de cura e está no
limiar do mundo sagrado e profano, pois possibilita a ligação entre esses dois mundos. O local
onde se realiza esse ritual é também um lugar privado, geralmente na sua casa ou do próprio
enfermo. Os instrumentos que compõem esse rito são: as velas, os incensos, o campiô, o
maracá, as ervas prescritas para a doença, alhos e a invocação do seu canto, que surge como
um prenúncio do benzimento. Neste momento, tanto a rezadeira quando a pessoa que receberá
a reza, o sacrificante, ficam de pé, um na frente do outro. Ela, com sua mão, toca a parte de
cima da sua cabeça e vai descendo pela lateral, tocando a lateral dos seus braços e pernas.
Durante esse evento, vários nomes de entidades são invocados, para atuar no diagnóstico da
doença ou mal que se apossou da pessoa. Em seguida, ela “cruza” o peito e as costas da
“vítima” fazendo o traço de uma cruz com suas mãos, sinalizando que seu corpo está
“fechado”. Sendo a mediadora entre o mundo profano e sagrado, a rezadeira estabelece uma
comunicação entre o cosmo pankararu e o enfermo, possibilitando que o corpo da pessoa
receba a purificação.
Depois da reza, a pessoa passa por uma espécie de “tratamento” de cura, onde terá que
realizar as medidas prescritas, como banhos, chás e resguardos especificados. Esse tratamento
pode ser compreendido como um sacrifício, uma vez que seu corpo será tomado por novas
condutas corporais até que a sua saúde se reestabeleça. O banho deve ser seguido
rigorosamente, três vezes ao dia, por três dias seguidos. Como assinala Lopes, os banhos
devem ser realizados em dias ímpares (terça-feira, quinta-feira e sábado), pois, segundo a
tradição Pankararu, os dias pares (segunda-feira, quarta-feira, sexta-feira e domingo) não são
bons para banhos (Lopes, 2011: 95).
Esse asseio do corpo físico é tão importante quanto a limpeza espiritual. Na vida
cotidiana, os banhos são altamente valorizados, e uma pessoa pode se banhar até três vezes ao
dia. Atentei a esse fato quando estive na casa de Ninha e percebi que seus netos se banhavam
diariamente, algumas vezes ao dia, mesmo a água não sendo um elemento abundante na
região, e mesmo seus corpos não estando aparentemente “sujos”. Durante alguns rituais, como
os “pratos”, os banhos também são exigidos, deixando-o livre de qualquer cheiro, uma vez
que não se pode usar nenhum tipo de perfume.
120
Como vimos, o autoflagelo corporal está presente em diferentes rituais Pankararu e é
realizado tanto pelos humanos quanto pelos não-humanos. Esse sacrifício é feito pelos
penitentes homens, com a “disciplina”; pelas penitentes mulheres, com os resguardos; entre
aqueles que se queimam com o cansanção; pelos mortos que rondam suas cruzes em sua
penitência “eterna”; pelo corpo do animal que também é sacrificado no momento do ritual.
Dessa forma, temos o sacrifício feito pelo corpo dos animais, dos vivos e pelos mortos. A
cura do corpo do enfermo também passa pelo sacrifício. Sem a pena, o sofrimento e sem o
sacrifício não há cura, nem eficácia simbólica, pois ela opera pela contiguidade. Essa
elucidação nos permite pensar na oposição interior/exterior, na qual a marcação corporal
(autoflagelo, resguardos) evidencia aspectos da noção de pessoa. A mudança exterior,
corporal, acompanha uma transformação interna, onde a finalização desse processo é
reestabelecer a ordem das coisas “puras” e “impuras”. A inscrição corporal da penitência é a
memória do grupo, tal qual nos lembra Clastres, “a marca é um obstáculo ao esquecimento, o
próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é uma memória”
(Clastres, 1974: 128).
Podemos perceber que o sacrifício está presente na vida social do grupo, onde o
sofrimento, a disciplina e o asseio assumem elementos significativos desse sistema de
purificação e consagração. Segundo Mauss, o corpo precisa ser educado e purificado com
técnicas específicas para seu deus, a partir de determinadas crenças. Entre os Pankararu, para
que o mundo sagrado seja alcançado e o contrato com os deuses (Deus, encantados, exus,
santos, mortos, espíritos etc) firmado, é necessário que exista a consagração do sacrificante,
que seu corpo esteja limpo, purificado, para ser, então, consagrado e “fechado”, livrando-se
de possíveis ameaças malignas. Se o corpo precisa estar livre das impurezas, a casa, sendo sua
extensão, também necessita de resguardos e “alimentos” que a purifiquem e a mantenham
viva, como a memória. A partir de agora, veremos como a casa, a memória, o corpo, o
sofrimento, o sacrifício e a pureza se encontram não apenas presentes na vida cotidiana do
grupo, mas entrelaçadas e perfazendo trajetórias, histórias e memória.
121
3.3 O santuário: casa, corpo e memória
Lá, sendo o lugar deles, é também o meu lugar.
Dona Ninha
A casa Pankararu não é aqui compreendida apenas como um espaço de reprodução,
mas como uma extensão corporal da pessoa e um local de afeto e memória. A casa é o lugar
da cura, das rezas, das lembranças. A casa é também o lugar dos mortos. Algumas pessoas
enterram seus parentes próximos de suas casas e famílias os homenageiam com ritos de
celebração. Os mortos, diferentemente do dogma cristão, vivem no plano terrestre com os
vivos e não estão destinados apenas ao céu ou ao inferno. Assim, a casa é pensada como um
santuário, um local sagrado onde se interseccionam afetos, relações, humanos e não-humanos.
Analisando os trajetos e caminhos percorridos pelos pankararu durante os rituais da
Penitência podemos verificar que os lugares por onde eles passam, param e rezam, são locais
sagrados, como as cruzes dos mortos, as casas de antigas lideranças e santidades. Já no ritual
da Queima do cansanção, além dos espaços sagrados dos terreiros, eles se encaminham para
os pés de frutas de murici e embu, nos terrenos do Aratikum e Muricizeiro, para finalizar o
ritual. Esses pés de fruta são marcos mnemônicos, pois trazem uma memória dos eventos
passados da própria tradição do grupo. Durante o ritual, os praiás também visitam as casas de
figuras importantes e de lideranças. Esses trajetos perfazem os caminhos pelos quais a
memória e os afetos são ativados e revividos em cada percurso. Cada espaço (re)visitado
mobiliza e atualiza essa memória.
Como vimos, os penitentes e os praiás são chamados para purificar o indivíduo quando
morre, para que a sua “travessia” ao mundo sagrado seja serena, e seu corpo e espírito não
sofra nenhuma doença ou ameaça. Isso serve também quando a família deseja prestar
homenagem a algum parente falecido e que possui prestígio no grupo. Essa homenagem a
figuras importantes é também ressaltada por Carneiro da Cunha (1978), em seus estudos sobre
os Krahós, onde um ritual é realizado a quem se destacou na vida pública da aldeia. Nessa
celebração, chamada por eles de “tora de katëti”, e que é realizada pelos consangüíneos do
morto, objetiva-se “alegrar o karõ do morto através de uma corrida de tora à qual ele assiste
mas não participa” (Carneiro da Cunha, 1978: 60). No final da corrida, os membros da aldeia
se reúnem na casa do morto, onde os cabelos de todos seus consangüíneos são cortados. Essas
marcações corporais, como corte de cabelo, depilação e pintura corporal delimitam as
posições sociais no grupo.
122
Cabe ressaltar, porém, que os Krahós tentam evitar estar perto de objetos e lugares
onde a pessoa falecida dormia, correndo o risco de seu “karõ” - princípio vital -, ser levado à
sociedade dos mortos. Entre os Pankararu, tal evitação não existe. Os mortos são aqueles que
vivem entre os vivos, e seus objetos, apesar de ser como partes da pessoa, não ameaçam a
estabilidade do mundo dos humanos. Sendo assim, entre os Pankararu, os mortos não são “os
outros”, como evidenciado entre os Khraós, mas parentes. Na homenagem aos mortos
Pankararu, parentes e afins rezam dentro do quarto do morto, onde se encontram seus objetos
pessoais, como fotos, a cama, e outros utensílios que lhe pertenciam. Os objetos pertencentes
ao morto são como “objetos biográficos”, utilizados para atualizar a imagem e a memória de
alguém, simbolizando a experiência vivida da pessoa, pois participaram e acompanharam todo
uma trajetória de vida, e “mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão
um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade, (...) nos dão a pacífica
impressão de continuidade” (Bosi, 1983: 360). Esses “objetos biográficos” produzem um
lócus no qual os afetos e a memória se ativam, fazendo circular emoções, pessoas humanas e
não-humanas.
A casa de Maria de Jesus, filha de Bárbara Oliveira, que foi responsável pelo início da
Penitência das mulheres no Brejo dos Padres é também visitada durante a Penitência. Homens
e mulheres penitentes também passam, no Sábado de Aleluia, pela casa de Pedro Batista e da
Madrinha Dodô, local de romaria e motivo de adoração entre os Pankararu. O trajeto que os
penitentes fazem até a morada dessas santidades reverenciadas é importante pois nos revela
que este local não se constitui apenas como um ponto de chegada, um espaço geográfico no
qual eles irão “entregar” a penitência, mas como um local onde circulam rezas, pessoas,
mortos, espíritos, memória. Essa circulação de seres humanos e não-humanos fortalece a
aliança entre eles, sobretudo na prestação e contraprestação da dádiva, uma vez que a
penitência, ou seja, o sacrifício do indivíduo, é ofertada neste local. Quando entregam sua
penitência, estabelecem uma aliança entre encantados, vivos, mortos e não-humanos, onde a
casa se configura como um elemento importante dessa aliança, podendo ser considerada como
um santuário.
Os penitentes buscam alcançar, através de seus sacrifícios, uma maior comunicação e
relação com o mundo sagrado. Os sacrifícios, rezas e orações que são entregues, como forma
de “quitação” do pagamento, exige que os mortos e entidades divinas também retribuam por
esses serviços. Sobre esse circuito realizado pelos penitentes Pankararu, Mura ressalta:
123
De relevante importância acredito ser a guarda da memória do grupo de romeiros
pankararu a partir do locus que delineia esse vasto espaço sagrado. Esse locus
(cidades, túmulos, serras, pedras etc.), disseminado por uma vasta região, é marcado
tanto pela passagem desses líderes carismáticos como evoca histórias familiares de
deslocamentos. A relação afetiva e emocional com esse locus é revivida a cada
romaria. Em cada uma delas são importantes não apenas os itinerários que se
realizam em todos os centros de peregrinação, isto é, seu roteiro ritual fixo, mas
também os lugares carregados de histórias, cuja memória é reativada ao se percorrer
uma estrada, ao se visitar um morador, ao se reencontrarem pontualmente outros
romeiros. A romaria provoca uma revisitação dessa memória, que é reativada e
atualizada, mas principalmente socializada com aqueles que compartilham a viagem
(Mura, 2012: 321).
No entanto, acredito que esse lócus não se encontra restrito apenas ao caminho que os
Pankararu perfazem no período da Penitência, como afirma Mura, mas também no trânsito
entre aldeia e cidade daqueles que retornam à TI Pankararu em períodos rituais para
pagamento de promessa e daqueles que voltam para visitar familiares. Por isso que pensar
essas localidades como territórios coextensivos é importante, pois nos dá uma dimensão
maior dos elementos que perfazem a trajetória não apenas individual de cada pessoa, mas
também do grupo. Mais que um território fixo e demarcado, os Pankararu se movimentam
numa paisagem que está sendo feita e desfeita constantemente, num “território fluído”, pois o
mundo em que vivem e no qual habitam é feito pelos lugares e caminhos pelos quais
transitam, havendo uma interconexão entre eles. Se corpo e paisagem se complementam,
podemos pensar que o território no qual vivem não é apenas compreendido como uma
propriedade no âmbito jurídico, mas também pode ser entendido como um espaço ilimitado,
num fluxo perpétuo de transformação, movimento e conhecimento.
A casa também é o espaço privado onde a cura é realizada, como as “mesas” de cura.
A casa, assim como o corpo, deve estar “limpa” e também pode ser alvo de ameaças de
espíritos malignos, colocando em risco a ordem natural das coisas. Segundo Josivete, quando
isso acontece é necessário uma rezadeira para limpar e desfazer o mal que se instalou em seus
aposentos:
Sempre morei aqui. Nasci e me criei aqui. Desde os sete anos que trabalho na reza.
Tenho 29 anos de trabalho. Faço limpeza de casa quando pedem também. Limpeza
de casa é quando a casa tá pesada de maus espíritos, a pessoa escuta panela tocando,
prato quebrando. Aí limpo e passo depurador. Vai eu mais alguém pra ajudar a fazer
a limpeza. A pessoa, dona da casa, fica do lado de fora. Aí, depois, fico tão cansada,
carregada, passo uns três dias sem fazer nada. São três dias perdidos. Teve uma vez
que voltei de um trabalho arriada no banco do carro. Aí chego, tomo um banho de
erva, pra expurgar a carga do corpo, faço um banho de descarrego (Entrevista
Josivete, março de 2015).
124
Como já mencionado, esse processo de extração da força maligna tanto do corpo
quanto da casa, se assemelha ao mesmo mecanismo pelo qual o feiticeiro extrai o objeto
patológico do corpo de um doente, levando-o à cura. Durante o processo de “limpeza
espiritual da casa”, as pessoas que moram lá permanecem do lado de fora, sob o risco de o
mal atingir seus corpos. A rezadeira, por outro lado, fica “carregada”, exaurida, e o corpo dela
serve como um purificador para neutralizar a força ameaçadora que estava voltada à casa. Da
mesma forma, seu corpo também terá que ser limpo “com um banho de erva para expurgar a
carga do corpo”. Nesse sentido, se no dia-a-dia o indivíduo precisa seguir certos padrões de
conduta para que seu corpo permaneça fechado e livre de ameaças, a casa também necessita
desses cuidados, evidenciando que a dicotomia mau cheiro/asseio não se encontra apenas
restrita ao corpo físico da pessoa.
Considerações Finais
Quando comecei meus primeiros estudos entre os Pankararu, meu interesse estava
voltado, num primeiro momento, à análise das transformações formais que o grupo era
submetido na sua mobilidade entre aldeia e cidade. No decorrer do desenvolvimento dessa
dissertação, fomos percebendo que tanto a cidade quanto a aldeia eram locais que o grupo
habitava, sendo que um não se “desconectava” do outro. Assim, mais que investigar essas
transformações, começamos a analisar essas duas localidades como um “território fluído” que
se interconecta por afeto, memória, alimento, pessoas. A mobilidade passou a ser
compreendida, então, como um modo de habitar o mundo, um modo de caminhar, fazendo
circular humanos e não-humanos.
A história de vida de uma família marcada pela trajetória de deslocamentos nos
permitiu analisar os diferentes sentidos que o “sair da aldeia” possui, tanto àqueles que estão
na aldeia, quanto aqueles que realizam esse “trânsito” permanente entre aldeia e cidade. “Ser
pankararu”, nesse sentido, está atrelado também as experiências vividas na cidade, pois a
cidade não é apenas o “local da diáspora”, mas também um lugar de permanência, de
vivência, de “passagens”. Nesse sentido, a concepção de pessoa possui uma relação
significativa com a casa, a mobilidade e a memória, como vimos no decorrer dos capítulos.
No primeiro capítulo, apresentamos a família Pereira e aspectos da sua organização
familiar. A proximidade e a comensalidade são importantes, pois, contribuem para a
125
manutenção dos laços parentais. Vimos também que, para a família Pereira, o “tronco
familiar” parece não se configurar como uma unidade de muita influência a seus membros,
uma vez que foi o próprio deslocamento entre aldeia e cidade quem concedeu à família
prestígio e “identidades”.
No segundo capítulo, mostramos que a mobilidade pankararu pode ser compreendida
como um modo de produção de vida, enfatizando que a territorialidade está sendo produzida
constantemente pelo grupo, tanto na aldeia e cidade quanto nos “caminhos” que
interconectam esses lugares. Mostramos também os sentidos que esses deslocamentos
possuem através de narrativas de uma família marcada pela trajetória de deslocamentos.
Assim, “sair da aldeia”, ao mesmo tempo em que parece se configurar como uma ameaça, é
também um modo de habitar o mundo, buscando conhecimento e auxiliando a realização de
políticas públicas que favorecem o grupo. “Caminhar”, nesse sentido, ilumina um modo
específico de mobilidade, na qual as “saídas” e os “retornos” se configuram como diferentes
maneiras de habitar a aldeia e a cidade, num movimento contínuo.
No terceiro capítulo, apresentamos três rituais importantes, como a Queima do
cansanção, a Penitência e as rezas de cura, demonstrando como o sacrifício aparece como um
elemento importante para a concepção de pessoa. O corpo da pessoa, para estar “fechado” e
livre de ameaças, precisa realizar os resguardos exigidos, mantendo seu contrato com os
deuses. Vimos também que o corpo possui uma analogia com a casa, estabelecendo com ela
uma relação significativa. Assim, a proximidade entre parentes evidencia não apenas a
manutenção de laços parentais, mas também a memória.
O corpo, a casa, o sacrifício, o asseio e a memória estão conectados e constituem
elementos importantes para se pensar a noção de pessoa Pankararu. Se a memória e o
sacrifício se encontram presentes nessas diferentes localidades, podemos dizer que na
mobilidade Pankararu entre aldeia e cidade eles também são revividos. É durante o calendário
ritual do grupo que centenas de famílias se deslocam até a TI Pankararu para acompanhar
esses eventos. Neste trabalho, apresentamos a Corrida do Imbu e a Penitência. No entanto,
outros rituais como o Menino do Rancho, Três Rodas, Capitão da Meia-Noite, Festa da Boa
Morte etc. fazem parte desse calendário e mobilizam a circulação de pessoas, cura, alimentos.
As rezadeiras do Real Parque, entre elas Lídia e Leidi, me disseram que em muitos momentos
viajam até a aldeia para participar destes rituais, ou mesmo acompanhar familiares em
pagamento de promessa. Quando retornam, aproveitam para trazer ervas que são utilizadas
nas “mesas” de cura, além de frutas como pinha, manga, embu, murici. Esses alimentos
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fortalecem e mantém os laços parentais entre o grupo, que, mesmo habitando outras
localidades, partilha memórias e experiências.
Noções como “respeito”, “benção”, “sagrado”, “puro” e “impuro” organizam o
sistema simbólico do grupo, oferecendo aspectos mais gerais da sua cosmologia. O corpo
precisa estar “limpo” para que esteja livre de ameaças e doenças. Para isso, os resguardos
alimentares e sexuais exigidos, bem como o sacrifício, são os mecanismos que mantêm em
equilíbrio a ordem das coisas “puras” e “impuras”. Para atingir o mundo sagrado, o corpo
impuro, que é materialidade e imaterialidade, deve ser sacralizado. Nesse processo, é
impingida ao indivíduo uma série de sacrifícios, como o autoflagelo e os resguardos. Dessa
forma, o cumprimento ou não desses sacrifícios orienta a dicotomia corpo aberto/corpo
fechado.
O “fechamento” do corpo, ou seja, a sua consagração, é realizado através do contrato
entre humanos e não-humanos. O cosmos Pankararu é composto por um conjunto complexo
de entidades - Deus, encantados, exus, santos, mortos, espíritos etc.- que oferecem proteção e
cura ao grupo. Em troca, recebem alimentos, sacrifícios, rezas. Esse sistema de prestação e
contraprestação mantem a aliança entre humanos e não-humanos, na qual ambos devem
cumprir com seus serviços e obrigações. O corpo só será “fechado” se os sacrifícios forem
cumpridos. Caso não sejam, o corpo não atinge a fase final do rito sacrificial, não alcançando,
assim, sua pureza.
A casa, tal qual o corpo, precisa estar “fechada” para que entidades malignas não a
atinjam. Além de objetos sagrados, como as cruzes, que cumprem com a função de protegê-la,
a “limpeza espiritual” que as rezadeiras fazem também a deixam livres de ameaças. Se a casa
é um lugar do sagrado, há espaços que nos remete a sua exterioridade, como a encruzilhada,
por exemplo, que é concebida como um local de perigo, fronteiriço, onde espíritos malignos
habitam. A dicotomia interior/exterior também pode ser aplicada aqui, na qual tudo que se
distancia do domínio do parentesco se aproxima do “reino da violência – efetiva ou
simbólica”, como nos lembra Bruce Albert (1992). Quanto mais distante da casa, mais perto
do perigo, perto das coisas “impuras” e que poluem o sistema que organiza o grupo. Assim é
também compreendida a cidade por pessoas mais velhas, como um local “impuro”, “sem
Deus”, onde as normas não vigoram, enquanto a aldeia é o lugar do sagrado. No entanto, a
cidade é também compreendida como um lugar de produção de conhecimento, onde os
encantados também habitam, onde as práticas de cura acontecem e onde se “descobrem”
identidades.
127
Numa conversa com Ninha, ao se referir o local onde seus pais e avós moravam, ela
afirmou que “lá, sendo o lugar deles, é também o meu lugar”. Considerando a casa como um
espaço imantado de lembranças, talvez a frase de Ninha dê sentido aos diferentes aspectos que
a noção de habitar entre os Pankararu possui, criando e fortalecendo não apenas o parentesco,
mas o afeto e a memória. Habitar o mesmo espaço geográfico no qual familiares moraram
parece ser também uma forma de manutenção das relações e memórias do grupo, onde o
corpo aparece como um feixe de intersecção entre as diferentes temporalidades e afetos. Isso
também nos oferece novas perspectivas em relação a noção de casa e aquilo que o grupo
entende por habitar. Se muitas famílias circulam entre aldeia e cidade, ficando alguns meses
entre “lá e cá”, há uma noção ampliada de casa, que não está sujeita apenas a sua residência
fixa na aldeia ou na cidade. “Caminhar”, nesse sentido, é uma forma de buscar conhecimento,
ampliando rede de relações, e também a maneira como os Pankararu experienciam o mundo.
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