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Giovanni Arrighi O LONGO SÉCULO XX DINHEIRO, PODER E AS ORIGENS DE NOSSO TEMPO Tradução Vera Ribeiro Revisão de tradução César Benjamin 5a reimpressão (onTRAPomo UNESP

ARRIGHI_O Longo Século XX (Introdução)

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ARRIGHI_O Longo Século XX (Introdução)

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  • Giovanni Arrighi

    O LONGO SCULO XXDINHEIRO, PODER

    E AS ORIGENS DE NOSSO TEMPO

    TraduoVera Ribeiro

    Reviso de traduoCsar Benjamin

    5a reimpresso

    (onTRAPomo

    UNESP

  • SUMRIO

    ixPrefcio e AgradecimentosIntroduo 1

    271 AS TRS HEGEMONIAS DO CAPITALISMO HISTRICOHegemonia, capitalismo e territorialismoAs origens do moderno sistema interestatalA hegemonia britnica e o imperialismo de livre comrcioA hegemonia norte-americana e a ascenso do sistema da livre iniciativaPor um novo programa de pesquisas

    2736475975

    872 A ASCENSO DO CAPITALOs antecedentes dos ciclos sistmicos de acumulaoA gnese das altas finanasO primeiro ciclo sistmico de acumulao (genovs)O segundo ciclo sistmico de acumulao (holands)A dialtica entre Estado e capital

    8798

    111130148

    3 INDSTRIA, IMPERIALISMO E A INTERMINVEL"ACUMULAO DE CAPITALO terceiro ciclo sistmico de acumulao (britnico)A dialtica entre capitalismo e territorialismoA dialtica entre capitalismo e territorialismo (II)Recapitulao e prvia

    163163179200218

    2474 O LONGO SCULO XXA dialtica entre mercado e planejamentoO quarto ciclo sistmico de acumulao (norte-americano)A dinmica da crise global

    247277309

    337EPlLOGO: PODE O CAPITALISMO SOBREVIVER AO SUCESSO?

    Bibliografiandice onomstico

    373389

  • INTRODUO

    Algo de fundamental parece haver-se modificado, no ltimo quarto de sculo,no modo como funciona o capitalismo. Na dcada de 1970, muitos falaram emcrise. Na de 1980, a maioria falou em reestruturao e reorganizao. Na de1990, j no temos certeza de que a crise dos anos 70 foi realmente solucionada, ecomeou a se difundir a viso de que a histria do capitalismo talvez esteja nummomento decisivo.

    Nossa tese a de que, de fato, a histria do capitalismo est atravessando ummomento decisivo, mas essa situao no to sem precedentes quanto poderiaparecer primeira vista. Longos perodos de crise, reestruturao e reorganizao ou seja, de mudanas com descontinuidade tm sido muito mais tpicos da histria da economia capitalista mundial do que os breves momentos deexpanso generalizada por uma via de desenvolvimento definida, como a queocorreu nas dcadas de 1950 e 1960. No passado, esses longos perodos de mudana com descontinuidade terminaram em reorganizaes da economia capitalista mundial sobre bases novas e mais amplas. Nossa investigao tem comometa primordial identificar as condies sistmicas em que uma reorganizaodesse tipo pode ocorrer e, caso ela ocorra, como ela pode se dar.

    Desde, aproximadamente, a dcada de 1970, tm sido fartamente observadasas mudanas no modo como funciona o capitalismo, em termos locais e globais.Embora a exata natureza dessas mudanas ainda seja objeto de alguma controvrsia, o fato de que significam algo fundamental o tema comum de umabibliografia que se multiplica com rapidez.

    Tem havido mudanas na configurao espacial dos processos de acumulaode capital. Na dcada de 1970, a tendncia predominante parecia ser a de umarelocao desses processos, que se deslocavam de pases e regies de alta rendapara os de baixa renda (Frbel, Heinrichs e Kreye, 1980; Bluestone e Harrison,1982; Massey, 1984; Walton, 1985). Na dcada de 1980, ao contrrio, parecia estar em curso uma nova centralizao do capital nos pases e regies de alta renda(Gordon, 1988). Seja qual for a direo do movimento, desde a dcada de 1970 a

    < tendncia de aumento da mobilidade geogrfica do capital (Sassen, 1988; Scott,1988; Storper e Walker, 1989).

    ~ '

  • O LONGO SCULO XX

    Isso est estreitamente associado a mudanas na organizao dos processos deproduo e de troca. Alguns autores afirmaram que a crise da produo em massade tipo fordista baseada em sistemas de mquinas especializadas, operandono interior de empresas gigantescas, com integrao vertical e administraoburocrtica criou oportunidades singulares para o ressurgimento de sistemasde especializao flexvel, baseados na produo artesanal de pequenos lotes,executada em unidades empresariais de pequeno e mdio portes, e coordenadapor processos de troca atravs do mercado (Piore e Sable, 1984; Sable e Zeitlin,1985; Hirst e Zeitlin, 1991). Outros concentraram-se na regulamentao legal dasatividades geradoras de renda e observaram o quantoji crescente formalizaoda vida econmica ou seja, a proliferao de restries legais sobre a organizao dos processos de produo e de troca gerou progressivamente umatendncia oposta para a informalizao, isto , a proliferao de atividades geradoras de renda que contornam a regulamentao legal atravs deste ou daqueletipo de formao de empresas pessoais ou familiares (Lomnitz, 1988; Portes,Castells e Benton, 1989; Feige, 1990; Portes, 1994).

    Superpondo-se parcialmente a essa bibliografia, numerosos estudos seguiram os passos da escola da regulao francesa, interpretando as atuais mudanas no modo de funcionamento do capitalismo como uma crise estrutural doque eles denominam de regime de acumulao fordista-keynesiano (parauma resenha, ver Boyer, 1990; Jessop, 1990; Tickell e Peck, 1992). Esse regime considerado uma fase particular do desenvolvimento capitalista, caracteriza-da por investimentos em capital fixo que criam uma capacidade potencial para aumentos regulares da produtividade e do consumo em massa. Para queesse potencial se realize, so necessrias uma poltica e uma ao governamentais adequadas, bem como instituies sociais, normas e hbitos comporta-mentais apropriados (o modo de regulao). O keynesianismo descritocomo o modo de regulao que permitiu que o regime fordista emergente realizasse todo o seu potencial. E este, por sua vez, concebido como a causa fundamental da crise da dcada de 1970 (Aglietta, 1979b; De Vroey, 1984; Lipietz,1987; 1988).

    maioria dos regulacionistas agnstica quando se trata de prever qualser o sucessor do fordismo-keynesianismo ou, a rigor, de saber se algum diahaver outro regime de acumulao com um modo apropriado de regulao.Num esprito similar, mas usando um arcabouo conceituai diferente, ClausOffc ( 1985) e, mais explicitamente, Scott Lash e John Urry (1987) falaram do fimdo capitalismo organizado e da emergncia do capitalismo desorganizado.Consideram que o aspecto central do capitalismo organizado a administrao c a regulao consciente das economias nacionais por hierarquias empresariais c funcionrios de governo est ameaado por uma desconcentrao edescentralizao crescentes dos poderes das corporaes, tanto no plano espacial

    A

  • INTRODUO

    como no funcional, que deixam os processos de acumulao de capital num estado de desorganizao aparentemente irremedivel.

    Discordando dessa nfase na desintegrao do capitalismo contemporneo, eno em sua coeso, David Harvey (1989) sugere que, na verdade, o capitalismotalvez esteja em meio a uma transio histrica do fordismo-keynesianismopara um novo regime de acumulao, que ele chama provisoriamente de acumulao flexvel. Entre 1965 e 1973, diz Harvey, tornaram-se cada vez mais evidentes as dificuldades que o fordismo e o keynesianismo enfrentam para mantersob controle as contradies intrnsecas do capitalismo: primeira vista, a melhor maneira de captar essas dificuldades seria com uma palavra: rigidez. Teriahavido problemas com a rigidez dos investimentos de longo prazo e em largaescala nos sistemas de produo em massa, com a rigidez dos mercados e contratos de trabalho regulamentados, e com a rigidez dos compromissos estatais comprogramas de seguridade social e de defesa.

    Por trs de todos esses traos especficos de rigidez, havia uma configuraomuito pesada e aparentemente fixa do poder poltico e das relaes recprocas,que atou em larga escala as grandes massas de trabalhadores, o grande capital eo governo no que cada vez mais se assemelhou a um n disfuncional de interesses adquiridos, definidos de forma to estrita que mais fizeram minar doque garantir a acumulao de capital. (Harvey, 1989, p. 142)

    A tentativa dos governos norte-americano e britnico de manter o surto decrescimento econmico do aps-guerra, atravs de uma poltica monetria extraordinariamente frouxa, teve algum sucesso no fim da dcada de 1960, mas

    p: surtiu efeitos adversos no comeo da seguinte. Os sinais de rigidez aumentaramji 1 T ainda mais, o crescimento real cessou, houve perda de controle sobre as ten-

    7 '1 dncias inflacionrias, e o sistema de taxas de cmbio fixas, que havia sustentado/ e regulado a expanso do aps-guerra, entrou em colapso. Desde ento, todas

    ~ as naes tm estado merc da disciplina financeira, seja pelos efeitos da fuga"J '"o p de capitais, seja por presses institucionais diretas. Sempre houve, claro, um

    O' equilbrio delicado entre os poderes financeiros e estatais no capitalismo, mas a desarticulao do fordisrno=keynesianismo significou uma evidente guinada

    - O T para um aumento de poder.jdo...capitaLfinanceiro irente.aoJista,mciaim!~ (iarvey, 1989, p. 145, 168). -rssa guinada, por sua vez, levou a uma exploso de novos instrumentos e

    ,-j > J- mercados financeiros, ligada ascenso de sistemas muito sofisticados de coor-- v O denao financeira em escala global. esse extraordinrio desabrochamento e '-y transformao dos mercados financeiros que Harvey, no sem certa hesitao,

    toma como a verdadeira novidade do capitalismo nas dcadas de 1970 e 1980e como o trao fundamental do regime emergente de acumulao flexvel.O remanejamento espacial dos processos de produo e acumulao, o ressurgi-

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  • 0 LONGO SCULO XX

    mento da produo artesanal e das redes empresariais pessoais/familiares e adisseminao de coordenaes via mercado, em detrimento do planejamentoempresarial e governamental, tudo isso, na opinio de Harvey, so diferentesfaces da passagem para o novo regime de acumulao flexvel. Entretanto, ele seinclina a v-las como expresses da busca de solues financeiras para as tendncias de crise do capitalismo (Harvey, 1989, p. 191-4).

    Harvey tem plena conscincia de como difcil teorizar a transio para aacumulao flexvel presumindo-se que seja realmente isso que o capitalismovem experimentando e aponta diversos dilemas tericos.

    Ser possvel apreender a lgica, seno a necessidade, dessa transio? At queponto as formulaes tericas, passadas e presentes, sobre a dinmica do capitalismo tm que ser modificadas, luz das reorganizaes e reestruturaesradicais que vm ocorrendo nas foras produtivas e nas relaes sociais? Poderemos retratar o regime atual suficientemente bem para ter uma idia do cursoe das implicaes provveis do que parece ser uma revoluo em andamento?A transio do fordismo para a acumulao flexvel (...) trouxe srias dificuldades para diversas teorias. (...) O nico ponto aceito por todos que algumacoisa significativa se alterou no modo como o capitalismo tem funcionado apartir de, aproximadamente, 1970. (Harvey, 1989, p. 173)As indagaes que geraram este estudo so semelhantes s de Harvey. Mas as

    respostas so buscadas numa investigao das tendncias atuais luz de padresde repetio e evoluo que abarcam todo o curso do capitalismo histrico comosistema mundial. Uma vez que ampliemos dessa maneira o horizonte espao-temporal de nossas observaes e conjecturas tericas, tendncias que pareciaminditas e imprevisveis comeam a afigurar-se familiares.

    Q-Ponto de partida de nossa investigao foi a afirmao de Fernand Braudel,deque as caractersticas essenciais do capitalismo histrico em sua longue dure~ isto , durante toda a sua existncia foram a flexibilidade e o ecletisroodo capital, e no as formas concretas assumidas por ele em diferentes lugares epocas:

    Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser um aspecto essencial dahistria geral do capitalismo: sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade demudana e de adaptao. Se h, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itlia do sculo XIII at o Ocidente dos dias atuais, a, acima detudo, que essa unidade deve ser situada e observada. (Braudel, 1982, p. 433,grifo no original)

    Em certos perodos, inclusive perodos longos, o capitalismo de fato pareceu es-pecializar-se, como no sculo XIX, quando se deslocou to espetacularmentepara o novo mundo da indstria. Essa especializao levou os historiadores emgeral (...) a encararem a indstria como o desabrochamento final, que teria dadoao capitalismo sua verdadeira identidade. Mas essa uma viso de curto prazo:

  • INTRODUO

    [Aps] a exploso inicial da mecanizao, o tipo mais avanado de capitalismo retornou ao ecletismo a uma indivisibilidade de interesses, por assimdizertanto hoje quanto na poca de Jacques Coeur (o magnata do sculo XIV), consistisse precisamente em no ter que estar restrito a uma nica opo, em sereminentemente adaptvel e, por conseguinte, no especializado. (Braudel,1982, p. 381, grifo no original; traduo corrigida conforme indicado emWallerstein, 1991, p. 213)

    como se a tpica vantagem de estar no alto comando da economia,

    Parece-me que esses trechos podem ser lidos como uma reafirmao da frmulageral de Karl Marx para o capital: DMD. O capital-dinheiro (D) significa liquidez, flexibilidade e liberdade de escolha. O capital-mercadoria (M) o capitalinvestido numa dada combinao de insumo-produto, visando ao lucro; portanto, significa concretude, rigidez e um estreitamento ou fechamento das opes.D representa a ampliao da liquidez,,dailexibilidade_e.da-lifaerdade-de-escolha.

    Assim entendida, a frmula de Marx nos diz que no como um fim emsi que os agentes capitalistas investem dinheiro em combinaes especficasde insumo-produto, com perda concomitante da flexibilidade e da liberdade deescolha. Ao contrrio, eles o fazem como um meio para chegar finalidadede assegurar uma flexibilidade e liberdade de escolha ainda maiores num momento futuro. A frmula tambm nos diz que, quando os agentes capitalistasno tm expectativa de aumentar sua prpria liberdade de escolha, ou quandoessa expectativa sistematicamente frustrada, ocapital fendea retornar aformasmais flexveis de investimento acima de tudo, sua forma monetria. Em outras palavras, os agentes capitalistas passamji preferir a liquidez, e uma parcelaincomumente grande de seus recursos tende a permanecer sob forma lquida.

    Essa segunda interpretao est implcita na caracterizao braudeliana.daexpanso financeira como um sintoma da maturidade de determinado desenvolvimento capitalista. Ao discutir a retirada dos holandeses do comrcio emmeados do sculo XVIII, para se transformarem nos banqueiros da Europa,Braudel sugere que essa retirada uma tendncia sistmica recorrente em mbito mundial. Antes, a mesma tendncia se evidenciara na Itlia do sculo XV,quando a oligarquia capitalista genovesa passou das mercadorias para a atividade bancria, e na segunda metade do sculo XVI, quando os nobili vecchigenoveses, fornecedores oficiais de emprstimos ao rei da Espanha, retiraram-segradualmente do comrcio. Seguindo os holandeses, essa tendncia foi reproduzida pelos ingleses no fim do sculo XIX e incio do sculo XX, quando o fim dafantstica aventura da revoluo industrial criou um excesso de capital monetrio (Braudel, 1984, p. 242-3, 246).

    Depois da igualmente fantstica aventura do chamado fordismo-keynesia-nismo, o capital dos Estados Unidos tomou um rumo semelhante nas dcadasde 1970 e 1980. Braudel no discute a expanso financeira da nossa poca, que

  • O LONGO SCULO XX

    ganhou impulso depois de ele haver concludo sua trilogia Civilisation matrielle,conomie et capitalisme. No obstante, podemos facilmente reconhecer nesserenascimento recente do capital financeiro mais um exemplo do retorno aoecletismo que, no passado, esteve associado ao amadurecimento de algumgrande desenvolvimento capitalista: [Todo] desenvolvimento capitalista desse.tipo, ao atingir o estgio de expanso financeira, parece anunciar, em certo sentido, sua maturidade: [] um sinal do outono (Braudel, 1984, p. 246, grifo nosso).

    Portanto, a frmula geral do capital apresentada por Marx (DMD) pode serinterpretada como retratando no apenas a lgica dos investimentos capitalistasindividuais, mas tambm um padro reiterado do capitalismo histrico comosistema mundial. O aspecto central desse padro a alternncia de pocas de expanso material (fases DM de acumulao de capital) com fases de renascimento eexpanso financeiros (fases MD). Nas fases de expanso material, o capital mone-trio coloca em movimento uma massa crescente de produtos (que inclui ,afora de trabalho e ddivas da natureza, tudo transformado em mercadoria); nasfases de expanso financeira, uma massa crescente de capital monetrio liberta-se de sua forma mercadoria, e a acumulao prossegue atravs de acordos financeiros (como na frmula abreviada de Marx, DD), Juntas, essas duas pocas, oufases, constituem um completo ciclo sistmico de acumulao (DMD)./

    Nossa investigao , essencialmente, uma anlise comparativa dos sucessivosciclos sistmicos de acumulao, numa tentativa de identificar (1) os padres derecorrncia e evoluo, que se reproduzem na atual fase de expanso financeira ereestruturao sistmica, e (2) as anomalias da atual fase de expanso financeira,que podem levar a um rompimento com padres anteriores de recorrncia eevoluo. Sero identificados quatro ciclos sistmicos de acumulao, cada qualcaracterizado por uma unidade fundamental do agente e estrutura primrios dosprocessos de acumulao de capital em escala mundial: um ciclo genovs, dosculo XV ao incio do XVII; um ciclo holands, do fim do sculo XVI at decorrida a maior parte do sculo XVIII; um ciclo britnico, da segunda metade do sculo XVIII at o incio do sculo XX; e um ciclo norte-americano, iniciado no fim dosculo XIX e que prossegue na atual fase de expanso financeira. Como se v poressa periodizao aproximada e preliminar, os ciclos sistmicos consecutivos deacumulao se superpem c, embora adquiram uma durao progressivamentemais curta, todos duram mais de um sculo: da a idia de sculo longo, queser tomada como unidade temporal bsica na anlise dos processos mundiais deacumulao de capital.

    lisscs ciclos so totalmente diferentes dos ciclos seculares (ou curvas logsticas de preos) e dos ciclos (mais curtos) de Kondratieff, a que Braudel conferiutanta importncia. Os ciclos seculares e os de Kondratieff so constructos empricos cuja base terica incerta, derivados da observao das flutuaes de longoprazo nos preos das mercadorias (para um levantamento da literatura pertinen-

  • INTRODUO

    te, ver Barr, 1979; Goldstein, 1988). Os ciclos seculares tm algumas semelhanasnotveis com nossos ciclos sistmicos: somam um total de quatro, todos durammais de um sculo, e se tornam progressivamente mais curtos (Braudel, 1987,p. 78). Entretanto, os ciclos seculares de preos e os ciclos sistmicos de acumulao so completamente assincrnicos entre si. A expanso financeira tem igualprobabilidade de surgir no comeo, no meio ou no fim de um ciclo secular (depreos) (ver figura 10 p. 219).

    Braudel no tenta conciliar essa discrepncia entre sua datao das expansesfinanceiras na qual se baseia nossa periodizao dos ciclos sistmicos de acumulao e sua datao dos ciclos seculares (de preos). Tampouco o faremosns. Confrontados com uma escolha entre esses dois tipos de ciclos, optamospelos ciclos sistmicos, porque eles so indicadores muito mais vlidos e fidedignos do que especificamente capitalista no sistema mundial moderno do que osciclos seculares ou os de Kondratieff.

    Na verdade, no h consenso na literatura sobre o que indicam as flutuaesde preos a longo prazo quer as do tipo logstico ou as de Kondratieff. Elascertamente no so indicadores fidedignos das contraes e expanses do quequer que haja de especificamente capitalista no moderno sistema mundial. A lu-cratividade e o domnio do capital sobre os recursos humanos e naturais podemdiminuir ou aumentar tanto nas fases de contrao quanto nas de expanso.Tudo depende da fonte de onde provm a concorrncia que leva os preos paracima ou para baixo. Quando so os prprios capitalistas, como quer que sejamdefinidos, que competem com maior (ou menor) intensidade do que seus fornecedores e clientes no capitalistas, a lucratividade baixa (ou sobe) e o domniodo capital sobre os recursos diminui (ou aumenta), independentemente de haveruma tendncia global de subida ou de queda dos preos.

    Tampouco a logstica de preos e os ciclos de Kondratieff parecem ser fenmenos especificamente capitalistas. interessante notar que, na sntese deJoshua Goldstein sobre as constataes empricas e as justificaes tericas dosestudos das ondas longas, a noo de capitalismo no desempenha papel algum. Ele verifica estatisticamente que as ondas longas dos preos e da produoso basicamente explicadas pela severidade do que ele chama de guerras dasgrandes potncias. Quanto ao capitalismo, a questo de sua emergncia eexpanso situa-se inteiramente fora do mbito de sua investigao (Goldstein,1988, p. 258-74, 286).

    A questo da relao entre a ascenso do capitalismo e as oscilaes dos preosa longo prazo tem perturbado os estudos do sistema mundial desde sempre.Nicole Bousquet (1979, p. 503) considerou embaraoso que a logstica de preos tenha antecedido em muito o ano de 1500. Pela mesma razo, Albert Ber-gesen (1983, p. 78) perguntou a si mesmo se a logstica de preos representa adinmica do feudalismo ou do capitalismo, ou ambas. At a China Imperial pa-

  • O LONGO SCULO XX

    rece haver experimentado ciclos do mesmo tipo dos da Europa (Hartwell, 1982;Skinner, 1985). E, mais inquietante do que tudo, Barry Gills e Andr GunderFrank (1992, p. 621-2) sustentaram que os ciclos rtmicos e as tendncias seculares fundamentais do sistema mundial devem ser reconhecidos como existentes h uns 5 mil anos, em vez dos quinhentos que tm sido convencionados nasabordagens do sistema mundial e das ondas longas.

    Em suma, a ligao entre os ciclos seculares de Braudel e a acumulao capitalista de capital no tem um claro fundamento lgico ou histrico. A idia dosciclos sistmicos de acumulao, ao contrrio, deriva diretamente da idia brau-deliana do capitalismo como a camada superior no especializada da hierarquia do mundo do comrcio. Nessa camada superior que se fazem os lucrosem larga escala. Nela, os lucros no so grandes apenas porque a camada capitalista monopolize as atividades econmicas mais lucrativas; mais importanteainda o fato de que a camada capitalista tem a flexibilidade necessria para deslocar continuamente seus investimentos das atividades econmicas que estejamenfrentando uma reduo dos lucros para as que no se encontrem nessa situao (Braudel, 1982, p. 22, 231, 428-30).

    Tl gomo naJrmHk.gerfl/.de Marx sobre o capital (pMp), aquilo.que,.nadefinio braudeliana do capitalismo, faz com que um agente ou uma camadasocial sejam capitalistas no sua predisposio a investir num dado produtp(p. ex., a fora de trabalho) ou esfera de atividade (p. ex., a indstria). Um agente capitalista em virtude do fato de seu dinheiro ser sistemtica e persistentemente dotado da capacidade de multiplicar-se (expresso de Marx), seja qual

    a natureza das mercadoriase atividades especficas que constituem, num da-o momento, o meio contingente. A noo de ciclos sistmicos de acumulao,

    que deduzimos da observao histrica braudeliana das expanses financeirasreiteradas, uma decorrncia lgica dessa relao estritamente instrumental docapitalismo com o mundo do comrcio e da produo, e vem enfatiz-la. Ouseja, as expanses financeiras so tomadas como sintomticas de uma situaoem que o investimento da moeda na expanso do comrcio e da produo nomais atende, com tanta eficincia quanto as negociaes puramente financeiras,ao objetivo de aumentar o fluxo monetrio que vai para a camada capitalista.Nessa situao, o capital investido no comrcio e na produo tende a retornar asua forma monetria e a se acumular mais diretamente, como na frmula marxista abreviada (DD).

    Os ciclos sistmicos de acumulao, ao contrrio da logstica de preos e dosciclos de Kondratieff, so, portanto, fenmenos intrinsecamente capitalistas.Apontam para uma continuidade fundamental nos processos mundiais de acumulao de capital nos tempos modernos. Mas tambm constituem rupturasfundamentais nas estratgias e estruturas que moldaram esses processos ao longo dos sculos. Tal como algumas conceituaes dos ciclos de Kondratieff

  • INTRODUO

    II

    31

    I bI'b.1

    Tempo

    Figura 1. 0 modelo de metamorfose de Mensch. (Fonte: Mensch, 1979, p. 73)

    como as de Gerhard Mensch (1979), David Gordon (1980) e Carlota Perez(1983) , nossos ciclos destacam a alternncia de fases de mudanas contnuase fases de mudanas descontnuas.

    Assim, nossa sequncia de ciclos sistmicos parcialmente superpostosuma estreita semelhana formal com o modelo de metamorfose do desenvolvimento socioeconmico de Mensch. Este autor (1979, p. 73) abandona a idiade que a economia se desenvolveu em ondas, defendendo a teoria de que ela evoluiu por uma srie de impulsos inovadores intermitentes, que assumem a formade ciclos sucessivos em forma de S (figura 1). O modelo menschiano retratafases de crescimento estvel num rumo bem definido, alternando-se com fasesde crise, reestruturao e turbulncia, que acabam recriando as condies docrescimento estvel.

    O modelo de Mensch refere-se primordialmente ao crescimento e s inovaes em determinadas indstrias ou em determinadas economias nacionais e,como tal, no tem uma importncia imediata para nossa investigao. No obstante, a idia de ciclos compostos de fases de mudanas contnuas, que seguemuma via nica, alternando-se com fases de mudanas descontnuas, que vo deuma via para outra, est implcita em nossa sequncia de ciclos sistmicos de acumulao. A diferena que, em nosso modelo, o que se desenvolve no umadeterminada indstria ou economia nacional, mas a economia mundial capitalista como um todo, ao longo de toda a sua existncia. Assim, mostraremos que asfases DM, de expanso material, consistem em fases de mudanas contnuas, durante as quais a economia capitalista mundial cresce por uma nica via de desenvolvimento. E veremos que as fases MD, de expanso financeira, consistemfases de mudanas descontnuas, durante as quais o crescimento pela via estabelecida j atingiu ou est atingindo seus limites e a economia capitalista mundialse desloca, atravs de reestruturaes e reorganizaes radicais, para outra via.

    Historicamente, o crescimento por uma nica via de desenvolvimento e asguinadas de uma via para outra no tm sido um simples resultado inintencio-nal dos inmeros atos autonomamente praticados, numa dada poca, pelos indivduos e pelas mltiplas comunidades em que se divide a economia mundial.

    tem

    em

  • 10 O LONGO SCULO XX

    As expanses e reestruturaes da economia capitalista mundial tm ocorrido,antes, sob a liderana de determinadas comunidades e blocos de agentes governamentais e empresariais, singularmente bem-posicionados para tirar proveitodas consequncias no pretendidas dos atos de outros agentes. O que entendemos por regime de acumulao em escala mundial so as estratgias e estruturasmediante as quais esses agentes preponderantes promovem, organizam e regulam a expanso ou a reestruturao da economia capitalista mundial. O principal objetivo do conceito de ciclos sistmicos descrever e elucidar a formao,consolidao e desintegrao dos sucessivos regimes pelos quais a economia capitalista mundial se expandiu, desde seu embrio subsistmico do fim da IdadeMdia at sua dimenso global da atualidade.

    Toda esta construo apia-se na viso braudeliana, nada convencional, daexistncia de uma relao ligando a criao e a reproduo ampliada do capitalismo histrico, como sistema mundial, aos processos de formao de Estados, deum lado, e de formao de mercados, de outro.A viso convencional das cinciassociais, do discurso poltico e dos meios de comunicao de massa que capitalismo e economia de mercado so mais ou menos a mesma coisa, e que o poderdo Estado oposto a ambos. Braudel, ao contrrio, encara a emergncia e a ex-panso do capitalismo como absolutamente dependentes do poder estatal, cpns-tituindo-se esse sistema na anttese da economia de mercado (cf. Wallerstein,L99_L> caP;J4-15)v

    ......Mais especificamente, Braudel concebeu o capitalismo como a camada supe

    rior de uma estrutura em trs patamares, na qual, como em todas as hierarquias,as [camadas] superiores no poderiam existir sem os estgios inferiores de quedependem. A camada mais inferior e, at muito recentemente, a mais ampla a de uma economia extremamente elementar e basicamente auto-suficiente.Na falta de expresso melhor, ele denominou essa camada de vida material,a camada da no-economia, o solo em que o capitalismo crava suas razes, mas

    no qual nunca consegue realmente penetrar (Braudel, 1982, p. 21-2, 229):Acima [dessa camada mais baixa] vem o campo favorecido da economia demercado, com suas muitas comunicaes horizontais entre os diferentes mercados: aqui, uma certa medida de coordenao automtica costuma ligar aoferta, a demanda e os preos. Depois, ao longo dessa camada, ou melhor,acima dela, vem a zona do antimercado, onde circulam os grandes predadorese vigora a Ici da selva. Este hoje como no passado, antes e depois da revoluo industrial c o verdadeiro lar do capitalismo. (Braudel, 1982, p. 229-30,grifos nossos)Uma economia mundial de mercado, no sentido de muitas comunicaes

    horizontais entre os diferentes mercados, emergiu das profundezas da camadafundamental de vida material muito antes que o capitalismo-como-sistema-mundial se elevasse acima da camada da economia de mercado. Como mostrou

    b-

  • INTRODUO 1 1

    Janet Abu-Lughod (1989), um sistema frouxo mas, ainda assim, claramentereconhecvel de comunicaes horizontais entre os principais mercados daEursia e da frica j estava instaurado no sculo XIII. E, por tudo o quesabemos, bem possvel que Gills e Frank estejam certos em sua afirmao de que essesistema de comunicaes horizontais realmente emergiu vrios milnios antes.

    Como quer que seja, a questo que concerne diretamente a nossa pesquisano quando e como uma economia mundial de mercado ergueu-se acima dasestruturas primordiais da vida cotidiana, mas quando e como o capitalismo ergueu-se acima das estruturas da economia mundial de mercado preexistente e,com o correr do tempo, adquiriu seu poder de moldar de maneira nova os mercados e as vidas do mundo inteiro. Como assinalou Braudel (1984, p. 92), a metamorfose da Europa no monstruoso modelador da histria mundial em queela se transformou depois de 1500 no foi uma simples transio. Foi, antes,uma srie de etapas e transies, datando a primeira delas de muito antes do quese costuma conhecer como o Renascimento do fim do sculo XV.

    O momento mais decisivo dessa srie de transies no foi a proliferao deelementos ligados iniciativa capitalista na Europa. Elementos desse tipo haviamaparecido em todo o sistema de comrcio eurasiano e de modo algum eram peculiares ao Ocidente:

    Em toda parte, do Egito ao Japo, encontramos autnticos capitalistas, atacadistas, gente que vivia da renda do comrcio, e seus milhares de ajudantes os agentes comerciais, corretores, cambistas e banqueiros. Qualquer dessesgrupos de mercadores seria comparvel a seus equivalentes ocidentais no quediz respeito a tcnicas, possibilidades ou formas de cauo para as trocas. Dentro e fora da ndia, os mercadores de Tamil, Bengala e Gujerat formavam sociedades unidas por vnculos estreitos, com os negcios e contratos passandode um grupo para outro, em movimento, tal como aconteceria, na Europa,dos florentinos para os lucaneses, os genoveses, os alemes do sul ou os ingleses. Houve at, nos tempos medievais, reis mercadores no Cairo, em Aden enos portos do golfo Prsico. (Braudel, 1984, p. 486)

    Em parte alguma, com exceo da Europa, esses componentes do capitalismofundiram-se na poderosa mescla que impeliu as naes europias conquistaterritorial do mundo e formao de uma economia mundial capitalista poderosssima e verdadeiramente global. Por essa perspectiva, a transio realmente importante, que precisa ser elucidada, no a do feudalismo para o capitalismo,mas a do poder capitalista disperso para um poder concentrado. E o aspecto maisimportante dessa transio a fuso singular do Estado com o capital, que emparte alguma se realizou de maneira mais favorvel ao capitalismo do que naEuropa:

    O capitalismo s triunfa quando se identifica com o Estado, quando o Estado.Em sua primeira grande fase, a das cidades-Estados italianas de Veneza, Gno-

  • O LONGO SCULO XX12

    Florena, o poder estava nas maos da elite endinheirada. Na Holanda dova esculo XVII, a aristocracia dos Regentes governou em benefcio dos negociantes, mercadores e emprestadores de dinheiro, e at de acordo com suas diretrizes. Do mesmo modo, na Inglaterra, a Revoluo Gloriosa de 1688 marcouuma ascenso dos negcios semelhante da Holanda. (Braudel, 1977, p. 64-5,grifos nossos)

    O anverso desse processo foi a competio interestatal pelo capital circulante.Como assinalou Max Weber em sua Wirtschaftsgeschichte,* tanto na Antiguidadequanto no fim da Idade Mdia as cidades europias foram as sementeiras do capitalismo poltico. Em ambos os perodos, a autonomia dessas cidades sofreuuma eroso progressiva em decorrncia de estruturas polticas mais amplas. Noobstante, enquanto na Antiguidade essa perda de autonomia representou o fimdo capitalismo poltico, no incio dos tempos modernos ela significou a expanso do capitalismo para um novo tipo de sistema mundial:

    Na Antiguidade, a liberdade das cidades foi eliminada por um imperialismomundial burocraticamente organizado, dentro do qual j no havia lugar parao capitalismo poltico. (...) [Em] contraste com a Antigiiidade, [as cidades, naera moderna,] ficaram sob o poder de Estados nacionais concorrentes, numasituao de luta perptua pelo poder, na paz ou na guerra. Essa luta competitiva criou as mais amplas oportunidades para o moderno capitalismo ocidental.Os estados, separadamente, tiveram que competir pelo capital circulante, que lhesditou as condies mediante as quais poderia auxili-los a ter poder. (...) Portanto, foi o Estado nacional bem delimitado que proporcionou ao capitalismosua oportunidade de desenvolvimento e, enquanto o Estado nacional noceder lugar a um imprio mundial, o capitalismo tambm persistir. (Weber,1961, p. 247-9, grifos nossos)

    Ao frisar esse mesmo ponto em Wirtschaft und Gesellschaft,** Weber (1978,p. 353-4) sugeriu ainda que essa competio pelo capital circulante, entre estruturas grandes, aproximadamente equivalentes e puramente polticas, resultou

    na memorvel aliana entre os Estados em ascenso e as foras capitalistas,disputadas e privilegiadas, que foi um fator fundamental para a criao docapitalismo moderno. (...) Nem o comrcio nem as polticas monetrias dosEstados modernos (...) podem ser compreendidos sem essa singular competio c equilbrio polticos entre os Estados europeus durante os ltimosquinhentos anos.

    Nossa anlisejr reforar essas observaes, mostrando que a concorrnciainterestatal foi um componente crucial de toda e qualquer fase de expanso fi------------------------------------------- . A . -.......................................................____________----*--------nanceira, bem como um fator de vulto na formao dos blocos de organizaes* lUlio brasileira, Histria geral da economia, Editora Mestre Jou, So Paulo, 1968.

    ** Edio brasileira, Economia e sociedade, Editora Universidade de Braslia, 1991.

  • IINTRODUO

    poruas sucessivas fases de expanso material. Mas, numa restrio parcial tesede Weber, nossa anlise tambm mostrar que a concentrao do poder nas mosde determinados blocos de rgos governamentais e empresariais foi to essencial para as reiteradas expanses materiais da economia mundial capitalistaquanto a concorrncia entre estruturas polticas aproximadamente equivalen-tes :geral, as grandes expansesimpendss_nove bloco dominante acumulou poder mundial suficiente para ficar em condies no apenas de contornar a competio interestatal, ou erguer-se acima dela,mas tambm de mant-la sob controle, garantindo um mnimo de cooperaoentre os Estados. Oqueimpulsionoua prodigiosa expanso da economia mun-dia! capitalista nos ltimos quinhentos anos, em outras palavras, no foqa concorrncia entre Estados como tal, mas essa concorrncia aliada a uma concentrao cada vez maior do poder capitalista no sistema mundial como m todo.

    A idia de uma concentrao cada vez maior do poder capitalista no modernosistema mundial est implcita num padro assinalado por Karl Marx em O Capital. Aojstudar o impulso pie esteve na origem da .expanso dg capitalismomoderno, Marx, assim como Weber, atribuiu grande importncia ao papel desempenhado peio sistema de endividamento nacional, do qual Gnova e Venezaforam pioneiras no fim da Idade Mdia:

    i

    O endividamento nacional, isto , a alienao do Estado seja ele desptico,constitucional ou republicano imprimiu sua marca na era capitalista. (...)Como pelo toque de uma vara de condo, [a dvida pblica] confere aodinheiro estril capacidade de multiplicar-se e, com isso, transforma-o emcapital, sem a necessidade de que ele se exponha aos problemas e riscos inseparveis de seu

    emprego na indstria ou at na usura. Os credores do Estado,na verdade, no do coisa alguma, pois a soma emprestada transformadaem ttulos pblicos, fceis de negociar, que podem continuar funcionandoem suas mos tal como o faria o dinheiro sonante. (Marx, 1959, p. 754-5)Tendo concentrado sua ateno nos aspectos domsticos da acumulao de capital, Marx no destacou a importncia, sempre reiterada, das dvidas nacionais nocontexto de um sistema de Estados que, lutando pelo poder, disputam entre si aajuda dos capitalistas. Para Marx, a alienao dos ativos e das receitas futuras dasnaes foi apenas um aspecto da acumulao primitiva a acumulao prvia de Adam Smith, uma acumulao que no resulta do modo de produocapitalista, mas seu ponto de partida (Marx, 1959, p. 713). No entanto, Marxreconheceu a importncia permanente das dvidas nacionais, no como aexpresso da competio interestatal,

    tercapitalista invisvel, que iniciou repetidasmeio de cooperao in-

    acumulao de capitalo espao-tempo da economia mundial capitalista, desde seu incio at os diasdo prprio Marx:

    mas como umvezes a

    !

  • O LONGO SCULO XX14

    Com a dvida nacional surgiu um sistema de crdito internacional, que amide oculta uma das fontes da acumulao primitiva deste ou daquele povo. Assim, as vilanias do sistema veneziano de ladroagem formaram uma das basessecretas da riqueza da Holanda, a quem Veneza, em sua decadncia, emprestara grandes somas em dinheiro. O mesmo se deu entre a Holanda e a Inglaterra.No incio do sculo XVIII, (...) a Holanda deixara deser a nao preponderanteno comrcio e na indstria. O emprstimo de imensas somas de capital, especialmente para sua grande rival, a Inglaterra, [tornou-se] ento um de seusprincipais ramos de negcios. [E o] mesmo vem acontecendo hoje entre a Inglaterra e os Estados Unidos. (Marx, 1959, p. 755-6)

    Marx, todavia, no reparou que a sequncia de naes capitalistas dominantes,esboada nessa passagem, era formada por unidades dotadas de dimenses,

    poderio mundial sempre crescentes. Todos esses quatro Estados Veneza, as Provncias Unidas [Holanda], o Reino Unido e os Estados Unidos foram grandes potncias das sucessivas pocas durante as quais seus grupos dominantes desempenharam, ao mesmo tempo, o papel de lderes dos processos deformao do Estado e de acumulao de capital. Vistos em sequncia,esses quatro Estados parecem ter sido grandes potncias em ordenamentos muitodiferentes e cumulativos. Como detalharemos no decorrer deste estudo, os domnios metropolitanos de cada Estado citado nessa sequncia abarcaram um territrio mais vasto e uma maior variedade de recursos que os de seu predecessor.E, o que mais importante, medida que a sequncia progrediu, aumentaram aescala e o alcance das redes de poder e acumulao que permitiram aos Estadosem questo reorganizar-se e controlar o sistema mundial em que operavam.

    Assim, v-se que a expanso do poder capitalista nos ltimos quinhentos anosesteve associada no apenas competio interestataf pelo_ capital.irculant,como enfatizou Weber, mas tambm formao de estruturas polticas dotadasde capacidades organizacionais cada vez mais amplas e complexas para controlaro meio social e poltico em que se realizava a acumulao, de capital em escalamundial. Nos ltimos quinhentos anos, essas duas condies fundamentais daexpanso capitalista foram continuamente recriadas em paralelo. Todas as vezesque os processos de acumulao de capital em escala mundial, tal como institudos numa dada poca, atingiram

    recursos e

    entretanto,

    I

    limites, seguiram-se longos perodos deluta intcrestatal, durante os quais o Estado que controlava ou passou a controlaras fontes mais abundantes de excedentes de capital tendeu tambm a adquirir acapacidade organizacional necessria para promover, organizar e regular umanova fase de expanso capitalista, de escala e alcance maiores do que a anterior.

    Em geral, a conquista dessas aptides organizacionais resultou muito mais devantagens de posicionamento, na configurao espacial cambiante da economiacapitalista mundial, do que da inovao em si. Braudel (1977, p. 66-7) chegodizer que a inovao no desempenhou papel algum nas sucessivas mudanas

    seus

    u a

  • 15INTRODUO

    sistmicos de acumulao:a copiarespaciais que alteraram os centros dos processos

    Amsterdam copiou Veneza, tal como Londres viria posteriormenteAmsterdam e como Nova York, um dia, copiaria Londres. Como

    veremos, esse

    processo de imitao foi muito mais complexo do que est indicadona simples

    sequncia aqui esboada. Veremos que cada mudana esteveassociada a uma

    verdadeira revoluo organizacional nas estratgias e estruturas doagente pre

    ponderanteda expanso capitalista. No obstante, a afirmaode Braudel deque

    a mudana refletiu a vitria de uma nova regio sobre uma antiga,combinada

    com uma vasta mudana de escala, ser mantida.Os centros em declnio tentavam apropriar-se de uma parte dos

    enormes excedentes acumulados nos novos centros, em ascenso, enviando capital

    para es

    tes, tal como Marx observou. Fluxos desse tipo caracterizaram todasas expanses

    financeiras do passado. Mas a expanso financeira atual desvia-se dessepadro.

    Como iremos documentar no Eplogo, a expanso atual assistiua um cresci

    mento explosivo do Japo e de outros pases menores do lesteasitico, que se

    transformaram num novo centro dos processos mundiais de acumulaode ca

    pital. No entanto, houve poucas provas, na dcada de 1980, de umgrande fluxo

    de capital do centro em declnio para esse centro emergente. Ao contrrio.De

    pois de citarem a passagem em que Marx descreve o apoio secreto dadopelos

    lderes decadentes dos processos de acumulao de capital a seussucessores, Joel

    Kotkin e Yoriko Kishimoto (1988, p. 123) assinalaram: Numa espantosainver

    so da frase de Marx, os Estados Unidos no esto seguindo o padrode outros

    imprios exportadores de capital (Veneza, Holanda e Gr-Bretanha), masesto

    onda de investimentos do exterior. Na opinio dos.rimordialmente atrao exercida sobre o capitalde controle dos norte-americanos sobre as ativi-

    nte dos Estados Unidos,por sua condio

    agora atraindo uma novaautores, essa inverso se deve pestrangeiro pela relativa faltadacles empresariais estrangeiras, pela populaopelas dimenses fsicas do pas, por seus vastos recursos ede potncia continental mais rica e mais desenvolvida do mundo. Dandoapoio parcial a essa afirmao, eles relatam a opinio de Hiroshi

    Takeuchi, prin

    cipal economista de um banco japons e um conhecido nacionalista econmico, para quem os Estados Unidos tm escala e recursos que o Japo jamais pos-

    resultado, os excedentes japoneses fluram para os EstadosUnidos,

    excedentes britnicos no fim do sculo XIX.Estados Unidos, exportando nosso

    cresce

    um

    suir. Comoexatamente como tinham feito osO papel japons consistir em auxiliar osdinheiro para reconstruir a economia de vocs. Essa a prova de que nossa eco

    nomia fundamentalmente fraca. O dinheiro vai para a Amrica porque vocsso fundamentalmente fortes (citado em Kotkin e Kishimoto, 1988, p. 122-3).

    dos EstadosA opinio de Takeuchi sobre o poderio japons em relao aoUnidos essencialmente idntica expressada por Samuel Huntington

    Harvard em 1979. Como narra Brucenum

    seminrio sobre o Japo, realizado em

  • O LONGO SCULO XX1 6

    Cumings (1987, p. 64), quando Ezra Vogel abriu o seminrio, dizendo que ficorealmente muito inquieto quando reflito sobre as consequncias da ascenso dopoderio japons, a resposta de Huntington foi que, na verdade, o Japo era umpas extraordinariamente fraco. Suas deficincias mais fundamentais eramenergia, alimentos e segurana militar.

    Essa avaliao baseia-se na viso convencional de que o poder interestatalconsiste primordialmente nas dimenses relativas, na auto-suficincia e nas foras militares. Tal viso desconsidera totalmente o fato de que a tecnologia depoder do capitalismo para tomarmos uma expresso de Michael Mann(1986) tem sido muito diferente da do territorialismo. Como frisou Webernos trechos citados acima, e como nossa investigao ir consubstanciar, a competio pelo capital circulante entre estruturas polticas de grande porte, masaproximadamente equivalentes, tem sido o fator mais essencial e duradouro naascenso e expanso do poder capitalista na era moderna. A menos que levemosem conta os efeitos dessa competio sobre o poder das naes concorrentes esobre o poder das organizaes estatais e no estatais que as auxiliam economicamente nessa luta, nossas avaliaes das relaes de fora do sistema mundialestaro fadadas a ser fundamentalmente falhas. A capacidade de algumas cida-des-Estados italianas, ao longo de vrios sculos, de se manterem militarmenteavanadas e de exercerem influncia poltica nas grandes potncias territoriais daEuropa do fim da era medieval e incio da era moderna seria to incompreensvelquanto o sbito colapso e desintegrao, no fim da dcada de 1980 e incio da de1990, da maior, mais autnoma e segunda maior potncia militar de nossa poca, a Unio Sovitica.

    No foi por acidente que a aparente inverso da frase de Marx, assinalada porKotkin e Kishimoto, ocorreu em meio a uma sbita escalada da corrida arma-mentista e da luta poltico-ideolgica entre os Estados Unidos e a Unio Soviti-ca a segunda Guerra Fria de Fred Halliday (1986). Tambm no foi poracaso que a expanso financeira das dcadas de 1970 e 1980 atingiu seu momentode maior esplendor exatamente na poca dessa escalada. Parafraseando Marx, foinessa poca que a alienao do Estado norte-americano prosseguiu com maisrapidez do que nunca; e, parafraseando Weber, foi nessa poca que a competiopelo capital circulante entre as duas maiores estruturas polticas do mundo criouuma nova e extraordinria oportunidade de auto-expanso para o capitalismo.

    O fluxo de capital do Japo para os Estados Unidos, no comeo da dcada de1980, deve ser visto nesse contexto. Consideraes polticas inspiradas peladependncia e subordinao do Japo ao poder dos Estados Unidos decerto desempenharam um papel crucial na promoo do auxlio do capital japons aosEstados Unidos na escalada da luta pelo poder, como Takeuchi parece deixarimplcito. No entanto, como mostraram os acontecimentos posteriores, as consideraes polticas foram inseparveis das consideraes de lucro.

  • INTRODUO

    Sob esse aspecto, o fluxo de capital do Japo para os Estados Unidos no foito anmalo quanto julgaram Kotkin e Kishimoto. Foi um tanto anlogo assistncia financeira que a potncia capitalista ascendente (os Estados Unidos) deu potncia capitalista decadente (o Reino Unido) nas duas guerras mundiais.Os confrontos entre Inglaterra e Alemanha, ao contrrio do confronto entre Estados Unidos e Unio Sovitica na dcada de 1980, foram quentes, em vez defrios. Mas as exigncias financeiras de ambos e os lucros esperveis do apoioao vencedor, ainda assim, foram comparveis.

    A principal diferena entre a asssistncia financeira norte-americana Gr-Bretanha nas duas guerras mundiais e a assistncia financeira japonesa aos EstadosUnidos na segunda Guerra Fria est nos resultados. Enquanto os Estados Unidos colheram imensos benefcios, o Japo no o fez. Como veremos no captulo 4,as duas guerras mundiais e suas consequncias foram momentos decisivos na re-distribuio dos bens da Gr-Bretanha para os Estados Unidos, apressando o deslocamento da liderana dos processos sistmicos de acumulao de capital. Durante e depois da segunda Guerra Fria, ao contrrio, no houve redistribuioequiparvel. Na verdade, o Japo provavelmente nunca recuperou seu dinheiro.

    As maiores perdas foram consequncia da queda do valor do dlar norte-americano depois de 1985. O dinheiro tomado de emprstimo em dlares su-pervalorizados foi pago, com os respectivos juros, em dlares subvalorizados.As perdas impostas ao capital japons pela desvalorizao foram de tal montaque o empresariado e o governo do Japo retiraram seu apoio financeiro, antesincondicional, ao governo dos Estados Unidos. Em meados de 1987, os investidores privados japoneses inverteram seu movimento de exportao de capitalpara os Estados Unidos, pela primeira vez desde o incio da dcada de 1980.E, depois do craque da bolsa em outubro de 1987, o ministro das Finanas japons nada fez para estimular os intermedirios financeiros a apoiarem o importante leilo da dvida pblica norte-americana, realizado em novembro seguinte(Helleiner, 1992, p. 434).

    As dificuldades enfrentadas pelo Japo para exercer seusobre o capital excedente, a fim de redistribuir ativos do controle norte-americano para o japons, no foram um simples resultado do poder, historicamente

    precedentes, da atuao conjunta dos rgos pblicos e privados dos Estados Unidos na manipulao da procura e da oferta, das taxas de juros e das taxasde cmbio nos mercados financeiros mundiais. A aquisio de bens materiais

    Estados Unidos teve suas prprias dificuldades. No que concerne ao capitaljapons, a potncia continental mais rica e desenvolvida do mundo revelou noser to desprovida de controle sobre os negcios externos,quanto supuseramKotkin e Kishimoto.

    Esse controle tem sido mais informal do que formal, mas nem por isso menos real. Houve barreiras culturais, do tipo que encontrou sua melhor sntese

    crescente domnio

    sem

    nos

  • O LONGO SCULO XX18

    na reao histrica desencadeada na e pela mdia norte-americana quando o capital japons comprou o Rockefeller Center, na cidade de Nova York. Comoas compras japonesas de propriedades nos Estados Unidos eram pouco importantes em comparao com as europias, canadenses e australianas, essa reaotransmitiu a compradores e vendedores a mensagem de que o dinheiro japonsno tinha exatamente o mesmo direito de adquirir bens norte-americanos queo dinheiro de estrangeiros de origem europia.

    Se os meios de comunicao de massa foram os principais protagonistas naconstruo de barreiras culturais transferncia de ativos norte-americanospara o capital japons, o governo dos Estados Unidos desempenhou seu papelna construo de barreiras polticas. Ele acolheu de bom grado o dinheiro japons para financiar seu dficit e sua dvida pblicos e para montar instalaes deproduo que criassem empregos nos Estados Unidos e reduzissem o dficit dobalano de pagamentos norte-americano. Mas desestimulou vivamentepra, por esse mesmo dinheiro, de empresas lucrativas estrategicamente sensveis. Assim, em maro de 1987, os protestos do secretrio da Defesa, CasparWeinberger, e do secretrio do Comrcio, Malcolm Baldridge,Fujitsu de que seria prudente recuar de sua tentativa de assumir o controle daFairchild Semiconductor Corporation. No entanto, como comentou StephenKrasner (1988, p. 29), a Fairchild era de propriedade da companhia francesaSchlumberger, de modo que no se tratava simplesmente de uma questo depropriedade estrangeira.

    O que as barreiras culturais e polticas no conseguiram deter, as barreiras entrada de capital, embutidas na prpria estrutura do capitalismo norte-americano, conseguiram. As complexidades da vida das corporaes dos EstadosUnidos revelaram-se barreiras mais insuperveis entrada do dinheiro japonsdo que a hostilidade cultural e a desconfiana poltica. As maiores aquisiesjaponesas j ocorridas nos Estados Unidos a compra da Columbia Picturespela Sony, em 1989, e a da MCA pela Matsushita, no ano seguinte fracassaramcompletamente em seus objetivos. Quando foi fechado o negcio com a Sony, amdia teve uma reao exagerada, e a capa da Newsweek falou numa invasojaponesa de Hollywood. No entanto, como escreveu Bill Emmott no New YorkTimes (26 de novembro de 1993),

    (...) passaram-se menos de dois anos para que ficasse claro que o pnico _ _hiprbole tinham provocado uma percepo equivocada. (...) [A] invasojaponesa das empresas norte-americanas no foi nada disso. At as melhorescompanhias japonesas cometeram erros espetaculares e dispendiosos, e noassumiram o controle nem sequer das firmas que adquiriram, muitoda cultura c da tecnologia, (ver tambm Emmott, 1993)

    Em sntese, a verdadeira anomalia das relaes nipo-americanas durante a atualexpanso financeira no est no fato de o capital japons haver fludo para os

    a com-

    convenceram a

    e a

    menos

  • INTRODUO 19

    Estados Unidos no incio da dcada de 1980, mas no de o capital japons ter-sebeneficiado to pouco da assistncia econmica prestada aos Estados Unidos naescalada final da Guerra Fria contra a antiga Unio Sovitica. Ser essa anomalia

    mecanismos da competio in-sustentaram a expanso

    o sintoma de uma mudana fundamentalterestatal pelo capital circulante que impulsionaram edo poder capitalista nos ltimos seiscentos anos?

    Esses mecanismos tm um claro limite intrnseco. O poder capitalista no sis-minar a concorrncia

    . Mais cedo ou

    nos

    tema mundial no pode expandir-se indefinidamenteinterestatal pelo capital circulante em que se apia tal expansomais tarde, chega-se a um ponto em que as alianas entre os po '

    do capital, firmadas em resposta a essa concorrncia, tornam-se to impressionantes que eliminam a prpria competio e, por conseguinte, a possibilidade deemergncia de novas potncias capitalistas de ordem superior. Ser que as difi

    culdades enfrentadas pelas estruturas emergentes do capitalismo japons, paratirar proveito da competio interestatal pelo capital circulante, so um sintomade que esse ponto foi ou est prestes a ser atingido? Ou, reformulando a pergunta, ser que as estruturas do capitalismo norte-americano constituem o limitemximo do processo de seis sculos atravs do qual o poder capitalista atingiusua escala e alcance atuais, que parecem tudo abranger?

    Na busca de respostas plausveis a essas perguntas, a viso complementar dena era moderna deve ser

    mer-

    sem

    deres do Estado e

    Weber e de Marx sobre o papel das altas finanassuplementada pelo que Adam Smith percebeu no processo de formao docado mundial. Como fez Marx depois dele, Smith viu nos descobrimentos eu-

    as ndias Orientais, atravs do cabohistria mundial. No entanto, foi

    ropeus da Amrica e de uma passagem parada Boa Esperana, um momento decisivo namuito menos otimista do que Marx quanto aos benefcios ltimos desses acontecimentos para a humanidade:

    iodo de dois a trsSuas consequncias j foram enormes; mas, no curto persculos transcorrido desde que se fizeram esses descobrimentos, impossvelque se tenha visto toda a extenso dessas conseqiincias. Que benefcios ouinfortnios podem doravante resultar desses acontecimentos para a humanidade, nenhum saber humano capaz de prever. Por unirem, em certa medida, as partes mais distantes do mundo, por lhes permitirem satisfazer suasnecessidades recprocas, aumentar seu deleite umas com as outras e estimularmutuamente suas indstrias, sua tendncia geral parece ser benfica. Entretanto, para os nativos das ndias Orientais e Ocidentais, todos os benefcioscomerciais que poderiam resultar desses acontecimentos naufragaramperderam em pavorosos sofrimentos. Esses sofrimentos, contudo, mais parecem ter provindo de um acidente do que de qualquer coisa que estivesse naprpria natureza desses acontecimentos em si. Na poca especfica em que sefizeram essas descobertas, a superioridade de fora era to grande, favorecendo os europeus, que lhes facultou praticar com impunidade toda sorte de

    e se

  • O LONGO SCULO XX20

    injustias nesses pases remotos. Doravante, talvez os nativos desses pasespossam fortalecer-se, ou os da Europa se enfraquecer, e talvez os habitantesde todas as diferentes regies do mundo possam chegar igualdade degem e fora que, por inspirar um temor mtuo, a nica coisa capaz de intimidar a injustia dos pases independentes, levando-os a ter um pouco derespeito pelos direitos uns dos outros. Mas nada parece mais tendente a estabelecer essa igualdade de foras do que a mtua transmisso de conhecimentos e de toda sorte de aperfeioamentos que o amplo comrcio de todos ospases entre si, naturalmente, ou melhor, necessariamente, traz em seu bojo.(Smith, 1961, v. II, p. 141, grifo nosso)

    O processo esquematizado nesse trecho exibe algumas notveis semelhanascom a viso braudeliana da formao de uma economia mundial capitalista: asventuras do Ocidente conquistador e as desventuras do no-Ocidente conquistado como efeitos conjuntos de um processo histrico singular; o longo horizontetemporal necessrio para descrever e avaliar as consequncias desse processo; e, oque mais importante para nosso objetivo atual, a centralidade da fora nadeterminao da forma como se distribuem custos e benefcios entre os participantes da economia de mercado.

    Smith, claro, no usou o termo capitalismo, que s foi introduzido novocabulrio das cincias sociais no sculo XX. Contudo, sua avaliao de que asuperioridade de fora foi o mais importante fator a permitir que o Ocidenteconquistador se apropriasse da maioria dos benefcios e impusesse ao no-Ocidente conquistado a maioria dos custos da economia de mercado ampliada que se estabeleu em decorrncia dos chamados descobrimentos aponta nomesmo sentido da avaliao braudeliana de que a fuso entre o Estado e o capitalfoi o ingrediente vital da emergncia de uma camada claramente capitalista porsobre a camada da economia de mercado e em anttese a ela. Como veremos nocaptulo 3, no esquema de Smith s possvel manter os lucros em larga escala,por um prazo indefinido, atravs de prticas restritivas escoradas no poder estatal, que cerceiam e rompem o funcionamento natural da economia de mercado. Nesse esquema, como no de Braudel, a camada superior de comerciantes efabricantes, que comumente emprega os maiores capitais e que, por sua riqueza, atrai para si a maior parcela de considerao pblica (Smith, 1961, v. I,p. 278), o verdadeiro antimercado, o contre-marchde Braudel.

    I odavia, as concepes de Braudel e de Smith sobre a relao entre a economia de mercado c sua anttese capitalista diferem num aspecto importante. ParaBraudel, essa relao fundamentalmente esttica. Ele no percebe nem prevnenhuma sntese emergindo da luta entre a tese e a anttese. Smith, ao contrrio, v essa sntese emergindo da reduo da desigualdade de foras, sob o impacto do prprio processo de formao do mercado mundial. Como indica altima frase do trecho citado, Smith achava que a ampliao e o aprofundamen-

    cora-

  • INTRODUO 21

    to das trocas na economia mundial de mercado agiria como um igualador irrefrevel das relaes de fora entre o Ocidente e o no-Ocidente.

    Uma concepo mais dialtica dos processos histricos no , necessariamente, mais exata do que uma viso menos dialtica. Como se constatou, a desigualdade de foras entre o Ocidente e o no-Ocidente mais fez aumentar do quediminuir durante mais de 150 anos depois queSmith formulou a tese do impactocorrosivo dos processos de formao do mercado mundial sobre a superioridadede fora do Ocidente. A formao do mercado mundial e a conquista militar dono-Ocidente avanaram paripassu. Na dcada de 1930, s o Japo havia escapado integralmente s desventuras da conquista ocidental, exatamente porque setornou, ele prprio, um membro honorrio do Ocidente conquistador.

    E ento, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a roda girou. Em todaa sia e frica, antigos poderes soberanos foram restabelecidos e muitos novos secriaram. Sem dvida, a descolonizao macia foi acompanhada pelo estabelecimento do aparato mais extenso e potencialmente destrutivo de fora ocidentalque o mundo jamais vira. Como observou Krasner (1988, p. 21), a imensa redede bases militares ultramarinas quase permanentes, instaurada pelos EstadosUnidos durante e depois da Segunda Guerra Mundial, no teve precedentes histricos; anteriormente, nenhuma nao havia baseado suas tropas no territriosoberano de outros pases em nmeros to vastos e por um perodo to longo depaz. E, ainda assim, nos campos de batalha da Indochina, esse aparato militarde mbito mundial revelou-se insuficiente para a tarefa de dobrar sua vontadeuma das naes mais pobres da Terra.

    A exitosa resistncia do povo vietnamita marcou o apogeu de um processoiniciado pela Revoluo Russa de 1917, mediante o qual o Ocidente e o no-Ocidente foram reposicionados numa configurao tripartite, composta de Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos. Enquanto o no-Ocidente histrico foi quaseinteiramente agrupado no Terceiro Mundo, o Ocidente histrico cindiu-se emtrs componentes distintos. Os mais prsperos (a Amrica do Norte, a EuropaOcidental e a Austrlia), acrescidos do Japo, passaram a constituir o PrimeiroMundo. Um de seus componentes menos prsperos (a Unio Sovitica e a Europa Oriental) passou a constituir o Segundo Mundo, e um outro (a Amrica Latina) juntou-se ao no-Ocidente para compor o Terceiro Mundo. Desde o fim daSegunda Guerra Mundial at a Guerra do Vietn, em parte como causa e em parte como efeito dessa ciso tripartite do Ocidente histrico, o no-Ocidente pareceu viver um processo de afirmao de seu prprio destino.

    Escrevendo para o bicentenrio da publicao de A riqueza das naes, e pouco depois de os Estados Unidos decidirem retirar-se do Vietn, Paolo Sylos-Labini (1976, p. 230-2) especulou sobre a hiptese de que a viso de Smithestivesse prestes a se realizar. Ele se indagou se finalmente chegara o momentoem que os habitantes de todas as diferentes regies do mundo [teriam atingi-

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    do] a igualdade de coragem e fora que, por inspirar um temor mtuo, a nicacoisa capaz de intimidar a injustia dos pases independentes, levando-os a terum pouco de respeito pelos direitos uns dos outros. A conjuntura econmicatambm parecia indicar que era iminente uma certa equiparao das relaes defora no sistema munclial como um todo. Era grande a demanda pelos recursosnaturais dos pases do Terceiro Mundo, bem como por sua mo-de-obra abundante e barata. Agentes dos banqueiros do Primeiro Mundo faziam fila nas an-te-salas dos governos do Terceiro Mundo (e do Segundo), oferecendo a preosmdicos o capital ultra-abundante que no conseguia encontrar investimentoslucrativos em seus pases de origem. Os termos de intercmbio voltaram-se claramente contra o Ocidente capitalista, e a defasagem da renda entre os pases doPrimeiro e do Terceiro Mundos parecia estar-se reduzindo.

    Em seis anos, no entanto, havia ficado claro que era, no mnimo, prematuraqualquer esperana (ou temor) de uma equiparao iminente das oportunidades de os povos do mundo se beneficiarem do processo continuado de formaodo mercado mundial. A competio norte-americana pelo capital circulante nosmercados monetrios mundiais, para financiar a segunda Guerra Fria e acompra de votos nas eleies internas, atravs de redues de impostos, fezsecar de repente a oferta de recursos aos pases do Terceiro e Segundo Mundose provocou uma grande contrao do poder aquisitivo mundial. Os termos deintercmbio voltaram a ser favorveis ao Ocidente capitalista, com a mesma rapidez e clareza com que se haviam voltado contra ele na dcada de 1970. A defasagem da renda entre o Ocidente capitalista e o resto do mundo tornou-se maisacentuada do que nunca (Arrighi, 1991).

    Entretanto, a sbita inverso no restabeleceu o statu quo ante. Por um lado, asuperioridade de fora do Ocidente capitalista pareceu ter-se tornado maior doque nunca. Desnorteada e desorganizada pela crescente turbulncia da economiamundial e pressionada pela segunda Guerra Fria, a Unio Sovitica foi espremida para fora dos negcios das superpotncias. Em vez de dispor de duassuperpotncias para jogar uma contra a outra, os pases do Terceiro Mundo passaram a ter que competir com os fragmentos do imprio sovitico pelo acesso aosmercados e recursos do Ocidente capitalista. E este, sob a liderana dos EstadosUnidos, tomou medidas rpidas para tirar proveito da situao e acentuar seumonoplio global defacto do uso legtimo da violncia.

    Por outro lado, a superioridade de fora e a acumulao capitalista do capitalpareceram ter mais divergncias geopolticas do que nunca. O declnio do poderio sovitico equiparou-se emergncia do que Bruce Cumings (1993, p. 25-6)apropriadamente denominou de arquiplago capitalista do leste e sudeste asiticos. Esse arquiplago compe-se de vrias ilhas de capitalismo, que se elevamsobre um mar de trocas horizontais entre os mercados locais e mundiais, atravs da centralizao, dentro de seus domnios, de lucros em larga escala e ativi-

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    dades de alto valor adicionado. Abaixo desse mar ficam as massas trabalhadoras, imensas, baratas e extremamente industriosas de todas as regies do leste esudeste asiticos, nas quais as ilhas capitalistas fincam suas razes, mas sem lhesfornecer os meios necessrios para que subam at ou acima do nvel do mar.

    O Japo , sem sombra de dvida, a maior dessas ilhas capitalistas. Asilhas menores do arquiplago capitalista so as cidades-Estados de Cingapura eHong-Kong, o pas-fortaleza que Formosa e o semi-Estado nacional da Coriado Sul. Nenhum desses Estados poderoso pelos padres convencionais. HongKong nem sequer atingiu e provvel que nunca atinja a plena soberania.Os trs pases maiores Japo, Coria do Sul e Formosa so totalmente dependentes dos Estados Unidos, no s para obter proteo militar, mas tambmpara conseguir grande parte de seu abastecimento de energia e alimentos e paraexportar com lucro seus produtos industrializados. Contudo, coletivamente,a competitividade do arquiplago capitalista do leste e sudeste asiticos, a novaoficina do mundo, o mais importante fator isolado a forar os centros tradicionais de poder capitalista a Europa Ocidental e a Amrica do Norte areestruturar e reorganizar suas prprias indstrias, suas prprias economias eseu prprio estilo de vida.

    Que tipo de poder esse, que at o olhar de um especialista tem dificuldadeem avaliar? Ser ele um novo tipo de superioridade de fora ou, antes, o comeo do fim da superioridade de fora sobre a qual se erigiram, nos ltimos quinhentos anos, os destinos capitalistas do Ocidente? Estar a histria capitalistaprestes a terminar, mediante a formao de um imperialismo mundial realmenteglobal, baseado na permanente superioridade de fora do Ocidente, como pareceu considerar Max Weber, ou ir ela encerrar-se atravs da formao de umaeconomia mundial de mercado em que a superioridade de fora do Ocidentedesaparea, como pareceu considerar Adam Smith?

    Na busca de respostas plausveis para essas perguntas, avanaremos por aproximaes sucessivas. O captulo 1 concentra-se no processo de formao eexpanso do moderno sistema interestatal como locus primrio do poder mundial. Os primrdios desse processo sero rastreados at a formao, no fimda Europa medieval, de um subsistema de cidades-Estados capitalistas na Itliameridional. Esse subsistema era e continuou a ser um enclave do modo desinte-grador de governo da Europa medieval uma forma de despotismo submetidaao poder sistmico dual do papa e do imperador, e por este poder conservada.Ainda assim, prefigurou e criou, inintencionalmente, as condies de emergncia, dois sculos depois, do sistema de Vestflia, um sistema mais amplo de Estados nacionais.

    Em seguida, a expanso global desse sistema ser descrita como composta deuma srie de transies, no correr das quais o sistema, tal como previamente institudo, desarticulou-se, apenas para ser reconstitudo em bases sociais mais am-

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    pias. Esta anlise preliminar termina no fim do sculo XX, com a crise no SistemaVestfaliano, aumentado e totalmente transformado. No diagnstico dos sintomas da crise atual, ser formulado um novo programa de pesquisas que se concentra mais diretamente no espao-de-fluxos das organizaes empresariaisdo que no espao-de-lugares dos governos. nesse ponto que comear nossaconstruo e comparao dos ciclos sistmicos de acumulao.

    A anlise comparativa atravs da qual os ciclos sistmicos de acumulao sero construdos segue o mtodo que Philip McMichael (1990) chamou de comparao incorporada. Os ciclos no so presumidos, mas construdos, factual eteoricamente, com o objetivo explcito de obter algum entendimento da lgicae do desfecho provvel da atual expanso financeira. A comparao incorporada na prpria definio do problema pesquisado: constitui a essncia, e no ocontexto da investigao. Os ciclos que emergem da investigao no so partessubordinadas de um todo preconcebido, nem tampouco exemplos independentes de uma situao; so exemplos interligados de um nico processo histrico deexpanso capitalista, que eles mesmos constituem e modificam.

    O captulo 2 trabalha os primeiros dois exemplos desse processo histriconico da expanso capitalista, os ciclos genovs e holands. O captulo 3 acrescenta um novo estgio ao processo, definindo o terceiro ciclo (britnico) e comparando-o com os dois primeiros. A seo que encerra o captulo explicita ebusca uma explicao plausvel para o padro de recorrncia e evoluo revelado pela anlise comparativa dos trs primeiros ciclos. Assim, prepara-se o cenrio para a construo, no captulo 4, do quarto ciclo sistmico de acumulao(norte-americano), retratado como um produto dos ciclos precedentes e comoa matriz de nossa poca. No eplogo, voltaremos s questes que levantamosnesta introduo.

    Essa reconstruo da histria capitalista tem seu prprio limite. A noo deciclo sistmico de acumulao, como observamos, deriva diretamente da idiabraudeliana do capitalismo como a camada superior da hierarquia do mundodos negcios. Nosso constructo analtico, portanto, concentra-se nessa camadasuperior e fornece uma viso limitada do que se passa na camada intermediria, ada economia de mercado, e na camada inferior, a da vida material. Esse , simultaneamente, o ponto forte e o ponto fraco do constructo. seu ponto forte porque a camada superior o verdadeiro lar do capitalismo e, ao mesmo tempo, menos transparente e menos explorada do que a camada intermediria, a da economia de mercado. A transparncia das atividades que constituem a camada daeconomia de mercado e a profuso de dados (sobretudo quantitativos) geradospor essas atividades fizeram dessa camada intermediria a arena privilegiadada sociologia histrica e da economia. As camadas abaixo e acima da economiade mercado, ao contrrio, so zonas de opacidade (zones dopacite). A camadainferior, a da vida material, difcil de visualizar, por falta de documentos hist-

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    ricos adequados. A camada superior, em contraste, difcil de visualizar porcausa da efetiva invisibilidade ou da complexidade das atividades que a constituem (Braudel, 1981, p. 23-4; Wallerstein, 1991, p. 208-9).

    Nesse nvel elevado, um punhado de negociantes ricos da Amsterdam do sculo XVIII ou da Gnova do sculo XVI podia, distncia, lanar setores inteirosda economia europia ou at mundial na confuso. Alguns grupos de atoresprivilegiados enveredavam por circuitos e maquinaes de que as pessoas comuns nada sabiam. O comrcio exterior, por exemplo, que estava ligado a movimentaes comerciais distantes e aos arranjos complicados do crdito, erauma arte sofisticada, acessvel apenas a uns poucos iniciados, quando muito.Para mim, essa segunda zona de opacidade, que paira acima do mundo ensolarado da economia de mercado e constitui seu limite superior, por assim dizer,representa o campo privilegiado do capitalismo. (...) Sem essa zona, o capitalismo impensvel: nela que ele reside e prospera. (Braudel, 1981, p. 24)

    Os ciclos sistmicos de acumulao pretendem lanar alguma luz sobre essazona de sombras, sem a qual o capitalismo impensvel. Eles no pretendemnos dizer o que acontece nas camadas inferiores, exceto no que diretamentepertinente dinmica dos prprios ciclos sistmicos. Isso, claro, deixa muitacoisa fora do campo visual ou mesmo na escurido, inclusive terrenos privilegiados dos estudos dos sistemas mundiais: as relaes centro-periferia e capital-trabalho. Mas no se pode fazer tudo ao mesmo tempo.

    Marx (1959, p. 176) convidou-nos a abandonar por algum tempo [a] esferaruidosa [da circulao], onde tudo acontece s claras e vista de todos os homens, para acompanhar [o dono do dinheiro e o dono da fora de trabalho] at odomiclio oculto da produo, em cuja soleira somos confrontados com os dizeres proibida a entrada, exceto a negcios. Ali, prometeu, fmalmente desvendaremos o segredo da gerao do lucro. Braudel tambm nos convidou adeixar por algum tempo a esfera ruidosa e transparente da economia de mercado

    "elTcmparihar o dono do dinheiro at outro domiclio-oculto, onde s se imitido a negcios, mas que fica um andar acima, e no um andar abaixo do

    'talho, mas do poder poltico. E ali, prometeu Braudel, desvendaremos o segredodaobteno dos grandes e sistemticos lucros que ]*nmtira_prosperar e se expandir indefinidamente nos ltimosquinhentosou seiscentosnosVnts ejdepqis de suas incurses nos domiclios ocultos da produo.

    Esses so projetos complementares, e no alternativos. Todavia, no podemos ir ao mesmo tempo aos andares superior e inferior. Geraes de historiadores e socilogos aceitaram o convite de Marx e exploraram extensamente o andartrreo. Ao faz-lo, talvez no tenham descoberto o segredo da gerao de lucros na fase industrial do capitalismo, mas decerto descobriram muitos de seussegredos. Depois, os tericos e praticantes da dependncia e do sistema mundial

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    convidaram-nos a dar outra espiada no andar intermedirio da economia demercado, para ver como suas leis tendem a polarizar os domiclios ocultos daproduo em locais centrais e perifricos. Desse modo, novos segredos da gerao de lucros foram desvendados. Mas poucos se aventuraram pelo andar superior do antimercado, onde, nas palavras da hiprbole de Braudel, circulam osgrandes predadores e vigora a lei da selva, e onde se afirma que esto escondidosos segredos da longue dure do capitalismo histrico.

    Hoje quando o capitalismo mundial parece estar prosperando, no porcravar mais fundo suas razes nas camadas inferiores da vida material e da economia de mercado, mas por arranc-las um momento to bom quantoqualquer outro para aceitar o convite de Braudel e explorar o verdadeiro lar docapitalismo, no andar superior da casa dos negcios. Isso, e apenas isso, o queestamos prestes a fazer.

    Da decorre que nossa construo parcial e meio inconclusiva. Parcial porque busca um entendimento da lgica da atual expanso financeira, abstraindoos movimentos que prosseguem por fora prpria e as leis dos nveis das economias de mercado mundiais e das civilizaes materiais do mundo. E meio inconclusiva pela mesma razo. A lgica da camada superior tem apenas umarelativa autonomia das lgicas das camadas inferiores e s pode ser plenamentecompreendida em relao a essas outras lgicas.

    Sem dvida, medida que nossa construo for avanando, o que a princpiotalvez se afigure uma

    lgica estrutural. Mas a tenso entre esses dois tipos de aparncias no podeser plenamente resolvida dentro dos limites de nosso projeto de pesquisa. Umaresoluo completa da tenso se isso possvel exige que tornemosa descerpara explorar as camadas inferiores, da economia de mercado e da vida material,com os conhecimentos e indagaes trazidos da viagem que este livro empreendepela camada superior.

    mera contingncia histrica comear a parecer refletiruma