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ARISTOCRACIA, PODER E FAMÍLIA EM PORTUGAL, SÉCULOS XV-XVIII _________________________________________ Mafalda Soares da Cunha * Nuno Gonçalo Monteiro ** 1. O tema e os problemas Importa, antes do mais, delimitar com clareza o âmbito deste texto. Não é nossa pretensão falar de forma detalhada sobre a família aristocrá- tica. Tão pouco buscamos discutir e enumerar todas as múltiplas formas através das quais se exercia o poder social da nobreza, no sentido mais amplamente focaultiano do termo. O que aqui nos interessa é a conexão, historicamente variável, entre as modalidades de constituição da família aristocrática e o exercício do poder político no centro e na periferia. Os pode- res que aqui nos interessa são, portanto, aqueles que na ordem jurídica contemporânea se encontram associados ao Estado, ou seja, os cargos de governo no centro – os ofícios nos conselhos palatinos, nas secretarias, no governos das conquistas, nos governos militares – e as funções jurisdicionais e militares na periferia. No centro deste tema está, portanto, a análise da relação entre a coroa e a aristocracia. Mas essa relação, que é mutável, é atravessada, por seu turno, pela tensão entre os grupos nobiliárquicos estabelecidos e consolidados e aqueles, mais recentes ou mais periféricos, que se encontravam em processo de mobilidade social ascendente, parte da qual se materializava, precisamente, através das suas relações com a coroa. Ou seja, embora a relação da aristocracia com o poder político se encontre no núcleo da nossa análise, ela terá, necessariamente de ser arti- culada com os vínculos estabelecidos com outros grupos nobiliárquicos. * Universidade de Évora – CIDEHUS. ** Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa. Sociedade, Família e Poder na Península Ibérica. Elementos para uma História Compara- tiva / Sociedad, Familia y Poder en la Península Ibérica. Elementos para una Historia Comparada, Lisboa, Edições Colibri / CIDEHUS – Universidade de Évora / Universidad de Murcia, 2010, pp. 47-75.

Aristocracia, Poder e Família

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Trabalho de Nuno Gonçalo Monteiro e Mafalda Cunha

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  • ARISTOCRACIA, PODER E FAMLIA EM PORTUGAL, SCULOS XV-XVIII _________________________________________

    Mafalda Soares da Cunha* Nuno Gonalo Monteiro**

    1. O tema e os problemas

    Importa, antes do mais, delimitar com clareza o mbito deste texto. No nossa pretenso falar de forma detalhada sobre a famlia aristocr-tica. To pouco buscamos discutir e enumerar todas as mltiplas formas atravs das quais se exercia o poder social da nobreza, no sentido mais amplamente focaultiano do termo. O que aqui nos interessa a conexo, historicamente varivel, entre as modalidades de constituio da famlia aristocrtica e o exerccio do poder poltico no centro e na periferia. Os pode-res que aqui nos interessa so, portanto, aqueles que na ordem jurdica contempornea se encontram associados ao Estado, ou seja, os cargos de governo no centro os ofcios nos conselhos palatinos, nas secretarias, no governos das conquistas, nos governos militares e as funes jurisdicionais e militares na periferia. No centro deste tema est, portanto, a anlise da relao entre a coroa e a aristocracia. Mas essa relao, que mutvel, atravessada, por seu turno, pela tenso entre os grupos nobilirquicos estabelecidos e consolidados e aqueles, mais recentes ou mais perifricos, que se encontravam em processo de mobilidade social ascendente, parte da qual se materializava, precisamente, atravs das suas relaes com a coroa. Ou seja, embora a relao da aristocracia com o poder poltico se encontre no ncleo da nossa anlise, ela ter, necessariamente de ser arti-culada com os vnculos estabelecidos com outros grupos nobilirquicos. * Universidade de vora CIDEHUS. ** Instituto de Cincias Sociais Universidade de Lisboa.

    Sociedade, Famlia e Poder na Pennsula Ibrica. Elementos para uma Histria Compara-tiva / Sociedad, Familia y Poder en la Pennsula Ibrica. Elementos para una Historia Comparada, Lisboa, Edies Colibri / CIDEHUS Universidade de vora / Universidad de Murcia, 2010, pp. 47-75.

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    A nossa abordagem subalternizar, por isso, as questes estritamente associadas aos seus modelos de organizao familiar e de reproduo bio-lgica, concedendo, em contrapartida, protagonismo evoluo das modalidades de interveno poltica e sua periodizao. Ser, por isso, neste quadro de anlise que os recursos da famlia enquanto unidade de reproduo social servios, memria, relaes de parentesco e cliente-lismo, bens e patrimnio sero abordados1.

    Deste modo, se o nosso ponto de observao , quase naturalmente, as relaes da aristocracia com a coroa h que analisar detidamente as formas pelas quais o grupo se foi sucessivamente reconfigurando ao longo destes quatro sculos, j que se reconhece o seu carcter no esttico e rgido. verdade, porm, que essa plasticidade variou significativamente ao longo do perodo em anlise, desde uma mxima abertura nos sculos XV e XVI at ao progressivo endurecimento das suas fronteiras que atingiu a mxima rigidez no sculo XVIII. Porm, a perspectiva que aqui defendemos a de que a coroa portuguesa deteve desde muito cedo um papel extraordinaria-mente importante na modelao do grupo aristocrtico.

    Com efeito, o conjunto de dispositivos de ordenamento do espao social da nobreza que os monarcas portugueses foram aplicando a partir do sculo XV Lei Mental, titulao, foros de moradores da casa real, sistema de tratamentos, incio da curializao , criou-lhes condies para se institurem em rbitros da classificao social oficial. Um pouco mais tarde, os crescentes proventos e novos recursos distributivos gerados pela expanso atlntica e oriental reforaram a centralidade da coroa, enquanto principal entidade concessora de mercs e recrutadora de servi-os militares, administrativos e polticos. verdade, no entanto, que a coroa no monopolizava ainda a distribuio de cargos e mercs. As casas da rainha, dos infantes e de algumas grandes casas senhoriais dispunham de recursos e poderes, tanto no centro quanto na periferia, tambm alie-nveis e que, em parte, concorriam com a coroa. Se estes factores contri-buram para o crescimento global do grupo nobilirquico, o acesso aos escales superiores da nobreza era controlado pela monarquia, pois era ela a entidade que concedia ou ratificava a titularidade das principais dis-tines ttulos, jurisdies, cargos na administrao central e na corte rgia. Uma vez que a hierarquizao destas distines ainda era relativa-mente indefinida e a sua atribuio social dispersa por um nmero alar-gado de linhagens, casas, e indivduos, a principal consequncia traduzia--se na no coincidncia entre titulares e aristocracia. Ou seja, se todos os detentores de ttulos de nobreza integravam o topo da nobreza, esta abar-cava igualmente os senhores de terras, os detentores dos cargos superiores da administrao, dos ofcios maiores do pao e, pelo menos, alguns dos 1 Cf. bibliografia citada nas notas subsequentes deste texto.

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    alcaides-mores2. Por outro lado, e como antes se disse, a administrao perifrica do territrio ainda estava efectivamente cometida a particulares leigos ou eclesisticos. O conjunto de recursos que estes dispunham tor-nava-os, assim, relevantes parceiros na gesto poltica do territrio e na atribuio de postos e distines.

    Mas esta disperso poltica tendeu a reduzir-se significativamente nos sculos ulteriores. A partir da implantao da dinastia brigantina no apenas se restringiu o espao jurisdicional cometido a privados, como as relaes entre a coroa e a nobreza adquiriram maior rigidez, pela progres-siva regulao das condies de acesso s distines superiores que tende-ram a ser monopolizadas pelo grupo dos titulares.

    Tal situao no se traduziu, porm, em restries mobilidade social ou cristalizao do grupo nobilirquico como um todo. Os esca-les inferiores e intermdios do grupo alargaram-se e reconfiguraram-se permanentemente custa da multiplicao de oportunidades de servio coroa que entretanto se verificou. Assim, se no sculo XVIII a aristocracia tendeu a monopolizar os principais cargos polticos e com eles as princi-pais distines, h que reconhecer o potencial de mobilidade social con-ferido pelo desempenho de funes polticas de carcter mais tcnico como o caso dos ofcios judiciais e administrativos nos conselhos e secretarias de Estado, dos postos diplomticos e dos cargos militares. Por avaliar, com dados empricos mais consistentes, esto as relaes estabele-cidas entre estes membros dos segmentos inferiores da nobreza com a aristocracia e o papel desempenhado por essas conexes na consolidao e preservao do prprio poder da elite aristocrtica.

    Entretanto, para se ponderar a importncia do centro, importa comparar a dimenso dos recursos que este tinha disponveis, designa-damente, comparando Portugal com a Monarquia de Espanha. Desse confronto, h alguns traos essenciais que desde logo sobressaem. Em termos absolutos, a monarquia portuguesa tinha mais recursos para dis-tribuir em matria de senhorios e comendas: atravs da Lei Mental, os senhorios doados pela coroa nunca perdiam a sua natureza e podiam a ela reverter, por um lado e, por outro, as comendas das ordens militares eram mais numerosas no reino de Portugal do que em todos os demais da Pennsula. No entanto, apesar do seu dilatado imprio, o nmero de ofcios intermdios e superiores (conselhos, governos dos territrios europeus, diplomacia, guerra e conquistas) era mais reduzido em Portu-gal, pois nunca se alcanaram em nmero os que a Monarquia Hispni-

    2 Mafalda Soares da CUNHA, Casas senhoriais, elites polticas coloniais, mobilida-

    de social, dinmicas sociais (sculos XV-XVII) in Jos Jobson ARRUDA e Lus Ado da FONSECA (org.), Brasil-Portugal: Histria, agenda para o milnio, Bau-ru/S. Paulo, 2001, pp. 313-342.

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    ca, com os seus amplos territrios europeus, dentro e fora da Pennsula, tinha para distribuir, mesmo depois da Guerra de Sucesso. Alm disso, a coroa portuguesa, excepto durante o perodo dos Habsburgo, no teve por prtica a venda desses ofcios, como alis no o fez com ttulos de nobreza (baro, visconde, conde, marqus e duque), comendas (aqui houve excepes) e com os senhorios. Assim, a ascenso na pirmide nobilirquica s se podia fazer atravs do servio coroa cuja remunera-o se traduzia em rendas, ttulos e outras distines. Por essa razo, a monarquia portuguesa acabou por conseguir e por prolongar no tempo e no espao a ocupao dos cargos no centro e na semi-periferia imperial (governos coloniais) pela mais alta nobreza do reino. Em parte por isso, a associao directa entre aristocracia e o exerccio do poder no centro pro-longou-se muito mais no tempo em Portugal do que em Espanha, desig-nadamente ao longo do sculo XVIII. Em compensao, o poder efectivo na periferia, o exerccio de jurisdies senhoriais, declinou claramente em Portugal durante a centria de Setecentos.

    2. Os modelos de organizao familiar

    Uma abordagem sistemtica e consistente dos processos de estrutu-rao social no Antigo Regime no pode dispensar a ponderao das formas de organizao familiar e das relaes de parentesco3. O ponto de partida deve ser a centralidade que o modelo reprodutivo vincular vai adquirir, ao longo do sculo XVI, enquanto comportamento de refern-cia para o conjunto das elites sociais. Nos ramos principais da fidalguia antiga a sua adopo traduzia-se, no apenas na fundao de morgadios, mas ainda no encaminhamento de grande parte das filhas e da maioria dos filhos secundognitos para as carreiras eclesisticas. A reproduo alargada da casa constitua o desgnio estratgico ao qual se deviam submeter todos os destinos individuais. Era este, desde logo, o padro de comportamento da primeira nobreza do reino4.

    No entanto, como sublinhou h muito Pierre Bourdieu, se a famlia, nas suas mltiplas formas, pode ser apresentada como uma fiction bien fonde, essa forma peculiar de organizao familiar que so as societs maison5 resulta sempre ou de um laborioso trabalho de construo

    3 Francisco CHCON JIMNEZ, Hacia una nueva definicin de la estrutura social

    en la Espaa del Antiguo Rgimen atravs de la familia y de las relaciones de parentesco, Historia social, n 21, 1995, pp. 95-104.

    4 Nuno Gonalo MONTEIRO, O crepsculo dos Grandes. Casa e patrimnio da aris-tocracia em Portugal (1750-1832), Parte II, 2 ed., Lisboa, 2003.

    5 P. BOURDIEU, propos de la famille comme catgorie ralise, Actes de la

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    social ou da especificidade de certas trajectrias no espao social. Ou seja, s a partir de determinados patamares da hierarquia social esse modelo tendia a ser adoptado. O que significa que s aps uma certa acumulao de riqueza e de estatuto social se podia fundar uma casa. Existiam, por-tanto, modelos alternativos. Um deles era o investimento nas filhas. nesse sentido que apontam os indicadores para as camadas inferiores da fidalguia nos sculos XV e XVI6, bem como, numa primeira gerao, em outras categorias sociais e em outros sculos. Entre meados do sculo XVI e meados do sculo XVII o estudo dos diversos escales de clientes da casa de Bragana ilustra bem o contraste entre os fidalgos/comenda-dores, onde boa parte dos filhos no sucessores se no casava e as filhas eram maioritariamente freiras, e os oficiais do escalo mais baixo, os detentores de benefcios eclesisticos e de ofcios locais da apresentao da casa de Bragana, que pretendiam aceder a estatutos sociais nobilitan-tes, para o que investiam preferencialmente nas filhas, encaminhando a maior parte dos filhos para o clero7.

    O modelo de organizao familiar baseado na casa e morgado, por-tanto, tende a reforar-se cada vez mais medida que nos encaminhamos no apenas para os segmentos superiores da hierarquia nobilirquica, como para os casos em que h uma efectiva consolidao das posies sociais adquiridas.

    Acresce, ao que se disse antes, que, conhecendo muitas outras coisas, pouco sabemos sobre os modelos de organizao familiar de grupos to decisivos para a histria da alta poltica como os desembargadores, ou seja, a alta magistratura que era composta pelo escasso nmero de juristas que atingiam o topo da carreira. Sabemos que a partir de meados do sculo XVII, de forma mais notria do que o que se verificaria antes, poucos foram os recrutados em casas da alta nobreza, nem sequer de entre os filhos segundos desta, j que se encaminhavam maioritariamente para o clero. Os desembargadores teriam um recrutamento social plural,

    recherche en sciences sociales, n 100, 1993, pp. 33 e 35, bem como o conjunto da sua obra sobre o tema.

    6 James BOONE, Parental Investment and Elite Family in Preindustrial States: A Case Study of Late Medieval-Early Modern Portuguese Genealogies, American Antropologist, n 8, 1986; Ivana ELBL, The Overseas Expansion, Nobility, and Social Mobility in the Age of Vasco da Gama, Portuguese Studies Review, vol. 6, n. 2, Fall-Winter, 1997-98, pp. 53-80; Mafalda Soares da CUNHA, Portuguese Nobility and the Overseas Government. The return to Portugal (16th to 17th Centuries), in Ernst VAN VEEN e Leonard BLUSS (eds.), Rivalry and Conflict. European Traders and Asian Trading Networks, 16th and 17th Century, Leiden, 2005, pp. 35-54.

    7 Mafalda Soares da CUNHA, A Casa de Bragana (1560-1640). Prticas senhoriais e redes clientelares, Lisboa, 2000, p. 500.

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    parte nascidos em meios fidalgos de provncia ou em fidalgos da corte de segunda ordem, parte em famlias de magistrados h vrias geraes, par-te em grupos em ascenso, como os negociantes grossistas. Mas, primo-gnitos ou no, parece certo que uma parte no se casava e que outra se casava notoriamente tarde. O mesmo se parece poder aplicar a outro pes-soal poltico das altas esferas que no era recrutado na alta nobreza. A tendncia dominante para o caso portugus parece ento apontar para a ideia de que entre a nobreza de espada e a nobreza de toga existisse um fosso social raras vezes ultrapassado8.

    A Restaurao de 1640, com a ascenso da dinastia dos Bragana e das casas fidalgas que a apoiaram no golpe em Lisboa e durante a guerra (1640-1668), alterou em parte os comportamentos destas. As grandes casas da dinastia, passaram a monopolizar os principais ofcios da monarquia (governos militares e coloniais, presidncias de tribunais, principais dioceses eclesisticas) e as doaes rgias em honras e rendas (senhorios, comendas e tenas). As alteraes Lei Mental concedidas aps as cortes de 1641 aproximaram a sucesso nestes bens da que se pra-ticava nos bens patrimoniais vinculados. A alta nobreza de corte quase deixou de casar com herdeiras ricas, para se casar apenas dentro do gru-po, reforando a sua identidade e o quase monoplio das mercs rgias mais relevantes, tornadas ento quase a nica fonte de novas rendas. Por outro lado, para alm da diversidade dos modelos de organizao familiar ou, se se quiser, da pluralidade das formas da famlia, h ainda que cha-mar a ateno para os usos e as manipulaes polticas do parentesco. Se o modelo de reproduo vincular tem como eixo o parentesco vertical, concentrando na linha dos sucessores os investimentos destinados a per-petuar e engrandecer a casa, o parentesco horizontal, tal como foi muito destacado por alguma historiografia recente, fundamental nos percursos de mobilidade ascensional. Acresce que as conexes com os irmos, tios, parentes, padrinhos e aliados (pelo casamento) foram muitas vezes as mais decisivas e marcantes na constituio de redes e faces mobilizadas para a luta poltica. Em sntese, este um aspecto para o qual se deve estar particularmente atento se se quiser apreender com clareza os usos polticos das relaes familiares. No mesmo sentido, importa perceber em que medida as redes clientelares das grandes casas foram ou no mobili-zadas politicamente.

    Com efeito, e retomando a alta nobreza e o sistema de casa, importa saber se houve polticas continuadas das grandes casas e at quando se prolongaram no tempo. Desse modo, ao longo da dinastia de Bragana

    8 Cf. Jos SUBTIL, Os desembargadores em Portugal, in N. G. MONTEIRO, P.

    CARDIM e M. S. da CUNHA (org.), Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Anti-go Regime, Lisboa, 2005, pp. 253-275.

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    vigorou uma intensa disciplina familiar, que impendia tanto sobre filhas como filhos, primognitos ou no. A todos cabia aceitar o seu destino e contribuir para o acrescentar a casa que lhes dera o ser. Somente no ter-ceiro quartel de setecentos, com a quebra nos ingressos eclesisticos (tan-to masculinos, como femininos), este modelo comeou a ser posto em questo.

    3. Periodizao da evoluo do poder poltico e a aristocracia

    a) 1385-1640

    O perodo cronolgico que abrange as dinastias de Avis e dos us-trias (1385-1640) caracteriza-se por uma razovel continuidade, quer no que respeita o sistema poltico (fundamentos ideolgicos, quadro norma-tivo, tecnologias administrativas), quer no que respeita s caractersticas do sistema social, pesem embora algumas especificidades conjunturais que importam sobremaneira ao tema em anlise. Assim, apesar de algu-mas permanncias estruturais, as relaes entre a coroa e a nobreza e, muito em particular, entre a coroa e a aristocracia sofreram alteraes considerveis que sero explicadas atravs da relao dinmica do centro poltico com o grupo nobilirquico ao longo destes dois sculos e meio.

    Entre as continuidades contam-se as relaes de certa forma funda-cionais que D. Joo I (1385-1431), iniciador de uma nova dinastia aps a crise dinstica e os conflitos anti-castelhanos de finais do sculo XIV, e D. Manuel I (1495-1521), chamado a reinar em sucesso de seu primo co-irmo D. Joo II, estabeleceram com o segmento superior da nobreza e que, at certo ponto, os utrias respeitaram. Quer D. Joo I, quer D. Manuel reforaram a governabilidade da monarquia, ou, como diria Elias, procuraram controlar a concorrncia senhorial, atravs da conces-so de uma srie de ttulos nobilirquicos aos seus descendentes directos9. Para o efeito D. Joo I criou ttulos ducais para os seus filhos, novidade que quatro reinados depois D. Manuel repetiu. Alargando um pouco o escopo, note-se que, at 1580, eram 11 as casas com origem na famlia real (a de Bragana e as suas ramificaes mais estveis Tentgal / Fer-reira, Faro / Odemira e Vimioso , os Aveiro e ainda as temporrias casas de diversos infantes10) e que perfaziam um tero das casas criadas at essa

    9 Norbert ELIAS, O processo civilizacional. Investigaes sociogenticas e psicogenticas,

    Transformaes do comportamento das camadas superiores seculares do Ocidente, vol. I, Lisboa, 1989.

    10 Enumerando os casos: no sculo XV, infantes D. Henrique, D. Pedro e D. Fer-nando, D. Diogo, duque de Viseu, e j no sculo XVI, aos infantes D. Lus, D. Duarte e D. Fernando.

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    data. Temos, pois, no s o escalo cimeiro dos titulares como a bolsa preferencial de recrutamento para a titulao reservados para as casas daqueles que em Frana se designariam por prncipes de sangue. Com os ustrias o ttulo ducal permaneceu como prerrogativa dos descendentes das casas geradas entre a famlia real (Bragana e Aveiro), alargando-se apenas ento terceira casa em ordem de importncia no reino, que era a casa dos marqueses, depois duques de Vila Real / Caminha.

    Mas existem ainda outras linhas de continuidade. At primeira metade do sculo XVII, cerca de metade da administrao do territrio estava cometida a senhorios em 1527-1532, 54,5% do total das cma-ras do pas estava sob a jurisdio leigos ou eclesisticos, tendo o nmero aumentado para 57,6% em 164011 em que a parte dos leigos com jurisdio continuou a crescer: 37,9% em 1527 e 43,5% em 1640. Diga--se, de resto, que estes dados permitem questionar a periodizao da implantao do absolutismo e, mais em particular, a tese que to amplo eco teve na historiografia portuguesa e que atribui a D. Afonso V (1438--1481) o papel de joguete nas mos da nobreza pela concesso excessiva-mente liberal de ttulos, terras e mercs e a D. Joo II (1481-1495) o papel definitivamente disciplinador do grupo nobilirquico. Como se ver, a oscilao de poder a favor da monarquia resultou bastante mais de factores que na poca eram contingentes (recursos ultramarinos) e da consecutiva aplicao das j citadas medidas de ordenamento do espao social do grupo nobilirquico do que dos teatrais golpes de fora perpe-trados por D. Joo II em 1483 e 1484, no obstante a exemplaridade simblica de que se revestiram. Assim, as principais diferenas residem nas distintas formas que assumiram as prticas polticas dos agentes e devem, por isso, ser compreendidas em termos diversos daqueles em que a soma das parcelas seja zero. Ou seja, no se trata de avaliar se o poder rgio cresceu em detrimento do poder da nobreza, mas sim como evolu-ram os difceis equilbrios entre as duas partes, podendo-se inclusive admitir que a acumulao de recursos e de funes na coroa no signifi-cava linearmente uma qualquer perda de poder poltico do grupo nobi-lirquico.

    Neste domnio, a literatura historiogrfica sobre a Baixa Idade Mdia permite concluir que a estruturao do grupo nobilirquico se fazia ainda dominantemente a partir das periferias territoriais. O mesmo dizer que os senhores de terras ainda detinham uma significativa capa-cidade para impor (ou se apropriarem) de mecanismos de extraco da renda a nvel local de forma razoavelmente livre. As persistentes queixas

    11 Nuno Gonalo MONTEIRO, Os poderes locais no Antigo Regime, in Histria

    dos Municpios e do Poder Local, Lisboa, 1996, p. 52. Excluram-se deste cmputo as ordens militares, uma vez que a partir de 1556 foram integradas na coroa.

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    dos povos em cortes confirmam-no, tal como demonstram que os dona-trios tendiam a expandir as suas reas jurisdicionais tanto custa dos municpios, quanto de proprietrios livres ou at de outros senhores. O ambiente social era bastante instvel e com um nvel de conflitualidade elevado. A monarquia detinha insuficientes recursos para disciplinar o grupo senhorial que no raras vezes transferia para o prprio centro pol-tico as rivalidades e tenses que se esgrimiam nas periferias. Ainda longe de procurarem na coroa a arbitragem imparcial, vide judicial, para solu-cionar os conflitos, esforavam-se por controlar os centros de deciso poltica, sem pejo de recorrerem luta armada para a qual mobilizavam tropas nos seus senhorios. Tal situao justifica os confrontos que, de forma mais ou menos aberta, atravessaram boa parte da segunda metade de Quatrocentos e onde a coroa participou ao lado de um ou de outro grupo nobilirquico, fenmeno que no se repetiria nos sculos ulterio-res. Mas a expanso das reas de jurisdio resultou tambm de estratgi-cos arranjos matrimoniais onde o rei pouco interferia. Alianas que, para mais, consolidavam cumplicidades entre grandes senhores e que no raras vezes foram accionadas nos conflitos internos do grupo12.

    Este tipo de comportamento perdeu relevo no sculo XVI, em resul-tado da aco combinada da maior fiscalizao da monarquia sobre os mecanismos de reproduo biolgica e social do grupo nobilirquico e da acumulao de recursos acompanhada por uma maior distribuio de mercs, nomeadamente nas conquistas. Como j foi referido, este aumento da capacidade distributiva da coroa permitiu o reforo dos sis-temas de representao da monarquia atravs do desenvolvimento da cor-te e da administrao central e foi acompanhado pelo alargamento das necessidades de servio poltico e militar ultramarinos. Tais factos tive-ram consequncias demogrficas positivas ao nvel do conjunto do gru-po, embora haja significativas diferenas na hierarquia social por sector de servio monarquia.

    Assim se o processo expansionista atraiu os segmentos inferiores da nobreza, foi incapaz de cativar a principal fidalguia do reino. Para estes os servios e os cargos mais honrosos continuavam a ter lugar na corte e os senhorios jurisdicionais no reino permaneciam o principal vector de poder e de distino social. Poucos fugiram a esta regra, porque poucos tiveram a capacidade de ascender fulgurantemente atravs da guerra e da

    12 Rita Costa GOMES, A corte dos reis de Portugal no final da Idade Mdia, Lisboa,

    1995; Mafalda Soares da CUNHA, Linhagem, Parentesco e Poder. A Casa de Bra-gana (1384-1483), Lisboa, 1990; Miguel Jasmins RODRIGUES, Organizao dos Poderes e Estrutura Social. A Madeira: 1460-1521, Cascais, 1996; Lus Filipe OLIVEIRA, A Casa dos Coutinhos. Linhagem, Espao e Poder (1360-1452), Cas-cais, 1999.

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    administrao ultramarina. Exemplos dessas excepes so as linhagens dos Meneses com Ceuta, as razias, o patrocnio da pequena nobreza e o ttulo de conde de Vila Real e dos Gonalves da Cmara com a capitania do Funchal, a boa fortuna aucareira e mais tarde os ttulos de conde da Calheta e de conde de Vila Franca ou ainda de Vasco da Gama com o descobrimento do caminho martimo para a ndia, as redes comerciais indianas, a compra do senhorio da Vidigueira a que se seguiu a outorga rgia do mesmo ttulo condal. Pouco significativo, sobretudo quando se analisam as trajectrias daqueles que, desde o incio da 2 dinastia, ascenderam titulao e detinham ou foram agraciados com senhorios jurisdicionais e/ou com ofcios palatinos superiores.

    Embora, e como se disse, os titulares ainda no coincidissem com a elite do grupo nobilirquico, importa sublinhar que s um nmero rela-tivamente restrito de linhagens ascenderam titulao durante a dinastia de Avis que se pautou por uma prtica de outorga ou renovao de ttu-los extremamente sbria (em 1580 eram apenas 19 as casas titulares). Em contraste, Filipe II inaugurou uma prtica bastante mais generosa, qual Filipe III e, sobretudo, Filipe IV deram continuidade. Em termos quanti-tativos o nmero de casas titulares era quase o triplo em 1640 (55).

    No que respeita, porm, aos servios invocados para a doao de novos ttulos verificou-se uma notvel continuidade at 1640. Assim se a maioria dos novos titulares ao longo de todo este perodo eram no ape-nas fidalgos, como membros grupos familiares com enraizamento senho-rial anterior crise de 1383-85 (detentores de senhorios e alcaidarias--mores com forte implantao regional), os principais servios remunerados ao longo do sculo XV e XVI foram os feitos militares no Norte de frica e os desempenhos administrativos no centro e na corte rgia13. Ser todavia importante sublinhar que o arranque, ou ressurgi-mento, de algumas destas linhagens se devera no ao valimento directo monarquia, mas proteco das casas dos prncipes e infantes (casas de Vila Real, de Monsanto, de Portalegre, de Castanheira e de Sortelha),

    13 Anselmo Braamcamp FREIRE, Brases da Sala de Sintra, 3 vols., Lisboa, 1983.

    Para a titulao na segunda dinastia ver Lus Filipe OLIVEIRA e Miguel Jasmins RODRIGUES, Um Processo de Reestruturao do Domnio Social da Nobreza. A Titulao na 2 Dinastia, Revista de Histria Econmica e Social, n. 22, 1988, pp. 77-114 e especificamente com D. Joo III, Jean AUBIN, La noblesse titr sous D. Joo III, Arquivos do Centro Cultural Portugus, vol. XXVI, pp. 417--432. Para o perodo filipino Mafalda Soares da CUNHA, Ttulos portugueses y matrimonios mixtos en la Monarqua Catlica in Bartolom YUN CASALILLA (coord.), Las redes del Imperio. lites sociales en la articulacin de la Monarqua Hispnica, 1492-1714, Madrid, 2009, pp. 205-232. Cf. ainda Joo Paulo SAL-VADO, Nobreza, Monarquia e Imprio. A casa senhorial dos almotacs-mores do Re-ino (sculos XVI-XVIII), dissert. Doutoramento, FCSH-UNL, 2009 (mimeo).

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    comprovando a relevncia das relaes de confiana pessoal dentro do grupo na organizao do poder. J a titulao de dois outros conjuntos de fidalgos decorreu directamente do patrocnio rgio: uns em resultado das necessidades de equilbrio entre faces cortess (condes de Linhares, Prado, Torres Novas e Ferreira14), factor que, em sentido contrrio, tam-bm justificou o no encarte em sucessores de ttulos (condes de Tarou-ca, Vila Nova de Portimo, Monsanto, Penela, Sortelha); e outros porque retiraram dividendos directos de carreiras poltico-administrativas (baro de Alvito e condes de Abrantes, Vila Nova de Portimo, Sabugal e Ida-nha). Outros ainda, de conjunturas polticas especficas, com particular destaque para o surto de titulaes de Filipe II em que se pagaram os ser-vios causa e casa dos ustria, agraciando linhagens fidalgas com visi-bilidade bastante mais recente (conde de Sabugal, Idanha, Castelo Rodrigo, S. Joo da Pesqueira)15. Em sntese, uma monarquia que soube-ra impor um acesso muito limitado ao topo da pirmide nobilirquica (que se associava ao ttulo ducal) e conseguia j arbitrar um espao social ainda fluido e que se pautava por uma grande disputa poltica e instabili-dade nos escales imediatos (ttulo condal, sobretudo).

    Quanto aos detentores ou beneficiados com senhorios jurisdicionais, o maior nmero de doaes rgias foi feito no sculo XV, sobretudo no in-cio, na sequncia da implantao da dinastia de Avis. Mas nem todos os donatrios de ento vieram a ser agraciados com ttulos nobilirquicos, como o caso das linhagens dos Azevedos, Coelhos, Cunhas, Cabrais, Lemos, Teixeiras, Sampaios e Melo, etc.16. Deve, porm, sublinhar-se que as habilidosas alianas matrimoniais que foram entretecidas ao longo dessa centria pelos senhores de terras geraram uma aprecivel concentrao de senhorios jurisdicionais que beneficiaram casas j tituladas ou que alcana-ram a titulao. Na centria de Quinhentos e incios de Seiscentos esta tendncia para a concentrao de poder na periferia como fundamento social para a aquisio de um ttulo de nobreza (conde, quase sempre) man-teve-se, beneficiando, desta vez, fidalgos-cortesos eminentes, atravs de 14 Incluem-se aqui a titulao de duque de Torres Novas do sucessor da casa de

    Coimbra, resultado da exigncia de D. Jorge, por analogia com o ttulo de duque de Barcelos do herdeiro dos Bragana e o acrescentamento ao marquesado de Fer-reira do conde de Tentgal (de varonia Bragana, como se sabe).

    15 Alguns destes titulares os repetidos antes dos servios prestados em 1580, dis-tinguiram-se por eminentes carreiras poltico-administrativas. Mas anteriormente podem apontar-se os casos concretos de Nuno lvares Pereira, em 1385, o surto de titulaes posterior a Toro ou o conde de Borba (futuro Redondo) nas conspi-raes de 1483-84.

    16 Para uma lista completa da situao das terras com autonomia jurisdicional at mea-dos do sculo XVII cf. Antnio Manuel HESPANHA As Vsperas do Leviathan. Insti-tuies e Poder Poltico. Portugal sc. XVII, vol. II, ed. autor, s/d, pp. 9-198.

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    estratgicas alianas matrimoniais e do acesso a heranas que eram caucio-nados politicamente pela coroa, atravs da dispensa da Lei Mental.

    Por fim de realar que ao longo de todo o sculo XVI as maiores casas senhoriais como as dos prncipes, das rainhas e dos infantes ou as de Bragana, de Aveiro e de Vila Real porque controlavam extensos ter-ritrios, detinham cortes prprias com nmero de moradores aprecivel, criaram um extenso leque de oportunidades de servio palatino e na administrao perifrica (judicial, fiscal e militar) o que tambm contri-buiu para a abertura e maior mobilidade dentro do grupo nobilirquico assim constituindo essas grandes casas em plos de redes que pressiona-vam a monarquia para a concesso de cargos e mercs a criaturas suas. O nvel de interveno poltica directa no centro por parte dos seus titulares era, no entanto, relativamente baixo, at porque, em muitos casos, o que dominava os seus quotidianos era ausncia da corte rgia. Veja-se o conhecido caso dos Bragana, dos Vila Real ou dos Aveiro mas tambm daqueles muitos que nas vsperas de 1580 viviam nas suas terras como so os casos dos marqueses de Ferreira que residiam em gua de Peixes grande parte do ano, dos bares de Alvito em Alvito, do alcaide-mor de Beja, D. Lus de Sousa, em Beja17. Tais evidncias podem assim contri-buir para refutar a ideia que tem feito curso de as cortes da aldeia ou de a residncia fora de Lisboa serem uma das reaces nacionalistas da principal fidalguia portuguesa agregao de Portugal Monarquia His-pnica. Na realidade, antes e depois de 1580, o que, para essas casas ou importante fidalguia, mais importava era a preservao das fontes e das bases do poder senhorial e no tanto a disputa poltica no centro que estava cometida a servidores com menor pedigree e menos recursos e, por-tanto, mais necessitados de servir o rei e dele obter novas mercs.

    b) 1640-1750

    O perodo que vai de 1640 at aproximadamente meados do sculo XVIII pode ser facilmente delimitado em funo de alguns critrios essenciais que claramente demarcam o Portugal Restaurado do que o antecedeu. A relativa eroso do poder territorial da alta nobreza e a sua recomposio e transformao numa elite de corte, concentrada em Lis-boa, e com um peso relevante no sistema polissinodal da monarquia res-taurada , certamente, um dos mais decisivos.

    Embora os contorno da elite titular se tenham comeado a desenhar no perodo da monarquia dual, existiu uma pronunciada ruptura com a Restaurao, pelo que em larga medida se pode falar de um processo reto- 17 Antnio Caetano de SOUSA, Histria Genealgica da Casa Real Portuguesa, tomo

    X, Coimbra, [1743] 1953; Francisco de Sales LOUREIRO, Uma Jornada ao Alen-tejo e ao Algarve, Lisboa, 1984, pp. 77-136.

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  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 59

    mado em novos moldes. O nmero total de casas atingido em 1640, pas-sando das cerca de duas dezenas existentes no incio de seiscentos para mais de meia centena, manter-se- praticamente estvel at ltima dcada do sculo XVIII. No entanto, pouco menos de metade das casas titulares por-tuguesas desapareceram entre 1640 e 1670, na maior parte dos casos por razes de opo poltica18, entre estas se incluindo algumas das maiores e mais importantes ento existentes. De facto, foram sendo substitudas pela elevao simultnea de outras tantas, recrutadas sobretudo entre os conspi-radores de Lisboa de 1640 (os chamados Restauradores) mantendo-se o grupo muito estvel desde cerca de 1670 at praticamente ao sculo XIX. O fim da Guerra da Restaurao (1668) representou, assim, um momento nico no que se refere estabilidade na composio da elite titular da monarquia19. O processo de constituio da elite titular da nova dinastia de Bragana coincidiu com a transferncia das respectivas residncias para a corte. No fim do terceiro quartel de seiscentos a mudana foi radical em relao ao que ocorria no incio do sculo: todos os titulares bem como a maioria dos senhores de terras e comendadores, residiam em Lisboa. Nos finais do sculo XVII, em geral, quando se fala da fidalguia como grupo, quer-se designar em primeiro lugar a primeira nobreza da corte, que em boa medida j se confundia com os titulares. Ao mesmo tempo, o topo da pirmide nobilirquica tornar-se- muito mais reduzido. E, claro est, as possibilidades de a ascender mais remotas.

    Quanto evoluo poltica e institucional, passada a conjuntura imediatamente ulterior Restaurao, o pluralismo poltico e institucio-nal diminuiu claramente no Portugal Barroco. A diferenciao entre a Corte e as provncias parece adquirir, em todos os terrenos, uma dimen-so sem precedentes. Depois de 1640, a coroa portuguesa no teve pela frente, ao contrrio de outras monarquias europeias contemporneas, o desafio constitudo por slidas instituies com forte cunho territorial ou por uma grande nobreza fortemente territorializada. Praticamente todos os corpos institucionais relevantes se localizavam em Lisboa e eram abrangidos pelas malhas da sociedade de corte. Os contrapontos do cen-tro situavam-se numa escala restrita, eram os poderes locais e sobretudo municipais. Tanto mais que uma outra marca caracterstica e distintiva do perodo ps-Restaurao foi, como se destacou, a eroso dos poderes senhoriais, que perderam importncia em termos quantitativos, mas tambm qualitativos. Entre 1640 e o incio do sculo XIX, verifica-se 18 De entre as casas que no desapareceram, diversas foram recreadas ou renovadas

    em ramos ou geraes distintos daqueles que antes as detinham, apesar dos seus representantes terem reconhecido durante a Restaurao os Habsburgos como reis de Portugal (caso do duque de Aveiro e dos condes de Castanheira e de Tarouca, entre outros).

    19 Nuno Gonalo MONTEIRO, O Crepsculo dos Grandes..., opus cit., pp. 34 e ss.

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    uma diminuio bastante significativa do nmero de terras sujeitas ao senhorio jurisdicional leigo20.

    Depois de 1640, no centro da monarquia que se configura a disputa poltica. O novo equilbrio dos poderes no centro no deixa de apresentar algumas semelhanas com o da Espanha dos ltimos ustrias, em particu-lar, de Carlos II. Apesar de as Cortes se terem reunido depois de 1640 com muito mais frequncia do que no sculo e meio antecedente, a sua convo-cao foi-se espaando cada vez mais. E, como se recorda em estudo sobre as mesmas, a poltica seguiu a partir do ltimos anos do sculo XVII em Portugal um estilo de governao que apontava para a concentrao da capacidade decisria e para a restrio do grupo dirigente21. Depois da convocao de 1697, as Cortes no mais se voltaro a reunir ao longo do sculo XVIII. O modelo de funcionamento retomado o governo dos conselhos (tribunais) cujo centro o Conselho de Estado onde se prepa-ram todas as decises sobre matrias politicamente importantes, incluindo os processos e consultas relevantes que vinham de outros conselhos. No seio deste sistema polisinodal, pontificam, a par da alta nobreza, os buro-cratas, os magistrados e algum clero. Mas em posies distintas. Estes mar-cam presena nos diversos conselhos e na Secretaria de Estado que ento, apenas a do Conselho de Estado. Os Grandes do reino, por seu turno, absorvem as presidncias dos tribunais e, tirando certos perodos, como o do valido conde de Castelo Melhor (1662-1667), constituem-se em centro da deciso poltica pelo facto de monopolizarem o Conselho de Estado. Por isso, mais tarde, algumas vezes se descreveu Portugal em finais do scu-lo XVII como uma repblica aristocrtica.

    Tudo isso comea a mudar, embora de forma incompleta, durante o reinado de D. Joo V (1706-1750). Redefinidas as hierarquias na socie-dade de corte pela recentragem da mesma na capela real feita Patriarcal, o Conselho de Estado vai entrar num longo estertor e deixa de se reunir nos anos vinte. Em 1736, sob notria influncia da dinastia bourbnica, criam-se trs secretarias de Estado. Mas, na verdade, elas no se tornam o centro da deciso poltica, pois o rei decide com quem quer, margem dos rgos formais de deciso poltica. O sistema polissinodal j est, em parte, perturbado. Mas o sistema ministerial, criado no papel, ainda no o substituiu22.

    20 Bem ilustrado pelas vicissitudes dos clientes das casas senhoriais, designadamente

    de Aveiro, no municpio rgio de Coimbra, como provou Srgio Cunha SOA-RES, O municpio de Coimbra da Restaurao ao Pombalismo, vol. 2, Coimbra, 2004, pp. 331-394.

    21 Pedro CARDIM, As Cortes e Cultura Poltica no Portugal do Antigo Regime, Edi-es Cosmos, Lisboa, 1998, p. 92.

    22 Baseado em Nuno Gonalo MONTEIRO, Identificao da poltica setecentista.

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    PatriciaSticky NoteEsse cenrio se precipita em face do terremoto ou no?

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  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 61

    c) 1750-1807

    O ltimo perodo a considerar (1750-1807) marcado, assim, pela afirmao do sistema ministerial. De permeio teve lugar o enorme terra-moto poltico, sequncia do terramoto natural de 1755, representado pelo perodo do valimento de Sebastio Jos de Carvalho e Melo, futuro marqus de Pombal. De facto, o terramoto de 1755 inaugurou uma con-vulso mais ou menos contnua, que se prolongou por uma meia dzia de anos. Num duplo e indissocivel sentido, na medida em que no s se traduziu num fortalecimento do poder pessoal de Carvalho, como repre-sentou, simultaneamente, um enorme alastramento da esfera de inter-veno do Estado (a emergncia do Estado Polcia) com a definitiva afirmao das Secretarias de Estado, ou seja, do governo, enquanto cen-tro da deciso poltica.

    Nos meses seguintes ao Terramoto, Carvalho, formalmente apenas secretrio de Estado da Guerra e Negcios Estrangeiros, que nos momen-tos posteriores ao terramoto se acercou da pessoa fsica do rei, passou a controlar todos os numerosos despachos que o rei foi assinando a partir da Real Barraca armada junto de Belm. A convulso poltica permanen-te, que teve um momento emblemtico no atentado perpetrado contra a carruagem em que seguia o rei D. Jos em Setembro de 1758 e no tre-mendo suplcio infligido em 1759 a alguns dos principais fidalgos do rei-no nele inculpados (o duque de Aveiro, o conde de Atouguia, o marqus e a marquesa de Tvora e dois dos seus filhos) e na priso de muitos outros, traduziu-se num reforo sem precedentes do poder de Carvalho. Nunca foi formalmente investido no ofcio inexistente de primeiro--ministro, apenas no de secretrio de Estado do Reino (1756), mas pas-sou a gozar de um grande ascendente sobre os outros dois (do Ultramar e dos Estrangeiros). Na verdade, as Secretarias de Estado tenderam a des-pojar os conselhos das suas competncias ou a control-los politicamente atravs da sua decapitao e da nomeao de magistrados sintonizados com o gabinete. A esse respeito, uma fonte da poca descreve do expe-diente que usavam os 14 tribunais desta corte e de como Sebastio Jos foi debilitando a jurisdio de todos. Esse processo correspondeu tam-bm a uma declnio do poder dos Grandes no centro, j fortemente diminudo durante o reinado joanino com o apagamento do Conselho de Estado. Curiosamente, este Conselho supremo foi recriado em 1761, mas os secretrios de Estado passaram a integr-lo por inerncia; acresce

    Notas sobre Portugal no incio do perodo joanino, Anlise Social, n.o 157, 2001, pp. 961-987; cf., ainda, Lus Ferrand de ALMEIDA, O Absolutismo de D. Joo V, in Pginas dispersas. Estudos de histria moderna de Portugal, Coimbra, 1995, pp. 183-207.

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    PatriciaSticky NoteAt que ponto Pombal utiliza o terremoto como justificativa para fortalecer e alargar a esfera de interveno do Estado, entendido como centro da deciso poltica?

  • 62 Sociedade, Famlia e Poder na Pennsula Ibrica

    que s foi convocado em certos momentos e que os restantes membros nunca se constituram em barreira sistemtica s pretenses de Carvalho. Este foi elevado titulao e com a grandeza que era inerente ao ttulo de conde de Oeiras (1761), uma imensa novidade do seu despacho. Pela primeira vez, um secretrio de Estado era feito Grande do Reino. A afir-mao poltica e institucional da supremacia do governo tinha agora uma outra expresso. E confundia-se com a consagrao pessoal de Sebastio Jos, ou, mais exactamente, da sua casa.

    Curiosamente, durante o reinado de D. Jos (1750-1777), apesar da supresso de casas titulares por causa do atentado, nem o seu nmero cresceu de forma notria, nem as mesmas perderam totalmente o seu papel na administrao central. Numa monarquia na qual no se ven-diam ttulos, criaram-se nesses anos 11 casas, tendo desaparecido 9, pelo que existiam em 1777 ao todo apenas 49, nestas se incluindo a do todo poderoso secretrio de Estado (marqus de Pombal desde 1770) e dos seu filho secundognito (conde da Redinha). Os membros da nobreza titular e da primeira nobreza da corte, na qual se devem incluir os filhos segun-dos dos titulares, perderam durante o reinado boa parte das presidncias dos tribunais, viram diminuir o seu peso na diplomacia e comearam a ser menos hegemnicos no alto clero. Mas mantiveram uma clara pre-ponderncia no exrcito (onde os postos de chefia apenas lhes foram dis-putados por estrangeiros) e nos governos coloniais (vice-reinados da ndia e do Brasil, governos das capitanias principais do Atlntico), nos quais reforaram a sua posio largamente dominante23.

    A queda de Pombal em 1777, quando comeou a reinar D. Maria I (1777-1816), marcou uma mudana que ficou conhecida pela Viradeira. De facto, durante o reinado anterior, com diversos pretextos, adiaram-se despachos, bloquearam-se os encartes nos ttulos, nos bens da coroa (senhorios), nas comendas (em 1777 estavam vagas pouco menos de metade das cerca de 600 existentes), etc., durante um nmero varivel de anos, atingindo-se com isso as muitas grandes casas que se opunham ao ministro. Com a queda de Pombal foi desencadeada uma espectacular inverso na orientao da poltica de mercs do anterior reinado, despa-chando-se, nos meses seguintes, as grandes casas aristocrticas nos ttulos e bens da coroa e ordens de que usufruam antes, e nos quais no tinham sido encartadas. Se, o governo s foi parcialmente mudado, a presena de duas destacadas figuras aristocrticas por nascimento (marqus de Ange-ja e futuro de Ponte de Lima) no mesmo era vista como um indicador da viragem da situao.

    No entanto, se as grandes casas viram restabelecido o seu patrimnio

    23 Baseado em Nuno Gonalo MONTEIRO, D. Jos, na sombra de Pombal, 2 ed.

    revista, Lisboa, 2008.

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  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 63

    em bens da coroa e senhorios, nunca mais voltaram a recuperar o poder poltico no centro que haviam detido no incio do sculo XVIII. Com efeito, modelo de governo antes esboado no se iria alterar. Uma das marcas do reinado de D. Maria seria a inexistncia de primeiro--ministro ou sequer de qualquer personagem politicamente dominante de forma continuada. Tal figura fora formal e politicamente condenada depois da queda de Pombal, e nunca os ministros assistentes ao despa-cho tiveram esse perfil. Apesar do relanamento do Conselho de Estado em 1796, este no s integrava os secretrios de Estado, como nunca se substituiu a estes enquanto plo central da deciso poltica, embora fosse sempre convocado. De facto, nesse ponto no se voltou para trs, pois, como se afirma numa memria manuscrita datada de 1803, com a mul-tiplicao dos secretrios de Estado se alterou a forma do governo, e que em lugar de se aperfeioar, se multiplica e se fez mais dificultosa () At ao tempo do Marqus de Pombal foram simplesmente uns canais por onde subiam os negcios presena do Soberano, presentemente so tudo () Com esta trincheira de criaturas revestidas dautoridade, passa--se a tudo, adquirem-se honras, e riquezas, quartam-se as aladas dos Tribunais, forjam-se Leis Novas, desprezam-se as antigas, alteram-se todas as formalidades () segue-se o despotismo Ministerial, que o maior flagelo dos Povos24. Na mesma memria se defendia que o ofcio de secretrio de estado fosse trienalenquanto os membros do Conselho de Estado deveriam ser vitalcios e recrutados apenas na Grandeza! No entanto, o despotismo ministerial no iria desaparecer. O centro de deciso poltica mudara definitivamente na monarquia.

    4. Diferentes modelos e diversas formas de organizao familiar. A efi-ccia da utilizao de recursos e frmulas constantes.

    O acrescentamento das grandes casas aristocrticas constitua um desgnio assumido pelos grupos aristocrticos nos sculos XVII e XVIII. Tal objectivo pressupunha que a casa existisse, com a sua panplia de smbolos, bens, memrias prprias, etc., o que implicou a aceitao de uma disciplina rgida, que sacrificava os destinos individuais, em prol dos da casa. Implicava igualmente que a coroa aceitasse o pacto tcito com as grandes casas, atribuindo-lhes, em cada gerao, os ofcios, honras e ren-das que garantiam a sua perpetuao. O sistema pautava-se, pois, por uma enorme circularidade e, como se sugeriu, excluindo o perodo de Pombal, como tal aconteceu quase sempre durante a dinastia de Bragan- 24 Marqus de Alorna, Memrias polticas (apresentao de J. NORTON), Lisboa,

    2008, pp. 89-92; ao contrrio do que se indica nesta edio, provvel que o manuscrito tenha sido escrito pelo 6 conde de So Loureno.

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  • 64 Sociedade, Famlia e Poder na Pennsula Ibrica

    a (1640-1808). Ora, uma vez que os recursos no eram elsticos, a manuteno das grandes casas significava limites para o nmero daqueles que podiam ascender a posies sociais similares.

    Nesse sentido, ao invs de se caminhar, de acordo com um paradigma evolucionista corrente, em direco a uma maior abertura, pode dizer-se que as tendncias a longo prazo funcionaram em sentido inverso. As opor-tunidades de ascenso atravs da poltica, embora nunca tenham desapare-cido, foram certamente maiores na viragem do sculo XV para o XVI do que dois sculos mais tarde. No sculo XVI, quando os grandes senhores ainda pontificavam e residiam muitas vezes fora da corte, a presena nos crculos curiais de Lisboa ou da itinerncia rgia abria as portas ascenso a fidalgos de provncia ou de linhagem menos destacada, bem como a juris-tas e mercadores enobrecidos. Depois de 1640/1668 todos os grandes senhores se deslocaram para o centro e cristalizaram-se os signos de distin-o! Havia menos oportunidades para os novos, embora elas existissem.

    As trajectrias de mobilidade ascendente ao longo destes quatro sculos assentavam em variados modelos de reproduo social que se prendem, porm e sempre, com a gesto dos recursos familiares. Muitas delas passavam, numa primeira fase, pelo investimento em vrios filhos, ou nas filhas. O exerccio de cargos polticos, porque quem os desempe-nhavam tendia a ser remunerado, foi sempre a forma mais consistente de ascenso social, mesmo para os que j tinham acumulado riqueza, pois os ofcios nobilitantes no topo s se venderam de forma muito limitada.

    , pois, a ligao entre trajectrias de mobilidade e o exerccio de funes polticas que vamos discutir. Todavia e uma vez que se reconhe-cem mutaes de longa durao sobre as formas de interveno da coroa na construo das hierarquias dentro do grupo nobilirquico, optmos pela sua anlise em distintas cronologias. Exclumos as trajectrias impe-riais, pelo facto de as mesmas revestirem traos especficos, mas integra-remos o tpico na anlise.

    a) Sculos XV 1640

    Como se referiu anteriormente, a aplicao dos dispositivos institu-cionais criados pela monarquia vai configurando de forma lenta o espao social da aristocracia o que tem como principal efeito a maior fluidez e a coexistncia de distintos modelos de mobilidade e de reproduo da aris-tocracia ao longo destes dois sculos e meio.

    Neste quadro, parece claro que a questo se deve balizar em torno de duas ou trs variveis cuja combinao resultava na aplicao de frmulas distintas no que respeita quer s estratgias matrimoniais quer s prticas de heranas. Na base desta formalizao est o princpio de que a estrat-gia de cada grupo familiar visava a maximizao dos recursos disponveis

  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 65

    num espao social que estava enformado por constrangimentos legais e ideolgicos que eram conhecidos por todos os actores.

    No que respeita a partilha de bens parece que a situao variava em funo da situao concreta de cada grupo familiar. O mesmo dizer que dependia de o grupo familiar estar em fase de implantao de trajectrias ascendentes ou num momento de consolidao de posies adquiridas. No primeiro caso, as estratgias abrangiam a totalidade dos seus mem-bros, o que quer dizer que se tendia a dar estado e a dividir os recursos pelos descendentes. As formas de o fazer eram, porm, variadas. Podiam ser aplicados a) em dotes matrimoniais, normalmente assegurando hiper-gamia feminina, o que se repercutia em nveis de nupcialidade elevados; b) na criao de vnculos para secundognitos ou descendentes femini-nas; c) na transmisso de cargos de juro e herdade e d) de comendas25 para filhos segundos. Quando a posio do grupo familiar adquiria uma certa dimenso e se estabilizava esta tendncia alterou-se e comeou a sobrelevar a tendncia para a reproduo concentrada em torno de um nico sucessor, procurando-se ento uma coincidncia na transmisso dos bens da coroa e dos bens vinculares com marginalizao de uma par-te significativa dos descendentes do estado matrimonial. Entre estes modelos mais extremados evidente que pontua a plasticidade entre as opes possveis. O que importa reforar e se verificar pelos exemplos de seguida apontados a existncia de um espao social mais aberto e mais concorrencial no acesso ao topo da hierarquia nobilirquica do que aquele que vir a caracterizar o modelo praticado durante a dinastia de Bragana.

    Seleccionaram-se, por isso, quatro casos de mobilidade ascendente com variedade de pontos de partida e de trajectrias. Em comum tm, no entanto, a importncia do servio poltico no reino, o relevo conferido territorializao do seu poder e a habilidade com que desenharam as estratgias matrimoniais. Se o factor contingente no pode ser iludido, o que convir ressaltar a pluralidade de instrumentos e de hipteses dis-ponveis para os actores sociais que se traduzem numa razovel capacida-de de adaptao s circunstncias.

    O bem sucedido percurso dos grupos familiar dos Lobo da Silveira e dos Carneiro (um para o sculo XV outro para o XVI) revela as boas hipteses que servidores no fidalgos encontravam no servio poltico--administrativo central. Oriundo de um meio familiar associado magis-tratura e presena fsica na corte, o doutor Joo Fernandes da Silveira conseguiu prestgio bastante para contrair matrimnio com uma filha D. Maria Sousa Lobo de um grupo fidalgo (os Lobo) com implantao jurisdicional no Alentejo. O senhorio obtido quatro geraes antes, con- 25 Agradecemos a Fernanda Olival a informao relativa s comendas.

  • 66 Sociedade, Famlia e Poder na Pennsula Ibrica

    vertendo Rui Lopes Lobo no 1 senhor de Alvito, resultara de mercs rgias que pagaram feitos militares na crise de 1383-85. A casa detinha um historial relativamente modesto, com um perfil marcadamente regio-nal em que as alianas matrimoniais privilegiaram detentores de alcaida-rias mores alentejanas e as redes a clientela do que viria a ser o ducado de Bragana. Acasos fizeram com que os trs filhos do 3 senhor de Alvito morressem precocemente e sem descendncia, pelo que no incio da dcada de 1470 foi-lhe concedida a merc de os bens da coroa serem herdados pela sua filha mais velha que j ento era casada e com descen-dncia, a citada D. Maria. Ou seja, se h uma dimenso acidental em esta herana ter recado numa linha feminina que partida estava exclu-da do acesso sucesso em bens da Coroa, o certo que entre a fidalguia provincial havia a preocupao de dar estado primeiro s filhas que aos filhos, j que as outras duas irms tambm se casaram e dos trs rapazes s de um h notcia de matrimnio. Aos feitos jurdicos do Dr. Joo Fer-nandes da Silveira deveu, depois, a casa ser elevada a baronia de Alvito (1475). A poltica de intenso investimento em alianas matrimoniais foi prosseguida nas duas geraes seguintes, dando estado matrimonial res-pectivamente a quatro dos seis filhos do 1 baro e aos 12 que o 2 baro engendrou (um dos quais bastardo). Nupcialidade particularmente ele-vada, em que sobressai a tendncia para as unies com fidalguia cortes e at titular. O que significa uma prtica deliberada de insero em redes sociais cortess, onde avultam grupos familiares destacados na poltica de ento, como os Atade (Castanheira) ou os Sousa (Prado). Se a linha primognita manteve o apelido Lobo associado herana jurisdicional, os secundognitos repescaram outros apelidos familiares (Sousa e Silvei-ra) com o objectivo claro de emanciparem as linhas segundas, pelo que adoptaram comportamentos reprodutivos similares aos aqui descritos. Estabilizada a linha primognita, com o 4 baro, baixou o nmero de casamentos dos descendentes, concentrando num sucessor o grosso da herana familiar26.

    A trajectria de Pedro de Alcova Carneiro no deixa de constituir um exemplo quase limite da explorao mxima das oportunidades de ascenso social nos meandros da poltica cortes. O caso est particular-mente bem documentado pela singularidade de ele prprio ter deixado relato das diversas etapas e processos do seu fulgurante percurso27. As

    26 Anselmo Braamcamp FREIRE, Brases da Sala de Sintra, opus cit., vol. III. 27 Relaes de Pero de Alcova Carneiro Conde da Idanha(1515-1568), Ernesto de

    Campos de ANDRADA (ed.), Lisboa, 1937 e Manuel Jos da Costa Felgueiras GAYO, Nobilirio de Famlias de Portugal, tomo III, Braga. Carneiros. Cf. ainda o estudo de Pedro de BRITO, Patriciado Urbano Quinhentista: as famlias dominan-tes do Porto, 1500-1580, Porto, 1995.

  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 67

    suas origens familiares paternas os Carneiro estiveram, no sculo XV, ligadas vereao do Porto, embora os seus ascendentes directos se encontrassem j radicados em Lisboa. Como ltimo filho da extensa pro-le do secretrio Antnio Carneiro, Pedro de Alcova teria hipteses reduzidas de aceder por herana a bens ou cargos relevantes. A inverso da situao foi em grande medida fruto de acasos bem explorados pelo astuto benjamim. A habilidade palaciana do jovem Pedro permitiu-lhe ainda captar as graas e boas vontades dos dois arqui-rivais no valimento rgio de ento os condes de Castanheira e do Vimioso. Deles recebeu proteco, apoio pessoal e material. No o esqueceu, mas as suas mem-rias acentuaram o carcter determinante da benevolncia rgia, reconhe-cendo-se como feitura de Sua Alteza e obra das suas mos28. Com efei-to, a proteco rgia traduzira-se em avultadas mercs: comendas, tenas, direitos de importao de especiarias e sobre a sucesso em bens familia-res. Mas o seu posicionamento poltico aps a morte de D. Joo III, apoiando a rainha viva em detrimento do cardeal D. Henrique, afastou--o do centro da poltica activa e criou-lhe, provavelmente, a predisposi-o para aceitar a subida ao trono de Portugal de Filipe II, o que o us-tria logo premiou elevando-o a conde de Idanha. Os seus sucessores no renovaram, porm, o ttulo, nem alcanaram nunca poder e prestgio similar. De qualquer modo, a estratgia de alianas matrimoniais deli-neada por Antnio Carneiro (dos seis filhos legtimos casou cinco) inte-grou logo o grupo familiar nas redes cortess, estratgia que o filho Pedro de Alcova depois tambm seguiu (casou quatro dos cinco filhos), assim integrando o grupo familiar no escalo superior da aristocracia portugue-sa. Com efeito, a neta, herdeira do primognito do 1 conde de Idanha, acabou condessa de Figueir29 e um neto de um ramo secundognito do secretrio obteve, j aps a Restaurao, o ttulo de conde da Ilha do Prncipe.

    Descendente de um ramo segundo da linhagem dos Moura, Crist-vo de Moura desenvolveu uma extraordinariamente bem sucedida estra-tgia matrimonial da sua rede familiar, sombra da influncia poltica adquirida junto de Filipe II. Existem numerosos estudos sobre esta per-sonagem e novos trabalhos em curso auguram relevantes contribuies

    28 Relaes de Pero de Alcova Carneiro Conde da Idanha(1515-1568), opus cit.,

    p. XVII; cf. tambm Felgueiras GAYO, Nobilirio, opus cit., vol. III, tit. Car-neiros.

    29 O ttulo foi outorgado a seu marido Francisco de Vasconcelos, senhor do morga-do de Esporo, mas o ttulo incidiu sobre o senhorio que ela herdara. Anedotas portuguesas e memrias biogrficas da corte quinhentista, Christopher LUND (ed.), Coimbra, 1980, p. 89.

  • 68 Sociedade, Famlia e Poder na Pennsula Ibrica

    sobre a matria30. Neste contexto valer apenas destacar os elementos ful-crais para o tpico em anlise. Desde logo o facto de a linhagem provir de fidalguia antiga, de senhores de terras. No caso, o senhorio de Azam-buja, mas por ramo secundognito. Os laos matrimoniais do av, do pai (D. Lus de Moura) e de uma tia paterna de D. Cristvo estruturaram--se dentro do sistema curial, com particular destaque para as cortes dos infantes. Com efeito, destes trs casamentos, dois realizaram-se com ofi-ciais maiores das casas dos infantes D. Lus e D. Fernando (respectiva-mente a tia D. Guiomar de Moura com um estribeiro de D. Lus e o segundo casamento do pai com uma filha do mordomo-mor de D. Fer-nando, sendo que deteve ele prprio o cargo de estribeiro-mor do infante D. Duarte). So evidncias que servem, assim, para retomar a ideia do importante papel das cortes senhoriais e, em particular, das cortes dos infantes nos processos de mobilidade ascendente da fidalguia menos gra-da. D. Lus de Moura, apesar de muito pobre31, conseguiu consorciar quatro dos seus oito filhos, denotando um comportamento face ao matrimnio dos descendentes j de transio do modelo que se tem vin-do a desenhar. Mas foram os servios prestados e a proximidade a Filipe II que, pela mo de D. Cristvo, catapultaram este ramo segundo dos Mouras da situao de fidalgotes pobres Grandeza. No entremeio D. Cristvo conseguiu estruturar uma slida e abastada rede custa de oportunssimos concertos matrimoniais da sua parentela com herdeiras de casas de senhores de terras (sobretudo dos arquiplagos norte--atlnticos) para quem conseguiu dispensa da Lei Mental. Desde logo para si prprio j que ao unir-se a D. Margarida Corte-Real recebeu uma herana estimada entre 1,6 a 2 contos de reis de renda anual. Mas tam-bm para os dois sobrinhos directos (filhos de duas irms suas), que fez casar com duas sucessoras de senhorios. E ainda promoveu unies em linhagens fidalgas para as suas duas cunhadas Corte-Real e para outras sobrinhas directas! A preeminncia adquirida no campo poltico, que o fizera primeiro conde e depois marqus de Castelo Rodrigo com Grande-za e garantira o ttulo de conde de Lumiares ao seu sucessor, repercutiu--se de forma ainda mais evidente no destino que assegurou aos trs filhos. Ao primognito casou-o com uma filha do conde de Tentgal / marqus de Ferreira, uma das filhas com o 1 marqus de Gouveia e a outra, em 1610, com D. Afonso de Portugal, futuro 5 conde de Vimioso. Alegam,

    30 o caso do projecto de ps-doutoramento de Santiago Martnez em curso no

    CHAM-FCSH e de trabalhos em curso por Joo Paulo Salvado. 31 Assim referido na anedota XCII que traa uma smula biogrfica do seu primo-

    gnito, D. Cristvo de Moura, descrito em criana a brincar nas salas do pai rotozinho e descalo, Anedotas portuguesas e memrias biogrficas, opus cit., p. 147.

  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 69

    de resto, alguns autores que a recuperao da casa dos Vimioso em 1619, que estava confiscada desde a participao do tio deste D. Afonso na aven-tura promovida pelo Prior do Crato, se deveu intermediao das relaes familiares dos Moura32. De rotozinho e descalo em criana, D. Crist-vo ascendeu ao cume da pirmide nobilirquica onde conseguiu integrar toda a sua descendncia, embora depois de 1640 a sua casa s continuasse em Castela. Ou seja, a casa dos Moura elevara-se pela poltica e foi tambm em resultado dela que a casa ruiu em Portugal.

    O percurso ascensional do grupo dos fidalgos conjurados em 1640 revela, em novo contexto poltico, o que se pode designar com um ver-dadeiro assalto ao poder poltico e com ele a captao das mais altas dis-tines e honras da monarquia. Sem querer repetir o que j foi circuns-tanciadamente descrito33, merece to s sublinhar-se que este grupo, maioritariamente oriundo de uma fidalguia intermdia ou, em menor grau, de quadros ligados administrao da casa ducal de Bragana, pelos servios realizados na ruptura e no aps 1 de Dezembro, conseguiu obter de D. Joo IV uma serie cargos e mercs (na corte, na guerra e/ou na alta administrao) que lhe garantiu indiscutvel preeminncia no Portugal Restaurado. Concomitantemente, a identidade deste grupo dos aclamadores reforou-se durante o reinado de D. Joo IV atravs de casamentos endogmicos ou, ento, de casamentos cruzados com mem-bros de linhagens e casas titulares antigas. O resultado final espelhou-se na significativa recomposio da elite titular em benefcio deste grupo, j que em 1670, 15 casas titulares eram identificveis com membros da rede dos aclamadores ou dos seus sucessores directos. Constituam, poca, 30% das casas titulares existentes em Portugal. Mas mais importante ainda o facto de, a partir de finais do sculo XVII, os titulares portu-gueses terem desenvolvimento um modelo de comportamento e uma relao com a monarquia que praticamente fechou o grupo e o manteve estvel at segunda metade do sculo XVIII.

    b) 1640-1820

    No perodo ps-Restaurao, a grande nobreza de corte e o demais pessoal poltico constituam dois mundos separados do ponto de vista social: os seus padres de comportamento familiar eram diversos e, com algumas excepes, no se casavam entre si. Com efeito, foram muito poucos os filhos segundos de titulares a seguirem a carreira da magistra-

    32 Rocha MARTINS, Os grandes vultos da Restaurao de Portugal, Lisboa, 1940,

    p. 234. 33 Leonor Freire COSTA e Mafalda Soares da CUNHA, D. Joo IV, 1604-1656, Lis-

    boa, 2007, pp. 29-41 e 330-331.

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  • 70 Sociedade, Famlia e Poder na Pennsula Ibrica

    tura e rarssimos os magistrados a casar-se com filhas de titulares34. Neste perodo em Portugal no h nenhum esboo de fuso entre lpe e la robe. Esta foi a regra geral, embora e como sempre se possam enumerar sugestivas excepes.

    De entre o pessoal poltico no nascido na aristocracia, os primeiros a furarem esse crculo fechado, no fundo as tais excepes, foram alguns secretrios de Estado, parte dos quais nem sequer eram juristas. Sublinhe--se, porm, que todos eles (com uma nica excepo, o futuro primeiro cardeal patriarca de Lisboa, D. Toms de Almeida) eram de provenincia exterior aristocracia35.

    O caso mais espectacular no sculo XVII o dos Monteiros, que durante dcadas foram juzes da inconfidncia, algo parecido a chefes da polcia poltica da segunda metade de seiscentos. Verdadeiramente, o primeiro grande personagem desta histria o doutor Pedro Fernandes Monteiro, de quem se diz que era homem de confiana de D. Joo IV e que com ele ter passado a Lisboa; mais tarde desembargador, foi ao lon-go de sucessivos reinados homem de excepcional influncia poltica, juiz da inconfidncia e interveniente em grande parte das disputas polticas da poca (e na criao da Companhia do Comrcio do Brasil), at sua morte ocorrida em 1673. Sobre o seu pai as verses das fontes so con-traditrias, mas sabe-se que era natural da pequena vila alentejana de Monforte e que, na melhor das hipteses, ter sido juiz dos rfos e membro da criadagem da casa de Bragana, eventualmente com o estatu-to de escudeiro. Tinha, pois, origens inquestionavelmente obscuras e as crnicas da poca no poupam Pedro Fernandes, Ministro que de humildes princpios chegou a ocupar os maiores lugares e adquirir fazen-da em cpia, acusando-o de ter injustamente inculpado muitos e de ter feito danos na honra e na fazenda alheia36. Apesar de todas essas insi-nuaes, o seu filho Roque Monteiro Paim, tambm jurista, sucedeu-lhe no ofcio de juiz da inconfidncia, entre outros, e foi personagem da con- 34 Nuno Gonalo MONTEIRO, Poderes e circulao das elites em Portugal: 1640-

    -1820, in Elites e poder entre o Antigo Regime e o Liberalismo, 2 ed., Lisboa, 2007, pp. 125-126.

    35 D. Toms de Almeida (1670-1754), antigo secretrio de Estado, Bispo do Porto e futuro Cardeal, era filho no sucessor do 2 conde de Avintes.

    36 Monstruosidades do tempo e da fortuna, vol. III, Porto, 1938, pp. 51-52; a se afirma que se teria arrependido hora da morte de ter falsamente inculpado Fran-cisco de Lucena e o Conde de Castelo Melhor. Em todo o caso, com a participa-o de alguns colaterais (como Manuel Monteiro de Vasconcelos, guarda-roupa de D. Joo IV, que testou bens a favor da descendncia de seu primo Roque Monteiro) este foi certamente um caso nico antes de Pombal de ascenso dentro da primeira nobreza da dinastia de Bragana de quem no provinha de uma linhagem principal do reino.

  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 71

    fiana de D. Pedro II, chegando a servir interinamente de secretrio de Estado. Interveio, tambm ele, em todas as grandes disputas polticas da poca at sua morte ocorrida em 1704. Acumularam os dois, por doa-o, compra e herana, um impressionante patrimnio em bens de mor-gado e da coroa e ordens, nestes se incluindo os senhorios de Alva e de Vila Cahiz e vrias comendas da Ordem de Cristo37. Tendo falecido o nico filho de Roque Monteiro Paim, a sua filha primognita sucessora conseguiu casar com um secundognito da casa dos condes de Atouguia, depois feito 1 conde de Alva, e, quando se tornou evidente que no teriam sucessores, casou-se a filha imediata com um secundognito da casa dos condes do Redondo, em cuja descendncia se viria a renovar o referido condado (futuros condes de Alva e marqueses de Santa Iria). Uma casa com outra varonia, pois, mas cujo patrimnio tinha sido na sua quase totalidade acumulado no sculo XVII pelos dois referidos polticos.

    Outros secretrios de Estado alcanaram uma significativa ascenso social, mas sem tamanho luzimento. Foi o caso de Diogo de Mendona Corte Real (1658-1736), antigo diplomata como a maior parte destes, interinamente secretrio das Mercs e de Estado durante a Guerra da Sucesso de Espanha e depois, sem interrupes, secretrio de Estado e homem da confiana de D. Joo V entre 1707 e a sua morte. Entre outros comentrios, dizia-se numa fonte de 1714 que este desembargador e antigo enviado diplomtico corte de Madrid era oriundo de uma famlia pouco conhecida do Algarve (...) e, ao que parece, bastante pobre. Nunca se quis casar para no ter de fazer fortuna para os seus filhos38. Na verdade, era filho de desembargador e descendia de uma linhagem fidalga algarvia com alguma prospia39. Mas o maior erro foi o do prog-nstico antes citado. Com efeito, pouco depois do regresso a Lisboa, ago-ra como Patriarca, de D. Toms de Almeida que antes substitura no of-cio de secretrio de Estado, Diogo de Mendona tornou-se seu cunhado (1718), ao casar-se com mais de sessenta anos com uma irm viva e j avantajada nos anos de quem teve, porm, descendncia. No entanto, embora tenha tido um filho bastardo secretrio de Estado da Guerra e Ultramar40 e a casa do seu primognito alcanasse comendas das ordens

    37 Sobre o impressionante patrimnio desta casa, cf. Nuno Gonalo MONTEIRO,

    O crepsculo, pp. 268-271. 38 Nuno Gonalo MONTEIRO, O crepsculo, opus cit., p. 146. 39 Cf. Damio Antnio LEMOS de FARIA e CASTRO, Poltica Moral e Civil, Aula

    da nobreza Lusitana, tomo IV, Lisboa, 1751, pp. 551-577. 40 Quem veio a suceder anos mais tarde a Diogo de Mendona Corte Real no ofcio

    no foi um filho do seu casamento antes referido, mas um filho bastardo hom-nimo do Secretrio de Estado de D. Joo V, que desempenhou vrias misses

  • 72 Sociedade, Famlia e Poder na Pennsula Ibrica

    militares, no chegou a estar na origem de uma casa titular e o seu patri-mnio nunca alcanou o da casa do antes referido Roque Monteiro Paim.

    Outros secretrios de Estado conseguiram casar tambm j em idade avanada com filhas da primeira nobreza. Mas nenhum teve uma ascen-so comparvel de Sebastio Jos de Carvalho e Melo (1699/1782)41. Nascera numa casa fidalga relativamente antiga, contando entre seus ascendentes uma autntica dinastia de desembargadores e muitos paren-tes com relevo. No pertencia, no entanto, primeira nobreza da corte, apesar do pai ter chegado a receber a doao de uma comenda. Primog-nito de uma vasta prole, na qual se destacariam dois dos seus irmos que com ele colaboraram, para alm de vrias irms freiras, no contava a casa chamada dos Carvalhos da Rua Formosa, em Lisboa, seno com um rendimento limitado em bens vinculares e outros, matria que no seria de pouca monta na sua trajectria. Na casa de seu pai, capito de cavalos e genealogista de mritos discutveis, funcionou uma academia literria, antes da morte deste em 1720. No certo que tenha frequentado a Universidade de Coimbra, sendo seguro que foi militar por muito pouco tempo. Com vinte e trs anos casou-se com D. Teresa de Noronha e Bourbon (1689-1739), viva e doze anos mais velha, filha de um filho no sucessor do 3 conde dos Arcos, e da herdeira e senhora donatria de Carvalhais e lhavo. Tendo-se este enlace realizado, segundo alguns, con-tra a vontade dos parentes da noiva, o certo que o casal se retirou por motivos ainda no de todo esclarecidos entre 1723 e 1731 para uma quinta prxima de Pombal. proteco de seu tio, o arcipreste da Patriarcal e desembargador ter ficado a dever o ingresso em 1733 na Real Academia de Histria. Sem quaisquer servios anteriores monar-quia, o que de resto aconteceu com cerca de um quarto dos diplomatas portugueses, mas apenas com alguma fama de erudito e possivelmente protegido pelo seu primo Marco Antnio de Azevedo Coutinho, acabado de ser elevado a secretrio de Estado, bem como pelo padrasto, o chan-celer da Relao do Porto, Carvalho foi indigitado para enviado extraor-dinrio na corte de Londres, para onde partiu em 1738. A redigiu, como competia no mbito da sua actividade, prolixos relatrios, de forte pen-dor mercantilista, sobre as relaes comerciais entre a Inglaterra e Portu-gal, para alm de ter recebido a notcia da morte da primeira mulher. De passagem por Lisboa desde finais de 1743, foi nomeado no ano seguinte

    diplomticas e foi Secretrio de Estado desde 1750 at 1756, altura em que foi encarcerado, como tal permanecendo at sua morte; cf. Artur LAMAS, A quinta de Diogo de Mendona no sitio da Junqueira: (extra-muros da Antiga Lisboa), Lis-boa, 1924.

    41 Nuno Gonalo MONTEIRO, D. Jos, opus cit. e fontes e bibliografia a citadas.

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  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 73

    enviado, s depois com estatuto de extraordinrio, corte de Viena, com o objectivo de intermediar em nome de Portugal o conflito daquela corte com Roma. Geralmente, tm-se feito um balano pouco brilhante desta misso, no decurso da qual teve enormes conflitos com o represen-tante de Portugal junto da Santa S. Mas, de l trouxe um precioso segundo casamento, celebrado em Dezembro de 1745 com D. Maria Leonor Ernestina, condessa de Daun, da mais elevada nobreza imperial e sobrinha do clebre Marechal Daun, que no poucas portas haveria de lhe abrir. Considerado pelo cardeal da Mota como um erudito com talento e prudncia, Carvalho era um dos potenciais candidatos na nova situao que se avizinhava.

    Do seu ulterior destino poltico j antes se falou. Por decreto de 1759, Sebastio Jos foi despachado pelos servios do seu tio e pelos seus prprios na diplomacia e nas secretarias de Estado at aquela data, com o ttulo de conde de Oeiras de juro e herdade, o senhorio daquele lugar erigido em vila, o relego e reguengo de Oeiras, o senhorio de Pombal e provimento das respectivas justias e, por fim, numa comenda da Ordem de Cristo. Alm de muitas outras mercs rgias, foi feito em 1770 mar-qus de Pombal, como se disse. Mas, para alm disso, construiu uma imensa casa, uma das quatro casas aristocrticas com maiores rendas em Portugal em finais do Antigo Regime. Com um trao bem peculiar: ao contrrio de todas as restantes, retirava mais de metade das suas rendas de bens situados em Lisboa, boa parte dos quais situados na zona edifica-da depois do Terramoto42. Foi por isso, tal como o tinham sido os Mon-teiro e tantos outros antes deles, acusado de enriquecimento ilcito. De que se defendeu enfaticamente: Considerando sua Majestade que no seria decoroso ao seu carcter Rgio, que a casa de um Primeiro Ministro de quem tinha confiado os maiores negcios do Reinado, ficasse confun-dida entre as menos considerveis de Portugal; contra os Exemplos do que os Reis Henrique IV, Lus XIII e Lus XIV haviam praticado com o referido Duque de Sully; com o Cardeal Richelieu; com o Cardeal Maza-rino; e contra o que outros Grandes Monarcas haviam tambm praticado em casos semelhantes43. De acordo com parmetros tradicionais, Pom-bal, que pouco tempo depois negaria ter sido alguma vez primeiro--ministro, no dissociava a sua autoridade poltica do seu estatuto social e da sua riqueza. Que lhe sobreviveria, tal como as alianas dos seus des-cendentes dentro da primeira nobreza do reino.

    Nas matrias referidas, o caso de Pombal ilustra bem como, at finais do sculo XVIII, prevaleciam ainda os mesmos valores que domi-naram nos sculos antecedentes. Ao invs da modernidade meritocrtica 42 Cf. Nuno G. MONTEIRO, O crepsculo, opus cit. 43 BNL, Pombalina, cdice n 695.

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  • 74 Sociedade, Famlia e Poder na Pennsula Ibrica

    geralmente atribuda ao sculo dito das Luzes, prevaleciam ainda concep-es que associavam a apetncia e a competncia para o mando nobreza e riqueza. Mas algo mudara, porm: como alguns mostram em tom cr-tico, eram agora os ministros que se tornavam titulares e no tanto os titulares que se tornavam ministros.

    Concluso

    Da conexo entre famlia e poder muito se tem falado na historio-grafia recente. O tema corre, at, o risco da banalizao. Muito sinteti-camente no que aristocracia respeita valer a pena sublinhar o significa-tivo corte que se verifica nos modelos de organizao familiar do grupo no seu todo em meados do sculo XVII. Ou seja, at ento a familia aris-tocrtica era mais extensa numericamente, socialmente mais diversificada e com prticas de reproduo biolgica mais plurais. Nela se englobavam assim todos os que residiam sob a autoridade do pater familias, o que sig-nificava no apenas os consanguneos dependentes, como a criadagem domstica que integrava tanto os criados de origem fidalga como de raiz mecnica e escrava. E que em alguns casos podia mesmo apresentar-se sob a forma de cortes senhoriais. O poder senhorial estruturava-se e assentava, de facto, mais sobre as periferias territoriais do reino do que no centro poltico, abrindo espao a redes clientelares geogrfica e social-mente bastante diversificadas e com capacidade reprodutiva bastante autnoma da coroa. Quase em tudo ao invs do que ocorrer posterior-mente a 1640, quando a definitiva curializao em Lisboa relega o exerc-cio do poder territorial (e consequente estreitamento dos dependentes directos) para um papel secundrio na economia da reproduo da casa, ao mesmo tempo que tende a retirar autonomia reprodutiva aos descen-dentes, garantindo uma estreita disciplina familiar que apostava apenas na manuteno e sobrevivncia da casa concentrada em torno do repro-duo biolgica do ramo principal do agregado familiar.

    Mas em termos comparativos com Castela, o que ser que se podem considerar serem as singularidades portuguesas? As semelhanas so grandes, mas ajudam a perceber as diferenas. A curializao que no rei-no vizinho tem lugar com os ustria, s ocorreu em Portugal com os Bragana (1640-1668), mas , certamente, levada muito mais longe: todos os titulares viviam em Lisboa nesta ltima data. Acresce que o con-trolo dos Grandes sobre os destinos da monarquia, que em Espanha sofreu uma ruptura com os Bourbon (1701), se prolongou em Portugal pelo menos at cerca de 1725-1750. E, depois, eles mantiveram um peso decisivo no exrcito e nos governos do imprio e, pelos filhos segundos, no alto clero. Essa diversidade poltica traduz, em larga medida, uma diversidade institucional: em Portugal no se compravam ttulos de

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  • Aristocracia, poder e famlia em Portugal, sculos XV-XVIII 75

    Grandes era necessrio servio ao rei para se obterem; o rei tinha muito mais para distribuir, mais comendas e muitos senhorios a alta nobreza dependia materialmente da coroa e nunca pde, como aconteceu no sculo XVIII espanhol, apartar-se do servio ao rei para regressar aos seus senhorios.

    Bibliografia seleccionada

    BOONE, James, Parental Investment and Elite Family in Preindustrial States: A Case Study of Late Medieval-Early Modern Portuguese Genealogies, American Antropologist, n.o 8, 1986.

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