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MENINAS GESTANDO RELAÇÕES DE GÊNERO E CUIDADO DE SI Elizabete Franco Cruz * Natalúcia Matos Araújo ** Maria Teresa Arruda Campos *** Joyce da Costa Silveira de Camargo **** Resumo Meninas, documentário de Sandra Werneck é o mote dos debates deste artigo que tem como objetivo problematizar três fios temáticos que podem desenhar reflexões à luz do filme, da literatura da área, dos estudos culturais e de conceitos do filósofo Michel Foucault. São eles: As mulheres nas meninas – maternidades e idades da vida; Os homens nas Meninas – gravidez na adolescência e relações de gênero; e Maternidade e Paternidade na adolescência – a busca do cuidado de si? Tais problematizações não têm como proposta oferecer respostas, mas sim levantar questões e reflexões que possam contribuir com profissionais de saúde e educação para a desconstrução de discursos cristalizados em relação à temática, buscando plurificar os significados da gestação, da maternidade e da paternidade para homens e mulheres jovens. Palavras-chave: Gravidez na adolescência. Maternidade. Paternidade. Relações de gênero. Juventude. Abstract Girls, a documentary by Sandra Werneck, is the motto for the debates of this article, which has as its objective questioning three thematic lines that can draw reflections * Profa. Dra. EACH/USP. E-mail: [email protected] ** Profa. Dra. EACH/USP. *** Doutoranda FE/UNICAMP. **** Profa. Ms. EACH/USP. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 14, n. 1, p. 31-59, mar/ago 2009

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MENINAS – GESTANDO RELAÇÕES DE GÊNERO E CUIDADO DE SI

Elizabete Franco Cruz*

Natalúcia Matos Araújo** Maria Teresa Arruda Campos***

Joyce da Costa Silveira de Camargo****

ResumoMeninas, documentário de Sandra Werneck é o mote dos debates deste artigo que tem como objetivo problematizar três fi os temáticos que podem desenhar refl exões à luz do fi lme, da literatura da área, dos estudos culturais e de conceitos do fi lósofo Michel Foucault. São eles: As mulheres nas meninas – maternidades e idades da vida; Os homens nas Meninas – gravidez na adolescência e relações de gênero; e Maternidade e Paternidade na adolescência – a busca do cuidado de si? Tais problematizações não têm como proposta oferecer respostas, mas sim levantar questões e refl exões que possam contribuir com profi ssionais de saúde e educação para a desconstrução de discursos cristalizados em relação à temática, buscando plurifi car os signifi cados da gestação, da maternidade e da paternidade para homens e mulheres jovens.

Palavras-chave: Gravidez na adolescência. Maternidade. Paternidade. Relações de gênero. Juventude.

AbstractGirls, a documentary by Sandra Werneck, is the motto for the debates of this article, which has as its objective questioning three thematic lines that can draw refl ections

* Profa. Dra. EACH/USP. E-mail: [email protected]** Profa. Dra. EACH/USP.*** Doutoranda FE/UNICAMP.**** Profa. Ms. EACH/USP.

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from of the fi lm, from the literature of the education/area, from the cultural studies and from the concepts by the philosopher Michel Foucault. Th e thematic lines are: Women in Girls – maternity and ages of life; Men in Girls – pregnancy in adolescence and relations of gender; and Maternity and paternity in adolescence – the search for “self care”? Th ese questions do not have as purpose off ering answers, but to raise questions and refl ections that can contribute with health and education professionals for the deconstruction of crystallized discourses in relation to that theme, looking forward to pluralize the meanings of pregnancy, of maternity and of paternity to young women and young men.

Key words: Pregnancy in adolescence. Maternity. Paternity. Relationships of gender. Youth.

Quando recebemos o convite para produzir um escrito a ser inserido nesta publicação, fi camos, além de honradas, empolgadas. Nosso interesse pelas temáticas da juventude, gravidez, saúde e edu-cação prontamente nos fez rememorar o documentário Meninas, dirigido por Sandra Werneck1.

Revimos o fi lme e nossa animação foi confrontada com a difi culdade de encontrar um eixo para o debate deste artigo. Muitos caminhos pareciam “tentadores” e fi camos em dúvida a respeito de qual percorrer. Assistimos ao fi lme repetidas vezes e quanto mais assistíamos mais “perdidas” fi cávamos diante das nuances, dos fi os emaranhados que poderiam gerar bons debates e refl exões, e, por isso, oscilamos entre debater apenas um aspecto ou vários dos que se apresentavam como pertinentes.

Demoramos muito para achar um caminho para o texto. Nossa pretensão era, a partir do debate do fi lme, produzir algo que pudesse contribuir com a prática de profi ssionais de saúde e educação que se veem cotidianamente lidando com o atendimen-to desta questão.

Acabamos decidindo que nossa contribuição poderia ser, a partir do fi lme, agregar refl exões que nos levassem a examinar, re-pensar elementos que temos como já estabelecidos e defi nidos nas leituras desta temática. Nossa difi culdade possivelmente tenha advindo de uma pretensão, (talvez moderna e cartesiana) de “dar

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conta” do debate do fi lme. Limitando a expectativa, o tamanho da pretensão e bebendo em noções (ou poções!) pós-estruturalistas, repensamos este fazer. Trabalhar nesta perspectiva signifi ca reco-nhecer a instabilidade e provisoriedade das construções discursi-vas nas quais se produzem signifi cações para diferentes questões. Signifi ca também que nosso texto, por exemplo, não tem o com-promisso de criar “as respostas”, “a verdade” sobre o documentá-rio, ou sobre o tema da gravidez na adolescência, mas sim propor refl exões que contribuam para a abertura de novas pistas, ou ainda para o alargar, estreitar, revisar caminhos já trilhados. Assim, ao invés de uma produção que “dê conta” de debater “todo” o fi lme, a proposta é examinar alguns aspectos, dar foco a fi os dos desenhos de uma tessitura complexa, com vistas a contribuir para a compre-ensão da questão da gravidez na adolescência2.

Neste contexto e percurso defi nimos que o objetivo deste artigo é problematizar três fi os temáticos que podem bordar refl e-xões à luz do fi lme, da literatura da área, dos estudos culturais3 e de conceitos do fi lósofo Michel Foucault. São eles: As mulheres nas meninas – maternidades e idades da vida; Os homens nas Meninas – gravidez na adolescência e relações de gênero; e Maternidade e Pater-nidade na adolescência – a busca do cuidado de si?.

As mulheres nas Meninas – maternidades e idades da vida

Iniciemos nossa refl exão sobre o título do fi lme... Meninas... No documentário existem mulheres em diferentes ciclos da vida: Mulheres crianças, mulheres adolescentes, mulheres adultas, mas o foco da narrativa são as mulheres na faixa etária de 13 a 15 anos que receberam o nome de Meninas.

Um interlocutor imaginário pergunta: Por que dizem que elas “recebem o nome de meninas”... Elas não são meninas? São meni-nas, são mulheres, negras, brancas (?), cariocas, pobres; são muitas as marcas identitárias que parecem carregar, mas o contexto discursivo que emerge em primeiro plano, e é inclusive enunciado pelo título, as nomeia como Meninas. Nossa proposta neste tópico é examinar-mos mais de perto, duvidarmos um pouco, observarmos melhor, esta ideia das mulheres, das meninas e das maternidades4.

Comecemos com uma consulta ao dicionário Houaiss que nos permite pensar as várias acepções do termo meninas:

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Acepções• substantivo feminino

1 criança ou adolescente do sexo feminino; garotaEx.: <ela teve uma m.> <colégio de meninas>

2 jovem do sexo feminino até a idade núbil; moça jovem e/ou solteira; mocinhaEx.: você não tem mais idade para comportar-se como uma m.!

3 descendente do sexo feminino; fi lhaEx.: a minha m. já está em idade escolar

4 maneira carinhosa e familiar de tratar um parente ou ami-ga, mesmo quando já adulta

5 moça que se namora; namorada, garota, pequena

6 Uso informal; mulher da vida; meretriz, prostitutaEx.: ir às m.

Em que pese a existência de múltiplas acepções, incluindo a relação com o termo adolescente5, podemos observar que ideias como criança, jovem do sexo feminino até a idade núbil, moça solteira, fi lha, ida-de escolar e pequena compoem possíveis sentidos associados ao termo. Também podemos observar que no cotidiano fazemos uso do vocá-bulo numa associação ao infantil: menina como sinônimo de crian-ça. Considerando esta acepção a escolha do nome do documentário já parece nos indicar um anacronismo entre as meninas e a gravidez, que corresponderia a fases posteriores do desenvolvimento das mulheres. Gravidez combina com meninas? Ou gravidez é coisa de mulheres?

Aparentemente o fi lme tenta fugir de um olhar que habi-tualmente julga e avalia as meninas grávidas, buscando ouví-las e não criticá-las, mas, ao mesmo tempo, parece não escapar do olhar social que ainda nomeia como PRECOCE a gravidez na adolescên-cia. Esta dimensão pode ser observada quando pensamos na escolha do nome do fi lme e ainda na apresentação de imagens de ações das meninas que remetem ao infantil (como brincadeiras de boneca e

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amarelinha), compondo falas como: “Tenho jeito meio criança”; e a da mãe que diz: “Ela ainda brinca de boneca”.

Num primeiro olhar, quando chegamos ao fi m do fi lme, pensamos: “Elas são tão meninas...” Entretanto, podemos indagar: “e nossas avós eram meninas também? Elas não tinham fi lhos nesta faixa etária?”

Uma pista interessante para pensar estas diferenças pode ser localizada no trabalho de Heilborn (2006) que apontou para o fato de que os discursos sobre a gravidez na adolescência ignoram fatores como a mudança de costumes sexuais no Brasil, que passou a aceitar a sexualidade feminina pré-conjugal, sendo que esta prática era exercida e aceita há décadas somente como pertencente ao sexo masculino, que tinha parceiras específi cas – consideradas desviantes. (p. 32)

Se tomarmos este contexto de mudanças de costumes pode-mos pensar que as meninas de hoje exercem sexo sem que necessa-riamente ele seja seguido de casamento, e que conforme nos indica o dicionário “menina” é um termo para mulheres solteiras.

Aqui podemos observar uma espécie de anacronismo anun-ciado no qual a sociedade contemporânea tem denominado como PRECOCE a gravidez na adolescência, signifi cada assim como gra-videz de meninas e de mulheres que não seguem os rumos de um ciclo vital tão bem descrito pela ciência e incorporado pela socieda-de – que por vezes deixa de lado as dimensões psicossociais, antro-pológicas e políticas dos temas que analisa6.

Neste sentido, podemos ainda pensar que associada à ex-temporalidade etária há também uma ideia de que as meninas não constituem família.7 Parece que maternidade ainda está associada a uma ideia de família nuclear. Deste modo, as meninas transgridem inúmeras fronteiras: etárias, de práticas sexuais8, de constituição fa-miliar, de frequência à escola.

Novamente um interlocutor imaginário nos interpela: então, estão dizendo que isto é normal? Não, não estamos dizendo, nem que é anormal, nem que é normal, apenas perguntando por que estamos percorrendo, com frequência, o caminho de procurar a normalidade e construir discursos que elegem como problema e desvio aquilo que foge da normalidade que enunciamos com o aval da ciência, das políticas públicas, das igrejas e comunidades.

Com relação a este aspecto, o fi lme também abre uma bre-cha muito interessante, porque ao trazer o discurso das meninas

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nos ajuda a perceber que, para elas, as gestações não signifi cam, necessariamente, problemas, ou ao menos que a gestação não está encarcerada nesta única direção, podendo existir outras leituras e construção de sentidos.

Por outro lado, esta visão, que o documentário também possibilita, parece que ainda dista da perspectiva da maioria dos dis-cursos veiculados pela sociedade, em especial pela mídia, que insiste em tomar a gravidez na adolescência como problema, como precoce, como inconsequência.

Já existem trabalhos acadêmicos que abordam o fato de que observamos na discursividade, principalmente da saúde, de estudos sobre juventude e da educação, uma espécie de patologização da gravidez neste período (BRANDÃO, 2006; ALTMANN, 2007).

Brandão(2006), ao fazer um balanço bibliográfi co sobre gravidez na adolescência, aponta:

Em geral, os discursos sobre a gravidez na adolescência ad-quirem um tom alarmista e moralista, associando-a a po-breza, marginalidade social, desestruturação familiar, além de enumerar um série de riscos sociais, médicos e psicológi-cos para os sujeitos envolvidos. Ela estaria na contramão das normas que regulam a reprodução. A gravidez implicaria a assunção de um papel social de adulto – o de pai e mãe – e a adolescência despertaria no imaginário coletivo atributos como instabilidade imaturidade, crise, incompatíveis com a representação dominante sobre a parentalidade (LE VAN, 1998; BRANDÃO, 2006, p. 62)

Esta ideia a respeito da gravidez na adolescência também

pode ser observada em depoimentos que aparecem no documentá-rio, como a fala do pai de Evelyn, que diz que errou e por isso a fi lha engravidou. O que podemos perceber é que o pai incorpora a ideia de erro e a responsabilização da família pelo fato.

É interessante notarmos também que o fi lme nos convida a uma outra refl exão sobre a construção da maternidade: Antoniza mãe de Luana diz – “Isto aí não é um boneco, é uma realidade... eu vim ter ela com 23 anos... O que ela sabe o que é ser mãe?”; Luana diz: “Eu não sei se eu já estou preparada para ser mãe; só depois de nascer que eu vou ver que é meu e que eu vou ter que cuidar...”.

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E em outro trecho Evelyn, após o nascimento do bebê, olha para o fi lho e diz: “Minha boneca né, voltei a brincar de boneca”.

Nesta frase da mãe observamos que a realidade parece es-tar desenhada para cada faixa etária. Meninas brincam de boneca, mulheres mais maduras podem cuidar de seus bebês, ou ao menos mulheres mais jovens do que meninas (ela com 23 anos) podem cuidar de seus bebês. Todavia, quando ouvimos Luana percebemos outros elementos: “Eu cuidava da Talita e queria ter um só para mim por eu ter cuidado dela. Ela chegou do hospital e eu já comecei a cuidar dela (...)”.

Tempo e realidade. Mas o que fazer quando o tempo e a re-alidade se mostram diferentes? Existe uma universalização que é ao mesmo tempo imposta e reproduzida pelas e pelos jovens. No en-tanto, ela já cuidava da irmã e das outras irmãs. Num certo sentido ela já foi “mãe da irmã” – maternidade aqui entendida em uma das suas dimensões mais cristalizadas: mãe como sinônimo de cuidado-ra. Se ela não estava preparada para ser mãe, como poderia cuidar das irmãs? Ao fazer o papel de irmã mais velha, estaria exercitando função materna? O que é estar preparada para ser mãe, o que signi-fi ca preparar alguém para a maternidade?

A questão da maternidade já foi amplamente discutida na literatura de gênero9 que aponta a construção histórica, social e cul-tural que atrela a identidade feminina à maternidade.

No conjunto dos trabalhos, produzidos principalmente a partir da infl uência feminista, há o questionamento da existência de um determinismo biológico que conduz, compulsoriamente, as mulheres à condição de mães.

Adotamos como norte para leitura do fenômeno da mater-nidade os apontamentos de Meyer, que, inspirada no pós-estrutu-ralismo, comenta:

(...) Pode-se dizer, então, que as representações que signi-fi cam e inscrevem a maternidade no corpo (e na “alma”!) da mulher, em diferentes espaços e tempos, são ao mesmo tempo, incapazes de fi xar nele, de uma vez para sempre, um conjunto verdadeiro, defi nido e homogêneo de marcas/senti-dos. Para além disso, todas as representações de mulher e/ou maternidade produzem sentidos que funcionam competindo entre si, deslocando, acentuando ou suprimindo convergên-cias, confl itos e divergências entre diferentes discursos e iden-

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tidades; mas são algumas delas que, dentro de determinadas confi gurações de poder, acabam se revestindo de autorida-de científi ca e/ou se transformando em senso comum, a tal ponto que deixamos de reconhecê-las como representações.É assim que uma delas passa funcionar, num determinado contexto sócio-histórico e cultural, como sendo a melhor ou a verdadeira maternidade, aquela que se transforma em refe-rência das ações assistenciais e educativas em saúde a partir da qual as outras maternidades são classifi cadas e valoradas como sendo maternidades de risco ou maternidades desviantes (MEYER, 2003, p. 42).

No documentário, a despeito da observação da perspectiva das/dos jovens, parece que a maternidade “das meninas” não é considerada como a melhor. Esta perspectiva sinaliza a articulação entre as dimen-sões de gênero e idade na constituição dos signifi cados de maternidade. Sobre esta interface, Caterina Lloret (1998) nos leva a refl etir.

(...) As relações quotidianas de cada um produzem-se den-tro de grupos ou instâncias socializadoras que podem vir a ser grupos de pertença mais ou menos integradores ou marginalizadores (...)

Estes grupos, que em muitos casos adotam formas institu-cionalizadas, marcam para nós uma pertença onde os atribu-tos de gênero e idade se entrelaçam com o lugar e a imagem que neles ocupamos. A idade, então, não é só uma atribuição cronológica, mas também aqui determina as expectativas de relação e comportamento. (...) (LLORET, 1998, p. 21)

Estes marcadores etários associados ao feminino aparecem fortemente em Meninas, não somente pelo título, mas por estas outras relações e comportamentos que estamos aqui examinando, como, por exemplo, a capacidade de cuidar, a possibilidade de cons-tituir família, a capacidade de sustentar fi nanceiramente, o direito à sexualidade, ao estudo e projetos de vida.

Contudo, quando olhamos para as outras meninas que o fi lme traz, para as meninas crianças, para as meninas mulheres, talvez possa-mos ampliar nossas construções sobre gênero, geração e maternidade.

Uma cena propositalmente marcante nos mostra Edilene trocando o bebê e sua irmãzinha trocando a boneca ao mesmo tem-

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po. O que vemos ali? O que nos diz esta relação bebê-boneca? Esta cena cotidiana tem alguma relação com o fato de Luana dizer que quer um bebê só para ela? E os sonhos de ser atriz da mãe de Evelyn? E a alegria e a dor da mãe de Luana? Encontramos também no do-cumentário a dor de uma mulher mãe, uma empregada doméstica com a dureza da vida que leva.

Sendo assim, por que os problemas da maternidade estão nas meninas? Como social e culturalmente construímos estas rela-ções de gênero e idade?10

As imagens ainda nos mostram as meninas (adolescentes) cozinhando, enfeitando-se, dançando, namorando e crianças em-purrando o carrinho do bebê que acaba de nascer.

Quando nos perguntamos sobre as relações intergeracionais a partir das imagens, podemos indagar: Há um começo com brinca-deiras, um meio com namoros e gestações e um fi m com sonhos frustra-dos e difi culdades? Este não seria o nosso olhar estrangeiro para uma realidade que pode ter múltiplos sentidos que não captamos? Qual é a alegria, a festa, quais os sonhos presentes para estas três gerações de mulheres nas gestações das meninas? Há que se pensar também nas (im)possibilidades do contexto econômico, social e cultural em que vivemos. Podemos olhar as mulheres nas meninas mães? E as meninas nas mulheres mães?

Recorremos novamente a Caterina Lloret (1998):

A categorização das etapas parcializadas de nossa existência obriga-nos a reconstruir, à base de saltos e fronteiras mais ou menos explícitas, nossa identidade em função de alguns parâmetros socialmente estabelecidos. Em troca, é-nos indi-cado gentilmente, ou não tão gentilmente, quem podemos ser, o que podemos fazer e o que não nos é permitido em tal ou tal idade. (LLORET, 1998, p. 19)

As refl exões de Lloret podem nos ajudar a pensar nas per-guntas dos parágrafos anteriores. Como estas etapas parcializadas e socialmente aceitas das nossas existências servem para nos encarce-rar em marcadores etários que delimitam contornos que por vezes extrapolam aquilo que somos?

(...) Porque, se não queremos viver sob a máscara do tem-po imposto a mim e aos outros, mas queremos, com o

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próprio tempo vivido em mim e na alteridade dos demais, viver o tempo que temos e que nos tem, é preciso des-velar como se articulam as imagens impostas a partir da memória coletiva, do imaginário social ou do costume. Não é só isso, porém, também há que avaliar como as prá-ticas quotidianas reforçam estas imagens ou as recriam e desvelar o modo em que certos estudos sociais ou psicos-sociais, certos interesses econômicos e políticos, sem es-quecer as razões legislativas e gerenciais na classifi cação ou ordenação das populações as conformam e as determinam. (LLORET, 1998, p. 23)

Este processo de classifi cação e ordenação das populações foi descrito por Foucault (2003), que aponta que a medicina e ou-tras áreas de conhecimento, como a pedagogia, a psiquiatria e a psi-cologia, incorporaram em seus fazeres uma das novidades da técnica de poder no séc. XVIII: o surgimento do conceito de população.

Os governos percebem que não têm que lidar simplesmente com sujeitos, nem mesmo com um “povo”, porém com uma ‘população’, com seus fenômenos específi cos e suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de vida, fecun-didade, estado de saúde, incidência das doenças, forma de alimentação, habitat. (FOUCAULT, 2003, p. 28)

Altmann (2007), dialogando com este conceito e analisando discursos sobre sexualidade e gravidez na adolescência, aponta que as questões envolvendo a população e seu governo continuam atuais:

(...) o que está por traz deste intenso debate é o fato de a se-xualidade ser um importante foco de investimento político e instrumento de tecnologia de governo. Durante o século XX, consolida-se um modelo de controle social denomi-nado por Michael Foucault de biopoder, o qual é marcado por um forte investimento político na vida e para o qual o controle da sexualidade é fundamental. A importância do sexo como foco na disputa política deve-se ao fato de ele se encontrar na articulação entre dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda uma tecnologia política da vida: o sexo faz parte das disciplinas do corpo – permitindo o exercício dos micropoderes – e pertence a regulação das populações. Assim, a sexualidade foi esmiuçada e tornou-se chave da

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individualidade, dando acesso à vida do corpo e à vida da espécie, permitindo o exercício de um biopoder sobre a po-pulação. (ALTMANN, 2007, p. 289)

Deste modo, podemos observar que a transformação da gravidez na adolescência em um problema tem estreito vínculo com o surgimento dos saberes e tecnologias relacionados ao biopoder, que também exercita o controle das populações na interface com as relações de gênero, idade, e pertencimento sócio-econômico, raça, etnia, orientação sexual.11

Assim, controlamos e somos controlados o tempo todo, in-clusive nos limites das fronteiras da maternidade. Será que este é um bom modo de cuidar da existência?

Os homens nas Meninas – gravidez na adolescência e relações de gênero

A gravidez na adolescência e a gestação, independentemen-te da questão geracional, frequentemente são tomadas como fenô-menos das mulheres e não dos homens.

No documentário que ora debatemos, em que pese a pre-sença dos homens – pais, parece que esta perspectiva prevalece, ou seja, a gravidez é tomada como fenômeno predominantemente da esfera do feminino.

Quem são os homens neste fi lme? Eles são os pais das me-ninas e os pais dos fi lhos das meninas. São também namorados ou, no caso dos adultos, maridos e ex-maridos. São cuidadores da materialidade, da existência e, no caso das jovens-fi lhas, os respon-sáveis presentes ou ausentes (duas delas não têm pais).

No fi lme, Alex, que é o pai do bebê de Joyce e Edilene, se preocupa com o sustento material dos dois fi lhos e arruma um traba-lho como marceneiro. É também o homem que tem mais que uma mulher – ao mesmo tempo em que é apaixonado por Edilene, viveu um caso com Joyce. No triângulo amoroso observamos as diferen-ças de tratamento e os possíveis signifi cados da gestação para Joyce e Edilene. A primeira sentindo mais abandono de projetos e amor, e a segunda exercitando seu poder no âmbito da relação amorosa.

Dentre tantas facetas desta refl exão, uma particularmen-te interessante é notar como os homens estão presentes nas suas

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ausências. Qual é a presença na ausência no nome de um docu-mentário que trata a gravidez na adolescência? Por que meninas e não meninos e meninas? Onde estão os meninos na gravidez na adolescência? Por que “falta um homem” na família de Luana (e observamos a frustração da mãe-avó quando sabe que a família terá “mais uma menina”).

Observamos também Junior, o companheiro de Luana, que o tempo todo está em cena, mas absolutamente silencioso. Lu-ana fala sobre ele e por ele, deixando-nos perceber que ele dizia se preocupar em ter fi lhos, dizendo que não estava no tempo certo, e que ela desejava ter um fi lho.

Medrado e colaboradores (2005) apontam a invisibilidade da paternidade e a falta de dados sobre os pais nos estudos sobre gravidez na adolescência, bem como o modo como o jovem pai frequentemente é visto – promíscuo, inconsequente, aventureiro, impulsivo, irresponsável.

A fala do pai de Joyce parece coincidir com este apontamen-to: “A turma de jovens, a maioria faz fi lho numa aqui e larga para lá, faz fi lho noutra lá, larga para lá e pai e mãe é que tem que sustentar e se virar, entendeu? e assim, e se ninguém parar para punir eles, eles nunca vão parar, vão continuar fazendo a mesma besteira e vai fi cando jogado pelo mundo por aí”.

Vemos nesta fala uma generalização e cristalização da visão de jovem e da paternidade – ele diz “faz um fi lho numa aqui, noutra ali” parecendo se referir aos homens jovens e referendando-se supos-tamente pela experiência da própria fi lha.

Entretanto, parece que Alex, o pai do fi lho de Joyce, não tem a mesma visão sobre si: “Estou sendo um sujeito homem e estou assumindo tudo o que eu fi z...”

Nesta fala de Alex e no seu comportamento no vídeo, ob-servamos vários pontos interessantes. Ele ama Edilene, mas não nega a paternidade do fi lho de Joyce, vai inclusive visitá-lo, con-tudo não quer permanecer com a garota que fi ca vivendo com os pais (o que possivelmente gera a fala do pai de Joyce na medida em que, além da fi lha, também cuida/sustenta o neto). Por outro lado, vemos que Alex busca um trabalho e pode oferecer setenta e cinco reais para ajudar a cuidar dos fi lhos, ou seja, uma pequena quantia frente às necessidades de um bebê. Neste sentido, Alex assume a paternidade e seu papel de provedor dentro do contexto, talvez

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por isso sinta-se um “sujeito homem” assumindo as responsabili-dades que social e culturalmente são estabelecidas para os homens diante da paternidade.

Costa (2002), comentando resultados de um estudo que realizou com homens, destaca:

Mas, por sua vez, a paternidade não é concebida apenas como “fazer fi lhos”; ela está relacionada também a capaci-dade de sustentá-los e educá-los. Sustentar os fi lhos é uma responsabilidade masculina, o que coloca o trabalho re-munerado dos homens como referência fundamental nas concepções sobre paternidade e masculinidade. Assim, se fazer fi lhos pode servir para comprovar o atributo físico da paternidade, conseguir sustentá-los e educá-los comprova seu atributo moral. (COSTA, 2002, p. 341)

Observamos no mesmo fato duas perspectivas masculinas diferentes, possivelmente em decorrência da posição de sujeito de cada um dos homens envolvidos nesta questão (avô e pai). Também podemos pensar que, ao criticar os jovens, o avô reproduz uma de-terminada concepção de paternidade, fundamentada no casamento como eixo norteador.

Costa (2002), no mesmo estudo acima citado, menciona:

(...) A paternidade mostrou-se concebida com fundamental para uma determinada masculinidade, a dos casados, uma vez que a dos solteiros pode fundamentar-se na sua falta de respon-sabilidades, liberdade sexual e acesso a várias mulheres. Assim, o casamento (heterossexual e monogâmico) recria a noção de masculinidade ao incorporar a paternidade, com suas conseqü-ências e responsabilidades. (COSTA, 2002, p. 341)

E é justamente na interface entre sexualidade, gênero, idade, pertencimento sócio-econômico, confi gurações familiares e conju-gais que podemos pensar a presença/ausência dos meninos no Do-cumentário. Mais do que uma arbitrariedade, a ausência reverbera a gravidez como fenômeno da esfera do feminino. E as presenças po-dem nos levar a leituras generalizantes que reproduzam o status de inconsequência e incompetência dos homens jovens (envolvimento com tráfi co, duas mulheres grávidas ao mesmo tempo, sem recursos para criar, jovem sem trabalho).

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Contudo, o próprio fi lme traz elementos que permitem problematizar estas dimensões.

Tomemos por exemplo a questão da contracepção nas falas de Alex e da mãe de Edilene, Maria José, que, assim como a sua fi lha, está grávida.

Alex: “fi quei um tempão contigo transando sem camisinha, você engravidou?”

Edilene responde: “com ela também, mas tem pessoa que pega mais rápido.”

Alex fi naliza: “foi azar meu.”Maria José: “pensava que não pegava mais fi lho”.Nas duas falas identifi camos sujeitos que parecem não ter

posse sobre sua vida reprodutiva. Temos um jovem homem e uma mulher “madura” e ambos, de certo modo, sentem-se sem as con-dições necessárias para exercer o controle da sua vida reprodutiva diante do exercício da sexualidade12.

Então, por que a maioria das preocupações parece atingir as meninas grávidas? Por que os discursos alarmantes sobre a gravidez das meninas? E por que a carga de irresponsabilidade atribuída prin-cipalmente aos meninos?

Será que os aparatos sociais destinados à educação estão, de fato, observando os sentidos destes fenômenos para os sujeitos envolvidos? Será que o “chavão” prescritivo “use camisinha” não fi ca esvaído de sentido quando deixamos de lado a complexidade dos sujeitos e a dimensão das relações de gênero, da construção geracio-nal, do pertencimento sócio-econômico?

Se retomarmos a fala de Alex – ...estou sendo um sujeito ho-mem –, poderíamos supor que isto inclui o cuidado com sua saúde e os seus direitos sexuais e reprodutivos? Ele tem acesso a programas de saúde e educação que trabalhem estas dimensões?13

Ele inclui na construção da sua masculinidade o cuida-do cotidiano com os bebês ou se restringe à sua dimensão de provedor e visitador? E, no contexto em que vive, quais são os desafi os de assumir estes papéis (novos ou já cristalizados pela sociedade)?

A este respeito, Medrado e colaboradores (2005) sinalizam:

O principal problema dos homens jovens quanto à paterni-dade é muitas vezes, a falta de apoio econômico e social para levar adiante a responsabilidade de educar e cuidar de seus

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bebês, tarefa insistentemente exigida no plano social, mas pouco apoiada. Outro problema também é a idéia de que homem não pode exercer com competência as atribuição do cuidado infantil. É importante, porém, ter claro que nem todo pai adolescente é relapso e que nem toda experiência de paternidade é negativa para os jovens, como somos ensi-nados a pensar e a esperar. Para esses pais e mães adolescen-tes, é de fundamental importância fortalecer redes de apoio na comunidade. (MEDRADO, 2005, p. 248)

Contudo, apesar de existirem redes na comunidade e po-líticas públicas destinadas aos jovens, estas têm se mostrado insu-fi cientes, no que concerne ao apoio para a gestação, mas também para a manutenção dos jovens na escola, ou ainda para a inserção no mercado de trabalho14.

Com relação aos estudos que abordam a questão das mascu-linidades, incluindo a paternidade nas duas últimas décadas, temos observado na literatura:

(...) um interesse crescente pela construção social da(s) masculinidade(s) procurando integrá-la aos estudos sobre gênero e às propostas de políticas e movimentos que visam a igualdade de oportunidade entre os sexos. Homens e masculinidades deixaram de ser neutros; o masculino genérico deixou de representar a espécie, homem e masculinidade passam a constituir uma questão de gênero. (UNBEHAUM, 2006, p. 222)

Frente à crescente interpelação sobre masculinidade e pater-nidade na adolescência, podemos também, assim como temos feito no que se refere à feminilidade e maternidade, buscar desconstruir as universalizações e generalizações das identidades e dos sujeitos, identifi cando as tensões, fi ssuras e relações de poder na constituição destes sujeitos homens.

Neste sentido, podemos retomar aqui o debate que fi ze-mos ao abordar a maternidade, lembrando que o governamento da população e o exercício do biopoder também engendram dis-cursividades que produzem paternidades, masculinidades, sujei-tos com determinadas formas de “ser homem” (com pluralidades identitárias e múltiplas nuances discursivas em diferentes contex-tos e instituições).15

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Entretanto, frente às questões de gênero, temos que este processo de governamento e exercício do biopoder apresenta dife-renças em relações aos homens e às mulheres, nas diferentes culturas e contextos.

Costa (2002) realizou pesquisas com homens e mulheres em um centro de reprodução assistida na cidade de Campinas. O relato que faz sobre as diferenças que encontrou pode nos servir como uma boa pista do impacto das diferenças do processo de cons-trução das identidades de gênero em homens e mulheres.

A pesquisa que resultou neste trabalho mostrou que a paterni-dade é atribuição da masculinidade, mas não da mesma forma que a maternidade é atribuição da femilinidade. A maternida-de era vista pelas mulheres que entrevistei em minha pesquisa anterior como um desejo que sempre existiu, como natural, instintivo, essencial, como a realização de um sonho do passa-do. Dessa forma, parece-me que a representação é a de que as mulheres vão se constituindo mães ao longo de suas trajetórias de vida, e que a maternidade é uma experiência de continuida-de, de repetição, de realização de um plano desde sempre ela-borado no passado feminino. Seria uma perspectiva do passado que se atualizaria em cada mulher no presente. Já os entrevista-dos concebem a paternidade como um desejo que se estabelece em um determinado momento de suas trajetórias de vida – o casamento -, como um desejo que amadurece com o tempo, e que está voltado para o futuro, para a descendência.(...) os entrevistados não concebem a paternidade como um desejo e um evento naturais em suas vidas, da maneira como concebem as mulheres que entrevistei. (COSTA, 2002, p. 343)

A partir destas problematizações, temos que o impacto da gravidez na vida de meninos e meninas é diferenciado e que tal diferença decorre das teias discursivas que vão produzindo sentidos que não são universais, que se modifi cam no espaço/tempo em que se localizam, mas que vão compondo as subjetividades de homens e mulheres a respeito das masculinidades e paternidades, esperadas e tidas como adequadas (para cada gênero, para cada idade).

É relevante que possamos não silenciar sobre a presença dos homens jovens no contexto do documentário, para que estes pos-sam ser vistos e ouvidos e assumir sua parcela na gravidez – parcela aqui entendida sem a habitual conotação de culpa, mas sim como

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os desafi os e as possibilidades que esperar um fi lho desenha. A di-mensão do cuidado, por exemplo, tão excluída da construção da masculinidade não pode ser um exercício afetivo importante? Ao invés de estar à margem, não pode vir a ser um dos elementos que marquem a constituição das masculinidades não somente dos ado-lescentes mas dos homens de todas as gerações?16

Maternidade e Paternidade na adolescência – a busca do cuidado de si?

Ao pensarmos na gravidez na adolescência, confrontamo-nos com um fenômeno multifacetado, encharcado de múltiplos sentidos. Filmes são discursos, bricolagem de imagens, sons, falas, um dos possíveis artefatos culturais sobre um tema.

Interpeladas pelo tema e pelo documentário, colocamo-nos a questão sobre os possíveis sentidos da gravidez na adolescência e gostaríamos de sinalizar aspectos que podem ser relevantes para nossas refl exões.

Inicialmente tomemos a fala de Gabriela Calazans em en-trevista concedida para a elaboração do trabalho de Rios et al:

(...) acredito que devemos investigar melhor qual o sentido dessa experiência, especialmente para as jovens pobres do sexo feminino. Às vezes, construo a hipótese de que, nas situações em que essa experiência é desejada, tal escolha está associada à desvalorização, ou descrença, nas possibilidades de inserção na sociedade num padrão moderno, vinculado à profi ssio-nalização e à escolarização, atendo-se, então, ao padrão tra-dicional de valorização feminina por meio da experiência da maternidade. Assim, em paralelo à proposição de construção de redes sociais de apoio aos jovens que optam pela gravidez, maternidade e paternidade na adolescência, acredito que se tornam necessárias a investigação e a intervenção sobre a va-lorização social dos jovens pobres e a construção de alternati-vas dignas de vida para esse grupo. (RIOS et al, 2002, p. 49)

Desta fala os autores destacam duas questões: a relação en-tre a gravidez na adolescência e a organização familiar, e a segunda aborda a necessidade da inclusão da perspectiva dos homens na aná-lise da temática (RIOS et al, p. 49).

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A estas duas questões destacadas pelos autores da entrevista nós agregaríamos uma terceira que consideramos oportuna para este mo-mento: a refl exão sobre quais são as possibilidades sociais destes meni-nos e meninas. Para tal recorremos a Kehl (2004), que pondera:

A maternidade não é o problema mais difícil a ser enfren-tado pelos nossos adolescentes. O mais difícil é crescer e fazer projetos para a vida numa sociedade de valores indivi-dualistas, em que o “futuro”, tão evocado pela publicidade na divulgação de cada novidade tecnológica, não passa da projeção dos mesmos ideais nascísicos, numa escala quase mortífera. Conforto absoluto para o corpo, competitivida-de ilimitada na relação com o semelhante – qual a graça, qual o sentido de viver num mundo que projeta fantasias como esta? O mais difícil não é que uma adolescente tenha um fi lho aos 15 anos, forçando-se a uma generosidade e a uma maturidade no mínimo mais interessantes do que a obrigação de divertir-se que persegue sua vida. O difícil é não ser capaz de imaginar outros destinos para a própria liberdade. (KEHL, 2004, p. 111)

Considerando tais ideias, não seria possível pensar que a gravidez na adolescência é a busca de uma possibilidade, a cons-trução de um sentido, o exercício de uma liberdade, a busca de alternativas?

Novamente e pela última vez, nosso interlocutor imaginário nos interpela: Ah! agora farão apologia da gravidez na adolescência? Não se trata disto, mas de acompanhar Eugênia Vilela (2006) quan-do ela nos conta que Foucault assinalava a relevância de encontrar a diagonal, deslocar fronteiras, traçar linhas num qualquer sentido, promover osmoses, trânsitos e passagens (VILELA, 2006, p. 109).

Muitas meninas e meninos não querem ter fi lhos e muitas meninas e meninos querem ter fi lhos. Filhos que vão ocupar um lugar em suas vidas – que os ajudarão a planejar, a sonhar, a amar e ser amados. Filhos que ajudarão a dar sentido a vidas que por vezes são desprovidas de outros prazeres, de outros amores e de outros sentidos. Filhos que serão considerados bênçãos e/ou problemas. Lembremos que existem jovens que não têm fi lhos, jovens que fa-zem aborto(s), jovens que deixam seus fi lhos com seus pais.

Não podemos, portanto, afi rmar que essas gestações são in-desejadas (como habitualmente se supõe), mas podemos olhar para

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elas e perguntar: o que faz meninas e meninos engravidarem? Sabe-mos que a informação é fator importante, mas que não garante um planejamento reprodutivo. Podemos também nos indagar a respeito deste estatuto de necessidade de prevenção que a maioria de nós profi ssionais de saúde e educação atribui à gravidez na adolescência. Devemos prevenir o que o sujeito deseja? Por outro lado, há tam-bém que se perguntar se o sujeito pode e tem condições de exercer sua sexualidade sem que isto resulte em procriação.

E podemos ainda perguntar que tipo de construção de sub-jetividade está desenhado em nossa cultura, principalmente para as meninas. Há claramente uma intervenção do Estado articulando o aparato médico sanitário na educação, prescrição e controle da maternidade num processo que Meyer (2003) denominou de poli-tização da maternidade.17

Neste mesmo contexto os discursos constituidores da ma-ternidade e paternidade aparecem reifi cados, idealizados e prescri-tivos em vários ambitos das políticas públicas, na saúde, na educa-ção e na mídia, reafi rmando a idealização dos modelos e condutas, dos corpos e subjetividades. (MEDRADO,1998; HENNIGEN, 2002; SHWENGBER, 2006)

A partir deste quadro, podemos ainda pensar o quanto há de transgressão e resistência e o quanto há de repetição e repro-dução de uma espécie de “sina” envolvendo relações de gênero e pertencimento sócio econômico. Seremos capazes de não binarizar a análise? Repetição e resistência, o mesmo e o novo poderão co-existir? Teremos ouvidos e alma abertos para os múltiplos sentidos e possibilidades ou insistiremos na busca da generalização?

Campos (2008), ao debater a construção da adolescência, dialoga com capturas e resistências, e aponta:

A “adolescência” construída da forma como hoje nos apre-senta, quer ser ouvida. Reconhece que tem o direito de ser ouvida? Quem lhe dirá isso? Como foram capturados e vestiram todas as roupas e adereços que lhes foram pre-senteados a partir da pretensa necessidade de cravar lugares estanques? Como fazem para se mover, para suberter, para dizerem-se de outra forma (CAMPOS, 2008, p. 80).

Podemos então pensar que este exercício de maternidade e paternidade seria, ainda que com suas capturas, a busca de uma

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resistência? Porto-Carrero (2006) debatendo a obra de Foucault, comenta:

Evidencia-se, em seu pensamento tardio, uma nova maneira de se dirigir as condições de possibilidades de um sujeito com capacidade de recusa e resistência, que Foucault chama de critica, em que a valorização do presente é indissociavel da obstinação em imaginá-lo de um modo diferente do que ele é. Esta atitude consiste na capacidade e na coragem de fazer modifi cações em sua propria subjetividade, afastada da verdade do sujeito-identidade e do poder normalizador da lei e das ciências do homem. (PORTO-CARRERO, 2006, p. 194)

Não seria portanto a gravidez uma manifestação de uma obstinação adolescente em imaginar o presente de um modo di-ferente do que ele é? Isto que a maioria dos adultos chama de inconsequência, sonho, em contraposição a “realidade”, não seria também uma tentativa, um passo, a busca de uma experiência de construir algum novo sentido para o presente encarcerado numa adversa materialidade da existência e nos ditames discursivos que temos debatido até aqui?

Nos “extras” do fi lme vemos um dos produtores dizendo que as meninas ganham cidadania ao engravidarem. E num certo sentido ganham: são atendidas no serviço de saúde, são adjetivadas com o nome de mães, passam a fazer parte do mercado consumidor de “coisas de bebê”, como as roupinhas festejadas no chá de bebe de Luana. A vida passa por mudanças, e ganham um novo status.

Obviamente podemos pensar em choros noturnos, contas a pagar e fraldas a lavar; mas, talvez, os meninos e meninas com sua gravidez na adolescência estejam nos falando de algo mais profun-do, nos falando a respeito do que os sujeitos querem e podem ser nos jogos sociais, nos regimes de verdade nos quais são engendrados e engendram sentidos para si mesmos e para os outros.

E, ao pensarmos neste processo de constituição dos sujeitos, nos remetemos ao conceito de cuidado de si,trazido por Foucault, que em seus últimos escritos sinaliza para a possibilidade de subjeti-vação para além dos ditames da norma e do controle externo. Des-creve sujeitos capazes de pensar uma ética da existência e cuidados com si mesmos para além da disciplina e do biopoder.18

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A este respeito Vera Porto-Carrero (2006) destaca:

A pesquisa das formas de subjetivação no último Foucault se coloca em termos de uma investigação histórica sobre a ética sexual e a arte da vida grego romana. Apesar de não apresentar uma ligação explícita com a atualidade, aponta para a elaboração de uma relação não normatizada do indiví-duo consigo, como alternativa às estratégias de subjetivação do poder disciplinar moderno e do biopoder. Pois através da investigação de formas históricas de constituição da subjeti-vidade como decisão ético estética – como cuidado de si – e não como objeto de poder e de saber cientifi co, são analisadas determinadas operações do indivíduo sobre si, cujo objetivo é tranformar-se e constitui para si uma forma desejada de existência. (PORTO-CARRERO, 2006b, p. 284)

Deste modo podemos refl etir a respeito de qual é a forma de-sejada de existência para estes sujeitos jovens que decidem ter fi lhos, de tal modo que, mesmo sabedores de que serão considerados preco-ces, irresponsáveis, inadequados, se poem diante de uma criança que geraram e diante da qual são convocados à responsabilidade de cuidar. Como estes sujeitos jovens operam a construção de si mesmos?

Gallo (2006), ao debater o cuidar de si, comenta:

A investigação em torno das relações de poder levou-a en-contrar os mecanismos de relação do indivíduo consigo, a noção da antiguidade clássica da ética como uma constru-ção de si, como uma forma de cuidar de si. Portanto, a sub-jetivação como uma prática de liberdade e não de assujeita-mento. A inspiração foucaultiana nos desafi a a pensar uma construção autônoma de si, como resultante dos jogos de poderes, de saberes e de verdaes nos quais vamos nos consti-tuindo social e coletivamente. (GALLO, 2006, p. 187)

Fica-nos portanto a indagação: seria a gravidez na adolescên-cia uma espécie de busca de cuidado de si? Estariam estes homens e mulheres jovens mais do que reproduzindo, inventando possibili-dades? Engravidar quando há todo um aparato de norma, controle e poderes disciplinares – seja para controle da sexualidade, seja para o controle da vida reprodutiva, seja para os limites e possibilidades inscritos para a faixa etária denominada adolescente – seria a busca

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para exercitar alguma liberdade e construir para si uma forma de existência diferente daquela prescrita para esta população?

Considerações fi nais

Para fi nalizar, retomamos uma imagem do fi nal do fi lme: Evelyn de vestido preto caminhando pelo cemitério. Seu namorado morreu em decorrência do envolvimento com o tráfi co. As letras na tela nos explicam: Deixou um fi lho de 4 meses e Evelyn viúva aos 13 anos.

Mal estar. Difícil pensar num cuidado de si que resulta em algo que parece tragédia.

Frederic Gross (2006), debatendo a noção de cuidado de si, diz que a pergunta chave neste conceito “é o que você está fazendo da sua vida?” (p. 135).

Talvez ter um fi lho seja uma busca de resposta para esta pergunta num contexto adverso, seja do ponto de vista das relações de gênero, da vida afetiva, da vida familiar ou do contexto sócio-econômico em que vivem. Uma busca em que estaremos sempre diante do inesperado, do inusitado do porvir. Poderíamos pensar que se Evelyn se envolve com um trafi cante este certamente seria seu fi m. Sem dúvida, havia esta possibilidade, mas há também o inesperado do porvir, o acontecimento. Talvez, seja isso que estas e estes jovens estejam buscando, um acontecimento transformador que gere alguma possibilidade de cuidado de si no árido território social das suas vidas. E lembremos que o cuidado de si não exclui, ao contrário, implica, o cuidado com o outro. A gestação traz para meninas e meninos a possibilidade de cuidar de si, e de cuidar de outra(s) vida(s)19.

E talvez possamos também nos perguntar o que estamos fa-zendo com nossas vidas? Com nossa vida como sociedade marcada pelo tráfi co, pela violência, pela pobreza, pela vida extinta em inúme-ras balas perdidas. Com esta vida na qual, para a maioria da popula-ção, obra de arte é manter-se vivo “apesar dos pesares”, daqueles pesa-res sociais que poderiam ser repensados numa sociedade mais ética.

Olhando para as Meninas, olhamos para nós mesmos. E se por um lado a imagem fi nal pode ser de um indicativo de “cuidado com a gravidez, olha o que pode te acontecer”, por outro ela também pode nos levar a pensar: Por que os jovens morrem no tráfi co? Que impacto isto tem na vida de suas familias, seus fi lhos/as, pais, mães

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e amores. A imagem fi nal é “um soco no estômago” – não do fi lme ou da irresponsabilidade da jovem que agora é viuva aos treze anos, e sim da sociedade que inventamos para nós.

Talvez seja por isso que na imagem da capa do fi lme vemos o morro, com guardas armados, estampado na barriga de uma gestante. Estas gestações estão engendradas sobre algo mais do que a gravidez na adolescência, há um modo de existir da sociedade na qual estes meninos e meninas buscam inventar as próprias existências.

Seremos capazes, como brasileiros e brasileiras, do cuidado de si, que implica a tarefa do cuidado ético para consigo e para com o outro? Seremos capazes de fazer de nossa vida uma obra de arte?

Não sabemos responder esta pergunta. Tentamos o cuidado ético...Alguns produzem documentários, outros escrevem artigos e outros ainda contam sua história. Vilela (2006), ao comentar a obra de Foucault, assinala sua perspectiva de ouvir aqueles que eram ti-dos como estranhos e anormais, e assinala:

Estas vozes únicas, as palavras singulares que rompem a nor-malidade, formam um lugar desde onde contar a história na raiz calcinada de sentido (...) (VILELA, 2006, p. 110)

Resta saber o que faremos de nós mesmos. Qual sentido vamos construir? Qual história queremos contar?

Notas

1 MENINAS. Direção: Sandra Werneck. Montagem. Fernanda Rondon, Edi-ção de som e mixagem: Denílson Campos. Música tema: José Miguel Wisnik & Paulo Neves. Finalização de Imagem: Fábio Souza. Brasil: 2005. 71 minu-tos, Dolby Digital, 35 mm.

2 Louro (2007) comenta: Na perspectiva pós-estruturalista, que é a que privilegio, atribui-se especial atenção à linguagem. Supõe-se que a linguagem que se usa não apenas refl ete o modo pelo qual se conhece, mas que ela faz mais do que isso, que ela institui um jeito de conhecer. Em outra oportunidade, já comentei que, ao apresentarmos nossas idéias como “fatos”, nós nos colocamos na posição de quem sabe o que está afi rmando e, de algum modo, oferecemos a quem lê a pos-sibilidade de discordar ou concordar com o que estamos dizendo. Distintamente, quando carregamos nossos textos de questões, provocamos um deslizamento na fonte de autoridade e instigamos ou convidamos o/a leitor/a a formular respostas as indagações feitas. O “tom” de um texto pode encerrar uma discussão, ou, em vez disso, provocar polêmica ou dissensão. Qual dessas formas deveria ser con-

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siderada mais “científi ca”? Não sei, mas estou convencida de que os textos que escrevemos são constituintes do nosso processo de conhecer e de dar a conhecer. Consequentemente, o modo como escrevemos tem tudo a ver com nossas esco-lhas teóricas e políticas (LOURO, 2007, p. 214).

3 Com base em Silva, 2000, podemos dizer que Estudos Culturais é um campo de teorização e investigação social que teve origem na Inglaterra em 1964. A cultura é concebida como um campo de luta em torno do signifi cado e a teoria como campo de intervenção política.

4 Como breve contexto poderíamos fazer uma pequena sinopse e dizer que o fi lme relata as trajetórias de 4 meninas que vivem em comunidades pobres do Rio de Janeiro:

Evelyn, 13 anos, vive na Rocinha com sua mãe que é babá e o irmão. O pai, que é separado da mãe, vive com outra mulher e trabalha como motoboy. Evelyn gosta de baile funk. O pai do seu fi lho é seu namorado de 22 anos que acaba de se desligar do tráfi co.

Luana tem 15 anos e mora no Morro dos Macacos com a mãe que é viúva e tem quatro fi lhas. O pai de seu bebê é seu namorado Júnior.

Edilene tem 14 anos e mora em Engenheiro Pedreira, na casa de Lúcia, mãe de Alex que tem 21 anos, e é pai do seu bebê. Ao mesmo tempo em que Edilene está grávida, também estão grávidas sua mãe Maria José e Joyce, ex-namorada de Alex.

Joyce, 15 anos, mora com os pais e um irmão em Engenheiro Pedreira. A gravi-dez para ela traz os desafi os do relacionamento com Alex (que está envolvido com Edilene) e coloca em xeque possibilidades profi ssionais.

5 Existem trabalhos que abordam a construção discursiva da adolescência (Cé-sar), sua relação com a aids (CRUZ, 2007) e ainda a participação social (CAM-POS, 2008). Rios et al (2002) também sinalizam a ambiguidade no uso dos termos juventude e adolescência nas pesquisas – o primeiro mais vinculado a violência, trabalho, profi ssionalização e o segundo mais focado na sexualidade, saúde reprodutiva, gravidez e a possível permanência de um viés biologizante, mesmo em estudos que se preocupam com a dimensão sócio-cultural.

6 A respeito deste debate, ver o artigo de Altmann (2007).7 Localizamos na Internet uma entrevista da diretora do documentário com

um trecho em que diz: Não imaginava como elas são parecidas na maneira como encaram a vida, apesar de cada uma ser diferente por causa das famí-lias. Elas trocam um sonho por uma coisa mais próxima delas. Por exemplo, a menina que cuidou da irmã e fala que agora quer um bebê só dela. Me choca saber que ninguém ali constituiu família. Que as crianças continuam quase invisíveis e devem seguir os mesmos passos dos pais. Esse círculo vicioso me angustia. (www.terra.com.br/istoegente/350/diversao e arte; (grifo nosso) consulta em 09.07.09)

8 Basta pensar na reação dos espectadores quando uma menina diz que fazia sexo desde os 11 anos.

9 Por exemplo, entre outras: BADINTER, 1985; SCAVONE, 2001; MEYER, 2003

10 Podemos dizer que as relações de gênero e idade impactam também a infân-cia, ou dito de outro modo, desde pequenos somos parte de um processo de subjetivação envolvendo as relações de gênero (através da mídia, nos espaços de educação infantil , na família etc). A este respeito, ver por ex. CRUZ, 1198; RIBEIRO, 1999; FELIPE, 2003.

11 Neste artigo não abordamos problematizações referentes a raça/etnia e orientação sexual, mas reconhecemos a importância destas dimensões para

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a regulação da população, inclusive do exercício de maternidade e paterni-dade.

12 Devemos aqui tomar o cuidado de não associar esta visão de Maria José à po-breza, ainda que reconheçamos que esta seja uma das dimensões relacionadas à questão; as questões de gênero e idade perpassam todas as classes sociais.

13 Para uma discussão sobre homens no âmbito da saúde coletiva, ver SCHARAIBER et al, 2005.

14 Uma pesquisa realizada em três estados brasileiros, inclusive no Rio de Janeiro, onde foi gravado o documentário, aponta que: A paternidade não parece ter afe-tado a situação escolar e de trabalho da ampla maioria dos rapazes independen-temente da idade que tinham a época, exceto para 19,5% dos jovens pais que pararam temporariamente ou completamente de estudar no primeiro ano após o nascimento da criança. A situação das mulheres é bem diferente, especialmente no caso da mães adolescentes, das quais 27,6% interromperam temporariamente e 18,4% defi nitivamente seus estudos no primeiro ano após o nascimento do fi lho. Contudo, 40,2% deles já se encontravam fora da escola por outros motivos, o que também ocorria em proporção ligeiramente superior (47,8% para os rapazes que tiveram o primeiro fi lho antes dos 20 anos (...) (AQUINO et al, 2006, p. 344).

15 Como um elemento de nossa argumentação, podemos citar SCHARAIBER et al (2005), que, ao refl etir sobre a preocupação da saúde coletiva com a questão dos homens, apontam a expansão da transmissão heterossexual da epidemia da aids e a crescente infecção das mulheres como alguns dos ele-mentos que contribuíram para que a perspectiva dos homens passasse a in-corporar os debates sobre relações de gênero no âmbito da saúde coletiva.

Neste sentido, podemos pensar que há também o elemento de regulação de uma população (homens que fazem sexo com mulheres e que são vistos como transmissores do hiv) compondo a ampliação das discursividades sobre as masculinidades e a produção de intervenções com vistas à adoção de práticas sexualmente seguras (como a utilização de preservativos por exemplo).

16 Já temos transformações nesta esfera; contudo, como vimos no documentário e nos textos citados, predomina a ideia de cuidado como sinônimo de sustento.

17 E arriscamo-nos a pensar que também estamos vivenciando um processo de po-litização da paternidade.

18 Para o aprofundamento do conceito de cuidado de si, ver: FOUCAULT, 1985, 2004; FONSECA, 2003; GALLO, 2006; GROSS, 2006; PORTO-CARREIRO, 2006a, 2006b.

19 Para Foucault, “cuidar si poderá ser, ao mesmo tempo, senão um cuidar dos outros, pelo menos um cuidado de si benéfi co para os outros” (FOUCAULT, 2004, p. 273).

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Recebido em: abril 2009Aceito em: maio 2009