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 XVI S IMPÓSIO  N ACIONAL DE E  N S I N O D E F ÍSICA  1 A CRISE DA VELOCIDADE TERMINAL Carlos Eduardo Aguiar  a  [[email protected]] Gustavo Rubini  b,c [[email protected]]  a  Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro  b  Departamento de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro c  Espaço Ciência Viva, Rio de Janeiro R ESUMO Quando um corpo cai através de um meio, sua velocidade tende assintoticamente a um valor constante, chamado de velocidade terminal. Os cursos de física básica tratam freqüentemente desse tema, e em geral assumem que para uma dada combinação de corpo e meio só existe uma única velocidade terminal. Neste trabalho nós mostramos que em certas situações o corpo pode atingir duas velocidades terminais diferentes, dependendo de como ele é lançado. Esse efeito tem origem em um fenômeno hidrodinâmico bem conhecido, a “crise do arrasto”, que é a variação abrupta sofrida  pela resistência do mei o q ua nd o a ve loc ida de d o co rpo ati ng e u m v alo r cr ítico. 1. I NTRODUÇÃO  Um corpo em queda na atmosfer a, ou em outro fluido qualquer, mais cedo ou mais tard e atin ge u ma “v eloc idad e terminal” – se ele não bater no chão antes. A essa velocidade o peso do corpo é completamente equilibrado pela resistência do meio, e a aceleração torna-se zero daí em diante. Galileu descreveu a ocorrência da velocidade terminal de forma notável em seu  Diálo go Sobre Duas Novas Ciências [1]: “Começo dizendo que um corpo pesado possui uma tendência inerente de mover-se com um movimento uniformemente acele rado rumo ao centro da Terra, de forma que durante iguais intervalos de tempo ele recebe iguais incrementos de momentum e velocidade. Isto é válido sempre que todas as influências externas e acidentais forem removidas; porém há uma que não podemos nunca remover: o meio que precisa ser atravessado e deslocado pelo corpo em queda. Este meio opõe-se ao movimento com uma resistência que é proporcional à rapidez com que ele deve ceder passagem ao corpo; este corpo, conforme dito, é por natureza continuamente acelerado de tal  forma que encontra mais e mais resistência n o meio e portanto há uma diminuição em aceleração até que finalmente a velocidade atinge um ponto e a resistência do meio torna-se tão grande que, equilibrando-se uma à outra (peso e resistência), elas impedem qualquer aceleração subseqüente e o movimento do corpo reduz-se a um movimento uniforme que a partir de então irá manter-se com valor constante” (Tradução livre) A velocidade terminal é um tema normalmente discutido nos cursos introdutórios de física, e a abordagem atual não é muito diferente da usada por Galileu [2]. Em particular, geralmente supõe- se que, num dado meio, cada corpo só pode ter uma velocidade terminal, caracterizada pelo seu  pes o e for ma. A razã o par a essa exp ecta tiv a é a idéia, apa ren temente razo ável, de qu e a resi stência

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X V I S I M P Ó S I O N A C I O N A L D E EN S I N O D E F Í S I C A 1

A CRISE DA VELOCIDADE TERMINAL 

Carlos Eduardo Aguiara [[email protected]

Gustavo Rubinib,c[[email protected]

a Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeirob Departamento de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro

cEspaço Ciência Viva, Rio de Janeiro

RESUMO 

Quando um corpo cai através de um meio, sua velocidade tende assintoticamente a umvalor constante, chamado de velocidade terminal. Os cursos de física básica tratamfreqüentemente desse tema, e em geral assumem que para uma dada combinação de

corpo e meio só existe uma única velocidade terminal. Neste trabalho nós mostramosque em certas situações o corpo pode atingir duas velocidades terminais diferentes,

dependendo de como ele é lançado. Esse efeito tem origem em um fenômenohidrodinâmico bem conhecido, a “crise do arrasto”, que é a variação abrupta sofridapela resistência do meio quando a velocidade do corpo atinge um valor crítico.

1. INTRODUÇÃO 

Um corpo em queda na atmosfera, ou em outro fluido qualquer, mais cedo ou maistarde atinge uma “velocidade terminal” – se ele não bater no chão antes. A essa velocidade o peso

do corpo é completamente equilibrado pela resistência do meio, e a aceleração torna-se zero daí emdiante. Galileu descreveu a ocorrência da velocidade terminal de forma notável em seu  DiálogoSobre Duas Novas Ciências [1]:

“Começo dizendo que um corpo pesado possui uma tendência inerente de mover-se

com um movimento uniformemente acelerado rumo ao centro da Terra, de forma quedurante iguais intervalos de tempo ele recebe iguais incrementos de momentum e

velocidade. Isto é válido sempre que todas as influências externas e acidentais foremremovidas; porém há uma que não podemos nunca remover: o meio que precisa ser 

atravessado e deslocado pelo corpo em queda. Este meio opõe-se ao movimento com

uma resistência que é proporcional à rapidez com que ele deve ceder passagem ao

corpo; este corpo, conforme dito, é por natureza continuamente acelerado de tal forma que encontra mais e mais resistência no meio e portanto há uma diminuiçãoem aceleração até que finalmente a velocidade atinge um ponto e a resistência do

meio torna-se tão grande que, equilibrando-se uma à outra (peso e resistência), elasimpedem qualquer aceleração subseqüente e o movimento do corpo reduz-se a ummovimento uniforme que a partir de então irá manter-se com valor constante”

(Tradução livre)

A velocidade terminal é um tema normalmente discutido nos cursos introdutórios de física, e

a abordagem atual não é muito diferente da usada por Galileu [2]. Em particular, geralmente supõe-

se que, num dado meio, cada corpo só pode ter uma velocidade terminal, caracterizada pelo seupeso e forma. A razão para essa expectativa é a idéia, aparentemente razoável, de que a resistência

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oferecida pelo meio deve necessariamente aumentar à medida que a velocidade do corpo cresce.Com isto, para um dado peso, o equilíbrio só será possível para um único valor da velocidade, ou

seja só pode haver uma velocidade terminal. Entretanto, como veremos a seguir, um fenômenoconhecido como “crise do arrasto” faz com que em alguns casos a resistência do meio diminua

quando a velocidade aumenta. Nessas situações um corpo pode ter duas velocidades terminaisdiferentes.

2. A FORÇA DE ARRASTO

A força com um fluido resiste à passagem de um corpo é chamada de força de arrasto. Ela é

geralmente escrita como

2

2

1V  AC F   A A ρ=  

onde ρ é a densidade do meio (1,224 kg/m3 no caso da atmosfera ao nível do mar),  A é a área da

seção transversal do corpo, e V  a sua velocidade em relação ao meio. O coeficiente de arrasto C  A definido pela relação acima é uma quantidade adimensional, e portanto só pode depender de

grandezas igualmente sem dimensão. Para velocidades muito menores que a do som, o únicoparâmetro físico adimensional disponível é o número de Reynolds, Re, definido por

η

ρ DV  Re =  

sendo η a viscosidade do meio (no ar η = 1,83×10-5 kg m-1 s-1) e  D uma dimensão característica do

corpo. Assim, o coeficiente de arrasto é determinado unicamente pelo número de Reynolds e pelaforma do corpo. A Fig. 1 mostra o coeficiente de arrasto de uma esfera lisa como função de  Re. Nocaso a escala  D é o diâmetro da esfera. Outras formas, como o cilindro, apresentam resultadossemelhantes.

10-1

100

101

102

103

104

105

106

Re

10-2

10-1

100

101

102

103

   C      A

 

Figura 1: Coeficiente de arrasto de uma esfera lisa como função do número de Reynolds.

Três aspectos podem ser ressaltados no gráfico da Fig. 1. Primeiro, para  Re < 1 ocoeficiente de arrasto é dado pela lei de Stokes (a linha tracejada na Fig. 1)

Re / 24= AC   

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o que leva a uma força de arrasto proporcional à velocidade

V  DF  A πν3=  

O segundo aspecto de interesse na Fig. 1 é que o coeficiente de arrasto fica praticamente constante,

com C  A ≈ 0,5, para uma grande faixa de valores de  Re entre aproximadamente 103 e 105. Nesta

região a força de arrasto é proporcional ao quadrado da velocidade. Por último, deve ser notada aredução abrupta que o coeficiente de arrasto sofre em torno de  Re = 3×105. Esta diminuição

dramática de C  A é chamada de “crise do arrasto”. Uma discussão sobre a origem hidrodinâmica dacrise do arrasto está fora do escopo deste trabalho – mais detalhes podem ser encontrados nas

Refs. [3-5]. A queda de C  A durante a crise é tão rápida que faz com que a força de arrasto diminuaquando a velocidade aumenta. A Fig. 2 mostra esse comportamento surpreendente para o caso de

uma bola lisa com 22 cm de diâmetro (o tamanho de uma bola de vôlei ou futebol) movendo-se noar.

0 10 20 30 40 50

V (m/s)

0

1

2

3

4

   F   A

   (   N   )

 

Figura 2. Força de arrasto sobre uma esfera lisa de diâmetro 22 cm, em função da velocidade com queela se move no ar.

3. A CRISE DO ARRASTO E A VELOCIDADE TERMINAL 

Como já mencionamos, em um corpo que se move com a velocidade terminal o peso é

equilibrado exatamente pela força de arrasto. Em muitas situações isto só é possível para um únicovalor da velocidade. A crise do arrasto, entretanto, cria outras possibilidades. No exemplo da Fig. 2

podemos ver que se a bola pesar aproximadamente 2 N (≈ 200 g de massa), existem trêsvelocidades para as quais a força de arrasto equilibra o peso. Na verdade, nem todas essasvelocidades são velocidades terminais. Apenas duas das velocidades de equilíbrio, a maior e a

menor, podem ser classificadas assim. A velocidade intermediária não produz um equilíbrio estável,pois ela está na região em que o arrasto diminui quando a velocidade aumenta. Assim, se uma

perturbação qualquer aumentar ligeiramente a velocidade do corpo, a resistência ficará menor que opeso e a velocidade aumentará de novo, afastando-se cada vez mais do ponto inicial. Uma coisaparecida acontece se a velocidade diminuir um pouquinho – a força de arrasto fica maior que o

peso, e conseqüentemente a velocidade será reduzida ainda mais. Com um raciocínio semelhantepodemos mostrar que o equilíbrio é estável nos pontos onde a resistência do meio aumenta com a

velocidade.

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O ponto de equilíbrio instável separa as condições iniciais que levam a uma ou outra dasduas velocidades terminais. Se a bola for atirada (para baixo) com velocidade maior que a do ponto

de equilíbrio instável, ela tenderá para a velocidade terminal mais elevada. Se a velocidade inicialfor menor que a do ponto instável, a velocidade terminal mais baixa será atingida. Tudo isso pode

ser visto em detalhe na Fig. 3, que mostra a como a evolução da velocidade de queda de uma boladepende do impulso inicial. A bola considerada tem diâmetro 22 cm, massa 170 g, e move-se no ar,

de modo que força de arrasto é a mesma mostrada na Fig. 2. Nota-se claramente a existência deduas velocidades terminais distintas, e também do ponto de instabilidade, próximo a 20 m/s,separando as condições iniciais que levam a uma ou outra situação final.

Figura 3. A velocidade de queda de uma bola a partir de diferentes velocidades iniciais.

4. CONCLUSÃO

A crise do arrasto é um fenômeno hidrodinâmico bem conhecido, embora pouco

mencionado nos cursos de física básica. Nós mostramos neste trabalho que a crise tem um efeitocurioso sobre a queda dos corpos: ela pode fazer com que um mesmo objeto apresente duasvelocidades terminais diferentes. Na região onde ocorre a crise, vimos que o peso e a força de

arrasto podem equilibrar-se em três valores distintos da velocidade. Na maior e na menor dessasvelocidades o equilíbrio é estável, e essas são as duas velocidades terminais. O equilíbrio na

velocidade de valor intermediário é instável, e este ponto separa as trajetórias que convergem parauma ou outra velocidade terminal.

Este trabalho foi parcialmente financiado pela Faperj (CNE), Capes (Probal) e CNPq (Pronex).

5. REFERÊNCIAS 

[1] G. Galilei, Dialogues Concerning Two New Sciences (Dover, 1954) p.74.

[2] D. Halliday, R. Resnick, J. Walker, Fundamentals of Physics (Wiley, 1997) p.112.

[3] C. E. Aguiar, G. Rubini, A Aerodinâmica da Bola de Futebol, submetido à Rev. Bras. Ens. Fís.

[4] A.H. Shapiro, Shape and Flow (Doubleday, 1961).

[5] L.D. Landau, E.M. Lifshitz, Fluid Mechanics (Butterworth-Heinemann, 1987), cap. IV.