Arqueologia Urbana - Trajetória e Perspectivas

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    Publicado em Revista do Arquivo Municipal, Arquivo Histrico de So Paulo, ano 80,2014, volume 205, pp. 137-154.

    Arqueologia urbana: trajetria e perspectivas

    Pedro Paulo A. Funari

    Rita Juliana Soares Poloni

    A Arqueologia urbana ramo mais antigo e produtivo da disciplina e isso sedeve prpria importncia das cidades. Neste artigo, ser traado um perfil da trajetriada Arqueologia urbana no mundo, desde os seus incios, tratando, em detalhe, dastendncias recentes. Em seguida, ser abordada os rumos da disciplina no Brasil, com assuas peculiaridades. Antes disso, contudo, convm explicitar a abordagem adotada.

    Uma viso social da disciplina

    A histria da cincia sempre um objeto controverso. Existe uma longa erespeitada tradio de considerar a cincia como o acmulo de conhecimento, degerao para gerao, acrescentado a realizaes e descobertas anteriores. Nos ombrosde gigantes, at pequenos passos podem ser considerados como progresso, como

    ponderavam nossos mestres renascentistas. Essa abordagem tem sido descrita poralguns como enfatizar os principais fatores internos que afetam mudanas em qualquerdisciplina acadmica. De fato, Eratstenes no sculo trs a.C. no teria sido capaz de

    calcular o dimetro do nosso planeta sem os experimentos e raciocnios prvios dematemticos e gegrafos anteriores. Ele se utilizou de conhecimentos prvios e no hdiscusso sobre isso. Mas dois outros tpicos tm de ser acrescentados: o contexto eambiente alexandrinos, por um lado, e o destino de suas ideias. A Biblioteca deAlexandria como instituio acadmica resultante da sada do imprio alexandrino da

    polis da Grcia Antiga fator determinante para explicar as conquistas intelectuais,muito alm do limitado escopo de cidades em relao direta com o imprio e a sua visode mundo. Foi um movimento dependente da mudana da cidade para mundo, de polis

    para cosmopolitas.

    Em alguns sculos o mundo no seria mais considerado redondo e nem as

    precisas medidas da circunferncia da Terra feitas por Eratstenes seriam consideradascertas. Por algumas centenas de anos o mundo se tornou plano e nenhum matemtico,gegrafo ou filsofo grego, apesar de conhecido, era suficiente para mudar a perspectiva

    perseverante da Terra como um lugar completamente diferente. A cincia no construda sobre antecessores, mas mudando princpios. Ento, mas importante queacmulo de conhecimento, os contextos histricos, polticos e sociais so essenciais

    para determinar e explicar mudanas na cincia. Isso tambm chamado de abordagemexternalista da histria da cincia, ao enfatizar como circunstncias sociais prevalecemao moldar o pensamento cientfico, como considera Thomas Patterson ao discutir ahistria social da Antropologia dos Estados Unidos e esse o principal guia daabordagem usada nesse trabalho. Em termos filosficos continentais, tomar Heidegger,Wittgenstein, Derrida e Foucault, entre outros, tambm pode ser considerado como umamaneira de focar na forma em que s possvel pensar e falar em circunstncias

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    especficas. Qualquer que seja o nvel de sofisticao do nosso entendimento, seja elepragmtico da matriz filosfica anglo-saxnica, ou mais elaborado e abstruso na linhahermenutica continental, alem e francesa, claro que h mais do que o mero acmulode conhecimento, este o principal argumento deste artigo. A Arqueologia urbana no

    pode ser desatrelada do contexto histrico, social e poltico.

    As origens nacionalistas e imperialistas da disciplina

    Em linhas gerais, pode-se dizer que a histria da Arqueologia institucionalizadacomea com o surgimento da figura do arquelogo. At o final do sculo XVIII, oestudioso da Antiguidade era o antiqurio, que, a partir da, substitudo peloarquelogo. Com a nova figura do arquelogo, as pesquisas se desenvolveram na

    medida em que escavaes foram sendo realizadas. Todavia, de incio, as realizaeseram de carter individual, at que se tornasse coletiva ao longo do sculo XIX. A maisclebre e importante instituio foi o Instituto de Correspondncia Arqueolgica,fundado em 1829 na cidade de Roma. Nesse mesmo esprito, a Grcia cria seuDepartamento de Arqueologia em 1834 e a Sociedade Arqueolgica de Atenas em1837. A Frana tambm cria sua Sociedade de Arqueologia Grega em 1837, e, logodepois, a primeira instituio estrangeira na Grcia, a Escola Francesa de Atenas em1846, sendo seguida por outras de vrias naes, como o Instituto Alemo deArqueologia em 1875, a Escola Americana de Estudos Clssicos em Atenas em 1882, aEscola Britnica em Atenas em 1885. O mesmo se deu na Itlia com a fundao daEscola Francesa de Roma em 1873, da Escola Italiana de Arqueologia em 1875, doInstituto Alemo de Arqueologia em 1929. Ainda que estas instituies tenham

    promovido o surgimento de uma cincia arqueolgica e a institucionalizao dadisciplina, elas significaram tambm um interesse dos Estados pelo patrimniomonumental de seu passado, levando-os apropriao dos mesmos e influenciando,assim, os rumos da pesquisa arqueolgica.

    Arqueologia urbana: tudo comeou em Pompeia

    A Arqueologia surgiu em uma cidade que ainda continua, em certo sentido, adefinir a disciplina: Pompeia. Tanto no imaginrio popular, como cientfico, Pompeiamantm-se como a quintessncia da Arqueologia, em geral, e urbana, em particular.Pompeia era uma cidade antiga conhecida, desde a Antiguidade, pelo destino trgico. Oescritor Plnio o jovem (61-112 d.C.) foi testemunha ocular da erupo do vulcoVesvio, em 24 de agosto de 79 d.C., que acabou por cobrir toda a cidade de mais dedez mil habitantes como pedras-pome e lava. A cidade ficou por sculos soterrada, semque se soubesse ao certo sua localizao, embora fosse sempre lembrado seusoterramento como uma catstrofe.

    Pode dizer-se que a Arqueologia urbana iniciou-se, justamente, com adescoberta, no sculo XVIII, da antiga cidade soterrada. O ano de 1748 marcou o inciodo desenterramento do que, alguns anos depois, viria a ser identificado como a antiga

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    cidade de Pompeia. As escavaes iniciais j revelaram tesouros impressionantes e, emalguns casos, inigualados at hoje em outros stios arqueolgicos, como o caso de

    pinturas parietais e uma infinidade de inscries nos muros. Nas dcadas seguintes, aspesquisas de campo continuaram, com grande mpeto aps a unificao italiana em

    1861 e a nomeao de Giuseppe Fiorelli, com trabalhos mais sistemticos e registrosmais acurados. Outro grande perodo foi sob a gide de Amadeo Maiuri (1924-1961), demodo que Pompeia pode ser considerada a eptome da Arqueologia urbana, no sentidode um estudo sistemtico de uma cidade antiga.

    Na esteira de Pompeia, desde o sculo XIX, as pesquisas arqueolgicas em todoo mundo centraram-se na escavao de cidades, tanto nas metrpoles, como nascolnias ou regies perifricas. Nas grandes potncias, o desenvolvimento urbanoderivado da industrializao levou a um crescimento exponencial da populao nascidades, sem precedentes na Histria, com a ocupao intensa de territrios de antigoscentros urbanos. Alm disso, j em meados do sculo XIX, surgiam solues urbanas

    que envolviam grandes intervenes no subsolo, na forma de sistemas de guas eesgotos e transporte de massa, como os metrs, sendo o mais antigo o de Londres, em1863. Isto significava que se multiplicavam os achados de vestgios arqueolgicos portoda parte. O Museu Britnico, assim, conta com essas descobertas iniciais e fortuitas,mas tambm escavaes eram levadas a cabo sempre que se encontravam vestgiosestruturais mais imponentes. Isso era tanto mais verdade em cidades como Roma eAtenas, com a onipresena de vestgios antigos, mas tambm valia para Paris (antiga

    Lutetia Parisiorum), Lisboa (Olisippo) ou mesmo uma cidade da era moderna, comoMadri, que acabou por englobar a antiga Complutum.

    Nas colnias passou-se o mesmo, ainda que tenha tardado mais. To logo o

    Imprio Otomano foi desfeito, ao trmino da Primeira Guerra Mundial (1914-1918),cidades mesopotmicas e palestinas foram escavadas, como no caso de Jeric, a maisantiga do mundo. No continente americano, o caso de Machu Picchu, descoberta em1912, paradigmtico, pois abriu espao para que outras cidades fossem exploradas,assim como foi no caso das cidades maias na Mesoamrica. De certa maneira, podeafirmar-se que a Arqueologia Urbana confunde-se com a prpria disciplinaarqueolgica, como pondera Steven Penderey (2012) e o tema da vida em cidade nuncadeixou de ter uma posio central na reflexo disciplinar. Talvez o conceito derevoluo urbana, formulado por Vere Gordon Childe (1892-1957), seja o melhorexemplo disso. Childe pode ser considerado o arquelogo cujas obras mais foraminfluentes em relao ao pblico em geral e aos acadmicos. Seu artigo sobre a

    revoluo urbana (Childe 1950) , provavelmente, o texto arqueolgico mais lido detodos os tempos (Smith 2009).

    Childe props que era possvel distinguir a cidade de uma aldeia por dezcaractersticas detectveis pela Arqueologia1:

    11 In point of size the first cities must have been more extensive and more densely

    populated than any previous settlements. (p. 9)

    2 In composition and function the urban population already differed from that of

    any village full-time specialist craftsmen, transport workers, merchants, officials

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    1. Em tamanho, as primeiras cidades so muito mais extensas e populosas queassentamentos anteriores;

    2. A populao urbana j mostrava diferenciao profissional inexistente em

    aldeias;3. A produo rural serviu para a concentrao de excedente na cidade;

    4. Construes monumentais urbanas distinguem cidades de aldeias;

    5. A concentrao de renda em uma classe dominante surgiu com as cidades;

    6. Escrita;

    7. Surgiram cincias preditivas, como a aritmtica, a geometria e a astronomia;

    8. Estilos artsticos;

    9. Redes de comrcio de longa distncia;

    10. Surgimento do Estado para alm das relaes familiares;

    Embora nem todos esses aspectos sejam aceitos, hoje, como ligados vida urbana,no resta dvida que seus postulados continuam a fazer refletir sobre o fenmenourbano como manifestao material a ser interpretada pela evidncia material ou

    and priests. (p. 11)

    3 Each primary producer paid over the tiny surplus he could wring from the soil with

    his still very limited technical equipment as tithe or tax to an imaginary deity or a

    divine king who thus concentrated the surplus. (p. 11)

    4 Truly monumental public buildings not only distinguish each known city from any

    village but also symbolise the concentration of the social surplus. (p. 12)

    5 But naturally priests,civil and military leaders and officials absorbed a major share

    of the concentrated surplus and thus formed a ruling class. (pp. 1213)

    6 Writing. (p. 14)

    7 The elaboration of exact and predictive sciences arithmetic, geometry and

    astronomy. (p. 14)

    8 Conceptualised and sophisticated styles [of art]. (p. 15)

    9 Regular foreign trade over quite long distances. (p. 15)

    10 A State organisation based now on residence rather than kinship. (p. 16)

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    arqueolgica. Mas, quais as diversas interpretaes sobre o que seria a disciplinaArqueologia Urbana?

    Conceitos de uma disciplina

    Nesta altura, o leitor estar a perguntar-se como se define a Arqueologia Urbana.H divergncias, quanto a isso. Uma perspectiva mais abrangente considera que aArqueologia Urbana trata da vida em cidades, da que tenha surgido, como vimos, comas escavaes de Pompeia, em pleno sculo XVIII. Deste ponto de vista, h umaunidade de perspectiva dada pelo fato de que as cidades geraram sempre uma dinmicade vida urbana, desde Jeric, h muitos milhares de anos, at hoje. Isto significa que anfase est dada na urbanidade, por oposio vida em culturas sem cidades, como

    entre os indgenas brasileiros ou australianos e vida no campo, em civilizaes queconheceram cidades, como nas fazendas escravistas romanas ou brasileiras. Haveria,

    pois, diferenas entre as maneiras de viver em cidades e isto explicaria a especificidadeda Arqueologia Urbana: o estudo da cultura material em cidades. Como constata HenriGalini (2000: 20):

    A cidade um lugar de concentrao de atividades, de aes humanas. Uma

    cidade tanto mais uma cidade, quanto ele concentra atividades variadas. Ela umlugar de ao privilegiada de seres humanos e instituies2.

    No h dvida que a cultura material urbana apresenta caractersticas muitoparticulares e que a imensa maioria da pesquisa arqueolgica foi e continua a ser sobrecontextos urbanos. Contudo, h estudiosos que definem a Arqueologia Urbana no pelofato de estudar a cultura material de uma cidade que hoje pode estar fora do contextourbano, como o caso de Pompeia, de Machu Picchu e das cidades maias -, mas por

    pesquisar tudo o que est dentro de uma cidade atual, mesmo que tais vestgios sejamrurais (Lemos e Martins 1992). Outros ficam no meio termo, pois reconhecem tanto asespecificidades do estudo das cidades antigas, como dos vestgios em ambiente urbanomoderno e esta, provavelmente, a posio mais compartilhada, na qual se insere esteartigo (Fabio 1994). A disciplina, portanto, bifronte: por um lado estuda cidadesantigas e, por outro, cidades atuais e os seus vestgios, mesmo quando no urbanos.

    A Arqueologia Urbana e as cidades atuais

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    La ville est um lieu de concentration des activits, des actions humaines. Une ville est dautant plus villequeelle concentre dactivits varies. Elle est Le lieu daction privilegie des hommes et des institutions.

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    Embora bifronte, as principais discusses contemporneas sobre a disciplinavoltam-se para a pesquisa em ambientes urbanos atuais e isso no de se estranhar. Ascidades esto, cada vez mais, s voltas com a descoberta de vestgios do passado e comas questes referentes ao patrimnio em um contexto de grande diversidade tnica,

    social, cultural e religiosa em ambiente urbano. Isto tem criado situaes de particulardesafio para todos que se dedicam gesto urbana, em particular no que se refere ao

    patrimnio histrico e cultural.

    Nem sempre foi assim, claro. A Arqueologia Urbana esteve, de incio, a servioda descoberta e preservao de bens das elites e pouco preocupada com a populao eseus anseios. Isso estava bem de acordo com a viso que se tinha tambm nos ambientesacadmicos sobre a sociedade. De fato, a cincia iluminista considerava a sociedadecomo um conjunto homogneo de pessoas, em busca de uma coeso social queeliminasse os conflitos e contradies. Estudiosos como Emile Durkheim e Max Weber,fundadores da moderna Sociologia, enfatizavam que as normas sociais compartilhadas

    seriam desafiadas apenas pelos desviantes, cujo comportamento deveria ser corrigidopela coero. A coeso um conceito que pressupe a coero dos recalcitrantes(Shellef 1997; Kushner e Sterk 2005; para uma defesa revisada do conceito de coeso,cf. Chan, To e Chan 2006). Neste contexto, o patrimnio esteve a servio da coeso e dacorreo, o que, no entanto, no significou falta de resistncia e no conformidade.Desde sempre, a sociedade foi multifacetada e as pessoas reagiram tentativa deimposio da harmonia, para usar outro conceito homlogo3. Anarquistas, socialistas,comunistas, feministas, movimentos identitrios diversos reagiram a isso desde o sculoXIX e, com maior intensidade e ressonncia, desde meados do sculo XX.

    O reconhecimento do carter complexo, variado, conflitivo e mesmo

    contraditrio das sociedades, em geral, foi tanto mais importante para os estudosurbanos. As cidades contemporneas so o resultado de processos sociais prenhes deconflitos e disputas, em particular em sociedades com grande nmero de excludos e

    pobres (Walton 2002). Nem excluso nem pobreza podem ser definidas apenas como aausncia de possibilidade de escolha, como propugnam alguns. As definies sovariadas e mesmo contraditrias (Hagenaars e de Vos, 1988; Laderchi 2003), massempre incluem o grau de separao entre os que tm e os que esto privados (havesand have nots), distncia tambm medida pelo ndice economtrico gini (Ravallion2001). Como ressaltava Fernando Haddad (1997:114) h algum tempo: no h dvidade que a acumulao de riqueza, de um lado, implica acumulao de pobreza, de outro.

    Isto tudo importante, quando consideramos as polticas urbanas, que no podem ser

    entendidas como neutras ou fora do embate de interesses (Rolnik 1999; 2006).

    A Arqueologia Urbana mostrou-se, em geral, atenta a essas discusses, dandocada vez mais ateno atuao com as comunidades locais e grupos de interesse, como

    parte daquilo que se tem denominado de Arqueologia Pblica (Funari e Bezerra 2012).Esta atuao com as pessoas reveste-se de uma significao epistemolgica, alm de

    poltica. Poltica, claro, pois se trata de incluir os anseios, inquietaes, interesses,mesmo quando contraditrios, das pessoas e isto uma perspectiva relativa s relaesde poder. Lembremos que Shanks e Tilley (1987), h tempos re-definiam a disciplinacomo o estudo do poder (Arkhem grego significa origem, princpio, poder). Incluir

    3Tal como aparece, por exemplo, nos documentos chineses atuais:, sociedade harmoniosa.

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    as pessoas, em geral, e os excludos (Peace 2001), em particular, uma deciso poltica.Alm disso, contudo, trata-se de uma perspectiva epistemolgica, pois o conhecimentoque advm da interao nico e significativo para o estudioso. No caso daArqueologia Urbana, isto tanto mais verdade, quanto o arquelogo citadino vive a um

    s tempo em meio populao e dela distante. Por um lado, ele pode viver no mesmoconglomerado urbano e, qui, conviver com as pessoas do lugar, algo nem sempre

    provvel em um grande centro, como si ser o caso. Em geral, contudo, o trabalho decampo est em um contexto urbano muito particular, cujas sociabilidades locais s umesforo de imerso antropolgica permite alcanar.

    Este tem sido o caminho mais percorrido pela disciplina mundo afora, como noscasos paradigmticos do African Burial Ground (Nova Iorque), do District Six (Cidadedo Cabo) para citar dois dos mais conhecidos e reportados (Symonds 2004) e com osquais temos colaborado. Trata-se, nestes e em outros casos, de estudar os excludos do

    passado em comunho com as comunidades atuais. impressionante como em casos

    como esse h um imenso potencial para incluir no s os grupos diretamente afetadospela excluso antiga. Nos dois casos, escravos ou negros expropriados mostraram-serelevantes tambm para outros grupos humanos que foram excludos de outras formas,como no caso dos italianos, irlandeses, judeus e latinos em Nova Iorque e de judeus,mestios (colored), indianos e anglos na Cidade do Cabo.

    Ainda outros campos tm contribudo para o estudo dos grupos subordinados nombito da Arqueologia urbana, como o caso da Arqueologia da Guerra e do Conflito eda Represso e da Resistncia. Nos dois casos, a constituio e a transformao doespao urbano so analisadas na tica das aes polticas nacionais e internacionaissobre grupos ou pases que, voluntariamente ou no, apresentam-se como obstculos

    para a concretizao de interesses de grupos dominantes.A reconstituio dos espaos urbanos de conflito e de resistncia torna-se, sob a

    tica desses campos de pesquisa, no somente uma forma de construir discursosalternativos aos oficiais, demonstrando maior complexidade dos contextos investigados,mas tambm uma forma de dar voz aos oprimidos ou perdedores, fazendo com que suasidentidades possam ser conhecidas e reconhecidas pela sociedade.

    Nos dois casos, ambas as vertentes da Arqueologia urbana podem sercontempladas. Desde a anlise de contextos de guerra e de represso antigos, como nocaso dos perodos clssicos ou do colonialismo moderno, passando por perodos mais

    recentes, como a guerra civil americana ou a Era Napolenica, por exemplo, eterminando em temas afetos atualidade, ainda recobertos de dolorosas memrias desobreviventes, como contextos coloniais recentes e os relacionados s guerrascontemporneas (Geier; Potter, 2001; Galaty;Charles, 2004; Stein, 2005; Young, 2005;Scott et al, 2008; Brown; Osgood, 2009; Liebmann; Murphy, 2011; Harold; Gilly, 2012;Mytun; Carr, 2012; Weik, 2012; Babits; Gandulla, 2013). Destaquem-se as pesquisaslatino-americanas (Funari, Zaranki, Salerno 2009) e brasileiras sobre o tema dosconflitos urbanos (Lino e Funari 2013).

    No que tange aos contextos mais recentes, a interao com os gruposdiretamente afetados pelos eventos passa a ser crucial para o desenvolvimento das

    pesquisas em Arqueologia urbana. Nesses casos, a recuperao das memrias dosenvolvidos passa a ser um elemento crucial para anlise dos contextos materiaisinvestigados e para a construo de discursos alternativos aos oficiais. Mais uma vez, o

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    dinamismo do contexto urbano permite ao campo cientfico construir conhecimentofazendo da Arqueologia um campo de pesquisa vivo e atual.

    A Arqueologia urbana: legados e desafios na atualidade

    A Arqueologia urbana tem legado disciplina, ao longo dos sculos, inmerascontribuies de crucial importncia, desde o conhecimento de stios icnicos,

    patrimnio da histria da humanidade, como o caso de Pompia, j citado, comotambm tem sido responsvel pelo desenvolvimento terico-metodolgico do campo.

    J na dcada de 1960, mas sobretudo durante a dcada de 1970 do sculo XX, odesenvolvimento cada vez mais intenso de pesquisas em contexto urbano, serresponsvel por uma profunda discusso e estruturao do campo. A Arqueologiaurbana passa a ser cada vez mais entendida no s como a Arqueologia NA cidade mas

    tambm como a Arqueologia DA cidade (Martins; Ribeiro, 2009/2010: 150).

    Nesse sentido, sobretudo em contexto europeu, assiste-se constituio degrupos de pesquisa, em geral de financiamento estatal, que passam a estudar as diversastransformaes do contexto urbano como parte da histria da prpria cidade como umtodo, que por sua vez deveria ser encarada como um stio nico com um legadohistrico especfico.

    durante esse perodo que a sistematizao do campo se intensifica,transmitindo disciplina importantes contributos como a matriz de Harris, que, nascidada investigao de Eduard Harris no stio urbano denominado Lower Brook Street, na

    cidade de Winchester, Inglaterra, durante a dcada de 1970, transforma-se em umatcnica de escavao arqueolgica crucial para os mais diversos campos da Arqueologiana atualidade (Bicho, 2006:180-185).

    Entretanto, o mesmo contexto que possibilitou a intensificao das pesquisas emArqueologia urbana durante a segunda metade do sculo XX, ou seja, o surto deconstrues do ps-guerra, ser ainda a razo do nascimento dos seus maiores desafiosna atualidade (Martins; Ribeiro, 2009/2010: 153).

    Em pouco tempo, as pesquisas com objetivos mais amplos, desenvolvidas porequipes que pretendiam conhecer a cidade como um todo e que visavam a projetos alongo prazo passam a ser ultrapassadas pelas pesquisas realizadas em contexto deacompanhamento e salvamento, sujeitas s presses imobilirias, com tempo e recursosreduzidos e que acabariam por gerar a acumulao de grandes quantidades de artefatosque no chegam a ser integrados em nenhum projeto de pesquisa mais amplo.

    As razes para essas dificuldades so muitas, desde a falta de recursos para aspesquisas, j que o financiamento dos trabalhos, pelo menos em contexto europeu, sustentado, em grande medida, pelos donos dos investimentos imobilirios, passando

    pela carncia de tempo gerada pelos curtos prazos impostos pelo prprio processoconstrutivo e culminando com a grande alternncia de pesquisadores e de equipes atrabalhar numa mesma rea de interveno, levando ao desencontro de informaes e deabordagens dos contextos (Martins; Ribeiro, 2009/2010:155-160).

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    Longe de ser um problema isolado, as escavaes urbanas em contexto deacompanhamento e salvamento so hoje um problema crucial para o repensar do campo,que dever procurar conciliar os impulsos desenvolvimentistas do sistema capitalistacom os princpios e interesses cientficos da Arqueologia.

    O tema vem sendo debatido nos ltimos anos em todo o mundo, apresentando-secomo uma preocupao constante, no s dos pesquisadores que se dedicam a estudar ascidades, mas dos investigadores da disciplina de modo geral. Exemplo recente daimportncia desse debate foi a realizao do intercongresso do WAC (WorldArchaeological Congress) Desvelando a Arqueologia de contrato, realizada em Junhode 2013, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e que trouxe como principaisquestionamentos:

    Os arquelogos esto conscientes sobre sua cumplicidade com o mercado e a ordem capitalista? E casoestejam, como conciliam uma prtica que demanda por justia e responsabilidade, quando ao mesmotempo trabalham com e para projetos capitalistas que passam por cima das demandas sociais?

    possvel praticar uma Arqueologia da descolonizao em Programas de Arqueologia de Contrato?(http://Arqueologiaupf.wordpress.com/2013/04/,acessado em 24 de Agosto de 2013)

    Levando em considerao a importncia histrica do WAC como questionadordas relaes entre questes poltico-econmicas e a Arqueologia (Funari, 2006), pode-seimaginar como este tema apresenta-se como crucial para o desenvolvimento do campono presente. Ao mesmo tempo em que a Arqueologia de contrato emprega um grandenmero de profissionais da rea, ela representa uma vertente importante da Arqueologiaurbana que no deve ser desprezada por suas limitaes tcnicas e econmicas, masantes deve ser integrada como um componente estratgico para o desenvolvimento docampo na atualidade.

    A Arqueologia no Brasil

    A Arqueologia brasileira uma das pioneiras, apesar de isso parecer poucoprovvel. Dom Pedro I iniciou a Arqueologia brasileira, trazendo para o pas osprimeiros artefatos arqueolgicos, como mmias egpcias e outros materiais. DomPedro II casou-se com uma princesa napolitana e coletou material arqueolgico dePompeia, Etrria e muitos outros lugares. O Museu Nacional do Rio de Janeiro era

    projetado para ser rival do Museu Britnico e do Louvre e deixando, assim, de lado aantiga metrpole, Lisboa. O Imperador fundou o Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro contemporneo e similar Academia Francesa. Nesse planejamento a

    Arqueologia desempenhava um importante papel, projetada para estabelecer razes entreambos, Velho Mundo (Arqueologia Clssica e Egpcia) e Novo Mundo (ArqueologiaPr-histrica). Por algumas dcadas, a Arqueologia foi o centro da ideologia imperial doBrasil e isso explica seu desenvolvimento precoce. O fim da monarquia levou aodeclnio da Arqueologia durante a Repblica Velha (1889 1930). Nos anos 1930 aforte influncia do nacionalismo deu um novo mpeto para a Histria e o patrimnio: oideal colonial deveria servir para a construo da nao. O perodo colonial foiescolhido como aquele definidor da sociedade brasileira, em particular durante o

    perodo a ditadura fascista do Estado Novo (1937-1945), mas a Arqueologia como umaatividade acadmica comeou nessa poca como uma reao contrria ao autoritarismo.

    Neste contexto, a vida urbana colonial, tal como apresentada no Barroco mineiro do

    sculo XVIII, tornou-se a grande referncia e permanece, em muitos aspectos, essencialtanto para a identidade nacional, como para a busca arqueolgica nas cidades

    http://arqueologiaupf.wordpress.com/2013/04/http://arqueologiaupf.wordpress.com/2013/04/
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    brasileiras.

    Paulo Duarte (n. 1899) foi uma figura chave nesse movimento de renovaocultural. Duarte era um ativista poltico democrata durante os ltimos anos da Repblica

    Velha e contribuiu para a fundao da primeira universidade brasileira, a Universidadede So Paulo (1934), moldada em uma abordagem humanista de ensino. O Muse del'Homme serviu de modelo para considerar os povos indgenas como seres humanosigualmente importantes. Como idealista, Duarte tinha um sonho: a criao do Museu doHomem Americano, inspirado pelo exemplo parisiense. Ao retornar ao Brasil, Duarteliderou um movimento pelos direitos indgenas e como consequncia da ArqueologiaPr-Histrica, durante o perodo liberal entre 1945 e 1964. Ele foi capaz de organizar aComisso de Pr-Histria e depois o Instituto de Pr-Histria, que ele conseguiu atrelar Universidade de So Paulo, um movimento muito importante para que a Arqueologia

    pudesse pela primeira vez se tornar um ofcio acadmico no Brasil. Devido suaamizade com Paul Rivet (n. 1876), Duarte foi capaz de atrair pela primeira vez

    arquelogos profissionais para o Brasil, Joseph e Annette Laming-Emperaire, discpulosde Rivet e pr-historiadores pioneiros que estudavam arte rupestre como evidncia decultura humana, em oposio tradicional arte alta e baixa. Isso era parte do movimentohumanista decorrente de Lvi-Strauss, Marcel Mauss e Andr Leroi-Gourhan, todos elesenfatizando, de maneiras diferentes, como todos os seres humanos so capazes derepresentar o mundo com smbolos. Estes personagens foram importantes para aformao de arquelogos urbanos brasileiros, como veremos abaixo.

    Logo aps o golpe militar de 1964, um Programa Nacional de Pesquisas emArqueologicas (Pronapa) foi acertado em Washington, DC, em coordenao conjuntacom as novas autoridades brasileiras e sob a liderana do Smithsonian Institution, sob ocomando de Clifford Evan e Betty Meggers. O Pronapa estabeleceu um programa delevantamento ativo por todo o pas, particularmente preocupado com reas estratgicas,contribuindo para o esforo de controle do territrio no contexto da Guerra Fria. Os

    princpios tericos e empricos eram muito reacionrios e anti-humanistas, promovendoo conceito de que os povos nativos eram preguiosos e o pas pobre devido s condiesnaturais.

    A luta contra a ditadura se intensificou nos anos 1970 e em 1979 uma anistia foiconcedida pelos militares, o que permitiu a muitos exilados voltar, partidos polticosforam logo legalizados e as eleies diretas para cargos oficiais em 1982 possibilitaram

    uma ampla gama de atividades acadmicas e polticas. O final do governo ditatorial, emmaro de 1985, marcou assim uma nova fase para o pas e para a Arqueologia. Desdeento, em liberdade, floresceram estudos sobre os mais variados temas, a comear pela

    busca pela presena humana mais antiga no Novo Mundo. Nide Guidon ltima foibem sucedida e nas profundezas do nordeste brasileiro, na mais pobre e atrasada rea deserto do pas, levou a Misso francesa para um charmoso paraso natural, a Serra daCapivara, uma regio serrana.

    A Arqueologia Histrica desenvolveu-se tardiamente no Brasil e dela deriva aArqueologia Urbana no Brasil. A disciplina comeou, assim como nos EUA, com umculto s elites, mas logo os estudos arqueolgicos foram dirigidos nas Misses Jesutas

    no sul do Brasil, buscando descobrir como os ndios guaranis e os padres missionriosconviviam. A Arqueologia nos quilombos iniciou-se no mesmo perodo, meio e final

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    dos anos 1980, explorando essas preocupaes nas reas de minerao no sculo XVIIIem Minas Gerais. Quando a democratizao ganhou espao, a Arqueologia Histrica

    passou a se preocupar com os mais icnicos patrimnios pblicos, Palmares sculoXVII e Canudos final do sculo XIX. Ambos, Palmares e Canudos, foram centros

    urbanos estudados pela Arqueologia em busca dos excludos, como mencionamosanteriormente. Desde ento, a Arqueologia histrica urbana tem explorado diversosoutros temas, tanto o estudo da ditadura e da represso, quanto da cermica, daarquitetura e ainda estudos em relao a gnero, etnia e outras questes relevantes sociedade atual. A Arqueologia tem sido ativa em fomentar a interao entrearquelogos e pessoas comuns, buscando produzir material acadmico relevante para asociedade como um todo e para grupos especficos. A Arqueologia brasileira tem sido

    bastante ativa nesta rea e agora reconhecida como um dos principais contribuidoraspara o avano da disciplina na Arqueologia Pblica mundial e isso est relacionado scondies sociais no Brasil, cujas caractersticas contraditrias revelam mais do que oobservador estrangeiro possa perceber. Publicaes como Arqueologia Pblica e

    muitos outros livros, teses de doutorado e artigos atestam o desenvolvimento daArqueologia pblica no Brasil e suas contribuies para a disciplina alm das fronteiras

    brasileiras.

    Arqueologia Urbana no Brasil: conquistas e desafios

    A Arqueologia Urbana iniciou-se tardiamente e em meio s atribulaespolticas e sociais j acenadas. Durante a ditadura militar (1964-1985), houve algumasiniciativas de estudos arqueolgicos nos principais centros urbanos brasileiros, comoSo Paulo e Rio de Janeiro, ainda que de maneira incipiente, pois a legislao de

    proteo ambiental e patrimonial demorou a desenvolver-se. Isso s viria a consolidar-

    se com o ocaso do regime e, em particular, com os governos estaduais eleitos, a partirde 1982, e a possibilidade de intervenes arqueolgicas em mbito democrtico. Nocaso de So Paulo, deve enfatizar-se a atuao pioneira de Margarida Davina Andreatta,oriunda da escola francesa pr-histrica do grande mestre Andr Leroi-Gourhan, noincio da dcada de 1960, mas que se dedicou ao estudo dos stios urbanos paulistas portoda a vida, at os dias de hoje. Foi, contudo, a partir da abertura poltica e da Anista(1979) que a disciplina pde deslanchar. Os estudos pioneiros, nesse mbito, foram doarquelogo gacho Arno Kern, tambm proveniente da escola francesa de Pr-Histria.Kern dedicou-se, por muitos anos, s misses jesuticas e foi, em certo sentido, o

    primeiro a introduzir temas como diversidade tnica entre guaranis e jesutas e asparticularidades da mescla cultural, alm de apresentar temas bem arqueolgicos comoo lixo nas misses (Kern 2012).

    Outro estudo pioneiro dos assentamentos urbanos, ainda no ocaso da ditadura,foi levado a cabo pela UFMG sob a lida de Carlos Magno Guimares, sobre osquilombos associados s cidades coloniais mineiras. Guimares argumentou, desdecedo, que os assentamentos quilombolas mineiros eram urbanos em dois sentidos:tinham uma estrutura que no era rural, mas urbana e estavam em estreita relao comas cidades mineradoras. Eram, portanto, stios urbanos por excelncia, ainda queestivessem fora de cidades atuais (Guimares 1988). Os ventos de liberdade viriam avivificar as prticas arqueolgicas, multiplicar as pesquisas, abordagens e atuaes. Ademocracia trouxe, tambm, todo um conjunto de preocupaes mais abrangentes einclusivas. Basta lembrar que um dos primeiros atos do primeiro presidente civil, JosSarney, foi declarar a Serra da Barriga, sede da capital do quilombo dos Palmares, como

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    patrimnio nacional, em clara ruptura com o perodo ditatorial. De fato, Palmares foi omaior estado rebelde da nossa histria, composto por fugitivos da escravido, por todo osculo XVII. Sua capital, Macaco, na Serra da Barriga, era uma das maiores cidades do

    Novo Mundo poca. A pesquisa arqueolgica de Palmares, levada adiante a partir do

    incio da dcada de 1990, tornou este o stio arqueolgico urbano brasileiro maisconhecido e citado em todo o mundo (Funari 2010). Palmares como comunidade queabrigava africanos fugidos, mas tambm indgenas, mulheres perseguidas como bruxas,

    judeus, muulmanos e outros desclassificados da ordem, constitua uma alternativa tentativa de coeso colonial, abrigando, mesmo que maneira conflitiva, a diversidade.

    Na mesma linha, deve destacar-se o estudo arqueolgico da outra grande cidade rebelde,Belo Monte, destruda pelo exrcito republicano no episdio de Canudos, imortalizado

    por Euclides da Cunha. Paulo Zanettini estudou o stio e mostrou tanto a riquezacultural da cidade, como a brutalidade dos que sitiaram e destruram o lugar (Zanettini1996).

    A legislao ambiental e patrimonial, resultado da democracia, viria amultiplicar a atuao arqueolgica no Brasil de maneira exponencial, comconsequncias muito evidentes no mbito urbano. Todo tipo de intervenoarqueolgica urbana tornou-se no apenas possvel como corriqueira, o que atesta oimenso avano do pas e da disciplina, nesses trinta anos de caminhada desde o auge daditadura, com o fechamento do congresso em 13 de abril de 1977. Como estampava oeditorial de Jos Roberto Guzzo, diretor de redao da revista Veja (450, 1977: 19),aps exatos 154 anos, sete meses e oito dias como nao independente, continuava em

    vigor o conceito de que o povo brasileiro ainda no est pronto para se governar.Depois disso, foi possvel muito fazer, tambm no mbito da Arqueologia Urbana.

    Dentre os estudos mais relevantes, podemos destacar alguns, por suaimportncia local ou por social. No Rio Grande do Sul, as escavaes em Pelotasmerecem ateno, levadas a cabo por dois laboratrios de Arqueologia. O Lepaarq temescavado os casares no centro da cidade, com resultados notveis no que se refere aosedifcios das elites do pice do charque na regio (Cerqueira, Viana e Peixoto 2012). Jo Lmina tem estudado os vestgios referentes aos escravos nas charqueadas (Ferreira2013). Em Porto Alegre, pesquisas consistentes e continuadas tm produzido resultadossobre os padres de assentamento, consumo e descarte (Tocchetto 2010). Na GrandeSo Paulo, h estudos sobre vilas operrias (Plens 2011), assim como, na Bahia, hanlise cermica (Etchevarne 2006). As pesquisas resultantes da legislao ambiental e

    patrimonial multiplicam-se, ainda que se deva reconhecer que as publicaes nem

    sempre correspondem a esse volume, na medida em que os relatrios de campo acabampor ficar armazenados nos arquivos do IPHAN. De toda forma, as pesquisasaumentaram de forma substancial e houve ateno crescente aos excludos, tanto do

    passado, como no presente.

    No se poderia deixar de citar ainda, como um importante campo emdesenvolvimento e com perspectivas promissoras para o futuro prximo da Arqueologiaurbana brasileira, o que engloba questes que se inserem dentro do tema da Arqueologiada Represso e da Resistncia. O fim da ditadura militar brasileira no s tem permitidoo desenvolvimento do campo arqueolgico como um todo, possibilitando o surgimentode leis e de debates que pem a questo patrimonial em primeiro plano, mas tambm

    tem permitido, ainda que timidamente, um questionamento das prprias aes do

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    regime, abrindo tambm espao para o aprofundamento das anlises de outros perodosditatoriais ou repressivos da histria do pas.

    Neste contexto, a colaborao de importantes pesquisadores que se tem dedicado

    ao tema, no somente em contexto brasileiro, mas tambm numa perspectiva latino-americana tem sido crucial para o despertar de questionamentos acerca dos (no)lugares clandestinos destinados represso de grupos opositores durante os perodosestudados, bem como a reviso da produo cientfica do prprio campo durante avigncia desses governos repressivos (Funari, 2002; Zarankin; Salerno, 2008; Zarankin;Funari, 2008; Funari et al, 2009; Funari; Ferreira, 2012; Salerno; Zarankin, 2013).

    No atual momento poltico do pas em que os trabalhos da chamada Comisso daVerdade se desenvolvem assim como pesquisas em contextos como o do Araguaia,

    buscando clarificar os acontecimentos e dar voz e reconhecimento aos abatidos peloregime naquele stio de conflito, o papel da Arqueologia urbana revela-se de novo

    crucial na revelao e compreenso dos lugares relacionados represso e resistnciadurante a vigncia dos regimes ditatoriais brasileiros.

    Por outro lado, se este, bem como outros campos da Arqueologia urbana se temdesenvolvido de maneira promissora no pas, os horizontes da disciplina aindaapresentam muitos desafios. Estes referem-se maior difuso das pesquisasarqueolgicas urbanas e ampliao das aes de Arqueologia Pblica e interao entreestudiosos e as pessoas. O predomnio da pesquisa ligada ao mercado tende a continuare aprofundar-se, o que constitui um grande desafio. As pesquisas multiplicam-se e hnecessidade premente de uma melhor difuso dos estudos resultantes das pesquisaarqueolgicas urbanas. Esta dever ser a tendncia nos prximos anos, na medida em

    que apenas dessa forma essa produo poder efetivar seu potencial tanto para a cincia,como para a populao mais ampla. Pode concluir-se, de todo modo, que os avanosforam notveis, tendo em vista a breve trajetria da Arqueologia Urbana no Brasil e queas perspectivas so as mais promissoras.

    Agradecimentos

    Agradecemos a Fbio Vergara Cerqueira, Carlos Fabio, Lcio Menezes Ferreira,Nelsys Fusco, Carlos Magno Guimares, Harold Mytum, Cludio Plens, Raquel Rolnik,Daniel Schvelzon, Michael Shanks, Christopher Tilley, Fernanda Tocchetto, PauloZanettini e Andrs Zarankin. Mencionamos o apoio institucional do Laboratrio deArqueologia Pblica Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp), FAPESP e CNPq.

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    Pedro Paulo A. Funari bacharel em Histria (1981), mestre em Antropologia Social(1986) e doutor em Arqueologia (1990), sempre pela Universidade de S. Paulo, livre-docente em Histria (1996) e Professor Titular (2004) da Unicamp. Professor de

    programas de ps da UNICAMP e USP, Distiguished Lecturer University of Stanford,Research Associate - Illinois State University e Universidad de Barcelona, bolsista de

    produtividade em pesquisa do CNPq.

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